Ano Xxiii - No. 262 - Maio/junho De 1982

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Projeto PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)

APRESErsTTAQÁO

DA EDigÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa esperanca a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15).

Esta

necessidade

de

darmos

conta da nossa esperanca e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e

religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortaleca no Brasil e no mundo. Queira Deus abencoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site. Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos

convenio

com

d.

Esteváo

Bettencourt

e

passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo. A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e

zelo pastoral assim demonstrados.

"Origen!" Os Mandeus? "Ensaio de ática sexual" •

A atual situado da Igraja na U.R.S.S. Apelo em favor do P. Gleb Yakounine

t bom fazer promestas? A imagem da Virgem de Guadalupe? Questoet étieat relativas aos gravemente

enfermos e aos moribundos

"Sobre a morte e o morrer" "Perguntat e rsspostat

sobre a morte e o morrer" ANO JUBILAR - Maio-Junho - 1982

MAIO-JUNHO-1982

PERGUNTE E RESPONDEREMOS

N9 262

Publicapao bimestral

1957 - ANO JUBILAR - 1982

SUMARIO

Diretor-Responsável:

D. EstéVáb Bettencourt OSB

A NOVA EVA

publicada neste periódico

Um livro de valor informativo:

Diretor-Administrador:

O quarto Evangolho taré que ver com

Autor e Redator de toda a materia

"ORIGENS", por R. Leakey e R. Lewin. ...

D. Hildebrando P. Martins OSB

OS MANDEUS?

Administracáo e distribuicao:

"ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL".

157 158

'66

Um livro-desafio:

por Jaime Snoek

Edicoes Lumen Christi

Dom Gerardo. 40 - 5? and., sala 501 Tel.: (021) 291-7122

Caixa postal 2666 20001 Rio de Janeiro RJ

175

Muito em foco:

A ATUAL SITUACÁO DA IGRENA NA

U.R.S.S

!91

Dirigido a todos:

APELO EM FAVOR DO P. GLEB

YAKOUNINE

Entra as formas de piedada...

Pagamento em cheque nominal/visado

É BOM FAZER PROMESSAS? Quem conheee

ou vale postal as:

AIMAGEM DA VIRGEN! DE GUADALUPE?.

Edicoes Lumen Christi

No Ano do AnciSo:

QUESTOES ÉTICAS RELATIVAS AOS GRAVEMENTE ENFERMOS E AOS

Caixa postal 2666 20001 Rio de Janeiro RJ

MORIBUNDOS

198 202 208

213

Questáo vital:

'SOBRE A MORTE E O MORRER", por

E. Kübler-Ross ASSINATURA ANUAL- 1982

"PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE A*

Até maio Após maio

800,00 1.200,00

Após novembro

1.600.00

N? avulso

150,00

Assinatura cometa no mes da Inscripto

MORTE E O MORRER". por E. Kübler-Ross.

TEMARIO DO PRÓXIMO NÚMERO

263 - julho-agosto - 1982 Os perigos de urna guerra nuclear

Renove-a quanto antes

A familia crista no mundo de hoje Igreja, política efe Os métodos de meditacáo oriental e o

COMUNIQUE-NOS QUALQUER

cristianismo

MUDANCA DE ENDERECO

ComposicSo e impressSo: Marques-Saraiva

233

A experiencia do profissional:

"O poder infinito da sua mente" "Iniciacao á teología" "O homem á procura de Deus"

"Filosofía da ciencia" Ainda a confissao sacramental

241

A NOVA EVA A piedade católica sempre se voltou reverente para María SS. Essa piedade pode tomar formas sentimentais, mas também pode nutrir-se do sólido alimento da S. Escritura.

As primeiras páginas da Biblia apresentam urna mulher que, juntamente com Adáo, cai no pecado e acarreta para o género humano a morte. Eis, porém, que, logo ao prometer

a restauracáo da alianga violada, o Senhor Deus dirige-se ao tentador e lhe diz: «Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendencia e a déla. E a descendencia da mulher es-

magar-te-á a cabega» (Gn 3,15). É digno de nota que o Senhor Deus nao diz: «Porei inimizade entre o homem e o tentador», mas, sim: «... entre a mulher o tentador». Desta maneira, o Senhor quis fazer da mulher urna figura de relevo na res-

tauragáo do género humano. Através da mulher e da sua descendencia viria a salvagáo para o mundo. — A mulher,

no imediato contexto do Génesis, é táo somente Eva, a única

mencionada em Gn 1-3 (alias, observa oportunamente o autor

sagrado que o nome «Eva» significa «máe de todos os viventes»; cf. Gn 3,20). Continuando a folhear a Biblia, verificamos que a figura da máe que gera um filho portador da salvagáo em circunstancias especiáis se repete de vez em quando: é Sara que gera Isaque em condigóes singulares (cf. Gn 21, 1-7);

é a máe de Sansáo (cf. Jz 13, 1-25); é Ana, a máe de Samuel (cf. ISm 1, 20-28); é ainda Elisabete, a máe de Joáo Batista

(cf. Le 1, 5-25). Em todos esses casos, a Escritura póe em realce a mulher, e nao apenas o herói masculino, precisamente para mostrar que a salvagáo é dada ao homem gratuitamente;

a mulher estéril é feita, de algum modo, a máe da vida. Final

mente a fungáo da mulher cujo filho é, por excelencia, a

salvagáo, rcaliza-se em María SS. e em Jesús Cristo. Maria SS.

entáo aparece como a nova Eva, pela qual o Senhor quer dar

ao mundo a salvagáo; e a dá gratuitamente, pois Maria nao recebe do seu esposo José o fruto de suas entranhas, mas

recebo-o diretamente de Deus Pai; o Filho de Maria é o Filho de Deus. Deste modo Maria é a mulher por excelencia, a Máe

de todos os viventes, aquela de quem todo cristáo sabe ser filho extremado. Justamente estas consideragóes explicam que Jesús pendente da Cruz se tenha dirigido a Maria com estas

palavras: «Mulher, eis aqui o teu filho» (Jo 19,26). O apela tivo «mulher» no caso alude a Gn 3,15 e apresenta Maria como a máe de Joáo e a máe de todos os homens! Salve, Máe de misericordia!

— 157 —

E.B.

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

Ano XXIII — N' 262 — Maio-¡unho de

1932

Um livro de valor informativo:

"Origens"

por Richard E. Leakey e Roger Lewin

Em síntese: R. Leakey e R. Lewin publicaram "Origens", livro em que apresentam variado e ¡nteressante documentarlo sobre as origens dos primatas e do homem bem como a respeito da historia da humanidade. O livro termina chamando homens primitivos sobrepujaram os diante colaboracáo e solidariedade. A

leitura do livro

a atencao obstáculos

suscita algumas

para o falo de que os á sua sobrevivencia me

questóes filosóficas

referentes

a

"criacao e evolugáo", ao conhecimento intelectivo e á consciéncia psico lógica nos animáis infra-humanos... Na verdade, a nomenclatura das ciencias nalurais nao é a da filosofía. Por isto no artigo abaixo sao pro postas considerares das quais decorre que 1) criacáo e evolugSo nao se opóem entre si, 2) somen'.e tivo e consciéncia psicológica.

o

homem

possui

conhecimento

intelec

Comentario: Aparcceu rocentemente mais um livro sobre a origem do género humano, devido á pena de Richard Leakey,

que com seus pais explorou arqueológicamente a África Orien tal, e Roger Lewin, redator científico do New Scientistl. O subtítulo da obra expóe mais explícitamente o respectivo con-

teúdo: «O que novas descobertas revelam sobre o aparecimento de nossa especie e seu possivel futuro». Isto quer dizer que os

dois autores nño consideraram apenas o passado da especie hu mana com seus fósseis e sua pré-história, mas se interessaram também por conjeturas sobre o porvir da humanidade, tecendo a respeito algumas consideragóes filosóficas.

O livro é valioso pela carga de material informativo (ilus trado por fotografías e gráficos) que apresenta ao leitor; este é assim posto a par das mais recentes etapas da paleontología e antropología. Verdade é que os autores assumem posic.óes

um tanto materialistas a respeito do ser humano, pois, como i Traducao de Maria Luiz da Costa G. de Almeida. RevisSo e notas de Josó Maria G. do Almeida Jr. — Ed. Melhoramentos/Editora Unlversi-

dade de Brasilia,

1980,

264

pp., 210

x

255 mm.

— 158 —

«ORIGENS»

os pesquisadores da natureza em geral, so consideram os fósseis e os dados experimentáis. — Digno de mengáo especial é

o capítulo final da obra, em que Leakey e Lewin se detém sobre o possível futuro da humanidade.

Ñas páginas subseqüentes, aprcsentaremos alguns tragos importantes do estudo em questáo.

1.

O passatío do cjSnero humano

Os autores apresentam os seguintes dados referentes á pré-história:

Os primatas, tronco ao qual pertence o ser humano, teráo

feito sua aparigáo na terra há cerca de setenta milhóes de anos, na época paleocénica. Deste tronco desenvolveu-se, há cerca de doze milhóes de anos, o Ramapitheeus, que é o mais distante ancestral identificável do homem (ou o primeiro ho-

minídeo). O Australopitheeus africano, o Australopitecus bosei e o homo habilis, dando continuidade e evolugáo ao tron co, teráo surgido há cerca de tres milhóes de anos; prepara-

vam rudimentares instrumentos de pedra para a caga de ani máis e a coleta de raizes e frutas. Há um milháo de anos apro

ximadamente, teve origem outro tipo mais evoluido dito homo erectas. Mais recentemente, ou seja, por volta de 120.000 anos

atrás, apareceu o homo neanderthalensis, ao qual, há dez mil anos, sucedeu o homo sapiens sapiens.

Os autores da obra em foco reconhecem a enorme dificuldade encontrada por todo arqueólogo que deseje concatenar

entre si os diversos fósseis e assim reconstituir a pré-história da nossa especie; aguardam-se novos fósseis para poder tentar reconstituir melhor a seqüéncia dos diversos tipos que prece-

deram o homem moderno. «Nossa tarefa nao ó diferente da tentativa de juntar as pecas de um quebra-cabega tridimensio nal com muitas pecas perdidas, e com aquelas poucas que te

mos á máo, quebradas! O quebra-cabega é multidimensional, porque contra um fundo da evolucáo física de nossos ancestrais estamos tentando também construir urna imagem de seus padróes comportamentais e sociais» (p. 84). — 159 —

4

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Leakey e Lewin discorrem outrossim sobre a origem da

linguagem, sobre a consciéncia psicológica, sobre a consciéncia

moral e outras facetas da especie humana através dos séculos. A documentagáo aduzida será muito útil ao leitor. Interessa-nos neste contexto voltar a atencáo especialmente para os aspectos filosóficos da dissertagáo em pauta.

2.

Questoes suscitadas peto

livro

Vém ao caso duas questoes importantes. 2.1.

Cr¡a(6o

e evolu;5o

Quem estuda as etapas percorridas pelo homem a partir do primata primitivo do qual ele descende, poderia dar-se por descrente do relato bíblico, que parece ensinar a criagáo do ho mem por parte de Deus a partir do barro (cf. Gn 1, 26-28). Haveria, pois, que escolher entre criagáo (mensagem da Biblia

e da fé) e evolugáo (tese da ciencia contemporánea).

O problema tem sido mais de urna vez abordado em PR. Será de novo considerado em breves termos. Na verdade, nao há dilema entre o relato bíblico e as conclusóes da ciencia, pois aquele nao pretende enunciar alguma proposigáo de ordem científica; apenas apresenta verdades de ordem religiosa. Com efeito, a imagem do «Deus Oleiro» é freqüente ñas tradicóes dos povos primitivos; a estes era espon táneo comparar a Divindade com um oleiro, pois tal artesáo fornecia tigelas, jarros, potes e outros utensilios de primeira necessidade para a civilizacáo primitiva; tornava-se um referen-

cial de seus companheiros de tribo ou clá. O autor bíblico adotou, pois, a imagem comum entre os seus contemporáneos e, assemelhando Deus Criador a um oleiro, quis apenas enunciar urna proposigáo ou quis dizer que, assim como o oleiro está para o barro, assim Deus está para o homem. E qual o relacionamento do oleiro para com o barro? — O oleiro dispensa ao barro carinho, benevolencia, sabedoria, providencia, maes tría, dominio... Ora, tais predicados, Deus os exerce em relagáo ao homem: é o Grande Artífice a cujo amor o homem deve a existencia. Tal proposigáo filosófico-religiosa concilia-se fácil mente com qualquer tese científica que admita ser Deus o au

tor do composto humano. Na realidade, é mister distinguir — 160 —

«ORIGENS»

entre corpo (material) e alma (espiritual) do homem: aquele pode provir da materia viva preexistente por via de evolucáo, como descrevem os paleontólogos, ao passo que a alma huma

na, sendo espiritual, nao se origina da materia, mas é criada diretamente por Deus para cada individuo. Deus é o autor da

materia tanto como da alma humana; fica, porém, livre ao es

tudioso admitir que Deus tenha criado a materia caótica inicial e Ihe haja dado o potencial evolutivo que se foi desabrochando

aos poucos na historia da humanidade até chegar ao grau de organizacáo que é próprio do corpo humano. Para um paleon tólogo, cujo objeto de estudos sao os fósseis, esta tese filosófico-religiosa fica fora do ámbito de pesquisa; ele nada tem a Ihe opor. Precisamente pelo fato de só estudarem vestigios arqueo lógicos, os paleontólogos dáo a impressio de cair no materia lismo; as suas afirmacóes, porém, hao de ser completadas pelas reflexóes filosóficas ácima, como se dá no caso do livro que estamos analisando.

2.2.

Conheeimento intelectivo e consciénda psicológica

A leitura da obra «Origens» dá a entender que nos ani máis infra-humanos existem consciéncia psicológica e inteli gencia.

Eis alguns textos extraídos do livro em foco:

que

"Verifica-se que os chlmpanzés Invadem

se acreditava

exclusivo do homem:

a

aínda um outro dominio

consciéncia

do

eu.

Costu-

mava-se dfzer que muitos animáis sabem, mas que apenas os humanos sabera que sabem. Pelo menos para os chlmpanzés, Isto é sem dúvida urna injustica.

Num sentido humano, saber é ser autoconsciente.

Na sua

forma extrema, a autoconsciéncia se expressa em nocóes tais como alma, mas em sua forma simples significa apenas ser consciente de si próprio, como um Individuo entre os outros. O psicólogo americano Gordon Gallup demonstrou que os chlmpanzés sao conscientes de si mesmos, mediante

o simples expediente de colocar um chimpanzé em frente de um espeIho Logo se tornou claro, gracas a alguns testes criteriosos, que o animal reconhecia a si mesmo. E isso seria Impossfvel, a menos que o

animal estivesse plenamente consciente de que existe o eu. Na verdade, nunca podemos saber o que se passa na cabeca de um chimpanzé. como nunca podemos saber com exatidao o que se passa na mente de

qualquer outro ser humano" (p. 189 b).

— 161 —

6

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

A propósito convém observar: a terminologia da psicolo gía experimental e das ciencias naturais geralmente difere da nomenclatura da filosofía. Em conseqüéncia, os estudiosos das ciencias naturais falam de inteligencia e consciéncia psicológica nos animáis infra-humanos em sentido diverso daquele que a filosofía atribuí a estes vocábulos. Para a filosofía aristotélico-tomista, inteligencia e cons

ciéncia psicológica se prendem á espiritualidade da alma; esta é distinta do corpo, pois é incorpórea; é, por si mesma, imortal e constituí o grande fundamento da dignidade humana; a alma espiritual unida ao corpo constituí a pessoa humana, a qual se atribuem direitos indevassáveis ou os chamados «direitos hu manos». Ora tal ordem de coisas póe o homem ácima dos demais animáis nao apenas por uma diferenga de graus na mes ma escala, mas, sim, por uma diferenga de escala. Procuraremos demonstrar melhor que a espiritualidade e,

por conseguinte, a inteligencia e a consciéncia psicológicas sao próprias do ser humano. O fato de que o homem, e somente o homem, possui uma alma espiritual, dotada das propriedades ácima, deduz-se do

seguinte raciocinio.

2.2.1.

Conhecimento intelectivo

O conhecimento intelectivo apreende objetos nao materiais ou imateriais. Com efeito, a)

a inteligencia

conhece seus objetos,

abstraindo de

todas as determinacóes que a materia lhes comunica: extensáo, cor, figura, circunstancias de espago e tempo... Assim conhecemos o triángulo como tal (independentemente do tamanho e da localizacáo do mesmo), o ser humano (independente mente de sexo, idade, peso, altura...).

b) A inteligencia também conhece objetos que nao conotam corporeidade alguma: a honra, o dever, a beleza, a justiga, Deus... Quais seriam a cor, o peso, a extensáo, a forma do dever, da honra, da beleza, da justiga, de Deus...? — 162 —

«ORIGENS»

c) A inteligencia também conhece relagóes... como a relagáo de igualdade ou identídade (2a -f- 2a = 4a). Tal relacáo nao tem cor, nem peso, nem tempo próprio nem espago

circunscritivo; a inteligencia, porém, a percebe e apreende. Pode-se destruir com bombas um edificio ou uma ddade; todavia nenhuma bomba pode destruir a equagáo; 2a + 2a = 4a ou o teorema de Pitágoras ou alguma relagáo de verdade ou falsidade. Nao obstante, a inteligencia capta tais relagóes ou tais objetos — o que significa que a inteligencia nao é corpórea como as bombas, e por isto pode apreender objetos incorpó reos.

O mesmo se diga no tocante as relacóes de meio para fim, de modelo para artefato..., que regem a técnica e o progresso humano. O homem, quando deseja chegar a um objetivo, prevé aquilo que aínda nao existe, e em relagáo áquilo que aínda nao existe (mas que ele quer que exista) estuda os meios adequados e concebe o respectivo modelo. Por isto nao é casualmente que só o homem progride, á diferenca da abelha, do castor ou do macaco: só o homem tem inteligencia capaz de captar as relacóes abstraías (indispensáveis ao progresso). d) Somente a inteligencia humana conhece a moralidade, isto é, as relagóes que intercedem entre cada ato humano e a finalidade suprema da vida humana; se há correspondencia entre o ato humano e tal finalidade, o ato é moralmente bom; se há incoeréncia, o ato é moralmente mau. Ora tais relagóes nada tém de corpóreo ou material; nao obstante, a inteligencia humana as conhece.

Estas observagóes até aqui propostas significam que a própria inteligencia humana (faculdade que conhece relacóes

e objetos imateriais) é imaterial ou espiritual. Por conseguinte, também é imaterial ou espiritual a alma humana, sujeito pró prio da inteligencia; a alma humana nao pode ser material,

porque, se o fosse, nao seria apta a atingir o imaterial como objeto de seu conhecimento.

Mais: o animal irracional é incapaz de conceber nocóes

abstratas, perceber relagóes de ordem imaterial, calcular, estabelecer proporgóes entre meios e fim, progredir em seu modo de viver (criando sua «civilizagáo»)... Por isto deve-se dizer que o animal racional tem um principio vital ou uma alma que ó material; o objeto do conhecimenlo desta sao apenas as

realidades materiais, concretas, dimensionais, extensas... — 163 —

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

2.2.2.

Consciénda

psicológica

Ter consciénda psicológica significa, para mim, saber que sei ou conhecer-me a mim mesmo. Este conhecer-se a si mesmo supóe que a inteligencia se volte para si mesma, isto é, seja simultáneamente sujeito que conhece, e objeto que é conhecido. Tal operagáo só pode ser realizada por urna faculdade nao ex

tensa, nao orgánica, ou por urna faculdade incorpórea, espiri tual. Com efeito; toda faculdade orgánica é extensa e conhece de modo extenso: urna de suas partes pode-se por diante de outra (urna se torna sujeito, e a outra objeto), mas o todo nunca se póe diante de si mesmo, nem urna parte diante de si mesma x.

Por conseguinte, verifica-se, mais urna vez, que o homem é dotado de alma espiritual, sede da faculdade intelectiva, que é espiritual. Na verdade, o animal infra-humano nao goza de reflexáo sobre si mesmo ou de consciéncia psicológica. Nao há experien cia que o comprove apodicticamente. A alegacáo de que um chimpanzé reconhece a sua própria imagem num espelho, nao quer dizer que ele tem consciéncia psicológica, mas significa apenas que a associa^áo de imagens o leva a perceber que a imaeem apresentada pelo esoelho tem os tragos do seu próprio

corpo. Tal ausencia de autoconhecimento se deve ao fato de

que o principio vital dos infra-humanos é material ou nao es piritual.

3.

O futuro da humanidade

Os autores do livro «Origens», considerando a pré-história do género humano, afirmam que os antropóides e os homens primitivos só puderam evoluir e aperfeigoar-se cultivando a solidariedade entre si. Houve, sem dúvida, agressividade no decorrer da historia da humanidade; esta agressividade, po-

10 que dizemos pode ser ilustrado pela ¡magem da serpeóte que se volta para si mesma; a boca morde a cauda, mas o todo da serpente

nao morde o todo da serpente.

zar-se se a serpente nao

fosse

Esta última hipótese só poderia reali

corpórea ou

— 164 —

extensa.

«ORIGENS»

rém, nada tem de congénito:

«De modo geral, a nogáo de

que os homens sao agressivos por natureza é insustentável. Nao podemos negar que os humanos do sáculo XX demons-

tram urna boa dose de agressividade, mas nao devemos apon-

tar para o nosso passado evolucionarlo, seja para explicar origens da agressáo, seja para desculpá-la» (pág. 221). guerra nao decorre dos genes do ser humano (pág. 243). Os dois dentistas também mostram que o conceito ragas é relativo; portante nao justifica a discriminacáo e conflitos entre os homens:

as A

de os

■'Sem dúvlda, a discriminagSo entre os assim chamados brancos e os assim chamados negros tem gerado urna das mais serias ameacas á paz duradoura no nosso mundo. A parte os argumentos esteréis e vazlos sobre a suposta disparidade intelectual entre brancos e negros, a divisáo da humanidade nessas rígidas categorías é, em si mesma, total mente sem sentido. Na reaüdade, nao há pessoas verdadeiramente negras ou verdadeiramente brancas. Sem dúvida, o grau de pigmentario da pele difere ñas populacdes das diferentes partes do mundo. A funcáo da pigmentacáo, como protecfio contra os raios ultra-violetas do sol, exige que assim seja; á medida que se caminha para o equador, aumenta a invasáo de raios ultra-violetas, exigindo maior protecao. Portanto é de se esperar que as populacdes estabelecidas, há longo tempo, perto do equa dor sejam mais pigmentadas do que aquelas que vivem longe dele. Isto entretanto produz diferentes tonalidades de marran, nao apenas de preto e branco" (págs. 240s).

Na base destas verificacóes, Leakey e Lewin julgam que a humanidade contemporánea deveria voltar a cultivar o espi rito de solidariedade e colaboracáo que

assegurou aos seus

remotos antepassados a Dossibilidade de vencerem a luta em

prol da subsistencia e criar sua civilizacáo. Caso estes sentimentos nao ressurjam dentro dos homens contemporáneos, a

humanidade estará a caminho da sua autodestruicáo; ela mesma utilizará sua inteligencia e seus talentos para por fim

á sua historia após 50.000 anos de existencia — o que quer

dizer: em idade de crianga, segundo as perspectivas da biología.

Afirmam ainda os autores que o futuro da humanidade depende de dois fatores: o relacionamento solidario dos homens

entre si e o relacionamento dos mesmos com o meio ambiente (cf. pág. 254). Com efeito, a natureza tem sofrido dolorosa

depredacáo inspirada pela ambigáo desordenada dos seus habi tantes; ém vez de pensar no bem comum e ñas geragóes vin-

douras, muitos e muitos se preocupam exclusivamente com a conquista egoísta do mundo.

Vé-se, pois, que o passado remoto da especie humana é rico nao somente em documentos pré-históricos e históricos, mas também em ensinamentos de valor ético. Assimilá-los e

pó-los em prática vem a ser questáo de vida ou morte para a humanidade. — 165 —

O quarto Evangelho terá que ver com

Os Mandeus?

Em sintese: Os mandeus (ou nazarenos ou sebeus) constituem urna seila de origem obscura; tal vez proceda de um núcleo iraniano pré-cristáo. No decorrer dos séculos parece ler assimilado concepc6es dos crístSos e dos gnósticos. Os seus llvros só chegaram á forma definitiva no século Vil, depois do surto do islamismo, pois neles se nota influencia do linguajar muculmano. As doutrinas professadas pelos mandeus, devidas á evolucSo histórica da seita, constituem um amalgama confuso, om que se percebem o dualismo Iraniano e gnóstico, o monoteísmo cristáo, assim como diversos conceitos fantasistas e místicos. Dada a afinidade literaria de certas passagens dos escritos mandeus com os do IV Evangelho, alguns autores cristSos críticos tentam estabelecer a dependencia deste em refació aqueles. Tal tese é Inconsistente, pois se baseia em conjeturas, tentativas de reconstrucfio de textos e de episodios, postulados pré-concebidos..., que tiram os foros de probabilidade a tal teoría.

Comentario:

O tema «Mandeísmo» é assaz complexo e

obscuro. Tem importancia, para os cristáos, porque, segundo alguns historiadores, os escritos mandeus poderiam ter pontos comuns com o quarto Evangelho, atribuido a S. Joáo. A crítica liberal moderna, encabezada por Lidzbarski, Reitzentstein, Bultmann..., chega a afirmar a dependencia deste em relagáo aqueles. Eis por que, ñas páginas subseqüentes, proporemos algo sobre: 1) o histórico e os escritos dos mandeus; 2) relagóes com o IV Evangelho.

1. 1.1.

Histórico e escritos dos mandeus

Histórico1

Ñas regióes meridionais da Babilonia

(fraque de hoje)

habitavam, no inicio da era crista, os membros de um agru-

pamento religioso pequeño que, no plano da doutrina, parece ter ficado entre o Cristianismo nascente (monoteísta) e o

1 Se tulo

o

leitor

nao dispuser

de lempo,

1.2.

— 166 —

passe

logo

para

o

subtí

QUEM ERAM OS MANDEUS?

11

dualismo gnóstico (rico em concepcoes fantásticas, personiflcagóes de objetos e outros produtos da imaginacáo). Hoje estáo reduzidos a poucos milhares, também chamados «Sabeus» ou «Dositeus» ou «discípulos de S. Joáo (Batista)» ou aínda, como preferem os próprios interessados, «Nazoreus» (Nasuraiia).

A designagáo mandeus vem do aramaico manda (= conhe-

cimento ou gnose); mándeos, portante, seriam es conhecedores

ou gnósticos. É este apelativo que prevalece na linguagem dos estudiosos recentes; significa a vinculacáo de tal grupo reli gioso com os gnósticos dos sáculos n/m, que afirmaram ter exclusivamente o conhecimento dos segredos do mundo invisível.

