Projeto PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS ON-LINE
Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)
APRESErxTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa esperanga a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15). Esta necessidade de darmos conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas
correntes
filosóficas
e
religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortalega no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabal no assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003. Pe. Esteváo Bettencourt, OSB
NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publ ¡cacao. A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.
responderemos C/J
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SUMARIO
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"A Ultima Tentacao..."
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O Ecumenismo visto por um Ex-protestante
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Max Thurian explica...
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Resistir ao Papa hoje, como outrora?
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Tradicao e Progresso
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O Islamismo
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ANO
XXIX
-
OUTUBRO
-
1988
317
OUTUBRO - 1988
PERGUNTE E RESPONDEREMOS
N9 317
Puhjicapáo mensal
SUMAR 10 Diretor-Rcsponstkvel:
Estéváo Bettencourt OSB Autor e Redator de toda a materia
publicada neste periódico Diretor-Administrador:
D. Hildebrando P. Marnns OSB Administracáo e distribuicáo:
"A Última Tentarlo. . ."
433
Fala Max Thurian: O Ecumenismo visto por um
exprotestante
Em resposta a muitos:
Max Thurian Explica
434
446
Ainda o caso Lefebvre:
Edicóes Lumen Christi
"Resistir ao Papa Hoje, como outrora"?. 450 v
Dom Gerardo, 40 - 5" anriiir. S/í>01
Um texto de Joao Paulo 11:
Tel.: (0211291-7122 Caixa Postal 2666
20001 - Rio de Janeiro - H.i
Tradicao e Progresso
459
Como era?
"Jesús Antes do Cristianismo" As Grandes Religioes do Mundo:
O Islamismo
462
471
■MAAQVESSA/IAJVA" orUicos £ conoces s a
NO PRÓXIMO NÚMERO:
Assinatura de Janeiro a dezembro de 1988: Cz$ 2.000,00
318-Novembro-1988
Número avulso: Cz$ 200,00 Pagamento (á escolha)
1. VALE
POSTAL
a Agéntu Cuntí.il «lif.
Correios do Rio de Janeiro
2. CHEQUE BANCÁRIO
"A Última Tentacao de Cristo". - A credibilidade dos Evangelhos. - Dissidentes voltam á Unidade da Igreja. - A escravidao no
Brasil. - O Plagio Religioso julgado em Tri bunal.
3. No Banco do Brasil, para crédito fia Con ta Corren te n?0031. 304 1 em nome do MosteirodeS.Bentodo Rio de Janeiro, pa-
gável na Agencia da PracaMauá tn°0435)
RENOVÉ QUANTO ANTES A SUA ASSINATURA
COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA
COMUNIQUE NOS ÜUALÜUE MUDANCA DE ENDE.RECO
"A Última Tentagáo..." LüLi! Está em foco o filme "A Última Tentacao. . .", suscitando comenta
rios diversos. — Há quem o queira legitimar, afirmando que o duplo casa mento e o adulterio atribui'dos por M. Scorsese a Jesús nao passam de devaneios: Cristo, na última hora de sua vida terrestre, terá contemplado aquilo que ele podia ter feito, mas nao fez, renunciando assim aos prazeres da carne.
Ora uma tal justificativa nao leva em conta toda a figura de Jesús apre sentada pela película: um Jesús inseguro, que nao sabe se matará os romanos ou pregará a caridade; aos poucos descobre sua identidade e toma conscién-
cía de sua missáo. Quem justifica o filme, também nao leva em conta as suas passagens possivelmente irónicas, como aqueta, por exemplo, em que Jesús abre o peito e tira o seu coragao para que os disci'pulos o possam admirar e seguir. ..
Ponderado com objetividade, deve-se dizer que o filme ofende a fé dos cristaos. Sim; Jesús, para os fiéis, nao é apenas um grande Profeta ou um Super-Homem, que se dedica ao cumprimento do plano do Pai. .. Jesús é Oeus feito homem. Esta sentenpa foi estudada durante os primeiros séculos pelos mestres e doutores, que, após diversas tentativas de explicacáo, chegaram
á fórmula definida pelo Concilio de Calcedonia em 451: em Jesús há um
só Eu, um so sujeito, um só suporte de tudo o que Ele pensa, senté, diz e faz. . . E esse único Eu é divino, é o da segunda Pessoa da SS. Trindade, que, sem perder o que é de Deus (onipoténcia, oniciéncia.. .), assumiu no seio de María Virgem a natureza humana. Por conseguinte, todas as acoes de Jesús sao teándricas (divíno-humanas), como diz a teología; devem ser atribuidas a Deus, por isto o cristáo pode dizer: "Deus morreu por mím na Cruz". . . Sim, morreu pelo fato de que Deus assumiu a natureza mortal do homem e quis experimentar todas as conseqüéncias físicas deste fato.
Dito isto, compreende-se que, se Jesús podia adulterar, como o filme insinúa (apresentando Jesús a adulterar em devaneio). Deus podia adulterar, podía pecar — o que é contradítório e ridículo. Eis pi r que os cristaos tém rejeitado a película; tém o direíto de fazé-lo, porque o Mime fere a escala de valores dos que créem.
Vé-se entao que toda a polémica em torno do filme de Scorsese depen de, em última análise, de se saber quem era Jesús: se mero homem ou Super-Homem (como muitos o consideram) ou se Deus feito homem. Neste último caso, a película atinge o que de mais caro e íntimo tém aqueles que professam tal verdade. Em nossa sociedade pluralista, aqueles que aplaudem
o filme, usam de um direito seu, mas saibam que se trata de materia profun damente dolorosa e desrespeitosa para os seus semelhantes que tém a intuígao da fé. E.B. 433
"PEROUNTE E RESPONDEREMOS" Ano XXIX - N? 317 - Outubro de 1988 Fala Max Thurian:
O Ecumenismo visto por um Ex-protestante Em sintese: Max Thurian, monge da comunidade de Taizé-Cluny
(Franca), recém-convertido ao Catolicismo e ordenado sacerdote, exprime seus pontos de vista referentes ao ecumenismo, á unidade da Igreja, ao pri
mado do Papa, ao sacramento da Penitencia, ao celibato do clero... em ter mos "plenamente católicos"... As suas declaracoes sao importantes porque procedem de alguém que foi educado dentro de concepcoes calvinistas, con trarías ás do Catolicismo, mas que, por seus estudos e sua disponibilidade ao Espirito Santo, chegou a conclusoes católicas. O mesmo se deu com John Newtnann, Louis Bouyer, Wolfgang Tschuschke e muitos outros que, sem preconceitos, interessados únicamente na descoberta da verdade, acabaram professando o Catolicismo.
Max Thurian tornou-se famoso nos últimos decenios entre os cristaos por ter sido um protestante de vistas largas que, pela sua sinceridade na pro cura da verdade, se tornou católico e foi ordenado presbítero 315/1988, p. 384.
Ver PR
Nasceu em Genebra (tídade de Calvino), 192Í, de familia calvinista. A
sua avó, dotada de profunda veia mística, transmitiu ao menino os princi pios de sólida espiritualidade, que o encaminharia ao estudo da Teología. Tinha vinte anos quando, durante um retiro, Ihe caiu ñas míos um opúsculo, que era o esboco de urna Regra monástica, escrita por Roger Schutz, tam-
bém protestante; o jovem se entusiasmou pela proposta de restaurar o mo naquisino no Protestantismo e resolveu aderir á iniciativa de R. Schutz. A partir de-1942, passou a viver em Taizé-Cluny (Franca), onde atualmente se acha próspera comunidade monástica constituida por irmaos de diversas denominacoes protestantes (calvinistas, luteranos, anglicanos, metodistas...). 434
FALA MAX THURIAN: ECUMENISMO Todos fazem votos perpetuos de pobreza, castidade e obediencia; rezam e uabalham em comum.
Max Thurian, como membro da comunidade de Taizé, tem-se dedica do ao estudo
da Liturgia, especialmente ao dos Sacramentos da Eucaristía
e Penitencia. Participou de Congressos Teológicos. O Papa Joáo XXIII con-
vidou-o, juntamente com Roger Schutz, para assistirem ao Concilio do Va ticano II na qualidade de observadores; Joao Paulo II o convidou pessoalmente para participar do Sínodo Extraordinario dos Bispos em 1985, quan-
do se comemoravam vinte anos do Concilio do Vaticano II. Autor de diver sos livros, M. Thurian manifesta sua mentalidade abena e sincera frente á Verdade.
0 repórter Angelo Montonati foi entrevistar esse teólogo, abordando temas candentes relativos ao ecumenismo. As respostas de Thurian, equili bradas e profundas como sao, merecem plena consideracao; pelo que vio
aqui apresentadas, em traducao portuguesa, as 'mais significativas.
1. O DEPOIMENTO DE MAX THURIAN Repórter: "Quais sao os mais fortes obstáculos á aproximacao de cató licos e protestantes?"
Max Thurian: "Entre outros, o conceito de T radíelo. Que se entrnde por Tradicao? A dos primeiros sáculos? Calvino recdnhece apenas os quatro
primeiros Conci'lios1; os ortodoxos, os primeiros sete Concilios2. Mas a Igreja, com o passar dos séculos, nao parou; para os católicos, a Tradicao está li
gada á Palavra de Deus e ao magisterio, ao passo que algumas denominacoes protestantes extremadas ficam só com a Biblia, Sola Scriptura... Disto se deriva o problema da autoridade na Igreja, ou seja, o de saber quem tem autoridade para dizer se determinada interpretado da Palavra de Deus é correta, válida e auténtica..."
tOs quatro primeiros Concilios sSo os de Nicéia I (325), Constantinopla I
(381), ambos versando sobre a SS. Tríndade; o de Éfeso (431) eo de Calce
donia (451), versando sobre Jesús Cristo, Deuse homem. (Nota do tradutor).
2 O quinto Concilio Ecuménico é o de Constantinopla II (553), o sexto é o
de Constantinopla III (680/681), ainda relativos a Jesús Cristo e suas duas naturezas (a divina e a humana) e sua vontade; o sétimo é o Concilio de Ni céia II (787) referente ás sagradas imagens. (Nota do tradutor). 435
4
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 R.: "Parece-me que o principal nó a desatar é o que diz respeito ao
magisterio".
M. Th.: "É verdade, pois de tal questao depéndem as demais: as reía-
coes entre Escritura e Tradicao, Escrituras e magisterio, a autoridade dos Concilios, etc. Aquí pensamos no tema dos ministerios,1 cuja sacramentandade os protestantes devem repensar e aprofundar: muitas vezes, ñas comu nidades protestantes, o ministerio é visto prevalentemente como urna forma de organizacao funcional, sem que se afirme o aspecto sacramental do mesmo. Creio que, se queremos reencontrar a unidade, temos que considerar sob nova luz o sentido da ordenacao como sacramento. Falo obviamente dos ministerios tradicionais: o episcopado, o presbiterado e o diaconato. Especialmente importante é o episcopado, pois nunca se realizará a uniao de Igrejas 'episcopais' e Igrejas 'nao episcopais'. É preciso redescubrir a funcao do bispo, do epískopos, como era exercida na Igreja antiga. Ora algumas Igrejas reconhecem a necessidade do episcopado como ministerio pessoal numa comunidade regional; outras nao véem a necessidade do mesmo, pois professam urna concepcao sinodal, democrática (se quisermos) ou congregacionalista da Igreja. Tocamos assim o problema do primado do
Bispo de Roma como ministro da unidade na Igreja universal. Nao se fará a unidade sem o reconhecimentó das funpoes do Bispo de Roma (o Papa)". R.: "Como é que os protestantes atualmente véem este problema?" M. Th.: "Os últimos Papas tém assumido atitude de predominante be nevolencia; hoje nao se poderiam mais dizer as coisas que foram ditas na época da Reforma. O fato de que o atual Pontífice viaja pelo mundo inteiro como evangelizador, a fim de despertar a fé, muito ajuda a compreender o papel do Papa. Mas a atitude benévola nao basta: é preciso redescobrir a fun cao do Bispo de Roma, do Papa como guia e arbitro do colegio dos Bispos. A Igreja necessita de alguém que, em diálogo solitario com o seu Senhor, procure novas orientacoes e novas ¡nspiracóes para o povo de Deus. Natu ralmente o Papa pode receber conselhos (há o Si'nodo dos Bispos, há sempre a possibilidade de um Concilio Ecuménico), mas parece-me capital a autori dade carismática (diría eu) do Bispo de Roma. Em suma, é mister que haja um ministro da unidade em condicóes de falar ao mundo em nome da Igreja toda e de todas as comunidades locáis.
Nao ignoro que persistem serias dificuldsdes: no diálogo com as Igrejas Ortodoxas, por exemplo, é difícil falar de jurisdicao universal por causada
1 Servidos ou fungdes na Igreja. (Nota do tradutor). 436
FALA MAX THURIAN: ECUMENISMO
sua entranhada defesa da organizapao autocéfala1; entrementes alguns pro testantes receiam que o Papa assuma urna autoridade pessoal nao controlavel. Creio, porém, que muitas objecoes procedem de ¡mperfeito conhecimentó do papel concreto do Bispo de Roma. Por isto sao importantes os contatos que Joao Paulo II promove com todas as confissóes cristas no mun
do inteiro". R.: "Alguns católico! disseram que, sob o atual Pontífice, o ecumenismo marca o passo. Parece-me compreender que alguns ná"o católicos sao de opiniao contraria".
M. Th: "Os que assim pensam — diría, de modo superficial — sao aque
les que desejariam solucoes imediatas e nao compreendem que é longo o ca-
minho da unidade. Posso dizer que conheci bem Paulo VI e reconhecoque fez todo o possi'vel, na sua época, em favor do ecumenismo. Mas Joao Pau
lo II fez e está fazendo mais aínda. No discurso comemorativo dos 25 anos
do Secretariado para a Unidade dos Cristaos (em 1985) ele reafirmou que o ecumenismo é um aspecto importantíssimo do seu ministerio; num mundo sempre mais secularizado e sem espiritualidade, disse ele, os cristaos tém que
reencontrar a unidade. É certo que nao a qualquer preco; é preciso elaborar e aprofundaí o conceito de unidade da Igreja, que nao significa uniformidade, mas pluralidade ou, melhor, pluriformidade. O que conta, é uma uni dade fundamental — que já existe — sobre algumas realidades: temos em comum a Palavra de Deus, o Credo, o Batismo, a oracSo do 'Pai Nosso'; faltanos aínda a possibilidade de celebrarmos juntos a Eucaristía, isto é, de reconhecermos reciprocamente os ministerios. Somente quando os cristaos
puderem celebrar juntos a Eucaristía em torno do mesmo altar, estará reali zada a unidade". R.: "Mesmo entre os católicos há muita confusao sobre a Eucaristía. Seria -ossível esclarecer de modo definitivo e unívoco o sentido do sacrifi cio p jcari'stico e da real presenca de Cristo...?"
M. Th.: "O tema do sacrificio foi, por muito tempo, um obstáculo,
pois os protestantes diziam que existe um só sacrificio, o da Cruz, e que nos
recebemos os frutos desta única oferta de Cristo. Ora a nocao de memorial faz compreender melhor que o acontecimento histórico se pode tornar, na
1 Cada grupo de comunidade ortodoxas tem seu Sínodo (reuniao de Bispos) e seu Bispo Supremo, que sao autocéfalos, isto é, nao dependem de outra au toridade para govemar a regiSo ou o país respectivo (N. D. T.). 437
6
"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
Liturgia atual, presente e operante. O conceito bíblico de memorial — reto
mado na* Liturgia eucarfstica - é um ponto de encontró muito importante."1 R.: "E a propósito da presenca real?"
