Ano Xxxix - No. 433 - Junho De 1997

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P rojeto PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de

Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)

APRESENTAQAO

DA EDIQÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa

esperanca a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15). Esta necessidade de darmos conta

da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos

bombardeados

por

numerosas

correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. •-

:

Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questoes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de vista crístáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortaleca no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site. Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

Ano xxxix

Junho 1998

O Coragáo Aberto

Clonagem Humana?

"O Papa que venceu o comunismo" (Bemard Lecomte) O Caso "Tissa Balasuriya"

Naturivida

Quem sao os Mórmons?

Vita Brevis (A Carta de FIória Emilia a Aurelio Agostinho)

Academia de Medicina do Paraguai: Nao ao aborto A Igreja Católica e o Bem do País

Encontró com Deus no silencio (Rev. Agrício do Vale)

PERGUNTE E RESPONDEREMOS

JUNHO1998

Publica9áo Mensa!

Diretor

N°433

SUMARIO

Responsável

Estéváo Bettencourt OSB

O Coracáo Aberto

241

Autor e Redator de toda a materia

Prognósticos e temores: Clonagem Humana?

242

A historia recente do Leste europeu: "O Papa que venceu o comunismo" (Bernard Lecomte)

251

publicada neste periódico

Diretor-Administrador: D. Hildebrando P. Martins OSB Administrado

e

Feliz desfecho de tragedia:

Distribuido:

Edicoes 'Lumen Chrísti"

O Caso "Tissa Balasuriya"

256

Rúa Dom Gerardo, 40 - 5o andar - sala 501

Naturivida

262

Tel.: (021) 291-7122

Proselitismo ferrenho:

Fax (021) 263-5679

Quem sao os Mórmons?

Endereco para Correspondencia: Ed. "Lumen Christi"

263

Livro controvertido:

Vita Brevis (A Carta de Flória Emilia a Aurelio Agostinho)

275

Visite o MOSTEIRO DE SAO BENTO

Falam os médicos: Academia de Medicina do Paraguai: Nao ao aborto

282

e "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

Pesquisa revela súrpresas:

na INTERNET: http://www.osb.org.br

A Igreja Católica e o Bem do País

283

e-mail: LUMEN.CHRISTI @ PEMAIL.NET

Encontró com Deus no silencio (Rev. Agrício do Vale)

288

Caixa Postal 2666

CEP 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ

ImpressSo e Encadernafffo

"marques saraiva" COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

GRÁFICOS E EDITORES Ltda.

Te,,: <02» 502-9498

N

A peca "Der Stellvertreter" (O Representante). - As obras caritativas de Joáo Paulo II. Aborto: o Papa e os Bispos alemáes. - Reforma Agraria. - A Igreja resolveu aceitar o espiritismo? - Congelamento de cadáveres humanos. - "Quando o Papa pede perdáo" (L Accattoli).

(PARA RENOVACAO OU NOVA ASSINATURA:

(NÚMERO AVULSO

R$ 30,00).

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O pagamento poderá ser á sua escolha: 1. Enviar em Carta, cheque nominal ao MOSTEIRO DE SAO BENTO/RJ.

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fJP0?',10,^ cl"alc1uer agencia do BANCO DO BRASIL, para agencia 0435-9 Rio na

wc 31.304-1

do Mosteiro de S. Bento/RJ, enviando em seguida por carta ou fax

comprovante do depósito,

para nosso controle.

"LUMEN Obs.:

Correspondencia

para: Edicoes 'Lumen Christi"

Caixa Postal 2666 20001-970 Rio de Janeiro - RJ

J

O CORAQÁO ABERTO O mes de junho é dedicado á devocáo do Sagrado Coracáo de Jesús. Esta forma de piedade tomou particular incremento no sáculo XVII, quando o jansenismo ameacava a vida crista, incutindo o medo e nao o amor a Deus; lembra o amor de Deus na sua mais ampia dimensáo. Tem seu embasamento teológico, derivado, dentre outros textos, de Jo 19, 33-37: o evangelista narra que um soldado traspassou o lado de Cristo crucificado, com um golpe de lanca, de modo que daí jorraram agua e sangue. O fato, como tal, pode parecer muito natural e secundario, mas S. Joáo enfatiza a veracidade do acontecimento como se visse nele algo de importante e me recedor de atencao: "Aquele que viu, dá testemunho, e seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que diz a verdade, parque também vos creíais" (19,35). Por que terá o evangelista dado tanto relevo ao acontecimento? O quarto Evangelho, se, de um lado, é muito fiel á realidade histórica, de outro lado costuma apresentar os eventos como sinais de algo maior ou transcendente; o símbolo da agua é freqüente em Joao (cf. 3,5; 4,14; 5,3-8; 7,37-39...) A tradicáo patrística ou dos antigos escritores da Igreja parece ter compreendido a ¡ntencáo do evangelista, pois viu na agua o símbolo do Batismo e no sangue o símbolo da Eucaristía; Batismo e Eucaristía sao os dois principáis sacramentos; jorram do lado de Cristo crucificado e derramam sobre todas as geracóes a graca contida no templo do Corpo de Cristo (cf. Jo 2,21); prolongam até o fim dos tempos a acao salvífica da humanidade de Jesús. Assim agíndo, estes sacramentos vém a ser o arcabouco da fgreja; bem se diz que o Batismo e a Eucaristía fazem a Igreja e a Igreja faz o Batismo e a Eucaristía.

Continuando a desenvolver tal perspectiva, dir-se-á que a própria Igreja assim nasce do lado de Cristo adormecido na Cruz, como a primeira mulher,

Eva, a máe da vida, saiu do lado do primeiro Adáo, conforme Gn 2,22. A Igreja é muito propositadamente dita "Máe", da qual renascemos pelas aguas do Batismo. Tal observacáo também era cara aos antigos doutores da Igre ja, e foi retomada por Pió XII ao dizer que a Igreja saiu do lado de Cristo adormecido na Cruz. O lado de Jesús aberto por um soldado, inconsciente do significado do gesto que fazia, vem a ser- pode-se dizer- o Coracáo de Cristo, coracáo que, na simbologia dos semitas, significa a sede dos pensamentos e afetos do homem. Por esse coracáo de Jesús pulsou o designio salvífico de Deus

concebido por amor para com os homens; o coracáo aberto, fonte de agua e sangue, ou fonte da graca, é precisamente o sinal do eterno amor de Deus á

humanidade necessitada de misericordia e vida. Ele representa, especial mente neste mes de junho, o manancial das dádivas que sao oferecidas a cada homem pelo Amor que nos amou primeiro {cf. 1 Jo 4,19).

E.B. 241

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" Ano XXXIX - N9 433 - Junho de 1998

Prognósticos e temores:

CLONAGEM HUMANA?

Em sintese: A Pontificia Academia Pro-Vita publicou importante documento sobre clonagem humana. Aponta os desmandos moráis que podem decorrer do cultivo da ciencia sem consciéncia: a despersonalizagáo da reprodugáo humana, o dominio de uns (programadores) sobre outros (programados), ofensa a dignidade humana, instrumentalizagao da muiher reduzida ao plano de doadora de óvulos e útero (enquanto nao se fabricam úteros artificiáis). A "presumida morte de Deus" parece ocasionar a "real morte do homem". O mundo inteiro se impressionou com a clonagem da ovelha Dolly, que parecía ser um passo a mais para se atingir a clonagem do ser hu mano. Esta perspectiva suscitou ¡nterrogacóes perplexas e temerosas, pois o futuro da humanidade está em jogo. O Governo de varios países está-se interessando por legislacáo adequada, visando a coibir abusos e desmandos. Já em PR 428/1998, pp. 29-34 foi sumariamente abordado o assunto.

A Pontificia Academia Pro-Vita emitiu abalizado parecer sobre o problema. Vai, a seguir, publicado, visto que se trata de documento pro

veniente de um órgáo oficial da Santa Sé. Em linguagem técnica e preci

sa, enuncia varias objecoes que se levantam contra a clonagem huma na. A ciencia pela ciencia, manipuladora do ser humano, é condenável,

pois a ciencia deve servir ao homem, e nao o homem á ciencia.

REFLEXÓES SOBRE A CLONAGEM INFORMACÓES HISTÓRICAS Há já bastante tempo, os progressos do saber e os respectivos

avancos da técnica no ámbito da biología molecular, genética e fecunda242

CLONAGEM HUMANA?

cao artificial tornaram possível a experimentacáo e a realizacáo de clonagens no campo vegetal e animal. No reino animal, por exemplo, desde os anos trinta se efetuam experiencias de producáo de seres idén ticos, obtidos por cisáo gemelar artificial, modalidade esta que se pode impropriamente definir como clonagem.

A prática da cisáo gemelar no campo zootécnico tem-se difundido nos estábulos especialmente reservados á experimentacáo, como incen tivo á multiplicacao de certos exemplares selecionados.

Em 1993, Jerry Hall e Robert Stilmann, da George Washington University, divulgaram dados relativos as experiencias, por eles executadas, de cisáo gemelar («splitting») de embrióes humanos de 2, 4 e 8 embrioblastos. Tais experiencias foram realizadas sem o previo consen

so da Comissao Ética competente; e os dados foram publicados para provocar o debate ético, segundo os seus autores.

Mas a noticia, publicada na revista «Nature» de 27 de fevereiro de 1997, do nascimento da ovelha Dolly por obra dos cientistas escoceses

Jan Vilmut e K. H. S. Campbell, com os seus colaboradores do Roslin Institute de Edimburgo, abalou excepcionalmente a opiniáo pública, sus citando tomadas de posicáo de Comissoes e Autoridades nacionais e internacionais; isto, porque se tratou de um fato novo e considerado in quietante.

A novidade do fato deve-se a duas razóes. A primeira é que se tratou nao duma cisáo gemelar, mas duma novidade radical definida clonagem, isto é, urna reproducáo assexual e agámica, destinada a produzir seres biológicamente iguais ao individuo adulto que fornece o patrimonio genético nuclear. A segunda razáo é que este género de clonagem verdadeira e propriamente dita era, até entáo, considerado ¡mpossível. Julgava-se que o ADN (ácido desoxirribonucleico) das célu las somáticas dos animáis superiores, tendo sofrido o processo

conformativo da diferenciacáo, já nao pudesse recuperar toda a potencialidade original e, conseqüentemente, a capacidade de guiar o desenvolvimento dum novo individuo. Superada tal suposta impossibilidade, parecía que estava já aberto

o caminho para a clonagem humana, entendida como replicacáo dum ou mais individuos somáticamente idénticos ao doador.

O fato suscitou, justamente, ansiedade e alarme. Mas, depois duma primeira fase de unánime oposicáo, levantaram-se algumas vozes querendo chamar a atencáo para a necessidade de garantir a liberdade da investigacáo e de nao exorcizar o progresso, e chegando mesmo a fazer a

previsáo duma futura aceitacáo da clonagem por parte da Igreja Católica. 243

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

Por ¡sso, transcorrido já algum tempo e numa fase mais serena, é útil fazer um cuidadoso exame do fato, que foi percebido como fenómeno

inquietante.

O FATO BIOLÓGICO Ñas suas dimensóes biológicas, a clonagem enquanto reproducáo artificial obtém-se sem o contributo dos dois gametas; trata-se, portanto, duma reproducáo assexual e agámica. A fecundacáo propriamente dita é substituida pela fusáo de um núcleo retirado duma célula somática do individuo que se deseja clonar, ou da própria célula somática, com um ovocito privado do núcleo, ou seja, do genoma de origem materna. Dado que o núcleo da célula somática traz todo o patrimonio genético, o indivi duo obtido possui - salvo possíveis alteracoes - a identidade genética do

doador do núcleo. É esta correspondencia genética essencial com o doador que faz com que o novo individuo seja a réplica somática ou a copia dele.

O resultado de Edimburgo verificou-se depois de 277 fusóes ovócitonúcleo de doador; apenas oito délas tiveram éxito positivo, ou seja, somente oito das 277 fusóes ¡niciaram o desenvolvimento embrionario, e so um destes oito embrióes conseguiu chegar ao nascimento: a ovelha que foi chamada «Dolly».

Permanecem de pé muitas dúvidas e perplexidades acerca de va rios aspectos da experimentacáo: por exemplo, a possibilidade de que, entre as 277 células doadoras usadas, houvesse algumas estaminais, isto é, células dotadas dum genoma nao totalmente diferenciado; o papel desempenhado por residuos de ADN mitocondrial que eventualmente tenham ficado no óvulo materno; e ainda muitos outros a que, infelizmen te, os investigadores nem sequer tentaram acenar. Em todo caso, estáse perante um fato que ultrapassa as formas de fecundacáo artificial até agora conhecidas, que se reaiizavam sempre com a utilizacáo dos dois gametas.

Há que sublinhar que o desenvolvimento dos individuos obtidos por clonagem, salvo eventuais e possíveis mutacóes - e poderiam ser muitas - deveria levar a urna estrutura corpórea muito semelhante á do

doador do ADN; este é o resultado mais inquietante, especialmente no caso de tal experimentacáo vir a ser transferida para a especie humana. Todavía, é preciso notar que, na hipótese de se querer estender a clonagem á especie humana, desta replicacáo da estrutura corpórea nao derivaría necessariamente urna identidade perfeita da pessoa, conside rada tanto na sua realidade ontológíca como psicológica. A alma espiritu al, constitutivo essencial de cada sujeito pertencente á especie humana, 244

CLONAGEM HUMANA?

que é criada diretamente por Deus, nao pode ser gerada pelos país, nem

ser produzida pela fecundacáo artificial, nem ser clonada. Além disso, o desenvolvimento psicológico, a cultura e o ambiente levam sempre a

personalidades diferentes; este é um fato bem conhecido no caso dos gémeos, cuja semelhanca nao significa identidade. A fascinacáo popular ou a auréola de poder absoluto, que acompanham a clonagem, háo de ser pelo menos redimensionadas.

Apesar da impossibilidade de incluir o espirito, que é a fonte da

personalidade, a extensáo da clonagem ao homem já fez imaginar hipóteses, inspiradas no desejo de um poder absoluto: replicacáo de indiyíduos dotados de genialidade e beleza excepcional, reproducáo da ima-

gem de um familiar defunto, selecáo de individuos sadios e imunes a doencas genéticas, possibilidade de escolha do sexo, producao de embrióes previamente selecionados e crioconservados a fim de serem depois transferidos para o útero, como reserva de órgáos, etc. Se tais hipóteses podem ser consideradas ficcao científica, logo se

adiantam propostas de clonagem, julgadas razoáveis e compassíveis: a procriacáo dum filho numa familia em que o pai sofre de aspermia, ou substituir o filho moribundo duma viúva; poder-se-á dizer que estes ca sos nada tém a ver com imaginacóes de ficcao científica.

Mas qual seria o significado antropológico desta operacáo, numa perspectiva de aplicacao ao homem?

PROBLEMAS ÉTICOS LIGADOS COM A CLONAGEM HUMANA A clonagem humana insere-se no projeto do eugenismo e, portan-

to, está sujeita a todas as observacóes éticas e jurídicas que o condenaram amplamente. Como escreve Hans Joñas, a clonagem humana é, «no método, a mais despótica e ao mesmo tempo, na finalidade, a mais escravizadora forma de manipulacáo genética; o seu objetivo nao é uma modificacáo arbitraria da substancia hereditaria, mas precisamente a sua fixacáo, igualmente arbitraria, em contraste com a estrategia predomi nante da natureza» (cf. H. Joñas, Cloniamo un uomo: dall'eugenetica all'ingegneria genética, p. 136: em Técnica, medicina ed etica, Einaudi, Turim 1997, pp. 122-154).

É uma manipulacáo radical do relacionamento e da complementaridade constitutiva, que está na origem da procriacáo hu mana, tanto no seu aspecto biológico como na sua dimensáo propriamente pessoal. De fato, a clonagem humana tendería a tornar a bissexualidade um mero residuo funcional, ligado ao fato de ser preciso utilizar um óvulo, privado do seu núcleo, para dar lugar ao embriáo-clone, e de se exigir, por enquanto, um útero feminino para levar a cabo o seu 245

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

desenvolvimento. Póem-se, deste modo, em acáo todas as técnicas que

foram experimentadas na zootécnica, reduzindo o significado específico da reproducáo humana.

É nesta perspectiva que se enquadra a lógica da producáo indus

trial: dever-se-á explorar e favorecer a pesquisa de mercado, aperfeicoar a experimentac.áo, produzir modelos sempre novos.

