Ano Xiv - No. 161 - Maio De 1973

  • Uploaded by: Apostolado Veritatis Splendor
  • 0
  • 0
  • December 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Ano Xiv - No. 161 - Maio De 1973 as PDF for free.

More details

  • Words: 19,227
  • Pages: 54
Projeto PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LINE Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de

Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)

APRESENTAQÁO DA EDigÁO ON-LINE Diz Sao

Pedro

que

devemos

estar preparados para dar a razáo da nossa esperanca a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e

religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenca católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de

IL vista cristáo a fim de que as dúvidas se

dissipem e a vivencia católica se fortalega no Brasil e no mundo. Queira Deus abencoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site. Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos convenio com

d.

Esteváo

Bettencourt e

passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo. A

d.

Esteváo

Bettencourt

agradecemos

a

confiaca

depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

60UTCINA

BÍBUíX MORAL.

ANO XIV ^N» 161

MAIO DE

1973

índice Pág.

3,5 = 1000

185

Que significa ?

"FÉ SECULARIZADA" ?

187

Há dlferenca ?

VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS NATUREZA E GRACA

203

CORRESPONDENCIA MIÚDA

212

Como se explica ?

O MENINO JESÚS DE PRAGA

213

Urna aparicao em foco:

A SENHORA DE TODOS OS POVOS

222

CARTA AOS AMIGOS

232

NO

PRÓXIMO

NÚMERO :

Fiei cristao, que a vida eterna). Crise na Igreja, em nossos dias.

esperas em definitivo? [um estudo sobre Igreja é missionária? «Cristaos anónimos». que significa ? Romanas ou peregrinacoes Antígos cristaos batizavam crianzas ? X

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

Assinatura anual Número avulso de qualquer mes

Cr$ 30,00 Cr$ 4,00

Volumes encadernados de 1958 e 1959 (preco unitario)

Cr$ 35,00

índice Geral de 1957 a 1964

Cr$ 10,00

índice de qualquer ano

CrS

EDITORA REDACAO DE PR

Caixa Postal 2.666 ZC-00

20000 Rio de Janeiro (GB)

LAUDES

S.

3,00

A.

ADMINISTRACAO

Búa Sao Rafael, 38, ZC-09 20000 Rio de Janeiro (GB)

Xels.: 2689981 e 268-2706

«

II -V»-

3,5 = 1.000 O titulo paradoxal destas linhas poderá, lá *lrtfiíMvvi^JMkí— surpreender o leitor. Acontece, porém, que a realidade é táo rica em matizes que as vezes ela pode atingir as raias do paradoxal.

Alias, o paradoxo ácima é sugerido pela própria Palavra de Deus, ou seja, pelo Apocalipse de S. Joáo. E como ?

O número 7, na linguagem dos números (que a S. Escri

tura compartilha em algumas passagens), é símbolo de plenitude

e perfeigáo (veja-se, por exemplo, Gen l,l-2,4a). Donde se segué que a metade de 7, isto é, 3 1/2 representa a deficiencia, a pe nuria, o estado de «deserto» em que possa estar o homem pere

grino na térra. É por isto que o Apocalipse, c. 12, afirma que a Mulher simbólica ou «Grande Sinal» é abrigada por Deus

no deserto durante «um tempo, dois tempos e metade de um tempo» (Apc 12,14; cf. Dan 7,25; 12,7), ou aínda durante 1260 dias (3 anos e meio) ou ainda 42 meses, se confrontamos os textos entre si (Apc 12,6 e 11,2).

A Mulher do Apocalipse luminosa, mas perseguida pelo Dragáo durante tres anos e meio (=42 meses, 1260 dias), represen ta a S. Igreja de Cristo na medida em que na térra é sujeita as

deficiencias e contradicóes dos homens. Cada cristáo, sendo urna

micro-Igreja, pode, com certeza, dizer que experimenta muitas

vezes um clima de deserto, de fome e sede de vida, verdade, amor, justiga — valores estes que sao contraditados pelos acontecimentos da vida terrestre.

Passemos agora ao cap. 20 do mesmo livro do Apocalipse. — O texto diz que Satanás será acorrentado por mil anos e lanzado num abismo selado. Ao mesmo tempo, os justos ressus-

citaráo (experimentaráo a ressurreigáo primeira-, e reinaráo com Cristo sobre a térra durante esses mil anos. Terminado tal pe

ríodo, dar-se-á a consumagáo dos tempos: Satanás será soltó, travará a batalha final, á qual se seguiráo a ressurreigáo de todos os mortos e o juízo final.

Esta passagem do Apocalipse suscitou as mais diversas interpretagóes, entre as quais a tese de que, antes do juízo final, haverá sobre a térra um reinado milenar de Cristo: somente os bons viveráo neste mundo, usufruindo de paz espiritual e fartura material... Todavía o milenarismo assim concebido foi rejeitado pelo senso de fé da Igreja. Na verdade, a autén tica interpretacáo de Apc 20 há de ser deduzida dos próprios — 185 —

escritos de Sao Joáo. Ora em Jo 5,25-29 o Evangelista fala

de duas ressurreigóes: a primeira («já agora») é a que se dá pelo batismo ou pela participagáo sacramental da ressurreigáo de Cristo; a segunda se dará no fim dos tempos, quando a graca do batismo transfigurar os corpos ressuscitados.

Entrementes, ou seja, entre a primeira ressurreicáo (a batismal) e a segunda (a dos corpos, no fim dos tempos), os cristáos vivem um período de mil anos simbólicos. Mil, no caso, significa bonanga ou valores eternos e definitivos. Cada cristáo, na realidade, pelo fato de possuir a sementé da vida eterna pela graga santificante, já está vivendo a eternidade, que o número 1.000 simboliza.

Assim se compreende que 3 1/2 seja igual a 1.000. A vida

do cristáo é expressa pelo símbolo 3 1/2 na medida em que é

viandante e sófrega sobre a térra. Mas é simbolizada também pelo número 1.000 na medida em que está de posse da eterni dade e goza da presenga de Deus. Tal é o paradoxo da vida do cristáo: ainda preso ao temporal, já está ancorado no eterno,... ainda sujeito as vicissitudes da vida transitoria na térra, já usufrui da paz e estabilidade do definitivo!

Qual dos dois aspectos, qual dos dois símbolos nos há de impressionar mais: 3 1/2 ou 1.000? É certo que a realidade de 3 1/2, de caminheiros sófregos, muito se faz sentir em cer tas horas. Mas o cristáo nao se deixa abater por ela; sabe que

tem em seu íntimo uma realidade ainda mais real, ou seja, a realidade dos 1.000, da eternidade antecipada no tempo.

O presente número de PR tenciona ajudar o cristáo a descobrir essa realidade intima, que somente a fé percebe. Por

isto apresenta em seus dois primeiros artigos questóes de fé diluida ou contagiada, enquanto nos dois últimos artigos abor da a fé exuberante, sujeita, em alguns casos, a desvirtuamentos. Possam estas páginas contribuir para nutrir uma fé firme e viva, inspirada pela auténtica Palavra de Deus,... uma fé que descubra a presenca de 1.000 nos momentos marcados por 3 1/2! E.B.

— 186 —

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS» Ano XIV — N*

161

— Mdo de 1973

Que significa?

"fé secularizada"? Em sfntese: A fé secularizada, apregoada por Bonhoeffer, Roblnson, van Burén e outros pensadores protestantes, ditos "teólogos da morte de Deus", rejeita tudo que haja de transcendental na mensagem do Evangelho: Jesús Cristo terla sido apenas um homem llvre e libertador (á semelhanca de Sócrates) ou "um-homem-para-os-outros". Em conseqüSncla, professando tais concepcoes, Julgam os mencionados autores que o Cristianismo poderá falar adequadatnente ao homem contemporáneo, para o qual (dizem) Deus e as realidades transcendentals perderam todo significado. . Todavía nota-se que é falsa a aflrmacio de que o senso de Deus está apagado no mundo de hoja; proflssSes públicas de fé por parte de dentistas, astronautas, governantes, artistas... tém sido registradas fre qüentemente nos últimos anos. Além do que, ao crlstfio nao é licito silenciar o nome de Deus, pols a dimensao mística ou o senso religioso é algo de Inórente a todo homem, mesmo em nossos días; quem nao tenha o senso do misterio e do transcendental, é urna personalldade mutilada. Nio sem razio os estruturallstas proclamam que a apregoada "morte de Deus" acarreta lógicamente a morte do homem ou a desestima total da dlgnidade e dos valores do homem. Ademáis um Cristianismo que só veja em Cristo um homem para os outros, reduz a mensagem crista a urna ética atéia, em meló ás varias éticas modernas. Será justo entSo perguntar se a ética marxista nio é multo mais radical e eficiente do que a ética crista secularizada... Será que o Cristianismo, asslm depauperado do transcendental, pode Interessar ao homem moderno? — Parece que nao; apagar a transcendencia da men sagem de Cristo é tlrar-lhe o que ela tem de mais característico, válido e necessárlo para o homem moderno; é, em outros termos, condenar o Cris

tianismo á ruina e ao ridiculo,... é também privar o homem contempo ráneo da única resposta que Ihe possa satisfazer plenamente.