A origem do mandeísmo é assaz obscura. Conhecemos a

seita através de seus escritos, redigidos em dialeto aramaico, entre os quais sobressaem o Ginza (Tesouro) ou Sidra rabba (= o Grande Livro) e o Livro de Joáo ou Sidra de Jahja, que contém um diálogo de Jesús com Joáo Batista. A compilagáo

dos livros sagrados dos mandeus data do inicio do imperio is lámico ou do ano de 700 d.C. aproximadamente; muitas secgóes desses escritos contém alusóes a Maomé e á difusáo da sua mensagem — o que significa que sao posteriores ao aparecimento do Isla. A historia das tradicóes mandéias anterior a 700 é objeto de conjeturas e teorías incertas K Há estudiosos que admitem ser possível acompanhar tais tradicóes até o comeco da era crista ou mesmo mais recuadamente. É preci samente por causa disto, e em tal contexto, que se discute a

questáo das relagóes do mandeísmo com o IV Evangelho.

As conjeturas mais ousadas partem do nome Sabeus, que

no Coráo serve para designar os membros da seita mandéia. Saben quer dizer propiciamente «aquele que batiza». — Ora S. Epifánio (t 403) menciona os Sebouaioi (Sebeus) como

sendo sectarios da Samaría anteriores ao Cristianismo; tais sectarios parecem identificar-se com

os

hemerobatistas ou

batizadores quotidianos, que, segundo antigos autores cristáos de língua grega, batizavam ñas regióes do Jordáo antes de Cristo. Até mesmo a tradicáo judaica talmúdica refere-se a esses «batizadores matinais». Mais: os antigos autores cristáos i Deve-se notar aínda que nenhum manuscrito dos livros hoje existentes é anterior ao século XVI.

— 167 —

mandeus

12

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

mencionam também os masbotous, cujo nome hebraico deri

vado de tsabá também quer dizer «batizadores». Seriam os

próprios sebeus ou hemerobatistas ou batizadores matinais,

segundo conjeturas dos mais recentes estudiosos. A tradicáo menciona outrossim os moughtasUas, cujo nome árabe signi fica «batizadores» e que se encontravam na Mesopotámia por volta do ano 200; os moughtasilaá davam-se por discípulos de um certo ElchasaL

Como se vé, nos escritos dos decenios anteriores e poste riores a Cristo há mengáo de varios grupos de «batizadores», designados por diversos nomes. É nesse conjunto de correntes religiosas caracterizadas pela administragáo do Batismo que

os pesquisadores modernos querem descobrir as origens do mandeísmo. Em verdade, porém, nada se pode afirmar de se guro a respeito. A data de aparecimento dos mandeus como seita autónoma nao pode ser indicada com precisáo, visto o emaranhado de noticias isoladas, um tanto lacónicas, que en

contramos na tradigáo crista e nao crista sobre grupos «ba tistas» ou «batizadores».

Os livros mandeus hoje existentes revelam certa evolucáo no pensamento religioso da seita — o que mostra que só aos

poucos este se foi cristalizando. Eis as etapas que bons autores assinalam na formagáo do sistema mandeu: 1) Estágio babilónico e sirio, influenciado por crengas da india, em que predominava o politeísmo pré-cristáo;

2) Estágio semicristáo: elementos do Novo Testamento se mesclam aos do politeísmo; a nomenclatura dos personagens

mitológicos se enriquece com numerosos nomes biblicos; 3)

Contagio persa e parsista: aos tragos de politeísmo

primitivo, aos quais sobreveio o monoteísmo do Novo Testa

mento, se acrescenta o dualismo persa (haveria dois principios antagónicos: o do Bem e o do Mal);

4)

Estágio em que passa a predominar a figura do Rei

da Luz. Tal parece ser a forma ortodoxa do mandeísmo, apregoada pelos grandes tratados do Ginza; 5) Monoteísmo, com a invocagáo de Allaha; é a forma recente do mandeísmo, inspirada nitidamente pelo islamismo. — 168 —

QUEM ERAM OS MANDEUS?

1.2.

13

Doutrina

Quem lé os escritos dos mandeus, verifica que fundem entre si concepgóes teológicas, mitos, normas éticas, preceitos rituais e narragóes, cujo valor histórico é altamente discutível. Precisamente por causa da evolugáo por que passou o roandeísmo, carecem de unidade doutrinária e consistencia: nao apresentam nem monoteísmo coerente nem dualismo exato;

predominam, porém, os tragos de dualismo (haveria dois prin cipios antagónicos entre si: o do Bem e o do Mal) semelhante ao dos maniqueus da Pérsia. Em síntese, segundo os mandeus, existe um reino da luz, chefiado pelo «Grande Rei da luz» ou a «Grande Vida». Há também um reino de trevas, governado por Ruha d'Kudsha (= o Espirito Santo) e seus filhos, que sao os planetas e os

demonios do Zodíaco. O mundo presente é o campo onde sé chocam estes dois reinos.

O Demiurgo (ou plasmador) do mundo pertence ao reino da luz, mas tem algo de louco e temerario. Com a permissáo dos seres da luz, fez do caos primitivo de trevas o nosso mundo, que tem elementos de luz, mas que Buha e seus filhos

constantemente perturbam," prejudicando a obra da luz. A

alma do homem é enviada do reino da luz a este mundo pela Grande Vida; o corpo é formado pelos filhos das trevas. Assim a alma no corpo e no mundo é prisioneira atormentada pelos poderes das trevas. Só poderá Iibertar-se mediante a morte. Mas aínda assim tem que lutar após o desenlace para conse

guir chegar ao reino da luz; com efeito, ao deixar o corpo morto, a alma tem longa caminhada a percorrer, durante a qual passa por urna serie de prisóes (Mattaratha); em cada urna destas há um demonio a espreita para prendé-la; trata-se

de urna especie de fiscal, que só a deixa passar caso esteja totalmente isenta de culpas.

Só pode passar incólume por esses fiscais a alma que de antemáo tenha sido preparada. Essa preparagáo consiste essencialmente na administragáo de um batismo ritual e na revelagáo de um mito portador de salvagáo.

— 169 —

14


O batismo é ministrado em agua viva (corrente); é freqüentemente repetido, pois somente por meio dele a alma se torna ou se conserva pura das manchas da materia e é pene trada pelo poder da luz. A pessoa batizada veste uro traje branco que simboliza as vestes luminosas trajadas pelos seres celestiais.

O mito revelado ao iniciado é o seguinte: existe um per-

sonagem chamado Manda d'Hayyo (= Conhecimento da Vida), filho da Grande Vida, que desceu do reino da luz para este mundo e conseguiu voltar para aquele, atravessando as prisóes do espago, e vencendo os respectivos guardas demoníacos. Para poder vencer, esse divino ser, antes de sua descida, recebeu o batismo, a veste, a coroa, o cetro e o aperto de máo cerimonial dos cidaáos do mundo da luz; assim preparado, desceu sem medo e retornou incólume a patria da luz. Ora o batismo mandeu é concebido como repetifiáo do rito que

assegurou a vitória ao ser divino Manda d'Hayye; comunica ao iniciado a forca para obter semelhante vitória. A descida e a subida de Manda d'Hayye ocorreram antes que o homem existisse.

Ao narrarem a historia do mundo, os mandcus mencionam o primeiro casal — Adáo e Eva. Um dos descendentes deste, chamado Nbu (Hermes, o planeta Mercurio) ou também Cristo, se revelou como «Jesús o Salvador» e declarou: «Eu

sou Deus, o Filho de Deus» (Ginza 1.200s). Veio «vestido de fogo», caminhava em forma corpórea, embora nao tivesse corpo verdadeiro; curou doentes, e

ressuscitou os mortos.

Contemporáneamente a Jesús viveu Johana, filho do velho

Zacarías, que batizou Jesús Cristo. Houve, porém, oposicáo entre Jesús e Johana, pois, como dizem os mandeus, aquele deturpou as palavras do Batista e alterou o batismo no Jordáo. Como se vé, estes dados tém sua afinidade remota com tragos dos Evangelhos canónicos. Daí as perguntas: como se

relacionam entre si os escritos mandeus e os livros do Novo

Testamento? Existe dependencia entre uns e outros? Em caso positivo, como entendé-la?

Para responder a estas perguntas, alguns críticos propóem a teoría exposta a seguir. — 170 —

QUEM ERAM OS MANDEUS?

2. 2.1.

05

Urna tentativa de interprétaselo

A teoría

M. Lidzbarski, R. Reitzenstein e R. Bultmann formulara a seguinte explicagáo dos dados literarios: O mandeismo, com suas variadas afirmagóes e facetas, se

reduz a um mito ligado com o antigo misterio iraniano da redengáo: o dualismo, ou seja, o antagonismo entre o espirito

e a materia, juntamente com a tese da libertagáo do espirito preso á materia, seriam de origem iraniana. Tal mito é précristáo; estaría no cerne da doutrina crista, principalmente como é exposta pelo quarto Evangelho e as correntes gnósticas

dos séculos n/III K Joáo Batista, filho de Zacarías e Elisabete, terá tido partes importantes na formacáo da doutrina mandéia a partir do mito iraniano.

O ritual dos mandeus, que muito valoriza o batismo, também terá sido promulgado por Joáo Batista. Este haverá dado origem a urna seita joanita e batista mencionada em At 18,24-19,7; nesta passagem, com efeito, há mengáo de dis cípulos esparsos pela Asia Menor por volta de 55-57 d. C, que só conheciam o Batismo de Joáo. Os mandeus, que aparecen)

nítidamente através

de escritos

cujos últimos

retoques se

devem ao século VIH, seriam os continuadores da seita dos

joanitas. Por sua vez, o Cristianismo terá sido oriundo da seita batista dos joanitas; seus membros eram chamados «nazare nos», nome que os mandeus atribuem a si próprios ñas suas

escrituras. Jesús, discípulo de Joáo, terá assumido esta desig-

nagáo e a haverá conferido ao grupo de seus discípulos. Por conseguinte, joanitismo-mandeísmo e Cristianismo seriam duas correntes afins entre si (este derivado daquele), mas rivais; tais rivalidades transpareceriam no quarto Evangelho, onde se percebe a intencáo de mostrar a inferioridade de Joáo Batista

em relagáo a Jesús: cf. Jo 1, 6.15.30; 3,22-27.30.

De modo especial, para Bultmami, o quarto Evangelho é

urna versáo crista do mito existente na seita batista (nazarena

ou mandéia); nessa versáo Jesús aparece como o Mensageiro

mente

1 Note-se que as correntes gnesticas nao se deri/am exclusiva do Cristianismo, mas sao um amalgama dualista constituido por

doutrinas orientáis,

gregas e

bíblicas.

— 171 —

16

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Divino que desee do céu e de novo sobe para a salvagáo dos

homens. O núcleo de idéias originarias do IV Evangelho seria

mais primitivo do que a mensagem dos sinóticos, que, no caso, sao tidos como produto da reacáo judaica ao mito iranianomandeu. — Em confirmacáo de sua tese, Bultmann cita: 1) as afirmares do IV Evangelho que tencionam afastar do primeiro plaoo Joáo Batista numa atitude tida como polémica;

2) certa afínidade de linguagem entre o IV Evangelho e a literatura mandéia; 3) varias afirmagóes sobre Jesús no IV Evans;elho que podem ser comparadas eom semelhantes afirmagóes sobre as figuras divinas do mandeísmo. Pergunta-se: 2.2.

Que dizer?

Varias observacóes se devem fazer a tese crítica exposta: 1)

Antes do mais, note-se que os escritos mandeus re-

sultam da evolugáo de um cerne de doutrinas cuja origem é

obscura e cujo curso difícilmente se pode reconstituir.

Os críticos, para formular suas teorías, baseiam-se sobre hipóteses e conjeturas quanto á historia das idéias iranianas, gnósticas, mandéias.... quanto as datas dos textos aduzidos e quanto aos próprios dizeres de tais textos. Referindo-se a Reitzenstein de modo especial, nota C. H. Dodd: "Todo o processo de reconstrugáo é urna obra-prima de engenhosidade característica, mas depende de suposicóes por demais arbitra

rias...

é preciso ter sempre

em

mente que

estamos comparando com

os Evangelhos nio um documento existente, mas um

texto reconstruido,

do qual já íoram eliminadas as provas de origem tardía.

é especulativa demais histórica"

A reconstrucao

para fomecer urna fonte fidedigna de Informacáo

(A interpretacáo

do quarto

Evangelho, págs.

1658).

2) Urna vez suposto que haja semelhanga de dizeres entre os documentos mandeus e o quarto Evangelho, nao se segué que este seja dependente daqueles. Sabe-se que os es critos mandeus nao podem ser atribuidos a urna só data, mas á evolucáo que perpassa séculos (até o sáculo VIÜ).

De modo especial pergunta-se: o quarto Evangelho atribuí enorme importancia ao Espirito Santo e á Encarnagáo do Logos; como poderá depender de urna fonte na qual o Espirito Santo é principio do mal e a Encarnagáo um absurdo? Na verdade, como se verá adiante, sao os escritos mandeus

que parecem depender do Cristianismo. — 172 _

QUEM ERAM OS MANDEUS?

17

3) Se Joáo Batista estava ligado aos mandeus, como grande mestre desta seita, e se algo dos escritos mandeus data da época de Joáo Batista, é de estranhar que nestes nao se encontrem mais dados biográficos referentes ao Batista; na verdade, os livros mandeus apenas referem parte do que os Evangelhos narram a propósito: o nascimento de Joáo B. e o ministerio batismal; fora destes dados, nao há um relato mandeu que contribua para se conhecer melhor a biografía e a figura do Batista; nem a morte do Batista narrada pelos Evangelhos é descrita nos relatos mandeus.

4) Digno de nota é o nome do Batista ocorrente ñas escrituras mándelas: traz a forma árabe Jahja, com a qual Joáo é designado no Coráo. Ora este fato sugere que muitas das alusóes a Joáo, particularmente no livro de Joáo, pertencem ao período islámico (sáculo vn/VIII). Donde se deduz a suposigáo de que a proeminéncia de Joáo B. nos escritos man deus se deve a acréscimos tardíos. Estes se explicam do seguinte modo: os conquistadores mugulmanos consideravam como

pagaos os homens que nao pudessem apresentar um

livro sagrado e um profeta. Ora os judeus apelavam para o Antigo Testamento e Moisés; os cristáos, para o Novo Testa mento e Jesús; em conseqüéncia, os mandeus compilaram os

seus escritos sagrados e apresentaram Joáo B., que é citado com venaracáo no Coráo, como seu fundador. Neste caso as

informagóes sobre Joáo, com excegáo do que se assemelha

a contos fantasistas, teráo sido extraídas do Novo Testamento.

Observe-se que é principalmente no Livro de Joao que o Batista assume o seu lugar como profeta e mestre dos mandeus e é

neste mesmo livro que a forma árabe Jahja ocorre constan temente junto com Johana,

5) Quanto ao rito do Batismo, era táo amplamente difundido e usual na antiguidade pré-cristá que difícilmente se pode dizer que o Batismo cristáo seja estritamente inspirado pelo Batismo de Joáo ou dos iranianos.

Mais: o Batismo mandeu era freqüentemente administrado á mesma pessoa. Ao contrario, o Batismo de Joáo era rito escatológico1 e único, pois proporcionava a entrada na comu-

nidade dos que se preparavam para o juízo de Deus sobre os homens.

i Era rito assoclado á expectativa de ¡mínente Irrupfáo do Reino de Deus.

— 173 —

18

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Note-se ainda: a única prova, fora do mandeísmo, para

demonstrar a existencia de tuna seita especifica dos seguidores

do Batista é o texto de At 18,24-19,7; ora nesta passagem nao há indicio de que Apolo ou os doze homens de Éfeso adminis-

trassem o batismo repetidamente, em vez do batismo único. Sabe-se, porém, que a repetigáo do batismo era importante para os mandeus. Donde concluí Dodd: "Em

vista destas

considerares,

a

conexao entre

Joio

e

os

man

deus comeca a revelar-se frágil. Com efeito, nao há necessidade de recorrer a um fundador individual para explicar o rilo batismal mandeu. Lustracdes rituais freqüentes eram comuns em muitas religioes antigás, inclusive no judaismo" (ob. cit., p. 169).

Ponderadas estas proposigóes, pode-se dizer, com os estudiosos mais abalizados de nossos dias, que «os pretensos

paralelos extraídos do conjunto literario mandeu nao tém valor nenhum para o estudo do quarto Evangelho a nao ser que possam ser reforcados por provas mais primiti vas»

(p. 177).]

O quarto Evangelho hoje em dia é profunda e amplamente estudado, de modo a ser reconhecido como obra da escola do Apostólo S. Joáo; supondo longa tradigáo oral, a mensaeem

do quarto Evangelho chegou & sua forma definitiva em fins do século I. Esta data tardía permitiu ao evangelista levar em

conta nao somente os frutos de prolongada experiencia de vida crista, mas também certos traeos característicos do ambiente da Asia Menor do século I. Assim o quarto Evangelho tem suas notas bem peculiares, que se podem e devem compreender como auténtico eco da pregacáo de Jesús também consienada pelos sinóticos. A interpretado a partir do mande'smo vem a ser artificial e despropositada, elém de carecer de fundamento adequado. A

o»¡sa

de

bibliografía:

BALLARINI. T. Introduc3o a Biblia, vol.

IV, Petrópolis 1972.

BULTMANN. R. Zeltschrift fuer neutestamentliche Wissenschaf* XXIV

(1925).

nágs.

100-146.

BURKITT. F n. The Mandaeans, em Journal of Theologlcal Sludies 29

1927s,

págs. 224-235.

DODD. C.

H.

Interpretado do

Quarto Evangelho.

Sao Paulo

1977.

LIDZBARSKI, M., Das Johannesbuch der Mandáer. Giessen 1915. ÍDEM. Glnza, der Schatz oder das grosse Buen der Mandaer. Leipzia 1925. REITZENSTEIN, R., Das manaische Buch des Herrn der Grosse, em SHzungsberichte der Keldelberger Akademle der Wissenschaft 1919.

1 O autor observa em nota

Mándeteme et Ihante.

que o estudo do racionalista Loisy, Le

les origines chrétiennes

(1934)

— 174 —

chega

a

conclusSo seme-

Um livro-desafio:

"Ensaio de Ética Sexual'1 por Jaime Snoek

Em síntese: O Pe. Jaime Snoek publicou um ensato..., ou seja, um livro cujas sentengas sao oferecidas ao público para discussüo e debate.

O presente artigo tenia aponlar o que tal livro tem de positivo e o que aprésenla á discussáo dos estudiosos. O principio básico, do qual se deduzem as conclusSes mais "avanzadas" da obra, é considerado atentamente: dá margem a certo subjetivismo ético ou a urna ética da situacSo, que nao se coaduna com os principios da Moral católica. Conclusdes aberrantes sao deduzidas do subjetivismo ético que inspira o livro.

Comentario: O Pe. Jaime Snoek, professor de Ética Sexual na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), lancou

em 1981 um livro que tem despertado a atencáo dos estudio sos x. Aborda, de maneira assaz erudita, os assuntos atinentes a sexualidade, propondo sentencias novas, assaz diversas das da Moral católica tradicional. O livro resulta do estudo de ampia bibliografía recente sobre o assunto; é, pois, altamente informativo. Nao pretende chegar a conclusóes definitivas; por

isto tem o título de «Ensaio...» (cf. p. 287).

Abaixo apresentaremos urna síntese do livro, á qual se seguirá urna apreciacáo crítica.

1.

O livro: aspectos positivos

Pode-se dizer que a obra compreende duas partes. A primeira exoóe o modo como a sexualidade tem sido considerada

através dos sáculos (págs. 16-44); depois do que aborda os aspectos biológicos (pp. 45-52), sociológicos (págs. 53-74), psicológicos (págs. 75-103), religiosos (págs. 105-116) e filo1 Ensaio de Ética Sexual, por Jaime Paulo 1981, 298 págs., 120 X 200 mm.

— 175 —

Snoek.



Ed.

Paulinas, SSo

20

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

sóficos (págs. 117-136) da sexualidade. A segunda parte é propriamente de índole ética, voltando-se para as diversa» facetas da problemática sexual: homossexualismo, relac.5es pré-matrimoniais, masturbagáo, etc.

Em sua primeira parte, a obra tem passagens interessantes, por apresentar a sexualidade no contexto das ciencias

humanas — o que nao acontece sempre nos manuais de Ética. Por exemplo, merecem realce

1) as ponderagóes sobre o pudor ou a defesa da intimidade pessoal (págs. 158-161); o autor mostra que esta é natural e espontánea ao homem, de modo que qualquer campanha nudista violenta o ser humano:

"Creio que o homem difícilmente abandonará o uso da veste. Um excesso de estímulos costuma provocar urna Inibicao do respectivo centro sensorial. A monotonía do som provoca o sonó. Excesso de estímulos eróticos também causa inibicao... Urna das funcoes da veste é, portanto, criar urna certa distancia e conservar urna salutar tensio entre os

sexos...

(A veste) é sempre um sinal do estar-em-relacSo... o que é

2)

Também sao dignas de nota as reflexóes sobre a táo

o

dinamismo

mesmo da sexualidade"

(p.

161).

propalada necessidade de sexo: "Observou-se que nem a conduta sexual dos animáis se explica so pelo instinto, pelo mecanismo Estlmulo-Resposta: há (atores exógenos em jogo, algo de ImitacSo e aprendizagem.

— É impossível sustentar que a necessidade sexual é única. Se é verdade que existem maniacos sexuals, Casanovas e Oom Juans, n§o é

menos verdade que a vida de Buda, de Sócrates, de Jesús de Nazaré, de Ghandi, de Che Guevara, tinha outra fonte como simples 'sublimacSo' é ridículo.

inspiradora.

Explicar

isto

— Alias, a sexualidade nem ó necessidade. Como já disseinos: nlnguém morre por falta de sexo. Pode morrer por falta de afeto. Marc oraison afirma que o sonho erótico nüo tem sua origem num excesso de

liquido espermátlco, mas em estímulos exógenos, gravados durante o dia.

— A influencia exerclda por hormón ios ou outros estímulos endógenos sobre o desejo sexual humano é muito reduzlda, como foi demonstrada por Lederberg (Premio Nobel de 1958). Quase Independe deste -.¡ecanlsmo. Muito mals determinantes sao os estímulos exógenos. Existem culturas muito erotizadas como a nossa hoje, e outras pouco erotizadas, como a dos Dani, pesquisada recentemente por Karl Heider: nao há sexo

pré-matrimonial nem extra-matrimonial, tam pouco se relacionam scxualmente os parceiros nos primeiros dois anos de casamento, nem duranto os seis anos posteriores ao parto. Apesar disto, é um povo dcscon traído e alegre (TIME, 2/08/1976). Conclusdes: se e enquanto existe necessidade sexulal, ela resulta de condícionamento pessoal e/ou cultural.

— 176 —

«ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

21

A analogía com a fome nao procede. Há muita diferenca entre 8

fome e o desejo sexual. Aquela provém da deficiencia de determinados elementos químicos no sangue; esta, se e enquanto endógena, de um acréscimo hormona); na fome o individuo procura livrar-se de urna tens&o, no sexo

procura

exatamente

a

tensáo

em vista do

relax orgástico; a

fome se mata somente com alimentos reals, ao passo que no sexo cabe um papel importante á ¡maginacSo e aos estímulos simbólicos" (p. 67s)

Esta passagem é de valor.porque dissipa um equívoco

muito disseminado na sociedade contemporánea: o uso do sexo

seria obrigatório para a conservacáo da saúde física e mental. Nao, diz o autor, baseado em pesquisas fidedignas: a necessidade do sexo provém muito mais do ambiente com seus estí mulos provocadores e erotizantes do que de exigencias do próprio organismo. Se muitas pessoas cedem ao imperio do sexo, estáo simplesmente cedendo a preconceitos incutidos por falsas teorías e pela propaganda «sexy» que «bombardeia» o cidadáo contemporáneo.

3) Merece outrossim referencia positiva a explanacáo que o Pe. Jaime Snoek faz de «sexo-eros-ágape»: considera assim «tres etapas na trajetória da humanizacáo do amor,

sucessivamente a etapa da atracáo anónima, a da afinidadc

psicossomática e a da identificagáo existencial» (p. 150). C

autor apresenta assim o amor que quer bem á pessoa do parceiro, e nao apenas ao corpo do outro.

4) O autor defende. a instituicáo do matrimonio, pois esta confere objetividade ao amor dos consortes, emancipando-o dos fatores meramente subjetivos e individualistas (simpatía pessoal, fatores económicos, razóes de familia...); qualquer tipo de uniáo baseada sobre elementos meramente

subjetivos é ameacada pela instabilidade. As instituicóes constituem «as formas criadas pelo homem que tornam concreto o

elemento psíquico material submetido a flutuacóes» (p. 72).

5) O celibato é valorizado do ponto de vista sociológico, pois permite aos celibatários urna atuacáo mais livre e profunda na sociedade: «Seja qual for a motivacáo, o celibato, principal

mente quando institucionalizado, exerce influencia importante na sociedade. Aponta para valores1 transcendentais. Em certos

ambientes o asceta-celibatário, como homem de Deus, c o líder natural da comunidade (o pope na Rússia)... Um clero celibatário, com sua mobilidade, a servico de um poder central, nao

deixa

de

ser

lambém

um

tante» (p. 65). — 177 —

fator

sociológico

impor

22

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Nao se deve esquecer, porém, que a motivagáo, por excelencia, do celibato consagrado a Deus provém da mensagem da fé: o Reino de Deus, mediante a vinda de Cristo, foi inaugurado neste mundo, de tal modo que ao cristáo interessa estar, o mais possível, livre de vínculos dispensáveis, para dedicar-se inteiramente ao Reino e as suas exigencias na térra. Cf. ICor 7,25-35.

O leitor descubrirá, no livro em pauta, ainda outras pá ginas interessantes, que revelam a profundidade com que o autor aborda o tema. Todavia nao é possível deixar de apontar

os aspectos menos válidos ou mesmo inaceitáveis do ensaio em pauta. Alias, o próprio arcebispo metropolitano de Juiz de Fora, D. Juvenal Roriz, observa ao apresentar a obra: "É possfvel que alguém se sinta chocado ao ler o llvro. É capaz que

muitos discordem dele.

ser contestado, tas" (p. 7).

Mas é para isso mesmo que ele foi escrito, para

criticado,

para assim

ajudar

a

descobrir

novas

pis

Vejamos, pois, os pontos controvertidos da obra em foco.

2.

Aspectos discutíveis

Apontaremos dez pontos merecedores de reviaáo. 2.1.