M. Th: "Vejo urna evoluca*o no sentido de maior respeito ás especies consagradas. Quanto mais tivermos clareza sobre este ponto de doutrina, tanto mais faremos a verdadeira unidade. Se há urna presenca real grapas ás palavras de Jesús e á acao do Espirito Santo, o pao e o vinho consagra
dos se tornam Corpo e Sangue de Cristo, sinal da presenca permanente do Senhor. Temos que aceitar isto, se queremos realizar a unidade". R.: "Outro ponto fundamental é o ministro da Eucaristía..." M. Th: "Em algumas comunidades protestantes acontece que a cele-
bracao da Ceia é presidida por um leigo; mas ere ¡o que isto é um obstáculo para a unidade. Com efeito; para presidir á Eucaristía, nao basta urna autorizacáo verbal ou escrita da autoridade, mas é necessário o carisma do Espi
rito Santo obtido mediante a ¡mposicao das maos ou a ordenacao".
R.: "Em algumas comunidades católicas tentaram entregar a celebracao da Eucaristía a leigos..."
M. Th: "Náfo creio que isto seja tfeito. Um homem, como Calvino, um reformador, nao o teria aceito, pois ministerio e Eucaristía estao intimamen te conjugados entre si". R.: "Também a Virgem María, parece, já nao é um obstáculo ao diálo go ecuménico".
M. Th: "É preciso distinguir. Há aqueles que consideram o Ano Maria no proclamado pelo Papa como assunto que só interessa aos católicos; ou-
tros reagiram negativamente. Mas trata-se de correntes extremistas que recusam, apesar dos progressos realizados, aprofundar o papel da Mae de Deus na historia de salvacab.
Diría que estamos diante de reacoes superficiais, psicológicas. Há tam
bém quem tenha visto na recente Encíclica papal sobre Nossa Senhora um
'Memorial, na mentalidade semita, é um recordar eficiente ou que nao fica no plano meramente teórico, mas se exerce na ordem concreta das coisas. Ver Curso ele Liturgia por Correspondencia, Caixa Postal 1362,20001 Rio (RJJ. {Nota do Tradutori. 438
FALA MAX THURIAN: ECUMENISMO
esclarecimento importante sobre a doutrina católica. Esta Encíclica é tao
bíblica, fundada sobre a Palavra de Deus, que eta nao pode deixar de ser bem acolhida também pelos nao católicos". R.: "Mas o termo 'magisterio' diz algo também aos ná"o católicos?"
M. Th: "Creio que nenhuma Igreja pode dispensar um magisterio As Igrejas luteranas, por exemplo, tém a Confissáo Augustana, que, embora nao possua a mesma autoridade que a Biblia ou a Tradipao primitiva, é sempre
urna forma de magisterio. No sáculo da Reforma, quer luterana, quer calvi nista, foram redigidas profissoes de fé que sao também urna especie de ma gisterio. Além disto, em cada Igreja há urna autoridade ou de Bispo(s) ou de Sínodo ou de Consistorio, de acordó com as respectivas confissoes, a quai normalmente exprime um magisterio que recordé os seus fundamentos tradicionais ou confessionais. 0 problema, no caso, é ter um magisterio comum; a finalidade do ecumenismo é a de caminharmos juntos para um magisterio comum. Repito: nunca haverá unidade sem um tal magisterio, também atuante através de Concilios presididos pelo Bispo de Roma".
R.: "Nesse magisterio conciliar como se coloca o dogma da infalibilidade pontificia?"
M. Th: "Para mim a infalibilidade é o fato, ou a certeza, de que a Igre ja nao se pode engañar sobre os pontos fundamentáis da fé: se Deus confiou a sua Palavra á Igreja, quando esta anuncia tal Palavra, nao pode errar. Além
disto, pode acontecer que num Concilio Ecuménico os Padres nao consigam chegar a urna certeza comum (isto ocorreu algumas vezes durante o Vatica no II); entao existe o papel providencial, entregue a Pedro e aos seus sucessores, Bispos de Roma, de poder escolher, após ter escutado a todos, sem es tar ligados a este ou aquele grupo, a sentenca mais condizente com a Pala vra do Senhor".
R.: "O ecumenismo é realizado na cúpula e na base. Onde acha oSr. que se caminha mais e melhor?"
M. Th: "Um e outro tipo de ecumenismo sao necessários. Na base, em alguns países como a Suíca e a Alemanha, vive-se o ecumenismo. Há grupos que, antes do mais, rezam pela unidade e ajudam a redescobrir a amizaJe entre os cristáos. Urna vez, Joao Paulo II me perguntou o que é o ecume
nismo. Respondi-lhe que o seu primeiro passo é a amizade, pois, quando os homens sao amigos, eles tém confianza recíproca. Os grupos ecuménicos
podem trabalhar e estudar juntos os documentos do Concilio. Agora anuncia-se um Catecismo Universal para a Igreja Católica; isto ajudará muito a causa da unidade..." 439
8
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 R.: "E na cúpula?"
M. Th: "Há dois tipos de cúpula: a dos teólogos, que, após o Concilio, tém aprofundado a verdade; e a das autoridades responsáveis, que se encontram. A 27 de outubro de 1986, o Papa, que caminhava pelas rúas de Assis
tendo a seus lados o arcebispo de Cantuária e o representante do Patriarca de Constantinopla, formava urna ¡magem viva do ecumenismo intracristáo. Com efeito; nao esquecamos que o ecumenismo se desenvolve entre fiéis
batizados; é um fato exclusivamente cristao. Em Assis os cristaos se apresentaram juntos em torno do Papa, nao, porém, ¡solados, mas ao lado de
outras religioes, porque a unidade da Igreja é um ser vico a todos os homens, crentes e nao crentes". R.: "Em nivel teológico, que ponto tem sido mais desenvolvido?"
M. Th: "Creio que a doutrina da Eucaristía, a fim de melhorse deter minar o que esta significa. Ficam problemas a respeito da sua celebracao, a respeito dos ministerios do sacerdocio e do episcopado assim como no to cante á sucessao apostólica: principalmente sobre este último ponto será pre ciso trabalhar muito. O episcopado corno sinal e garantía da continuidade na
sucessao apostólica é algo de fundamental, como eu dizia antes. Será necessário tambérn redescubrir o papel do Bispo de Roma como ministro da uni dade da Igreja universal, como guia do colegio dos Bispos, como aquele que recebeu o carisma de fazer a Igreja caminhar e de falar ao mundo em nome de toda a Igreja". R.: "Pode-se prever a data da plena unidade dos cristaos?"
M. Th: "Nao podemos ser profetas a este respeito. Após o Concilio, nos diálogos ecuménicos em m'vel teológico, compreendemos que podemos
esperar tudo, mesmo contra a esperanca! Mas trata-se de nos entendermos sobre o tipo de unidade que realizaremos. Recentemente Osear Cullmann1, num de seus livros, afirmava que os cristaos poderlo permanecer como es-
tao, com as suas divergencias, mesmo na fé, e travar urna especie de pacto de paz e amizade entre si. Estimo Cullmann, mas este ecumenismo de linhas pa ralelas nao me entusiasma. Oevemos procurar a unidade nos pontos funda mentáis da fé; alguém chamará isto utopia, mas a utopia faz parte da espe ranca dos cristSos, pois n3o podemos permitir que ela se realize tao somente
no Reino ou no além; Cristo rezou para que sejamos unidos hoje, neste mun do. N3o sabemos quando isto há de acontecer, mas desejamos procurar a
1 Teólogo sufgo protestante, muito chegado é Igre/a Católica. (Nota do Tra-
dutor).
440
FALA MAX THURIAN: ECUMENISMO verdade e seguir realmente Jesús em todas as etapas; esta unidade um dia ocorrerá".
R.: "A respeito das funcSes do Papa, quais sao as sentencas?"
M.Th: "Se consideramos o diálogo entre católicos e anglicanos, verifi camos que se deu um passo á frente para acolher este ministerio. A Confe rencia de Lambeth dirá se todas as seccoes da Comunháo Anglicana estío
de acordó. Com os ortodoxos, o entendimento é mais difi'cil, porque consideram o Papa como primeiro Ínter pares, o primeiro Patriarca da antiga 'pentarquia' (juntamente com os de Constantinopla, Alexandría, Antioquia e Jerusalém). Nao aceitam a jurisdicao universal do Papa. Quanto aos outros cristaos, mantém intensa rede de contatos com o Bispo de Roma (muitos grupos deles assistem ás audiencias papáis), contatos que ajudam a compreender melhor a funcao do Bispo de Roma". R.: "Os anglicanos parecem estar mais próximos de Roma..."
M.Th.: "Diría que sim, principalmente na Inglaterra; mas, repito, nao se deve falar de eventual fusáo, e sim da Igreja anglicana em comunháo com
a de Roma, ao lado da Igreja Católica Romana, que já existe na Inglaterra:
seriam mais ou menos dois ritos, duas familias espirituais.1 Veremos como se desenvolverlo as conversacoes..."
R.: "Entre nao católicos, nao se pensou em programar um Concilio ou algo de semelhante?"
M. Th.: "Nao. Eu diría que a única sede na qual isto poderia ocorrer, é o Conselho Mundial das Igrejas; houve as grandes assembléias de 'Fé e Constituicao' ñas quais foram discutidos temas de muita importancia. Mas há urna diferenca em relacao aos católicos, que pude verificar no Sínodo de
1985: no final das assembléias protestantes, pode-se apenas redigir um reíatorio carente de autoridade, visto que cada Igreja o pode aceitar ou recusar. Ao contrario, fiquei muito impressionado pelo discurso do Papa, que, no fim do Sfnodo dos Bispos dedicado ao balanco dos vinte anos após o Conci lio do Vaticano II, disse que aceitava o texto elaborado pelos padres sinodais e o publicaría como conclusao do Sínodo, conferindo a tal documento o peso da autoridade papal."
1 Max Thurian quer dizer: naja unidade, nao, porém, uniformidade. Poderao
conservarse costumes própríos de cada regiSo. (Nota do Tradutorj. 441
_10
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 R.: "Os ortodoxos já há tempos anunciam um Concilio pan-ortodoxo".
M. Th: "Existe urna Comissao preparatoria, cujos trabalhos procedem
muito lentamente. É preciso nao esquecer que a Ortodoxia compreende qua-
torze tgrejas autocéfalas, a maioria situada em países marxistas; por isto é mais difícil chegar rápidamente a um acordó sobre o programa de um Con cilio. Ainda nao se sabe quando e onde se realizará tal Concilio."
R.: "Qual o seu modo de pensar sobre a abertura que parece estar acontecendo nos países comunistas em relacSo aos cristáos?"
M. Th.: "Parece que realmente algo está mudando naquelas paragens. Esperemos um pouco. Pessoalmente, creio que isso é um efeito do poder do Evangelho. Aquela gente viveu setenta anos num contexto anticristao e, apesar disto, transmitiu o Evangelho em toda parte. Conheci em Paris um estudante ortodoxo que se preparava para receber o sacerdocio; contou-me que, enquanto na escola era educado para o ateísmo, aos dez-doze anos tomou conhecimento dos icones que a sua avó guardava escondidos num ar mario. Quis entao informar-se melhor a respeito do Cristianismo e foi pro curar um sacerdote. Daquele momento em diante a sua vocacao foi amadurecendo. Fala-se, muitas vezes, do ministerio das mulheres na Igreja; ora que grande ministerio exercem essas avós na Rússia ao transmitirem o Evan gelho!..." R.: "Os seus livros contribuiram para urna evolucSo teológica no ámbi to da Reforma?"
M. Th: "Posso dizer que o meu pensamento, ao menos como foi expresso no meu livro sobre a Eucaristía, foi bem recebido... Quanto ao mais, nunca pude — nem o desejo — verificar se e quanto influí sobre os outros. Posso dizer que sempre fui católico..." R.: "Expliqúense melhor".
M. Th.: "Julgo que a Igreja Católica é a Igreja Mae. A propósito per-
guntaram ao pastor Boegner1 se o paréntese da Reforma podia ser tido co
mo encerrado. Alguns pensam que ainda há necessidade de crítica e de testemunho em relapso a Roma; mas isto pode ser muito bem efetuado dentro da ComunhSTo Católica".
1 Pastor chefe dos cristáos calvinistas da Franca. (Nota do tradutor). 442
FALA MAX THURIAN: ECUMENISMO
R.: "Sao muí tos no ámbito protestante que p«n»a m como o Sr.?"
M. Th: "Mais do que se pensa. O futuro nos mostrará que se vai percorrendo um grande caminho em demanda da unidade em comunhao com a
Igreja Católica. O Concflio mudou muitas coisas, de modo que, a meu ver,
existem hoje as condicóes para que o paréntese da Reforma possa ser fecha do; em última análise, o que aconteceu no sáculo XVI derivava-se da exigen cia de reafirmar a raíz cristológica da Igreja; ora o Vaticano II deu urna resposta católica a tal exigencia, apresentando-nos urna Eclesiologia plenamen te fundada sobre a Cristologia". R.: "Que diría para concluir com um sinal de esperanca?"
M. Th.: "Comecaria citando urna passagem da 'Historia de urna Alma'
de Sta. Teresa de Lisieux, que diz textualmente: 'Pensando no Corpo Mís tico da Igreja, nao me vejo em nenhum dos membros que Sao Paulo descreveu ou, melhor, quero ver-me em todos. Assim compreendi que a Igreja tem
um Corpo composto de varios membros, mas que neste Corpo nao pode fal tar o membro indispensável e mais nobre: compreendi que a Igreja tem um coracao, um coracao inflamado de amor. Compreendi que sonriente o amor leva a acao os membros do Corpo da Igreja e que, urna vez extinto este amor, os Apostólos nunca teriam anunciado o Evangelho, os mártires nao mais teriam derramado o seu sangue; compreendi que o amor abrange em si todas as vocapdes, que o amor é tudo e se estende a tudo, a todo tempo e
a todo lugar. Numa palavra: compreendi que o amor é eterno. Entáo com
suma alegría desperté) e em meu ánimo exclamei: Ó Jesús, meu amor, encontrei finalmente a minha vocacao. A minha vocacao é o amor. Encontrei o meu lugar na Igreja e, este lugar. Tu mo deste, meu Oeus. No coracao da
Igreja minha Mae, eu serei o amor; assim o meu desejo se tornará realidade!' Ora eu quisera resumir assim a atitude do ecumenismo: se estamos no Coracáo da Igreja, podemos compreender tudo".
2. REFLETINDO... Max Thurian, que (como ele mesmo diz) sempre foi católico de corapao, faz afirmagóes realistas e sinceras, das quais destacamos os seguintes pontos:
1) é para desejar a uniao de todos os cristaos sob o primado de magis terio e jurisdicáo do Bispo de Roma, fator de unidade da Igreja inteira. 2) Reconhecam-se as dificuldades que este objetivo encontra nos di versos setores do Cristianismo. 443
12
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 3) Mas, ao mesmo tempo, observem-se os muitos passos já dados e
ainda em curso na demanda de tal ideal.
É muito alvissareiro o pensamento de Max Thurian, o qual, alias, julga
haver muitos colegas que pensam como ele dentro do Protestantismo. - Nao podemos deixar de notar a diferenca existente entre a linguagem de Max Thurian e a dos protestantes mais recentes do Brasil, que revelam paixao alimentada por preconceitos. Queira Deus iluminar todos os cristaos para que realmente se encontrem na unidade de um só rebanho, movido pelo in tento de servir únicamente a Cristo e ao Evangelho (cf. Jo 17,21)!