Comentario: O tema «secularizagáo» já foi repetidamente abordado em PR 109/1969, pp. 1-9; 111/1969, pp. 101-110;

112/1969, pp. 137-147. O assunto volta freqüentemente á bai'a sob alguma de suas modalidades; entre outras, está a da «fé secularizada», cujos principáis arautos sao autores protestantes — 187 —

4

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

ou os chamados «teólogos da morte de Deus»: Dietrich Bonhoeffer, John Robinson, Paúl van Burén, etc.

Visto que também em ambientes católicos a fé secularizada vai encontrando eco, importados agora considerar exatamente em que consista, e como há de ser julgada.

1.

«Fé secularizada»: que é?

Abaixo procuraremos expor com o máximo de objetividade o que os autores atrás citados entendem por «fé secularizada». Há autores protestantes que desenvolvem o seguinte diag nóstico do mundo contemporáneo:

O homem de nossos dias é, marcadamente, um «ser racio nal»; o que quer dizer: horroriza tudo que nao esteja ao alcance da razáo. É um ser «deste mundo», um «cidadáo da térra». Por isto nao se interessa pelo que transcende o mundo e a historia dos homens; é um «ser arreligioso» (nao hostil, mas indiferente aos valores religiosos); por conseguinte, mostra-se incapaz de

pensar segundo categorías religiosas. É um ser impregnado de «espirito científico» e, por isto, propenso a rejeitar como «mito» tudo que nao seja científicamente demonstrado. É também um «ser adulto», que, para resolver os seus problemas, já nao pre cisa de recorrer a Deus e á Religiáo.

Sendo assim, se a fé crista quer sobreviver no mundo atual e interessar aos homens de hoje, ela tem que se despojar dos

seus aspectos transcendentais e religiosos, para se tornar urna fé terrestre, deste mundo, ou seja, urna mensagem totalmente penetrável á razáo e urna forca que ajude a construir a Cidade do Homem. É a isto que se dá o nome de «fé secularizada».

Assim concebida, a fé crista (secularizada) terá, para o fu

turo, tres principáis notas, segundo os seus arautos europeus e norte-americanos:

1)

Deixará de lado as dimensóes transcendentais do Cris

tianismo:

Deus nao será mais apresentado como o Ser Absoluto, mas,

sim, como algo de imánente no mundo, como o Fundo de todo ser, principalmente do homem; — 188 —

«FÉ SECULARIZADA»?

por «Reino de Deus» entender-se-á o Reino do homem li berto de grilhóes sociais, económicos e de seus males físicos e moráis; a vida eterna será a vida da humanidade feliz, livre da fome, do subdesenvolvimento, da guerra, da doenga, da morte...

Neste contexto, a oracao nao terá mais sentido: deverá dar lugar á agáo para que «venha o reino» do homem sobre a térra. Os verdadeiros atos de culto seráo aqueles em que atenderemos as necessidades de nossos semelhantes.

O pecado nao se definirá como urna derrogagáo á lei de

Deus, mas, sim, como um ato contra o homem; será a injustica, a opressáo, a exploragáo do homem pelo homem.

A fé crista poderá mesmo silenciar, por completo, o nome de Deus, ou porque «Deus morreu» (= nao tem mais significa do nem ressonáncia para o homem de hoje, embora Deus ainda

exista em sua realidade invisível), ou porque «Deus mesmo quer

que nos vivamos sem Deus» (como diz Bonhoeffer).

2) A «fé secularizada» deverá realizar urna total «demitizagáo» do Evangelho e da figura de Jesús Cristo. Há, por exemplo, no Livro Sagrado certas afirmacóes concernentes a Jesús que procedem do modo de ver mítico dos antigos e que, por conseguinte, só podem ter valor de símbolos para nos. Portanto nao se dará o valor de fato histórico, mas de símbolo altamente

significativo, á Encarnagáo do Filho de Deus, ao nascimento virginal do Senhor, aos seus milagres, a redengáo pela cruz, á ressurreigáo, á ascensáo de Cristo... Jesús será considerado

táo somente como um homem que nasceu e morreu como os

outros. Apenas se notará nele algo que o coloca ácima de todos os homens e o torna modelo: ele foi «o-homem-para-os-outros»,

e um homem soberanamente livre. Quem adere a Jesús pe!a fé,

torna-se também «um-homem-para-os-outros», e um homem livre.

3)

A fé secularizada deverá pregar a salvacáo crista nnm

sentido terrestre: isengáo de fome, guerra, ignorancia e subde

senvolvimento. .. A Igreja deve tornar-se urna fonte de dina mismo em demanda do progresso e da libertagáo sócio-econó-

mica das populagóes oprimidas. Os «céus novos» e a «térra — 189 —

6

«PERPUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

nova» de que fala a S. Escritura, nao seráo dom de Deus, mas, sim, conquista do homem. Eis, brevemente expressas, as características da fé seculari zada. A fim de ilustrá-las, vamos agora apresentar alguns dos dizeres mais pregnantes de dois dos seus principáis arautos: Dietrich Bonhoeffer e Paúl van Burén. As citacóes que a seguir seráo feitas, tém significado mera

mente ilustrativo; elas nada pretendem insinuar,

mas apenas

informar, para possibilitar um juízo objetivo sobre o assunto. Há particular intcresse em citar Bonhoeffer, visto que seu pensamento foi amplamente difundido, inclusive no Brasil, onde se publicou em tradugáo portuguesa a obra postuma «Resistencia e Submissáo». Ed. «Paz e Térra» 1968.

2.

Dietrich Bonhoeffer: os principios da secularízaselo

Dietrich Bonhoeffer nasceu de familia luterana em Breslau (Alemanha) no ano de 1906. Como pastor, distinguiu-se pelo ardor de sua fé protestante, que o levava a se opor radi calmente as idéias nacional-socialistas de Adolf Hitler. Final mente foi encarcerado aos 5 de abril de 1943 e morreu enforcado em campo de concentrac.áo aos 9 de abril de 1945. Deixou escritos, cartas, sermóes, que revelam seu modo de pensar se cularizado (alias, o próprio Bonhoeffer se admirava por haver passado do seu protestantismo ortodoxo para as idéias que professava no cárcere). Eis como ele concebe a situagáo do cristáo no mundo de hoje: "Já passou o tempo da religiáo em geral. Marchamos para urna época sem religiáo alguma. Os homens, como hoje sao,

já nao iconseguem ser religiosos. Toda a nossa proclamagáo do Evangelho e nossa teologia de 1900 anos de Cristianismo

baseiam-se sobre o apriori (= pressuposto) de que o homem é religioso. O Cristianismo sempre foi urna forma (talvez a auténtica forma) da 'religiáo1. Quando, porém, um día se tor nar evidente que este apriori nao existe mesmo, mas que foi apenas urna forma de expressáo do homem, históricamente condicionada e transitoria,... quando os homens se torna re m realmente nao religiosos de maneira radical — e eu creio que isto já está acontecendo —, que significará entáo isto tudo — 190 —

«FÉ SECULARIZADA»?

para o Cristianismo? Está sendo subtraído o terreno ao nosso Cristianismo..." {Carta de 30/IW1944, em "Resistencia e Submissáo", pp. 130s). Em outra carta, pouco posterior, Bonhoeffer voltava as mesmas idéias, apresentando a ausencia de religiáo como expressáo da maturidade do género humano: "O homem aprendeu a se defender por conta própria con tra todos os problemas mais importantes em que recorresse a 'hipótese de trabalho: Deus'. Nos problemas científicos, artísti cos e mesmo éticos, ¡sto se tornou natural, e nao mais se dis cute o fato. Há uns cem anos, porém, que ¡sto também vale, e em medida crescente, para os problemas religiosos. Verifica-se que tudo caminha sem Deus, e em ,certo sentido táo bem quanto antes. Assim como no terreno científico, também no ámbito da existencia humana, Deus é mais e mais afastado do cotidiano, e Ele perde terreno" (carta de 8/VI/1944, ib. 155). Em conseqüéncia, Bonhoeffer apregoa urna interpretagáo

mundana, isto é, secular, leiga, nao religiosa, dos conceitos bí blicos. «Interpretaeáo nao religiosa», no caso, quer dizer: refi-

ram-se os dizeres bíblicos á vida do homem no mundo presente e aos interesses do progresso e da cultura da humanidade. Bonhoeffer mesmo dizia: «Sempre sinto de novo que pensó e julgo segundo os moldes do Antigo Testamento; nos meses pas-

sados, por isto, li muito mais o Antigo Testamento do que o Novo» (carta do 2» domingo do Advento, ib. p. 85). Os judeus do Antigo Testamento, nao tendo clara nogáo de urna vida pos tuma consciente, julgavam que o Reino de Deus se instauraría neste mundo mesmo; os bens trazidos pelo Messias seriam bens materiais.

Na base de tais premissas, que significa «ser cristáo» para Bonhoeffer?