O terceiro principio básico

Ao iniciar a segunda parte ou o estudo da Ética sexual propriamente dita, o autor propóe cinco principios básicos da moralidade sexual:

1) Existe obrigacáo geral de crescer para a maturidade afetivo-sexual, em abertura e reciprocidade. 2) O ato sexual encontra na situacáo conjugal, e somente nela, condigóes ideáis para a sua realizacáo. 3) Se bem que a situagáo conjugal represente o ideal ético, isto nao quer dizer que formas imperfeitas de linguagem

sexual nao possam ser humanizantes e, portante, moralmente boas, desde que tentem expressar o melhor que o sujeito aqui e agora consegue alcangar, por causa dos seus condicionamentos e limitagóes.

— 178 —

«ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

23

4) É imoral qualquer forma de «pornéia» (sexo por divertimento, por dinheiro, sexo sem compromisso, sem amor). 5)

É imoral toda quebra de fídelidade conjugal.

Precisamente o terceiro principio, como reconhece o autor, «abre caminho para a revisáo de algumas normas mais concretas» (p. 146).

Examinemos atentamente como se dá tal abertura; para tanto, consideraremos o ponto de partida dessa abertura e as conclusóes que daí tira o autor.

2.2.

Lei natural ou concepteo personalista?

O Pe. Snoek rejeita o conceito clássico de lei natural. Esta seria a lei do próprio Criador e obrigaria a pessoa humana a respeitar sempre a natureza e suas funsóes características. Em conseqüéncia da lei natural, estáo condenadas as praticas homossexuais, a contracepcáo, a masturbacáo, as relacóes sexuais fora do matrimonio. Os adversarios da lei natural alegam que as normas éticas daí decorrentes sao fisicistas, fixistas, essencialistas...

Em contra-posigáo, o autor defende urna ética persona

lista. Julga que a pessoa humana é urna possibilidade que pede realizacáo, um esboco que deve ser elaborado, contornos que

háo de ser preenchidos... «O empenho pessoal, a intencionalidade, a subjetividade, o existencial sao indispensáveis. É impossível definir o bem e o mal de qualquer comportamento

concreto sem referencia ao sujeito» (p. 144). Em conseqüéncia, o autor propóe urna ética teleológica, isto é, inspirada pela dinámica da tendencia e um telos ou um objetivo a ser aleangado. A ética teleológica deduz «normas a partir da insergáo existencial do agir na realidade concreta, com toda a seqüela de efeitos (conseqüencialismo)» (págs. 144s).

Destas premissas se segué que muitas das posigóes firmes

da ética clássica se tomam mutáveis, porque a tendencia da pessoa ao seu telos é algo de evolutivo. Eis alguns dos pontos que, de modo especial, sao abalados na nova perspectiva. — 179 —

24

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

2.3.

Homossexualismo

O homossexualismo é nítidamente considerado como anomalía (cf. págs. 277. 285). Nao obstante, de acordó com as suas premissas, Jaime Snoek julga que «as pessoas homossexuais nao procedem mal se, dentro das suas limitagóes, tentam dar á sua estrutura irreversível urna- expressáo adequada, com dignidade o respeito» (p. 285). A justificativa de tal posicáo é a seguinte: "Nao resta dúvida de que a sexualidade só alcanza sua plena expansao em reciprocidade com um parceiro do outro sexo. Mas onde este ideal, por forca malor, nSo é possfvel, onde o celibato é ¡mpratlcável — a própria estrutura homossexual, que nao encontra nenhuma ldentificag§o na cultura, torna o desejo sexual mais incontrolável — onde concretamente a alternativa é entre contatos epidérmicos, degradantes, ou urna relagio amorosa na qual se pode atinqir pelo menos um certo grau de humanidade, alguma companhia na solidao, algum sentido para a vida e para o trabalho, este relacionamento passa a ter um sentido

positivo.

Evidentemente, nao é o perfeito, é um balbuciar.

Mas, afínal,

estSo fazendo o que podem, do melhor modo possfvel. — £ bem pos sfvel que a llnguagem erótica entre Jo§o e José, que sio homossexuais. seja mais comunicativa do que entre Pedro e Margarlda, que constituem um casal normal. Masters e Johnson constataran! que entre eles existe multas vezes, mais ternura do que entre ele e ela" (p. 284).

2.4.

Relagóes sexuais pré-cerimoniais

(RSPC)

RSPC sao as que ocorrem entre noivos decididos a se casar entre si, mas ainda nao comprometidos pelo cerimonial sacramental e jurídico do casamento. Jaime Snoek distingue tal tipo de relacóes sexuais daquelas que ocorrem entre namorados e outras pessoas que ainda nao estejam fírmente dis postas a se casar; este outro tipo é chamado «relacóes sexuais pré-matrimoniais» (RSPM). As RSPC sao tádas como legítimas pelo Pe. J. Snoek, ficando a cargo dos noivos «ponderar se realmente o adiamento das

relagóes

sexuais

os

prejudica

tanto

que

devam passar

além da norma». Por conseguinte, o valor moral das RSPC dependerá da avaliacáo subjetiva das pessoas interessadas; em alguns casos tal comportamento será legítimo; em outros nao.

Quanto as RSPM, o autor as rejeita, porque «relagóes

sexuais, na fase de namoro, além de representaren! urna espe

cie de mentira existencial, por significarem urna doagáo total que na realidade ainda nao é possível, expóem os parceiros, sobretudo ela, ao risco de perderem a identidade» (p. 250). — 180 —

>ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

25

Merece apoio a rica e seria argumentado que o Pe. Snoek apresenta para dissuadir do relacionamento sexual os ñamorados; vejam-se as págs. 248-252, dignas de ser lidas atenta mente. Apenas desejamos levantar urna pergunta: o Pe. Snoek afirma que ñas relagóes sexuais pré-matrimoniais os parceiros «sao obrigados a excluir radicalmente o filho, privando assim o ato do seu elemento mais altruista, mais significante, qual seja o anseio criador» (p. 251). Ora nao se dá o mesmo entre noivos? Será que os noivos nao excluem artificialmente a possibilidade de prole quando tém relagóes sexuais entre si? Por que entáo o Pe. Snoek nao rejeita outrossim as RSPC? 2.5.

Masturbosóo

"Propomos a seguinte formulafáo: enquanto a masturbagáo, como expressáo apropriada de determinada fase evolutiva, contribuí para o

amadurecimento afetivo sexual, é moralmente boa, aínda que

imperfeita"

(p. 266).

Verdade é que Snoek reconhece que a masturbacáo pode também significar fixagáo e regressáo; perdería seu caráter evolutivo teleológico, para se tornar um ato portador da sua própria justificativa; seria entáo antinatural, prejudicial e anti-ética; tal se dá «quando adultos praticam a masturbagáo habitualmente, a nao ser que sofram de alguma anomalía mais seria» (p. 268). 2.6.

Fantasías sexuais

As divagagóes conscientes e voluntarias da fantasia pelo setor do erotismo sempre foram pela clássica Moral conside

radas pecaminosas, pois sao aptas a excitar sexualmente o

sujeito, provocando tentacóes, remotas ou próximas, ao pecado.

Ora o Pe. Snoek propóe outra sentenga: na medida em

que a imaginagáo erótica possa contribuir para o amadureci mento afetivo da pessoa, é moralmente boa. A integracáo da sexualidade se faz também pelo devaneio da imaginacáo, desde que submetido a certa vigilancia, para que nao redunde em fuga da realidade. Análogo é o juizo a respeito da pornografía, que vem a

ser um fator excitante da fantasia. Se as imaginagóes eróticas nao sao más, o recurso aos livros e panfletos que alimentam a imaginacáo também nao será mau, desde que controlado para nao implicar escapismo. «Na busca honesta de integragáo norma alguma poderá substituir o discernimento pessoal» (p. 176). — 181 —

26

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

2.7.

O uso de anticoncepcionois

O autor é contrario á encíclica Humanae Vltae de Paulo VI, que, embora tenha reconhecido a necessidade do planejamento

familiar, só quis admitir meios naturais ou a continencia periódica para executar tal intento. O documento de Paulo VI significaria «um retrocesso para urna visáo biológica da sexualidade e da lei natural» (p. 210). Poderá mesmo, se gundo certos autores (que Snoek cita sem objegáo alguma), haver motivos serios para que um casal exdua por completo

a procria^áo — o que contraria o Código de Direito Canónico (can. 1086, § 3): se tal exclusáo antecede o contrato matri monial, diz o Código, o matrimonio assim contraido é nulo. Cf. p. 212.

Na prática do anticoncepcionismo, Snoek admite a própria

esterilizacáo cirúrgica em muito serios casos, consciente de que a S. Congregagáo para a Doutrina da Fé se opós explíci tamente a tal intervencáo.

Q DIU (dispositivo intra-uterino) é tolerado pelo autor:

«nao se deve condenar aquelas que usam o DIU» (p. 228).

Com respeito á pílula anticoncepcional, Snoek menciona os seus efeitos negativos no plano da saúde, embora nao a condene do ponto de vista ético; cf. p. 221. Poder-se-ia mesmo

admitir que certos Governos «fornecam meios anticoncepcionais para garantir a paternidade responsável» (p. 206). 2.8.

Fecúndamelo artificial

No tocante á fecundagáo artifidal homologa ou inseminacáo artifidal com esperma do próprio marido (IAM), o autor observa: «Estamos chegando a um pensamento bastante comum entre os moralistas em aceitar a viabilidade ética da IAM» (p. 230). Quanto á fecundacáo artificial heteróloga ou com esperma de doador (IAD), que supóe a participacáo de um terceiro, Snoek se recusa a tomar posicáo: «Nao é hora nem de fechar nem de abrir o sinal. Até se esclarecer melhor, há de se ficar bem no amarelo» (p. 231). Com referencia á fecundagáo in vitro ou ao bebé de pro veta, observa Jaime Snoek:

— 182 —

«ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

27

"Concluiría o seguinte: Existe urna certa convergencia no pensamento científico e ético-religioso. Resume-se numa atltude de expecta tiva e de cautela. A tendencia é de nao condenar o processo a prior!. Embora se concorde em principio, sente-se o perigo de derrapagem. Por isso recomenda-se multo cuidado" (p. 233).

2.9.

Indissolubilidade do matrimonio

O autor aceita a legitimidade do divorcio em certos casos, como se depreende da secgáo abaixo: "A lei deve proteger a estabilidade do casamento do melhor modo posslvel. A exclusáo total do divorcio nem sempre é a melhor proteclo... Certa concessao ¿s limita?5es humanas é quase inevitável, e nao há nenhum mal nlsto. O problema é que, urna vez existindo as mallias da lei, multa gente val passar por elas. Contudo este risco,

que é real, representa um mal menor"

(p. 185).

Todavia o autor acrescenta: «Quanto ao divorcio na Igreja, isto é um outro problema» (p. 185).

Esta observagáo final é ambigua, na mais suave das qualificagóes: supoe que o matrimonio nao seja indissolúvel por sua própria índole ou pela natureza mesma do contrato — o que contradiz as teses da filosofía clássica. 2.10.

Outras formas de uniáo

Snoek menciona o «casamento incompleto», isto é, a uniáo que, por algum motivo, nao seja legítima perante a Igreja: «Ou se trata de simples ausencia de oficializacáo, em

geral por motivos de pobreza ligada á ignorancia e indolencia; ou a oficializacáo é positivamente recusada por desprezo á instituicáo; ou entáo a oficializacáo é impossível por causa de um impedimento canónico» (p. 194).

Diante de tais situagóes, a Igreja tem apregoado zelo

pastoral, pedindo aos sacerdotes e seus colaboradores, acompanhem as familias que assim se constituem, a fim de que nao

percam a fé nem o contato com a Igreja. Isto, porém, nao quer dizer que se devam reconhecer tais unióes como legítimas, facilitando aos respectivos parceiros o acesso aos sacramentos. Esta reserva é explícitamente afirmada pelo S. Padre Joáo

Paulo II em sua Exortacáo Familiaris Consortio n» 84 de

22/11/1981. — O Pe. Snoek, contudo, tende a interpretar amplamente demais a atitude pastoral da Igreja como se as — 183 —

28

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

unióes nao sacramentáis já fossem legítimas: «A maneira de

auxiliar estas situagóes, que já vinha sendo propagada ñas

bases da Igreja, teve agora urna cháncela oficial» (p. 195).

O autor nao é claro e sujeita o leitor a mal-entendidos, como se fosse lícito ao católico aceitar qualquer tipo de uniáo «conjugal». Mais estranha ainda é a posigáo do Pe. Snoek frente á chamada «vida comunal», ou seja, diante de comunas em que

o relacionamento emotivo/sexual é livre, podendo haver relagóes sexuais dentro de um trio ou de um grupo maior. Snoek cita a opiniáo de Rogers e outros estudiosos que julgam difícil o desenvolvimento de amor auténtico e duradouro dentro de tais comunas... Mas acrescenta: «O importante é que nem eles nem Rogers fecham a questáo. É pelos frutos que a curto e longo prazo se conhece a árvore. Na busca da norma ética é necessário deixar margem para experimentacáo. Ainda que pessoalmente nao acreditemos muito na viabilidade a longo prazo destas comunas, nem por isso podemos condenar toda tentativa honesta como antiética» (p.197).

necessariamente

(intrínsecamente)

Esta é, sem dúvida, urna das opinióes mais estranhas professadas em todo o livro focalizado! Embora sustente tal opiniáo, o autor, logo a seguir, condena o sexo livre, pois este significa apenas «compensagáo e passa-tempo». Na verdade,

pode-se crer que quem rejeita o casamento monogámico estável, professa urna premissa da qual se pode deduzir a legitimacáo de qualquer forma de uniáo sexual, seja comunal, seja livre.

Outros pontos portadores de novidade se poderiam ainda

catalogar no livro em foco. Os que foram levantados, porém,

já nos permitem passar a urna avaliagáo crítica das posigóes do livro em foco.

3.

Urna avaliocao crítica

Antes do mais, proporemos urna observagáo de índole geral. 3.1.

Observajóo geral

Verifica-se que o criterio evocado pelo Pe. Jaime Snoek para julgar o comportamento sexual e suas facetas é a realizaS afetiva da pcssoa, ou a integragáo da sexualidade no — 184 —

«ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

conjunto dos valores do ser humano. É criterio dito «dinámico»

e nao estático ou fisicista; a pessoa humana com seu potencial evolutivo parece assim mais respeitada.1 Cf. págs. 144. 197. A propósito ponderamos:

Nao se duvida de que a consideragáo da pessoa e das suas

sucessivas fases evolutivas seja imprescind.íyel na avaliagáo moral do comportamento humano. A Ética clássica ensina que a moralidade de um ato se deriva tanto do objeto como da finalidade visada pelo sujeito (finis agentis) e das circunstan cias do ato (quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando — quem, o qué, onde, com que meios, por qué?, como, quando). Todavia podemos dizer que o Pe. Snoek vai longe demais na ponderaeáo das situacóes, arriscando-se a cair num

certo relativismo ético ou na ética da situagáo. Com efeito, se as situagóes evoluem sempre, a avaliagáo moral do comporta mento seguirá sempre criterios evolutivos e mutáveis. É o que o próprio autor reconhece ao dizer: «Formas imperfeitas de linguagem sexual podem ser... moralmente boas desde que tentem expressar o melhor que o sujeito aqui e agora consegue alcangar por causa das suas limitagóes» (p. 146).

Quem aceita tal principio, verifica que a fronteira entre

o bem e o mal moral se torna turva ou indistinta; o que para uns é mau, para outros será bom. Dai a legitimagáo, ao menos

em certas circunstancias, da masturbagáo, do homossexualismo, das relagóes sexuais pré-cerimoniais (o que significa: prématrimoniais), do divorcio no plano civil, da vida comunal (ou do casamenta em trio ou em grupo), etc. Se o criterio é o

presumido «desenvolvimento da personalidade», caímos num terreno extremamente subjetivo, em que tudo pode ser «envernizado» ou legitimado, até as maiores aberragóes, sob o pre texto de que concorrem para o presumido amadurecimento da

personalidade de tal ou tal sujeito. Este pode tornar-se vítima das suas ilusóes; julgando estar atendendo ao ritmo da evolucáo de sua personalidade, poderá estar condescendendo «molemente» com os seus instintos animalescos. A nova Ética,

em vez de ajudar o ser humano a se tornar mais «gente», poderá contribuir para torná-lo ainda mais joguete de suas paixóes instintivas e infra-racionais.

Por isto eremos que há absoluta necessidade de criterios objetivos para se discernirem o bem e o mal éticos. Esses

criterios objetivos háo de ser os ditames da natureza ou a lei natural. Esta ensina que o homossexualismo é urna aberragáo — 185 —

30

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

e, por isto, praticá-lo consciente e voluntariamente é mal moral; a masturbagáo é urna forma de narcisismo ou de uso do sexo a sos, o que também é antinatural e, por isto, peca minoso ... E assim em outros casos.

Observemos

bem:

para

levar em

conta

os

elementos

pessoais que caracterizam o comportamento de alguém, nao é

necessário renegar a objetividade e a perenidade das normas moráis; sim, todo ato é em si, ou objetivamente falando, bom ou mau do ponto de vista ético. Subjetivamente falando, porém, considerando-se a pessoa que age, e suas intengóes, o mesmo

ato pode admitir outra qualificagáo moral. Assim masturbaf-se é, em si ou objetivamente falando, um ato moralmente mau;

todavia num adolescente que ignore tal qualificagáo do ato ou mima pessoa obcecada, esse ato, em si mau, poderá nao ser tal (porque, no caso concreto, terá faltado ou o conhecimento de causa ou a vontade deliberada). Nao há, pois, como condescender com práticas antinatu-

rais, embora isto custe sacrificio e renuncia, tornando a Ética mais severa. Alias, note-se que Ética severa nao é Ética dualista, masoquista, contraria ao prazer e ao sexo. Urna Ética

severa pode afirmar que o sexo com seus prazeres é legitimo, desde que praticado segundo os ditames da natureza. O Fe. Snoek caricatura um tanto a Ética clássica como se fosse avessa ao prazer; todavia o próprio Pe. Snoek bem sabe que é possível seguir urna Ética inspirada pela lei natural, sem recusar o sexo e o prazer legítimo.

É de se observar outrossim que a renuncia se torna imprescindivel num programa de vida ética ou virtuosa... Nao somente a renuncia imposta pelas circunstancias da vida, mas

também a renuncia procurada voluntariamente: a ascese há

de ser praticada espontáneamente. Com efeito; se alguém sempre diz Sim aos seus impulsos, por mais legítimos que sejam, difícilmente dirá N3o a um impulso ilegítimo, como al guém que nao freia á distancia nao consegue frear quando colocado diretamente diante de sinal vermelho. Por isto mere-

cem revisáo as palavras do autor á p. 116: «A própria vida se incumbe de proporcionar ocasiócs para a cruz e a renuncia.

Nao há necessidade de procurá-las». Afirmamos, ao contrario, que existe, sim, tal necessidade dentro das possibilidades de saúde de cada cristáo, como para o atleta existe a necessidade de treinar mesmo auando nao está jomando «para valer»; se ele nao treina, perderá certamente diante do primeiro adversario com que se defrontar.

— 186 —

«ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

31

Alias, de maneira geral os moralistas concordam em afir mar que o fim (bom) nao justifica ios meios (inaus). Se assim é, nao posso dizer que, em vista de um fim bom candidamente almejado (como é o amadurecimento de minha personalidade), me é lícito praticar atos em si maus ou aberrantes (como a masturbacao ou a prática homossexual); tais atos antiéticos nao se'tornam, como tais, éticos pelo fato de serem praticados por quem se acha ainda a caminho ou na dinámica da formacáo de sua personalidade K

As ponderacóes até aqui propostas levam-nos a rejeitar as sentengas «revolucionarias» do livro em foco recenseadas sob o título 2 deste artigo. Expusemo-laa objetivamente sem desfigurar a mente do autor. Vemos, porém, que nao podem

ser sustentadas nem mesmo a título de ensaio de estudo. Urna vez considerado o principio básico do livro em foco, detenhamo-nos ainda sobre alguns pontos particulares da obra. 3.2.

Alguns tópicos particulares

Deter-nos-emos ainda sobre dois pontos importantes. 3.2.1.

O conceito de castidade

Diz o autor muito sabiamente: «Castidade é sensualidade integrada no nivel de pessoa. Longe de ser mutilagáo, a cas

tidade representa plenitude da sexualidades (p. 154). Esta definicáo merece aplausos desde que bem entendida: castidade vem a ser o uso do sexo dentro dos parámetros legítimos, estabelecidos pelas leis da natureza, ou seja, em termos hete-

rossexuais e dentro do consorcio matrimonial legítimamente sancionado pela instituicáo religiosa.

Observa-se, porém, que o Pe. Snoek tende a aproximar castidade na Tradigáo crista e dualismo; assim quando se refere a S. Agostinho (p. 25) e S. Jerónimo (p. 25)... — O avanco da devogáo mariana terá pago algum tributo a corrente maniqueista

(cf. p. 30)...

Ora nao queremos negar que a

»Está claro que atos, em si pecaminosos, podem nao ser peca minosos no caso de um sujeito que os cometa sem saber que sao atos

maus ou sem vontade deliberada.

— 187 —

32

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

filosofía grega, mediante o platonismo e o estoicismo, tenha influenciado pensadores cristáos. Mas, doutro lado, nao pode

mos esquecer que já Sao Paulo, como intérprete singularmente abalizado da mensagem evangélica, preconizava a vida una ou celibatária a partir de premissas genuinamente cristas: o tempo se fez breve, dizia o Apostólo, pois a eternidade e os valores definitivos entraram nos moldes do tempo; em conseqüéncia, todo tempo é pouco ou nao há mais tempo para atender á presenga do Eterno presente; por isto é preciso que o cristáo concentre a sua atengáo ñas coisas de Deus e, se possível (com a graga do Senhor), viva a vida una para nao se dis

persar entre os afazeres da vida conjugal; cf. ICor 7,25-35. Esta motivagáo, totalmente nova no ano de 56, em que foi

proferida pela primeira vez, forneceu a inspiragáo as virgens e aos celibatários que desde os tempos do Apostólo se fizeram tais por amor do Reino dos céus. Nada traz de dualista ou maniqueu, mas brota da consciéncia que o cristáo tem, de estar vivendo a última hora da historia da salvagáo. Ainda a propósito lembramos que há diferenga entre dualismo e dualidade. Aquele afirma o antagonismo entre duas partes postas em confronto; assim o bem e o mal, a luz

e as trevas constituem dualismos. Ao contrario, dualidade supóe distingáo e separabilidade, nao, porém, conflito ou anta gonismo entre dois termos: assim corpo e alma, homem e mulher constituem dualidades, nao, porém, dualismo... Ora o livro em foco parece nao observar bem tal distingáo; posso

afirmar distingáo entre corpo e alma e a necessidade de que a inteligencia e a vontade rejam os sentidos, sem cair no maniqueísmo dualista; cf. p. 215. 3.2.2.

Leí natural: sim ou nao?

A mais importante objecáo contra a lei natural afirma que o apregoado respeito á natureza e as leis naturais implica atrelar a pessoa humana, que é dotada de inteligencia e criativida-

de, as leis cegas da biología. Verifica-se precisamente que hoje

em dia a inteligencia humana altera o curso natural do seu meio

ambiente, ou seja, os leitos dos ríos, as faixas do litoral, as

elevagóes montanhosas... E isto, com aplausos, as vezes, por

parte da própria consciéncia crista. Como entáo nao lhe seria lícito dominar o curso das suas fungSes sexuais, subordinando-as a um planejamento racional? — Em resposta, observamos:

— 188 —

«ENSAIO DE ÉTICA SEXUAL»

33

O termo «natureza» é, na verdade, polivalente. Em nossos días, assume freqüentemente sentido materialista, «coisista». A natureza é, para muitos, o conjunto do mundo material, bruto, regido por leis cegas, no qual o homem está imerso; em conseqüéncia, opóem á natureza o homem, que é um ser original inteligente, livre, criativo, imprevisível. A natureza vem

a ser entáo a contraparte do espirito, da razáo, dá liberdade... Falar de lei natural, no homem, seria ignorar a índole específica espiritual da liberdade e, por conseguinte, da moralidade. Seria cair numa Moral «coisista» ou materialista.

Ademáis o homem de hoje, impregnado de mentalidade tecnicista, sente-se distante da natureza. Esta, para ele, vem a ser o indómito, o transformável, que está em seu poder e que nao lhe pode ditar leis; ele é que lhe imprimirá as normas concebidas pela sua inteligencia.

Sao estas premissas que tornam difícil ao homem de hoje a compreensáo do respeito pela natureza e pelas leis naturais. Eis por que nos compete explicar que a Moral crista, ao preconizar o valor das leis naturais, nao tenciona subordinar o ser inteligente a leis cegas ou á trama de elementos infra humanos.

Com efeito. Quando a Ética crista apresenta a natureza humana como criterio de comportamento, tem em vista a es-

séncia do homem, esséncia que é permanente, sempre igual a si mesma, nao só composta de espirito, mas também de ma teria ou de corporeidade. A pessoa humana nao é um valor

que se opóe á realidade corpórea; ao contrario, ela só subsiste na realidade corpórea do homem. Disto se segué que os valores humanos e pessoais, para se afirmar, nao necessitam de negar os aspectos fisiológicos do ser humano, mas, ao contrario, os

assumem, enobrecendo-os. Ora tal enobrecimento só é possível se há respeito as leis próprias da. fisiología humana.

Por conseguinte, aqueles que tendem a opor natureza e

pessoa, natureza e liberdade, natureza e espirito, de certo modo

cedem ao dualismo, que opóe materia e espirito como se fossem antagónicos entre si. A auténtica nocáo de pessoa

humana implica aceitacáo humilde da corporeidade e das leis fisiológicas.

— 189 —

34

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Ve-se, pois, que o homem nao pode considerar o seu corpo como considera os demais corpos da natureza física. Se o homem trata estes últimos a seu bel-prazer, removendo

montanhas, desviando rios, aterrando baías, nao lhe é lícito tratar o seu corpo simplesmente como bem lhe parece. Na

verdade, o corpo humano nao é como os demais corpos; ele é

parte integrante de um todo, que é a pessoa humana. O corpo faz parte da personalidade e traz a esta as suas características próprias. Ele nao é mero instrumento de urna pessoa pura mente espiritual. Verdade é que a parte mais nobre da pessoa

é a alma espiritual, mas a pessoa só subsiste mediante a uniáo de corpo e alma. Vé-se, pois, que a sexualidade, embora seja eomum ao homem, aos animáis irracionais e aos vegetáis, assume no

homem dignidade e significado novos; a sua estrutura biológica e fisiológica nao é destruida nem contraditada, mas, devidemente respeitada, é posta a servigo da plena realizacáo da pessoa humana.