Verifica-se urna radical instrumentalizacáo da mulher, que fica limi tada a algumas das suas funcóes puramente biológicas (empréstimo de óvulos e do útero), estando já em perspectiva a investigacáo para tornar possível construir úteros artificiáis, o derradeiro passo para a fabricacáo, em laboratorio, do ser humano.

No processo de clonagem, ficam pervertidas as relacóes funda mentáis da pessoa humana: a filiacáo, a consangüinidade, o parentesco, a progenitura. Urna mulher pode ser irmá-gémea de sua máe, faltar-lhe o pai biológico e ser filha do seu avó. Com a FIVET (fecundacáo in vitro e transferencia do embriáo), já se introduziu a confusáo no parentesco, mas, na clonagem, verifica-se a ruptura radical de tais vínculos.

Nela, como em qualquer atividade artificial, encena-se e imita-se aquilo que tem lugar na natureza, mas a preco de menosprezar tudo o que, no homem, ultrapassa a sua componente biológica - e esta reduzi-

da áquelas modalidades reprodutivas que caracterizaram apenas os or ganismos mais simples e menos evoluídos do ponto de vista biológico.

Cultiva-se a idéia segundo a qual alguns homens podem ter um dominio total sobre a existencia dos outros, a ponto de programarem a sua identidade biológica - selecionada em nome de criterios arbitrarios ou puramente instrumentáis; ora aquela, mesmo nao esgotando a identi

dade pessoal do homem que se caracteriza pelo espirito, é sua parte constitutiva. Esta concepcáo seletiva do homem provocará, para além do mais, urna grave quebra cultural, inclusive fora da prática - numérica mente reduzida - da clonagem, porque fará aumentar a conviccáo de

que o valor do homem e da mulher nao depende da sua identidade pes soal, mas apenas daquelas qualidades biológicas que podem ser apreci adas e, por isso, selecionadas.

A clonagem humana recebe um juízo negativo aínda no que diz respeito á dignidade da pessoa clonada, que vira ao mundo em virtude do seu ser «copia» (embora apenas copia biológica) de outro individuo: esta prática gera as condicóes para um sofrimento radical da pessoa clonada, cuja identidade psíquica corre o risco de ser comprometida pela presenca real, ou mesmo só virtual, do seu «outro». E nao vale a hipótese de se recorrer á conjura do silencio, porque, como observa Joñas, 246

CLONAGEM HUMANA?

seria impossível e igualmente imoral: visto que o ser «clonado» foi gerado para se assemelhar a alguém que «valia a pena» clonar, sobre ele recairáo expectativas e atencóes táo nefastas, que constituiráo um verdadeiro e próprio atentado á sua subjetividade pessoal. E, ainda que o projeto da clonagem humana fosse suspenso antes

da instalacáo no útero, procurando assim subtrair-se pelo menos a algumas das conseqüéncias que até agora indicamos, continua igualmente a ser injusto sob o ponto de vista moral.

Realmente, urna proibicáo da clonagem humana que«e limitasse

ao fato de impedir o nascimento de urna crianca clonada, permitiría sempre a clonagem do embriáo-feto; daria a possibilidade de experimentagao sobre embrióes e fetos e exigiría a sua supressáo antes do nascímento, revelando um processo instrumental e cruel em relacáo ao ser humano.

Tal experimentacáo é, em qualquer circunstancia, ¡moral pelo intui to arbitrario de reduzir o corpo humano (decididamente considerado como urna máquina composta de diversas pegas) a puro instrumento de investigacáo. O corpo humano é elemento integrante da dignidade e identidade pessoal de cada um, e é ilícito usar a mulher como fornecedora de óvulos, para sobre eles efetuar experiencias de clonagem. Imoral, porque estamos, também no caso do ser clonado, perante um homem, embora no seu estado embrionario.

Contra a clonagem humana, há que referir ainda todas as razóes moráis que levaram seja á condenacáo da fecundacáo in vitro enquanto tal, seja á radical desaprovacáo da fecundacáo in vitro destinada ape nas á experimentacáo.

O projeto da clonagem humana demonstra o desnorteamento terrível a que chega urna ciencia sem valores moráis, e é sinal do profundo mal-estar da nossa civilizacáo, que busca na ciencia, na técnica e na qualidade da vida os sucedáneos do sentido da vida e da salvacáo da existencia.

A proclamacáo da «morte de Deus», na va esperanca de um «superhomem», traz consigo um resultado evidente: a morte do homem.

De fato, nao se pode esquecer que a negacáo da sua dimensáo de cria

tura, loñge de exaltar a liberdade do homem, gera novas formas de es-

cravidáo, novas discriminacóes, novos e profundos sofrimentos. A clonagem corre o risco de ser a trágica parodia da onipoténcia de Deus. O homem, a quem a criacáo foi confiada por Deus, dotando-o de liberda de e inteligencia, nao tem como únicos limites á sua acáo os que sao ditados pela impossibilidade prática: tais limites, deve ele saber colocá247

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

los a si mesmo, exercendo o discernimento entre o bem e o mal Mais

urna vez é pedido ao homem que escolha: cabe-lhe decidir se há de transformar a tecnología num instrumento de libertacáo ou tornar-se ele mesmo seu escravo, criando novas formas de violencia e de sofrimento.

Há que sublinhar, urna vez mais, a díferenca que existe entre a concepcáo da vida como dom de amor e a visáo do ser humano conside rado como um produto industrial.

Suspender o projeto da clonagem humana é um compromisso moral

que se deve saber traduzir em termos culturáis, sociais e legislativos.

Com efeito, o progresso da ¡nvestigacáo científica nao se identifica com o despotismo científico emergente, que hoje parece tomar o lugar das antigás ideologías. Num regime democrático e pluralista, a primeira ga rantía da liberdade de cada um concretiza-se no respeíto incondicional da dígnidade do homem, em todas as fases da sua vida e independentemente dos dotes ¡ntelectuais ou físicos de que goza ou está privado. Na clonagem humana, acaba por cair a condicáo necessária para toda e qualquer convivencia: a de tratar o homem sempre e em qualquer situacáo como fim, como valor, e nunca como puro meio ou simples objeto. NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS DO HOMEM E DA LIBERDADE DE INVESTIGACÁO

No plano dos direitos do homem, urna eventual clonagem humana

representaría urna violacáo dos dois principios fundamentáis sobre os

quais se baseíam todos os direitos do homem: o principio da paridade entre os seres humanos e o principio da nao-discriminacáo.

Contrariamente a quanto, á primeíra vista, possa parecer, o princi pio da paridade entre os seres humanos fica subvertido por esta possível forma de predominio do homem sobre o homem, e a discriminacáo é feita através de todo o perfil seletivo-eugenético inscrito na lógica da clonagem. A Resolucáo do Parlamento Europeu, de 12 de marco de 1997, declara expressamente a violacáo destes doís principios e apela fortemente para a proibicáo da clonagem humana e para o valor da dignidade da pessoa humana. Desde 1983 o Parlamento Europeu e todas as leis mesmo as mais permissivas - que foram promulgadas para legalizar a procriacáo artificial, sempre proibiram a clonagem. Recorde-se que o

Magisterio da Igreja condenou a hipótese da clonagem humana, da cisáo gemelar e da partenogénese, na Instrucáo «Donum Vitae», de 1987.

Como dissemos, o motivo da rejeicáo da clonagem está na sua negaclo da dignidade da pessoa a ela sujeita e também na negacáo da

dignidade da procriacáo humana.

A solicítacáo mais urgente, neste momento, é a de recompor a 248

CLONAGEM HUMANA?

harmonía das exigencias da investigacáo científica com os valores hu manos inalienáveis. O cientista nao pode considerar como mortificante a recusa moral da clonagem humana; antes, pelo contrario, tal proibicáo elimina a degeneracao demiúrgica da investigacáo, restabelecendo-a na

sua dignidade. E a dignidade da investigacáo científica está no fato de ela permanecer como um dos recursos mais ricos em beneficio da humanidade. Por outro lado, a investigacáo no setor da clonagem encontra es pago disponível no reino vegetal e animal, no caso de representar urna necessidade ou utilidade seria para o homem ou para os outros seres

vivos, salvaguardadas sempre as regras de tutela do próprio animal e a obrigacáo de respeitar a biodiversidade específica. A investigacáo científica posta ao servico do homem, como quando se empenha a procurar o remedio para as doencas, o alivio do sofrimento, a solucáo para os problemas originados pela carencia alimentar e o melhor uso dos recursos da térra, tal investigacáo representa urna espe

ranza para a humanidade, confiada ao genio e ao trabalho dos dentistas.

Para fazer com que a ciencia biomédica mantenha e reforcé a sua ligacáo com o verdadeiro bem do homem e da sociedade, é necessário, como recorda o Santo Padre na Encíclica Evangelium Vitae, cultivar um olhar contemplativo sobre o próprio homem e sobre o mundo, numa visáo da realidade como criacáo e num contexto de solidariedade entre a

ciencia, o bem da pessoa e da sociedade:

"É o olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo nela as dimensóes de generosidade, beleza, apelo a liber-

dade e á responsabilidade. É o olhar de quem nao pretende apoderarse

da realidade, mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas as coi sas o reflexo do Criador eem cada pessoa a sua imagem viva" (Evangelium Vitae, 83).

Prof. Juan de Dios Vial Correa Presidente Mons. Elio Sgreccia Vice-Presidente

REFLETINDO...

O texto da Pontificia Academia Pro-Vita, em suas minuciosas consideracóes, enfatiza que 1) a eventual clonagem humana despersonalizaria a reproducáo humana. Esta é, por sua índole natural, fruto do amor mutuo do homem e 249

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

da mulher, comprometidos pelo contrato matrimonial. A prole é a expressáo da doacáo generosa da parte dos genitores. Ora a clonagem huma

na extinguiría esta característica e faria da reproducáo humana o mesmo que a proliferacao do gado ou, pior ainda, o mesmo que um processo

físico-químico de laboratorio destinado á industrial ¡zacáo de seus produtos. 2) Em particular, a clonagem humana instrumentalizaria a mulher, que ficaria reduzida á condicáo de doadora de óvulos e útero (enquanto nao se consegue fabricar o útero artificial).

3) A clonagem humana destruiría as relacóes de parentesco, pois a mulher poderia ser a irmá gémea de sua máe e filha de seu avó. 4) A clonagem humana propiciaría o dominio de urna categoría de homens sobre outros. Tal individuo existiría porque programado por outro e porque o interessante almejado seria o modelo que o clone deveria

copiar ou reproduzír. Isto fere a dignidade da pessoa humana. Verdade é que se costuma exagerar dizendo que o individuo clonado seria a copia carbono do doador. Isto é falso; poderia, sim, ser muito semelhante ao doador quanto ao físico, mas nao necessariamente quanto ao psíquico,

pois a alma (psyché) humana, sendo espiritual, nao pode ser clonada; ela é diretamente criada e infundída por Deus no feto recém-fecundado; ademáis a alma humana é dotada de livre arbitrio e sujeita ao diálogo com seu ambiente de vida. 5) A morte de Deus, táo apregoada por alguns filósofos, redunda na morte real do homem, que pode vir a ser destruido ou reduzido á escravidáo sob novas formas pelos próprios homens. Enfim a clonagem

humana corre o risco de ser a trágica parodia da onipoténcia divina, pa rodia na qual o perdedor é o próprio homem.

6) Ciencia sem consciéncia ética pode vír a ser urna arma contra o

homem. É manipulada pela volúpia de alguns estudiosos que desejam conquistar novos espacos e títulos de gloria as custas de seus semeIhantes.

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A recente historia do Leste europeu:

"O PAPA QUE VENCEU O COMUNISMO" por Bernard Lecomte

Em síntese: O jornalista Bernard Lecomte, tendo investigado arquivos do Leste europeu e de París, houve porbem descrevera historia da queda do comunismo, pondo em relevo a atividade do Papa Joáo Paulo II nessa derrocada. O livro foi publicado em francés no ano de 1991, de modo que nao val muito além da queda do Muro de Berlim. Como quer que seja, é rico em informagóes, multas vezes, desconhecidas ao grande público. Com fidelidade póe em relevo o pensamento e as preocupagdes de Joáo Paulo II, o Papa que sonhava com a construgao

da Casa Comum Européia, unindo Ocidente e Oriente numa Europa cuja civilizagáo tem origens cristas. *

*

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Bernard Lecomte é jornalista que se especializou em assuntos da Uniáo Soviética e dos países do Leste Europeu. Durante anos fez suas

pesquisas em Paris, Moscou, Cracovia, Praga e Gdansk (Danzig). É re

pórter do L'Express e co-autor com Jacques Lesourne, de L'aprés-

communisme de l'Atlantique á l'Oural (O pós-comunismo desde o Atlán tico até os montes Urais). Escreveu sobre o papel do Papa Joáo Paulo II no combate ao comunismo ateu no livro La Vérité l'emportera sur le Mensonge (A Verdade prevalecerá sobre a Mentira) publicado em 1991 e editado em tradugáo portuguesa em 1993 com o título "O Papa que

venceu o Comunismo"1. É obra semelhante á de Bernstein-Politi - "Sua Santidade" - já apresentada em PR 420/1997, pp. 200-209, com a diferenca de que o autor descreve a historia até 1991, ao passo que os dois outros jornalistas se estendem até 1996. Como quer que seja, o livro é interessante, pois nao somente trata

da atividade de Joáo Paulo II como Pastor da Igreja em luta pelos direitos humanos e pela liberdade religiosa, mas aborda o panorama dos povos que aos poucos se foram libertando do comunismo; percorre assim a recente historia de cada país do Leste europeu, incluindo a lugoslávia e a Albania. Isto abre os horizontes do leitor, que descobre episodios geralmente desconhecidos, mas bem documentados por B. Lecomte.

Ñas páginas subseqüentes, seráo propostos alguns tópicos sali entes de tal obra. 1 Tradugáo de Artur Lopes-Cardoso. Editora ASA, Rúa Mártires da Liberdade 77, Lisboa, 170x240mm, 358 pp. 251

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

1. A Eleicáo do Papa polonés

Os Cardeais que se preocupavam com a sucessáo de Joáo Paulo I, pensavam num Papa nao italiano, após procurar entre os italianos o can

didato ideal. Assim fizeram a escolha de um Papa eslavo - Karol Wojtyla -, que, como se diz, obteve 97 dos 111 votos no oitavo escrutinio. Tal eleicáo causou enorme surpresa e suscitou prognósticos:

"Moscou viu de ¡mediato um inimigo em Joáo Paulo II" (Jerzy Turowicz).

"Os russos teríam preferido ver Soljenitsine tornarse Secretario Geral da ONU a ver um polaco tornarse Papa" (jornalista Alberto Roncal, em La Stampa de 17/10/78).

'Tratase de um terremoto psicológico para todo o Leste" (Cardeal Franz Kónig, Arcebispo de Viena). cf. p. 9. Lecomte afasta a hipótese de que Joáo Paulo I ten ha sido assassinado (cf. pp. 31 s). 2. O Plano do Papa

Desde o inicio do seu pontificado, Joáo Paulo II teve em mira obter a liberdade civil e religiosa para os povos dominados pelo comunismo. Era sua consciéncia de Pastor, arauto da Boa-Nova, que o impelía a trabalhar arduamente neste sentido. Essa sua visáo pastoral era corrobora da pela certeza de que a Europa contemporánea é crista em suas origens, mas se via, em parte, ocupada por um regime ateu.

«Joáo Paulo II nao deixará de lembrarnos seus discursos e hornillas que a Europa precisa dos seus 'dois pulmoes' espirituais, o ocidental e o

oriental, para respirar normalmente e os eslavos constituem urna síntese dos dois porque foram evangelizados tanto pelo Ocidente como pelo Leste. A 3 de junho de 1979, em Gniezno, afirma: 'Cristo nao quer, o Espirito Santo nao dispoe que esse papa polaco, esse papa eslavo, manifesté precisamente agora a unidade espiritual da Europa crista [...] devedora das duas grandes tradigóes do Ocidente e do Leste?' A 2 de junho de 1985, por urna encíclica apropriada, Slavorum Apóstol!, publicada por ocasiáo do décimo primeiro centenario da evangelizagáo dos eslavos pelos monges Cirilo e Metódio, Joáo Paulo II lembra que Roma, 'centro visível

da unidade da Igreja', continua a ser um recurso possível para todos os cristáos do Leste...