— «Ser cristáo» é ser homem... O cristáo nao é um homo

religiosas (homem religioso), mas simplesmente um homem,

como Jesús foi homem (cartas de 18 e 21/VII/1944, ib. pp. 175

e 177). Ser cristáo, em outros termos, é tomar consciéncia do que Jesús foi «o homem para os outros»; as relagóes do cristáo com Deus se estabelecem na medida em que o cristáo existe para os outros, colaborando ñas tarefas da vida social, ajudando e servindo. O Cristianismo nao é urna religiáo da redengáo e da esperanza num além melhor posterior á morte:

— 191 —

8

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

"Agora se ouve dizer que o decisivo no Cristianismo é que se anuncia a esperanga da ressurreigáo e que desta forma surgiu urna auténtica religiáo redentora. Todo o peso da pregagáo recai sobre o além da fronteira da morte. Exatamente

nisso vejo o erro e o perigo... Seria isso de fato o essencial da praclamagáo dos Evangelhos sobre Cristo e da pregagáo de Paulo? Eu o contesto. A esperanga da ressurreigáo se distin gue da esperanga mitológica por reconduzir o homem de maneira completamente nova, em contraste, alias, com o Antigo Testamento, para as responsabilidades da sua vida na térra. O cristáo nao tem, como os crentes dos mitos de redengao, urna escapatoria sempre aberta para o eterno a fim de fugir ás obrigagoes e aos obstáculos terrenos; mas deve, como Cristo, esgotar até o fim os recursos de sua vida terrena ('Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?'); somente na me dida em que ele assim procede, ele conta com a presenca do Crucificado e do Ressuscitado, e com Cristo é crucificado e ressuscitado" (carta de 27/VI/1944, ib. 162s).

Eis, esbogado, o Cristianismo sem religiáo (religionsloses Christcntum) que Bonhoeffer (embora com um pouco de hesi-

tacáo cá ou lá expressa) julgava ser a única forma de Cristia nismo capaz de satisfazer ao homem contemporáneo ou ao «ho mem adulto» de nossa época.

Examinemos ainda como as idéias de Bonhoeffer foram ulteriormente desenvolvidas por Paúl van Burén.

3.

Paúl van Burén : os extremos da secularizado

Bonhoeffer era, e quería continuar a ser, um cristáo lute rano fiel. Redigiu suas idéias no cárcere, manifestando certo

receio de que constituíssem serio perigo para a genuína fé pro testante. O seu senso cristáo o levava a duvidar por vezes e a pedir a seu amigo Eberhard Bethge pareceres e opinióes sobre quanto Ihe escrevia. Todavía as tendencias de Bonhoeffer foram

sendo cultivadas em sentido cada vez mais radical pelo grupo dos chamados «teólogos da morte de Deus», dos quais um dos mais extremados é Paúl van Burén, anglicano, professor da «Temple University» de Filadélfia (Pennsylvania). É na obra «The secular Meaning of the Gospel» (O significado secular do Evangelho), publicada em 1963, que este autor desenvolve suas idéias. — 192 —

«FÉ SECULARIZADA»?

Van Burén é essenciaimente um empirista e positivista. Para ele, só tem realidade e só merece ser levado em conta o

que caí sob observacáo de laboratorio ou sob os sentidos; de resto, ele julga que todo homem moderno é igualmente empiris

ta. No setor religioso, isto quer dizer que van Burén rejeita me tafísica e teología, para dar lugar ao secularismo ou á secularidade da fé, ou seja, a um positivismo empírico dito «cristáo». Partindo destas premissas, como se estrutura a posicáo de van Burén frente á fé crista?

— O autor, desde o inicio, rejeita os conceitos cristáos fun damentáis, inclusive o de Deus. Tais conceitos nao sao empí ricos ou nao podem ser verificados pela observagáo experimental; por

isto

sao

incompreensiveis

para

o

homem «secular» ou

homem do mundo de hoje, o qual é essenciaimente empirista, conforme van Burén. Eis como se exprime o autor: "O empirista que está em nos, encontra a raiz de suas dificuldades nao naquilo que se diz a respeito de Deus, mas

no próprio fato de que se fale de Deus. Nos nao sabemos o que é Deus, nem compreendemos como a palavra 'Deus' é empregada" (em tradugáo italiana: "II significato secolare del Vangelo", p. 111). Por conseguinte, a palavra «teología» nao faz sentido. Pode-se, porém, — e deve-se — falar apenas de Cristologia. Esta tem por objeto «o homem Jesús de Nazaré», deixando de lado a questáo da Divindade de Cristo. E qual a característica mais marcante de Jesús de Nazaré? — Ele foi essenciaimente «um homem livre», na opiniáo de van Burén:

"Jesús aparece como um homem essenciaimente livre nas parábolas, nos dizeres e episodios que nos foram transmitidos, assim como nas frases em que as primitivas comunidades cris tas falavam dele... Era livre da ansiedade e da necessidade de definir a sua identidade pessoal; principalmente, porém, ele era livre para o seu próximo... Diz-se que Ele ensinou que a gran

deza da liberdade está no servico; a sua própria liberdade foi caracterizada pelo humilde servigo aos outros. Por conseguinte, parece que era um homem livre para dar-se aos outros, quem

quer que estes fossem. Ele viveu

assim, e foi

— 193 —

condenado á

JO

«PERGIÍNTE

E

RESPONDEREMOS»

1G1/1Í73

morte porque era um homem deste tipo em meio a homens tímidos e medrosos" (ib. 151-153). Portante, o que define o homem Jesús é a liberdade.

E como se dove entender a fó em Jesús? — A fé nao consiste em reconhecer simplesmente o Jesús da historia. Na verdade, os Apostólos que conviveram com o Jesús histórico, conhcccram Jesús, mas o abandonaram sem fó no momento da Paixáo. Diz van Burén: "O Jesús histórico nao suscitou a fé... A sua liberdade era

exclusivamente dele; no máximo, era condividida, de maneira fragmentaria e esporádica, em algumas ocasióes, por pouquíssimos homens. Sendo assim, concluimos que a fé crista nao foi, e nao é, urna conseqüéncia direta de ver a figura histórica de Jesús" (ib., p. 155s).

Continua van Burén: a fé se funda sobre Páscoa; «antes de Páscoa nao havia cristáos» (ib. p. 155). E como se deve entender Páscoa?

— Páscoa nao é a ressurreigáo corporal de Jesús, pois a expressáo «Jesús ressuscitou» nao tem sentido; nao é urna afirmacáo empírica, já que nao pode ser verificada experimentalmente.

— Mas entáo que entendiam os Apostólos quando afirmavam que Jesús lhes aparecerá?

— Apenas intencionavam dizer que sua mente fora ilumi

nada para compreender de novo modo a mensagem de Jesús Cristo. Eis como o explica van Burén:

"Para os Apostólos, Páscoa foi urna ocasiáo de discernimento..., na qual, sobre o fundo das recordacóes deixadas por Jesús, imprevistamente vlram Jesús de modo novo e inespera do. Fez-se a luz. A historia de Jesús, que parecía ter sido urna derrota, tomou urna importancia nova, tornando-se como que a chave do sentido da historia. Dessa visáo nova resultou um

comprometimento de acordó com o género de vida que Jesús adotara... A fó de Páscoa foi urna prospectiva da vida que jorrava de urna situagáo de discernimento... A relagáo própria desse discernimento com a vida histórica de Jesús foi deter— 194 —

«FÉ SECULARIZADA.'/

il

minada pela experiencia particular que os discípulos fizeram na Páscoa:... experiencia de ver Jesús de novo modo e de participar da liberdade que fora a dele... Na Páscoa eles descobriram que Jesús tinha um poder novo que antes ele nao tinha ou nao havia exercido: o poder de suscitar liberdade em seus discípulos... O que aconteceu aos discípulos por ocasíao de Páscoa, foi que eles se tornaram participantes da liberdade que Jesús tinha, de ser um homem para os outros... Na Pás coa, eles descobríram que eles mesmos comecavam a condi

vidir essa liberdade — coisa que antes nao Ihes acontecía. Poderíamos dizer que na Páscoa a liberdade de Jesús comecou a ser contagiosa" (ib. 163s).

Por último, van Burén expóe o que vem a ser o Evangelho para o homem de hoje, «secularizado» como é:

"O Evangelho é a Boa-Nova de um homem livre que tornou livres outros homens, Boa-Nova proclamada pela primeira vez por aqueles aos quais aconteceu tornar-se livres. No decurso de dezenove séculos repetiu-se constantemente o fato de que, ao ouvirem essa proclamacáo, os homens se tornaram livres. A resposta que o Novo Testamento chama fó, consiste em reconhecer que a libertagáo se dá mediante a aceitacáo do

libertador Jesús de Nazaré; este é o homem que determina para eles o que significa ser homem e que se torna o foco de orientacao da vida deles" (i b. 171).

Em suma, o significado secular do Evangelho resume-se na seguinte mensagem: «A verdadeira natureza do homem consiste precisamente na liberdade para os outros que foi própria de Jesús. Ser humano é ser livre para o próximo» (ib. 199). As idéias assim propostas sugerem, sem dúvida, algumas reflexóes, que procuraremos abaixo sintetizar.