Em conclusáo, diremos: o livro do Pe. Jaime Snoek em pauta sugere materia para ampias ponderagóes. Temos que

nos limitar, verificando mais urna vez que se trata de ensaio

proposto ao público para ser debatido, e nao da última palavra da Ética crista a respeito de sexualidade. — Possa o público compreender este caráter de ensaio da obra e lé-la com o olho critico que ela requer, a fim de nao se deixar iludir como se as proposigóes do Uvro formulassem todas a última e auténtica palavra da Moral católica!

Ulteriores ponderacóes sobre os diversos assuntos do livro poderáo ser encontrados em PR segundo o quadro abaixo: Homossexualismo:

MasturbacSo:

196/1976, págs. 139-150

207/1977, págs. 107-119; 236/1979, págs. 332-344.

110/1969, págs. 71-81; 196/1976, págs. 139-150.

Retacees pré-matrímonfais:

Divorcio:

167/73,

págs.

468-474;

nas 468-484; 196/1975, págs. 139-150; 230/1979, págs. 71-81.

166/1973, págs. 462-464;

214/1977, págs. 429-442; 443-449; 236/1979, págs. 320-331.

Engenharia genética:

226/1978, págs. 407-422; 122/1970, págs. 51-58.

— 190 —

167/1973.

pági

Muito em foco:

A Atual Situacáo da Igreja na U.R.S.S.

£m síntese: O texto em foco atesta, de um lado, o descrédito em que vai sempre mais caindo a ideologia marxista na U.R.S.S. e, de outro lado, o interesse pela Igreja, como sendo a sociedade que em sua doutrina se conservou isenta de qualquer contaminacáo ideológica. É a Igreja que representa a germina alma russa, da qual nunca se conseguiu extirpar o senso religioso. Falsos profetas procuram responder á demanda do transcental que move o povo russo; todavia é evidente que prof.óem aberragSes quando querem apregoar a proximidade do fitn do mundo. — Tal situadlo constituí um verdadeiro desafio para os cristáos na U.R.S.S.: teráo a coragem necessária para corresponder ¿ expectativa

dos seus concidadáos? — O autor, que escreve clandestinamente alravés do samizdal, termina fazendo votos para que a tenham realmente.

Comentario:

É oportuno que periódicamente os cristáos

ocidentais tomem consciéncia da situacáo religiosa da U.R.S.S. Com efeito, sabe-se que o regime ateu ai implantado em 1917 ainda nao conseguiu erradicar o senso religioso do povo russo, apesar da intensa propaganda desenvolvida. Nota-se mesmo, nos últimos anos, um ressurgimento da fé dentro das fronteiras russas — o que leva muitos observadores a pensar sobre o intrigante fenómeno.

Precisamente para alimentar esta reflexáo, publicamos ñas páginas subseqüentes um relatório de ocorréncias na U.R.S.S. Está datado de 20/11/1981 e deve-se a autor desconhetído, que o publicou através do samizdat (rede clandestina de divulgacáo de noticias para dentro e para fora da Rússia Soviética). Chegou á Franca em meados de dezembro 1981, sendo entáo publicado em francés pelo S.O.P. (Service Orthodoxe de Presse et d'Informatíon) n» 64, de Janeiro 1982, págs. 13-16. Desta fonte o artigo, foi traduzido para o portugués a fim de ser oferecido aos leitores de PR. O autor anónimo analisa as razóes do interesse que atualmente a Igreja suscita na U.R.S.S. e chama a atencáo para a responsabilidade que em conseqüéncia pesa sobre os fiéis cristáos. * Neste

artigo e

no

seguinte,

tém-se em

vista sempre

os

ortodoxos, que estüo separados de Roma por efeito do cisma de 1054.

— 191 —

cristáos

bizantino

35

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Julgamos que o assunto é de valor também para os leitores brasileiros, que se poderáo inspirar de tal leitura para apreciar ainda melhor o dom da sua fé e a preméncia das exigencias desta.

A Igreja na URSS. «Sem dúvida, o interesse manifestado pela l.greja nunca foi tao

intenso quanto hoje. mente os ateus. tranqüilidade, ou palmente a estes minar as razoes

Paradoxalmente, este fato inquieta principal

Quanto aos fiéis, consideram este fenómeno com mesmo com indiferenca; por conseguíate, é princi que se dirige este breve ensaio. Tentemos exa do vasto interesse atualmente registrado em torno

do fenómeno religioso.

Urna das principáis razóes é indiscutivelmente de ordem mís tica: o sangue dos novos mártires da Igreja russa já dá os seus frutos; foi urna sementé que comecou a germinar e cujas espigas

se formam diante dos nossos olhos. Entre as causas de tao alentó interesse, ha também as de índole terrestre: a mais manifestó é o enfraquecimento cada vez mais notorio da ideología oficial do país. Todos aqueles que vivem na U.R.S.S. estao bem conscientes distoi a ideología do marxismo morreu e nao pode responder á demanda ¿aqueles que estao á procura de valores espirituais. Toda ideologia imposta pela forca suscita protesto e recusa.

Os contatos com

o Ocidente, reforea dos nos últimos vinte anos, possibilitaram um confronto entre os dois sistemas, de tal modo que as conclusoes desta comparacüo evidentemente nao sao favoráveis ao marxismo. Já ninguém pensa ñas promessas de urna vida de bem-estar s

gezo feitas no 219 e no 22* Congressos do Partido; a situaeáo é

como se nunca tivessem sido formuladas. O esvaziamento da ideoIcgia oficial incita as pessoas a procurar na estrutura social de país algum grupo que nao este¡a impregnado dessa ideologia. Ore a Igreja aparece como sendo tal.

Nela tudo atrai aqueles que pro-

curam. . .: a imutabilidade das tradicoes de outrora, a riqueza dos ritos, o misterio dos icones, a profundidade insondável do EvangeIho, totalmente desconhecida do homem soviético.

Familiarizando-se com a historia recente e ainda oral da Igreja russa,

o homem

esta Igreja,

soviético

que

procura,

senté

que tanto sofreu e continua

simpatia

para

com

a sofrer; observando

a

situacáo social, verifica as pressóes e discriminacoes constantes que

as autoridades exercem sobre ela — o que também contribui para o surto de calorosa simpatia.

— 192 —

A 1GREJA NA U.R.S.S. Atualmente nada Igreja.

Ontem,

Democrático. título,

ser

há no

porém, ela

país

aínda

3?

que se possa comparar com a tinha

um rival — o Movimento

Com efeito, o período de 1965 a 1980 pode, a justo

chamado

'época

do

Movimento

Democrático*.

ultrapassado esse período, pode-se proceder ao mesmo.

Agora,

atento estudo

do

Todavía aquí contentar-nos-emos com o exame dos aspec

tos que direlamente se referem ao nosso assunto>

As

melhores

foreas

da

sociedade

russa,

no

decorrer desses

quinze anos, participaran!, de um modo ou de outro, no Movi mento Democrático. Um dos principáis méritos deste é que provocou o despertar e a formacao de urna tomada de consciéncia nacional, a qual substituíu aos poucos a ideología oficial. E um dos princi pios fundamentáis des:a filosofía nova é o postulado seguinte: o homem nao é materia da construcao social; a personalidade hu mana é um bem precioso em si; ela nao deve ser sacrificada em prol

dos interesses das geracoes futuras ou mesmo das atuais.

£, por

conseguinte, ¡nestimável mérito do Movímento Democrático ter feito aparecer e ter determinado os interesses do individuo-. E, embora o Movimento tenha sido aniquilado, a tomada de consciéncia nova arraigou-se firmemente nos espíritos de toda a intelllgentzia ativa. Será doravante impossível deter essa tomada de consciéncia a nao ser mediante o aniquilamento físico das pessoas. No decorrer da década -de setenta, o Movimento Democrático exerceu também influencia sobre os ambientes religiosos; mas muilos cristños foram decepcionados pelas falhas do Movimento: a heroica filosofía do individualismo levado ao extremo..., a atitude negativa da maioria dos membros do Movimento em relacao ao trabalho e á adaptacao social, a libertinagem das relacoes sexuais, a vaídade e a tendencia a excessiva loquacidade.

Mas, do seu lado, a lgre¡a também influenciou o Movímento: muitos membros deste, familiarizando-se com o Cristianismo, converteram-se. Desde o inicio da década de setenta, o Movimento contava ñas suas fileiras muitos dissidentes religiosos: Krasnov-Levitíne, o Pe. Sergio Jeloudkov, o Pe. Gleb Jakounine, o Pe. Nicolau Echilman, Lev Regelson, Víctor Kapitantchouk, o Pe. Dimitri Doudko, Eugenio Baraba nov. £ interessante notar que o próprio termo 'dissidente' é tirado da historia da Igreja e significa 'aquele que nao pertence á confissao reconhecida como Religíao do Estado de determinado país' (Dicionário da língua literaria russa contem poránea ).

— 193 —

38

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

O aparecimenlo de dissidentes nos ambientes religiosos merece

alencao especial. A consciéncia religiosa, á diferenca da consciéncia social, nunca foi sufocada mesmo durante os mais penosos anos do slolinismo: disto



testemunho

o

considerável

volume

de escritos

do samizdat religioso dos anos anteriores á guerra assim como os numerosos textos apócrifos que circulam ainda hoje em grande parte da

populacao.

Desde a época do patriarca Ticon, a Igreja nunca deu a zonhecer oficialmente, «x cathedra, a sua opiniáo a respeito dos grandes problemas contemporáneos. Esta opiniao se manifestou pela primeira vez em 1965, sob a forma de urna carta de cfois sacerdotes, os padres Gleb Yakounine e Nicolau Echliman. Essa carta fez que assumissem, de maneira totalmente insólita, o papel de intercessores e

defensores da

Igreja

ru:sa.

A

repressao que se

soguiu, obrigou-os a guardar o silencio durante os cinco anos subseqüentes. Mas foi entáo que ressoaram as vozes de Krasnov-Levitinc e do padre Sergio Jeloudkov; por meio destes, a Igreja fez-se ouvir nao só no samizdaf, mas também no cenário •ntornacional. No inicio da década de setenta, [untaram-se-lhes os padres Gleb Jakounine e Dimitri Douclko. Manifestavam-se arsim certas mudancas na tomada de consciéncia religiosa.

Nao

obstante,

nao

é

possível

pensar

na

realizacáo

de

um

Concilio, embora esta seja a fórmula mais segura e comprovccJci de avivar a Igreja. Um Concilio nao seria possível por causa da oposicao das autoridades governamentais e da atitude amedronlada do episcopado... Os anos de regime soviético deram origem a novo tipo de bispos — político: e administradores —, ao passo que o bispo nao deve tanto ser um administrador: a sua tarefa essencial é ensinar. Em sua carta a Tito, o Apostólo Paulo, falando das funcóes do b¡;po, escreve que este deve ser fortemente adé rente as verdades da fé, tais como Ihe foram ensilladas, a fin de que se¡a capaz de exortar segundo a sa doutrina e de convencer aqueles que se opóem a esta (cf. Tt 1,9).

Ora o falo de que nenhum Concilio se tenha reunido desde 1917 teve por resultado o fracionamento da consciéncia religiosa. Na vida social da lgre¡a, isto se traduz pela fragmentaedo em paró-

quias; em cipio: onde

conseqüéncia, dá-se está o

bispo, ai

urna

está

a

deformacóo do Igreja.

clássico

Paradoxalmente

prin este

principio hoje reza: onde há um sacerdote, ai está a lgre¡a. Ora o sacerdote que com o seu bispo só tem contatos místicos ou admi nistrativos, orienta-ce muitas vezes, em desespero de causa, ou para as questóes sociais ou para o poder. — 194 —

A IGREJA NA U.R.S.S.

39

Mais do que nunca faz-se sentir ho¡e a influencia dos falsos profetas ou, simplesmente, de loucos. Diante dos nossos olhos oinda se desenrola o carreira do falso profeta Félix Kareline, que calculou repetidamente a data do fim do mundo e arrastou, de cada vez, para a montanha nao somente leíaos, mas também ecle

siásticos, e que demonstra atualmente a identidade de objetivos do Cristianismo e do comunismo. A atual orientacao da sociedade repercute sobre a orientacao das comunidades eclesiais. Se a comunidade é ativa, ela se parece com urna seita. Como em toda seita, oí dominam a intolerancia em relacño aos heterodoxos e o feehamento sobre

si mesma.

As personalidades mais marcantes da década de 70 foram os Padres Dimitri Doudko e Gleb Yakounine: tinham-se tornado os

auténticos defensores dos fiéis, a esperanca destes, um símbolo ds coragem. Parecía que, após meio-século de sufocada pela recusa da justica, a l.greja havia encontrado de novo o direito de se defender abertamente. A críacáo, por parte de Gleb Yakounine, do Comité de Defesa dos Direitos dos Crentes enquadrou a atividade desse sacerdote dentro do Movimento Democrático. O Comité tentou combinar os principios religio:os e os que haviam sido definidos pela Conferencia internacional de Helsinki, embora

alguns cristaos

se sentis:em perplexos diante da contradicao entre a defesa dos

direitos

humanos

e

a

oitava

bem-aventuranca:

'Bem-aventurados

seréis quando os homens vos amaldicoarem e perseguirem e disserem colunias contra vos por mirtha causa...1

As confissoes públicas do Pe. Dimitri Doudko, de Lev Regelson Victor Kapitantchouk ' ofastaram da Igreja muitos daqueles que estavam á procuro da verdade, o que fez aparecer os motivos teai; do inferesse que eles tinbam pela religiao: esta os tinha atraído, antes do mais, como antípoda do regime, como estrutura desem barazada da ideología oficial; nao eram motivados por profunda necessidade de fé. E de novo, como na década de cinqüenta, a Igreja pareceu ser o setor do conformismo e da pusilanimidade.

e de

Entrementes faziam-se ouvir

outras vozes, que caracterizavam

nítidamente a díferenea entre a Igreja e os renegados: 'O fato de que os

neófitos

modernos

abjuraram

a fé sem

mesmo ter entre-

«Os tres cristios citados foram submetidos pelo Governo soviético a processo coercitivo, do qual resultou a retratacáo pública de suas atividades anteriores, como se tivossem sido nocivos á patria russa. Cf. PR 256/1981. págs. 210-220 (o caso de Dimitri Doudko).

— 195 —

40

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

visto os instrumentos de tortura, mostrou ao mundo inteiro que eles nao tinham concebido a verdadeira fé' (G. Pomerantz, O preso da renegacfio).

A conduta dos dissidentes religiosos evidencia que

urna afitude aberta de tal oposicáo é impossível num

regime tota

litario.

Nao obstante, apesar da renegacao de tres dissidentes reli giosos, a Igreja permanece no centro de intenso ¡nteresse da parle de numerosos grupos sociais. De novo, como nos anos de a.pós-guerra, as pessoas esperam reencontrar na Igreja a razáo de ser da existencia. O número de fiéis vai aumentando — fato este reconhecido mesmo pela imprensa oficial. Podemos hoje falar do des pertar do interesse pelo Cristianismo nao só entre os jovens, mas também entre os membros das geracoes precedentes. Consciente disto, a Igreja, na pessoa dos seus bispos, sacer dotes e dos leigos chamados a exercer o seu 'sacerdocio regio', deve

perguntar

a

si

mesma

se

ela

está

em

condicoes

de

res

ponder á demanda dos contemporáneos ou se, como no período de após-guerra, os cristaos faráo falencia, incapazes de se tornar a fonte de 'agua viva que jorra para a vida eterna'. Será que a Igreja tem consciéncia de toda a responsabilidade que sobre ela pesa

hoje em día?

Contentar-nos-emos com

celebrar passivamente

os Oficios religiosos, esquecendo que a obrigacao de formar cris taos conscientes é também urna das funcoes essenciais da Igreja? Na historia da Igreja nao faltaram casos em que leigos, mesmo abandonados por seus bispos, conseguiram perseverar na fé. Sabemos que a moda nunca é duradoura. O vivo ¡nteresse pela Igreja de nossos dias diminuirá sem demora. Saberemos res ponder dignamente á procura daqueles que tém sede de verdade, ou contentar-nos-emos com cerimónias de Batismo coletivo, que até

agora deram resultados contrarios aos que esperávamos e dos quais disse o Senhor: 'Ai de vos, escribas e fariseus hipócritas, porque percorreis o mar e a térra para fazer um prosélito, e, depois que se fez tal, vos o tornáis digno do inferno duas vezes mais do que vos1

(Mt 23, 15)?»

BREVE REFLEXÁO O texto em foco é assaz interessante porque atesta, de um lado, o descrédito em que vai sempre mais caindo a ideolo gía marxista na U.R.S.S. e, de outro lado, o interesse pela Igreja, como sendo a sociedade que em sua doutrina se con— 196 —•

A IGREJA NA U.R.S.S.

_J1

servou isenta de qualquer contaminagáo ideológica. É a Igreja que representa a genuína alma russa, da qual nunca se con-

seguiu extirpar o senso religioso. Falsos profetas — fantasistas

procuram responder á demanda do transcendental que o povo russo apresenta; todavía é evidente que propóem aberra-

góes quando querem apregoar a proximidade do fim do mundo. Tal situagáo constitui um verdadeiro desafio para a Igreja na U.R.S.S.: os seus filhos teráo a coragem necessária para corresponder á expectativa dos seus concidadáos? Ou deixar-se-áo intimidar pela pressáo do Governo, que tudo faz para fraccionar as forcas religiosas da nagáo, criando distancias entre bispos e bispos, entre bispos e sacerdotes e controlando as atitudes dos fiéis em geral? — É de esperar que os cristáos russos tenham a forca necessária para viver a sua vocacáo de

sal da térra e luz do mundo (cf. Mt 5,13s) ou de agua viva

que jorra para a vida eterna (cf. Jo 7,37-39). É com estes votos que o autor do artigo termina as suas ponderagóes. Para os fiéis católicos do Brasil, tal relato é importante porque os ajuda a tomar nova consciéncia do valor inestimável e insubstituivel da sua fé e da vivencia religiosa. Muitas vezes

só se aprecia devidamente determinado bem depois que este é subtraido ou sufocado. O perigo que ameaga os cristáos, é sempre o da acomodacáo; os mais valiosos tesouros, dentro da rotina de cada dia, parecem tornar-se pálidos e insuficientes para quem nao procure avivar constantemente a consciéncia do que realmente sao. É, pois, para desejar que nao só na

Rússia, mas também no Brasil, os fiéis vivam intensamente a sua vocagáo crista, pois assim estaráo dando aos seus irmáos incrédulos a possibilidade de captarem a única resposta cabal para os seus anseios.

«Lembra-te de que multas vezes tu és o único Evangelho que teu irmáo pode ler!»

(Continuagio da pág. 244)

A lula e a Eucaristía, por varios autores. Traducáo de Pe. Guido Piccoli. Ed. Loyola. Sao Paulo 1980, 137 X 207 mm, 142 págs. Este livro resulta de encontros de intelectual ocorridos em Assis

(Italia)

onde o Centro Cittadella é promotor de

estudos e

pesquisas.

O livro

intenso movlmento de

reúne colaboradores de

renome

como

o

Senador Lelio Basso, o Prof. ítalo Mancini, a docente universitaria e iornalista Lidia Menapace, o militante político e professor Roger Garaudy. o escritor Ernesto Balducci, o Dr. Enzo Bianchi, presidente da Comuni(Continua na pág. 207)

— 197 —

Dirigido a todos:

Apelo em Favor do P. Gleb Yakouníne

Em sintese:

O

padre ortodoxo Gleb Yakounine é o fundador do

Comité cristSo para a Defesa dos Direitos dos Crentes na U.R.S.S.; encontra-se preso na regiao de Perm; sofreu a perda da sua Biblia e dos seus livros de oracfio, que Irte foram retirados pela administracio do campo de concerttracSo. O sacerdote, em protesto, dirigiu-se ás autori dades soviéticas; além do que empreendeu a greve de tome. Nao obtivera resultado algum, quando em outubro de 1981 um monge ortodoxo de Moscou — o Ir. Innokenty — houve por bem redigir um Apelo ao mundo inteiro em favor do injusticado Pe. Yakounine.

Comentario: Fundador do Comité cristáo para a Defesa dos Direitos dos Crentes na U.R.S.S., o Pe. Gleb Yakounine, que se enoontra preso na regiáo de Perm, comegou no dia 16/09/81 urna greve de fome para conseguir a restituigáo da sua Biblia e dos seus livros de oragáo que lhe haviam sido con fiscados pela administragáo do campo de concentragáo na base do artigo 52 da Constituigáo da U.R.S.S., que instaura a separacáo da Igreja e do Estado («o campo de concentragáo

sendo um estabelecimento do Estado, a posse de livros religio

sos por parte dos condenados nao é prevista pela lei», respon

derá por escrito o delegado responsável pela aplioagáo das penas). Alimentado á forga a partir de 26/09 e hospitalizado aos 15/10, sabe-se, por fonte geralmente bem informada, que ele manteve a greve de fome, o que leva a crer nao tenha recuperado o uso da sua Biblia. Um monge ortodoxo de Moscou — o Ir. Innokenty _— houve por bem redigir a propósito um Apelo a todos os crislaos

do mundo, datado de outubro de 1981. Tal documento chegou ao Ocidente por obra do Comité de Defesa dos Direitos dos Crentes. Chama a atencáo para «a situacáo trágica na qual se encontra o Pe. Gleb» e pede a intervengáo de todos os cristáos e de «todos os homens de boa vontade».

O documento nao deixa de ter seu significado também para os leitores brasileiros, a quem presta nao somente informagóes, mas também a ocasiáo de reflexáo. Eis por que vai, a seguir, transcrito em tradugáo portuguesa. — 198 —

APELO EM FAVOR DE YAKOUNINE

43

APELO A TODOS OS CRISTÁOS DO MUNDO «No mes de agosto de 1981 completou-se um ano desde que teve logar em Moscou a 'farca judiciária1, tramada contra um dos mais eminentes defensores dos direitos do homem

em

norsos tem-

pos, o sacerdote ortodoxo Gleb Yakounine. Sabe-se atualmente que, após a sua chsgada num dos numero.os campos de trabalho, de regime severo, na regiao de Perm, onde havia que cumprir pena nao merecida, o Pe. Gleb teve que sofrer que Ihe levassem a Biblia assim como o livro de oracoes e o Missal. Tal medida ilícita e totalmente arbitraria cuscitou a incom-

preensao e a indignacáo legítimas do Comité de Defesa dos Direi tos do Homem de nosso país.

Sabe-se, porém, que, depois de ter sido detido, quando

se

ochava aínda na pris5o de Lefortovo, o Pe. Gleb recebera a autorizacáo de utilizar, nesse famoso cárcere comunista, a Biblia, o seo

livro de oracóes e o seu Missal.

Nisfo nada há de ilegal, visto

que a famosa legislacáo comunWa referente á liberdade de cons-

ciéncia nao proibe oficialmente o uso da Biblia ou de um livro de oíacoes, mesmo em

lugares de detencáo.

Contudo verifica-se

liberdade de consciéncia

que a proclamacao comunista relativa á nada significa e nada

diz de concreto.

Urna eoisa é proclamar a liberdade religiosa e outra coisa, muito diferetne, é aplicá-la ou oferecer as condicoes para que se exerca na vida de cada dia. E, quando se vé como, um pouco em toda parte, a liberdade de consciéncia e os direitos religiosos seo

violados e conculcados de modo permanente, chega-se á conclusco seguinte: a liberdade religiosa, tal como a concebem os legisla dores comunistas, é apenas palavras v3s; nao tem vigor nem reper-

cussao. O fato de que tenham retirado do Pe. Gleb os seus livros religiosos atesta, de modo persuasivo, que a letra da legislacáo comunista a respeito da liberdade de consciéncia nao corresponde aos falos. Assim, pois, na prisco 'modelo' de Lefortovo, é licito

usar a Biblia, o livro de oracoes e o Missal, mas no campo de ¡nternacao de Perm, isto é proibído, pois a administracáo do campo

está «cima da lei; ela nao observa a lei, que ela n5o considera soberana. Por isto pode livre e grosseiramente violar a lei sem sofrer alauma

conseqüéncia.

— 199 —

44

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Repetidamente, o Pe. Gleb dir¡g¡u-se á administracao do campo a fim de que Ihe restituissem os

livros confiscados.

Mas, como o

mostrou a experiencia, em váo o Pe. Gleb se dingiu á administracao, que nao conhece nem lei nem Moral. A seguir, o Pe. Gleb voltou-se para diversas instancias do Ministerio público, esperando encontrar justica. Na verdade, o Ministerio público tem por missao controlar severamente a observancia e o cumprimento incon dicional da lei formulada especialmente no artigo 52 da Constiluicáo da U.R.S.S.: «é .garantida a liberdade de coníciéncia acs cidadaos da U.R.S.S.». Mas as respostas burocráticas do Minis terio

público, com

o seu refrao categórico

«Inadmissível», apenas

confirmam o velho principio: é inútil procurar a

¡ustica onde ela

ti5o existe nem ¡amáis existiu, onde se praticam a perseguicáo e a condénacao em nome da mesma, onde reinam a violencia e a arbitrariedade.

Como se pode verificar, o Pe. Gleb nada pede de extraordi nario ou de inviável. Exige apenas o que Ihe é garantido pela Constituicáo comunista, ou seja, poder dispor, nesta trágica e dolorosa fase da sua vida, da Biblia, do seu livro de oracóes e do seu Missal.

Para maior clareza, acrescentaremos que a Biblia, o livro de oracóes e o Missal confiscados nao foram editados na clandestimdade nem no estrangeiro, mas entre nos, na Uniao Soviética, em tipografías comunistas, e com a autorizacao de representantes do Partido. Por isto o uso de tais livros nao pode em absoluto ser considerado como atividade antigovernamental ou como propa

ganda.

Em conseqüéncia, sob nenhum aspecto, a confisoacao dess&s

escritos encontró fundamento legal. Entño pergunta-se: por que proibir de maneira categórica ao Pe. Gleb, como a muitos outros sacerdotes e cristños internados em campos de concentracáo, que disponham de urna Biblia? Para esta pergunta, há urna só resposta,

resposta simultáneamente precisa e sucinta: a verdade incute medo aqueles que nao estao em boas relacóes com ela!

É evidente que, se o Pe. Gleb tivesse pedido, por exemplo, urna 'Biblia para crentes e incrédulos', coletánea atéia cheia de mentiras e falsas ¡nformacóes, sem dúvida alguma o seu pedido teria

sido

¡mediatamente

atendido.

Mas

nao

esquecamos

que

o

Pe. Gleb é sacerdote ortodoxo e ficará sendo tal, mesmo na pri-

sño. E, como sacerdote, ele consagrou toda a sua vida ao servico da Verdade e do Amor divino, ao servico da paz e da fraternidade.

Por isto a Biblia é o seu

livro de cabeceira.