3. APÉNDICE: CONFISSAO, CELIBATO, SACERDOTIZAS Foram outrossim colocadas tres perguntas a Max Thurian a respeito de assuntos candentes:
1) O sacramento da Confissao está em crise. Em algumas igrejas cató licas os fiéis deixaram de o freqüentar. Que diz o Sr. a este propósito? Max Thurian: "A crise se prende a diversos fatores. Por exemplo, pen só no progresso das ciencias psicológicas, segundo as quais o diálogo com o
médico substituí o diálogo com o sacerdote. Mas também estou convencido de que, onde há urna catequese adequada, a exigencia de Confissao se faz sentir. Nos o observamos em Taizé: os jovens pedem a ocasiao de abrir o seu íntimo; assim procuramos fazer que na igreja haja sempre dois sacerdotes dispostos a ouvir a confissao sacramental. Talvez fosse bom juntar o colo quio pessoal (que outrora se chamava 'direpao espiritual') com o sacramento da Reconciliacao. Ná*o compreendo, em absoluto, este abandono da Confis sao, riqueza da Igreja Católica que nem Lutero nem Caivino jamáis recusaram". A respeito do celibato, disse M. Thurian:
"Ñas Igrejas da Reforma foi deixado o celibato á escolha de quem exerce o ministerio. Mas, com o desenvolvimento das comunidades, o celiba
to foi recolocado em lugar de honra como forma de servico ao Senhor. Muitas vezes observo as grandes dificuldades encontradas por pastores casados, constrangidos a ocupar-se com coisas estranhas ao ministerio. Em todo caso, trata-se de um servipo em prol do Reino - diz o Evangelho - e, por isto, eu o considero um tesouro muito importante da Igreja Ocidental". 444
FALA MAX THURIAN: ECUMEN1SM0
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A propósito da orden apio de mulheres, declarou Thurian: "Reconhecemos que, dentro da variedade de posicoes, a maioria das comunidades da Reforma, sejam luteranas, sejam calvinistas, aceita a ordenapao das mulheres, partindo da consideragao da igualdade dos dois sexos: se um homem pode dirigir urna empresa, também o pode urna mulher; o mes-
mo se daría no tocante ao pastorado. Nutro grande hesitagáo neste parti cular. Nao basta (do ponto de vista teológico) colocar a casula sobre os om-
bros de urna mulher para torná-la sacerdotiza. Parece-me que há ai' urna excessiva inspiracao do feminismo considerado como imitacao (se o homem faz algo, também a mulher o deve fazer). Talvez nao se refuta suficientemen te sobre o servíco próprio da mulher na Igreja. O sacerdocio, para os católi cos, está ligado ao sacrificio de urna vida totalmente dedicada ao ministerio. Entao digo eu: a mulher já tem os seus sofrimentos como míe e como edu cadora dos filhos; por que ainda queremos molestá-la com o fardo do sacer docio? Isto nao impede que eu conheca mulheres-pastores que desempenham muito bem o seu oficio". Tais observacoes de Thurian sao especialmente significativas porque procedem de alguém que foi educado dentro de concepcoes totalmente
avessas ao sacramento da Confissao, ao celibato sacerdotal, á unidade da
Igreja... e que, por seus estudos, sua reflexáo e sua disponibilidade de coracao 3 grapa de Deus, chegou ás conclusóes opostas ou ao modo de pensar católico.
Assim se deu com John Newmann,
Louis
Bouyer, Wolfgang
Tschuschke e muitos outros que, sem preconceitos, interessados únicamen
te pela descoberta da verdade, acabaram professando o Catolicismo.
(continuacao da p. 449) como a prática da poligamia, que ofende a própria lei natural ou a instituígao natural do matrimonio. Apesar de julgarem os cristaos extravagantes e exagerados, os maome-
taños dedicam-lhes especial amizade, de acordó com os seguintes dizeres do Corao: "Verás que aqueles que sao mais vizinhos e amigos dos que créem, sao os que dizem: 'Somos cristaos'. Entre estes, encontram-se sacerdotes e mon-
ges, que sao pessoas que nao se incham de orgulho" (CorSo 5,82).
Possa o Espi'rito Santo agir no coracáo daqueles que se dizem filhos de Abraao, para que mais e mais cheguem ao conhecimento da verdade revelada! Estévfo Bettencourt O.S.B 445
Em resposta a mu ¡tos:
Max Thurian Explica...
Em um artigo de "Courrier", quotidiano católico de Genebra, Max Thurian expoe sua caminhada espiritual. Desse artigo extraímos e traduzimos as passagens que mais significativas parecem:
"Algunsamigos pediram-meque respondesseássuas perguntas. Facoo hoje com prazer, ciente de que nao se trata de coisa extraordinaria, mas de um ato normal dentro da evolucao continua do meu modo de pensar e viver; os que me conhecem profundamente e de longa data, o reconhecerao comigo.
Fui ordenado presbítero na Igreja Católica que está em Ñapóles. Liames muito profundos me uniram a essa comunidade. Encontréi em IMápoles urna Igreja fraterna, cuja vida litúrgica me marcou profundamente. Oesejei que a minha decisáo f icasse reservada a fim de que ninguém sofresse pelos comentarios que se fariam a respeito e porque ela faz parte de urna caminhada que é puramente espiritual, conforme o Evangelho: 'Quando a ti, quando rezares, retira-te e ora ao teu Pai que te escuta no segredo. ' (Mt 6,6)...
Havia muito que eu me sentía profundamente católico; aqueles que me conhecem, sabem-no bem. Experimentei a ¡rresisti'vel necessidade de por
minha vida de ministro de Cristo em acordó com o meu modo de pensar freqüentemente expresso no diálogo ecuménico. Isto nao implica juízo algum a respeito de quem quer qué seja...
Os meus estudos sobre a Eucaristía, a Liturgia em geral levarammea
desejar irresistivelmente a celebracao quotidiana da Palavra e do Sacramento na Igreja, que me concede a possibilidade e a missáo de o fazer. Essa celebracao quotidiana da Eucaristía (Palavra e Sacramento) parece-me primordial e fundamental para a vida sacerdotal de um ministro de Cristo: experimento toda á forca e a alegria disto na bela Liturgia tradicional da Igreja, redescoberta, em suas fontes, pelo Concilio do Vaticano II. 446
MAX THURIAN EXPLICA. ..
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O diálogo ecuménico sobre o ministerio, segundo a Palavra de Deus, assim como a vida litúrgica e pastoral, convenceram-me do caráter sacramen tal da ordenacfo pela imposicSo das míos e a epiclese (invocacao) do Espiri to Santo. Desejei entSo receber o sacramento da Ordem para ser integrado
no ministerio confome a Igreja dos Padres1 e poder celebrar a Eucaristía em plena comunhfo com toda a Igreja. O ministerio que eu realizava (segundo a interpretacao católica, como por antecipacao) recebeu o sacramento da Ordem, que Ihe dá a plenitude, como consumacao no misterio da Igreja. A Igreja dos Padres, em continuidade com a Igreja dos Apostólos, é urna Igreja episcopal, que reconhece nos Bispos os sinais e os ministros da
unidade católica e da sucessSo apostólica. Esta certeza doutrinária, amadurecida no diálogo ecuménico, foi confirmada pela experiencia, no contato com numerosos Bispos e com o ministerio de unidade da Igreja local ou parti cular.2 Joao Paulo II revelou-me urna imagem forte do Papa que vigía sobre a Igreja, proclamando em toda parte a Palavra de Deus com coragem, confian za e autoridade. A sua personalídade e o seu ministerio convenceram-me da necessidade de que o Bispo de Roma, sucessor de Pedro, traga o encargo de guia e arbitro na colegialidade dos Bispos e procure, na obediencia ao Senhor,
as vias da unidade entre as Igrejas particulares e as novas perspectivas de evangelizacao do mundo. O seu pastoreio universal é necessário á reconstituicao da unidade visi'vel entre todos os crista'os.
A encíclica Redemptoris Mater de JoSo Paulo II confirmou-me na cer teza de que a Virgem Maria, Mate de Deus, desempenha, por grapa, um papel decisivo na historia da salvacao e continua, por sua ¡ntercessao maternal, a sustentar no combate espiritual todos os discípulos de Cristo que constituem a Igreja, da qual Ela é a figura e o modelo. A piedade mariana leva-nos á escuta da Palavra de Deus, ao amor de Cristo e á renovacáo do Espirito na Igreja, Ma*e dos fiéis.
Confio-me á oracfo de todos a fim de que eu guarde a alegría na celebracao da Eucaristía, na Liturgia das Horas, no ministerio da reconciliacao.
1 Chamase "Igreja dos Padres" a Igreja dos primeiros sáculos, até 604 no
Ocidente (morte de S. Gregorio Magno, Papa) e 749 no Oriente ímorte de S. Joao Damascenol. Foram sáculos em que viveram os grandes doutores que, defendendo a reta fé, transmitirán} a Palavra da vida ás geracoes poste riores. Daf chamaremse "Padresda Igre/'a".
2 Igreja particular ou local é cada diocese ou bispado. 447
16
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
ao servido da unidade visíval dos cristá~os. Conserve sempre a abertura do
coracao e do espirito para todos aqueles que querem amar a Deus, servir ao Cristo, vivar na comunhSo do Espirito Santo.
Quisera poder dizer sempre de novo estas palavras de Santa Teresa de
Ávila: 'Que nada te perturbe, nada te espante. . . De nada careces. Só Deus basta'.
Genebra, 20 de junho de 1988
(a) Max Thurian"
(Traduzido do texto francés publicado por BIPSNOP-SOP. Bulletin
Oecuménique d'Information, n° 638, 13/07/88, pp. 6-8). *
*
X
COMENTARIO Os dizeres de Max Thurian sugerem algumas reflexóes:
1) Pode-se dizer que o que atraiu o monge protestante de Taizé á Igreja Católica, foram cinco elementos: a Eucaristía, o sacramento da Ordem, o Sacramento da Igreja, o Papado, a presenca de María: — a Eucaristía, reconhecida nao como mero símbolo da Paixao de Cristo, mas como perpetuacao da mesma sob forma sacramental. Esta é real mente o centro da vida crista; sem ela o Cristianismo se reduz ao culto da Palavra ou torna-se mera escola de oracfo e morigeracao; — o sacramento da Ordem perpetua o único sacrificio de Cristo, dando-lhe máos e labios sempre novos através dos tempos;
— a Igreja como o Grande Sacramento, no qual Cristo vive e conti nua a sua obra redentora,... Igreja chamada a congregar todos os homens na unidade;
— o Papa como sinal e fator vísfvel dessa unidade. Pastor universal, que corajosamente prega o Evangelho a todos os homens; — a Virgem María, prototipo e miniatura da Igreja, Mae de Deuse dos homens, na qual cada cristao contempla a Sabedoria Divina e a consumacSo que Ihe está reservada. 448
MAX THURIAN EXPLICA. ..
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2) Os tradicionalistas de Campos acusam a Igreja de haver conferido a ordenagao sacerdotal a Max Thurian "sem que ele tenha feito qualquer abjuracao de suas heresias". A propósito observamos: nao é necessário que a
abjuracao de heresias tenha sido pública a ponto de merecer divulgapao pe los ¡ornáis. Ademáis vé-se que, quando Max Thurian pediu as ordens sacras, já era católico e já havia professado posicoes católicas através de seus escri tos e trabalhos.
Seja o exemplo desse monge e teólogo eloqüente
sinal junto aos
irmaos separados, que a Palavra de Deus tende a reconduzir ao único reba-
nho de Cristo!.. .
*
¥
*
(continuapao da p. 480)
A primeira grande divisáb é a de Sunitas e Sciftas. Os primeiros seguem a Tradicao (Sunna), como veio através dos primeiros califas (=sucessores do mensageiro de Deus). Os Sciitas, aos quais se acrescentam os harigitas
sao um ramo tido como dissidente, porque segué o califa Ali (665-660), pri
mo de Maomé, ao qual se opunha outro párente do profeta, chamado Muawija, Governador da Siria.
Os Sunitas representam 90% dos muculmanos atuais, ao passo que os
Sciitas e outros disidentes 10%
De modo geral, entre os maometanos encontra-se um ampio leque de atitudes perante os desafios do mundo contemporáneo: há os que querem conciliar sua fé com os costumes da sociedade moderna no tocante aos direítos da muiher e dos filhos e no tocante ao direito penal (o Corao estipula a lei do taliSo e outras punicoes drásticas). Há igualmente os Fundamentalistas ou "Irmáos muculmanos", que nao aceitam outra Constituicao que nao o Corao e querem retornar ao Isla dos tempos de Maomé em Medina (tém sua expressao no Ira de Khomeyni e no Lfbano).
Além do mais, as culturas regionais imprimem suas características aos muculmanos, de modo que se distinguem os maometanos árabes dos nao árabes (africanos, turcos, soviéticos, indianos, indonesianos...).
8. Conclusáo
O Isla resulta de urna amalgama de Judaftmo, Cristianismo e antiga religiao árabe; serviu a Maomé para unificar a populapao da penmsula árabe e transmitir a seu povo a tempera forte das conquistas polfticas mediante a Guerra Santa (quem morre em guerra de conquista, tem assegurada a salvacao eterna, segundo o Corao). Conserva trapos das suas origens pré-cristas
(continua na p. 445) 449
Aínda o caso Lefebvre:
"Resistir ao Papa Hoje, como outrora"? Em sintese: D. Maree/ Lefebvre e seus seguidores fundamentam sua
avtude cismática em episodios da historia da Igreja interpretados de maneira um tanto preconcebida. Para dissipar malentendidos, o presente artigo expoe, com as devidas minucias, as ocorréncias havidas entre S. Atanásio e
o Papa Libério no sáculo IV, assim como a atitude dos Bispos e Santos do sáculo XII frente ao Papa Pascoal II. O exame objetivo dos fatos mostra que
naopodem ser evocados como precedentes ou paradigmas para a insubordi nado de D. Lefebvre. Ademáis é de notar que nem tudo na vida dos Santos é modelar; estes tiveram seus deslizes, dos quais, com a graca de Deus, se redimiram para poder a fingir a perfeicao ou a san tidade. se
*
*
O caso Lefebvre, amplamente divulgado pela ¡mprensa, deixou dúvidas
na mente de muitos leitores. Entre outros argumentos em favor da ¡nsubor-
dinacáo do arcebispo, está o dos "precedentes já ocorridos na historia da Igreja"; dois destes foram explícitamente citados no manifestó "Sobre a Sa-
gracao de Bispos" do Pe. Fernando Aréas Rifan, "portavoz dos Padres de Campos fiéis á Tradicao". Ei-los:
"A historia da Igreja registra exemplos de Santos que ameacaram rom per com a autoridade eclesiástica prevaricadora para permanecerem fiéis.
Assim Sio Godofredo de Amiens, Santo Hugo de Grenoble e Guido de Viena (que mais tarde foi o Papa Calixto II) escreveram ao Papa Pascoal II
que vaci/ava na questao das Investiduras: 'Se, como absolutamente nao ere mos, escolherdes outra vía e vos negardes a confirmar as decisoes de nossa patemidade. valha-nos Deus, pois assim nos estaréis afastando da vossa obe diencia' (apudBouix, Tract. de Papa, t. II, p. 650).
Santo Atanásio, no século IV, nSp obedeceu ao Papa Libério que fa vorecía a heresla anana. Por isso o Papa o excomungou (cf. Dz. Schoenmetzar 138. Ep. Studens Pac¡¿ Tanto a ordem como a excomunhao foram arbitra rias. Por isso nao valeram. B Santo Atanásio nao foi cismático. Enquanto o 450
REGISTIR AOPAPA?
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Papa Liberto passou é historia como fautor de heresia, Santo Atanásio foi canonizado pela Igre/a. E ele está no céu. £ é o que importal" Estas notreías referem-se a fatos respectivamente dos sáculos XI/XM e do sáculo IV muito sumariamente relatados. A historia é mais complexa e merece ser narrada com a devida amplidao para que se perceba se ela pode fundamentar a atitude de D. Lefebvre e de seus seguidores.