Por outro lado, o corte da Europa, neste final do sáculo XX, é sobretudo a fronteira entre dois blocos de Estados hostis, nascida do acordo de ¡alta, em 1945. Urna ferida viva, um rasgáo insuportável - mas que '

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"O PAPA QUE VENCEU O COMUNISMO"

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nada prova que seja eterna - em Gniezno (1979), em París (1980), em Compostela (1982), em Viena (1983), o papa nao parará de denunciara divisáo da Europa e de condenar o muro de Berlim» (p. 197). A idéia da Casa Comum Européia é de origem soviética; fez a for tuna política de Gorbatchov, mas é bem anterior a ele. - Em 1960, o antigo presidente (democrata-cristáo) da Cámara de Florenca, Giorgio La Pira, dissera a Kruchtchov: "Nao haverá verdadeira Casa Comum para o homem da Europa se nao houver também, na vossa cidade, urna casa para Deus".

3. Confisco do Sentido

B. Lecomte registra o clima de falsidade criado pelos regimes co munistas nos países por eles dominados: a dialética marxista e a desinformacáo imperavam.

Ao povo era sonegado o conhecimento da verdade:

«O monopolio do partido sobre a verdade é o confisco do sentido. Desde sempre, a propaganda comunista virou do avesso as palavras do seu adversario ideológico para assentaros seuspróprios dogmas. Também essas palavras váo ter, em breve, urna dupla acepgáo: 'demo cracia'e democracia socialista, 'moral' e moral socialista, etc. Na maioria

das vezes, a nova acepgáo de urna palavra é a inversa da sua acepgáo 'burguesa', que é o sentido comum...

Um cúmulo: a palavra verdade, em russo, serviu de título para o jornal mais mentiroso da historia dos homens, a Pravda...

Foi assim que, pouco a pouco, o comunismo raptou o próprio sen tido das palavras e constituiu aquilo a que George Orwell, em 1945, cha mara novlfngua. Este desdobramento do verbo vai provocar, de Berlim a Vladivostoque, a maior esquizofrenia da historia da humanidade, cujos aspectos quotidianos o escritor Dmitri Savitsky descreveu em Os Ho mens Duplos e cujos danos o filósofo Alexandre Zinoviev nao parou de denunciar ao longo dos seus livros. Setenta anos após o golpe de Estado bolchevique de Outubro de

1917 (chamado, em linguagem socialista, a grande revolugáo de Outu bro), as sociedades do Leste perderam pura e simplesmente o sentido das palavras (vazias), dos números (falsos), dos mapas (falseados), das datas (esquecidas), de todas as marcas semánticas que constituem urna sociedade civilizada. Já nao há informagóes, estatísticas, arquivos possíveis! E, conseqüentemente, acabaram a identidade nacional, o projeto comum, a responsabilidade social, a comunicagáo, a consciéncia coletiva. 253

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

Como poderemos espantar-nos com o lato de, com o correr dos anos, essas sociedades terem sentido, cada vez mais vivamente, urna

formidável necessidade de sentido? 'Após varias décadas deste sistema, observa o historiador Jacques Rupnik, vemos manifestarse urna sede generalizada de verdade - verdade tanto em relagáo ao presente como em relagáo ao passado, verdade na linguagem. A humilhagáo de urna nagáo, sublinha Rupnik, iniciase quando se pede a um checo ou a um

húngaro que quaiifique a ocupagáo militar do seu país como assisténcia fraterna'.

Como poderemos espantar-nos por a primeira forma de oposigáo ao regime ter sido o samizdat?1 E o seu principal inimigo as radios ocidentais?» (pp. 174-176). 4. A Resistencia ao Comunismo

Muito significativa é a observacio de Lecomte referente á resisten cia que as populacóes opuseram ao comunismo. Os traeos coligidos pelo autor dao a ver que as regioes católicas foram as que mais destemidamente enfrentaram o regime ateu:

«Em 1990, quando todos os países da Europa central realizaram, pela primeira vez, eleigóes livres, era fácil fazer o seguinte balango: - os comunistas foram cilindrados na Polonia, Hungría, Eslováquia, Eslovénia, Croacia, térras católicas; - conservaram um forte impacto na Alemanha Oriental e na Boémia, térras protestantes;

- conservaram a maioría na Roménia, Bulgaria, Servia, térras orto doxas;

- dominaráo, mais tarde, o primeiro escrutinio legislativo na Albania, térra mugulmana.

A observagáo toca as ratas da caricatura. Depois, os outros escru tinios dependeráo das evolugóes políticas internas de cada Estado e nao

seráo sempre táo nítidos. Mas estes primeiros resultados eleitorais, como urna fotografía tirada ao sair da ditadura comunista, nao se devem ao acaso. Na Europa central, a contestagáo antimarxista e antitotalitána foi sempre mais forte na Polonia, na Hungría, na Eslováquia, países quase exclusivamente católicos. De igual modo, na URSS, as duas regioes que nunca suportaram a férula de Moscovo, após a guerra, foram a Lituánia e a Ucrania ocidental, os dois bastióes do catolicismo soviético. 1 Samizdat era a rede de comunicagóes clandestinas existente sob os regimes co munistas (Nota do Redator). 254

"O PAPA QUE VENCEU O COMUNISMO"

115

Últimos exemplos: na Albania mugulmana e atéia, foi na regiáo de Shkodra, crisol do catolicismo local - antes da guerra existia lá o maior colegio jesuíta dos Baleas -, que comegou a ouvir-se tremer o regime ñas suas bases, em meados de Janeiro de 1990. Finalmente, quando o mosaico jugoslavo se desagrega, em junho de 1991, é em virtude da democratizagáo acelerada das duas repúblicas católicas, a Eslovénia e a Croacia, ansiosas por abandonarem urna federagáo aínda dominada pe los comunistas...

O mapa da contestagáo no Leste recortou sempre, com urna precisáo perturbadora, o das diferentes confissóes. Segundo as tradigóes re ligiosas dominantes, as sociedades leste-européias opuseram urna re

sistencia maior ou menor ao poder comunista. É patente que os países

satélites da URSS nao digeriram o regime comunista da mesma forma e é nos países de tradigáo católica - sem que a dimensáo religiosa esteja

necessariamente presente - que o PC soviético conheceu as suas maiores preocupagóes: insurreigáo de Budapeste (1956), Primavera de Pra ga, com forte influencia eslovaca (1968), motins operarios na Polonia (1970 e 1980).

Mesmo no caso da Alemanha Oriental, país protestante, os investi gadores observaram que, antes da construgáo do «muro da vergonha», em 1961, a percentagem de católicos entre os fugitivos (15%) era bem superior á sua proporgáo na populagáo da Alemanha Oriental (7%)...

Esta conclusáo nao é urna novidade. Já no inicio do sécuio, Max Weber verificava que as tres grandes tradigóes do cristianismo nao produzem o mesmo comportamento social, enquanto Arnold Toynbee pen-

sava que as verdadeiras fronteiras entre civilizagóes eram as das religióes. No que a isto respeita, a principal ruptura civilizacional, na Europa, continua a ser aqueia que dividiu, no sécuio XI, os cristáos do Oriente e do Ocidente» (pp. 91 s).

Ao falar das tres tradicoes do Cristianismo, o autor se refere a cató licos, ortodoxos orientáis e protestantes. A ruptura do sáculo XI (1054) deu-se quando o Patriarca Miguel Cerulário, de Constantinopia, rompeu a comunháo com os cristáos ocidentais.

Em suma, o livro é assaz elucidativo e, além do mais, respeitoso dos valores cristáos.

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Feliz desfecho de tragedia:

O CASO "TISSA BALASURIYA"

Em síntese: O Pe. Tissa Balasuriya, teólogo sri-lankés, publicou o livro "Mary and Human Liberation", que procura adaptar o Cristianismo ao pensamento asiático. Chegou a negar dois dogmas importantes, como

a imutabilidade do conteúdo daféeo pecado original, com as suas seqüelas. Após anos de conversa com os seus Superiores religiosos e a Santa Sé, mostrou-se irredutível, pelo que incorreu em excomunháo aos 2/1/97. Todavía o teólogo, tendo ressentido dolorosamente a censura canónica, houve por bem subscrever a Profissáo de Fé elaborada por Paulo VI-o que Ihe valeua suspensáo da excomunháo aos 15/2/98. *

*

*

No Sri-Lanka (antiga ilha de Ceiláo, Asia), deu-se nos últimos anos um caso rumoroso, que tinha por epicentro o Pe. Tissa Balasuriya, teólo

go católico do país, que chegou a ser excomungado por suas doutrinas heréticas, mas se retratou e foi absolvido da censura em Janeiro pp. As páginas seguintes proporáo as etapas dessa singular historia. 1. Os sucessivos passos da historia

O Pe. Balasuriya nasceu em 1924 no Ceiláo. Entrou na Congregacáo dos Missionários Oblatos de María Imaculada, na qual dedicou sua vida á Igreja, á sua Congregacáo e aos muitos encargos que excerceu satisfatoriamente; preocupava-se com a inculturacáo, ou seja, com a expressao da mensagem crista em termos da cultura asiática ou, mais pre cisamente, indiana. Há cerca de alguns anos, publicou o livro "Mary and Human Liberation", fruto de sua tendencia a inculturar; tal obra foi muito além do legítimo, pois incidia em serios erros doutrinários que relativizavam os artigos da fé católica, no intuito de tornar mais fácil a adesáo dos asiáticos ao Catolicismo; dentre todas, sobressaiam duas graves heresias:

- a afirmacáo de que as palavras do Credo mudam sempre de sentido: portanto nem o que a Biblia ensina, nem o que Cristo disse, nem o que o Magisterio da Igreja propóe, tem valor doutrinário; sao meros

testemunhos da historia passada, aos quais os teólogos devem dar a nova e reta interpretacáo atualizada (com isto compreende-se que todo o Credo está esvaziado do seu clássico conteúdo); - nao houve pecado original; por conseguinte, neguem-se as seqüelas tradicionalmente atribuidas ao pecado original. 256

O CASO TISSA BALASURIYA"

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A obra, logo que publicada, suscitou intensa reacáo no próprio SriLanka; teólogos, sacerdotes e fiéis se insurgiram contra as posicoes de Balasuriya. Em conseqüéncia, a Conferencia dos Bispos do país assumiu a si o caso; mandou estudar a obra e a condenou, explicando que o fazia para o bem da verdade e para defender o povo de Deus. O Pe. Tissa, porém, nao reconheceu a sentenca. Em conseqüéncia, o Presi dente da Conferencia Episcopal entregou o caso á Congregacáo para a Doutrina da Fé. Esta analisou a obra e a qualificou como incompatível com a doutrina católica; mas nem desta vez o autor aceitou o veredicto. Seguiram-se entáo quatro anos de tratativas: urna comissáo de teólogos da Congregacáo do Pe. Tissa se empenhou no diálogo; o próprio Padre Superior Geral da Congregacáo foi até o Sri-Lanka, sem todavía conven

cer o confrade. Verdade é que o Pe. Tissa subscreveu a Profissáo de Fé de Paulo VI diante de testemunhas; mas este gesto foi tido como insufici entemente explícito; a Santa Sé enviou ao teólogo urna profissáo de fé que visava precisamente aos erros doutrinários do livro. Tissa recusou terminantemente assinar tal documento. Finalmente aos 7/12/1996 foi proposta ao Pe. Tissa a última oportunidade: ou assinaria a profissáo de fé que Ihe fora enviada ou seria excomungado. O teólogo repeliu a pro posta e por isto aos 2/1/97 a Congregacáo para a Doutrina da Fé lancou a excomunháo, tornada pública no dia 5 do mesmo mes. O Pe. Tissa sentiu a excomunháo, pois dedicara toda a sua vida ao servico da Igreja. A sua resistencia as advertencias dos Superiores en-

contrava apoio de sacerdotes da sua térra e de alguns europeus, especi almente da Alemanha, nao porque os europeus estivessem de acordó com as teses de Balasuriya, mas porque propugnavam a liberdade de expressáo dentro da Igreja. Os amigos do teólogo o convidaram para fazer conferencias na Alemanha, na Franca e na Italia; nao conseguiu o visto para entrar neste último país, mas falou nos dois primeiros nao tan

tas vezes quantos foram os convites, pois a idade e a tensáo nao Ihe permitiam atender a tudo. O seu livro foi traduzido para diversos idiomas e bem vendido.

Entrementes varios apelos foram dirigidos á Santa Sé, alguns mo vidos pelos motivos atrás expostos, outros por pura compaixao diante da melancolía do teólogo. Este passou a insistir num ponto a que já aludirá

nos quase quatro anos de debates: ele representava a Asia, pleiteava

um ecumenismo asiático, isto é, que levasse em conta o budismo e outras manifestacóes religiosas em vigor naquele continente. Com isto polarizou simpatías bairristas1.

' O caso lembra o de lan Huss, líder nacionalista theco, ocorrído no século XV. De fendía heresias com obstinagáo semelhante á de Tissa; mas era chefe nacionalista 257

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

Assim o Pe. Tissa conseguíu dar á sua atitude um aspecto de naci onalismo asiático. Em suas respostas á Santa Sé, apelava para o senti-

mento dos povos da Asia, profundamente imbuidos de budismo,

hinduísmo e outras crencas, para os quais procurava tornar aceitável o

Cristianismo; em vista disto, ele suprimía verdades reveladas e apresentava urna humanidade sem necessidade de Redencáo, urna Igreja nao fundada por Jesús Cristo; além do qué, afirmava que a Máe de Jesús provavelmente nao terá sido virgem perpetua nem terá gozado de algum privilegio, nem mesmo da Imaculada Conceicáo. Os toques do Pe. Tissa na alma asiática deram algum resultado. Após a sua excomunhio, varios Bispos e sacerdotes pediram á Santa Sé urna atitude menos severa nao para com os erros do teólogo, que

presumivelmente ninguém aceitava, mas para a pessoa de um sacerdo te idoso, traumatizado, que só teria exposto sua doutrina movido por zelo ecuménico, desejoso de aclimatar o Catolicismo a alma asiática e, por-

tanto, propagá-lo. Aos pedidos provenientes da Asia acrescentaram-se

solicitacóes da Europa e da América, todas insistindo na boa vontade e na reta intencáo do padre sri-lankés.

Após muitas e pacientes conversares, o Pe. Balasuriya aceitou subscrever a Profissáo de Fé de Paulo VI, que alias ele já assinara em 1996. Foi dispensado de abonar a profissáo de fé elaborada para o seu caso em particular. Alias, o Credo do Povo de Deus de Paulo VI é bem mais ampio e abrangente do que tal outra profissáo de fé; bem pode ser tido como a refutacáo dos erros de Balasuriya. Após assinar o Credo, o

Pe. Tissa formulou aínda algumas manifestacoes de ortodoxia, como se pode ver sob o título seguinte deste artigo. Tudo se deu no dia 15 de Janeiro de 1998, estando presentes o Sr. Nuncio Apostólico no Sri-Lanka Mons. Osvaldo Padilla, o Pe. Superior Geral da Congregacao dos Oblatos da sua patria, dominada pelo Imperio Alemao. Muitos de seus compatriotas o estimavam. A Igreja, porém, o reprovava, embora se conduzisse com flexibilidade ante os seus erros doutrinários.

Huss foi apenas copia do ensino pernicioso de Wiclef (t 1384), célebre heresiarca, professor de Oxford. Este era de grande inteligencia, cujas idéias influenciaram mais tarde Martinho Lutero. A novidade em Huss é que soube unir a políti ca a sua agáo. Surgiu como herói nacionalista, até hoje muito considerado. A Boémia, sua térra, tinha no momento urna situacño nada desejável. Os altos cargos estavam em máos de alemáes, detestados pelos thecos, havia grandes e pequeñas

instituigóes infladas de funcionarios; só a catedral de Praga dispunha de 300 funcio narios. Huss, que, de sua máo, copiou inteiras obras de Wiclef, apresentou-se como reformista e seguidor dos erros de seu predecessor intelectual. Era dotado de incrível obstinagao e tinha certeza de que, em contato pessoal com seusjuízes, haveria de os convencer. O Concilio de Constanca tudo fez para que o fanático doutrinador

abjurasse seus erros, mas em váo. Foi condenado em 1415. 258

O CASO TISSA BALASURIYA"

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Pe. Marcello Zago, o Bispo de Kandy e presidente da Conferencia Epis copal do país, Mons. Vianney Fernando, o Arcebispo de Colombo Mons. Nicholas Marcus Fernando, o Superior local dos Oblatos Pe. Bernard Quintus, quatro sacerdotes Oblatos de María Imaculada e alguns mem bros do "Centro para a Sociedade e a Religiáo", fundado pelo Pe. Tissa. Segue-se o documentário respectivo. 2. Os Documentos

PROFISSÁO DE FÉ "Eu Tissa Balasuriya, fHho da Asia e teólogo cristáo, proclamo a minha fé mediante o Credo do Povo de Deus

Eu, Padre Tissa Balasuriya O.M.I., declaro que o grande empenho de toda a minha vida sempre foi procurar ser um auténtico discípulo de Jesús Cristo, servir á Igreja e trabalhar em favor da libertacáo humana integral e urna sociedade mais justa. Em vista disto, procurei cultivar a

Teología na perspectiva de urna inculturacáo da fé na Asia.