— 200 —

Eis por que,

APELO EM FAVOR DE YAKOUNINE

45

quaisquer que sejam as circunstancias, a sua vida nao tem sentido sem a Biblia. A Biblia é, para ele, a Palavra de Deus, o livro da Verdade e do Amor eternos, o livro que tem 'as palavras da Vida Eterna'.

Pode-se fácilmente imaginar em que situacao trágica se acha o Pe. Gleb como sacerdote. Além de acabrunhado pelo trabaiho forcado de cada día, está extremamente abolido por se ver pri vado de todo alimento espiritual. O duríssimo regime do campo em que se acha o Pe. Gleb nao Ihe permite contato algum com a Igreja: está afastado de toda celebracáo litúrgica. O uso da Biblia e do seu livro de oracoes, portante, era o único meio, para ele, de se reabastecer espiritualmente e de satisfazer ás suas aspiracoes religiosas.

E eis que este último fio espiritual, esta ponte vivificante de coragem Ihe sao cínica e cruelmente arrancados por aqueles que violam

a

leí.

Em sinal de protesto contra este ato bárbaro e ilegal, o Pe. Gleb iniciou urna greve de fome, que prosseguirá até que os seus livros (he seiam restituidos. Nao há dúvida, este gesto suscitará ampia tomada de consciénda internacional da desgrasa que experimentam o Pe. Gleb e todos aqueles que sofrem ñas cámaras de tor tura dos cáreeres comunistas, os que combatem pela ¡ustica, pelos direitos religiosos e pela liberdade. Da nossa parte, ¡ulgamos ser obrigacao dos cristáos tornar mais e mais conhecida a sanha anti-religiosa que impera em nosso

país; ao mesmo tempo pedimos a todos os homens de boa vontade desaprovem enérgicamente a arbitrariedad» anti-religiosa e sustentem a legítima exigencia do Pe. Gleb».

O conhecimento

deste depoimento nao pode deixar de

avivar no leitor cristáo a alegría imensa de possuir a Biblia e os seus livros sagrados e deles dispor a fim de se revigorar

espiritualmente. Vé-se que muitos e muitos irmáos na fé tudo dariam para utilizar tais recursos sem que isto lhes seja facultado.

«Bem-aventurados os vossos olhos porque véem e os vossos ouvidos porque ouvem. Em verdade, vos digo: muitos

profetas e justos desejaram ver o que estáis vendo e nao o viram, e omir o que estáis ouvindo e nao o ouviram!» (Mt 13,16s). — 201 —

Entre as formas de piedade...

É Bom Fazer Promessas?

,Em sínlese: O presente artigo analisa a prátlca das promessas feitas a Deus ou aos santos por pessoas desejosas de obter alguma grasa.

Tal prática tem fundamento na própria Biblia (cf. Gn 28,20-22; 1Sm 1,11). Todavia verifica-se que os autores bíblicos faziam advertencias aos fiéis no sentido de nSo prometerem o que nSo pudessem cumprir (cf. Ecl 5,4). No Novo Testamento Sao Paulo quis submeter-se ás obrigacdes do voto

do nazireato (cf. At 18,18: 21,24). Estas ponderac.6es mostram que a prática das promessas como tal nao é má. E corto, porém, que as pro messas nao movem o Senhor Deus a nos dar o que Ele nao quer dar,

pois Deus já decretou desde toda a eternidade dar o que Ele nos dá no tempo, mas as promessas contribuem para afervorar o orante, exci

tando neste maior amor. Acontece, porém, que multas vezes os cristáos nao tém nocáo clara do porqué das promessas ou prometem práticas que eles nao podem cumprir. Dal surgem duas obrigagóes para quem tem o encargo de orientar os IrmSos: 1) mostre-lhes que as promessas nada tém de mágico ou de mecánico, nem se destinam a dobrar a vontade de Deus, como se o Senhor se pudesse deixar atralr por pro

messas, á semelhanga de um homem; 2) procure íncutir a nogáo de que o cristao é filho do Pal e, por isto, nao precisa de prometer ao Pai; o amor filial com que o cristáo reze a Deus, é mais eloqüente do que a linguagem das promessas, que podem ter um sabor "comercial" ou multo

pouco filial.

Comentario: Entre os fiéis católicos nao é raro fazerem-se promessas a Deus ou a algum santo,... promessas de algum

ato heroico a ser cumprido caso a pessoa receba a graga que deseja. Era conseqüéncia, fala-se de «pagar promessas». Nao

raro os fiéis que prometem, depois de atendidos, nao tém condigóes físicas, psíquicas ou financeiras para pagar as suas pro

messas. Sentem-se entáo angustiados, pois receiam que algo de

mau ou um castigo lhes sobrevenha da parte de Deus por nao cumprirem as suas «obrigagóes». O problema é tormentoso e

merece ser analisado desde as suas raizes, ou seja, a partir do conceito mesmo de piedade que os fiéis cristáos devem alimen tar. É o que vamos fazer ñas páginas subseqüentes, examinan do: 1) a fundamentagáo bíblica, 2) a justificativa teológica das promessas, 3) a casuística ocasionada, 4) urna conclusáo final. — 202 —

É BOM FAZER PROMESSAS?

1.

47

Funcfamentacao bíblica

O costume de fazer promessas ou, segundo linguagem mais bíblica, votos tem origem na piedade popular ante rior a Cristo. É documentado pela própria Biblia, que nos mostra como pessoas, em situagóes difíceis necessitando de um

auxilio de Deus, prometeram fazer ou omitir algo, caso fossem

ajudadas pelo Senhor. Foi, por exemplo, o que aconteceu com Jaco, que, ao fugir para a Mesopotámia, exclamou: «Se Deus

estiver comigo, se me proteger durante esta viagem, se me der pao para comer e roupa para vestir e se eu regressar em paz á casa de meu pai,... esta pedra... será para mim casa de Deus e pagarei o dízimo de tudo quanto me concederdes» (Gn 28, 20-22). Ana, estéril, mas futura máe de Samuel, fez a seguinte promessa: «Senhor dos exércitos, se vos dignardes olhar para a afligáo da vossa serva e... lhe derdes um filho varáo, eu o

consagrará ao Senhor durante todos os dias de sua vida e a navalha nao passará sobre a sua cabeca» (ISm 1,11). Alguns salmos exprimem os votos ou as promessas dos orantes de Is rael; assim os de número 65. 66. 116; Jn 2,3-9.

A própria Escritura, porém, dá a entender que, entre os membros do povo de Deus, houve abusos no tocante as pro

messas: algumas teráo sido proferidas impensadamente: «É melhor nao fazer promessas do que fazé-las e nao as cumprir» (Ecl 5,4). Havia também quem quisesse cumprir as suas pro

messas oferecendo o que tinha de menos digno ou valioso em vez de levar ao Templo as suas melhores posses; é o que observa o Senhor por meio do profeta Malaquias: «Trazeis o animal roubado, o coxo ou o doente e o ofereceis em sacrificio. Posso eu recebé-lo de vossas máos com agrado?... Maldito o embusteiro, que tem em seu rebanho um animal macho, mas consagra e sacrifica ao Senhor um animal defeituoso» (MI 1, 13s). Com o tempo os mestres de Israel procuravam restringir a prática das promessas, pois podiam tornar-se um entrave para a verdadeira piedade. No Evangelho Jesús supóe que certos filhos se subtraiam ao dever de assistir aos pais, alegando que tinham consagrado a Deus todo o dinheiro dispomvel: -Vos por que violáis o mandamento de Deus por causa da vossa

tradicfio? Com afeito, Deus disse: 'Honra leu pai e tuai mae" e Aquete

que maldisser pai ou m§e. certamente oeve morrer. Vos. PWém, dizels. 'Aquele que disser ao pai ou á mae: Aquilo que de mlm poderlas rece

be? fol consagrado a Deus, esse nao está obrigado a honrar pal ou maé1. Assim Invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradicSo (Mt

15,3-6).

— 203 —

48

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

Todavía nao consta que o Senhor Jesús tenha condenado o costume de fazer promessas como tal; ao contrario, os es critos do Novo Testamento atestam a prática de S. Paulo, que terá sido a dos cristáos da Igreja nascente e posterior: "Paulo embarcou para a Siria... Ele havia rapado a Cencréla por causa de um voto que tinha feito" (At 18,18).

cabeca em

"Dlsseram os judeus a Paulo: 'Temos aquí quatro homens que íizeram um voto... Purifica-te com eles, e encarrega-te das desposas para que possam mandar rapar a cabega. Assim todos saberlo que sao fal sas as noticias a teu respeito, e que te comportas como observante da Leí'" (At 21,23s).

Em síntese, a praxe das promessas nao é má, pois a S. Es critura nao a rejeita, mas, ao contrario, torna-se objeto de determinagóes legáis, como se depreende dos textos abaixo: Lv 7,16: "Se alguém oferecer urna vitima em cumprimento de um voto ou como oferta voluntaria, deverá ser consumida no dia em que for oferecida, e o resto poderá ser comido no dia ¡mediato". Nm 15,3: "Se oferecerdes ao Senhor alguma oferenda de combusISo, holocausto ou sacrificio, em cumprimento de um voto especial ou como oferta espontánea...11.

Nm 30,4-6: "Se urna mulher fizer um voto ao Senhor ou se Impuser urna obrigacáo na casa de seu pai, durante a sua juventude, os seus

votos seráo válidos, sejam eles quais forem. Se o pai tiver conhecimento do voto ou da obrigacáo que ela ¡nipos a si mesma e nada disser, toda a obrigacSo que se impós a si mesma será válida. Mas, se o pai os desaprovar, no dia em que deles tiver conhecimento, todos os seus votos ... porque seu pal se

ficarSo opós".

sem

valor

algum.

O

Senhor

perdoar-fhe-á,

Dt 12,Ss: "So Invocareis o Senhor vosso Deus no lugar que Ele escolher entre todas as vossas tribos para af firmar o seu nome e a sua morada. Apresentareis ali os vossos holocaustos,... os vossos votos..."

Verifica-se, porém, que a prática dos votos nem sempre é salutar, merecendo por isto advertencias da parte dos autores sagrados.

2.

Qual a justificativa das promessas?

É certo que as promessas nao sao feitas para atrair Deus como se atrairia um homem poderoso, capaz de ser aliciado por dádivas e «pagamentos»; Deus nao muda de designio; desde toda a eternidade Ele já determinou irreversivelmente dar-nos o que Ele nos concede dia por dia. Todavía, ao determinar que — 204 —

É BOM FAZER PROMESSAS?

49

nos daría as gragas nécessárias, Deus quis incluir no seu de signio a colaboragáo do homem que se faz mediante a oragáo; com outras palavras: Deus quer dar..., e dará..., levando em conta as oragóes que Lhe fazemos. Sobre este fundo de cena as promessas tém valor nao tanto para Deus quanto para nos, orantes; sim, as promessas nos excitam a maior fervor; sao o testemunho e o estímulo da nossa devogáo; supóe-se que quem promete e cumpre a sua promessa, exercita em seu coracáo o amor a Deus; ora isto é valioso. Por consegrante, quem vive a lnstituigáo das promessas em tal perspectiva, pode estar fazendo algo de bom, pois concebe mais amor e fervor. Diz o Senhor no Evangelho, referindo-se á pecadora que lhe lavou os pés com as lágrimas: «Porque demonstrou muito amor, seus muitos pecados lhe estáo perdoados» (Le 7,47). Paralelamente diríamos: se a pessoa que faz urna promessa exprime grande

amor, pode estar-se abrindo mais plenamente á misericordia e á liberalidade do Senhor Deus.

3.

E a casuística das promessas?

Há pessoas que, depois de receber o dom de Deus, se véem embaragadas para cumprir as suas promessas, porque nao tém condigóes de saúde, de tempo ou de bens materiais para executar o que prometeram.

Que fazer?

— Antes do mais, afastem a hipótese, as vezes comuni

cada por religióes nao cristas, de que, se nao «pagarem as suas obrigacóes», estaráo sujeitos a graves desgragas; na ver-

dade, Deus nao é vingativo nem é policial que pune contravengóes, mas é Pai..., de tal modo que pensar em Deus deve des pertar no cristáo sentimentos de paz, confianga e alegría. Isto,

porém, nao quer dizer que o cristáo despreocupadamente deixe

de cumprir as suas promessas. Quem nao as pode executar, procure um sacerdote e pega-lhe que troque a materia da pro

messa. Esta solugáo condiz com os textos bíblicos que, de um lado, exortam a nao deixar de cumprir o prometido (cf. Ecl 5,3), e, de outro lado, prevéem a insolvencia dos fiéis e a pos-

sibilidade de comutagáo dos votos (ou promessas) por parte dos sacerdotes: — 205 —

50

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1932

"Se aquele que flzer um voto nfio puder pagar a avaliacSo, apresentará a pessoa diante do sacerdote e este fixá-la-á; o valor será fixado pelo sacerdote de acordó com os meios de quem fizer voto" (Lv 27,8; Cf. Lv 27,13s.18.23).

Poderá acontecer que, em certos casos, o padre julgue

oportuno dispensar, por completo, de certa promessa o fiel cristáo.

A propósito convém incutir que, se alguém quer fazer urna promessa, evite propor certas práticas que sao um tanto irracionais (como ocorre na peca «O pagador de promessas»); procure, ao contrario, prometer práticas nao sonriente exeqüíveis e razoáveis, mas também úteis á santificagáo do próprio sujeito ou ao bem do próximo. Nao tem sentido prometer algo que outra pessoa deverá cumprir, como é o caso de pais que prometem vestir o seu filho «de Sao Sebastiáo» no dia da festa do Santo; esta prática como tal nao fomenta o amor a Deus e ao próximo. Quanto aos ex-voto (cabecas, bracos, pernas...

de cera), que se oferecem em determinados santuarios, podem ter seu significado, pois contribuem para testemunhar a mise ricordia de Deus derramada sobre as pessoas agraciadas; assim levaráo o povo de Deus a glorificar o Senhor; mas é preciso que as pessoas agraciadas saibam por que oferecem tais obje tos de cera, e nao o fagam por rotina ou de maneira incons ciente. Entre as práticas que mais se podem recomendar, apontam-se as tres clássicas que o Evangelho mesmo propóe: a oragáo, a esmola e o jejum (cf. Mt 6,1-18). Com efeito, a S. Missa é o centro e o manancial, por excelencia, da vida crista, vida crista que se nutre outrossim mediante a oragáo; a es-

mola e a colaboragáo com o próximo recobrem a multidáo dos pecados (cf. lPd 4,8; Tg 5,20; Pr 10,12); o jejum e a mortificagáo purificam e libertam das paixóes o ser humano, possibilitando-lhe mais frutuoso encontró com Deus através dos véus desta vida. Se a prática das promessas levar o cristáo ao exercicio destas boas obras, poderá ser salutar. Requer-se, po-

rém, que os pastores de almas e os catequistas instruam devidamente os fiéis a fim de que compreendam que as promessas nada tém que ver com as «obrigagóes» dos cultos afro-brasileiros, mas háo de ser expressóes do amor filial e devoto dos cristáos ao Senhor Deus. — 206 —

É BOM FAZER PROMESSAS?

4.

51

Conclusfio

Como se vé, a prática das promessas pode ser funda

mentada na própria Biblia. Verifica-se, porém, que já os au

tores sagrados lhe faziam certas restrigóes. Hoje em dia nota-se que freqüentemente alimenta urna mentalidade religiosa «comercial» ou amedrantada e doentia, gerando fácilmente o escrúpulo mórbido. Muitas pessoas se sobrecarregam com pro messas e mais promessas que elas nao conseguem cumprir; em vez de fomentar a vida crista, as promessas a prejudicam

nao raras vezes. Por isto é de sugerir que os cristáos reconsiderem tal costóme, que de resto parece mais fundado numa concepcáo antropomórfica de Deus (concebido como o Grande Banqueiro, cuja benevolencia é preciso cativar) do que na au

téntica visáo que o Cristianismo tem de Deus. Este é Pai,

Aquele que nos amou primeiro, antes mesmo que O pudésssmos amar (cf. Uo 4,19.9s; Rm 5,7s); por conseguinte, somos seus filhos, certos de que o amor do Pai é irreversível ou nao volta atrás, cientes também de que, antes que Lhe pecamos

alguma coisa, Ele já decretou dar-nos tudo o que seja condizente com o nosso verdadeiro bem; diz Sao Paulo: «Aquele que nao poupou o seu próprio Filho, mas O entregou por todos nos, como nao nos terá dado tudo com Ele?» (Rm 8,32).

(Continuacáo da pág. 197)

dade

Cenobítica Interconfessional

de

Bose

(Italia),

o

Proí.

Dalmazio

Mongillo, presidente da Associacao dos teólogos moralistas italianos, o Prof. Nicola Negretti, doutor em ciencias bfblicas e o ensaista Arturo Paoli. Esses autores abordam assuntos como a Juslica no Mundo, o diálogo entre cristáos e marxistas, a Eucaristía e a sua repercussáo na militancla profesional e política do crlstáo (é desta terceira temática que se deriva o titulo da coletánea: A luta e a Eucaristia). Em síntese, a preocupacfio dos autores é a de colocar o cristáo diante dos desalios socio-políticos do mundo contemporáneo. Como toda obra de debates, esta aprésenla poslcóes díscutiveis, formuladas pelos respectivos autores para provocar a reflexSo e o aprofundamento de lemas atuais. O fato de se tratar do texto de debates explica que nem todas as páginas do lívro sejam clara e lógicamente concatenadas como se pcderia desejar. Chama a atencao o artigo "Urna poética do Cristo", de Roger Garaudy, que fala urna linguagem crista sem desuses, mas vm tanto metafórica (págs.

70-78).

O livro é certamente denso de conteúdo, portador de interessantes ponderacoes sobre a candente e triturada problemática sócio-polltica; enriquecem-no valiosas citacdes de textos de filósofos e pensadores notáveis. Será útil para favorecer e alimentar a reflexSo de um leltor do certa formacio teológica o política. (Continua na pág. 212)

— 207 —

Quem conhece

A Imagem da Virgem de Guadalupe?

Bu sínlese: O presente artigo refere experiencias recém-realizadas em torno da imagem da Virgem de Guadalupe, das quais resulta tratar-se

de fenómeno inexpllcável á luz das lels da natureza. Nenhum pintor teria efetuado tal imagem, por mais fina e esmerada que fosse a sua arte.

É de conhedmento geral, entre católicos e nao católicos, a existencia de famoso santuario consagrado a Nossa Senhora de Guadalupe no México. De resto, é o santuario da padroeira da América Latina, cuja festa é celebrada a 12 de dezembro. Ora há fatos inexplicáveis recém-descobertos no tocante a tal santuario e á imagem que contém. Tais fatos se tornam indi cios de real intervengáo dos céus ñas origens desse lugar de oracáo. A fim de melhor informar os nossos leitores, e em vista de sugestáo trazida por amigos a PR, transcreveremos,

a seguir, em traducio portuguesa o artigo de Torcuato Luca de Tena que expóe a seqüéncia dos acontecimentos notáveis concernentes ao santuario de Guadalupe.

INEXPLICÁVEL As

assombrosas

descobertas

científicas

que

recenlemenle

se

fizeram, e aínda conlinuam a ser feitas, em torno da imagem mexi cana

da Virgem de Guadalupe

deixam literalmente estupefatos a

todos que as conhecem.

BREVE

RETROSPECTO

Para entender a importancia de tais eventos, é preciso fazer breve

retrospecto

do que antiga e

piedosa

historia narra

acerca

da milagrosa confeccao da imagem, nao pintada por raáo de homem — segundo esta tradicao —, mas, sim, milagrosamente impressa na túnica de um indio chamado Juan Diego em 1531. O relato que conta este sucesso, está escrito em náhualt (a língua dos aztecas) com caracteres latinos, e foi editado em seu idioma — 208 —

A IMAGEM DA VIRGEM DE GUADALUPE

53

original e em espanhol em 1949, aproximadamente un século após sua primitiva redacao, por iniciativa de um tal bacharel Luis Lasso de la Vega. Refere esta historia que Juan Diego insistiu repetidas vezes com o primeiro Bispo do México, o franciscano Frei Juan de Zumárraga, para exprímir-lhe um desejo que Ihe havia manifes tado a Mae de Oeus em diversas aparicoes: María SS. pedia a edificacao de urna ermida no lugar denominado Cerro de Tepeyac.

Para desvendlhar-se do visionario sem o magoar, ó afável Bispo pediu ao indio que Ihe levasse urna prova convincente de que dizia a verdade. E que, em caso contrario, nao o molestasse mais. Alguns días mais tarde retornou Juan Diego levando como prava urna porcao das chamadas «rosas de Castilla», que nao podiam

florescer naquela estacao do ano (mes de dezembro) e que ele afirmava Ihe haviam sido entregues pela própria Virgem a fim de que as mostrasse ao Bispo. O ¡ovem trozia as flores na túnica ou tilma milagrosamente estampada do indio Juan Diego. Este é o relato, sumarissimamente narrado, escrito em língua náhualt no tempo em que ainda vivia Hernán Cortés.

A explosao devota que desde os primeiros tempos da padficacáo do México se produziu fo¡ tao inusitada, e tao notáveU as peregrinacoes espontaneas de indios que acudiam de toda a parte

para

render culto á imagem, que o evento nao pode deixor de

íer mencionado por Bernal Díaz del Castillo em sua magna crónica da conquista de Nova

Espanha.

E chegamos a nossos días — ou melhor, a nosso século —, em que se constituiu urna Comíssáo de estudos para investigar nao poucos fenómenos inexplicáveis da famosa tilma de Juan Diego.

OS EXAMES CIENTÍFICOS 1. Em primeiro lugar, chama a atencao dos peritos téxteis a singular conservacao do rude tecido. Hoje em dia está protegido por cristais. Mas durante séculos esteve exposto, sem maiores cuida dos, aos rigores do calor, da poeira e da umidade, e todavía sua tessítura

nao se

desfibrou

nem

tampouco

se

Ihe

desvanesceu

a

admirável policromía.

A materia física sobre a qual a imagem ficou estampada, é recido confeccionado com fibra de ayate, da espéde mexicana «agave potule zacc», que se decompóe por putrefacáo aos vinte anos aproximadamente, como se provou com varias reproducóes — 209 —

54

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

feitas de propósito. de

Cortés

Em coníraposicao, a túnica do contemporáneo

¡ó dura quatrocentos

e anquento

anos

sem

se

rasgar

nem decompor, e, por causas incompreensfveis para os mencionados peritos, é ¡muñe a umidade e á poeira. Atribuiu-se esta virtude ao tipo de pintura que cobre a tela e

que poderío muíto bem atuar como poderosa materia protetora; em conseqücncia do que, enviou-se urna amostra para que fosse anaUsada pelo dentista alemáo e premio Nobel de Química Richard Kuhn,

cuja resposta deixou perplexos os consultantes. Os corantes da imagem guadalupana — respondeu o sabio alemáo — nao pertencem ao reino vegetal, nem ao mineral nem ao animal.

Pensou-se que talvez a tela estivesse tratada por um procedimento especial.

As grandes pinturas da antigüidade puderam chegar até nos por estarem os tecidos que as recebiam (ou os para mentos dos «frescos») previamente «preparados», cobertos por urna cola ou estuque especiáis. De que notável consistencia sería esta preparacao para que a pintura pudesse aderir e conservar-se incólume sobre materia tao frágil e perecível, como ó o ayate?

Confiou-se a dois estudiosos norte-americanos (o doutor Callagan, da equipe científica da NASA, e o professor Jody B. Smith, catedrático de Filosofía da Ciencia no Pensacolla College) a tarefa de submeterem a imagem guadalupana á análise fotográfica com raios infra-vermelhos. As suas concluoes foram as seguintes: Prímeira:

O ayate —

tela rala

de

fio de maguey —

nao

possui preparacao alguma, o que torna inexplicável, á luz dos conhecimentos humanos, que os corantes impregnen! fibra tao inadequada e nela se conserven!. Segunda: Nao há esbocos previos, como os descobertos pelo mesmo processo nos quadros de Velázquez, Rubens, El Greco e Ticiano. A imagem foi pintada diretamente, tal qual a vemos, sem esbocos nem retificacoes.

Terceira: No há pinceladas. nhecida na historia da pintura.

A técnica empregada é deseoÉ inusitada, incompreensível e

irrepetível.

2. Paralelamente a isso, conhecido oculista, de nome hispano-francés, Torija Lauvoignet, examinou com um oftalmoscópio de alta potencia a pupila

da imagem

e

— 210 —

observou,

maravilhado, que

A IMAGEM DA VIRGEM DE GUADALUPE

55

na iris se vía refletida urna mínima figura que parecía o busto de um

homem.

E este foí o antecedente ¡mediato

para promover a

¡nvestigacao que passo a explicar: a «digilalizacáo» dos cihos da Virgen» de Guadalupe.

Sabemos que na córnea do olho humano se reflete o que a pessoa está vendo no momento. O doutor Aste Tonsmann fez fotografar (sem que ele estivesse presente) os olhos de urna filha sua, e, utilizando o procedimento denominado «processo de digitalizar imagens», pode, sem mais, averiguar tudo quanto via sua filha no momento de ser fotografada. Este mesmo dentista, cuja profissáo atual é a de captar as imagens da Térra transmitidas no espago pelos satélites artificiáis, «digitalizou» no ano passado (1980) a imagem guadalupana e os resultados comecam agora a ser conde cidos. Consiste o procedimento em dividir a imagem em quadrículas microscópicas até o ponto de, numa superficie de um milí metro quadrado, caberem vinte

e sete mil setecentos e setenta e

oito ínfimos, mínimos quadradinhos. Urna vez feito isto, cada miniquadrícula pode ser ampliada, multiplicando-se por dois mil, o que permite a observando de pormenores impossíveís de serem captados a olho nu. Ora os pormenores que se observaram na iris da ima gem guadalupana sao: um indio no ato de desdobrar sua tilma perante um franciscano; o próprio franciscano, em cu¡o rosto se vé escorrer urna lágrima, urna pessoa muito jovem, tendo a mSo sobre a barba com ar de consternacáo; um indio com o torso desnudo em

atitude quase orante; urna mulher de cábelo crespo, provavelmente urna negra, servical do Bispo; um varáo, urna mulher e urnas crian-

cas com a cabeca meio-raspada e com hábito franciscano, isto ó... náhualt

mais outros Religiosos vestidos o mesmo episodio relatado em

por um anónimo escritor indígena na primeira metade do

século XVI e editado em náhualt e em espanhol por Lasso de la

Vega em 1649, consoante já mencionei! Atua(mente estudos iconográficos estáo sendo feitos a fim de comparar estas figuras com os retratos conhecidos do Arcebispo Zumárraga e de pessoas de seu tempo ou do lugar. O que é radi calmente ¡mpossível, é que num espaco táo pequeño como a cór nea de um olho, situada numa imagem de tamanho aproximado ao natural, um miniaturista tenha podido pintar aquilo que foi necessário ampliar em duas mil vezes para que pudesse ser percebido.