1. S. Atanásio e o Papa Libério O sáculo IV foi marcado pelas disputas em torno do Arianismo, here sia que negava a Divindade do Filho (Logos). Em 325 o Conci'lio de Nicéia I definiu solenemente a verdade da fé, proclamando o Filho "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, consubstancial (homoousios) ao Pai". S. Atanásio
(t373), Bispo de Alexandria, tornou-se o grande mensageiro e defensor da
fórmula de Nicéia. Diante desta definicao, o Arianismo se dividiu em faecóes,
que, de maneira muito sutil, propugnavam a heresia, usando fórmulas seme-
Ihantes, mas nao iguais á do Concilio de Nicéia I. Foi sobre este paño de fundo que o Papa Libério governou a Igreja de 352 a 366.
Neste período o Imperador Constancio II, de Constantinopla, favore cía o Arianismo e pretendía ¡mpó-lo aos Bispos. Exilou os Prelados que Ihe resistiam e envióu a Roma um emissárío portador de presentes e de ameagas para obter do Papa Libério a condenacao de S. Atanásio e a adesáo á heresia.
O Pontífice resistiu nos seguintes termos (como refere o próprio S. Ataná sio em Historia Arianorum XXXV • XXXVII):
"Julga tu mesmo se é possível aquilo que me pedes. Podemos nos con denar Atanásio depois que foi declarado inocente nao só por um primeiro
Concilio, mas por urna segunda assembléia convocada de todas as partes da térra e depois que a Igreja Romana o despediu em paz?. .. Se o Imperador deseja a paz da Igreja e quer anular tudo o que ordenamos para a justifica'
cao de Atanásio, deverá anular tambóm tudo o que foi feito contra Ataná sio. Deverá anular outrossim o que foi feito contra todos os outros. A seguir, convocar-se-á urna assembléia eclesiástica longe do palacio, ó qual o Impera dor nao assistirá..., na qual nenhum juiz aplicará terror e ameacas, na qual reinará o temor a Deus só e a única regra serio as determinacoes dos Apos
tólos. A primeira coisa a fazer será conservara fé da Igreja conforme a defi-
nicSo que nossos Pais formularam no Concilio de Nicéia. é preciso que os seguidores de Ario sejam excluidos e aqueles cuja fé é pura, tenham plena autoridade". 451
20
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 O mensageiro do Imperador, tendo ouvido estas palavras, prorrompeu
em ameacas e foi levar á ¡greja de S. Pedro os presentes de que o encarregara o monarca. Mas o Papa deu ordens para que se jogasse tora da ¡greja essa quantia.
O Imperador entao mandou seqüestrar o Papa durante a noite (por medo dos cidadaos romanos, que muito estimavam Libério). Constancio I! em Milao disse ao Papa: "Jé que és cristao e Bispo da nossa cidade (Roma), /u/gamos conve
niente mandar-te vir e intimarte a recusar a comunhao ao fmpio Atanásio, cu/a audacia é indizfvel. Isto foi tido como oportuno pela térra inteira, que por urna sentenga de Concflio, o rejeitou da comunhao eclesiástica". Respondeu o Papa:
"Principe, as sentencas da Igreja devem ser pronunciadas com grande justíca. Se, pois, o dese/as, ordena que haja julgamento. E, se Atanásio mere ce ser condenado, proferirSo urna sentenca contra ele na forma obrigatória
do procedimento eclesiástico. Mas nos nao podemos condenar um homem que nao jutgamos".
Replicou o Imperador:
"Quanto pensas valer neste mundo, tu que tomas o partido de um homem impío e perturbas a paz da térra inteira?" Disse o Papa:
"Posso estar só, a fé nada perde; em tempos passados ficaram apenas
tres para resistir".'
Continuou o Imperador, vendo que o Papa resistía: "Trata-se de urna só coisa. Toma o partido da paz; assina e voltarás para Roma".
O Papa: "Jé me despedí de todos os irmaos que estao em Roma. As leís da /greja tém mais valor do que a residencia em Roma". O I mperador:
"Tens tres días para te decidir: se queres assinar, volta
rás para Roma. Se nio, pensano lugar para onde queres ser exilado".
O Papa: "Tres días nao mudarao a minha decisao. Exila-me para onde
quiseres".
1 Alusao aos tres jovens /aneados na fornalha ardente, conforme Dn 3,8-23. 452
REGISTIR AOPAPA?
21
Dois dias depois o Papa foi desterrado para Beréia na Trácia, onde o bispo ariano Oemófilo ficara encarregado de o vigiar. Em lugar de Libério, o Imperador instituiu como antipapa em Roma o diácono Félix (355). O comportamento de Libério no exilio é controvertido. Existem a respeito quatro cartas atribuidas a este Pontífice, cuja autenticidade é discuti
da.1 Parece que o Papa cedeu a pressao dos adversarios assinando uma fór
mula de fé dita "SCrmica" (do Concflio de Si'rmio); esta nao era herética, pois afirmava que o Filho é "Deus de Deus"; apenas nao usava a palavra homoousios (consubstancial). Embora esta atitude do Papa nao satisfizesse aos hereges arianos, o Imperador permitiu que o Pontífice voltasse para Ro ma em 357, pois pudera apreciar a estima que os fiéis conservavam ao seu Bispo; no próprio circo o povo pedirá a Constancio o retorno de Libério. O antipapa Félix nao resistiu ás manifestacoes dos fiéis e se retirou da cidade de Roma, vencido pela evidencia dos fatos.
Quanto a atitude de Libério em relacao a S. Atanásio, é descrita pela primeira das quatro cartas de autenticidade discutida (atrás mencionadas); se é fidedigna, somos informados de que Libério em 352 reuniu um Sínodo em Roma, para o qual convocou S. Atanásio; este, porém, nao julgou opor tuno viajar no momento; por isto terá sido condenado por Libério. Tal noti cia, porém, nao concorda com os dados que o próprio Atanásio fornece na sua obra Historia Arianorum (atrás citada): precisamente antes de ser exila do em 355, o Papa terá feito a apología de S. Atanásio perante o Imperador, merecendo por isto o exilio; como entáo teria condenado Atanásio em 352 e nao faria referencia a isso em 355? Daí o impasse dos historiadores diante da exigua e obscura documentapáo existente sobre o assunto. Como quer que seja, se Atanásio foi condenado pelo Pontífice, ele o foi por motivos disciplinares ou por razdes contingentes e nao por causa de divergencias dou-
trinárias. É preciso reconhecer que o contexto histórico de meados do sé-
culo IV foi muito complexo: a sutileza da linguagem técnica, as intervencoes passionais dos Imperadores, as dificuldades de comunicacáo e transporte... contribuirán-! para baralhar as idéias e provocar mal-entendidos. Pode-se di-
zer, porém, que nao houve lesáo da reta fé nem por parte de Atanásio nem por parte de Papa Libério. Este se revelou fraco, cedendo á pressao dos adversarios pelo fato de assinar uma fórmula de fé que silenciava a palavra
homoousios como senha da ortodoxia. O pensamento de Libério, porém, fica muito claro desde que se considere que a própria fórmula sírmica subs
crita pelo Pontífice afirma que Jesús Cristo é "gerado antes de todos os séculos, Deus de Deus, luz de luz, por quem tudo foi feito no céu e na térra,
as coisas visíveis e as ¡nvisíveis".2 Estas palavras constituem a mais auténti-
1 Cf. Fr. di Capua, II ritmo prosaigo nelle lettere dei Papi. Roma 1937, p. 240.
2 Ver Denzinger-Schónmetzer, Enquirídio... rR 139. 453
£2
"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
ca profissáo de fé da Igreja até hoje. Vé-se, pois, que nao há fundamento para se dizer que O. Lefebvre se opos ao Papa Paulo II pretensamente
vftima de heresia, como S. Atanásio se opós ao Papa Libério; na verdade, nem Libério nem Joáo Paulo II sao hereges.
2. Os Santos contra o Papa 2.1. As Investiduras na Idade Media: fatos
Os séculos XI/XII se ressentiram da famosa questao das Investiduras,
que assim pode ser apresentada:
As relapoes entre a Igreja e o Estado sempre foram assunto delicado. Podem-se conceber tres modalidades das mesmas:
1) o Estado opoese á Igreja por motivos ideológicosou políticos: entao há persegu¡gá"o. Tal foi o caso até 313 (Edito de MilSo, peloqual Cons tantino fez cessar a hostilidade á Igreja);
2) o Estado ignora a Igreja, tratando-a como qualquer outra sociedade
de iniciativa particular. Tem-se entáo a neutralidade. Ora esta era inconcebi'vel após o sáculo IV e por toda a Idade Media, visto que o Imperio Roma no tinha estado unido á religiao paga;
3) o Estado e a Igreja procuram colaborar entre si. Foi o que se deu na
Idade Media. A Igreja contribuiu valiosamente para a instauracao da civiliza-
cao e da ordem civil abaladas pelas invasoes bárbaras até o século VI; os chefes civis eram cristaos e, por isto, professavam respeito ás leisda Igreja. Por seu lado, esta recebia beneficios (bens e dominios) e protecao das autorida des civis. Tal ordem de coisas, teóricamente bela e ideal, na prática redundou em perda de parte da liberdade da Igreja; os senhores temporais tentavam dominá-la exercéndo certo cesaropapismo. Apesar de tudo, nao faltavam pregadores que apregoavam a viabilidade da almejada colaboracao. Eis
palavras de S. Bernardo de Claraval (t 1153):
"Bu nao sou ¿aqueles que dizem que a paz e a liberdade da Igreja prejudicam o Imperio ou que a prosperídade deste prejudica a Igreja. Deus, com efelto, que é autor de um e. de outra, nao os ligou num comum destino ter restre para que se destruissem mutuamente, mas para que um se fortificasse com a outra".
O pfoblema mais delicado desse relacionamento era o da nomeacao e
investidura dos Bispos. Já que os senhores civis reconheciam oficialmente 454
REGISTIR AOPAPA?
23
a Igreja, os bispados eram sujeitos aos reis e aossenhores feudais. Isto acarretou graves males para a Igreja, pois cada senhor feudal tinha interesse em
influir na escolha dos Bispos, a fim de poder contar com vassalos fiéis, condizentes com os interesses do soberano. No comepo do século IX, os nobres
já nao se contentavam com a aprovacao dos candidatos escolhidos pela Igre ja, mas queriam' eles mesmos designar os prelados, apesar dos protestos de
varios Concilios. E nao somente conseguiam designar os prelados: praticavam também a investidura, isto é, a entrega do báculo e do anel, dizendo ao
prelado: "Accipe Ecclesiam. - Recebe a Igreja, isto é, a diocese ou o bispado". O prelado devia prestar juramento de fidelidade ao soberano e reconhecer-se como seu vassalo; somente depois disto recebia a ordenacao episcopal.
Chamava-se isto "a investidura leiga"; assim eram os senhores feudais que conferiam aos Bispos o poder de conduzir os fiéis como pastores - o que nao se podia justificar aos olhos da Igreja. Aos poucos as dañosas conseqüéncias desta praxe foram mais e mais
sensi'veis aos próprios eclesiásticos, que, a partir do século X, comecaram a luta pela recuperacáo da liberdade da Igreja.
Após os esforcos de Papas e Bispos anteriores, Gregorio Vil conseguiu vencer a resistencia do Imperador Henrique IV da Alemanha, que, excomungado, fez penitencia em Canossa (26-28/01/1077). O Papa dispós: "Que nenhum eclesiástico receba de qualquer forma uma igreja das mSos de um leigo quur gratuitamente, quer a título oneroso, sob pena de excomunhao para aquele que a dá e para aquele que a recebe".
Todavía, mesmo após a penitencia e a absolviólo de Henrique IV, as reivindicapoes do Imperador continuaram a molestar a Igreja. Henrique V, filho e sucessor de Henrique IV, era homem sutil e inteligente. Em 1110 fez sua primeira viagem a Roma para obter a coroa imperial. Entendeuse entao
com o Papa Pascoal II, antigo monge de Cluny, f¡cando estabelecido o seguinte (antes da coroapao imperial): o monarca renunciaría as investiduras
e permitiría as eleicoes dos Bispos conforme os cánones da Igreja, mas com
a condicao de que o Papa (se necessário, ameacando excomunhao) ordenasse aos prelados alemaes a restituicao de todos os bens e direitos temperáis que haviam recebido do Imperio. Os Bispados da Alemanha deveriam contentar-se com o dízimo e as doacoes privadas dos fiéis. Esta fórmula pare cía resolver definitivamente a questao; correspondía ao despojamento mo nacal do Papa, mas, ousada como era, abalaría a ordem e a economía nao só
da Igreja, mas também do Imperio. O acordó efetuado entre o Papa e o Imperador em Sutri aos 9 de fevereiro de 1111 foi mantido sob sigilo até o dia da coroapao imperial (12/02/ 1111); nesta data foram revelados os termos do tratado firmado pelo Papa 455
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
e Henrique V - o que suscitou ¡mediatamente a réplica dos Bispos alemaes e demais eclesiásticos presentes na basílica de S. Pedro. Pascoal II, nesse ambiente tumultuado, recusou-se a coroar o Imperador; este reagiu com a violencia, prendendo o Papa e treze Cardeais na basílica de S. Pedro. O Pon tífice foi levado para urna prisao alema e terrivelmente ameacado de repre salias, caso nao cedesse as exigencias de Henrique V; Pascoal II, mergulhado na humilhapao e na dor, receava piores desgrapas para a Igreja inteira. Por isto aos 11/04/1111 assinou um tratado em que concedía ao Imperador a investidura de báculo e anel em favor de candidatos eleitos livre e canónica mente (mas aprovados pelo Imperador); além disto, o Papa foi obrígado a declarar que nao molestaría o monarca por causa dos acontecimentos an teriores nem Ihe imporia a excomunhfo. "Cogor pro Ecclesiae liberatione.
- Sou coagido em vista da libertacao da Igreja", terá exclamado o Pontífice. Assim obtida a paz, Pascoal II coroou Imperador Henrique V aos
13/04/1111. Todavía logo que se tornaram públicas as novas concessoes feitas pelo Papa ao monarca, levantou-se grande clamor entre Bispos e teó logos, que percebiam a violencia infligida ao Pontífice e a iniqüidade do pro cedí mentó do Imperador; este tencionava solapar os esforcos dos Papas que nos últimos cinqüenta anos haviam lutado para conseguir a independencia do Sacerdocio frente ao Imperio; o cesaropapismo voltaria a reinar.
Isto explica que, ao tomarem conhecimento da capitulacao de Pas coal II, muitos Bispos tenham procurado obter do Papa a revogacáodo pri vilegio outorgado ao Imperador sob violencia tal que se podia ter como nula a concessao. Entre as vozes que entSo se fizeram ouvir, destaca-se a de Bru no, bispo de Segní (Italia), que escreveu ao Papa Pascoal II urna be la carta, na qual afirmava seu amor ao Pontífice "como a um pai e Senhor"; "enquanto vivesse Pascoal II, Bruno nao quería ter outro Papa"; concluia pedindo a Pascoal II que revogasse o privilegio outorgado a Henrique V e reafirmasse seus propósitos anteriores de ¡sentar a Igreja do poder imperial. Outra voz, mas fogosa esta, foi a de Godofredo de Amiens, que che-
gou a ser injuriosa ao Papa, considerando-o "nao mais como pastor, mas co mo profeta corrompido por Satanás" ou "lobo nutrido pelo sangue de suas ovelhas".