4.

Reflexóes

Distribuiremos as nossas ponderales sob dois títulos, dos quais o primeiro dirá respeito á «morte de Deus» e o outro se referirá a Cristo «homem-para-os-homens». 4.1.

O senso de Deus no homem de hoje

Dizem os novos pensadores que Deus é algo de ultrapassaclo para o homem de hoje; este teria perdido o senso de Deus.

12

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

Esta afirmagáo, embora se possa basear em certos fatos (as vezes, interpretados segundo idéias preconcebidas), nao corresponde exatamente á realidade. Justamente os últimos tempos tém-nos fornecido a ocasiáo de presenciar admiráveis manifestacóes do senso religioso do homem moderno; assim, por ocasiáo da viagem da Apolo-13 (abril de 1970), representantes qualificados da humanidade oraram a Deus em público, afir mando sua fé no Senhor todo-poderoso. Pouco depois, a disputa da Copa do Mundo (junho de 1970) provocou demonstragóes públicas de prece e gratidáo a Deus. Ainda mais recentemente, a imprensa noüciava que Jim Irwin, tripulante da Apolo-15, se tornou pregador leigo da Igreja Batista:

"Jim explica que sentiu a presenca de Deus atrás das montanhas da Lúa. Ao voltar, tentou recomecar sua carreira, mas sentía cada vez mais fortemente que 'Deus me tinha cha mado para servi-Lo'. Pediu demissáo da NASA e comecou a pregar, intitulando-se 'o missionário lunar*" ("Jornal do Brasil", 21/XII/72, cad. B. p. 1). A respeito de Charles Duk, da Apolo-16, diz a mesma fonte que «se sentiu tomado de religiosidade táo forte, ao pisar na Lúa, que chorou. — Foi a experiencia mais importante de minha vida. Senti que estava contemplando a obra de Deus» (ib.).

Sob os regimes da Cortina de Ferro, que desferem radical campanha contra a Religiáo, visando atingir desde cedo a juventude, a Religiáo continua a ser afirmada e praticada. A

revista «Informations Catholiques Internationales», em seu n* 409, de 1VVI/1972, pp. 3-5, publicou um artigo intitulado «U.R.S.S.: a Religiáo do Partido». O autor, Jean-Philippe Caudron, ai dá noticia das diversas cerimónias litúrgicas da «Religiáo do Partido», que substituiram os antigos Oficios reli giosos:

Todo menino, dos 6 aos 8 anos de idade, aprende a venerar

o deus Lenine, recitando poesías aos pés das inumeráveis esta

tuas desse líder, estatuas que a meninada ornamenta com flores como se ornamentaria um altar; o menino jura, ao mesmo tempo, que ficará fiel ao ideal de perfeicáo moral; tais criangas sao chamadas «Octiabroenok» (as criancas de outubro).

Mais tarde, dos 8 aos 14 anos, o menino passa á categoría dos «Pioneiros»: recebe um lengo de seda vermelha, que envolve _ 198 —

«FÉ SECULARIZADA»?

13

em torno do pescogo, e promete solenemente que «amará ardentemente a sua patria, vivera, estudará e lutará segundo os preceitos de Lenine, e estará sempre pronto a observar as leis dos Pioneiros», isto é, a ser um bom trabalhador, um filho devotado, um cidadáo leal, etc. Aínda mais tarde, o jovem entra para a categoría dos Komsomols (de 14 a 27 anos). Serve ao exército e cursa a Universidade. Um estudante de Engenharia tem quatro horas por semana de catecismo marxista-leninista... quatro horas obrigatórias e eliminatorias. Continua o articulista:

"A apoteose é o casamento. Assisti a casamentes socia listas. Palacio, música atraente, champagne doce,... discursos da funcionaría do Governo sobre o amor, o respeito mutuo, a educacáo dos filhos, e visita aos monumentos aos mortos, diante dos quais os jovens casáis se recolhem, pensando nos heróis cujo sangue derramado salvou a patria. Acrescentem-se a isso tudo a imprensa, o radio, a televisáo e o cinema, que langam normas culturáis e moráis sobre urna populacáo que há cinqüenta anos nunca leu nem ouviu doutrína diferente. E ter-se-á urna idéia aproximada da ambientagáo religiosa, mas socialista, que envolve, afoga, desgasta,

mas impregna visceralmente

o

cidadáo

soviético

ordinario,

que nao tem como se defender.

Nao há dúvida, o Estado soviético, que quis fazer desa parecer o Cristianismo dos espirites soviéticos, viu-se obrigado a instituir novas cerimónias e novos sacramentos em lugar dos antigos. Teve que levar em conta o espirito profundamente re ligioso da populagao". Diga-se ainda: na Iugoslávia e na Polonia, submetidas a regime marxista militante, as vocagóes sacerdotais e religiosas

se multiplican! surpreendentemente... Estes fatos, entre outros muitos que poderiam ser citados (basta acompanhar a imprensa diaria e semanal), atestam quáo

arraigado é o senso de Deus na natureza do homem. Atestam também quanto esse senso religioso tende a se afirmar espon táneamente e por parte de homens de todas as classes sociais, ainda em nossos dias. Pode-se, pois, dizer que a dimensáo reli giosa é inerente á auténtica natureza do homem. — 197 —

14

-PERPUNTE

E

RESPONDEREMOS-

UU/1973

2. Urna reflexáo filosófico-teológica seja acrcscvntada a verificagáo do fato histórico. Ainda que o nome de Deus viesse realmente a ser silencia do pelo mundo contemporáneo, nao seria licito ao cristáo acompanhar esse silencio; ao contrario, seria (e é) dever do cristáo e, de modo especial, do sacerdote, fakir de Deus.

Com efeito. Deus ó o Ser soberanamente real; é o Criador o a Fonte de tudo o que existe. O homem, pelo simples falo de existir, está (muitas vezes, sem o saber) em intimo contato com Deus, pois foi Deus quem o criou e é Ele quem o sustenta na existencia. Em conseqüéncia, todas as vezes que o homem toma contato mais profundo consigo mesmo e com a natureza que o cerca, ele nao pode deixar de reconhecer algo de misterioso c transcendental, esse algo c o cunho de Deus que as criaturas trazem em si e exprimem cada qual do seu modo. Com ünfaso especial, os artistas (poetas, músicos, pintores...), que por su a veía artística estáo abertos para o misterio da natureza e do homem, se acham muito perto de Deus (embora. as vezes, nao o saibam).'

Um homem incapaz de reconhecer o transcendental,'-' é um homem amesquinhado, a quem falta algo de essencia!, pois o senso de Deus pertence ás dimensoes de um homem integral ou auténtico. Humanismo ateu já nao é humanismo. Com efeito. Nos últimos anos tem-se talado nao sj da «morte de Deus», mas também da «morte do homem». Esta c

anre.qoada pela esibla filosófica estruturalista (cf. PR 124/1970, pp. 143-150). Michel Foucault, arauto dessa corrente, encerra nos seguintes termos o seu livro «Les mots ct les choses»:

"O homem é urna invencáo de que a arqueología do nosso pensamento mostra com facilidade a data recente e talvez o fim próximo".

' Reciprocamente, toda criatura

humana em quem

o senso

místico se

tenha desenvolvido, tende a ser poeta. Sao Jo8o da Cruz, S. Teresa de

Ávila, S. Teresa de Llsieux e outros grandes místicos cantaram em versos as suas experiencias místicas. - Em última análise, pode-se dizer que sao poucos,

pois muitos

dos

que se dizem ateus estabelecem seu substitutivo de Deus ou de mística.

— 198 —

<.FÉ SECULARIZADA^?

15

A morte do homem assim entendida consistiría em se negar o valor próprio ou típico do psiquismo humano (inteligencia, vontade, consciéncia moral, espirito religioso, senso artístico...); esse psiquismo nao seria senáo o produto de reagóes físico-quí micas, cegas e mecánicas, que caracterizam o organismo hu mano.

Michel Foucault reconhece que essa morte do homem está relacionada com a apregoada «morte de Deus». Negando a Deus, o homem se assemelha ao lenhador que corta o ramo da árvore sobre o qual está assentado e assim cai desastrada mente por térra. Eis suas palavras:

"Em nossos dias nao é tanto a ausencia ou a morte de Deus que é afirmada, mas o fim do homem... A morte de Deus e o fim do homem estáo conjugados entre si. Segundo Nietzsche, é o último homem que anuncia ter matado a Deus. Mas, visto que matou a Deus, é ele mesmo quem deve respon der por sua finitude... Mais do que a morte de Deus, ou antes, no rasto dessa morte e em correlagáo profunda com ela, o que Nietzsche anuncia é o fim do assassino de Deus". Já na literatura francesa, anteriormente a Foucault, o ro mancista Roger Martín du Gard salientava o nexo entre as duas mortes (a de Deus e a do homem); "Nietzsche suprimiu a nocáo de Deus. Colocou em lugar déla a nocáo de homem. Isto ainda é pouco; é apenas urna primeira etapa. O ateísmo deve agora avancar; ele há de su

primir também a nocáo de homem" ("L'Été 1914").