— 211 —

56

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

CONCLUSAO O

advogado

e

professor

Luís

Fernández

Hernández,

antigo

colaborador na Espanha da Editorial Católica, solidtou-me que Ihe prefaciasse um livro escrito para celebrar o 450° aniversario dos mis teriosos eventos da colina de Tepeyac, que tiveram como

protago

nistas o indio Juan Diego e o Bispo espanhol Freí Juan de Zumárraga.

Os dados por mim aquí apresentados, tomei-os deste livro, de próxima aparicao.

«Inexplicávell», exclamaram os membros da Comissáo de Es-

Judos quando conheceram o veredito do sabio germánico Richard Kuhn segundo o qual a policromía da imagem

guadalupang nao

procedía de corantes minerais, vegetáis ou animáis. «Inexplicável!», declararam por escrito os estudiosos norte-americanos Smith e Callagan ao verem por meio dos raios infra-vermelhos que a «pintura» nao apresentava pinceladas, e estova isento de toda preparacáo o miserável ayate da tilma de Juan Diego. E o doutor Aste Tonsmann,

ao mencionar em numerosas conferencias o achado de figuras huma nas de tamanho infinitesimal na iris da Virgem, nao se cansa de repetir: «Inexplicável! Radicalmente inexplicávelb (Extraído do jornal ABC, edicBo internacional, n




(ContinuacSo da pág. 207)

Compromisso da (é, pelo Pe. Humberto Nlenhuis. — Ed. Loyola, SSo Paulo 1981, 140 X 210 mm, 115 págs. Precisamos de compendios da doutrina da fé para a formaefio reli giosa e teológica do povo de Deus. Ora o Pe. Humberto, após longos anos de dedicacáo á catequese, brinda o público com um manual da mensagem católica, que nao se dirige a criancas, mas a jovens e adultos. O teor dessa obra é, em parte, aceitável; redigida em estilo claro e sucinto, tem páginas Interessantes. O que se Ihe pode objetar, é que ás vezes se aprésenla incompleta ou também um tanto superficial. Assim, por exemplo, ao talar de "Vida além da morte" (págs. 171-76), n§o menciona nem o purgatorio nem o Inferno — o que é grave. A p. 93, na quarta linha de balxo para cima, faltou a preposiefio nSo, que é decisiva; lela-se, pois: "Esta cruz nao pode ser pretexto para se modi

ficar as leis do casamento que tém sua origem

no mesmo Deus". A

p. 94 sugerimos que em próxima edigáo se diga: 'O contrato civil entre fiéis católicos apenas estabelece direltos e deveres que podem ser anulados pelo divorcio". Na verdade, o casamento é urna instituicSo natural que por si mesma é ¡ndissolúvel; todavía para os fiéis católicos essa instituicao é elevada á ordem sacramental, de modo que dois cató licos que n3o se casem sacramentalmente, mas apenas no foro civil, nSo estao casados diante de Deus. A p. 75 pode-se perguntar por que a expressSo "dez virgens" foi substituida por "dez mocas". As virgens, no Evangelho e na espiritualidade crista, tém significado próprlo. A p. 74 o argumento contra a reencarnado é fraco; outras razSes mais sólidas poderiam ser aduzldas.

É o que observamos com respeito e estima pelo autor.

— 212 —

E.B.

No ano do Anclao:

Questoes Eticas Relativas aos Gravemente Enfermos e aos Moribundos

Em síntese: de normas

e moribundos. de

O Pontificio Conselho "Cor Unum" publicou urna serie

que visam a

tornar

mais

humano o tratamento dos enfermos

Entre outras coisas, lembra que estes nio apenas preclsam

medicamentos

e

cuidados

profissionais,

afetiva da parte dos familiares e enfermeiros. disto, as uso de

conhecidas teses da analgésicos

e

a

Moral

católica

questoes afins,

mas

também

da

presenta

O documento repete, além referentes

procurando

á

eutanasia,

fundamentá-las

ao com

amplidáo e solidez.

O Pontificio Conselho Cor Unum tem em mira a promogáo humana e crista de todos os homens. Fundado por Paulo VI aos 15/07/1971, acha-se atualmente sob a presidencia do Cardeal Bemardin Gantin. Últimamente Cor Unum reuniu urna comissáo interdiscipliriar de estudiosos para se debrucarem sobre as mais recentes questoes langadas á consciéncia crista no trato com os enfermos e moribundos: eutanasia,

analgésicos, morte do cerebro, acompanhamento dos agoni zantes, responsabilidade dos familiares e do pessoal sanita rio... Deste trabalho resultou importante documento, que vai abaixo publicado em tradugáo portuguesa 1.

Estamos certos de que a reflexáo sobre tais problemas

será útil ao público brasileiro, que em escolas e em ambientes governamentais debate a eutanasia e assuntos correlatos. Ademáis estamos no Ano Internacional do Anciáo...

i Esta

se

baseia

II Regno/DOcumenti,

no

texto

n« 450, 1
italiano

de

do

novembro

documento

Se alguém Julgar o documento demasiado longo, tese proposta ás págs. 231 s.

— 213 —

publicado

por

1981, págs. 602-608.

lela apenas a sín

J8

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

1.1.

I.

O TEXTO

1.

Introdúcelo

O grupo de trabalho

Dentro das suas incumbencias de coordenar as aHvidades reali zadas no mundo católico com relacao á saúde, o Pontificio Conselho Cor Unum reuniu, de 12 a 14 de novembro de 197ó, um grupo de trabalho que se voltou para afumas questoes éticas concernentes aos gravemente enfermos e aos moribundos. Era um grupo interdisciplinar constituido por quinze pessoas: teólogos, médicos, membros de Congregacoes Religiosas dedicados aos doentes, enfermeiros, capelaes.

1.2.

O tema

Os recentes progressos da ciénda repercutem em escala crescente sobre a praxe médica, em particular no .que diz respeito qo entendímentó dos gravemente enfermos e dos moribundos. Este estado de coisas levanta problemas de ordem teológica e ética, a respeito dos quais as pessoas interessadas na área de saúde desejam ser escla recidas de maneira abalizada. Tal exigencia é experimentada por profissionais cristáos que trabalham em ambiente cristáo, e mais ainda por aquetas pessoas que, embora trabalhem em ambiente nao

cristao, devem inspirar a sua dar testemunho desta.

atividade nos principios da fé para

A área da Ética médica é, para muitos, objeto de especulacao, de informacóes imprecisas e de concepcoes erróneas: todos estes ele mentos criam grande confusao. A tarefa de Cor Unum nao é, por cerro, a de elaborar um vasto programa de pesquisas doutrínárias ou científicas, pois isto toca a organismos superiores e mais compe

tentes.

O encargo confiado ao grupo de trabalho eia rnois modesta

mente o de

analisar as nocoes básicas, por em evidencia algumas

distincoes imprescindíveis e formular respostas práricas para as interrogacóes oriundas da pastoral e do trato dos moribundos.

1.3.

A Sagrada Congregacáo para a Doutrina da Fé

Aos 5 de maio de 1980, essa Congregacáo publicou urna De-

claracáo sobre Eutanasia que expunha abalizadamente os principios

doutrinarios e moráis concernentes a este grave problema, que despertou o interesse da opiniáo pública; em conseqüéncia de alguns

— 214 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

59

casos particulares, mas famosos, do chamado 'encarnicamento tera péutico1, as consoiéncias comecaram a conceber suas ¡nterrocjacóes.

A Decíaracfio em paula, após ter recordado o valor da vida humana, trata da eutanasia, e oferece ao cristao alguns principios teóricos e

prátícos para enfrentar o problema do sofrimento e do uso dos

analgésicos, assim como o da uKlizacáo dos meios terapéuticos.

1.4.

A publicacáo de «Cor Unum»

O estudo do grupo de irabalho de 1976 é, antes, de ordem pastoral e responde a algumas perguntas precisas e concretas levadas a Cor Unum por sacerdotes, médicos e enfermeiros. Depois da De claracao sobre a Eutanasia, promulgada pela S. Congre.gacao para a Doutrina da Fé, o Pontificio Conselho Cor Unum foi solicitado a publicar o relatório preparado pelo seu grupo de trabalho; este fato Ihe oferece a ocasiáo de agradecer a todos aqueles que integraram o grupo com grande competencia e experiencia.

2. 2.1.

2.1.1.

Questoes fundamentáis

A vida

Significado cristao da vida

A vida é dom do Criador ao homem; este dom é concedido em vista de urna missáo. Por conseguinte, o primeiro ponto a por em evidencia nao é o 'direito á vida'; tal direito é decorrente da disposicao de Deus, que nao tenciona dar a vida ao homem como um

objeto do qual possa dispor á vontade. A vida é orientada para um objetivo para o qual o homem tem a responsabilidade de dirigir a sua perfeicao própria e pessoal, de acordó com o plano de Deus. O primeiro corolario desta afirmacáo fundamental é que renun

ciar á vida, por escolha pessoal, significa renunciar a urna finalidade da qual ninguém é senhor. Todo homem é chamado a fazer uso da sua própria vida, de modo que nao Ihe é lícito destruí-la com as suas mSos. Incumbe-lhe o dever de cuidar do seu corpo, das suas

funcoes, dos seus órgáos e de fazer o possível para tornar-se mais

capaz de chegar até Deus. Este dever implica renuncia a coisas que, como tais, sao boas; chega por vezes a exigir o sacrificio da saúde

e da própria vida, que, na verdade, nao é lícito antepor a valores superiores. De modo semelhante, os cuidados para manter a saúde e conservar a vida devem ser proporcionados tanto aos bens supe riores que possam estar em ¡ogo como as condicoes concretas ñas quais o homem vive c sua existencia própria.

— 215 —

80

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 262/1982

2.1.2.

Nao é lícito dispor da vida aJheia

Se nao é lícito a quem quer que seja dispor da sua vida, isto vale, com mais razño ainda, .quando se trata da vida de outrem.

Em particular, nao se pode fazer de um doente o objeto passivo de deásoes que a ele compete tomar ou, se ele nao está em condic5es de tomá-las, que ele nao poderia aprovar. A pessoa humana, prin cipal responsável por sua própria vida, deve ser o centro de qualquer intervencao ou cuidado assistencial; os acompanhantes Ihe estáo pre sentes para ajudá-la, nao para se substituir a ela. Isto, porém, nao quer dizer que os médicos e os familiares nao se vejam, por vezes, em situacáo de ter que decidir em lugar do paciente, incapacitado de fazé-lo, a respeito de cuidados e terapias a Ihe serem aplicados. A esses, porém, mais do que a outras pessoas, se aplica absoluta proibicáo de cometer um atentado contra a vida do paciente, ainda que o fizessem por compaixáo.

2.1.3.

Direitos

prímordiais

da

pessoa

O grupo de trabalho estabelece este principio como base das suas consideracóes. Nao pretende silenciar as ¡mensas dificuldades de dar significado á vida e a morte experimentadas por aqueles que nao compartilham a nossa fé ou nao alimentam conviccáo alguma a propósito da vida postuma. Quanto
é a defesa dos direitos prímordiais da pessoa humana; nao é licito transigir a este propósito, .principalmente quando tais direitos sao ameacados por motivos políticos e por leis injustas. A fim de con vencer a quem ¡ulga que tudo acaba com a morte e, por isto, nao

respeita nem a sua vida nem a vida alheia, o argumento mais eficaz consiste em apontar as conseqüéncias decorrentes, na sociedade, da falla de observancia dos direitos da vida. 2.2.

2.2.1.

A morte

Sentido cristáo da morte

A morte do homem vem a ser a cessacao da sua existencia em condicáo somática. A morte poe fim á fase da vocacao humana que consiste no esforco de tender, no tempo, á perfeicáo integral; para o cristao, o momento da morte é o da uniao definitiva ccm Cristo. Em nossos dias, torna-se mais do que nunca oportuno recordar esta concepcao religiosa e cristológica da morte, que há de ser acom-

— 216 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

61

panhada pelo sentimento muito vivo da ccntingéncia da vida corporal e pelo nexo existente entre a morte e a nossa condicáo de pecadores. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor (Rm 14,8). A nossa atitude diante de quem está para morrer, há de se inspirar

nesta concepcáo da morte, e jamáis deverá reduzir-se a um simples esforco da ciencia para afastar o mais possível o momento do desenlace.

2.2.2.

Direito a morte digna

A propósito os membros do grupo de trabalho proveniente do terceiro mundo exprimiram o desejo de se enfatizar a importancia de que o ser humano termine a sua vida, na medida do possível, observadas as características de sua personalidade e respeitadas as relacoes que a vinculam ao seu ambiente e, antes do mais, á sua familia. Entre os povos tecnológicamente menos desenvolvidos, mas também menos sofisticados, a familia cerca o paciente que está para

morrer, e este reconhece como urna necessidade e um direito essencial o fato de estar assim acompanhado pelos seus. Em vista das condipóes exigidas por certos tratamentos que impóem total isolamento ao enfermo, nao é fora de propósito recordar .que o direito de morrer como pessoa humana e com dignidade comporta esta dimensáo social. 2.3. 2.3.1.

O sofrimento Significado cristo© do sofrimento

Nem o sofrimento (suffering) nem a dor (pain), que sao dis tintos um do outro, sao um fim em si mesmos. Em nivel científico reina ainda grande incerteza a respeito dos elementos constitutivos da dor. Quanto ao sofrimento, só tem valor aos olhos do cristáo por causa do amor que nele se exprime e por causa dos efeitos de purificacao que possa ter; como observou Pió XII no seu discurso de 24 de fevereiro de 1957, um sofrimento demasiado intenso pode im pedir o dominio que há de ser exercido pelo espirito. Por conse-

guinte, nao se há de crer que todo sofrimento e toda dor devam

ser suportados a qualquer cusió ou .que, com espíriio estoico, nada se deva fazer para procurar atenuá-los ou acalmá-los. A este pro pósito o grupo de trabalho julga que o melhor alvitre consiste em remeter ao texto de Pío XII.

2.3.2.

Efeitos do sofrimento e da dor

A capacidade de sofrer varia de acordó com os individuos. Toca á equipe sanitaria, ao médico, ao pessoal de enfermagem, sem esquecer o capelao, averiguar os efeitos do sofrimento e da dor sobre — 217 —

62

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

a situacáo espiritual e psicológica do paciente e proceder conse cuentemente ao se tratar de aplicar ou nao determinada terapia; é preciso também colocar-se em condicoes de perceber, ouvindo pa cientemente o enfermo, qual se¡a a realidade do seu sofrimento, do qual o paciente é o primeiro juiz. Nao há dúvida, o médico poderá julgar que ao doente falta um pouco de coragem e que o mesmo é capaz de suportar mais do que acredita, mas a última escolha toca ao paciente. 2.4.

2.4.1.

Os meios terapéuticos

Meios ordinarios e meios extraordinarios

O grupo se deteve sobre a distincao entre meios ordinarios e meios extraordinarios, que tém sua aplicacao nos tratamentos mé dicos. Se, na terminología científica e na praxe médica, o uso destas expressoes tende a ser superado, elas ainda tém valor aos olhos do teólogo para dirimir questoes moráis da maior importando, desde que o termo «extraordinario» qualifique meios aos quais nunca há a obrigacao de recorrer.

Tal distincao permite explorar mais a fundo algumas realidades complexas e exerce assim um papel de mediagáo. A vida no lempo é um valor primordial, nao, porém, absoluto; por isto torna-se ne-

cessárío definir os limites da obrigacao de manter-se em vida. A distincao entre meios ordinarios e meios extraordinarios exprime esta verdade e ilumina a aplicacao da mesma aos casos concretos. O uso de termos equivalentes, em particular o da expressao 'cuidado; pro porcionáis', exprime a questáo da maneira que parece maiy satisfatória. 2.4.2.

Criterios

Sao muiros os criterios para distinguir dos ordinarios os meios extraordinarios; serao aplicados de acordó com os casos concretos.

Alguns criterios sao objetivos, como, por exemplo, a natureza dos meios, o seu preco de custo, algumas consideracoes de ¡ustica na aplicacao de tais meios e ñas escolhas que esta implica. Outros cri terios sao de ordem subjetiva, como a necessidade de evitar, em determinado paciente, choques psicológicos, situacóes de angustia, de mal-estar, etc. Em todo e qualquer caso, para decidir a respeito dos meios a ser aplicados, procurar-se-á sempre estabelecer a proporcao entre o meio em pauta e o objetivo a ser atingido. texto se acha na publicacSo "A palavra do Papa" n? 2, págs. 45s (Ed. Lumen ChristI, Rio de Janeiro 1981). — Nota do tradutor.

— 218 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

2.4.3.

63

Importancia do criterio da qualidade de vida

Entre todos os criterios, atribuir-se-á peso especial ao tipo de vida a ser salva ou conservada pelo tratamento. A carta do Cardeal Vi I lo t ao Congres:o da Federacao Internacional das Aisociacoes Mé

dicas Católicas é explícita neste particular: 'É preciso enfatizar que o valor sagrado

da

vida é o

que proibe

ao médico matar e, ao mesmo tempo, Ihe impóe o dever de empenhar-se com todos os recursos da sua arte na luta contra a morte. |sto, porém, nao signuca esteja obrlgado a utilizar todas as técnicas de sobrevivencia que Ihe sejam oferecidas por urna ciencia incansavelmente crialiva. Em muitos casos, nSo seria tortura inútil impor a reanimagáo vegetativa na última tase de urna doenca incurável?' (La Doctunentation Catholique 1975, p. 963).

Como quer que seja, o criterio da qualidade de vida nao é o único a ser levado em consideracño, pois, como dissemos, também algumas ponderacoes de ordem subjetiva devem influir na formacao de um ¡uízo prudente sobre a acao a empreender ou a omitir. O que permanece fundamental, é .que a decisao se¡a tomada na base de argumentacao racional; esta deverá levar em conta os diversos elementos da situacao, inclusive a sua incidencia sobre o ambiente familiar. Por conseguinte, o principio reza que nao há dever moral de recorrer a meios extraordinarios e que, de modo especial, o médico

deve dobrar-se diante da vontade do doente que recusa tais meios.

3. 3.1.

A eutanasia

Imprecisáo do termo 'eutanasia'

Histórica e etimológicamente, a palavra 'eutanasia' significa 'urna morte suave e sem dor'. No uso corrente de nossos días, o termo indica urna acao ou omissao que tenha em vista abreviar a vida do paciente. Esta accepcao comum nao deixa de causar, ñas discussoes

sobre a eutanasia, considerável confusáo que é urgente dissipar. Alguns textos, como os que recentemente foram promulgados por certas

assembléias parlamentares, dáo-nos a ver quao dañosos efeitos pode produzir a atual falta de precisao. Por outro lado, os progressos da medicina contemporánea também tornaram ambigua e provavelmente supérflua a distincáo entre eutanasia ativa e eutanasia passiva, disrincao á qual sería preferivel renunciar.

— 219 —

64

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

3.2.

Atos e decisoes que nao entram no setor da eutanasia

Por conseguinte, o grupo é do parecer de que, ao menos nos ambientes católicos, predomine urna linguagem que nao recorra, em absoluto, ao termo eutanasia

para indicar os cuidados termináis (terminal core) destinados a tornar mais suportável a fase final da molestia

(reidratacao, tra-

tamentos de enfermagem, massagens, intervencóes médicas paliativas, presenta junto ao doente...); — nem para indicar a decisáo de renunciar a certas intervensoes

médicas que nao parecem adequadas á situacao do enfermo (na linguagem tradicional, 'decisáo de renunciar aos meios extraordina

rios'). Neste caso, nao se trata da decisáo de fazer morrer, mas de manter a medida diante dos recursos técnicos, de nao agir de maneira desarrazoada e de comportar-se segundo os ditames da prudencia;

nem para indicar urna ¡ntervencáo destinada a aliviar os

sofrimentos do enfermo, talvez com o risco de abreviar- Ihe a vida. Este tipo de intervencáo faz parte da missao do médico, que nao é apenas a de curar ou de prolongar a vida, mas, de modo mais geral, a de tratar do doente e dar-lhe alivio caso sofra. 3.3.

Significado estrilo do termo

Seria necessárío reservar o termo eutanasia ao ato de por fim aos dias do enfermo. E neste sentido que a eutanasia, como repele

Pío XII, ¡amáis é lícita (discurso de 24/11/1957; La Documentation Catholique, p.

1609).

Se bem que na prática as distincóes ácima sejam, por vezes, de

difícil aplicacáo, parecem aptas a conferir ao termo eutanasia ura significado nao ambiguo, e assim oferecer referenciais ao médico, que deverá tomar a sua decisáo após haver consultado a equipe sanitaria (especialmente os enfermeiros e as enfermeiras), o capeláo e a familia do enfermo. Ao decidir, o médico deverá levar em conla o fato de que os principios moráis ou os valores inerentes á pessoa

sao intocáveis e, por conseguínfe, ¡amáis pode ser contaminado por arbitariedade o ¡uízo sobre o que é preciso fazer ou nao fazer, con tinuar, cessar ou empreender.

— 220 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

4. 4.1.

65

O uso dos analgésicos na fase final

Metas diversos para aliviar o sofrímenlo

O uso dos analgésicos centráis aprésenla o risco de efeitos secundarios: acáo sobre as funcóes respiratorias, alteracáo da consciéncia, dependencia e rotina. Por isto é sempre preferível nao os utilizar quando se pode com outros meios aliviar o sofrimento do enfermo. Os outros meios sao múltiplos (remedios como a aspirina, a imobilizacáo de certas partes do corpo, radioterapia, também operacoes cirúrgicas..., e principalmente a luta contra a solidáo e a angustia do doente mediante urna presenta humana). Estño sendo lancadas também algumas técnicas que fazem apelo ao dominio do próprio corpo por parte do paciente.

4.2.

Uso dos analgésicos centráis

Em muitos casos, porém, o alivio de sofrimentos graves, por vezes intoleráveis, exige, no atual estado dos nossos conhecimentos e das nossas técnicas, o recurso a analgésicos centráis (como a mor fina) associados a outras drogas.

Nao há motivo para recusar a utilizacao de tais drogas, tanto mais que os seus efeitos secundarios podem ser grandemente reduzidos desde que de tas se faca uso sensato (doses adequadas a intervalos convenientes). O recurso a drogas eficazes contra a dor, mantendo-se, na medida do possível, a consciéncia do paciente,

requer um conhedmento perfeito de tais produtos, do seu uso, dos seus efeitos secundarios e das suas contra-indicagóes. Quando se tomam decisoes a tal respeito, a funcao do farmacéutico na equipe de saúde, e as vezes ao lado do enfermo, se revela importante.

4.3.

Necessidade de urna presenca humana

E necessárío nos acautelemos contra a tentacao de ver em tais drogas o remedio que por si baste para combarer o sofrimento. O

sofrimento humano traz consigo urna dimensao de angustia e de

medo diante do desconhecido representado pela doenca grave e pela proximidade da morte. Esta angustia pode ser atenuada, mas geralmente nao é eliminada por completo, mediante as drogas. Somente urna presenca humana, discreta e atenta, que permita ao doente exprimir-se e encontrar um reconforto humano e espiritual pode con seguir tranquilizar o paciente.

— 221 —

66

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

4.4.

é lidio imergir o doente no seu inconsciente?

Somos agora levados o considerar a questao: será licito, ao aproximar-se a morte, utilizar drogas que ¡mergem o paciente num estado de inconsciencia? Em alguns casos, o uso destas impóe-se e o Papa XII reconheceu a legitimidade das mesmas em certas condicóes (discurso de 24/02/1957). Todavía é forte a tentacáo de recorrer sistemáticamente a tais drogas, muitas vezes, sem dúvida, por compaixao, mas freqüentemente também mais ou menos deliberadamente, para evitar a todos os que abordam o doente (enfermeiros, familiares...) o relacionamento,

nao raro, difícil e cansativo com um ser humano próximo da morte. Em tais casos já nao se procura o bem da pessoa enferma, mas a protecao dos sodios no interior de urna sociedade que tem medo da morte e foge desta por todas as vias postas á sua disposicao. Priva-se

assim o doente da possibilidade de 'viver a sua própria morte', de chegar a urna aceitacao serena, á paz, á relacáo, muitas vezes, in tensa que pode surgir entre um ser humano reduzido a grande pobreza e um interlocutor privilegiado. Priva-se assim o doente da possibilidade de viver a morte em comunhSo com Cristo, se o mori bundo é cristao.

£ preciso, portanto, contestar a reducáo sistemática dos gra vemente enfermos á inconsciencia e, antes, convidar médicos e en fermeiros a receber a formacao necessáría para que possam ouvir o moribundo; faz-se mister que médicos e enfermeiros se apoiem uns aos outros na abordagem dos moribundos e ajudem os familiares a acompanhar o enfermo na última fase da sua vida.

4.5.

Narcose e decisáo do enfermo

No estudo da materia em foco,, o principio fundamental foi posto por Pió XII

no

¡á citado discurso: a dedsao compete ao enfermo.

'Seria evidentemente ¡líalo praticar a anestesia contra a explícita vontade do moribundo (quando este se acha sui iuris) *. Ainda que graves razoes militem em favor da anestesia, será preciso lembrar que

ao moribundo nao será lídto submeter-se á mesma, se nao tiver cumprido certos deveres que sao obrigatórios, no fim de urna vida* (ver abaixo, 6.1.1). O médico solidtado pelo doente a recorrer á narcose, 'principalmente se é cristao, nao se prestará a tal intervencao sem o ter convidado pessoalmente ou, melhor ainda, mediante outros a cumprir previamente os seus deveres' (1. cit.). Pío XII observa que, se o enfermo recusa, e insiste no seu pedido de narcose, ao médico é lícito praticá-la: 'o médico poderá consentir, sem se tornar

— 222 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

67

culpado de colaboracao formal, na omissáo verificada. Esta, em verdade, nao se deverá á narcose, mas á vontade imoral do pa ciente; tome ou nao os analgésicos solicitados, o comportamento do enfermo ficará sendo o mesmo: ele nao cumprirá o seu dever' (1. cit.).

5. 5.1.

A morte cerebral

A definicáo é de competencia da ciencia médica.

No discurso de 24 de novembro de 1957, Pío XII diz que 'toca ao médico... dar urna definicáo clara e preciso da morte e do momento da morte. E certo .que nao se pode esperar da ciencia

médica alga mais do que urna descricao de criterios que permitam afirmar que a morte ocorreu, mas o que o Papa intenciona dizer é

que este julgamento compete á medicina e nao á Igreja. As razSes

aduzidas por Pió XII para ¡lustrar a sua afirmacáo acrescentam-se

hoje as que se ¡mpoem para o transplante de órgaos: é necessário que os interessados possam averiguar a morte do doador antes de retirar o órgáo a ser transplantado.