O meu lívro 'Mary and Human Liberation (María e a Libertacao Hu mana)' foí concebido a partir dessa perspectiva. Após longa e fraterna

conversa com o Superior Geral e alguns membros do Conselho Geral da minha Congregacáo, os Missíonários Oblatos de Maria Imaculada, tomo consciéncia de que nos meus escritos se encontram serias ambigüida-

des e erros doutrinários; estes provocaram reacoes negativas, ameaca-

ram nossos relacionamentos e levaram a urna infeliz polarizacáo da co munidade eclesial. Lamento sinceramente os danos que isso acarretou. Toda a questáo foi para mim muito dolorosa. Causou pena a comunidade crista e a muitas outras pessoas que foram direta ou indiretamente envol vidas no caso.

Na presenca do Arcebispo de Colombo e do Nuncio Apostólico, professei publicamente a minha fé segundo o Credo do Povo de Deus redigido pelo Papa Paulo VI, pois se trata de urna expressáo global da fé católica que posso espontáneamente assumir. Estou consciente do fato de que o vocabulario dessa profissáo de fé difere, em alguns aspectos, da terminología do texto que me foi preparado pela Congregacáo para a Doutrina da Fé. Todavía reconheco que os dois documentos exprimem a mesma fé da Igreja. Em particular, eu professo com a Igreja - que o significado das fórmulas dogmáticas fica sendo sempre

verídico e imutável, embora passível de ser expresso em termos mais claros e de lograr melhor compreensáo;

- que a revelacáo de Jesús Cristo é sobrenatural e única no seu 259

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

género;

- que as Escrituras Sagradas do Antigo e do Novo Testamento sao a Palavra de Deus; - que Jesús Cristo é o Filho de Deus e Salvador de todos os homens;

- que Jesús Cristo é o fundador da Igreja, a qual é sinal e sacra mento de salvacáo para o mundo inteiro;

- além disto, professo o dogma do pecado original como é ensinado pelo Concilio de Trento (DS 1510-1516), e um só Batismo para a remissáo dos pecados;

- creio e venero María, a sua Maternidade Divina, a sua Imaculada Conceicáo, a sua virgindade, como também a Assuncáo de seu corpo aos céus;

- aceito o magisterio do Pontífice Romano e do colegio episcopal unido ao Papa;

- tenho em grande consideracao a minha comunháo com a Igreja e os seus pastores;

- reconheco o direito e o dever, dos Bispos, de exercer a sua solicitude pastoral, de conduzir a comunidade católica pelo caminho da verdadeira fé e de tomar atitudes de avaliacao e direcáo frente a escritos

teológicos, embora eu tenha esperado um diálogo mais aberto para urna análise objetiva do meu livro;

- reconheco que a Congregacáo para a Doutrina da Fé interveio segundo as suas normas e estou consciente de que muitas cartas foram

enviadas e recebidas mediante o meu Superior ¿eral, embora eu tenha esperado um diálogo mais direto e pessoal.

Espero e peco a Deus que, com o tempo, haja urna auténtica colaboracáo e que sejamos capazes de construir urna Igreja que 'cresca em maturidade e deseje a consumacáo do Reino' (cf. Lumen Gentium 5)".

A REVOGACÁO DA EXCOMUNHÁO "Eu, Bispo Marcus Fernando, declaro a excomunháo revogada Eu, Nicholas Marcus Fernando, Arcebispo de Colombo, na presen$a de S. Excia. Mons. Osvaldo Padilla, Nuncio Apostólico no Sri Lanka, e de Mons. Vianney Fernando, Bispo de Kandy e Presidente da Conferen cia dos Bispos Católicos do Sri Lanka, hoje, 15 de Janeiro de 1998, na cápela da minha residencia, recebi a profissáo de fé do Pe. Tissa 260

O CASO "TISSA BALASURIYA"

Balasuriya O.M.I. Valeu-se da Profissáo de Fé do Papa Paulo VI em vez da fórmula que Ihe foi preparada pela Congregacáo para a doutrina da Fé, sustentando que ambas exprimem a mesma fé da Igreja. Na mesma ocasiáo o Pe. Balasuriya apresentou-me urna Declaracáo de Reconciliacáo datada e assinada por ele. Esta Declaracáo será publicada na imprensa católica nacional. Em tal documento o Padre la menta os danos causados pelo seu livro 'Mary and Human Liberation' e pelos acontecimentos subseqüentes. Também afirmou a sua fé católica e reconheceu a autoridade do Magisterio exercido tanto em nivel local quanto em ámbito universal com relacáo aos seus escritos.

No tocante ao futuro, o Padre Balasuriya diz concordar em submeteros seus escritos sobre Fé e Moral ao Imprimatur dos seus Superiores diocesanos e religiosos. Também prometeu abster-se de qualquer decla racáo que esteja em contradicáo com esta reconciliacáo. Dado que se cumpriram todas as condicóes indicadas pela Con gregacáo para a Doutrina da Fé, eu, valendo-me da autorizacáo da men cionada Congregacáo, declaro, pelo presente, revogada a excomunháo na qual o Pe. Tissa Balasuriya incorreu segundo a Notificacáo dessa mesma Congregacáo expedida em Roma aos 2 de Janeiro de 1997. Em vista da restauracáo da comunháo com a Igreja, alegramo-nos

no Senhor e ao nosso irmáo Tissa Balasuriya desejamos um ministerio fecundo a servico do povo de Deus". 3. Refletindo...

Urna excomunháo é sempre penosa nao só para quem a padece, mas também para quem a inflige. É sempre urna censura de caráter ex tremo, cuja freqüéncia alias tem dimunuído na Igreja.

No caso do Pe. Balasuriya estava em jogo a verdade da fé, verda-

de que nao admite relativismo, pois é revelada por Deus. Á Igreja foram

confiadas a guarda e a transmissáo desse depósito sagrado. Já Sao Paulo fazia absoluta questáo de o defender contra qualquer deterioracáo, como se depreende, por exemplo, de 2Tm 4,1-5:

'"Eu te conjuro, diante de Deus e de Cristo Jesús, que há de vir julgar os vivos e os mortos, pela sua Aparigáo eporseu Reino:"prociama a palavra, insiste, no tempo oportuno e no inoportuno, refuta, ameaga,

exorta com toda paciencia e doutrina. 3Pois vira um tempo em que aiguns nao suportaráo a sá doutrina; pelo contrario, segundo os seus próprios desejos, como que sentindo comicháo nos ouvidos, se rodearáo de mestres. "Desviaráo os seus ouvidos da verdade, orientando-os para as fá bulas. sTu, porém, sé sobrio em tudo, suporta o sofrimento, faze o trabaIho de um evangelista, realiza plenamente o teu ministerio". 261

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998 Ou ainda em 1Tm 6,20s:

Timoteo, guarda o depósito, evita o palavreado váo e impío e as contradigóes de urna falsa ciencia, po'ts alguns, professando-a, se desviaram da fé".

Eis por que as autoridades da Igreja tanto se empenharam para que o Pe. Balasuriya reconhecesse seus erras e o daño causado ao povo de Deus; mais de quatro anos decorreram em pacientes conversacSes sem resultado, o que levou finalmente á sentenca de excomunháo. Esta só foi proferida porque todos os recursos de recuperacáo do teólogo foram esgotados.

O povo católico tem o direito de ver que sua fé é devidamente apre ciada e defendida, evitando-se a heresia, que Sao Paulo ciassifica como gangrena espiritual; cf. 2Tm 2,1 T. Até mesmo com sacrificio toca aos

Srs. Bispos o dever de zelar pela incolumidade da fé. É nesta perspectiva que se há de considerar a atitude do magisterio da Igreja frente aos des víos de Balasuriya. Este tem o direito de pensar e falar como queira, nao, porém, na qualidade de teólogo católico; enquanto pertence á Igreja, é coerente que ele se exprima dentro dos parámetros da fé católica. Um

teólogo católico que nao queira professar a doutrina da fé católica, já nao é católico; deixe o título de católico e diga o que pensa; saiba, porém, que prestará contas a Deus de qualquer atitude leviana ou escandalosa!

NATURIVIDA Naturivida ou Centro Holístico de Tratamento é urna sociedade que oferece terapias para os males físicos e psíquicos da pessoa humana, supondo-a integrada por quatro componentes: Térra, Agua, Ar e Fogo; donde a Geoterapia, a Hidroterapia, a Eoloterapia e a Helioterapía. O homem é encarado como a continuidade da Natureza. Em conseqüéncia, "distinguem-se quatro biotipos, de acordó com urna teoría coreana, ramo da Ciencia Chinesa. A partir de urna avaliacáo-diagnóstico, que utiliza a Radiestesia, a Pulsologia, a Indoiogía, o Oring-test e a Fisiognomía, conhece-se o biotipo. Em seguida, faz-se a selecao dos alimentos que atendem as necessídades do mesmo, segundo urna classificacáo energética (Ying-Yang) feita, há séculos, pelos orientáis". Estes dados sao extraídos de um prospecto de propaganda da Naturivída. Como se vé, está impregnada de pensamento oriental. Pode-se perguntar: em que sentido, á luz da ciencia moderna, se consegue sustentar que o homem se compóe de térra, agua, ar e fogo...? ' "A palavra deles é como urna gangrena que corroí". 262

Proselitismo ferrenho:

QUEM SAO OS MÓRMONS? Em síntese: Os Mórmons, também ditos "Igreja dos Santos do Úl

timo Dia", foram fundados por Joseph Smith em 1830, na base de

pretensas revelacóes que deram inicio a um pseudocristianismo com a

sua nova "Biblia", que é o Livro de Mórmon. Tornaram-se famosos pela prática da poligamia no Estado norte-americano de Utah, prática que fi nalmente foiproibida pela legislacáo dos Estados Unidos. Segundo eles, Deus é corpóreo, e é preciso fazer o possível para batizar todos os homens, a tal ponto que os próprios defuntos sao batizados "por procura-

gao". A Ceta do Senhor é celebrada com agua, e nao com vinho. A "Igre ja" é fortemente proselitista e controla rigorosamente a vida dos seus membros mediante urna hierarquia distribuida por diversos graus de autoridade. Joseph Smith levou urna vida muito acidentada e controvertida, acabando por morrer assassinado em prisáo. A sua obra traz forte cunho de nacionalismo norte-americano. *

*

*

O Pe. Egionor Cunha, residente nos Estados Unidos, tem-se dedi cado ao estudo dos movimentos religiosos que invadem o Ocidente. Como fruto de seus trabalhos, enviou á redacáo de PR interessante e docu mentado artigo sobre os Mórmons, que publicamos a seguir, agradecendo ao autor a valiosa colaboracáo.

INTRODUCÁO Os Mórmons nao aceitam ser chamados protestantes porque, se

gundo eles, os adeptos, seu fundador nunca pertenceu a alguma seita protestante e muito menos a alguma sociedade ou denominacáo religiosa.

A verdade é que os Mórmons devem sua origem aos principios da chamada "liberdade religiosa" apregoados pela Reforma encabecada por Lutero. Levando tais principios de liberdade religiosa aos extremos, os Mórmons nao só apelam para um Deus que Ihes fala no íntimo dos cora-

cóes para interpretar a Biblia, como também fabricaram todo um conjun to de novas revelacóes absolutamente alheias e ofensivas á própria Sa grada Escritura e á sá Tradicáo do Cristianismo.

Popularmente conhecidos, os Mórmons sao identificados como um

grupo peculiar, o qual, durante certo período de tempo, praticava, a poliga

mia; embora ainda existam como faccáo sectaria, os Mórmons nao gozam

da mesma credibilidade entre as seitas pseudo-cristás dos Estados Unidos. 263

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A Igreja dos Santos do Último Dia, da qual o termo "Mórmons" é

apenas um apelido, tornou-se urna das mais difundidas seitas dos Esta

dos Unidos. Alegando ser a poligamia algo instituido por Deus, os Mórmons tém criado conflitos e provocado ¡números debates a nivel na cional, sobretudo nos bastidores do Congresso Americano; seu crescimento foi algo fenomenal, ultrapassando um milháo de adeptos entre os anos de 1890 e 1950; isto, sem se falar do seu proselitismo missionário em muitos lugares do mundo. Tudo isto sugere um certo tipo de influencia dos

Mórmons na sociedade em que vivemos, mesmo quando seu sistema de doutrina religiosa parece ser táo excepcional quanto incompreensível.

DADOS HISTÓRICOS O fundador dos Mórmons foi Joseph Smith, filho de um agricultor, nascido em Sharon, Vermont, aos 23 de Dezembro de 1805. Anos depois, sua familia mudou-se para Lebanon, New Hampshire, em 1811; em 1815 para Palmyra, New York, e, quatro anos depois, foram viver na pequena cidade de Manchester, distrito de Ontario, New York.

A familia Smith era praticamente muito conhecida pelos seus con temporáneos. Interrogadas pela imprensa, cerca de 62 pessoas deram seu parecer sobre o estranho comportamento e influencia da familia Smith

na comunidade de Palmyra, New York. Eis o testemunho dos entrevistados:

'Tendo conhecido membros da familia Smith por muitos anos... Bes eram particularmente famosos em projetos visionarios; passavam a maiorparte do tempo a procura de dinheiro, o qual diziam que se encontrava enterrado... Joseph Smith e seu filho Joseph sobretudo eram considera dos totalmente destituidos de valores moráis e dados a hábitos supervergonhosos e perversos."

Antes que Smith Jr. fosse favorecido com "revelacóes" pelas quais

mais tarde se tornou famoso, ele desenvolveu o hábito da contemplacáocristalina, usando urna pedra opaca para descobrir localidades de propriedades roubadas e tesouros escondidos em troca de grandes quantias de dinheiro.

A primeira dentre as ¡numeras "mensagens divinas" reveladas a Joseph Smith supóe-se que tenha ocorrido em Manchester (vizinha a Palmyra) em 1820. Ele encontrava-se orando á busca de urna luz que o fizesse reconhecer a verdadeira Igreja entre os Batistas, Metodistas e Presbiterianos. Días depois, ele escreve: "Vi dois personagens cujo briIho e gloria é impossível descrever, pairando sobre mim no ar. Um deles

falou comigo, chamando-me pelo nome e disse, apontando para o outro: 'Este é o meu Filho amado, escutai-o1". Em seguida, "eu pedí aos perso

nagens que pairavam sobre mim em plena luz, que me indicassem, den tre as seitas, aquela que fosse verdadeira, a fim de que eu pudesse par264

QUEM SAO OS MÓRMONS?

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ticipar. A resposta que "Uve foi que nao participasse de nenhuma délas, porque eram todas falsas".

Tres anos mais tarde, aconteceu urna outra "revelacáo" considera da como "comeco celestial" da fé dos Mórmons. Enquanto se encontrava

em oracáo na noite de 21 de Setembro de 1823, um personagem vestido de branco apareceu a Smith, dizendo-lhe que tinha sido enviado por Deus e que seu nome era Moroni. O mensageiro disse a Smith que seu nome "seria para o bem e para o mal entre as nacóes", explicando-lhe em se

guida o que deveria ser feito para o estabelecimento de urna nova religiáo. Eis como descreve Smith a mensagem recebida:

"O mensageiro disse-me que havia um livro depositado nalgum lu

gar, escrito em placas de ouro, contendo informagóes de ex-habitantes deste continente e raizes de suas origens. Ele, o mensageiro, disse também que nestas placas de ouro o cumprimento do Evangelho eterno se encontrava revelado tal qual havia sido proclamado pelo Salvador aos

habitantes da antigüidade; que também existiam duas pedras em forma de arco prateado - pedras ligadas a placa de peito, as quais constituiam o que se chama Urim e Thummim - enterradas; ainda segundo o mensa geiro, a posse e o uso destas pedras seriam a descoberta do que constituía e identificava os 'profetas' da antigüidade, os quais Deus havia prepara do para que traduzissem o livro sagrado, a Biblia".