É por estes motivos que se diz que o cristáo nao pode deixar de falar de Deus, mesmo num mundo que se diz ateu ou indife

rente a Deus; calar-se seria, para o semelhantes a nocáo mais vital que homem contemporáneo mais precisa qual ele aspira inconscientemente. O

cristáo, subtrair aos seus haja,... a nogáo de que o (talvez sem o saber) e á homem só poderá deixar

de ser religioso, caso se desinteresse das questóes fundamen táis da vida humana: «Donde...? Para onde...? Por qué...?» E quem se desinteressa dessas interrogacóes, nao vive integral mente a sua dignidade humana.

A propósito, escreve com sabedoria o Cardeal Daniélou:

"A pretensao.de dispensar Deus e bastar a si mesmo é o

fundamento de .certo ateísmo moderno, mais ou menos difuso... — 199 —

16

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

Essa pretensáo, na verdade, destrói o nosso ser no que ele tem talvez de mais essencial. Pois a raiz mesma de nossa existencia é o diálogo com Deus, diálogo em que a todo instante recebemos d'Ele tudo que somos e pelo qual respon demos á graga pela acáo de gracas... Receber a cada mo mento todas as coisas de Deus, referir a cada momento todas as coisas a Deus, é simplesmente estar na verdade, visto que

esse misterioso intercambio é a realidade de nossas vidas" ("L'avenir de la religión". Paris 1968, p. 50).

O cristáo que mantenha viva em si mesmo a consciéncia destas verdades e a desperté ou avive no próximo, desempenha um papel valioso na sociedade de hoje. Desde, porém, que ele perca tal consciéncia, torna-se urna contradicho subsistente; a

ele se aplicaráo as palavras do Senhor no Evangelho: «Se o sal perder o seu sabor, com que se há de salgar? Para nada mais serve senáo para ser Janeado fora e ser pisado pelos homens» (Mt 5,13). Entáo já nao se tem um cristáo, mas simplesmente um ateu: ou eremos em Deus, Principio e Fim de todas as criaturas, e O apregoamos com entusiasmo, ou simplesmente nao eremos e nos calamos.

4.2.

Cristianismo horizontalizado

A um cristáo toca, sem dúvida a fungáo de contribuir valio samente para a construcáo da Cidade do Homem; mas ele

jamáis poderá esquecer que as atividades temporais da criatura humana se devem encaminhar para a vida eterna. A libertagáo e a salvacáo que Cristo propós, embora passem pelas estruturas terrestres, tém Índole transcendental e escatológica.l Por conseguinte, «secularizar o Cristianismo», no sentido de van Burén, significa simplesmente destrui-lo. Alias, o próprio van Burén, que era ministro do culto anglicano, reconhecia muito lealmente que já nao era cristáo: "Quanto á minha condigáo de Pastor, direi que nao rezo; Mmito-me a refletir sobre essas coisas. Fui ordenado, é ver dade; mas, quando me pedem que vá pregar ou celebrar o culto, geralmente respondo que prefiro abster-me dlsso. Eu nao hesitarla em deixar as fungóes por completo, se isto se

pudesse fazer sem ruido, de maneira inofensiva. Mas nao é 1 Escatológica...

O que quer dizer: só seráo atingidas plenamente

no fim dos tempos.

— 200 —

«FÉ SECULARIZADA»?

possível; deixar o pastorado acarreta coes... Se alguém quisesse contestar eu deveria admitir que, sim, eu nao por Ved Menta, "Les théologiens de

17

urna serie de complicao meu nome de cristao, sou um cristao" (citado la mort de Dieu". París

1969, p. 83).

Ao contrario, Boihoeffer (contradizendo a afirmafióes que anteriormente fizera) terminou sua vida na térra professando a transcendencia do Cristianismo: é no Além que se encontra a plenitude. — Com efeito; Payne Best, no livro «The Venlo Incident», relata o fim de Bonhoeffer: no domingo 9 de abril de 1945 Bonhoeffer celebrou um oficio religioso para os com panheiros de cárcere; faloudhes entáo do fundo da alma. Ape nas terminara a última prece, quando dois carcereiros, de fisio nomía tesa, abriram a porta e chamaram: «Prisioneiro Bon hoeffer, prepare-se e venha!». Esta palavra «Venha», para os detidos, significava a forca. Despediram-se; entáo Bonhoeffer, tendo puxado á parte Payne Best, Ihe disse: «É o fim. Mas

para mim ó o comego da vida! (Das ist das Ende. Für mich der Beginn des Lebens)». Quem quisesse ver em Jesús Cristo apenas «o-homem-para-

-os-outros», já nao deveria talar de fé crista, mas, sim, de ética

crista, paralela á ética de Sócrates e a de Buda. Ora o Cristia nismo é mais do que urna escola de morigeragáo; é a comunicagáo de sabedoria e de valores eternos.

A «fé secularizada (atéia)» ou a «ética crista (sem Deus)»

de van Burén e seus companheiros teria ela ainda alguma razáo de ser, ao lado de tantos outros humanismos que se oferecem ao cidadáo do século XX? Dentro do ateísmo, o marxismo nao seria muito mais radical e eficaz do que o Cristianismo de van Burén? «Nao seria entáo preferivel ser marxista?», poderiam muitos perguntar.

Na verdade, somente se Jesús Cristo é o Filho de Deus (no sentido paulino clássico) e nos anuncia que Deus Pai nos salvou e nos chama para alcangarmos a vida eterna, mediante

o amor a Deus e ao próximo, é que o Evangelho tem sentido para o homem de hoje; o Evangelho entáo conserva sua origi-

nalidade e responde as mais profundas expectativas do ser hu mano, expectativas as quais, sinceramente falando, nem o mar xismo nem as místicas orientáis panteístas (bramanismo, budismo...) respondem satisfatoriamente. — 201 —

18

«PERGUNTE

fc

RESPONDEREMOS»

1Ó1/1U73

Por conseguinle, somente se permanecer o que é, a fé crista significará algo para o homem secular; dar-lhe-á urna resposta que ele nao encontra em outra instancia e de que ele tem profunda necessidade. A propósito, a bibliografía é vastissima. Sejam salientados os seguin-

tes escritos :

G. De Rosa,

"Fede cristiana e mondo secolarizzato",

Cattolica", qu. 2875, 4/IV/1970, pp.

em

"La Clviltá

8-19.

ídem, "La secolarizzazione del Cristianesimo" (I e II), Ib., 2/V/1970, pp. 214-222; qu. 2878, 16/V/1970, pp. 331-339.

"Deus está morlo ?" polis 1970.

qu. 2877,

(coletánea de artigos). ColegSo IOO-C 1. Pelró-

R. Laurentln, "Dieu est-il mort ?" Paris 1968. Tradugáo brasileira ñas Edígdes Paulinas. J. Bishop, "Les théologiens de la mort de Dieu". París 1967.

Ved Mehta, "Les théologiens de la mort de Dieu". París 1969. J. Daniélou, "L'avenir de la religión". Paris 1968. Tradugao brasileira

ñas EdicSes Paulinas. 1969.

K. Rahner, "Considerazioni teologiche sulla secolarizzazione". Roma "Lumiére et Vie" n? 89 (setembro-outubro 1968). "Concllium" n° 47 (setembro 1969}.

AMIGO LEITOR!

SOLICITAMOS AOS ASSINANTES QUE AÍNDA NAO RENOVARAM SUA ASSINATURA, QUE O FACAM IMEOIATAMENTE. A PARTIR DO PRÓXIMO NÚMERO, TEREMOS DE SUSPENDER A REMESSA PARA ASSINATURAS NAO RENOVADAS.

APESAR DO GRANDE AUMENTO NO PREGO DOS CORREIOS E DO PAPEL, MANTIVEMOS INALTERADO O PRECO DAS ASSINATURAS. NUMA ATITUDE DE COLABORACAO, PEDIMOS ENCARECIDAMENTE AOS AMIGOS QUEIRAM DIVULGAR ASSINANTES.

A

NOSSA

REVISTA

£

OBTER-LHE

NOVOS

GRATOS PR

— 202 —

Há d¡feren?a?

valores humanos e valores cristáos natureza e graca

Em sintese: O humanismo otimlsta de nossos días tende a Identi ficar ser humano perfelto, realizado e ser erlstáo. Cristo terá sido o homem perfeito, de modo que tornar-se homem perfeito é imitar a Cristo.

Tal assergáo nSo deixa de ser sedutora, mas vem a ser ambigua (diga-se mesmo: errónea). Na verdade, ser cristSo significa ser elevado

ácima da natureza e das capacidades do ser humano; significa tornar-se

fllho de Deus, nao nomlnalmente

apenas,

mas

por

regeneracáo ou por

particlpacáo da vida do próprlo Deus (sem panteísmo, ou seja, ressalvada a dlstincáo entre Criador e criatura).