Em me ios aos ánimos exaltados, surgiu o canonista e teólogo Ivo de Chames, que deu provas de lucidez e equilibrio aptos a evitar um cisma: rejeitando tendencias extremadas, fez ver, "com amor filial", que o Papa fora coagido a assinar um documento tido como condicao de liberdade para a Igreja; de resto, afirmava (contra a versao disseminada pelos extremistas da
época), a concessao de investidura leiga nao é heresia, pois heresia significa
"recusa obstinada de um artigo de fé" — coisa que nao ocorrera no acordó
de Pascoal II com Henrique V.
456
REGISTIR AOPAPA?
25
Aos poucos, os afetos foram-se acalmando e, em vez de ceder á revolta
e ao cisma, deixaram-se guiar pela fé e pela genuína tradicao da Igreja. Com efeito; os mais ardorosos adversarios da concessáo feita pelo Papa ao Impera dor lembraramse de um antigo adagio do Oireito Eclesiástico: "Prima sedes
a nemine iudicatur. — A primeira sé por nenhuma outra instancia é julgada".
Com efeito; já o Sínodo Romano de 501 (Synodus Palmaris) havia formula do este princfpio que correspondía a urna conviccao manifestada já em sé-
culos anteriores.1 Por efeito desta conviccao, os arautos da liberdade da Igreja procuraram fornecer ao Papa os meios de retratar-se dos compromissos que sob coacao havia assumido. Pascoal II se fortaleceu diante do Impe rador e no Sínodo do Latrao (marco 1112), em presenca de cerca de duzentos Bispos e prelados, reafirmou os decretos dos Papas Gregorio Vil e Urba no II contrarios á Investidura leiga; ficava assim cassado o privilegium ou,
melhor (como se disse), o pravilegium2 extorquido por Henrique V. A luta em prol da liberdade da Igreja nao terminou nessa ocasiao. Mas
ao objetivo deste artigo bastam os fatos até agora recordados. Sugerem-nos algumas reflexoes. 2.2. Reflexoes
Cinco pontos se rao explanados a margem dos fatos que acabam de ser relatados:
1) O Papa Pascoal II podia ter sido mais enérgico frente á pressao do Imperador Henrique V. Nao se deve esquecer, porém, que é dif i'cil julgar o comportamento de alguém oito ou nove séculos mais tarde, ditando normas
que deveriam ter sido executadas entáo. É certo que Pascoal 11 era tímido e pouco adestrado para enfrentar o Imperador, em virtude da sua formacao monacal.
1 Mais precisamente nótese o seguinte: a heresia ariana no sáculo IV negava a Divindade de Cristo — o que provocou longos e calorosos debates. Em 343
o Si'nodo de Sárdica (Sofía, na Bulgaria) reconheceu o Bispo de Roma como
a suprema instancia de apelo ñas questoes controvertidas, instancia baseada na autoridade primacial do Apostólo Sao Pedro. Esta afirmacao tornouse fundamento para que no sáculo V houvesse diversos apelos é Sé de Roma: o de Sao Joao Crisóstomo de Constantinopla (404), o de Flaviano de Cons-
tantinopla (449), os de Teodoreto de Ciro e Eusébio de Doriléia em 449, o de Apiario de Sica em 417/418. . . O Papa Gelásio I formulou explícita mente o princfpio em 493 e 495, afirmando que a Sé de Roma tem o direito de ¡ulgamento sobre todas as outras sedes, ao passo que ela mesma nao es
tá sujeita a nenhum outro /ulgamento. O Sfnodo Palmar em 501, na cidade de Roma, nao fez senao repetir tais dizeres.
2Pravum -mau; lex, legis = leí. Donde pravilegium -lei má. 457
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1968
2) Em toda a questSo das Investiduras, nao se tratava de dogmas e heresias, mas de assuntos meramente disciplinares, como bem ressaltou S. Ivo de Chartres, á diferenca das opini3es extremadas, que levavam o pro blema para o campo da ortodoxia/heterodoxia.
3) Ao lado de Santos posicionados contra a decisao de Pascoal II, hou-
ve Santos, como' Ivo de Chartres, Bruno de Segni e o autor anónimo da De-
fensio Paschalis Papae, que se mostraram mais deferentes; nao fizeram amea-
cas, mas, ao contrario, colaboraram positivamente para encontrar urna saída do problema que nao derrogasse aos princfpios tradicionais e, ao mesmo tempo, evitasse novas e novas represalias do Imperador. - Sabe-se, alias, que
na vida dos Santos nem tudo foí sempre róseo ou imutável, mas'os Santos por vezes sofreram seus deslizes, após os quais se recuperaram e encaminharam decisivamente para a santidade.
4) Prevaleceu, mesmo entre os opositores das atitudes de Pascoal II, o principio, muito antigo na Igreja, segundo o qual "a primeira sede por nenhuma outra instancia pode ser julgada". Esta premissa se deve nao a presuncao de que os Pontif fces Romanos sejam sempre dotados de extraor dinarias qualidades humanas, mas á conviccao de que quem governa a Igreja e, conseqüentemente, assiste ao Papa, é, em última análise, o próprio Senhor Deus. Disto se segué que os alvitres e as atitudes dos Sumos Pontífices me rece m especial respe¡to enquanto nao haja evidentíssimas razóes de que nao se Ihes deve obediencia. Seria oportuno que os irmaos lefebvrianos se recordasjem desta verdade e procurassem vivé-la concretamente nesta fase da his toria da Igreja.
5) Vé-se que é despropositado recorrer indiscriminadamente aos
exemplos dos Santos para fundamentar um comportamento de rebeliao ao Papa. Os Santos nao sao infalfveis; santificaram-se apesar de suas falhas. De modo especial v§-se que no sáculo XII os próprios Santos nao se conduziam todos do mesmo modo diante da decisao do Papa Pascoal II. Sirvam estes elementos de historia da Igreja para esclarecer os pontos utilizados pelos tradicionalistas em favor do cisma de D. Lefebvre. Tornase, mais urna vez, nítido que é fácil simplificar e generalizar a historia, fazertdo-a dizer o que na verdade os tatos nao dizem. A propósito:
BIHLMEYER-TUECHLE. Historia da loreja, 3 vols. - Ed Paulinas
SSo Paulo 1964.
DENZINGERSCHOENMETZER, Enchiridion Symbolorum, Defini-
tionum et Declarationum de Robus Fidei et Morum.
FilCHE-MARTIN, Histoire de l'Eglise, vol. III e IX. Ed. Bloud et
Gay, París.
458
Tradigáo e Progresso 0 caso Lefebvre pos mais urna vez em foco o binomio "TradicSo e Progresso", que ¡nteressa a realidade de todo organismo ou de toda socieda-
de viva, como é a S. Igreja de Cristo.
Ora precisamente aos 8 de abril de 1988, antes do cisma de D. Lefebvre
(30/06/88), o S. Padre Joao Paulo II escreveu importante Carta ao Cardeal
Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregarlo para a Doutrina da Fé, a respeito de tal assunto. Mostra claramente como os dois termos se devem conciliar na existencia da Igreja, sem que se possa tolerar desvio para algum dos dois extremos. A autoridade da Igreja, assistida pelo Espirito Santo, está cons ciente desta lei da vida e procura aplicar-se com zelo á observancia da mesma. - Dado o caráter muito oportuno de tal documento, transcrevemo-lo na quase-i'ntegra a partir do texto portugués oficial publicado no periódico "L'OSSERVATORE ROMANO": "Ao meu Venerável lrmá*o JOSEPH Cardeal RATZINGER Prefeito da Congregacáo para a Doutrina da Fé
Neste período litúrgico, em que revivemos, ñas celebracoes da Semana Santa, os acontecitnentos pascáis, adquirem para nos urna atualidade peculiar as palavras com que o Senhor fez sos Apostólos a promessa da vinda do Es pirito Santo: "Eu pedirei ao Pai e ele vos dará outro Consolador, para estar convosco para sempre, o Espirito da verdade. . . que o Pai enviará em meu
nome, ele ensinar-vos-á tudo e vos recordará tudo o que au vos ensinei" (Jo 14.16-17.26).
Em todos os tempos a Igreja foi guiada pela fé nestas palavras do seu Mestre e Senhor, com a certeza de que, grapas ao auxilio e á asistencia do Espirito Santo, permanecerá para sempre na Verdade divina, conservando a
sucessSo apostólica, medrante o Colegio dos Bispos unido com o seu Chefe, o Sucessor de Sao Pedro.
459
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"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
A Igreja manifestou esta conviccao de fé também no último Concilio, que se reuniu para reconfirmar e corroborar a doutrina da Igreja herdada da
Tradicáó, que já existe há quase vinte sáculos, como realidade viva que vai progredindo, em relapso com os problemas e com as necessidades de todos
os tempos, tornando mais profunda a compreensfo de quanto já está conti-
do na fé transmitida de urna vez para sempre (cf. Jud. 3). Nos alimentamos a conviccao profunda de que o Espirito da verdade que instruí a Igreja (cf. Apoc. 2,7-11.17 e outros), falou - de urna maneira particularmente sole-
ne e autorizada - mediante o Concilio Vaticano II, preparando a Igreja para entrar no terceiro Milenio depois de Cristo. Dado que a obra do Concilio constitui, no seu conjunto, urna nova confirmacao da mesma verdade vivida
pela Igreja desde o principio, ela é simultáneamente 'renovamento' desta única verdade (urna 'atualizacao' - aggiornamento, segundo a conhecida ex-
pressao do Papa Joao XXIII), para tornar mais próximas da grande familia humana, no mundo contemporáneo, quer a maneira de ensinar a fé e a mo
ral, quer também a atividade apostólica e pastoral da mesma Igreja. E é bem conhecido quanto este 'mundo' atual se apresenta diversificado e até divi
dido. ..
Nos somos testemunhas de um vasto trabalho da Igreja, no periodo pos-conciliar, para fazer com que este 'novum' (algo de novo) constituido pelo Concilio Vaticano II penetre de modo adequado na consciéncia e na vida de cada urna das comunidades do Povo de Deus. Todavía, de par com este esfqrco, foram surgindo tendencias que criam urna certa dificuldade aos trámites para a realizacá*o do mesmo Concilio. Urna destas tendencias é ca racterizada pelo desejo de mudancas, que nem sempre estao em sintonía com os ensinamentos e com o espirito do Concilio Vaticano II, muitoembora os fautores procurem fazer referencia aos textos conciliares. Semelhantes mudancas teriam em vista expressar um progresso; e, por isso, esta ten dencia é designada pelo nome de 'progressismo'. O progresso, neste caso, é urna aspiracao voltada no sentido do futuro, que rompe com o passado, nao tendo em conta o papel da Tradicao, que é algo fundamental para a missao da Igreja, para que esta possa manter-se na Verdade que Ihe foi transmitida por Cristo e pelos Apostólos e que é guardada com diligencia pelo Magiste rio.
A tendencia oposta, que habitualmente é definida como 'conservadoriimo', ou entffo como 'integrismo', detém-se no passado em si mesmo, sem ter em conta a reta aspiracao que se volta na obra do Concilio Vaticano II.
Enquanto a primeira tendencia parece apostada em reconhecer como justo aquilo que é 'novo', esta outra, ao contrario, considera justo somante aquilo que ó 'antigo', reputando-o sinónimo da Tradicao. Contudo, nao é o 'antigo', enquanto tal, nem é de per si o 'novo' aquilo que corresponde ao conceito real da Tradicfo na vida da Igreja. Este conceito quer indicar, de 460
TRADICÁO E PROGRESSO
29
fato, a permanencia fiel da Igreja na verdade recebida de Deus, através das vicisitudes muláveis da Historia. A Igreja, á semelhanca daquele pai de fa
milia de que fala o Evangelho, 'tira com sagacidade 'coisas novas e coisas velhas' do seu tesouro' (cf. Mt 13,52), permanecendo em absoluto obedien te ao Espirito da verdade, que Cristo deu á mesma Igreja como Guia divino. E a Igreja realiza esta obra delicada-de discernimento através do Magisterio auténtico (cf. Const. Lumen Gentium, 25). A posicao que tomam as pessoas, os grupos ou os ambientes ligados a uma ou outra das aludidas tendencias, pode ser compreensível, ató certo ponto, particularmente após um acontecimento táo importante na historia da Igreja, como foi o último Concilio. Se, por um lado, ele desencadeou uma aspiracao para o renovamento (etambém nisto está contido um elemen
to de 'novidade'}, por outro lado, alguns abusos na tramitacao dessa aspirapao, enquanto esquecem os valores essenciais da doutrina católica no plano
da fé e da moral, assim como nos demais campos da vida eclesial, por exem-
plo no campo litúrgico, podem e até devem mesmo suscitar uma justificada objecao. Entretanto, se por motivo de semelhantes excessos se rejeita todo ou qualquer 'renovamento' sadio em conformidade com os ensinamentos e com o espirito do Concilio, entao urna atitude assim pode levar a um ou tro desvio, que está também ele em contraste com o principio da Tradicfo viva da Igreja obediente ao Espirito da verdade. Os deveres que, nesta situacáo concreta, se impoem á Sé Apostólica, requerem uma particular perspicacia, prudencia e judiciosa previsao. A ne-
cessidade de distinguir, daquilo que auténticamente 'edifica' a Igreja, aquilo que a destrói, torna-se neste periodo uma exigencia particular do nosso servico em relacao á inteira Comunidade dos fiéis católicos. A Congregacao para a Doutrina da Fé tem uma importancia-chave no
ámbito deste ministerio, como estao a demonstrá-lo os documentos, ati nentes á fé e á moral, que esse Oicastério publicou nestes anos mais recen tes. Entre os assuntos que teve de tratar nos últimos tempos figuram tam
bém os problemas relacionados com a 'Fraternidade de Pió X' fundada e di rigida pelo Arcebispo Dom M. Lefebvre... In caritate fraterna Vaticano, aos 8 de abril do ano de 1988, décimo de Pontificado. Joannes Paulus Pp. II"
461
Como era?
"Jesús Antes do Cristianismo" por Albert Nolan
Em símese: O Hvro de Albert Notan tenciona prescindir de todos os
títulos divinos de Jesús para concebé-lo como um Grande Profeta que prega-
va a reforma social em Israel; caso nao fosse ouvido, o povo serla vftima de tremenda catástrofe; em Mpótese de atendimento, sobrevine o Reino de
Deus como sociedade sem ricos nem pobres.
evidentemente a tese de Nolan inflige violencia ao texto bíblico pois abstrai da transcendencia que caracteriza a pessoa e a mensagem de Jesús Esta violencia se manifesta especialmente ñas páginas em que o autor apre sen ta Jesús pouco interessado em sua ressurreicao ou mandando partilhar o
pao em vez de o multiplicar...; Jesús nao teña fundado urna Igreja nem dei-
xado urna doutrina, mas apenas desencadeado um movimento de reforma social
Tal re-leitura do Evangelho se desvaloriza por si mesma, pois nao é objetiva, mas fortemente influenciada por preconceitos. *
*
*
Albert Nolan nasceu na África do Sul em 1934. Fez-se frade e sacerdo te dominicano. Eleito Mestre Geral de sua Ordem, logo renunciou a este car go para poder-se dedicar á causa de urna África do Sul sem discriminacáo en
tre brancos e negros. Atualmente é professor de Teología e Assistente Na cional dos estudantes católicos na África do Sul.
Entregou-nos um livro cujo título é altamente significativo.1 O autor
prescinde da fé em Jesús e procura reconstituir a figura do Mestre tal como podía ser considerada pelos seus contemporáneos antes da morte de Jesús. Eis como o próprio Pe. Nolan ¿presenta a sua obra:
'Jesús antes do Cristianismo. Traduzido do inglés pelo Grupo de Traducao
Sao Domingos. £d. Paulinas, Sao Paulo 1988. 130x200mm. 207pp. 462
"JESÚS ANTES DO CRISTIANISMO"
31
"O primeiro objetivo deste livro nao é nem a fé nem a historia. Pode
ser lido, e foi feito para ser lido, sem fé. Nao vamos presumir nem pressupor nada a respeito de Jesús. O leitor é convidado a olhar com seriedade e nonestidade para um homem que viveu na Palestina durante o 1? sáculo, e a ten ar enxergálo através dos olhos de seus contemporáneos. Estou interessado em apresentar o homem como ele era antes de se tornar o centro da fé cris ta.