Segundo a propaganda da seita, depois de tres revelacóes, Smith finalmente foi ao lugar designado por Moroni (Hill Cumorah); encontrou o

Urim e Thummim e a placa de peito. A placa trazia um texto em estranho idioma, que, com a ajuda do Urim e Thummim, ele foi capaz de traduzir para o inglés. Mais tarde, Smith dizia que um perito em línguas chamado Anthon Ihe tinha assegurado que os idiomas desconhecidos eram o egip cio, o caldeu e o aramaico. Ao informar-se do depoimento de Smith, Anthon ¡mediatamente reagiu, negando as afirmacóes gratuitas deste sobre os idiomas desconhecidos.

Dadas as revelacóes que aos poucos foram sendo feitas, acredita se que, nem mesmo a título de imaginacáo, Smith tenha sido capaz de produzir o que hoje se conhece como Biblia dos Mórmons, fabricada com base ñas revelacoes de Moroni. O que se sabe é que ele, Smith, foi auxi liado por um membro da seita Batista, Sidney Rigdon, o qual desejava fundar urna nova religiáo em oposicáo a Alexander Campbell, cujo sucesso na fundacáo de sua seita "Discípulos de Cristo" ele invejava.

Embora tenha recebido auxilio de Rigdon, descarta-se toda e qualquer possibilidade de que tenha sido Rigdon o fundador ou mesmo aque-

le que tenha dado a idéia para a existencia da seita dos Mórmons, como

Ihe foi atribuido varias vezes por Smith. De outro lado, tampouco se pode 235

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aceitar que as idéias de Smith sejam algo de sua própria autoria, como se tudo tivesse partido dele. Nada disso! Smith, quando fundou sua seita, adotou parte histórica de um manuscrito que se encontrava á sua disposicáo, publicado por Solomon Spaulding, ministro arqueologista de Conneaut, Ohio.

Um tanto perdido em toda esta controversia, Smith finalmente negou que tivesse recebido assisténcia de Rigdon ou de Spaulding, porém

admitiu que pelo menos algumas pessoas junto a ele viram as placas de ouro que continham a mensagem eterna. Com o passar do tempo, tres

das principáis testemunhas deixaram a seita e acabaram desmentindo as declaracoes que tinham feito antes a favor de Smith; outros procederam de modo a neutralizar a credibilidade dos fatos. Á proporcáo que se váo desvendando os acontecimentos em torno dessas placas, descobrese que as "placas de ouro" que dizia Smith conterem a mensagem eterna,

foram adquiridas por um ferreiro e alguns amigos de Smith, cortadas de alguns pedacos de cobre, delineadas cautelosamente com ácido nítrico, cobertas com urna mistura de substancias, a fim de que se criasse a ilusao de ferrugem, e assim, fossem consideradas como algo da antigüidade. Tudo o que vem depois desta fantástica camuflagem da "deseoberta" das placas de ouro, que passou a fazer parte integrante da historia da seita dos Mórmons, nao passa de simples seqüéncias de novas revelacóes proclamadas por Smith com o intuito de recuperar a credibilidade de suas infelizes fantasías. Mesmo depois de desmascarado por muitos dos seus adeptos, Smith nao se deu por vencido. Ao sentirem-se traídos pelo seu profeta Smith, os adeptos da seita, aos 6 de Abril de 1830, em Fayette, New York, procuravam garantir sua sobrevivencia, organizándo se como instituicáo religiosa sob o título "Igreja de Jesús Cristo dos San tos do Último Dia".

Embora desacreditado e um tanto ¡solado pela maioria dos seus adeptos, Smith, mesmo assim, nao deixou de acompanhá-los de longe, com esperancas de um retorno. Nesta mesma ocasiáo, dado o surgimento

de novas controversias em torno das doutrinas dos Mórmons, Smith aproveitou-se das circunstancias polémicas e apresentou-se ao grupo, dizendo ter recebido nova revelacáo, na qual Ihe foi dada a certeza de que Kirtland, Ohio, seria o novo Zion, ou seja, a Nova Jerusalém, onde Cristo haveria de reinar depois do seu retorno ao mundo. Com o passar do tempo, mais discussoes foram levantadas sobre insignificantes escritos que Smith tinha publicado no passado.

Como sempre, com o intuito de acalmar a situacáo, Smith apelou mais urna vez para outra revelacáo, na qual teria sido convidado, junto com Rigdon, a deixar Kirtland e fundar a Nova Jerusalém ou o Novo Zion no distrito de Jackson, Missouri. Tudo isto aconteceu entre 1831 e 1837. 266

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Depois de se encontrarem em Jackson por dois anos, os habitan tes de Missouri declararam guerra á "Igreja de Jesús Cristo dos Santos do Último Dia"; esta entáo decidiu deixar o local, sob pretexto de que Deus se havia revelado a eles, Mórmons, enquanto "Igreja", para pedir a Smith que deslocasse o seu povo para o Estado de Illinois ás margens do Mississipi. Ali instalaram-se na cidade de Nauvoo, a qual diziam eles pertencer aos judeus devido "á beleza do lugar".

A prática da poligamia dentro da seita levou os Mórmons ao des-

moronamento: abriu-se um cisma dentro da própria hierarquia da seita; e criou-se um verdadeiro exército dos que nao simpatizavam com essa filosofía de vida, alimentada e difundida pela seita. Os protestos contra os Mórmons foram engrossando de tal maneira que muitos dos seus ad versarios se encontravam decididos a exterminar tanto o "profeta" quan-

to "os fanáticos dos seus seguidores...", caso estes nao se rendessem ás autoridades locáis. Como resultado, Smith, fundador da seita, e seu irmáo Hyrum, foram presos em Cairo até que fossem julgados e sentenci ados segundo a lei.

Neste meio-tempo, enquanto aguardavam o julgamento, um grupo

de nao simpatizantes da seita, insatisfeito com a situacáo, invadiu a prisao e aos 27 de Junho de 1844 assassinaram a tiros os dois irmáos. Depois da morte de Smith, os Mórmons praticamente dividiram-se de tal forma em diversas faccóes que acabaram distanciando-se de suas próprias origens. Com a morte de Smith, a maiorfaccáo da seita, conhecida até os nossos dias como "Igreja de Jesús Cristo dos Santos do Ultimo Dia", ficou aos cuidados de Brigham Young. Este, por sua vez, deslocou

a seita para Utah onde se estabeleceu em Salt Lake City em 1847. Por

cerca de 30 anos de compromisso contra o despotismo, Young já em 1855 contava com grande número de adeptos ñas comunidades dos Mórmons de Utah e Idaho; cerca de 51.622 adeptos tinham sido envia dos em missáo com todas as despesas pagas, por um período de dois anos, a sen/ico exclusivo da seita. Há quem diga que os Mórmons em nossos dias contam com mais de 9.000 pessoas espalhadas entre Esta dos Unidos e outros países a servico exclusivo da difusáo da própria seita. Nos Estados Unidos, no Estado de Utah os Mórmons, sob o coman do de Brigham Young, contavam com cerca de sete escolas com maior porcentagem de estudantes a nivel colegial do que qualquer outro Esta do; mais de cem armazéns foram construidos pela seita para a manutencáo dos seus membros em termos de roupas, calcados, alimentos etc.

Com o passar do tempo, um pequeño grupo de Mórmons comecou a protestar contra Brigham Young, alegando que o título de líder nao com petía a ele, mas única e exclusivamente ao filho de Joseph Smith. Como resultado de toda esta polémica, o grupo conseguiu derrubar a lideranca

de Young, sob alegacáo de que este havia alterado a doutrina da Igreja 267

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ao condenar a prática da poligamia. Desta vez, a Reorganizada Igreja de Jesús Cristo dos Santos do Ultimo Día, que já gozava de certa indepen dencia e se encontrava estabelecida em Missouri, passou a ser governada por Joseph Smith III. Durante o seu governo, a seita aguardava a "reuniáo de Zion", que estava para acontecer antes da segunda Vinda de Cristo em Missouri. Nessa época, a seita já contava com cerca de 200.000 adeptos, com missóes na Australia, na Nova Zelandia e no Hawai. Mesmo durante o governo de Joseph Smith III, os Mórmons continuavam divididos. Em protesto á sua lideranca, outras faccoes dos

Mórmons com mais de 6.000 membros ao todo, organizaram-se para derrubar o novo líder. Depois disto, quem estudar a historia dos Mórmons, verá que tanto Brigham quanto o filho de Joseph Smith se tornaram figu ras insignificantes na expansáo da seita.

DOUTRINA E RITUALISMO DOS MÓRMONS Tres sao as fontes que os Mórmons utilizam para o seu ensino e suas práticas: O Livro de Mórmon, descoberto por Joseph Smith; a Pérola de Grande Prego, livro que exibe a "traducáo" da Biblia feita por Smith, contendo o livro de Moisés e o livro de Abraao; e a Doutrina da Alianca, que apresenta todas as revelacoes privadas de Joseph Smith.

Eis o que reza o artigo 8 do Credo dos Mórmons sobre a Biblia: "Nos acreditamos que a Biblia seja a Palavra de Deus, desde que esta tenha sido traduzida corretamente; nos também acreditamos ser o

Livro de Mórmon a Palavra de Deus".

Assim como a Biblia Sagrada que temos, a Biblia dos Mórmons também encontra-se dividida em capítulos e versículos. Á diferenca da Biblia que possuímos, a chamada Biblia dos Mórmons contém os seguintes livros, desconhecidos á historia do Cristianismo: 4 livros de Nephi,

dois de Mórmon, um de Jó, Enós, Jarom, Omni, Mosiah, Alma, Helamani

Ether e Moroni respectivamente. Ñas edicoes mais recentes o total de páginas da "Biblia" fabricada pelos Mórmons seria aproximadamente de 522 páginas com 200 capítulos divididos em versículos, a fim de que possa ser citada á semelhanca da Biblia dos cristáos. Exemplo: 2 Nephi 31,17.

O Livro de Mórmon consiste praticamente em relatos de fatos his tóricos entre duas nacoes - Jaredites e Nephites - ocorridos entre 600 a.C. e 421 d.C. Segundo os Mórmons, os Jaredites vieram para os Esta dos Unidos depois da confusáo das línguas em Babel; os Nephites migraram de Jerusalém para os Estados Unidos, mas, apesar de varias

tentativas de sobrevivencia, foram desaparecendo aos poucos.

Talvez o conteúdo mais importante do Livro de Mórmon seja a conviccao de que, depois de sua Ascensáo, Cristo estabeleceu pessoalmen268

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te urna Igreja nova entre os Nephites nos Estados Unidos; com a extincáo

dos Nephites, um grupo de fiéis surgiría como "os Santos do Último Dia",

dotados dos dons da revelacáo, da profecía, e assim inaugurariam urna era de prosperidade jamáis vista entre todas as nacóes. Por detrás desta missáo dos "Santos", que tanto a seita faz questáo de sublinhar, encontra-se a certeza de que Deus nao teve intencáo de estabelecer sua ver-

dadeira Igreja na Palestina nos tempos de Cristo, mas sim nos Estados

Unidos. Segundo o parecer da seita, todos os acontecimentos que pre-

cederam a fundacáo da verdadeira Igreja de Deus nos Estados Unidos, como

a Reforma Protestante, a descoberta das Américas, a Independencia norte americana, etc., foram como que urna introducto no destino que há muito tempo estava reservado para a nacáo Americana; nesta os Mórmons devem ser considerados como os profetas divinamente escolhidos. Na obra "Pérola de Grande Prego", o livro de Moisés é considerado como um complemento entre Génesis 5,21 e 23, onde se encontram algumas das visóes atribuidas a Moisés. Entre estas, acha-se a da Maconaria, organizada pelo Demonio para engañar a humanidade. Mais tar de, os Mórmons mudaram de posicáo com relacáo á Maconaria. O Livro de Abraáo sustenta abertamente a prática da poligamia. Na obra "Doutrina da Alianca" temos as revelacóes privadas de Joseph Smith, as quais sao as principáis fontes da fé e da prática dos Mórmons até o presente. Tal obra fornece o alicerce para a autoridade absoluta da "Igreja" através das ¡numeras revelacóes feitas a Smith e conseqüentemente a todos os seus líderes espirituais. Aos adeptos da seita é dito que "á luz dos fatos demonstrados, a revelacáo entre Deus e o homem tem sempre sido e continuará sendo urna característica da Igreja de Jesús Cristo, o que torna compreensível a expectativa do aparecimento de outras mensagens dos céus até o fim das experiencias do ho mem sobre a térra".

Embora professem a fé na Santíssima Trindade, o conceito de Deus dos Mórmons é totalmente materialista. Eis o que diz a seita: "Negar a materialidade da pessoa de Deus é o mesmo que negar

Deus; pois urna coisa sem suas partes nao pode formar o seu todo e um corpo ¡material nao pode existir. A Igreja de Jesús Cristo dos Santos do Último Dia prega contra um Deus incompreensível, desprovido de corpo, membros ou sentimentos".

Os Mórmons acreditam na salvacáo universal, porém seguida por tres tipos de ressurreicao dos mortos:

a) Gloria eterna, resplandecente como o sol, para todos os que levaram urna vida perfeita; 269

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b) Gloria terrestre, á semelhanca da lúa, para aqueles que foram

de urna certa forma infiéis;

c) Gloria celestial, comparável á das estrelas, para os que nao receberam Jesús Cristo, mas foram fiéis ao Espirito Santo. Os pecadores seráo punidos, porém nao para sempre. O inferno, de acordó com a seita dos Mórmons, deve durar enquanto existir pecado para ser punido.

Para os Mórmons, o homem é definido como uniáo de espirito preexistente a um corpo terreno. Esta uniáo de espirito e corpo significa um certo progresso, pois a alma passa do incorpóreo ao corpóreo.

Na mesma linha da preeminencia do corpo sobre o espirito, "o ca

samento seria urna obrigacao para todos os que nao tém impedimento

físico que os impeca de assumir as sagradas responsabilidades do esta do de casados". Através do casamento as almas preexistentes teriam a oportunidade de entrar antecipadamente na formacáo do corpo. Sem o casamento, praticamente seria impossível para as almas que já existem

antes do corpo, passar do estágio do incorpóreo para o corpóreo. Além

do mais, os Mórmons distinguem entre casamento celestial e casamento

temporal; o primeiro (celestial) abriría caminho para a participacáo de todos no casamento temporal, reservado aos membros da "Igreia" consi derados dignos.

O Batismo. Embora reívíndiquem o Batismo como necessário para a salvacáo, os Mórmons nao aceitam o Batismo das criancas, com base numa revelacáo especial recebida de Moroni, filho de Mórmon. Numa certa ocasiáo, segundo a própria seita, foi revelado a Smith que "os pequeninos estáo vivos em Cristo desde a fundacáo do mundo; se assim nao fosse, Deus seria um Deus parcial e um Deus mutável, um Deus desrespeitador de pessoas, pois quantas criancas tém morrido sem serem batizadas!".

Em urna de suas visoes de 1830, foi revelado a Smith que o Batis mo deve ser feito por imersáo acompanhada da fórmula trinitaria, que o ministro deve pronunciar da seguinte maneira: "Tendo sido encarregado por Jesús Cristo, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo.Amém". Dada a énfase sobre a necessidade do Batismo para a salvacáo, os Mórmons ensinam que, se urna pessoa morre sem que tenha sido batizada, isto nao Ihe impede de recebero Batismo, através de procuracáo. A pessoa falecida seria batizada por procuracáo A seita elaborou esta sua doutrina, alegando que "em nenhum lugar da Biblia existe distincao entre vivos e morios para a recepcáo do batismo". Pergunta-secomo seria o Batismo da pessoa defunta por procuracáo? Os Mórmons explicam: um párente ou mesmo urna pessoa amiga do defunto seria imergida em lugar do falecido, redundando para este, sem qualquer dife-

renca, os efeitos do Batismo.