Acontece mesmo que a

natureza humana tal como ela existe

na

historia deste mundo nao ó simplesmente a de um vívente racional (como dlzem os filósofos), mas o vívente racional que é o homem, fol elevado, no Inicio da sua historia, á fMlacSo divina; decalu deste estado singular e finalmente fol remido por Cristo. O batismo e a Eucaristía restauram germlnalmente no erlstáo a fIliacSo divina perdida pelos prlmeiros país. O dom da fillacSo divina concedido mediante Cristo Insere-se na natureza humana dilacerada por concupiscencias e palxdes. Em conseqüéncla, nSo se pode dizer que fomentar a natureza humana e satlsfazer indistintamente ás suas asplracóes seja o mesmo que cristianizar. Na natu reza do homem, existem tendencias contradltórlas e Incoerentes (já verifi cadas por filósofos pagSos e por Sfio Paulo), de sorte que a ascese e a mortlflcacfio vém a ser Indlspensáveis para que se forme um auténtico

cristSo. Um humanismo que nSo Inclua penitencia, nSo ó cristáo.

A filosofía hindú, supondo o panteísmo, enslna que o homem é cen-

telha da Dlvlndade envolvida pela materia; a perfelcSo do homem portante já estarla dentro dele. Esta proposIcSo nfio se coaduna com a perspectiva crista. Qupndo á Yoga em particular, na medida em que é educac&o física e higiene mental, pode tranquilamente ser pratlcada por um cristáo, contanto que este nSo adote o panteísmo dos mestres yoguis Indianos.

Comentario: Urna das questóes muito debatidas, sempre que se fala de antropología e vida crista, é a do relacionamento entre os valores do ser humano (ou da natureza huma— 203 —

20

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

na) como tal e os da graqa de Deus concedida pelo Batismo e a Eucaristía.

Tal relacionamento é classicamente considerado como insercáo da graga na natureza. Ser cristáo significa entáo receber urna realidade nova, um novo ser, outorgado por Deus. Nos últimos tempos, porém, a nova valorizagáo do ser humano

ou o cultivo de um humanismo otimista e confiante tem inspirado a muitos mestres proposicóes como as que se seguem: "A conversáo (metánoia) apregoada pelo Evangelho se faz mediante urna reeducacáo psicológica, em que nos encontra mos conosco mesmos.

O desabrochamento cristáo nao depende de algum subsi dio exterior, mas brota do mais íntimo da natureza humana. A graca sobrenatural, para agir em plenitude, precisa de encontrar a natureza humana também em pienitude.

Aperfeicoar os valores humanos é identificar-se progressivamente com Cristo, o homem perfeito, e, por Ele, com Deus". Estas proposigóes tém um qué de simpático e atraente para muitos cristáos; apresentam, com efeito, a vida crista

como o desenvolvimento lento e homogéneo de tudo que haja dentro do ser humano; um homem perfeito seria um cristáo perfeito. Após um exame mais atento, porém, pode-se reconhecer que tais frases sao ambiguas ou mesmo erróneas. Ressentem-se de otimismo irrestrito ou exagerado frente á natureza humana, otimismo que se chama naturalismo. Em parte, também sao inspiradas por certas concepgóes da filosofía hindú, que nos últimos anos tém mais e mais penetrado na mentalidade ociden-

tal mediante o Zen-budismo e a filosofía da Yoga (n. b.: dizemos filosofía, nao dizemos técnica).

Por isto consideraremos a seguir: 1) Natureza humana e graga crista; 2) Yoga e Cristianismo. 1.

Natureza e groja

1. Por «natureza humana» entende-se, em filosofía clássica, o conjunto de capacidades ou faculdades que caracterizan! — 204 —

VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS

21

o homem e as cxpressóes do ser humano. As principáis dessas facilidades sao a inteligencia e a vontade. Como ensina a ex periencia, sao facuidades limitadas ou de alcance finito; nao podem atingir o Infinito, Deus, senáo de modo finito. Em outros

termos: apreendem Deus á semelhanga ou segundo a analogía de urna criatura.

2.

Por «graga crista» entende-se o dom de Deus que tor

3.

A fé crista ensina que, no inicio da historia, os pri-

na o homem filho de Deus. Vai-se desabrochando á guisa de sementé no cristáo, de modo a habilitá-lo a ver a Deus face-a-face no termo desta peregrinaclo terrestre. É, portante, algo que eleva o homem ácima de si mesmo, tornando-o, em sentido singular, filho do Pai Celeste. Nao decorre da natureza do próprio sujeito, mas, ao contrario, é-lhe gratuitamente outorgado pelo Senhor Deus como um dom sobrenatural. meiros homens foram dotados de graga santificante ou eleva dos a urna ordem de coisas sobrenatural.

Note-se, de passagem, que nos últimos tempos esta pro-

posicáo tem sido silenciada ou mesmo rejeitada por parte de autores católicos. Todavía ela faz parte integrante do patri monio da Revelagáo crista, de tal sorte que nao é discutível; ao estudioso compete apenas verificar que nao é absurda e que está suficientemente atestada pelos documentos da fé e pelo magisterio da Igreja. — Nao há dúvida, tal proposigáo de fé é conciliável com os dados científicos da paleontología e da prehistoria, pois nao significa que os primeiros homens e a

natureza irracional tenham tido configuragáo extraordinaria (a elevagáo do primeiro homem á filiacáo divina e os dons con

comitantes podem ser concebidos como algo de meramente interior e espiritual, que se manifestaría exteriormente se o homem nao tivesse cometido o pecado original).

Os primeiros homens pecaram, perdendo assim o estado de fíliagáo divina ou de graga santificante, em que haviam sido constituidos. Passaram a existir num estado dito «de natureza (outrora) elevada e (depois) decaída» — natureza que, como

mostra a experiencia, é rebelde a Deus, contaminada pela desordém de seus afetos e pelo egoísmo.

4. Deus Filho assumiu essa natureza humana; destruiu-a sobre a Cruz e ressuscitou-a ao terceiro dia, restaurando assim o homem. Ele reapareceu após a morte como «a nova criatura». — 205 —

22

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS*

161/1973

Destarte obteve para o género humano a possibilidade de chegar de novo á visáo de Deus face-a-face. Em conseqüéncia, a nossa natureza, após a obra de Cristo, é «a natureza humana (outrora)

elevada,

(posteriormente)

decaída e

(finalmente)

restaurada na sua dignidade sobrenatural». A grasa santifi cante que Cristo nos mereceu, é comunicada aos homens pelos

sacramentos, dos quais importa salientar o Batismo e a Euca

ristía. A vida crista nao é senáo viver em grasa santificante, favorecer o mais possivel o desabrochar da graca santificante ou da filiacáo divina que o Batismo e a Eucaristía comunicam ao cristáo. 5. Pergunta-se agora: quais as relajóos entre «natureza» e «graca»?

— Tem-se dito classicamente que «a graca nao destrói a

natureza, mas a supóe e aperfeicoa».

Estes dizeres de S. Tomás podem ser interpretados no sen

tido de que todos os apetites e tendencias nao absurdos natureza humana podem e devem ser favorecidos na vida um cristáo. Seria vá a ascese, que ensina a necessidade de mortificar a carne. — Nao é, porém, em tal sentido que deve entender o axioma citado. Ele exige urna distingáo:

A graga supóe a natureza e a

aperfelgoa

da de se so

í »a ordem «ntológica: SEVI

| na ordem histórica: NAO

Na ordem ortológica... Isto quer dizer: considerando-sc

os seres de maneira abstrata, num plano filosófico e académico, é claro que a graga santificante supóe a natureza humana; ela nao é dada a seres irracionais (animáis, vegetáis, minerais...),

pois estes, nao tendo faculdades espirituais, sao incapazes de chegar a contemplar a Deus, Espirito Puríssimo. É claro tam-

bém que o ser humano, portador da graga santificante, é ex

traordinariamente nobilitado.

Na ordem histórica... Quando passamos do plano abstrato,

académico, para a realidade concreta e existente, devemos dizer

que a graga de Deus encontra a natureza humana desregrada e rebelde; por conseguinte, ela nao pode deixar de exigir mor tificado e purificagáo dessa natureza. Vé-se, pois, que nao se

pode dizer que, na ordem real em que vivemos, a graga se so-

brepóe simplesmente as tendencias da natureza e as confirma. _ 206 —

VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS

23

6. A exigencia de purificagáo da natureza ou de ascese e renuncia, para que possa haver santificagáo, decorre necessariamente da visáo que a Revelacáo crista propóe a respeito da natureza humana. Essa mortificagáo nao consiste apenas em

reeducagáo psicológica, nem em exercícios de higiene mental ou de educagáo física; ela é muito mais profunda; provém da consciéncia de que o «velho homem» (a natureza desregrada), no cristáo, tem que ser transformado pelo «novo homem» (pela vida de Cristo), o amor próprio pelo amor a Deus. Diz o Senhor Jesús no Evangelho: «Se alguém quiser salvar a sua vida, perdé-la-á» (Le 9,24), e: «Se o grao de trigo, caindo na térra, nao morrer, nao dará fruto. Se, porém, morrer, dará fruto múltiplo» (Jo 12,24). 7. Compreende-se que a saúde psíquica do sujeito possa ter influencia na sua santificagáo. É de supor que urna pessoa

afetivamente equilibrada oferega campo fértil as inspiragóes

da graga; a superagáo de estados psicopatológicos e a procura de urna personalidade normal sao elementos importantes para

que a agáo da graga se possa desenvolver com fecundidade

ñas almas. Todavía é preciso nao esquecer que os recursos da

psicología e da medicina, embora possam contribuir para for mar ou reajustar urna personalidade, nao fazem o cristáo como tal; afetam apenas o substrato natural (que é o psiquismo) da vida sobrenatural ou crista. Por conseguinte, nao se pode dizer sem mais que «aperfeigoar os valores humanos é identificar-sj progressivamentc com Cristo, o homem perfeito, e, por Ele, com

Deus». O aperfeigoamento de valores humanos, realizado ño

plano meramente humano (nao elevado á ordem sobrenatural ou crista), certamente concorre para aproximar alguém de Cristo, o Homem Perfeito, mas nao identifica (no sentido cris táo) com o Senhor. A identificagáo com Cristo de que falam

os escritos do Novo Testamento, supóe sempre os sacramentos

e a conduta devida daí decorrente — a morte ao pecado e a entrega a Cristo Jesús —, como atestam as epístolas de Sao Paulo (cf. Rom 6).