A fé em Jesús nao é nosso ponto de partida, mas será, espero, nossa conclusao. Entretanto, isso nao quer dizerque o livro foi escrito com fina/i-
dade apologética, para defender a fé crista. Nao foi feita nenhuma tentativa de salvar Jesús ou a fé crista. Jesús nao precisa de mim, e nem de qualquer outra pessoa para salvar-se. Ele é capaz de cuidar de si mesmo, porque a verdade é capaz de cuidar de si mesma. Se a nossa busca de verdade nos levar á fé em Jesús, isso nao acontecerá por termos tentado salvar essa fé a todo custo" (p. 11).
O procedimento de A. Nolan nao pode deixar de implicar hipóteses gratuitas e preconcebidas, em virtude das quais apresenta urna imagem de
Jesús muito diferente daquela que classicamente se costuma conceber. Examinaremos o conteúdo do livro e, a seguir, Ihe teceremos alguns comentarios.
1. A tese do livro 1. O autor julga que Jesús tinha em vista anunciar e introduzir no mundo o Reino de Deus, caracterizado principalmente por valores imanen-
tes. Com efeito; a sociedade israelita era vítima de opressores, que eram nao somente os romanos, mas também os judeus mais abastados; ora Jesús que
ría por fim a esse desnivel social e económico, que, se perdurasse, acarretaria para Israel a catástrofe anunciada por Joao Batista (cf. Mt 3,7-17). "A única coisa que Jesús estava decidido a eliminar, era o sofrímento: os sofrimentos dos pobres e dos oprimidos, os sofrimentos dos doentes, os sofrimentos que sobreviriam se a catástrofe viesse a acontecer" (p. 164). "A boa nova do Reino de Deus anuncia um futuro estado de coisas na térra, quando o pobre nao seria mais pobre, o faminto seria saciado e o opri mido nao seria mais miserável" (p. 74).
"O fato de que o modo de falar de Jesús sobre o reino é baseado em imagem visual de casa, cidade ou comunidade nao permite duvidar sobre 463
32
"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
aquilo que se tinha em mente: urna sociedade politicamente estruturada aquí na térra. Um reino é noció inteiramente política. £ sociedade na qual a estrutura política é monárquica, ou seja, é dirigida e governada por um rei. Na da daquilo que Jesús disse, poderia jamáis nos levar a pensar que ele pudesse ter usado essa expressSo em sentido nao político " (p. 76).
"A preocupacao de Jesús foi assegurar que ninguóm passasse necessidade... Jesús ousou ter esperance em um reino ou comunidade mundial que seria estruturada de tal modo que nao haveria nem ricos nem pobres. Seu motivo é mais urna vez sua ilimitada compaixao pelos pobres e pelos oprimi dos" (pp. 82sJ.
2. Conseqüentemente, diz Nolan, "Jesús nao fundou urna organizapao, ele inspirou um movimento. . . No cometo nao havia doutrinas nem dogmas, nem um modo universalmente aceito de seguir Jesús ou de acredí tamele" (p. 194). Dada a preocupacáo de Jesús com os interesses sociais e económicos, o Mestre nao dava grande importancia á ressurreicao dos mortos, nem mesmo á sua própria ressurreicao. Os judeus acreditavam na ressurreicao a se realizar no último dia da historia; Jesús também..., apenas com a diferenca de que
"o último dia viria logo" (p. 169). " 'Depois de tres días' é um modo judai
co e aramaico de dizer 'logo' ou 'nao muito tempo depois'. .. Jesús nao po de ter predito que iría ressuscitar antes do último dia..." (p. 169). Sao palavras de A. Nolan:
"Jesús nunca levantou a questao da ressurreicao por iniciativa própria.
Nao é parte integrante do que ele quería dizer a Israel, naque/e momento
e naquelas circunstancias. Por que fafar sobre a ressurreicao, quando as pessoas estao sofrendo e urna catástrofe está ¡mínente e há forte esperanca de que o reino de Deus surja na térra dentro de poucos anos? Por isso podemos até conjeturar se Jesús realmente fez mesmo 'predicoes de ressurreicao'... Jesús acreditava na ressurreicao como em muí tas outras coisas em que
os judeus do seu tempo acreditavam, do mesmo modo que os profetas sem dúvt'da acreditavam em muitas coisas que nao tinham ligacao direta com a sua mensagem para o povo do seu tempo. Para Jesús, no tempo dele, a res-
surreicSo, assim como o pagamento do tributo a César ou os sacrificios no Templo, simp/esmente nSo eram a questao" (p. 70). 3. Como se ve, Jesús é reduzido á categoría de profeta, que ignora o seu futuro ou so o conjetura a partir do desenrolar dos acontecimentos:
"NSo há evidencia suficiente para que possamos saber até que ponto Jesús previu as circunstancias detalhadas da sua morte. Irlam prender tam464
"JESÚS ANTES DO CRISTIANISMO"
33
bém os seus discípulos ou somente ele? ... Seria apedrejado ou crucificado, ou se/a, seria executado pelo Sinedrio ou por Pilatos? Iriam prendé-lo duran te a festa ou depois déla? Teria oportunidade para pregar no Templo antes que o prendessem? Talvez ele tenha realmente previsto alguns desses detaIhes" (pp. 168s).
Para conceber um Jesús tao hesitante quanto ao seu futuro e táo preo cupado apenas com os ¡nteresses temporais, A. Nolan afirma que nos Evangelhos os dizeres que revelam um Jesús cíente de sua missao transcendental e de sua identidade de Filho de Deus, nao provém de Jesús mesmo, mas dos discípulos e evangelistas; estes teriam atribuido ao Mestre sentenpas que o
Mestre nunca proferiu1: "Muitos crístios argumentam que Jesús mesmo relvindicou sua propria divindade, se/a explícitamente, reivindicando títulos divinos ou autoridade divina, se/a implícitamente por falar e agir com autoridade divina. E algumas vezes se diz que essa reivindicacao foi 'provada'ou confirmada por seus milagres e/ou por sua ressurreicao. Como já vimos, Jesús nao reivindicou títulos divinos ou autoridade
divina, mas ele reivindicou, sim, o conhecimento da verdade, e um conhecimento que nao precísava se apoiar em nenhuma autoridade a nao ser a propria verdade" (p. 200). O Evangelho segundo Sao Joao, que explícita ao máximo a transcen dencia e a Divindade de Jesús, é citado por Nolan principalmente para diri mir dúvidas de historiografía (cf. pp. 188. 191s.. .); as afirmacoes teológicas
do Evangelho sao re-interpretadas segundo as categorías do autor (cf. p.76). No seu capítulo final, o autor reconhece que os discípulos de Jesús, após a morte dele, perceberam a autoridade da mensagem do Mestre: era a mensagem de Deus; por isto terfo concebido a fé em Jesus-Deus mediante
um processo que Nolan nao consegue explicar claramente: "Já vimos como Jesús era. Se agora quisermos tratá-lo como nosso Deus, teremos que concluir que nosso Deus nao quer ser servido por nos,
ele quer nos servir; ele nao quer que (he se/'am atribuidos a mais alta hon
raria e o maior status da nossa sociedade. ele quer assumir a posicáo mais humilde, e nao quer nenhuma honraria nem status; ele nao quer ser temido e
1 A. Nolan, sendo católico, acrescentaria: "Se Jesús nunca disse tais coisas. Ele ao menos as insinuou, de modo que era auténtica a interpretacao dada pelos discípulos". 465
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
obedecido, mas quer ser reconhecido nos sofrimentos dos pobres e dos fraeos; ele nao tem urna suprema indiferenca e desinteresse, mas está irrevoga-
velmente comprometido com a libertacao da humanidade, porque quis se identificar com todos os homens, num espirito de solidariedade e compaixao. Se esta nao for urna imagem verdadeira de Deus, entao Jesús nao é di vino. Se esta for urna imagem verdadeira de Deus, entao Deus é mais verdadeiramente humano, mais plenamente humano do que qualquer ser humano. Ele é aquilo que Schillebeeck chamou de Deus humanissimus, Deus suma-
mente humano" (p. 199). "Nao precisamos teorizar a respeito de Jesús, precisamos é 'reproduzi-lo' em nossa época e em nossas circunstancias. Ele mesmo nao considerava a verdade como algo que nos 'defendemos' e 'afirmamos', mas como algo que decidimos viver e experimentar. De modo que nossa busca, como a sua,
é em primeiro lugar a busca de urna ortopraxis fprática verdadeira), mais do que urna ortodoxia (doutrina verdadeira). Somente urna prática verdadeira
da fépode verificara veracidade daquilo em que acreditamos" (pp. 201s). Eis em poucos parágrafos as linhas principáis do livro de A. Nolan. Procuremos refletir sobre elas.
2. Comentando ... Asjdéias de Albert Nolan sugerem as consideracoes que já foram feitas em PR 311/1988, pp. 146-158 a respeito do livro de Pedro R. Hilgert: "Je sús Histórico, Ponto de Partida da Cristologia Latino-Americana". Estas duas obras sáío inspiradas pelas mesmas premissas da Teologia da Libertacao extremada. Além de tais reflexóes, dois pontos específicos merecem atencao no livro de Nolan.
2.1. Reducionismo rígido Chama-se "reducionismo" a tendencia a reduzir as verdades da fé ao mínimo que a razio possa comportar ou conceber. Assim a figura de Jesús "Deus e homem" é limitada as suas dimensoes meramente humanas; utili-
zam-se, para tanto, recursos de interpretacáb para empalidecer ou apagar tudo o que nela haja de transcendente. 0 motivo deste procedimento é, em parte, o racionalismo que afetou correntes protestantes do sáculo XX (Mar tín Dibelius e sua escola, Rudolf Bultmann e seus discípulos); em parte, também (entre católicos) ó a tendencia a fazer de Jesús um perfeito modelo
de chefe político revolucionario (violento ou nao violento). Tal parece ter sido a ¡ntengao de A. Nolan, que, no inicio de seu livro, escreve:
"Este livro tem um objetivo urgente e prático. Estou preocupado com as pessoas, com o sofrimento diario de tantos milhoes de pessoas, e com a 466
"JESÚS ANTES DO CRISTIANISMO"
35
perspectiva de sofrimento aínda muito maior num futuro próximo. Meu
objetivo é descobrir o que se pode fazer a respeito disso" (p. 11).
O autor pensa na África do Sul e em tantos casos de injustica social existentes no mundo — preocupacao muito crista e necessária. Todavía quer preconcebidamente colocar o Evangelho a servico da justa ordem social ou, melhor, como ele mesmo afirma,... a servico de urna sociedade igualitaria. Sao palavras de Nolan: "Jesús ousou ter esperanca em reino ou comunidade mundial que seria estruturada de tal modo que nao haveria nem ricos nem pobres" (pp. 82s).
Ora a posicSo exegática de Nolan nao pode deixar de distorcer o Evan gelho. Para fazer que este tenha incidencia na vida ética dos cristaos, nao é necessário tirar-lhe o transcendental; ao contrario, a mensagem social de Je
sús deriva todo o seu acume do fato de estar relacionada com os valores eternos.
Ademáis nao se podem denegar a Jesús os dizeres e os episodios do Evangelho que o revelam como Deus feito homem. Com efeito; para que o Apostólo Sao Paulo e, com ele, os cristaos dos primeiros decenios professassem táo claramente a Oivindade de Jesús (cf. Fl 2,5-11; Cl 1,15-18;
Ef 1,3-14...), devem ter recebido do Mestre um impacto a altura dessa conviccao; Jesús deve ter dito e feito algumas coisas que fundamentassem a cer teza da sua Divindade. Notemos ainda que os escritos do Novo Testamento nao somente
apresentam
a
Divindade
de
Jesús
Cristo
(cf.
Mt
11,25-27;
16,16-19;
Jo 10,30; 14,9-11...), mas também exprimem a crenca na transcendencia
da mensagem de Jesús. É S3o Paulo quem ensina que é preciso assumir urna atitude virginal em relacáo aos bens terrestres, pois "passa a figura deste mundo" (1Cor 7,31); as primeiras geracSes cristas viviam férvidamente a
expectativa da parusia ou da segunda vinda de Cristo (cf. 1Ts 4,15-17; 2Ts 2,1-12). O Novo Testamento, alias, encaminha o leitor para o encontró final com o Senhor, pois somente entao estarao vencidos o pecado e a morte
(1Cor 15,19-28). É para a consumacao na Jerusalém celeste que toda a historia tende, passando necessariamente pela Páscoa ou pela morte e ressurreicao do Cristo e dos cristaos (cf. Hb 11,1-12,4). Está, pois, fortemente impregnada na doutrina do Novo Testamento a consciéncia de que é preciso
voltar-se para a plenitude da Vida, da Verdade e do Amor que só se encontra na consumacSo final da historia.
Assim a atitude exegética de Notan poderá ser comparada á dos críti cos do século XIX (Gottlob Paulus, Baur, Renán...): quiseram eliminar do
Evangelho tudo o que nao pudesse ser explanado pela razao; desta forma empobreceram enormemente a figura de Jesús; feito isto, viram-se em apu467
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
ros para explicar como um Jesús tSo despojado de seus atributos transcen deríais podía ter dado origem ao fenómeno cristáo ou a urna historia que
já tem vínte sáculos, dos quais os tres primeiros, até 313, foram de dura perseguic3o aos discípulos de Cristo. Percebendo a desproporcao entre o Jesús assim despojado e o fenómeno que se Ihe seguiu, resolveram abrandar suas críticas preconcebidas por um racionalismo ferrenho. Ora A. Notan parece fazer reviver a ultrapassada crítica do sáculo XIX. Um espécimen de como Nolan tenta restaurar a escola racionalista do sáculo passado, é a maneira como explica a multiplicacao dos paes: os au tores liberáis quiseram descobrír para cada milagre de Jesús urna expli-
cacüo meramente natural; ora Nolan faz o mesmo com a multiplicacao dos paes (Mt 14,13-21; 15,32-39): julga que Jesús deu ordem para que cada pessoa da assembléia presente partilhasse o seu modesto farnel com os vizinhos:
"O milagre consistiu em que tantas e tantas pessoas deixassem súbitamente de ser possessivas em relacao á sua própria comida e comecassem a partí-
Ihá-la, s6 para descobrir que havia mais do que o suficiente para todos. As coisas tendem a se 'multiplicar' quando sao partíIhadas" (p. 81). - A exegese de Nolan (que, alias, á também a de urna córreme de comentadores) é expressiva da violencia infligida ao texto bíblico: este diz claramente que
os ouvintes de Jesús nada tinham para comer: "Tenho compaixao da multi-
dao porque já faz tres dias que está comigo e nao tem o que comer. Nao quero despedí-la em jejum de medo de que possa desfalecer pelo caminho". disse o Senhor. Somente o preconceito (a aversSo ao milagre e o desejo de interpretar o texto em chave sócio-económica) explica tal procedimento exegático.
Ademáis convém lembrar urna solene norma de hermenéutica bíbli ca, totalmente negligencíada por A. Nolan:
"A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada segundo aquele mes mo Espirito conforme o qual foi escrita. Por isto, para apreender com exatidSo o sentido dos textos sagrados, deve-se atender ao conteúdo e a unida-
de de toda a Escritura, levadas em conta a Tradicao viva da Igre/a toda e a
analogía da fé" (ConstituicSo Dei Verbum n? 12) Isto quer dizer que é falha toda e qualquer ¡nterpretacao da Biblia que ponha de lado a fé ou a mensagem intencionada pelo Espirito Santo, que, em última análíse, á o autor principal do Livro Sagrado.