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QUEMSÁOOSMÓRMONS?

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Celebragáo da Ceia do Senhor. De todas as funcóes rituais dos Mórmons, a mais importante seria a "celebracáo da Ceia do Senhor", que tem por objetivo "comemorar o sacrificio do Senhor Jesús". Segundo a seita, a participacáo na celebracáo da "comunháo" seria "um meio de renovacáo dos votos dos adeptos diante do Senhor, de reconhecimento da mutua fraternidade e urna maneira de testemunhar solenemente a fé dos membros na Igreja á qual pertencem."

Para a celebracáo da Ceia do Senhor, os Mórmons usam agua ao invés de vinho, por causa de urna revelacáo feita a Joseph Smith, que Ihe ordenava "nao comprar ou fazer uso de vinho ou qualquer outra substan cia semelhante ao vinho". Para ministrar a "Ceia do Senhor", exige-se que o ministro tenha o que a seita chama "sacerdocio Aarónico"; cabe somente aqueles que ocupam este "alto oficio", presidir á celebracáo. As palavras do ritual da seita sao praticamente as mesmas para a "consagracáo das insignias" do pao e da agua. Estando toda a assembléia ajoelhada, um anciáo ou sacerdote invoca Deus, o Pai, nos seguintes termos:

"Ó Deus, Pai eterno, nos te pedimos em nome do teu único Filho, Jesús Cristo, que abengoes e santifiques este pao (ou esta agua) para as almas de todos que os vao receber, a fim de que eles se possam alimen tar em memoria do corpo (sangue) do teu Filho e testemunhem diante de ti, ó Deus, Pai eterno, que estao decididos a tomar sobre si o nome do teu Filho e sempre recordá-lo, observando os mandamentos que Ele Ihes con-

fiou; possam sempre ter o teu Espirito que permanega com eles. Amém".

A presenca real de Deus no pao e na agua é negada pelos Mórmons. Para eles, isto seria urna "grande apostasia". POLIGAMIA

A poligamia (matrimonio de um com muitas) foi sempre reivindica

do pelo fundador da seita, Joseph Smith, com base numa de suas "es

pléndidas revelacóes", que ele atribuiu a Jesús. Eis como ele descreve tal revelacáo:

"Se um homem se casa com urna virgem e deseja casarse com outra com o consentimento da primeira e ambas sao virgens sem ne-

nhum compromisso com outro homem, tal uniáo deste homem as duas mulheres é justificada. Ele nao pode estar cometendo adulterio de forma alguma, já que elas por livre e espontánea vontade se entregaram a ele; elas pertencem a ele e a mais ninguém. Se o homem possui dez virgens que Ihe foram dadas em casamen to pela leí, ele nao comete adulterio, pois elas Ihe pertencem, urna vez

que Ihe foram entregues pela lei. Logo a sua uniáo com estas dez mulhe res é justificada. 271

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Se urna das duas ou duas das dez virgens, depois de casadas, decidem convivercom outro homem, elas, sim, cometem adulterio e devem ser apedrejadas, visto que Ihe foram dadas em casamento, a fím de que multiplicassem e povoassem a térra de acordó com o mandamento divino".

Considerada como um artigo de fé para os Mórmons, a poligamia tornou-se um dos principáis problemas para a seita, nao só durante a época de Smith, mas mesmo depois de se estabelecerem em Utah. Em 1860 urna lei foi introduzida no Congresso Americano em Washington para "punir e eliminar a prática da poligamia em todo o territorio dos Estados Unidos." Embora tenha sido aprovada pelo Congresso e posta em vigor pelo Presi dente Lincoln em 1862, tal legislacáo teve pouco efeito. Urna outra legisla cáo, mais rigorosa que a primeira, foi apresentada, mas derrotada pelo próprio Congresso em 1869, visto que era praticamente impossível conde nar os praticantes da poligamia com qualquer jurado formado em Utah. Em 1878 as mulheres da cidade Salt Lake daquele Estado reuni-

ram-se para protestar e enviar urna peticáo ao Congresso Americano

exigindo que fosse eliminada a poligamia; os Mórmons haviam criado as chamadas "Casas de Doacáo", onde as pessoas eram "dadas em casa

mento com formas de juramento táo degradantes que, mesmo depois de se rebelarem contra tal prática, aquelas pessoas se sentiam táo ameacadas que nao ousavam dizer o que fosse contra essa filosofía da

seita; eram incapazes de denunciá-los".

Um ano depois, durante o seu discurso inaugural, o Presidente Garfield declarava que "a Igreja dos Mórmons nao somente ofendía o senso moral da humanidade insistindo sobre a poligamia, como tentava

impedir a intervencáo da justica através de continua instrumentalizacáo da lei". Em 1881, o Presidente Arthur por sua vez, falando ao público,

condenava a prática da poligamia, classificando-a como "crime tiránico! repugnante tanto á moral quanto ao senso religioso cristáo" e, em segui

da, recomendava legislado que punisse rigorosamente a poligamia em todo o territorio de Utah. Inspirada por tais recomendacóes, a lei finalmente foi aprovada em 1882 por unanimidade pelos congressistas americanos. Por fim, em 1890 a Corte Suprema Americana reconheceu e aprovou como direito constitucional a lei que condenava a poligamia obrigando os Mórmons a fazer urna total reforma de sua doutrina no tocante ao matrimonio.

Em resposta á decisáo unánime do Congresso e da Corte Supre ma, o presidente da seita dos Mórmons, Wilford Woodruff, fez o seguinte

pronunciamento:

"Urna vez que as leis promulgadas pelo Congresso foram reconhecidas como constitucionais pela Corte Suprema, declaro minha intengáo de submeter-me a elas e usar minha influencia com os membros da Igre

ja a fim de que todos fagam o mesmo. 272

QUEM SAO OS MÓRMONS?

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E agora declaro publicamente que o meu conselho pessoal a todos

os membros da Igreja, Santos do Último Dia, é que se abstenham de contrair qualquer tipo de matrimonio proibido pela lei".

Depois disto, aos 6 de Outubro de 1890, o Conselho Geral dos Santos do Último Dia, votou unánimemente a favor da recomendacáo do

Presidente da seita, Wilford Woodruff, com o seguinte depoimento: "Enquanto Igreja reunida em conferencia geral, nos aceitamos sua declaracáo quanto á proibicáo do casamento do homem com varias muiheres como autoritativa e permanente".

Seis anos mais tarde, o Estado de Utah foi aceito na Uniáo dos demais Estados após submeter ao Congresso documentos que proibiam terminantemente a prática da poligamia dentro do seu territorio.

Apesar de tudo, sabe-se que até os nossos dias a seita dos Mórmons, embora sujeita á punigao da lei, acredita e reafirma a validade da poligamia como sendo urna doutrina revelada por Deus. Logo é provável que os Mórmons fundamentalistas-radicais a continuem praticando ás escondidas em oposigáo á lei e ás autoridades civis. Em 1953, em Arizona, a policía estadual invadiu urna colonia de Mórmons com cerca de 400 pessoas que praticavam a poligamia. Depois de encarceradas, tiveram que res ponder a processo na Corte por violagáo da moral e da ordem pública.

SACERDOCIO E FORMA DE GOVERNO DA SEITA Sacerdocio e jurisdicao estáo intimamente ligados um ao outro em

todo o sistema doutrinário da seita dos Mórmons. Dois tipos de sacerdo cios sao reconhecidos pelos Mórmons: um de grau menor, chamado Aarónico, o qual, segundo a seita foi conferido a Smith por Joáo Batista, e um de grau superior, conhecido como a Ordem de Melquisedeque, tam-

bém conferido a Smith por ordem dos Apostólos Pedro, Tiago e Joáo.

A funcáo primordial do sacerdocio de Melquisedeque compreende a administracáo dos bens espirituais, incluindo as chaves de todas as béngáos da Igreja, o direito de abrir os céus, de participar da assembléia geral e da Igreja dos Primogénitos, de participar da comunháo e da presenca de Deus, o Pai de Jesús, mediador da nova alianga. A estrutura eclesiástica dos Mórmons é bastante rígida. Como ca-

bega principal, temos o que eles chamam "Corpo Presidencial", compos

to de tres sumos-sacerdotes, um presidente e dois conselheiros. A autoridade deste Corpo Presidencial é absoluta e universal sobre questoes de nivel espiritual e temporal. Abaixo do Corpo Presidencial encontra-se o Conselho dos Doze Apostólos, os quais, por sua vez, supervisionam os

patriarcas em grau inferior da escala. Paralelo aos Apostólos, encontra se o que a seita chama "Corpo Oficial dos Setenta", cujas decisóes go273

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zam da mesma autoridade que os do Conselho dos Apostólos. A nivel territorial, todos trabalham dentro dos limites geográficos da "igreja", com jurisdicáo limitada segundo a divisao em grupos. O bispo é visto como chefe da palavra auxiliado por dois sumos-sacerdotes, os quais desem-

penham funcóes de conselheiro. Qualificado como possuidor de um sa cerdocio de grau baixo, a palavra do bispo nao tem autoridade sobre os membros da Ordem de Melquisedeque que estejam trabalhando dentro do seu territorio. Os Mórmons dáo muita importancia ao que eles chamam "prática ou vivencia da religiáo", que consiste na obediencia ferrenha e na manipulacao da vida dos seus membros nos mínimos detalhes. Além da obrigacáo de pagar o dízimo, "os membros devem fazer urna lista de todos os bens que possuem e apresentá-la ao bispo, pagandoIhe os 10 por cento sobre o total dos bens possuídos... Um ano depois, todos devem pagar mais 10 por cento em acréscimo com mais 10 por cento sobre cada nova propriedade que for sendo adquirida."

Em termos de alimentos, os membros da seita estáo proibidos de beber "vinho ou qualquer outra bebida que contenha álcool"; também estáo proibidos de fazer uso do tabaco e de bebidas quentes, como o cha e o café, consideradas prejudiciais ao corpo. Podem alimentar-se de carnes "poluídas", como a do porco, por exemplo; mas alimentos desta natureza devem ser usados limitadamente e "somente durante o invernó

ou épocas de fome". Apesar de todas estas restricóes, o adepto da seita deve valorizar nada menos que a liberdade. Logo qualquer pessoa que queira escravizar urna outra, seja em que sentido for, encontra-se total mente ligada a Satanás.

Embora hoje nao tenhamos a mínima idéia da quantidade exata de pessoas que se encontram a servico único e exclusivo da seita dos

Mórmons, podemos ao menos imaginar o seu crescimento e expansáo tendo em vista os dados estatísticos fornecidos pela própria seita em 1945. Já entáo os Mórmons contavam com cerca de 149 casas de Zion (saldes de oracáo) e 1.150 pregadores ambulantes, todos auxiliados por um total de 89.106 pessoas entre adultos e adolescentes ordenados ao sacerdocio Aarónico, além de 15.547 missionários. Ordenados ao sacer docio de Melquisedeque, o mais alto degrau na escala do sacerdocio, encontravam-se cerca de 112.850 homens com mais 9.370 outros dedi

cados ás missóes. Segundo a própria seita, através destes mensageiros "a proclamacáo do Evangelho seria feita em quase todos os lugares do mundo", profetizando os tres estágios da historia do mundo: "o grande Milenio" da prosperidade com a "capturacáo de Satanás", seguido de um pequeño intervalo em que o Demonio "reinaría por um pequeño período de tempo", após o que teríamos "o fim do mundo". Sem comentarios... 274

Livro controvertido:

VITA BREVIS (A Carta de Flória Emilia para Aurelio Agostinho)

Em síntese: Jostein Gaarder descobríu em Buenos Aires no ano de 1995 um manuscrito de 70 a 80 folhas, que pretende ser urna carta da concubina de Agostinho pagáo a Agostinho Bispo de Hipona. A autora seria Flória Emilia, que se diz traída por seu parceiro em nome da Dama Continencia por ele abragada; por isto repudia os teólogos, que ensinam o valor da vida casta, e rejeita o Batismo, que ela estava para receber. A vida é breve, diz ela repetidamente, de modo que é preciso aproveitaros prazeres que ela oferece, pois nao se sabe o que vem depois, nem se diga que Deus punirá quem se tiver entregue ao gozo da sexualidade. A crítica recaí, de modo geral, sobre celibato e virgindade.

Tal documento suscita interrogagóes: questiona-se a autenticidade do mesmo, visto que, presumidamente escrito em 400, só terá vindo a tona em 1995 nao no Velho Mundo, mas na Argentina; além do qué, o conteúdo do mesmo mais parece refletir as idéias renascentistas semipaganizantes do século XVI do que as do sáculo V. *

*

*

O escritor noruegués Jostein Gaarder, autor famoso de "O Mundo de Sofía", publicou em 1997 o Codex Floriae ou urna presumida carta de Flória Emilia, concubina de Agostinho ainda pagáo durante doze anos.1 Tal carta se dirige ao próprio Agostinho Bispo de Hipona dez anos após a separacáo. A autenticidade do documento, que consta de setenta a oitenta folhas, é muito discutível. Como quer que seja, ó urna peca interessante e muito sugestiva; por isto será objeto de comentario ñas páginas subseqüentes.

1. O conteúdo

Santo Agostinho, em suas "Confissdes", refere-se á sua concubina sem dizer o seu nome, que no documento em foco é Floria Emilia. Em doze anos de co-habitacáo teve com ela um filho chamado Adeodato, que faleceu antes de seu pai. Quando se aproxlmou do Evangelho e se dispunha a converter-se, deixou-a. A carta em foco diz que Mónica, a 1 Vita Brevis. A carta de Flória Emilia para Aurelio Agostinho. Tradugáo de Pedro Maia Soares. - Companhia das Letras. Sao Paulo, 140 x 210 mm, 225 pp. 275

36

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

máe de Agostinho, foi quem intimou Flória a deixar o convivio do companheiro; entáo de Roma partiu ela sem demora para Cartago, sem mesmo poder despedir-se do companheiro e do filho Adeodato.

Muito magoada por essa brusca separacáo, Flória chegou um dia a ler as "Confissóes" (urna quase autobiografía) de Agostinho. Após le las, resolveu escrever urna longa carta, pela qual se desabafa muito amargamente.

Julga-se traída por Agostinho, que caiu nos bracos de outra muIher, diz ela: a Dama Continencia, apregoada pelos teólogos e nao pelos filósofos que Agostinho havia freqüentado. Assim traída, Flória manifesta horror nao por Deus, nem por Cristo, mas pelos teólogos, que exaltam a continencia. Por isto nao quer receber o Batismo. Alias, urna vez ou

outra, ela parece duvidar da existencia de Deus. Mesmo que Deus exis

ta, ela nao acredita que possa castigar Agostinho e Flória por cederem ás suas paixóes.

O final da carta é veemente; vem a ser urna queixa contra a espiritualidade da Igreja, que prega o valor da vida una ou indivisa (1Cor

7,25-35):

"E a vida é curta demais. Lembras que podías dizer coisa seme-

Ihante quando leste Cicero?

Talvez nao haja Deus que negocie com nossas pobres almas. Ou talvez exista um Deus amoroso, que nos criou para o mundo, para que

vivamos aqui. Ó, Aurel, se estás deitado sob urna figueira - imagino que

tens um figo em tua máo - entáo eu deveria deceno chegar e beijar-te em tua testa envelhecida demais. Eu tentaría engolir aqueta terrivelmente desgastante palavra continencia. Pois aquela paiavra aínda, sim, ainda reside em tua mente como um fardo pesado. A única coisa que possivelmente poderla ter-te libertado seria meu abrago. Por que Cartago tem de ficar táo longe de Hipona Regia?

Eu cuidarei para que recebas esta carta, entáo te rogare! que a leías. Mas nao tenho mais esperangas de que as palavras que escrevo cheguem realmente a tí. Portanto, derrameimeu óleo e meus esforgos.154 Sou assediada pelo medo, Aurel. Tenho medo daquilo que os homens da Igreja possam um dia fazer a mulheres como eu. Nao apenas

porque somos mulheres - pois Deus nos criou mulheres. Mas porque

tentamos a voces, que sao homens-pois Deus os criou homens. Achas que Deus ama os eunucos e castrados ácima daqueles homens que amam

154 Flória joga com algumas palavras de Plauto: "Oleum et operam perdidi". As pala

vras sao atribuidas a urna moca que tentou em váo tersucesso com o sexo oposto. 276

VITA BREVIS

37

urna muiher. Entáo cuida como louvas a obra de Deus, pois ele nao criou o homem para se castrar.