Em vez de se dizer que «tornar-se homem perfeito equivale

a tornar-se perfeito cristáo», deve-se afirmar o inverso: tornar

se perfeito cristáo redunda em tornarse homem perfeito. Em outras palavras: morrer e ressuscitar com Cristo todos os días

nao pode deixar de enobrecer a pessoa humana; purificando-se na ascese, na humildade, na paciencia e no amor, o cristáo encontra melhor sua personalidade humana. — 207 —

24

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

lfil/1973

8. Hoje em dia acentua-se muito o misterio da Encarna cáo ou o fato de que Dcus se fez homcm; da¡ se deduz um conceito otimista de natureza humana. Nao se pode, porém,

ignorar que a Encarnacáo estava voltada para a Redengáo ou

para o misterio da cruz, da morte e da ressurreigáo. Se somos solidarios com Cristo pelo misterio da Encarnacáo, nao Lhe

devemos ser menos unidos no misterio de Páscoa ou da cruz, da renuncia e da ressurreigáo.

9. Talvez, porém, alguém diga: a proposicáo de renuncia é demasiado estranha á mentalidade moderna. Nao encontra eco quem fala de mortificagáo ao homem de hoje; antes, afugenta-o,

desanima-o. A única mortificagáo que ainda seja aceita, é a que vem imposta pelas exigencias da medicina ou da higiene mental.

— É preciso reconhecer: a expressáo «renuncia a si mesmo (ou ao velho homem)» por vezes pouca ressonáncia encon tra. Todavia nem por isto se pode deixar de apregoar a fé crista com todos os seus genuínos elementos; a fé sempre teve e terá algo de absurdo aos olhos da prudencia humana; já Sao Paulo o notava: «Nos pregamos o Cristo crucificado, escándalo para os judeus, loucura para os gentíos» (1 Cor 1,23). Note-se que, sem mortificacáo, nao há auténtica vida crista, nem mesmo auténtica vida humana. A perfeigáo nao pode deixar de ser algo de custoso, algo que exija generosidade (essa generosidade sem a qual nao há nobreza de alma).

É necessário, porém, (e isto é muito importante!) nao falar, sem mais, de renuncia a pessoas que nao estejam prepara das para tanto. Levem-se em conta os temperamentos e as reagóes da sensibilidade de cada pessoa. A graca de Deus age

no intimo de cada individuo, dando-lhe aos poucos a compreensáo do misterio da cruz e de suas exigencias; convém que o educador e o diretor de almas acompanhem esse trabalho da graga, que o secundem, e nao se lhe antecipem.

É preciso também nunca separar a idéia de ascese ou re

nuncia da perspectiva a que tende: a perfeita uniáo com Deus. O Cristianismo é mensagem essencialmente positiva e nobilitante; a ascese vem a ser mera via ou mera fase de

transigáo

num programa de vida crista. A generosidade com que alguém se separa de si para seguir o Cristo, é a mais rica fonte de paz e alegría, como ensina a experiencia. — 203 —

VALORES HUMANOS E VALORES CRISTAOS

25

10. Há, porém, quem ainda objete: a ascese e os atos de renuncia cmpreendidos por certos santos parecem, antes, expressóes de loucura ou desequilibrio mental do que de sá piedade: privaram-se sistemáticamente de satisfagóes legítimas, humilharam-se a ponto de passar por insensatos... Nao seria isso expressáo de masoquismo, de espirito doentio, complexado ou fracassado, fenómenos que os psiquiatras apontam em indi viduos anormais ou dementes? Em resposta, dir-se-á que houve, e há, pessoas muito san tas, mas, nao obstante, psicológicamente anormais; tenha-se em

vista o caso clássico do Pe. José Surin, considerado em PR 47/1961, pp. 459-468. Doutro lado, é mister reconhecer que muitas práticas 'á primeira vista desconcertantes se registraram na vida de pessoas que por certo nao eram anormais. Verdade é que raras sao as pessoas completamente nor máis, do ponto de vista psicológico; é justamente o pequeño de sequilibrio de predicados de alma que caracteriza cada personalidade, imprimindo
11. Os santos se colocam no plano das grandes personali dades da historia, nem mais nem menos normáis do que os outros vultos notáveis que marcaram os tempos passados. Sao numerosos

os episodios

que demonstran!

terem

os

santos praticado seus atos de austeridade dentro de toda a sanidade mental, alheios a masoquismo ou outras taras. Tenha-se em vista, por exemplo, o caso de Sao Francisco Xavier (U552):

Narra Rodríguez, na base das confidencias de Francisco Xavier, que este, em juventude, sentía especial repugnancia por determinado doente a quem ele devia servir num hospital

de Veneza. Desejoso de vencer este asco, Francisco resolveu um

belo dia levar á boca o pus de urna úlcera. Ora por toda a noite seguinte disse o santo que lhe parecerá ter guardado esse

pus na garganta. — Isto bem demonstra o grau de violencia

que Xavier fez as suas tendencias naturais, praticando tal ato. Nao foi, pois, algum instinto depravado ou tarado que o levou a exercer tal mortificacáo, mas, sim, o puro amor cristáo que ele dedicava ao próximo e que seus instintos naturais tendiam a entravar...

O gesto de S. Francisco Xavier e outros semelhantes que se léem na vida de grandes santos, devem-se a impulsos extra— 209 —

26

«PERGUN'TE

E

RESPONDEREMOS*

161/1973

ordinarios da grac.a de Deus, aos quais esses justos responderam com generosidadc e coragem nao menos extraordinarias. É certo que a graea moveu os santos ao heroísmo segundo as categorías de pensamento e conduta do seu tempo. Tais expressóes de generosidade nao sao obrigatórias para cristáos de outras épocas (ninguém é obrigado a lamber as chagas do seu próximo para lhe demonstrar amor). O Espirito de Deus inspira a cada cristáo os gestos que

realmente

mais

represe ntem o

ideal da magnanimidade e do heroísmo para tal cristáo.

2.

Yoga e Cristianismo

1. A Yoga ó urna faceta da filosofía hindú associada a urna técnica de ginástica corpórea e higiene mental. Já foi apresentada em PR 16/1959, pp. 139-146. Em conseqüéncia, aqui seráo propostas apenas consideragóes sumarias sobre o assunto com vistas á temática destas páginas. Como filosofía, a Yoga supóe o panteísmo. Ensina que Deus nao se encontra fora do homem, como ser transcendental.

O espirito humano é parte do Espirito Universal ou do Prin cipio Divino (Divindade). Nao há distincáo essencial entre o espirito humano e o Espirito Divino, nem entre o mundo e a Divindade; o homem é centelha emanada do Fogo Divino. O ser humano é habitualmente solicitado pelas coisas ex teriores e visíveis, que sao realidades ilusorias. Estas o impedem de tomar conhecimento do seu verdadeiro Eu. Por isto o yogui (assim se chama quem praticava a y-ga) procura evadir-se das coisas exteriores e visíveis e concentra-se em si mesmo. Pelo exercício tenaz de concentragáo, esforc.a-se por atingir a centelha divina que, colocada no seu íntimo, constituí o seu verdadeiro Eu.