2.3. Jesús da historia e Jesús da fé
A* crítica costuma distinguir entre o "Jesús da historia" (Jesús como realmente viveu na Palestina) e o "Jesús da fé" (Jesús como foi concebido
468
"JESÚS ANTES DO CRISTIANISMO"
37
pela fé dos Apostólos e discípulos ou Jesús engrandecido e enaltecido no plano teológico). Assim de Jesús os cristaos antigos te rao feito o Cristo.
- Ora A. Nolan parece adotar plenamente esta distincao: por isto quer dei-
xar de lado os títulos gloriosos (Senhor, Messias, Filho de Deus, Salvador...), que, segundo ele, os discípulos atribuiram a Jesús, para ficar com a imagem "pura" do Mestre.
Tal tarefa, já tentada por outros autores, é altamente subjetiva e arbi traria; fundamenta-se em hipóteses e opinioes segundo as quais cada crítico "acha" ou "é do parecer de" que tal ou tal trapo de Jesús nao corresponde á historia real, mas é acréscimo ficticio das comunidades antigás.
Na verdade, deve-se reconhecer que a reflexao sobre Jesús, principal mente após Páscoa e Pentecostés, levou os discípulos a aprofundar a pessoa e os dizeres do Mestre, como, alias, Ihes fora prometido: "O Paráclito, o Es pirito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recor dará tudo o que eu vos disse" (Jo 14,26) e "Quando vier o Espirito da ver dade. Ele vos conduzirá á verdade plena" (Jo 16,13). Tal aprofundamento, porém, foi homogéneo ou nao fez senao manifestar aos discípulos oque já estava implícito ñas palavras e nos feitos de Jesús; os Apostólos nao acrescentaram valores novos aqueles que Jesús já trazia em sua vida mortal. Por
conseguinte, o Jesús da fé ou o Cristo é o próprio Jesús da historia contem plado em toda a sua profundidade. Disto se segué, entre outras. coisas, que
1) Nao se pode admitir em Jesús apenas a ciencia ou a consciéncia de um profeta, que ignora ou tenta conjeturar os pormenores de seu desfecho de carreira. Nem se pode falar de fé em Jesús. Como Deus que era. Ele nada perdeu do que é próprio da Divindade, ao fazer-se homem; portanto no úni co Eu de Jesús (que era o da segunda Pessoa da SS. Trindade) havia a cien cia do próprio Deus. A propósito veja-se a Declaracao da Comissao Teoló gica Internacional publicada em PR 294/1986, pp. 482-497, comotambém a resenha do livro de Francois Dreyfuss em PR 309/1988, pp. 50-66. 2) Conseqüentemente também nao se dirá que "Jesús nao fundou urna organizacao, mas apenas inspirou um movimento" (p. 194). — Jesús falou da "sua Igreja", que Ele quis estabelecer sobre a rocha visível Pedro, do tado dos poderes de ligar e desligar (cf. Mt 16,16-19); Jesús também quis
instituir os Apostólos e seus sucessores como pastores da Igreja, prometendo-lhes assisténcia infalível até o fim dos séculos (cf. Mt 18,18; 28,18-20).
Essa Igreja teria sua doutrina e sua disciplina a ser transmitidas a todos os
homens(cf. Le 22,19; ICor 11,24s; Mt 18,18; 28,19). 469
38
"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
3) Somente se nos secularizarmos ou laicizarmos Jesús, tirando-lhe o
seu cunho nitidamente religioso e teológico, poderemos aceitar o que escreve Nolan á p. 15: "Jesús nlo pode ser totalmente identificado com o grande
fenómeno religioso do mundo ocidental, conhecido como cristianismo. Ele
foi muito mais do que o fundador de urna das grandes religioes do mundo". - Está claro que a mensagem de Jesús nao é somente sacral; ela propugna a implantacao do Reino de Deus ñas estruturas do mundo do trabalho, da
arte, da ciencia...; por isto ela atinge todos os homens e suas atividades, mas sempre e exclusivamente a partir de um ponto de vista religioso ou teológico.
4) Entende-se outrossim que a resposta do homem a Cristo nao con siste apenas numa ortopraxis (prática verdadeira), mas, antes do mais, é urna ortodoxia (doutrina verdadeira), á revelia do que afirma Nolan, ape
lando para Gustavo Gutiérrez e Hugo Assmann, teólogos da libertapáo (cf. p. 201). Sim; a fé é, essencialmente, um Sim dito a Deus e á sua Pala-
vra revelada; donde resulta urna praxis ou urna ética coerente. Querer subor
dinar a verdade, a doutrina ou o logos á praxis ou á acáo transformadora da sociedade, é posicao marxista e nao crista.
5) A ressurreicíío de Jesús nao pode ser (¡da como algo que "nao integrasse a mensagem do Mestre" (p. 170). Ela é, ao contrario, o ponto culmi
nante da obra de Jesús, que foi a de re-criar o homem deteriorado pelo pe cado. Deus se fez homem precisamente para resgatar a natureza humana, fazendo-a passar pela morte (justa sancao devida ao pecado, conforme Gn 2,17; Rm 6,23), para superar a morte mediante a ressurreicao corporal. Além disto, a ressurreicao é o selo ou o sinete aposto pelo Pai á obra de Cris to, autenticando ou demonstrando que Jesús, como homem, fora o autén
tico mensageiro de Deus; daf dizer Sao Paulo: "Se Cristo nao ressuscitou, vazia é a nossa pregacao, vazia também é a vossa fé... Se Cristo nao ressusci tou, ilusoria é a vossa fé; aínda estáis nos vossos pecados" (ICor 15,13-17). *
*
*
SSo estas algumas observacoes que podem ocorrer ao leitor da obra de A. Nolan. - Reconheca-se a capacidade de leitura e estudo do autor; mas
também salta aos olhos a atitude preconcebida que o inspira de ponta a pon-
ta do livro; em suma, a problemática sócio-económico-polftica da África do Sul, sua patria, e de tantas outras nacdes, tornou-se o prisma através do qual A. Nolan quis fazer a re-leitura dos Evangelhos; infelizmente, porém, des figurando o perfil e a mensagem do Mestre. Em última instancia, poder-se-iam
lembrar ao autor as sabias advertencias da Instrucáo Ubertatis Nuntius sobre
aspectos da Teología da Libertacüo, emitida pela Congregacao para a Doutri na da Féflos 06/08/1984.
470
As Grandes Religioes do Mundo:
O Islamismo
Em sfrítese: O IsISfoi fundado por Maomé (Muhammad = o Louvado)
no ano da hegira ('-éxodo), ou se/a, em 622. 0 "Profeta" fundiu elementos do judaismo, do Cristianismo e da religiSo árabe num estrito monoteísmo, que professa como smtese de seu Credo: "Alian 4 Deus e Maomé é seu enviado". Os maometanos também apregoam a total submissio á vontade de Deus (= islam; donde o vocábulo muslim = muculmano); acreditam na ressurreicao final.dos mortos, no ¡ufzo de Deus e na retribuicao postuma (o parafso concebido em termos materiais, e o inferno para os incrédulos ou idó latras especialmente). O seu livro sagrado é o CorSo, tido como intocável Palavra de Deus. Entre aspráticas religiosas do IsIS,contam-se.a orado cinco vezes por día; o jejum do mes do Ramada; a peregrinacao a Meca ao menos urna vez na vida; a esmola em favor dos pobres. A vida moral do Isla cultiva a honestidade, mas é tolerante em relacSo é poligamia e su/eita a muiher e os filhos a severas restricoes. O Isla é religiao teocrática, isto é, tende a formar
Estados baseados ñas linhas-mestras do Corao, devendo o Chefe de Estado ser muculmano; os cidadios nSo muculmanos sofrem limitacoes em seus direítos civis e religiosos.
Os fiéis católicos reconhecem os valores positivos do Isla e fazem vo tos para que a revelacSo feita por Deus ao Patriarca AbraSo se torne plena mente clara aos olhos dos filhos de Agar ou dos agarenos. *
*
*
Após ter estudado o Hinduísmo e o Budismo em PR 309 e 310/1988, pp. 78-89 e 98-106, passamos a considerar o Islamismo na serie das grandes
correntes religiosas da humanidade.
Os maometanos (seguidores do Isla) constituem numéricamente o se gundo bloco religioso da atualidade. Com efeito; dado que a populapao mundial seja de 5 bithoes de habitantes, conta-se o bloco cristao com 471
40
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
1.640.000 de fiéis, ou seja. 33,9%'; a seguir, vem o bloco muculmano com
854.000.000 de adeptos.
Urna das características do Islamismo é a de ser "Religiao e Estado" [al-lslam din wadawla) ao mesmo tempo; esta concepcao restaura o ideal da
teocracia vigente, alias, em países como o Irle o Paquistao.
Examinemos os trapos próprios do fundador e da mensagem do Isla
mismo.
1. O fundo decena O Isla teve origem na península arábica do sáculo Vil d.C. A populacao desta regiáb estava dividida em tribos setentrionais e tribos meridionais, postas em continua luta entre si. Dedicavam-se principalmente ao pastoreio
de animáis, á agricultura e ao comercio feito mediante caravanas. Os árabes da época, principalmente os piedosos ihanif), conservavam a noció do antigo Deus Supremo, El, como os demais povos semitas, mas, em
grande maioria, tinham também suas crencas animísticas2; nutriam especial
veneracao por pedras, como a Pedra Negra de Meca (talvez de origem meteórica). Praticavam peregrinajes aos lugares de sua devocáo. Além disto, admitiam urna multidao de espirito (ginn, gul...), que eles temiam e veneravam, e dos quais alguns iam sendo cultuados como deuses e deusas. Assim o politeísmo ia-se desenvolvendo. Verdade é que na mesma península arábica
viviam também cristaos (na maioria, nestorianos e monofisitas, isto é, sepa rados da Igreja universal por suas concepcóes a respeito de Cristo) e princi palmente judeus; estas duas correntes religiosas exerciam sua influencia so bre a populacao árabe, de modo que a religiio desta tendia a certo ecieticismo.
É sobre este paño de fundo que aparece a figura de Maomé. 2.O Fundador Maomé (5707-632), ou seja, Muhammad-ibn-Abbalag-ibn-Muttalib, o "Louvado", nasceu na cidade de Meca, da familia dos Hassenitas (Hashim).
1 Entre os cristíos, distinguem-se: católicos (910.600.000); protestantes (322.000.000); ortodoxos (173.000.000); angticanos (51.600.000); autóctones (125.500.000). Estes sSo dados relativos ao ano de 1987, torneados pelo Conselho Mundial de Igrejas (organizacSo protestante-ortodoxa).
2 O animismo professa que todos os seres da natureza sSo dotados de vida e
capazes de agir de acordó com urna finalidade. 472
O ISLAMISMO
41
pertencente ao cía setentrional dos Banu Muttlib e á tribo dos Coraítas. Des
de cedo, v¡u-se pobre e órfao de pa¡ e mae, de modo que se p6s a trabalhar como condutor de caravanas no deserto; assim visitou o Sul da península
arábica (Yemen), a Mesopotamia, a Siria e a Palestina. Em suas viagens, en-
controu muitos israelitas e cristaos, que Ihe deram a ouvir narracoes bíbli cas, especialmente passagens apócrifas referentes ao Novo Testamento (por
exemplo, o Protoevangelho de Tiago, que trata da Virgem María). Parece, porém, que Maomé nunca teve um contato mais detido com os Evangelhos
canónicos.
Provavelmente com 25 anos de idade, esposou a sua própria patroa.
a rica viúva Hadidja, de quem teve alguns filhos e quatro filhas; entre estas! Fátima, que esposou Ali, o primo de Maomé.
Em 610-611, Maomé, com trinta anos de idade, teve urna experiencia religiosa, convertendo-se do politeísmo animista ao monoteísmo; passou a professar a absoluta unicidade de Deus, El, sob a forma árabe de Allah. Apresentou-se como profeta (nabi) e enviado [rasul), e pregava, juntamente com o monoteísmo, o abandono á vontade de Deus (islam; donde se origina o termo muslim, muculmano), a ressurreicao dos mortos e o ¡ufzo de Deus
sobre os homens. Impugnou outrossim a idolatría existente na Arabia e o comercio religioso correlativo.
Dizendo-se legado de Deus, que recompensa os bons, castiga os maus e faz triunfar os seus profetas apesar da obstinapao dos fmpios, Maomé conseguiu reunir alguns poucos fiéis, mas foi rejeitado pela maioria dos ricos moradores de Meca, que eram dados ao politeísmo e o perseguiam. O profe ta teve entao que fugir, deixando familiares e amigos, em troca de um con
vite dos habitantes de Yathríb, rivais dos de Meca, em 622. Segundo a tradi?ao, este éxodo Ihi/ra, hegira) ocorreu em 16/07/622 d.C; tal data assinala o inicio da era muculmana. A cidade de Yathrib mudou de nome, passando a chamar-se Medina (al-Madinat annabi, a cidade do Profeta). Frente ás hostilidades que Ihe vinham dos israelitas, Maomé reivindicou para si e os seus seguidores o patrocinio do Patriarca Ábralo (pa¡ de Ismael por meio de Agar); Ábralo foi apresentado como o fundador da Kaaba, o santuario de Meca que encerra a "Pedra Negra"; doravante os maometanos deveriam rezar voltados (qibla) para Meca e nao mais para Jerusalém.
Tendo se fortalecido, Maomé atacou as caravanas de Meca, prejudicando o seu comercio. Após represalias mutuas, finalmente conseguiu entrar em Meca no ano de 629. A vitória de Maomé foi tida como triunfo nao apenas de seus homens, mas também de seu Deus ou de suas crencas religiosas; o 473
42
"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
Profeta eliminou os fdolos da cidade, aproximadamente 360, conforme a
tradicáo. Fundou assim o primeiro Estado islámico.
No ano décimo da hegira, Maomé realizou a "peregrinacao do Adeus" a Meca, que ficou sendo modelo para todas as peregrinajes muculmanas. Tendo voltado a Medina, morreu ali pouco depois (08/06/632). Mediante
a religiáo, deixava unificadas entre si as tribos árabes da península. O livro sagrado dos maometanos é
3. O CorSo
Maomé nao escreveu os seus ditames, mas os discípulos o fizeram a
partir de 650; donde se originou o Corao (Quran = recitacao), que consta de
114 capítulos ou Suras e 6.236 versículos ou avat. Para os muculmanos, tal livro é a própria Palavra de Deus, reprodupao fiel de um original gravado em tábuas existentes desde toda a eternidade. Gozando de autoridade máxima, ensina aos seus leitores como se devem relacionar com Deus, com os correli gionarios e com os demais homens. É realmente um Código de Moral que, partindo dos dez mandamentos, chega a prescripSes minuciosas relativas a rubricas litúrgicas, proibicoes alimentares, transacoes comerciáis, convivio
familiar, direito penal e empreendimentos bélicos. Assim o Corao é, ao mesmo tempo, para os maometanos a "Biblia", a Constituicao, o Direito Civil,
o Direito Penal, o Livro das Rubricas litúrgicas, o Código de Moral... As enancas muculmanas esforcam-se por aprendé-lo de cor ñas aulas de religiáo; conformar-se ao Corao significa unir-se á vontade de Deus; conscientes dis to, muitos muculmanos trazem urna miniatura do Livro Sagrado pendente
do pescoco sobre o coracfo. - É claro que o texto do Corao precisa de ser
constantemente aprofundado; por isto grandes mestres e escolas através dos sáculos se dedicaram e dedicam ao estudo do mesmo. Escrito em língua árabe simples e clara, o Corao nao pode ser oficial mente traduzido para outro idioma; por isto todo muculmano nao árabe é
convidado a aprender o árabe a fim de poder recitar o Corao e tomar parte no culto (visto que em toda parte as orapoes oficiáis muculmanas sao profe ridas em árabe). Os fiéis mais devotos costumam repetir algumas passagens privilegiadas como é a Sura I, a Fatiha (de certo modo, o Pai-Nosso muculmano):
"No nome de Deus, o Benfeitor misericordioso. Louvor a Deus, Senhor dos mundos. Benfeitor misericordioso. Soberano do Día do Judo. Nos Te adoramos, de Ti imploramos ajuda! 474
O ISLAMISMO
43
Dirige-nos pela via reta,
A vida daqueles a quem deste os teus beneficios. Que nio sSo objeto da tua ira, E que nao se desviaran}".