Nao posso esqueceroque aconteceu em Roma, e nao pensó mais em mim, pois nao foi sobre mim que desencadeaste tua ira naquele dia. Foi sobre Eva, Excelencia Reverendíssima, sobre a muiher. E aquele que faz mal a alguém ameaga a todos.15S

Tremo, pois temo o dia que vira quando mulheres como eu seráo liquidadas pelos homens da Igreja universal. Epor que seráo liquidadas, Excelencia Reverendísima? Porque lembram a voces o fato de terem renegado suas próprias almas e seus próprios dons. E em nome de qué? De um Deus, dizem voces todos, daquele que criou um céu ácima de voces e também uma térra onde realmente estáo as mulheres que os trazem ao mundo.

Se Deus existe, que ele te perdoe" (pp. 217-219).

Flória afirma repetidamente que a vida é breve e se faz necessário aproveitá-la bem. Nao se tem certeza do que haverá após a morte, de modo que é sabio gozar dos prazeres que se oferecem, mesmo fora do matrimonio. A autora da carta chega a escrever em linguagem irónica e exacerbada, lancando máo de todos os recursos para atrair o antigo parceiro:

"Entáo, tua nova noiva chegou e te abragou, 'com serena alegría e sem desordem. Convidava-me, acariciando-me com pureza, para que viesse sem hesitagáo. Estendia-me as máos piedosas, chelas de uma multidáo de boas obras, para me receber e abragar'.119 Sou quase levada a felicitá-lo, pois de certa maneira chegaste de fato a casar, com uma rainha invisível, é verdade, mas era, no fim das contas, a que desejavas. Dessa forma, podías casar-te sem serobrigado a levar uma nova muiherpara a casa de tua máe. Assim, ela assumiu o controle, deve ter ficado muito satisfeita, nao tentas esconder isso" (p. 163). "Sou de opiniáo que é arrogancia humana rejeitar esta vida - com todas as suas alegrías terrenas - em favor de uma existencia que talvez nao passe de uma abstragáo. Certamente nao esqueceste as críticas de Aristóteles a todas essas idéias de um mundo ideal? A vida é táo curta, Aurel. Somos livres para ter esperanga de urna vida após esta. Mas nao somos livres para tratar mal uns aos outros e a

nos mesmos, quase como um instrumento para alcangar uma existencia 166 Conferir Síron: "Multis minatur, qui uní facit iniuriam". 119 Confissóes VIII, 11 277

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

da qual nao sabemos nada. Além disso, há outra possibilidade que nao levas absolutamente em conta em nenhum dos teus livros. Na qualidade de professor imperial, deverias pelo menos ter discutido a possibilidade de haver urna vida eterna para almas individuáis, mas que as bases do julgamento final fossem diferentes daquelas que quase tomas por certas. Por exemplo, creio que amar físicamente urna muiher nao é necessariamente um pecado maior do que separar a mesma muiher de seu único filho. De minha parte, apraz-me a ¡déla de que o Deus que criou o céu e a térra seja o mesmo que criou Venus. Lembras de quando eu estava

grávida ? Ou de quando amamentava o pequeño Adeodato em meu seio? Mesmo entáo ousavas procurar-me e nao buscavas outra.

Teña sido aquele o tempo em que mais longe eslavas de Deus?"

(PP- 179s).

"Os anos passaram-se e muito aconteceu desde o tempo em que vivemos juntos na Italia, mas o fato de que me agradaste e de que tu

mesmo encontraste prazer no perfume de meus cábelos quando viajáva-

mosjuntos, levaría Deus a te amaldigoar? Foipara redimir pecados como esse que ele deixou seu único filho ser pregado na cruz? Nos também

tínhamos um filho conosco naquela jornada, ele saltava e dangava em volta de seu pai e de sua máe - mas pregado numa cruz em nome do amor? Espero, para a saívagáo de tua alma, que teu Deus tenha também desenvolvido um senso de humor como tinhas antes de encontrar os te ólogos. Mesmo assim, ele deve ter um senso de humor mais macabro que o teu, senáo poderá pensar que tua alma se deteriorou tanto desde

quando atravessaste o rio Amo comigo que nao é mais possível salvá-la. Onde há mais intelecto, Excelencia Reverendíssima, é onde, como re-

gra, há menos amor!" (pp. 115-117).

Segundo a carta em foco, Agostinho, depois de abandonar Flória, teve outro encontró com ela em Roma; ambos cederam á paixáo, mas Agostinho terá acabado por arrepender-se e bateu em Flória porque ela Ihe excitava a sensualidade. Todavía pediu-lhe perdáo e mandou Flória

de novo para Cartago:

"Poucos días depois de minha chegada encontramo-nos noAventino

e pudemos nos abragar novamente.

Picamos um longo tempo assim, olhando no fundo dos olhos um do outro, táo profundamente quanto nosso olhar podía alcangar. Nao pare cía naquele momento que éramos urna única alma viva que de alguma

forma refletia-se a si mesma? Entáo disseste algo, Aurel, és capaz de lembrar? Agora precisas ficar sempre comigo, disseste!

Nao caíste quando, por um curto periodo de tempo, retomamos 278

VITA BREVIS

nossa antiga vida em comum. Quero dizer que te elevaste a urna nova

vida depois de ter vivido no vale de sombras dos teólogos. Assim, o que aconteceu durante aquetas semanas nao tem nada para ser confessado a Deus ou aos homens. Espero que seja por consideragáo com o que

aconteceu mais tarde que nao escreves nada sobre aqueta época em teus livros" (pp. 189s). O livro em foco suscita varias interrogacoes, que passamos a con siderar.

2. As Dúvidas 2.1. Autentícidade

A primeira questáo que a pretensa Carta sugere, é a da sua auten-

ticidade: será realmente da concubina de Agostinho aínda pagáo? Em favor da nao autenticidade militam quatro razóes:

1) O fato de que do século V ao século XX ninguém falou desse documento e ninguém parece ter tido conhecimento dele é significativo. A vida devassa de Agostinho é indiscutida, mas nao há noticia da carta de sua concubina.

2) Jostein Gaarder diz ter encontrado o manuscrito (talvez copia de um original) em Buenos Aires num antiquário, na primavera de 1995. Julga que tal texto latino foi escrito no século XVI. Terá tido origem em Buenos Aires mesmo ou foi levado para lá a partir da Espanha? Era de esperar que um manuscrito como esse fosse encontrado na velha Euro pa e nao na jovem América Latina.

3) O teor da Carta é amargo. Acaba sendo urna censura á Igreja, que baseando-se em Sao Paulo (1Cor 7,25-35), apregoa a continencia e a vida una. As mulheres sao tidas como prejudicadas e traídas por esse amor á Dama Continencia.

Nao seria, antes, o eco do pensamento renascentista (século XVI), que provocava as paixóes e louvava a vida paganizante? 4) A concubina de Agostinho era mulher de pouca instrucao... A Carta de Flória, porém, ostenta vasta cultura, pois ela freqüentemente

cita autores gregos e latinos, que a escritora parece conhecer bem. Verdade é que Flória diz ter-se dedicado ao estudo depois que deixou Agos tinho. Terá conseguido realmente acumular táo belo acervo literario? Jostein Gaarder é favorável á autenticidade do texto e julga que

teve influencia na literatura católica posterior- o que é sujeito a dúvidas, como se verá a seguir. 279

12

-PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998 2.2. Ficar com a concubina?

A nota 87, das páginas 126 e 128 do livro em foco, nota da autoría

de Jostein Gaarder, merece comentarios. Ei-la:

"Agostinho deve ter passado por grande agonía de alma quando abandonou sua companheira, embora nao toque nisso em suas Confissóes, ñas quais nao se refere aos ferimentos infligidos a FIória. Mas em seu texto De bono conjugan (Sobre os beneficios do casamento, de 401), escrito numa época em quejápoderia terrecebido a carta de FIória,

ele afirma que um homem que manda embora uma amante fiel a fim dé

casarse com outra mulher é culpado de infidelidade. Nem todos os cris-

táos compartilhavam dessa concepgáo. Até boa parte da Idade Media,

aceitava-se em geral que um homem tivesse uma concubina antes dé

casar. Porexemplo, o bispo Leáo de Roma, na metade do século V, disse que era permitido ao homem cristáo deixar uma concubina para casar.

Isso nao era considerado divorcio ou bigamia; ao contrario, denotava aperfeigoamento moral. Agostinho rejeitou essa lóela. Um homem que coabitasse com uma mulher deveria ficar com sua companheira, e nao partir e

casarse com outra mulher depois.

Pensó que é interessante perguntar se Agostinho - logo depois de escreveras Confissóes - tena adotado essa concepgáo, que defendía o estatuto de "casada" ou os direitos da concubina, se nao tivesse ¡ido a carta de FIória. No fim das contas, ela talvez tivesse razáo ao dizer que sua carta a Aurel era, na verdade, uma carta para toda a Igreja crista. ^ Aínda em 1930, o papa citava o texto de Agostinho Sobre os be neficios do casamento. Sem que se desse conta, estava sendo influen ciado pela carta de FIória, embora eu tenha minhas razóes para acreditar que ele e os papas anteriores tivessem conhecimento íntimo do Codex

Floríae".

Como se vé, o texto é um tanto vago e impreciso. Insinúa que o concubinato era, de certo modo, praxe na Idade Media. Já que o autor nao cita nomes de escritores adeptos desta praxe. deve-se dizer o seguinte: se tal costume existiu na Idade Media, nunca fot abonado pela Igreja; terá sido prática de individuos que fugiam das normas oficiáis da Igreja.

Pode-se perguntar se de fato Agostinho diz que abandonar uma amante fiel para casar-se com outra mulher constitui infidelidade. Procu ramos a respectiva passagem no livro De Bono Coniugali (Patrología

Latina, ed. Migne, vol. 40, colunas 373-396) e nao a encontramos. Terá havido equivoco da parte de Jostein Gaarder? Pelo que se depreende da leitura de tal livro, Agostinho defende o matrimonio, mas reconhece tam280

VITA BREVIS

41

bém o valor da vida una ou indivisa, impugnada por um certo Joviniano, seu contemporáneo. Nao pretende estabelecer os direitos ou o estatuto da concubina; ao contrario, mostra-se intenso ao procedimento respectivo. Quando o Papa Sao Leáo Magno (t 461) afirma que deixar urna concubina para contrair casamento nao é divorcio nem bigamia, está pre cisamente contraditando a alegada praxe do concubinato.

É gratuito afirmar que Pió XI terá escrito urna encíclica (Casti Connubii?) deixando-se influenciar pela Carta de Flória. Em que sentido

terá sido influenciado, Jostein nao o diz, ficando no terreno das afirmacóes genéricas e mais ou menos gratuitas. Em suma, o autor noruegués parece ter categorías preconcebidas,

que ele atribuí aos escritores da Igreja antiga ou da Patrística. É difícil ao homem contemporáneo compreender a vida una ou indivisa (1Cor 7,2535). 3. Conclusáo

O livro vem a ser mais um expoente da pressáo do mundo de hoje contra o celibato e a virgindade consagrados a Deus. O pansexualismo de nossa sociedade impede muitos pensadores de perceber a grandeza da entrega total ao Absoluto. Esta entrega significa a antecipacáo de um estado de coisas que será definitivo no além; Deus, o Bem Infinito, é a resposta cabal aos anseios do ser humano, resposta que nenhuma cria tura pode oferecer, por mais interessante que ela seja. A vida indivisa é a atitude espontánea que o cristáo assume (por graga de Deus) quando

Ihe é anunciado que o Reino de Deus já chegou; o tempo, conseqüentemente, se encurtou, pois o Eterno presente dá a ver que dias e anos sao

breves demais para que o cristáo atenda ao Eterno presente. É neste sentido que se deve entender a expressáo vita brevis, táo freqüente na Carta; em chave crista, a vida é breve, porque o Reino de Deus, que comega em Cristo, com seus valores definitivos, nao deixa mais tempo para afazeres passageiros.

A vida una nao é castracáo nem sufocagáo do amor. Ao contrario, é o exercício de amor mais livre ou mais desvinculado de paixóes e cobicas desregradas. Possibilita á pessoa consagrada dedicar-se mais ple namente ao próximo, fazendo o bem pelo bem ou num amor de benevo lencia gratuita. Em Deus e por Deus a pessoa consagrada ama seus irmáos e irmás.

O livro Vita Brevis, além do seu caráter historiográfico, tem também índole filosófica bem definida em sentido diverso do clássico pensamento cristáo. 281

Falam os médicos:

ACADEMIA DE MEDICINA DO PARAGUAI: NAO AO ABORTO

Segue-se o texto de ponderosa Declaracao da Academia de Medi cina do Paraguai, que via internet foi enviado á redacáo de PR. A Academia de Medicina do Paraguai, cumpríndo com um dos ob jetivos estatutarios de "expressar sua opiniáo que considere de interesse

transcendente" (art. 3,1), analisou em sessóes de Plenário Académico Extraordinario o tema do aborto e decidiu declarar:

1 - A missáo primaria do médico é a de proteger a vida, e nao

destrui-la.

2-O abono nao é aceitável como método de planificagáo familiar nem de limitagáo da populagáo. Nao resolve tampouco os problemas do desenvolvimento económico e social. 3 - Diante de patologías da máe ou do feto que surjam durante a gravidez, a medicina moderna, utilizando a tecnología disponível em reprodugao humana, conta com meios para conservar a vida materna, o

fruto da concepgáo e combater conseqüentemente a mortalidade perinatal. Em casos extremos, o aborto é um agravante, e nao urna solugáopara o

problema.

4 - Nao comete ato ilícito o médico que realize um procedimento tendente a salvar a vida da máe durante o parto ou em curso de um tratamento médico ou cirúrgico cujo efeito cause indiretamente a morte do filho, quando nao se pode evitar esse perigo por outros meios. Esta Declaragáo foi aprovada pelo Plenário Académico Extraordi

nario da Academia de Medicina do Paraguai em sua sessáo de 4 deiulho de 1996.

Académica Amelia A. de González Secretaria Geral

Académico Carlos M. Ramírez Boettner Presidente

282

Pesquisa revela surpresas:

A IGREJA CATÓLICA E O BEM DO PAÍS Em síntese: Urna pesquisa de opiniáo pública revela que a Igreja Católica está em quarto lugar na lista das instituigóes que contríbuem para o andamento do país, após o pequeño empresario, a propaganda/ publicidade e a mídia. Esta colocagáo é honrosa, pois nao se trata de pesquisa de credibilidade, mas de pesquisa da influencia sobre o anda mento da vida brasileira. Na verdade, é difícil concorrer com a propagan

da e a mídia, já que tais instituigóes tém por objetivo precisamente influir sobre a vida pública. O que a Igreja oferece, nao sao bens materiais, mas valores espirituais e éticos, sujeitos á contradigáo. Apesarde voltada para o transcendental, a Igreja vem logo após a televisáo, os jomáis e as revistas - o que significa bom senso e clarividencia da parte dos entrevistados. *

*

*

Aos 29/03/98 o JORNAL DO BRASIL publicou o resultado de urna pesquisa da opiniao pública sobre a questáo: quem mais contribui para o bem do povo brasileiro?

A pesquisa Fala, Brasil assim apresentada foi efetuada em todas as regióes do Brasil pela Propeg, agencia de publicidade com trinta e tres anos de mercado e escritorios em oito Estados. Foram entrevistadas 1.700 pessoas entre os dias 12 de Janeiro e 2 de fevereiro de 1998. Os resultados sao tidos como "urna radiografía inédita do Brasil e de seus costumes". Com efeito; a pesquisa se voltou para diversas facetas da vida do país e apurou interessantes resultados. Eis os principáis tópicos:

1. Quem contribui para o país? Tais foram as respostas colhidas:

Quem contribuí para o país

(em %) MAIS

MENOS

SALDO

71 60 58 45 42 38 36

18 20 20 34 36 43 42

53 40 38 14 6 -5 -6

Governo Federal/Presidente da República .. 33

46

-13

Pequeños empresarios Publicidade/Propaganda Mídia (TV, jomáis, revistas) Igreja Católica Forcas Armadas Empresarios Prefeitura

283

44

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/1998

Governo Estadual/Governador Igrejas Evangélicas Movimento dos Sem Térra Banqueiros

Deputados e Senadores

33

47

32

48

27 25

55 57

-14 -16 -28 -32

14

71

-57

A propósito merece comentarios a colocacáo da Igreja Católica em quarto lugar. Nao se tratava de credibilidade da Igreja, como em inquéritos anteriores, mas de colaboracáo e influencia da Igreja na vida do país.