5.2.

Dificuldades inerentes a tal definicao

Formular urna definicáo médica da morte é tarefa que se com plica pelo falo de que, no atual estado dos nossos conhecimentos, a morte nao parece consistir na paralisacao instantánea de todas as funcoes do organismo, mas, antes, numa serie progressiva de parali-

sacoes definitivas das diversas funcoes vitáis. Em primeiro lugar, de saparece a funcáo mais complexa, aquela que rege o conjunto do organismo e reside no cerebro; em segunda instancia, sao afetados pela necrose os diversos sistemas (sistema nervoso, s. cardiovascular, s. respiratorio, s. digestivo, s. uro-genital e s. locomotor) e, por último, os elementos celulares e subcelulares. Todavia em nossos dias ainda é preciso sejamos prudentes, pois subsistem numerosas incertezas a

propósito de urna definicáo médica da morte. Nao obstante, verifica-se um consenso crescente na sentenca que

considera morto o ser humano no qual se comprove falta total e

irreversivel de atividades do cerebro (morte cerebral).

Diversos espe

cialistas redigiram urna lista de criterios, nao idénticos entre si, mas convergentes, para fornecer um conjunto de indicios, ao menos alta mente prováveis. Atualmente estáo em vigor (ou estáo em via de elaboracáo) acordos-convenios e atos administrativos que visara a permitir a redacáo do atestado de óbito quando estáo presentes todos os elementos exigidos e, conseqüentemente, para proceder á retirada de órgaos em vista de um transplante. — 223 —

68

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

5.3.

A Igreja é interpelada

Da parte das familias, nota-se urna resistencia crescente para

autorizar a retirada de órgáos. Em conseqoéncia, como foi referido a este grupo de trabalho, certos ambientes médicos muito abalizados exprimiram o desejo de que a l,gre¡a publique urna declaracáo oficial sobre a validaeJe da afirmacáo de que a morte é real desde que se tenha averiguado a morte cerebral. Este grupo de trabalho ¡ulga que tal iniciativa é de competencia de organismos superiores; nao obstante, ele a assinafa as autoridades a cutas máos deverá chegar o presente

estudo. Mesmo que o pedido fosse levado em consideracáo, segundo os nossos teólogos, á Igreja nao tocaría satisfazer-lhe tornando sua urna afirmacao de ordem científica e, menos aínda, defíníndo criterios para discernir a morte cerebral. Quondo muito, a Igreja poderá re cordar as condicoes ñas quais é legítimo dar crédito ao ¡uízo prudente daqueles a cuja competencia específica toca determinar o fato da morte.

5.4.

Cuidados médicos nos casos de morte aparente

No tocante aos cuidados a prestar nos casos de morte aparente,

como disse Pió XII, é dever do médico esforcar-se com todos os meios

ordinarios para restaurar as funcoes vitáis. Contudo chega um mo

mento em que a morte há de ser considerada como um fato consumado e, por conseguinte, deve-se por fim as tentativas de reanimacáo sem incorrer em falta de ordem profissional ou moral (Pío XII, discurso

de 24/11/1957).

6. 6.1. 6.1.1.

Comunícaselo com os moribundos

O direito á verdade Preparacáo para a morte

O relacionamento com os que estao perto da «norte, póe para a Moral o problema do seu direito á verdade; também suscita para os agentes de pastoral e para os profissionais da saúde o problema do comportamento que a pessoa gravemente enferma tem o direito

de esperar daqueles que a cercam. Os que estáo para morrer e, mais amplamente, todos os que sao afetados por doenca incurável, tém o direito de ser informados sobre o seu estado. A morte representa

um momento importante demais para que a sua prospectiva se¡a evitada. Para quem eré, a aproximacSo da morte exige preparacáo — 224 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

69

especial e determinados a los praticados em plena consciéncia; para

todo homem, a aproximacao da morte traz consigo a responsabilidade de cumprir certos deveres concernentes ao relacionamento com a familia, á solucao de eventuais questSes profissionais, á atualizacáo da contabilidade, as dividas, etc. Verdade é que a preparacáo para a morte comeca muito antes da aproximacáo desta, ou seja, quando

a pessoa aínda goza de boa saúde.

6.1.2.

Responsabilidades dos acompanhantes

Toca aqueles que estáo mais perto do gravemente enfermo esclarecé-lo a respeito do seu estado. A familia, o sacerdote e o pessoal sanitario tém papel especial a exercer em tal situacáo. Cada caso tem as suas exigencias, em funcao da sensibilidade e das capa cidades das pessoas, em funcao do relacionamento com o enfermo e do seu estado de saúde; em previsáo das eventuais reacáes deste (revolta, depressáo, resignacSo, etc.), as pessoas se prepararáo para

enfrentar o enfermo com calma e com habilidade. £ oportuno deixar ao paciente um raio de esperanca e nao Ihe apresentar a prospectiva da morte como ¡nelulável, contanto que nao se silencie totalmente a possibilidade ou urna seria probabilidade de desenlace.

6.1.3.

Missáo do sacerdote

A assisténcia constante do sacerdote durante todo o decurso da doenca é de capital importancia. A missáo do padre confere a este urna funcao privilegiada na progressiva preparacáo da morte. Sem dúvida, permanece até o último momento o dever de crer na eficacia ex opere operato dos sacramentos1 (reconciliacáo, viático, sacra mento dos enfermos) e da administracao dos sacramentos sob condicáo nos casos previstos 2. Todavía o aparecimento repentino do padre nos últimos instantes de um enfermo torna muito difícil e, ás vezes, impossível, o exerctcio do seu ministerio. Por isto, o capelSo do hos pital procurará criar um clima de confianca através de constantes contatos com os enfermos, principalmente em ambiente de católicos

1 Os sacramentos oferecem a graga desde que validamente admi nistrados por aquele a quem compete, é esta eficacia que se chama ex opere operato (por efeito do próprio rito). 2 Quando já nao se tem certeza de que o paciente ainda está em vida, podem-se-lhe administrar a absolvicio sacramental e a Unció dos Enfermos sob condicio: "Se estas vivo, eu te absolvo..."

— 225 —

70

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

pouco praticantes ov indiferentes. Sem esconder injustamente a verdade, cuidará de nao precipitar a revelacáo da mesma. Além disto, nao é supérfluo insistir para que ao menos os hospitais católicos e o pessoal sanitario católico deixem o devido espaco ao sacerdote, seja

em vista da sua participacáo ñas decisoes da equipe de saúde, seja em vista das suas relacóes com o paciente.

6.2. 6.2.1-

Atitude da sociedade diartíe da morte No Ocidente

A sociedade ocidental conhece hoje a fuga generalizada diante da morte; os médicos, o pessoal dos hospitais a*sim como as familias dos doentes nao estfio isentas de tomar tal atitude. No interior do grupo de Trabadlo, a representante do Comité para a Familia levou alguns testemunhos impressionantes a respeito da orientacao da fa milia diante da morte no espaco de trinta anos: aceifacao da morte de urna máe por parte de todos os membros da familia, incluidos os mais ¡ovens. em torno de 1930; na década de sessenta, fuga diante da morte, silencio frente aos fílhos, abandono de esposa moribunda. Ora, enquanto há encarnicamento para afastar o momento da morte fisiológica e a tendencia a acalmar as dores com medidas farmacéu ticas, oeram-se a angustia e os mais graves sofrimentos moráis no paciente, que na maioria dos casos é mais consciente da gravidade do seu estado do que se imagina em torno dele. O enfermo experi menta tristeza, sentimento de culpa, ansia, medo, depressSo. . .. tudo isto acompanhado de dores físicas. A coisa DÍor para ele é o isolamento, a solidáo. que exerce o influxo mais qrave sobre o seu estado psícossomático. A tendencia a isolar o paciente, antes do mais, da

sociedade, a seguir, também da familia e, por fim, dos outros internos do hospital, priva-o de toda

possibilidade de comunicagao na sua

angustia. No entonto havería varios modos de quebrar a «ua solidáo sem agravar o sofrimento físico do paciente: a expressáo de um rosto, o contato de urna maol Urna presenca silenciosa é muita-s vezes tudo aue ele pede, . . . e pede com o mais intenso ardor.

A praxo dos hospitais ocidentais exige, a propósito, urna revivi'So radical. O pessoal do hospital, por motivos fundamentados, tende a proteger-se contra o contato obessivo com a morte. Por isto evita ficar junto dos moribundos; todavía a angustia destes pede um reconforto. Será tarefa de urna boa equipe de trabalho (médicos,

enfermeiro<¡,

capeláo)

zelar

para

que

privados deste apoio.

— 226 —

os

moribundos

nao

se¡am

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

ó.2.2.

71

Em oulras sociedades

Ao contrario, ourras sociedades nos dao notável exemplo de respeito ao direito do enfermo a ser assistido pelos seus e ao direito das familias a acompanhar os seus doentes. A familia militas vezes preferirá levar de novo para casa o paciente, a fim de assegurar-lhe o conforto da sua presenta e, se tem fé, a comunhao com o enfermo na oracáo. Sem dúvida, ás vezes será preciso saber por um limite a certas exigencias da familia e ás suas pretensSes de tudo decidir no

tocante ao tratamento do enfermo (a menos que se trate de enancas' subordinadas á jurisdicSo paterna), e isto no ¡nteresse do próprio enfermo. Mas nem por isfo se favorecerá urna tendencia, muito di fundida, a abstrair da familia, da sua presenca, e, em particular, dos seus justos pedidos de informaedo.

7. 7.1.

Responsabilidade do pessoal da saúde Necessário conhecimento da deontotogia

É evidente que os aspectos científicos da profissáo médica nao se podem fácilmente separar dos teus aspectos éticos. Se o desenvolvimento dos estudos fornece ao médico novos instrumentos e re cursos terapéuticos, muitas vezes em conseqüéncia o médico é colocado diante de problemas moráis sempre mais complexos. Já dissemos que toca ao médico preparar a sua decisao levando em con la criterios moráis objetivos; por isto deve conhecé-los e estar apto a aplicá-los

ás siliieicóes concretas. Os ensinamentos da Moral e e dos códigos deontológicos devem, pois, constituir parte integrante da formacáo do pessoal médico e sanitario. Tais enfinamentos nao podem ser considerados pelos professores e pelos estudantes como materia nao fundamental, pela qual se interessa quem tenha a curíosidade. Nos países regidos pela tradicao do Comtnon Law, os futuros médicos sao obrigados a conhecer as exigencias da deontoloqia profissional pelo

fato de que urna infracáo da mesma tem conseqüéncias penáis. Mas a nenhum futuro médico é lícito ignorar os ínferesses essendai
por vezes serao incluidos no conteúdo das aulas de teor científica. 7.2.

Escolha de tratamento

Como regra geral, e apesar do que dá a crer certa imprensa,

o médico dianfe do paciente nao está sujeito á alternativa: 'fazer morrer1 ou 'nao fazer morrer'. A sua decisao tem em mira um trata— 227 —

72

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

mentó e as suas indicacóes e contra-indicac5es — o .que exige a consideracao de diversos fatores. A avaliacáo de tudo isto ocorre a luz de determinados principios moráis, como também de urna serie de elementos científicos: daí o interesse, para o médico, de saber

fazer entrar uns e outros na sua reflexao sobre o que é feito e o que é omitido, sobre o momento de recorrer a meios extraordinarios e o de renunciar a estes,... por quais motivos e por qual duragáo. Acontece muitas vezes ho¡e que, quando se chega a questionar a

continuagao de urna terapia, se pergunta simplesmente se era opor tuno comegá-la. Pois há motivos moráis para prolongar a vida, mas também

há motivos moráis para

nao resistir á morte mediante o

'encarnicamento terapéutico'.

7.3. Entre

Terapias intensivas e escolha dos pacientes as questoes éticas despertadas pelo recurso a terapias

intensivas .que comportam instrumentos e técnicas altamente sofisti cadas e dispendiosas, póe-se a da selecao das pessoas as quais se

há de aplicar um tratamento que nao possa ser oferecido a todas as

vítimas da mesma doenga. £ legitimo aproveitar ao máximo dos re cursos da técnica médica em favor de um só paciente, quando tantos outros aínda estáo privados dos cuidados mais elementares? Tem-se o direito de colocar esta pergunta. Se alguns ¡ulgam que tais consideracóes sao contrarías ao progresso, os cristaos tém o dever de levar em conta tais ponderac5es. 7.4.

7.4.1.

Os enfermeiros e as enfeimeiras

Importancia da sua responsabilidade

Os enfermeiros exercem a funcao fundamental de intermediarios entre o médico e o paciente, aínda que muitos médicos tendam a considerar a sua funcao como meramente auxiliar. Também eles estáo sujeitos ao risco de evitar o paciente na fase final da sua doenga. NSo se pode esquecer, porém, a importancia capital de que muitas vezes se. revestem as suas iniciativas, como, por exemplo, a de chamar o médico diante de imprevisto agravamento do estado do paciente, ou a de aplicar ou nao o calmante que o médico tenha deixado ao alvitre dos mesmos, etc. Hoje em día, em muitas tnstituic.óes tende a prevalecer um auténtico espirito de equipe entre médicos e enfer meiros; a sua estrita colaboragao é essencial para aliviar e socorrer adequadamente «o paciente.

— 228 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

7.4.2.

73

Conseiéncta e colaboracóo

O enfermeiro, principalmente se trabalha em instituicoes ou a

servico de médicos nao cristfios, vé-se por vezes diante do dilema

suscitado pela ordem de um médico cuja execucao prejudica prove

niente ou mesmo atenta diretamente contra a vida do paciente.

Em tais casos, deverá observar a proibicáo absoluta de realizar qualquer ato que por sua natureza equivalha a matar. Nem prescricao do médico, nem pedido da familia nem súplica do paciente isen-

tam o enfermeiro da responsabilidade que Ihe toca. Outro é o caso quando o enfermeiro efetua por obediencia atos que, como tais, nao produzem a morte, mesmo que saiba que tendem a resultados ¡lícitos (por exemplo, abreviar os días do enfermo, suspender um tratamento

que nao possa ser tido como extraordinario, privar da consciénda

um doente que nao tenha tido condicSes de cumprir seus deveres... J.

Ao enfermeiro nao é lícito tomar a iniciativa de tais intervencoes;

nao poderá dar senSo urna colaboracáo material ¡ustificada pela necessidade do momento; esta necessidade será avaliada levando-se em conta a gravidade do ato, o grau de participacao do enfermeiro no processo global e na obtencao do efeito imoral, os motivos que levaran? o enfermeiro a obedecer... Na medida em que a sua condicao Iho permita, o enfermeiro que se vé assim envolvido em

práíicas que a sua consciéncia condena, procurará, apesar de ludo, testemunhar as seas convicepes.

Os sacerdotes e os médicos católicos tém a obrigacáo de ajudar os enfermeiros a enfrentar devidamente tais difíceis sifuacoes. 7.4.3.

Formacáo ética nos escolas de enfermagem

Tudo o que fo¡ dito no n* 7.1 a propósito da necessidade de formacáo ética do pessoal médico e sanitario vale também para as

escolas de enfermagem. As escolas católicas tém o direito e o dever de defender, no seu ensinamento, os principios éticos conformes á

doutrina

da

Igreja,

principalmente

naquelas

áreas

que

tocam

o

exercício da profissao: valor da pessoa humana, respeito á vida, moral conjugal, etc. Incumbe-lhes o dever de informar a respeito de tal orientacao ética os seus alunos e tém o direito de exigir destes a

odesdo a tais principios e a parricipacao nos cursos de Ética pro fesional. Os alunos deveráo convencer-se de que se trata de ele mento essencial, de condicao sine qua non da formagao iniegral de — 229 —

74

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

um enfermeiro responsável. Doutro lado, o ensino nao será limitado á apresentacSo de casuística, mas faz-se mister procurar criar urna profunda familiarídade com as nocóes de base, que sao as de vida, morte, vocacao do pessoal sanitario, etc. 7.4.4.

Relacionamerrto

com os gravemente enfermos

O processo de familiarizacáo do pessoal sanitario com as exi gencias impostas pela morte e pelo trata mentó dos gravemente en fermos nao se realiza apenas em nivel intelectual. O encontró com o sofrimento, com as ansiedades dos enfermos, com a morte, pode ser muilo angustiante. É este um dos principáis motivos que levam.

ho¡e urna parte do pessoal sanitario a evitar entrar em relacionamento pessoal com os doentes incuráveis e a abandoná-los á sua solidáo. Por conseguinte, a formacao ética e deontológica há de ser acompanhada por urna concreta formagao ao relacionamento e, em particular, ao relacionamento com os gravemente enfermos. Sem isto, o ensino da Etica arrisca-se a nao ter alcance real.

8. 8.1.

Responsabilrdade da familia e da sodedade Educacao para o sofrimento e a morte

A conviccao de que vida e morte estao intimamente relacionadas

entre si, atenuou-se de tal modo que, ao menos em nossa sociedade ocidental, a morte, aos poucos, perdeu todo o seu significado.

A familia e a sociedade que a cerca, tém a sua responsabilidade nesta situacao reconhecida como eminentemente danifica. £ urgente urna educacao para o sofrimento e a morte. Esta é talvez a chave ou, pelo menos, urna das vías para chegar á solugao dos numerosos problemas que hoje se poem a propósito da morte e dos gravemente enfermos.

8.2.

Questóes imperiosas

A familia deve interrogar-se: — para ver se o sofrimento, a morte, a quebra estao presentes

ou ausentes nas suas prospectivas educacionais, desde os primeiros anos de vida;

— para avaliar o espato que reserva aos enfermos, aos defi cientes, aos acidentados, aos andaos, aos moribundos.

— 230 —

ÉTICA MÉDICA E GRAVEMENTE ENFERMOS

75

Sem tal tipo de educacáo e sem partilha do sofrímento em fa milia, tem um estilo de vida familiar que testemunhe c amoi e a fé no valor de toda pessoa humana, como se pode esperar criar a táo desejada comunicacao entre os gravemente enfermos e a sua familia nos últimos instantes da sua vida? 8.3.

A sociedade e a familia. Legislacao

Também a sociedade deve questionar a si mesma a respeito do que ela oferece de válido á familia para que esta cumpra a sua missao educativa, no seu ambiente de vida, no do trabalho, no plano da saúde, no dos problemas que surgem no trato dos enfermos e dos anclaos.

£ também de recear que a solidariedade da familia com os seus membros sofredores — em qual.quer nivel — seja gravemente cmeacaáa por certos ticos de legislacoes contemporáneas, como a

do divorcio, e da contracepcao, a do aborto e talvez amar.ha a da eutanasia».

II.

REFLETINDO. . .

Para facilitar o aprofundamento da doutrina do documento

em pauta, poremos em relevo alguns dos seus tópicos mais importantes.

1) É reafirmado o valor da vida humana, de tal modo que a ninguém é licito dispor da própria vida ou da vida alheia (2.11; 2.1.2). 2) A morte significa a uniáo definitiva com Cristo (2.2.1). Deve implicar na consumagáo da peregrinaeáo terrestre (2.1.1.). 3) Para obrigagáo de transfusáo de há o dever de babilidade de Cf. 2.4.2-4.

conservar a vida, o homem tem sempre a empregar os recursos ordinarios como soro, sangue, injegóes, alimentagáo... Todavía nao aplicar recursos raros e dispendiosos cuja proéxito seja exigua (meios desproporcionáis).

4) O uso de analgésico é lícito. Contudo é preciso que os médicos e acompanhantes propiciem ao enfermo a oportunidade de cumprir as suas últimas obrigacóes antes de morrer — 231 —

76

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

(reconciliem-se com os adversarios, pecam e déem o perdáo, fagam seu testamento material e o espiritual...). Pelo que nao se devem mergulhar os enfermos em estado de incons ciencia que os impega de satisfazer a tais deveres (4.4 e 5).

5) Entre os meios que aliviam o sofrimento do enfermo, ocupa lugar importante a presenga de pessoas que lhe assistam na solidáo, a qual multas vezes a doenga o confina. A sociedade como tal e as pessoas em particular tendem a fugir da morte e dos gravemente enfermos — o que requer educagáo para acompanhar os doentes e moribundos (6.2). 6) O enfermo, principalmente o que sofre de doenga incurável, tem o direito de ser informado do seu estado de saúde periclitante, a fim de que possa «viver a própria morte»,

unindo-se a Cristo (se é cristáo). Cf. 6.1.1-3.

7) Para que o enfermo possa ser devidamente informado, requer-se esteja afeito á realidade da morte vindoura, de tal

modo que esta nao o assuste quando próxima. «A preparagáo para a morte comega muito antes da sua aproximagáo, quando a pessoa goza de boa saúde» (6.1.1).

8) Em conseqüéncia, é necessário, desde o lar, educar para o sofrimento e a morte (8.1-2). 9) Aos enfermeiros nao é licito cometer um ato que atente diretamente contra a vida humana. Faz-se mister aprendam es normas de Ética que regem a sua profissáo (7.4.2-3). O documento em pauta há de merecer atento estudo da parte de todos os cristáos, visto que todos indistintamente se

defrontam com a morte alheia e a própria morte.

— 232 —

Questao vital:

"Sobre a Morte e o Morrer" por Elizabeth Kübler-Ross

Em síntese; O presente livro, da lavra de famosa psiquiatra norte-americana, analisa as reafóes da pessoa humana diante da perspectiva de doenga grave e morte próxima. Assinala cinco estáglos sucesslvamente atravessados pelo paciente: recusa da notfcia de morte próxima, revolta, barganha, depressao, aceitacáo. A esperanca, apesar de tudo, perpassa esses estágios conforme a autora (o que parece um tanto contraditório). O llvro tem valor porque refere a experiencia de urna profissional que durante dois anos e meló se dedicou a pacientes desengañados; revela multas facetas da psicología do enfermo que geralmente nao sao levadas em consideragSo. Propoe normas válidas para os familiares dos pacien tes, que nfio deverlam ocultar a estes a gravidade do seu estado e precisam de aprender a ler sinais nao verbais (olhares, gestos de míos, espanto, lágrimas...) da linguagem dos enfermos.

É de notar que a autora se limitou aos horizontes da psicología.

n§o considerando o papel da fé e da graca de Deus no homem posto diante da ameaca de grave enfermldade e morte próxima. Na verdade,

um paciente psicología e assinala.

sustentado pela fé pode subverfer todas as categorías da tomar atitudes totalmente diversas daquelas que a autora

Comentario: Elizabeth Kübler-Ross é médica psiquiatra norte-americana que adquiriu notoriedade por se dedicar a doentes desengañados, procurando compreender as suas ati tudes diante da ameaca de morte próxima. Durante dois anos e meio realizou entrevistas com os mais diversos pacientes e seus familiares, a fim de entender melhor os enfermos e tentar ser-lhes útil. Destas investigacóes resultaram dois livros traduzidos para o portugués: «Sobre a morte e o morrer» 1 e «Perguntas e Respostas sobre a morte e o morrer». Tais obras tém chamado a atencáo do público brasileiro, pois a morte é

a única certeza que todo homem tem; o tema nao pode deixar de interpelar toda pessoa que nao queira ser leviana; médicos, enfermeiros e pacientes tém comentado e questionado tais

1 TraducSo de Thereza Liberman Kipnis. Edart Livraria Editora Ltda., em colaboracáo com a Universidade de Sao Paulo, S. Paulo 1977, 182 x 210 mm. 172 págs.

— 233 —

78

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

livros, que oferecem copioso material (reflexóes, entrevistas, dados de experiencia...) ao leitor. A autora nao professa explícitamente algum Credo religioso, mas respeita a religiao

e o Cristianismo de modo particular.

Ñas páginas subseqüentes, duas obras em pauta.

1.

apresentaremos ao leitor as

«Sobre a morte e o morrer»: conteúdo

Oito capítulos do livro merecem especialmente a nossa

atengáo.

1.1.

Perante o medo da moite: atitudes

(ce. 1

e 2)

E. Kübler-Ross comeca lembrando as reagóes negativas que geralmente a doenga grave e a perspectiva da morte suscitam ñas pessoas enfermas e em seus familiares. Esta atitude de repulsa tem-se agravado nos últimos tempos por motivos diversos, dos quais a autora saliente dois principáis:

1) a medicina, nando cada vez mais meiros preocupam-se regras a ser aplicadas

pelo seu progresso mesmo, vai-se tor tecnicista e impessoal; médicos e enfermuito com a aparelhagem, as normas e ao paciente e menos importancia parecem dar ao que a pessoa do paciente traz em si de intimo e secreto: "Nossa concentracSo em equlpamentos, pressáo sanguínea, etc. n3o seria urna tentativa desesperada para negar a morte próxima que nos é táo apavorante e desagradável a ponto de concenlrarmos todo o nosso conhecimento ñas máquinas, urna vez que estas nos afetam menos do

que a face sofredora de um outro ser humano, que nos recordarla urna vez mais de nossa falta de onipoténcia, nossos próprios limites e fainas e, finalmente, mas nüo menos Importante, de nossa próprla mortalldade? Talvez tendamos que propor a segulnte pergunta: Estamo-nos tornando mais humanos ou menos humanos?" (p. 17).

"Que fatores... contribuem para urna ansiedade crescente em reíac5o á morte? Que acontece na medicina, onde temos que nos perguntar se ela deve permanecer urna profissao humanitaria e respeitada ou tornar-se urna nova e despersonalizada ciencia, destinada a prolongar a vida

em vez de diminuir o sofrimento humano? Onde os estudantes de medi cina tem urna possibllidade de escolha entre dezenas de conferencias sobre RNA (ANR) e DNA (ANO) e menos experiencia no simples reiaclo-

namento médico-paciente, que costumava ser básico para todo médico...? Que acontece em urna sociedade que coloca maior énfase em Ql (coefi ciente de Inteligencia) e padrees de classe do que em questdes de tato,

— 234 —

«SOBRE A MORTE E O MORRER»

79

sensibilidade, percepcáo e bom senso no trato com os que sofrem? Que ocorre numa sociedade profesional onde o jovetn estudante de medicina é admirado por seu trabalho laboratorial e de pesquisa durante os prfmeiros anos de Faculdade, ao mesmo tempo que prescinde das paiavras necessárias quando um paciente Ihe faz urna pergunta simples?... Que será de urna sociedade que dá maior énfase aos números e cifras do que aos individuos? Onde as Faculdades somente procuram aumentar suas classes? Onde a tónica está afastada do contato professor-aluno,

que é substituido pelo enslno por circuito fechado de televisao, gravacóes e filmes, os quais podem ensinar um número maior de alunos, porém de maneira despersonalizada?" (p. 19).