No Islamismo nada se pensa ou se decide sem recorrer ao texto do Coráo e ao exemplo do Profeta, que deixou um "modelo perfeito" aos seus seguidores. Em conseqüéncia, o texto escrito e a tradicao viva (Sunna) deri vada de Maomé sao as duas fontes de orientacao do Isla; os propósitos, os atos e os silencios do Profeta tém valor normativo para as geracoes posterio res.
4. O Credo O Isla professa seus artigos de fé derivados do Corao, aos quais é preci so aderir com a inteligencia, o coraclo e as obras. Diz urna sentenca da. Sunna: "A fé (imán) consiste em crer em Deus, nos seus anjos, nos seus livros, nos seus enviados e no juízo final, assim como na predestinacao, que acarreta o bem e o mal".
Percorramos esses artigos:
1) Deus é único, podendo ser designado através de seus 99 "Belos Nomes", que correspondem aos seus atributos. "Benfeitor Misericordioso, Rei, Santi'ssimo, Salvacáo, Pacificador, Preservador, Poderoso, Majestoso, Criador, Renovador, Formador...". O conceito de Deus é expresso mediante duas seccoes típicas do Corao: a do Trono e a da Luz:
"Deus - nio há outra Divindade fora dele —éo Vívente, o Subsisten te. Nem soñolencia nem sonó jamáis o acometem. A Ele pertence o que esté nos céus e o que está na térra. Quem intercede junto a Ele se nao por per-
missSo dele? Ele conhece o que está ñas maos dos homens e através deles, ao passo que estes só percebem do seu saber aquilo que Ele permite. 0 teu tro no se estende sobre os céus e sobre a térra. Para conservé-lo, Ele nao é obrigado a dobrar-se. Ele é o Augusto, o Imenso" (Corao 2,255).
"Deus é a Luz dos céus e da térra. A sua luz é semelhante a um nicho onde se encontra urna lucerna. A lucerna esté dentro de um recipiente de
vidro. Este se assemelha a um astro cintilante. A lucerna é acesa gracas a urna árvore bendita, urna oliveira nem oriental nem ocidental, cujo óleo resplandecería mesmo que nenhum fogo o tocasse. Luz sobre Luz, Deus der rama a sua Luz, dirige quem Ele quer" (CorSo 24,35). 475
4f
"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 2) Ol anjoi sao, antes do mais, os puros adoradores de Deus e os seus
mensageiros junto aos homens; também exercem a funcao de "registrar" as ac5es dos homens e de "¡nterrogá-los" na hora da morte.
O demonio também existe; feito de "fogo", recusou prostrar-se diante de Adao por ordem de Deus (Corao 7,12); desde entao. Satanás, á frente das
suas tropas demoníacas, odeia o género humano e tenta, de todo modo,
desviá-lo de Deus.
O Corao admite ainda os djinn, espirites intermediarios entre anjos e
demonios, aos quais Maomé também teria sido enviado.
3) Existem quatro livros sagrados, mediante os quais Deus quis sucessivamente transmitir a sua mensagem: a) a Tora (Pentateuco ou a Lei de Moisés); b) os Salmos (oracoes reveladas, mas nao obrigatórias); c) o EvangeIho (no singular); e d) o Corao. Este ab-roga e torna inúteis os livros anterio res.
Os muculmanos mais ortodoxos afirmam que a Tora e o Evangelho, como se encontram atualmente ñas maos dos israelitas e dos cristaos, nao
correspondem aos textos origináis de que fala o Corao; foram "falsificados";1 por isto carecem de todo interesse para um muculmano. Este encontra no
Corlo aquilo que, dos livros anteriores, Ihe é necessário reter. Também é em funcao do que afirma o Corao que os israelitas e os cristaos sao conhecidos e julgados.
4) Os enviados de Deus distinguem-se em Profetas Maiores e Profetas
Menores.
Os Maiores sao: AbraSo, o amigo de Deus, fundador do monoteísmo primitivo; Moisés, o interlocutor de Deus, legislador para os filhosde Israel; Jesús, o Filho de Maria, que procede da "Palavra" e do "Espirito" de Deus, mestre dos cristaos; por fim, Maomé, o mais perfeito e mais justo dos Pro
fetas, enviado a todos os seres humanos "para aperfeicoar a sua religilo" {Corao 5,3).
Os Profetas Menores pertencem tanto á tradicao bíblica {Adao, Noé,
Isaque, Ismael, Lote, Jaco, José, Aaráo, Davi, Salomao, Elias, Elise'u, Jó' 1 Esta alegacSo nao se sustenta, pois a tradicao dos manuscritos bíblicos do
Antígo e do Novo Testamento é suficientemente rica e significativa para se
poder acompanhar a historia do texto sagrado e reconstituir o seu teor ori ginal sempre que surja alguma dúvida. Ver Curso Bíblico por Corresponden cia, 1~ Etapa, Módulo 3, Caixa Postal 1362 - 20001 476
Rio
O ISLAMISMO
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Joao Batista...) quanto á árabe (Hud, Salih, Shu'ayh...). Reproduzem a mes-
ma aventura do Profeta, que clama no deserto para transmitir ao povo a mensagem do monoteísmo fundamental.
Os muculmanos assinalam a Jesús um lugar de relevo entre os Profe tas: nasceu de Mae Virgem, dizem eles, por efeito da Palavra Criadora de Deus, como Adío. Foi um taumaturgo eminente, que chegou a ressuscitar monos. Contraditado pelos israelitas, foi condenado á morte de Cruz, mas salvo por Deus; voltará á térra como "sinal da hora". — Os maometanos acusam os cristSos de atribuir honras divinas a Jesús, pois negam o misterio
da SS. Trindade (Corlo 4,171; 5,73); também negam que os israelitas o tenham crucificado (4,157). No Corao encontrase esta exortacao aos cristaos:
"Ó gente da Escritura, nao sejais exagerados na vossa religiao. Dizei somente
a verdade em relacao a Deus. Jesús, filho de María, é apenas o enviado de Deus... Crede em Deus e nos seus enviados e nao digáis 'Tres'. Deixai de fazé-lo" (4,171).
Quanto a Maria, é tida como escolhida entre todas as mulheres, purifi
cada desde o nascimento e consagrada a Deus; foi virgem e mae, pois gerou um filho sem a cooperacao do vario.
5) O jui'zo final. No fim dos tempos haverá a ressurreicao dos mortos; todos serao julgados e receberao a justa sánelo — o paraíso ou o inferno. Para a maioria dos muculmanos, ou se ja, para os que conservarem a fé, é certo que bastará apenas a fé para salvá-los e que, por isto, o inferno terá fim logo que hajam expiado os seus pecados; entrarlo entao no paraíso. O paraíso é concebido como jardins banhados por riachos; os homens terlo "esposas purificadas" (Corao 2,25); todos gozarlo de bens que satisfarao plenamente as suas necessidades corporais e espirituais. Todavia rara mente serlo chamados a ver a Deus, pois isto é urna graca toda especial. O inferno consta de fogo ardente para sempre, devido aos incrédulos ou aqueles que tiverem colocado ídolos ao lado de Deus. 6) Embora o Corao afirme que "Deus dirige quem quer ser dirigido" (74,31), toda a tradicao muculmana exalta tanto a vontade de Deus que dis
to se segué a predestinaclo ou um designio previo de Deus; este predetermi na o homem para o paraíso ou para o inferno. Diz o Corlo: "Aquele que o quer, tome a vía que leva ao Senhor; mas vos nao o haveis de querer, se Deus nao o quiser" (76,29s). 477
46
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988
O Isla contemporáneo tende a incutir a liberdade do ser humano e a necessidade de se esforcar em prol da salvacao. Mas, de outro lado, incita sempre a submeter-se aos misteriosos decretos de Deus como o fez Abraao.
Existe, pois, urna questio aberta neste particular. Como afirmar simul táneamente a soberanía absoluta de Deus e a liberdade do homem?
5. As cinco pilastras do culto Segundo urna tradipao, Maomé respondeu a um anjo que o visitava: "O Islamismo consiste em testemunhar que nao há outro Deus além de Alian e que Maomé é o seu enviado, em recitar a oracao ritual, em pagar o imposto ritual, em jejuar durante o mes de Ramada e em peregrinar a Casa de Deus desde que ¡sto seja possfvel". Examinemos cada qual destas "cinco pilastras":
1) A profissao de fé (shahada) na unicidade de Deus (Allah) e na missao de Maomé resume o essencial do Credo; faz de todo homem um verdadeiro muculmano desde que proferida com os labios e o coracao; recomen-
da-se especialmente que os devotos a pronunciem nos últimos momentos com o dedo indicador voltado para os céus, a fim de confirmar a fé dos mo ribundos na hora decisiva.
"2) A oracao ritual (salat) há de ser recitada cinco vezes por dia: na au rora, ao meio-dia, no meio da tarde, ao pdr-do-sol e no comeco da noite.
Exige-se pureza do corpo e das vestes do orante assim como do local de orapao; daí as varias ablucoes {de pés e máos) que costumam os muculmanos
fazer antes de rezar. A oracao consta de fórmulas simples, acompanhadó» de gestos e prostrapoes. Na sexta-feira ao meio-dia, o rito é mais solene, pois se
realiza na mesquita central do bairro da cidade, após urna homilía, a fim de testemunhar a unidade da "comunidade mupulmana".
3) A esmola legal (zakat), destinada a purificar o uso dos bens deste mundo, consiste em transferir para a caixa comum um décimo dos proven tos anuais de cada fiel; tal dinheiro destina-se aos pobres e necessitados (Co
rlo 9,60). Nos modernos Estados muculmanos, esta esmola se acha incluida
no montante dos impostos que cada cidadao deve pagar. É praticada espon táneamente, máxime no fim do mes de Ramada e por ocasiao das festas li túrgicas.
4) O Jejum (sivam) do mes de Ramada exige que todo fiel se abstenha de todo aumento, bebida e relacionamento sexual desde a aurora até o pdrdo-sol, para honrar a Deus, sentir fome, disciplinar o corpo e aprender a 478
O ISLAMISMO
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padecer com os infelizes. Durante a noite ocorrem a refeicao, as festas, as oracoes e meditacoes suplementares, que fazem do mes de Ramada um pe ríodo de mais estrita observancia religiosa.
5) A peregrinacSo (haji) a Meca (Arabia) é prescrita uma vez na vida
a todos aqueles que a possam efetuar. Os fiéis veneram a Caaba (Santuario que encerra a Pedra Negra), girando sete vezes em torno déla; recitam as orapoes prescritas; váo a Arafat, colina que dista 21 km de Meca, a fim de rezar em pé e invocar a Misericordia Divina; voltam a Meca, passando por Muz-
dalifa e Mina, onde degolam uma ovelha em memoria do que terá feito outrora Abraao naquele lugar... A peregrinacao é sempre ocasiao de afervoramentó para quem a pratica.
A peregrinacao é efetuada no dia 10 do último mes do ano litúrgico muguImano, ano de meses lunares (e, por isto, onze dias mais breve do que o solar). A hegira [hi/ra =m¡gracao) é o ponto de partida desse calendario, cujas festas litúrgicas sao movéis em relacao ao calendario gregoriano, habi tual no Ocidente.
5. Vida moral e familiar 0 muculmano, atento a vontade de Deus, procura cur.nprir tudo que a sua fé Ihe impóe. Assim, por exemplo, deve abster-se de alimentos proibidos: carne de porco ou de animal nao imolado ritualmente, sangue..., vinho, álcool.
No plano moral Maomé deixou nove preceitos:
"O meu Senhor me ordenou nove coisas: ser sincero na vida particular e em público, ser moderado na riqueza e na pobreza, justo na cólera e na satisfacSo, perdoar a quem me oprime, reatar as relacoes com quem as rom
pe comigo, dar a quem me priva de algo, fazer do meu silencio uma meditació, dos meus discursos uma deificacSo, do meu olhar uma considerado
a fim de aprender dos acontecimentos e das coisas que me caem sob os olhos".
Na vida de familia, o Coráo é tolerante em materia de contracepcao,
mas rigoroso na rejeipáo do aborto. Permite ao homem ter até quatro muIheres por motivos legítimos (seja, porém, justo para com elas dentro dos limites do possfvel; cf. Corao 4,3); ao marido é lícito despedir a esposa sem dar explicacoes a quem quer que seja (nem a um juiz). A mulher, em geral, ocupa posicao inferior no lar e na sociedade; os filhos sao mais ligados ao pai do que a máe. 479
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 317/1988 Varios códigos jurídicos mupulmanos tém procurado, nos últimos
tempos, remediar a estes costumes, obtendo ora mais, ora menos éxito.
6. A espiritualidade do Isla Existem dois tipos de vivencia islámica:
1) Há quem queira fazer prevalecer os direitos de Deus na vida públi
ca, recorrendo ao poder do Estado. Este entío se torna tutor da prática reli
giosa, que pode redundar em certo "legalismo" oficial frió e quase farisaico. Esta tendencia a associar política e religiao é assegurada por tres Organizacóes internacionais do Isla: 1) o Congresso do Mundo Muculmano, fundado em 1926, com sede em Karachi (Paquistao); 2) A Liga do Mundo Muculma no, criada em 1962, com sede em Meca, e estritamente ligada ao Governo da Arabia Saudita; 3) a Organizacao da Conferencia Islámica, fundada em Rabat (1969), com sede em Gedda, congregando 44 Estados.
Os países de populacao muculmana em nossos días adotam ora mais,
ora menos rígidamente a uniao da religiao e do Estado. Todos os países ára
bes (com excecfo do Líbano e da Siria) tém o Isla como religiao do Estado; exigem que o chefe do Governo seja muculmano e que as leis islámicas sejam a fonte inspiradora da vida social. Embora o Isla nao tenha clero, em to dos os países maometanos existem os "homens da religiao", que fazem as vezes de um clero pago pelo Estado para tratar da observancia da religiao no respectivo país. Os cidadaos sao identificados e tratados de acordó com a sua confissá"o religiosa - o que quer dizer que os cristfos e os judeus sao considerados cidadaos especiáis, que nao podem ter acesso as funcoes governamentais.
2) Todavía há também um Isla místico, que se preocupa com o aprofundamento do misterio de Deus e tende a crescente amor do Criador. Nao se afasta do Corá*o, mas procura seguir as suas básicas inspiracoes religiosas. Alguns mfsticos mupulmanos chegaram até a certo monismo, professando a absorcao e o desaparecí mentó do fiel em Deus. Entre os principáis vultos da mística árabe, está Al-Ghazali (1059-111), que fez escola dentro da orto doxia, apregoando a ascese como vía para chegar á uniao com Deus e á paz da alma.
7. O IsIS e suas variedades hoje Os muculmanos continuam até hoje a referir-se ao Corao e á tradicáo profética; professam o mesmo Credo, realizam o mesmo culto..., mas apresentam variadas formas de existencia.
(continua na p. 449) 480
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