Compreende-se entáo que o pequeño empresario obtenha o primeiro lugar, pois é ele quem lida com o cotidiano da vida do povo e se esforca por servir bem para poder gozar da preferencia do público. Em segundo e em terceiro lugares vém a publicidade/propaganda e a mídia (TV, jomáis, revistas...), que inegavelmente exercem enorme influencia, pois gozam de singular poder de penetracáo na vida pública; sao instituicóes fundadas precisamente para influenciar a conduta do povo. A Igreja Católica nao pode concorrer com elas, pois utiliza recursos di ferentes e oferece um "produto" espiritual, que nem sempre corresponde ao

que a populacao procura. É honroso o quarto lugar, logo após os grandes cañáis de publicidade e comunicacáo social. Na verdade, a Igreja tem-se empenhado intensamente pelo bem da populacáo, defendendo a vida, propugnando a justica social, chamando a atencao para os males da libertinagem de costumes... Verifica-se que, apesardos protestos levantados contra

a Igreja, a opiniao pública Ihe faz justica, reconhecendo a benemerencia da Igreja na promocáo de um Brasil mais honesto, mais fraterno e feliz. Interessantes também sao as respostas dadas acerca de outros aspectos da vida nacional.

2. A favor ou contra...

Eis outros quadros publicados pelo JORNAL DO BRASIL: A favor de poder condenar menores de 18 anos por crimes cometidos A favor da reforma agraria Contra a liberacáo da maconha Contra a invasáo de térras pelos sem-terra Contra a retirada de camelos e ambulantes daspracase rúas

87 85 79 68

Contra a uniáo legal entre pessoas do mesmo sexo Contra a legaüzacáo do aborto (1) Contra a pena de morte (2)

62 54 49

65

Eis o comentario do JB:

País é conservador

O brasileiro - quem diría? - é um conservador. Quer a reforma 284

A IGREJA CATÓLICA E O BEM DO PAÍS

45

agraria (85% de apoio), mas nao as invasóes de térra (68% sao contra). Pede prisáo para os menores de 18 anos que cometem crimes (87%) e diz nao a proposta de uniáo legal de homossexuais (62%). Liberagáo da maconha? Nem pensar, respondem 79%. Legalizagao do aborto? Também nao, dizem 54%.

O conservadorismo aparece aínda quando o assunto é a pena de morte, condenada por 49%, mas apoiada por 44% (7% ficam na dúvida). Já os camelos devem continuar ñas rúas (65%). Os mais conservadores sao os que estudaram pouco. Entre os que nao chegaram a concluir o primario, 93% sao contra a liberagáo da maco nha, 83% nao querem a uniáo civil de homossexuais e 77% condenam a legalizagao do aborto. Até o apoio á reforma agraria é menor entre eles: 72%. No entanto, sao os que menos condenam as invasóes: 61%.

Todas as regióes do país rejeitam a idéia de liberar a maconha,

mas no Sul e no Sudeste esta reagáo é menor: 75% e 76%, respectiva mente. Os estados que menos dizem nao á pena de morte sao os do Sul, onde a violencia nem é táo grande. Lá, só 39% sao contra a idéia, enquanto no Sudeste eles chegam a 52%. Segue-se o quadro do que dá vergonha:

O QUE DÁ VERGONHA...

(EM %)

SOCIAL

42

Educacáo/faltam vagas ñas escotas

15

Saúde: faltam leitos e remedios Crianzas de rua/fome/prostituicáo

17 16

Desabrigados/sem teto/mendigos Falta de moradia/aluguéis altos/favelas

6 4

GOVERNO/POLÍTICOS/DEPUTADOS Ladróes/corrupcáo

38 24

ECONOMÍA Muito desemprego Salarios baixos, salario mínimo ridículo

37 24 12

Visam interesse próprio/ganham sem trabalhar Mentirosos/náo cumprem promessa

Má distribuicáo da renda

18 8

5

MISÉRIA/FOME/POBREZA

21

Violencia Falta policía Violencia policial contra o povo

19 14 5

FALTA JUSTICA Só pobre vai para a cadeia/justica lenta

6

DROGAS/CRIANCAS/CRACK LIBERALIZACÁO DOS COSTUMES

4 4

Sexo na TV/desagregacáo da familia/falta de moralidade 285

46

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 428/199B

CIDADANIA Falta de educacáo do povo/levar vantagem/povo nao sabe reivindicar

4

PRESIDENTE GOVERNA PARA OS RICOS OUTROS COM 3% E MENOS NADA ME ENVERGONHA NO BRASIL

4 2

Eis o comentario do JB:

O que vai mal e o que está dando certo? Dos 1,7 mil entrevistados, 42% apontaram a área social como o principal motivo de vergonha - falta de leitos e remedios, criangas de rúa, fome, prostituigao, inexistencia de vagas ñas escolas etc. Os políticos aparecem em 2e lugar, com 38%, e

sao identificados por boa parte dos brasiieiros como ladróes e corruptos

(24%), pessoas que visam seuspróprios interesses (18%) e mentirosos (8%).

A miseria e a violencia vém em seguida, com 21% e 19%, respecti vamente. Para 14% falta policía ñas rúas e apenas 8% acham que a violencia contra a populagáo é urna vergonha. Já o Plano Real é aponta-

dopor51% como fatorde orgulho. Há varias explicagóes, desde a estabilidade da moeda e o aumento do poder de compra até o acesso maior ao crediário.

A Propeg também quis saber o que contríbuiu ou nao para o pro-

gresso do país. Os pequeños empresarios foram citados como os que

mais contribuem, com 71%, seguidos da publicidade, Imprensa, Igreja Católica, sindicatos e Porgas Armadas. Em contrapartida, os que menos ajudam no desenvolvimento do país sao as instituigóes de governo, os empresarios e, surpreendentemente, os movimentos sociais - como o dos sem-terra.

Mais o seguinte:

Atitude frente á programacáo de TV

(em %)

Deveria ter menos filmes violentos Seria bom se os pais pudessem controlar o tipo de

88

programacáo a que os filhos assistem

87

Tem cenas de sexo demais ñas novelas e filmes Noticiarios exageram na cobertura de crimes e cenas de violencia

87 85

Até os desenhos animados sao violentos

84

Negro sempre aparece numa situacáo inferior 82 Os programas de auditorio exageram ñas situacóes de "mundo cao"... 82 De maneira geral, a mulher é tratada como objeto sexual 80 Quanto menos a enanca assiste, melhor 77

A propaganda é melhor que muitos programas Na hora da propaganda, mudo de canal

73 39

TV revela contradicho

O espantoso sucesso do programa Ratinho livre, de Carlos Massa, veio mesmo para confundir a cabeca de sociólogos, psicanalistas e pes286

A IGREJA CATÓLICA E O BEM DO PAÍS

47

quisadores em geral. Líder de audiencia no Ibope, Ratinho é - ou parece

ser - justamente o que os brasileiros mais criticam na programacáo da TV brasileira. Segundo a pesquisa da agencia Propeg, 82% dos entrevis tados concordam total ou parcialmente com a afirmacáo de que os pro

gramas de auditorio - como o Ratinho - exageram no chamado "mundo cao". Apesar disso, nao parecem dispostos a mudar de canal. "Certamente o Ratinho mostra exageras, mas também traz benefi cios aqueles que o assistem. Talvez um reconforto do tipo: 'Esse cara da TV está pior do que eu"\ avalia a socióloga Fátima Pacheco Jordáo, que

coordenou a pesquisa. O baixo nivel, entretanto, nao é a única preocupa-

cao do brasileiro diante da TV. A grande maioria acha que a violencia e o sexo sao os grandes problemas da programacáo.

Dos 1,7 mil entrevistados, 88% acreditam que deveríamos ter fil mes menos violentos e 87% apontam um excesso de cenas de sexo em novelas e filmes. O jomalismo também é um dos alvos do telespectados. A maioria (85%) considera exagerado o espaco dado á cobertura policial. Nem os desenhos animados escapam: 84% acham que eles sao

violentos. Surpreende, porém, a demanda por alguma forma de controle do veículo mais popular do país: 875 acham que seria bom se os pais pudessem intervir na programacáo de seus filhos.

Quando o Papa pede perdáo. Todos os mea culpa de Joño Paulo II, por Luigi Accattoli. Tradugáo de Clemente Raphael Mahl. - Ed. Paulinas, Sao Paulo 1997, 135x220mm, 229pp.

O vaticanista Luigi Accattoli, do Corriera della Sera, transcreve e co

menta em 21 capítulos mais de noventa textos do Papa Joáo Paulo II, que pede perdáo por faltas cometidas por católicos contra os negros, os indígenas e os nao católicos em geral, tendo em vista preparara Igreja para o terceiro milenio. A leitura do livro impressiona e pode gerar confusóes. As expressoes de L Accattoli sao, por vezes, genéricas e nao trazem os matizes que deveríam ter.

Á propósito deve-se dizer, com base na distingáo entre pessoa e pessoal da Igreja:

1) A Pessoa da Igreja é o seu aspecto transcendental de Corpo Místico de Cristo. É infalível em materia de té e Moral em virtude da assisténcia que Cristo Ihe prometeu (cf. Mt 28,18-20).

2) A Igreja é composta também de seres humanos que Cristo quer incor

porar ao seu Corpo Místico. Tais pessoas sao falíveis, de modo que erraram no

curso do tempo. Erraré comum a todos os homens, mas arrepender-se e pedir perdáo é próprio dos Santos.

3) Parajulgarocomportamento dos antepassados, é necessário transpor-

tarmo-nos á sua respectiva época e procurar entendé-los a partir dos parámetros da cultura respectiva. Assim evitam-se julgamentos precipitados e injustos. 287

ENCONTRÓ COM DEUS NO SILENCIO Publicamos, a seguir, o artigo do Rev. Agrieto do Vale Ph. D, professorde Historia Eclesiástica no Seminario Luterano Livre de Campo Mouráo (PR). Seja consignada nossa gratidáo ao autor, que teve a gentileza de enviar sua colaboragáo a PR.

Há um silencio que vai além da Palavra. Trata-se de um silencio adorante, que toca as fibras mais profundas da alma, quando dentro do espaco da oracáo e presos pela Palavra, esta cria um verdadeiro diálogo

com cada um de nos. Damo-nos conta de que a Palavra nos educa suave mente para urna intimidade táo profunda com o interlocutor que até dis pensa as palavras.

Este silencio se torna urna ascese. Ascese é um termo grego que corresponde ao concertó atual de exercício ou treinamento. Quando a pessoa percebe que seu traje nao está adequado para a sítuacáo que vai

enfrentar, trata de mudar de roupa. O silencio (nao se trata de urna simples ausencia de vibracáo sonora) também procura libertar-se das distracóes, fantasías e preocupacoes que nao permitem ao coracáo colocar-se aos pés do Mestre com a mesma disponibilidade de María, a irmá de Marta, da qual fala o Evangelho de Lucas. Narra Lucas que Marta, embora bem intencio nada em servir o Senhor, está perturbada por mil preocupares que a impedem de ter atento o ouvido do coracáo á única coisa necessáría: a Palavra de Deus. E o que constituí o único exercício, a única ascese cumprida por María. O elogio de Jesús neste encontró com Maria torna-se agora urna exigencia para todos: precisamos de nos "alienar" para obter o silencio que

assegure um terreno apto á semeadura da Palavra de Deus.

Os antigos cristios chamavam a este exercício-ascese-treinamento "vida ativa". A "vida atíva" consiste sobretudo em sermos honestos e since ros conosco mesmos de modo que, protegendo-nos interiormente, tenha-

mos a coragem de impor silencio.

Há portante muitas maneiras de viver o silencio. Há o silencio de

quem quer ouvir atentamente, para perceber nao só os sons do interlocutor,

mas também os seus infra e ultrassons, ou seja, aquele som explícito que percute em nosso ouvido, aquele som implícito do nao dito e que se perce

be no coracáo. Este tipo de silencio nao é somente silencio dos rumores, mas na verdade um silencio que pode conviver com os rumores do tráfegó urbano, por exemplo.

Trata-se de um silencio que se identifica com a atencáo, a atencáo ao outro, nao só ao que diz o outro, mas ao que o outro é em relacáo a mim. É pois, um silencio muito delicado, que envolve as fibras mais ocultas de nossa

alma. E um silencio que deveria assegurar a sintonía com a vibracáo do outro. 288

Só urna corda bem distendida consegue vibrar ao mínimo sopro do vento. Este é o silencio que devemos conquistar antes de entrar naquele espaco no qual acreditamos que Deus queira dirigir a sua Palavra diretamente a nos. A Palavra de Deus pode chegar através de um terremoto ou de um vento impetuoso, mas o profeta Elias nos ensinou que ela vem de preferen cia junto com a suave brisa matinal ou vespertina e que só quem está disponível, quem está no silencio profundo da mente e do coracáo, é que per cebe a sua delicada vibracáo1.

"O silencio é sempre belo, e o homem que fala é menos belo do que o homem que ouve". Feodor Dostoiévski (1821-1881) É esse o ABC do ensinamento do deserto: a consciéncia do objetivo verdadeiro, nao dos meios espetaculares e acessórios destinados a atingilo. A consciéncia também da humildade, do recolhimento e do silencio ne-

cessários ao progresso interior do asceta. Um exemplo preciso, extraído da Vida de Macario o Antigo, mostra claramente como se praticava e se comunicava o ensinamento.

Um discípulo veio um dia encontrarse com Macario o Antigo.

"Macario, que devo fazerpara salvar minha alma?". "Vai ao cemitério, insulta os mortos". O discípulo vai ao cemitério e insulta os mortos e volta a encontrarse com Macario. "Que disseram os mortos?", pergunta Macario. "Nada", responde o discípulo. "Volta ao cemitério e elogia os mor

tos". O discípulo volta ao cemitério, elogia os mortos e volta a ver Macario. "Que disseram os mortos?", pergunta Macario. "Nada", responde o discí pulo. "Sé como os mortos", disse Macario, "náojulgues ninguém e aprende a calar-te".

Esse texto ilustra admiravelmente a maneira como os anciáos, os "velhos na ascese", os gerontes, como eram chamados, comunicavam seu

ensinamento. Em poucas palavras e por analogías esclarecedoras. Pois os maiores desses anacoretas nao escreviam (sendo todos iletrados) e falavam pouco. Praticamente nada deixaram atrás de si, e os azares das escavacoes ou da historia nao estáo sos na origem desse silencio. Essa recusa de ensinar o que quer que seja pela via tradicional dos escritos, esse conselho de ser semelhante "aos mortos e as pedras" já indicam que aquilo que chegou até nos com os nomes de Antáo ou de Macario é taivez, em parte, apócrifo. A tarefa do santo é calar o que descobriu, e ensiná-lo só pelo exemplo de sua vida. A derradeira e última mensagem dos mestres do deserto é esse silencio no qual, voluntariamente, eles se fecharam. "É no silencio que nos podemos libertar de nossa superficialidade" (Georges Roux).

1 GUIDO I. GARGANO, Do Nascerao Pór-do-Sol. Sao Paulo: Paulinas, 1995, p. 21.

. Urna visita a igreja e ao claustro do Mosteiro

de Sao Bento do Rio de Janeiro, guiada por Dom Marcos Barbosa, OSB ao m dos sinos,

do órgao e das vozes de seus monga em canto gregoriano.

Quatrocentos anos de traballio e louvor em 20

minutos, frutos da paz e paciencia beneditinas. Roteiro e Locucjo: Dom Marcos Barbosa, OSB

S£s

Producjo: Mosteiro de Sao Bento do Rio de Janeiro

linaria" LUMEN CHRISTI'

Dom Gerardo, 40 ■ 5o andar



Cx Postal: 2.666 Cep: 20001-970

MOSTEIRO DE SAO BENTO Rio de Janeiro

Rio de Janeiro ■ RJ

TeL: (021) 291-7122 Fax:(021)263-5679 R$ 30,00.

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VI DE O

RENOVÉ QUANTO ANTES SUA ASSINATURA DE PR.

RENOVAgAOOUNOVA ASSINATURA 1997/1998: NÚMERO AVULSO

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