Cremos que tais interrogagóes sao justificadas e merecem a consideragáo do público que elas interpelam. 2)

A atenuacáo ou a extingáo do senso religioso em

muitas pessoas... A fé em Deus suscita a esperanga na vida eterna. A crenga na vida postuma está intimamente relacio nada com a crenga em Deus e vice-versa. Se desaparece o ele mento religioso, o sofrimento e a morte vém a ser elementos meramente negativos; cortam a vida, arrancam o paciente sem Ihe oferecer compensagáo alguma: «Já desapareceu, há muito tempo, a crenca de que o sofrer aqui na térra será recompen

sado no céu. Ó sofrimento perdeu a sua significagáo e razáo de ser» (p. 21).

A observagáo, realista como é, mostra mais urna vez que nao se pode entender a vida do homem na térra se nao se

admite a sua continuagáo postuma. A vida terrestre seria au téntico absurdo, marcado por injustigas e frustagóes, se nao tivesse seqüéncia num Além de justiga e amor. Posto isto, a autora descreve cinco atitudes que o pa

ciente assume sucessivamente diante da perspectiva de doenga grave, talvez mortal: negagáo, ira, barganha, depressáo, aceitacáo. 1.2.

Negado

(c. 3)

A primeira reagáo de um enfermo, ao ser informado de que a morte o ronda de perto, é freqüentemente a da recusa da situagáo: «Nao, nao eu. Nao pode ser verdades.. Eis como a autora exemplifica tal reagáo: "Urna de nossas pacientes descreveu um extenso ritual em suas próprlas palavras para apoiar a sua negagao. Ela eslava convencida de que as chapas de raio X tinham sido trocadas. Ela pediu confirmacfio do seu relatório patológico. Nao poderia ter retornado muito rápidamente e o relatório de outro

paciente

ter sido

marcado

— 235 —

com

o seu nome, por

gO

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

engaño? Quando nada disto pdde ser confirmado, ela pediu para delxar o hospital, procurando oulro médico na esperance va de conseguir meIhor explicacao para os seus problemas. Esta paciente (ol de médico em médico, alguns dos quais Ihe deram respostas confortadoras, e outros confirmaram as suspeítas anteriores" (p. 34).

1.3.

Ira

(c. 4)

Quando o paciente verifica que nao houve engaño no diagnóstico, fácilmente se deixa levar (segundo refere Kübler-Ross) por sentimentos de ira, revolta, inveja e ressentimento, como expóe a própria autora: "A pergunta lógica é: 'Por que eu?' Como um de nossos pacientes, o doutor G, observa: 'Acho que a maioria, em meu lugar, olharia para outra pessoa e diría: Bem, por que nao podia ter sido ele? E isto tem passado por minha mente diversas vezes... Um velho, que confieso desde minha meninice, vlnha pela rúa. Ele tinha 82 anos de idade e,

como nos moríais dizemos, nao servia para mais nada. Ele é reumático, encarqullhado, o tipo exato de pessoa que vocé nao gostaria de ser. E o pensamento atlngiu-me fortemente: por que nao podia ter sido o velho George em vez de mlm?" (p. 43).

Essa revolta se exprime de maneiras diversissimas: "Os médicos nao sao bons, nao sabem que exames pedir e que dieta prescrever. Eles mantém os pacientes por lempo demasiado no hospital ou nao respeitam seus anseios por privilegios especiáis... As enfermelras sao, até

mais freqüentemente, alvo da sua ira.

que toquem, nao está certo.

Logo que saem do quarto,

O que quer

a

campainha

toca de novo. A luz (do quadro) está acesa no exato momento em que fazem seu relatório para a equipe de substituicáo. Quando afofam os

travesselros e endireitam a roupa de cama, sao acusadas de nao delxar os pacientes em paz. Quando os deixam em paz, a luz do quadro se acende,

e

pedem

para

A familia é recebida

que

com

arrumem

a

cama

pouco entusiasmo,

mais

confortavelmente.

o que torna

a visita um

evento doloroso. Esta reage entáo com pesar e lágrimas, culpa ou pena. ou evitam futuras visitas..." (págs. 43s).

1.4.

Barganho

(c. 5)

Depois de se revoltar contra a sua molestia, umitas vezes o paciente pensa em «entrar em acordó com Deus» para tentar adiar o desfecho final. Entáo o enfermo «negocia» com o Senhor: pede-lhe a graga de voltar mais urna vez a tal ou tal festa, a de ir a urna pega de teatro, a um Congresso Interna

cional...; julga que, rezando muito e fervorosamente ou até prometendo alguma coisa a Deus, poderá ser atendido. Tal — 236 —

«SOBRE A MORTE E O MORRER»

§1

atitude lembra a da crianca, que também sabe barganhar

com a sua máe, quando, por exemplo, esta lhe proibe iraura cinema porque nao foi bem comportada; dirá entáo a crianga: «Se eu ficar boazinha a semana inteira e lavar os pratos todas as tardes, vocé me deixará ir?» (p. 61). Como se compreende, o cristáo nao barganha nem negocia com o Pai do céu; Este nao precisa de ser atraído por promessas, pois é a própria Bondade e o Primeiro Amor. Basta

pedir com afeto filial; e o Pai do céu atenderá; mesmo que nao

conceda o objeto preciso que o filho Lhe pede, dar-lhe-á outro

melhor ou mais condizente com o verdadeiro bem de quem ora. 1.5.

Deprecsóo

(c. 6)

A medida que a doenga se vai agravando, o paciente ex perimenta cada vez mais a fraqueza física e a magreza pro-

gressiva, que lhe suscitam um sentimento de grande vazio ou perda; a resistencia moral e o ánimo para a luta se lhe abatem. «Urna mulher com cáncer no útero pode sentir que nao é mais urna mulher» (p. 63). O pai de familia que se percebe incapa citado de trabalhar como antes ou que vé os filhos distribuidos entre os parentes, porque a máe acompanha o pai enfermo no

hospital, também pode julgar-se destrocado na vida. As econo mías acumuladas no decorrer de anos se esvaem rápidamente

para custear as elevadas -despesas de tratamento

médico.

Ocorre entáo a fase depressiva da doenca, a qual afeta geralmente os familiares. Tal fase, porém, tende a ser superada pela seguinte. 1.6.

Aceitajño
Dado que o paciente atravesse os estágios anteriores recebendo algum apoio de seus familiares e amigos, deixa de se sentir irado ou deprimido, e póe-se a considerar o fim próximo com tranquila expectativa: "Ele está cansado e... fraco... Tere necessidade de cochilar e dormir com freqüéncia e a curtos intervalos... o que corresponde a urna necessidade gradual... de aumentar as horas de sonó, multo semeIhante áquela do recém-nascldo, porém em sentido inverso. É como se a dor tlvesse terminado, os esforcos superados e chega um momento para

o descanso (Inal antes da longa jornada, como afirmou um paciente... A medida que o paciente moribundo consegue urna certa paz e aceitacao, seu circulo de interesses diminuí. Ele deseja ser deixado só ou, — 237 —

g2

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

pelo menos, nao ser excitado por novidades e problemas do mundo exterior.

Os visitantes nio sSo desojados e, se vém, o paciente nio está com dlsposicao para conversar... Pode ser que o paciente faca apenas um gesto com a m§o para convidar-nos a sentar um pouco. Pode ser que apenas segure nossa mao e nos peca para ficarmos sentados em silencio" (p. 79s).

É de notar, a esta altura, que a autora nao menciona a aceitagáo e a paz decorrentes da fé crista e do amor a Deus, que é Pai. Limita-se ao plano meramente psicológico, o que, aos olhos do cristáo, empobrece a sua descrigáo. É claro que

um cristáo encontra na fé e na entrega a Deus o grande e

insubstituível manancial de sua paz interior, paz que nao é capitulado, pois o cristáo sabe que a vida nao lhe é tirada, mas, sim, transfigurada (cf. Liturgia dos morios).

1.7.

Esperanza

(c. 8)

Durante todos os estágios anteriores, diz a autora, per siste a esperanca. Se perguntássemos á Dra. Kübler-Ross que tipo de esperanga ela tem em vista, respondería: a esperanca de cura física: "Ao ouvlr nossos pacientes

sionados pelo fato

desengañados,

de que até mesmo os

ficamos sempre

mais conformados,

¡mpres-

os mais

realistas, delxavam aberta urna possibilidade para alguma cura, para a descoberta de nova droga... É este fio de esperanga que os mantém por días, semanas ou meses de sofrimento" (págs. 93s).

Pergunta-se, porém: esta esperanca sempre presente através dos estágios da doenca é compativel com a revolta, a

depressáo, a recusa da realidade? Registramos também o silencio da autora no tocante á esperanca ou a certeza de urna vida postuma. Nao há dúvida, a esperanca de cura costuma persistir em quase todos os pa cientes;

é, porém, esperanca precaria, se comparada com a

esperanca-certeza da vida eterna, que todo homem pode e deve nutrir dentro de si. A Dra. Kübler-Ross nao nega a sobrevi vencia da alma humana (cf. p. 242 deste fascículo), mas infeliz mente nao faz uso desta convicgáo ao analisar os estágios da doenga grave.

— 238 —

«SOBRE A MORTE E O MORRER»

1.8.

A familia do paciente

83

(c. 9)

Kübler-Ross valoriza grandemente a fungáo dos parentes e familiares de cada enfermo. Tooa-lhes procurar acompanhar o paciente com firmeza e magnanimidade até o fim, oferecendo•lhe o que nenhum remedio pode proporcionar: estímulos para a confianga e a coragem.

Dois sao os pontos que a autora propóe á consideracáo dos familiares de um enfermo: 1)

É oportuno que o paciente seja informado a respeito

do seu estado de saúde, principalmente se há serio perigo de morte. A arte dos acompanhantes há de se esmerar por descobrir a maneira de dizer-lhe a verdade: "A pergunta nao deveria ser: 'Devenios contar?', mas compartilhar isto com meu paciente?'" (p. 29).

sim:

'Como

Sem dúvida, cada paciente tem sua maneira própria de reagir diante da perspectiva da morte; toca aos médicos e fa miliares analisar caso por caso, a fim de aproveitar todas as oportunidades deixadas pelo enfermo para que se Ihe revele a gravidade do seu estado de saúde.

Kübler-Ross nao justifica tal medida mediante razóes filosófico-religiosas. Estas, porém, sao obvias: o ser humano deve poder encerrar o seu curso de vida terrestre de maneira humana, isto é, inteligente, rematando conscientemente o livro

que diariamente ele escreve através dos seus atos: possa pedir perdáo e perdoar; possa fazer seu testamento no plano ma terial e no espiritual.

2) É preciso que os familiares aprendam a perceber as comunicacóes nao verbais dos seus pacientes; saibam ler os

gestos ou os mínimos sinais dos enfermos, em conseqüéncia de urna sintonía afetiva com os mesmos: "Se este livro nio servir a outro propósito senáo sensibilizar os membros da familia de pacientes desengañados e o pessoal hospitalar para as comunicacóes implícitas de pacientes moribundos, terá atingido plenamente a sua finalidade" (p. 93).

Sao estas as grandes linhas da mensagem que a Dra. Kübler-Ross transmite aos seus leitores num livro respeitávei.

A experiencia da autora é outrossim comunicada aos leitores ñas numerosas entrevistas que a ilustre médica reproduz em seu livro.

— 239 —

84

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

2.

Breve aprectagáo

O livro de Kübler-Ross tem seu valor, pois procede da vivencia concreta de urna profíssional que se dedicou denoda damente aos seus pacientes. A realidad© viva parece espelhar-se ñas páginas de Kübler-Ross; muitas facetas intimas e pro fundas da vida de um enfermo, geralmente ignoradas, vém á baila na obra em pauta. Seriam para desejar ainda outros livros que levassem o público a pensar concretamente no tema «morte», cuja importancia é capital.

Apenas observamos que a autora, restringindo-se ao plano meramente psicológico, deixou de consignar muitos outros aspectos reais na trajetória de um enfermo. A fé em Deus e a graga do Senhor podem alterar ou revolucionar o esquema de estágios apresentado pela Dra. Kübler-Ross. Para o cristáo, «o viver é Cristo e o morrer é lucro» (Fl 1,21); partir para estar com Cristo é muito melhor do que permanecer neste corpo mortal (cf. Fl 1,23). A consciéncia destas verdades pode sus citar no cristáo uma atitude de expectativa ansiosa e alegre ao perceber os sinais de morte próxima; tal foi o caso de S. Teresinha de Lisieux, que se alegrou quando teve a sua primeira hemoptise, pois reconheceu que estava chegando a grande hora do encontró face-a-face com a Beleza Infinita. S. Teresa de Ávila (t 1582), por sua vez, dizia ao Senhor na ansia de morrer: «Senhor, é tempo de nos vermos!» O

cristáo

aprenderá no

livro

em

foco

a

conhecer as

reagóes de crentes e nao crentes diante da morte; encontrará

ai a confirmacáo do imenso valor da oracáo pra favorecer a paz e a alegría interiores (cf. págs. 118s. 99). Todavía nao poderá cingir-se a uma visio meramente psicológica do fato «doenca-morte»; deverá rever a caminhada proposta por Kübler-Ross numa perspectiva de fé e na consciéncia de que há outra vida, da qual a presente é a ante-cámara.

— 240 —

A experiencia do profissional:

"Perguntas e Respostas

Sobre a Morte e o Morrer" por E. Kübler-Ross'

Elizabeth Kübler-Ross é urna psiquiatra (cf. p. 153) que muito se tem ocupado com o problema da morte e do além-túmulo. Neste livro publica as respostas dadas a pessoas que a consultaran! sobre a maneira de tratar enfermos próximos a morte bem como os respectivos familiares. Interessa-se também pelo apoio a ser dado a familias enlutadas, a pessoas idosas, as equipes de enfermagem, etc.

O livro repete algumas vezes as mesmas teses. Em geral, segué orientagáo sadia, embora a autora nao fale diretamente em nome da fé e da religiáo, mas tencione ficar táo somente no setor da psicología.

1.

Em sintese, E. Kübler-Ross julga qua é importante

preparar os pacientes para o desenlace final, evitando que morram sem se ter devidamente disposto para tanto. A autora afirma isto consciente de que está falando a urna «sociedade essencialmente renegadora da morte» (p. 28), isto é, avessa a pensar na morte. Digna de nota, entre outras, é a seguinte observacáo:

"Creio que tal preparado (para a morte) deveria comee,ar bem mais cedo2 e que devertamos ensinar nossas criangas e jovens a encararem a realidade da morte. Vive-se numa qualidade diferente de vida quanto se defronta com as próprias HmitacSes" (p. 15).

A autora refuta mesmo urna

seria objecáo levantada

contra a sua tese:

Como se vé, E. Kübler-Ross fala de «alentó» a ser minis trado aos pacientes gravemente enfermos. Nao explana o tipo 1 E

KÜBLER-ROSS, Pergunlas e respostas sobre a morte e o morrer.

TraducSo de W. Dias da Silva e Teresa Liberman Kipnis. — Livraria Martins Fontes Ed. Ltda., SSo Paulo 1979. 140 x 210 mm, 176 págs. 2 Isto é, antes da internado em hospital. (Nota do traduior). — 241 —

86

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

de alentó que tem em vista, mas, pelo que se depreende de outras passagens do livro, a autora eré na imortalidade da alma e no enorme valor da fé para ajudar a enfrentar a morte com serenidade. É interessante o testemunho de sua «conversáo» á tese da imortalidade: "Antes de comecar a lidar com pacientes moribundos, nao acraditava numa

(p.

_

vida

depois

da

morte.

Agora acredito

sem

sombra

de

dúvida"

173).

O valor da fé para enfrentar a realidade da morte é en-

fatizado nos seguintes termos: "As pessoas verdaderamente religiosas, com profundo e sólido relacionamento com Deus, acharam muito mais fácil encarar a morte sere namente. Nao as vemos com freqüéncia, nao necessitam, portanto, de nossa ajuda"

pois nao sao (p. 167).

problemáticas;

Nao raro em seu livro a autora se distancia da atitude de médicos e enfermeiros que, por principio, fogem a dizer ao

paciente a verdade1 sobre o seu estado de saúde, mormente quando este é grave. Recusa o que se chamaría «fingimiento» no trato dos enfermos (cf. p. 17). 2. "Sou

mas sou

A respeito da eutanasia, diz E. Kübler-Ross: absolutamente contra qualquer tipo

favorável

a que se permita

de

morte

de

que o paciente morra

misericordia,

sua

própria

morte sem prolongar artificialmente o processo de morrer" (p. 83).

A autora, logo a seguir, explica melhor o seu pensamento: "Nao acho que devamos manter pessoas artificialmente vivas quando nao sSo mais seres humanos ativos. Isto talvez signifique querer bancar Deus, mas pensó que é dever de todo médico manter alguém vivo em

condicóes funcionáis... Oponho-me a manter vivas pessoas que continuam vivendo puramente como sistemas orgánicos gracas a algum equipamento que a elas está ligado" (p. 3).

Tal posigáo coincide com a da Igreja: 1) A ninguém é lícito matar alguém aplicando-lhe meios ocisivos, aínda que seja por compaixáo. 2) Quanto á aplicacáo dos meios que conservam a vida, distinga-se: — 242 —

«PERGUNTAS E RESPOSTAS...»

a)

ordinarios

87

a ninguém é licito subtrair ao paciente os meios

de conservagáo

da vida,

como

soro,

sedativos,

massagens...;

b) quanto aos meios que exigem ingentes sacrificios de pessoas, tempo, dinheiro sem oferecer resultados propor cionáis a tais sacrificios ou sem a probabilidade de éxito cor respondente aos esforgos envidados, nao há obrigagáo moral de aplicá-los aos pacientes.

Em conclusao: o livro oferece linhas de deontologia de enfermagem válidas aos olhos da consciéncia crista. Apenas observamos que sao inspiradas pela filosofía racional mais do que pela fé. Esta é aceita, mas nao suficientemente utilizada para ilustrar situagóes e conduta do (a) enfermeiro(a). Quem procura na fé a motivagáo para enfrentar a morte com sere-

nidade e lucidez, tem o mais valioso e sólido dos embasamentos

necessários. É bem possível que E. Kübler-Ross assim proceda porque faz as vezes de psicóloga que responde a consulentes ateus ou indiferentes do ponto de vista religioso. Deve-se

realzar, porém, que a autora pessoalmente manifesta sua fé, que ela muito valoriza no exercício da profissáo.

Estóvalo Bottencourt O.S.B. *

livros

*

em

estante

Leitura do Erangelho segundo Mateus, por varios autores. TradugSo de Benoni Lemos. Colecto "Cadernos Bíblicos" n? 12. — Ed. Paulinas, Sao Paulo 1982, 155 x 230 mm, 100 págs.

A colecto "Cadernos Bíblicos" tem a finalidade de transmitir para o grande público as teses da exegose científica. É o que ocorre precisa mente com o volume ácima citado, que pretende oferecer urna introducto e comentarlos ao Evangelho segundo Mateus. Pode-se dizer que a fina lidade foi atingida pelos varios autores que colaboraram na obra. Apenas desejamos deter-nos em duas passagens do livro: A p. 89 lé-se breve comentario da parábola dos vinhatoiros homicidas (Mt 21,33-48). O autor, seguindo o método da historia das formas, ana-

lisa o texto da parábola e julga que Jesús a encerrou no v. 41, dizendo

que

a vinha

seria transferida

para outros

vinhateiros.

As

comunidades

cristts, relendo esta parábola, teráo compreendido que ela se referia á morte de Jesús e á infidelidade de Israel; em conseqüéncia, os cristáos, numa auténtica interpretacao do pensamento de Cristo, ieráo atribuido a Jesús as palavras: "Nunca lestes ñas Escrituras:... SI 117, 22s?" (v. 42). Mateus, por sua voz, também

Interpretando genuinamente o

pensamento

do Senhor, terá acrescentado: "Por isto... o reino de Dgus vos será tirado e confiado a um povo que produzirá seus frutos" (v. 43). — Esta exegese do texto poderá desconcertar o leitor.

— 243 —

Ela nada tem de dogmá-

88

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 262/1982

tico; é conjectural; o leitor pode julgá-la ousada, hipotética, inoportuna e rejeitá-la; o autor da conjectura foi movido pelo toor pascal ou pelo tipo teológicamente evoluldo da linguagem usada nos versículos 42 e 43; terá Jesús pregado em linguagem táo teológicamente elaborada? Isto nSo é fmpossfvel; mas deixa margem a que exegetas duvidsm... NSo tencionamos optar por alguma resposta no caso, nem o eremos importante... O que realmente importa, é notar que os Apostólos o os primeiros pregadores do Evangelho quiseram transmitir-nos fatos históricos que servissem á catequese; por isto puseram "• m relevo o sentido catequético e teológico dos episodios que eles narravam. Quando os evangelistas consignaram

tais

explicitagóes,

procederam

sob

o

carisma

da

inspiracio

divina, dando-nos a conhecer assim o auténtico pensamento de Cristo. Por conseguinte, o autor do comentario oferecido pelo livro em foco nao está cedendo ao racionalismo, mas está propondo urna teoría cuja consistencia pode ser discutida, mas que nao fere os principios da fó nem a credibilidade dos Evangelhos. mensagem genulna de Jesús Cristo.

Estes

sao

sempro a Boa-Nova e

a

O procedimento exegético em pauta nao é raro nos livros moder nos; o leitor saberá entender de que se trata, evitando generalizar a tática ou tomar como teses definitivas as proposicoes que sao meras conjecturas.

A p. 46 o texto admitie que talvez um día "os progressos dos estudos permitam á Igreja ver mais claro" no tocante ao divorcio. — Perguntamo-nos: que significa essa frase lacónica? Em qualquer hipótese, deve-se observar que a indissolubilldade do matrimonio ratum et consummatum (contraído e carnalmente consumado) é de fé; a afirmacao de que "a indissolubilldade no sentido estrito sempre fol inantlda pela Igreja latina, mas houve autorizacao de novo casamento entre os séculos IV e XII" é genérica demais; deveria citar exemplos ou casos concretos que pudessem ser devidamente analisados.

Leitura do Evangelho segundo Lucas, por A. George. Traducío de Benóni Lemos. ColecSo "Cedernos Bíblicos" tfi 13. — Ed. Paulinas, Sao Paulo 1982, 155 X 230 mm, 91 págs.

Este fascículo da Colecao "Cadornos Bíblicos" segué o estilo do anteriormente mencionado (n? 12) nesta seceáo. é concebido para um público ampio, ao qual o autor quer transmitir um comentario sucinto, mas substancioso, das principáis perfeopes do torceiro Evangelho. Ao contrario, porém, do fascículo referente a SSo Mateus, o de A. George é claro em suas posiedes exegóticas; noia-se especial respeito pelo misterio de Jesús Cristo, por exemplo, ao abordar a vida de oracáo do Senhor (págs. 55s), os títulos e os aspectos característicos de Jesús em Le (págs. 53s). O Evangelho da Infancia (Le 1-2) é considerado, como deve ser, qual portador do profunda mensagem teológica, sem que se esvazie o conteúdo histórico das respectivas narracóes (cf. págs. 15-23). Alguns quadros sintéticos e panorámicos ajudam o leitor a

penetrar

na

mensagem

do

evangelista

ás

págs.

11.

16-18.

53s...

Muito valiosa é a observacáo "Falar sobre Deus e nunca (alar com Deus"

á p. 72. — É o que nos leva a agradecer ao autor e ás Edicoes Pau linas a publicacao da obra em portugués. Alias, nao podemos deixar

de

elogiar

de

modo

geral

a

colegáo

dera diversos aspectos da S. Escritura regra,

seria

e

recomendável.

"Cadernos

Bíblicos",

que

consi

em estilo do divulgacao, via de (Continua na pág. 197)

— 244 —

COLETÁNEA de homilías, discursos e alocucSes do Santo Padre Joio Paulo II,

pronunciadas por ocasiSo de suas viagens apostólicas, além de Documentos da Santa Sé, sob o título geral APALAVRADOPAPA

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III Livro do Tombo do Mosteiro de Sao Bento do Rio de Janeiro (1783-1829) - 3?

vol. de urna Serie de Documentos Históricos. Formato 28x19. Aberto em 26 de fevereiro de 1793, pelo Juiz de Fora Dr. Balthazar da Silva Lisboa, contém 146 documen tos, ou escrituras, abrangendo o período dessa data até 19 de Janeiro de 1829. O II Livro (1688-1793) no prelo. O I Livro foi destruido pelos invasores franceses em 1711.Cr$4.000,00.

EDICÓES LUMEN CHRISTI Rúa Dom Gerardo, 40 — 5? andar - sala 501 Caixa Postal 2666 - Tel.: (021) 291-7122 20001 Rio de Janeiro RJ

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Comunicamos que, a partir do mes de junho (até dezembro), a assina

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Assim, a partir de 1? de junho: Cr$ 1.200,00, a partir de 1? de de

zembro: Cr$ 1.600,00. O número avulso Cr$ 150,00 {até dezembro). Solicitamos também o favor de NAO remeterem dinheiro por Ordem de Pagamento (OP), mas somente por cheque nominal (EdicSes Lumen Christi) VISADO, pagável, no Rio de Janeiro. Certos da compreensao e colaborarlo dos nossos prezados leitores, esperamos poder continuar a ac3o construtiva de PR em nossos ambien tes de I íngua portuguesa.

Com sinceros agradecimentos, A Administracao

"RIQUEZAS DA MENSAGEM CRISTA" por D. Cirilo Folch Gomes OSB, 2? ed, 1981,689 págs. A edició acha-se consideravelmente modificada, com atualizacSo da bibliografía e varias noches

novas em seus 12 capítulos. Trata-se de um Comentario ao CREDO DO POVO DE DE US, no qual, após 90 págs. de Teología Fundamental que estudam a Fé e as razfies de crer, o Autor

passá a analisar os artigos do Credo. A linguagem procura ser amena e acessfvel a pessoas que se

iniciam na Teologia. Ao mesmo tempo sao fomeddas, em numerosas notas de rodapé, as referencias para aprofundamento ulteriores. Na apreciacáo de um recensor espanhol (G. Ginonés), estamos ante "urna das mais acabadas sínteses da teologia dogmática de nossos días". Já alias a 1?ed. ti vera diversas recensóes muito favorávais. Preco: 1.500,00. Do mesmo Autor:

"A DOUTRINA DA TRINDADE ETERNA", 1980,400 págs. Esta obra compreende 3 partes. Na 1? estuda a problemática moderna quanto á doutrina trini

taria. Na 2? examina os dados bíblicos, documentacSo do Magisterio, a reflexao escolástica. Na 3a partedefende a conveniencia do uso, em nossos dias, da expressüo "tres Pessoas", que alguns autores pretenderán» criticar. Conforme apreciacSo de A. Perego (em "Divus Thomas:1), "a obra é de viva atualidade, porque trata de modo sereno e documentado urna doutrina sempre se gura" Preco: 850.00

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