Para chegar a tal fim, o yogui praticada a meditacáo, na qual ele procura esvaziar-se de todos os seus conceitos ha bituáis, fazendo de sua mente urna folha branca. E, a fim de meditar com todo o proveito possível, o yogui se empenha ardorosamente por tornar-se senhor do seu corpo o de todos os seus movimentos naturais. Para tanto, pratica a abstinencia e exercícios ginnstico-respiraíórios: a Yoga propóe 84 posturas (asanas), que visam a estimular o

metabolismo, ativam a circulagáo do sangue, fomentam o fun— 210 _

VALORES HUMANOS E VALORES CRISTÁOS

27

cionamento das glándulas e acalmam os ñervos, proporcionando ao espirito a paz e o bem-estar oportunos para a concentracio. 2. A Yoga tem-se difundido no Ocidente. No Brasil, so ciedades e escolas a transmitem ao público. Pergunta-se: será lícito a um cristáo aceitar esse sistema? — Distinga-se entre a filosofía da Yoga e os exercícios ginástico-respiratórios que esta ensina. a) No que diz respeito á filosofía, é claro que o pensa-

mento yoguino nao se concilia com o pensamento cristáo. Aquele é panteísta, identificando Deus e o homem, ao passo que o Cristianismo concebe Deus como o Ser Supremo trans cendental, do qual o homem é criatura produzida a partir do nada. O ser humano nao é centelha do Fogo Divino, caso se

queira com isto dizer que é parcela da Divindade. É, sim, imagem e semelhanga de Deus na medida em que tem inteli

gencia e vontade; Deus, que é a Suma Inteligencia e o Primeiro Amor, foz o homem dotado de inteligencia e amor.

b) No que diz respeito á técnica somática c respiratoria, a fé e a moral cristas nao se opóem a que o cristáo a pratique. Poderá ser-lhe útil como disciplina da alma e do corpo; inega-

velmente tais exercícios podem favorecer, em muitos casos, a

saúde do corpo e a higiene da mente. Ora o bom funcionamento das faculdades físicas e psíquicas do individuo é pre cioso para que o homem corresponda plenamente á grac.a de Deus. É por isto que certas comunidades ou sociedades cristas oferecem ao público cursos de exercicios de Yoga.

É preciso, porém, que, ao praticar a Yoga, o cristáo sa

desvencilhe dos pressupostos filosóficos dessa escola; a finalidade do cristáo-yógui nao é encontrar a parcela de Divindade oculta em sua alma; ele procura apenas um subsidio que o

ajude a dominar as paixóes e a disciplinar seus pensamentos

o afetos.

Este mesmo

objetivo,

alias,

tem sido almejado e

alcancado pelos ascetas cristáos desde os primeiros sáculos me

diante práticas de jejum, vigilias e outras mortificaeóes que

subordinam a carne ao espirito. Vé-se, pois, que a disciplina psicossomática fez e fará sempre parte da vida crista. Apenas

a mentalidade crista difere radicalmente da do yogui. Como acaba de ser dito, o cristáo sabe que se mortifica com o auxilio da graga de Deus, a fim de levar o seu — 211 —

batismo

(morte e

28

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

ressurreigáo com Cristo) até as últimas conseqüéncias; é á vida sobrenatural que o Pai do céu lhe outorgou gratuitamente pelos sacramentos, que ele quer dar plena expansáo em sua alma.

Observa-se, porém, que nao raro, juntamente com os exercícios da Yoga, também as idéias filosóficas do hinduismo se introduzem na mentalidade de certos cristáos; estes váo assimilando, consciente ou inconscientemente, as concepgóes gerais e as nogóes de antropología e religiáo do panteísmo. Em conseqüéncia, tendem a identificar disciplina c reeducagáo psicológica com aséese e perfeigáo cristas; o homem «realizado» poderia ser tido como bom ou perfeito cristáo — proposigáo esta que nao corresponde á verdade, como atrás foi dito.

Na realidade, é servindo a Deus que o homem reina.

E.M. (Eecife): O amigo pergunta se as confissóes comunitarias sao permitidas fora dos casos de guerra ou calamidade. Pede resposta explícita.

— O que de mais explícito se possa dizer sobre o assunto se encontra no documento publicado pela S. Congregacáo para a Doutrina da Fé aos 16/VI/72. Este documento, já comentado em PR de 1972, pode ser assim sintetizado: 1) O sacramento da Penitencia, com a acusagao Individual e es pecifica dos pecados, é o meio normal para se obter o perdáo das faltas graves, como ensinou o Concilio de Trento.

2) As vezes, porém, nao há sacerdotes suficientes para atender As confissdes individuáis e — mais — nao se pode protrair indefinida mente a participado dos fiéis na Eucaristía. Em vista dessas sitúacSes. a S. Sé deixa a criterio de cada bispo estabelecer se, e quando, na sua diocese tais condicocs de grave penuria existem; em caso posi tivo, poderá o bispo permitir que, em ocasides devidamente estipula das, o sacerdote dé a absolvicáo coletiva. 3) Aos fiéis assim absolvldos fica a obrigacáo de se confessarem dos pecados nSo acusados desde que tenham a oportunidade de o fazer (no máximo, dentro do iim ano). Nao lhcs é lícito procurar nova absolvicao coletiva antes de tal confissáo.

4) Abstenham-se os sacerdotes e os fiéis de se colocar voluntaria mente em situagóes que impossibilitem o atendimento dos penitentes em confissáo auricular.

Antes, é preciso que os sacerdotes se empe-

nhem por exeroer integralmente o ministerio sacerdotal, dispondo-se a administrar devidamente o sacramento da Penitencia.

5) A confissáo dita «de devogáo» (para os casos de pecado leve

apenas) é válida e recomendável.

— 212 —

Como se explica?

o menino jesús de prasa

Em sfnlese: Na Idade Media, intensUlcou-se a piedade dos fiéis para com as fases terrestres da vida de Cristo ; além do presepio (que se deve a S. Francisco de Assis em 1223), foram sendo confeccionadas estatuetas do Menino Jesús destinadas a alimentar a piedade dos fiéis para com a Infancia de Cristo. A Espanha no séc. XVI, sob a Influencia de S. Teresa de Avila, tornou-se um foco que Irradlou tal devocáo por toda a Europa. É neste contexto que se sitúa a orlgem da devocSo ao Menino Jesús

de Praga: no séc. XVII a princesa Polixena de Lobkowitz levou da Espanha para Praga (Tchecostováquia contemporánea),

como

presente de nupcias,

urna estatueta do Menino Jesús em cera; em urna máo o "pequeño Reí" trazia o globo terrestre, e com a outra abencoava; em 1628 a princesa

doou tal imagem ás Carmelitas de Santa María da Vitoria em Praga. A imagem tornou-se entfio estimulo da piedade dos fiéis, que Ihe atribulan) milagros e conversóos. Em 1641 construiu-se em Praga um oratorio prúprto para o Menino Jesús, com urna ermida anexa. A devocáo propagou-se aos

poucos por todo o povo de Deus. Alias, existem outras Imagens do Menino

Jesús na Alemanha, na Italia..., ditas "milagrosas".

A rigor, pode-se crer que Cristo tenha Intencionado asslnalar de modo especial a sua misericordia manifestándose em determinado santuario (como o de Praga) com milagres e gracas extraordinarias. Quem julga que Isto de fato se deu, pode tranquilamente orar a Cristo, lnvocando-0 como o

Menino Jesús de Praga. Todavia é preciso evitar que tal devocSo degenere em supersticSo e fanatismo. NSo há oracdes "fortes" ou oracSes que obtenham Infalivelmente a graca que se pede; verdade é que a orac&o bem felta nunca é perdida; mas Deus nem sempre Ihe responde nos termos

exatos que o orante Lhe aprésenla, pois Ele sabe mellior do que nos o

que nos convém. Ademáis nSo se perca de vista que Cristo, como homem, é sempre o Grande Sacerdote ou Mediador que nos leva até o Pal.

Comentario: É muito comum, até nos jomáis destinados ao

grande público, encontrar-se

a

oragáo

ao

Menino Jesús de

Praga e o testemunho da gratidáo dos fiéis por gracas recebidas do Mesmo.

Ás vezes esta forma de devogáo chama a atengáo por sua índole exuberante e pela insistencia com que é propagada. Eis — 213 —

30

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

1(51/1973

por que parece oportuno recolocá-la no seu contexto histórico, a fim de se poder julgar o seu significado.

1.

A piecfade para com Jesús-Menino através «ios séculos

Distinguiremos tres etapas principáis neste percurso histó rico: a piedade dos antigos crisláos; a da Idade Media e, por fim, a da época moderna (que comeca com o sóc. XVI). 1.1.

Os prímeiros séculos do

Cristianismo

As primeiras geracóes cristas se detinham principalmente no misterio de Cristo como tal, sem dar importancia particular a alguma das fases da vida do Salvador, excetnada a sua «hora» (a Paixáo e glorificacáo do Senhor, conforme Jo 17,1). Todavía a partir de fins do séc. I as controversias doutrinárias movidas pelo docetismo, o marcionismo, o maniqueismo e outras tendencias heréticas obrigaram os mestres e pregadores a considerar mais atentamente as diversas fases da vida terrestre de Cristo, inclusive a sua entrada no mundo. Em conseqüéncia, predominam nos escritos dos doutores e mestres

dos primeiros séculos cristáos reflexóes de Índole elevadamente teológica e de profunda riqueza doutrinária, mas assaz sobrias em afetos e sentimentos para com o Menino Jesús.

Na liturgia, a celebracáo do Natal e da Epifanía por certo inspirou a piedade crista. Nota-se, porém, que a liturgia era, em grande parte, inspirada pela preocupacáo de por em relevo

a Divindade de Cristo e a realidade do misterio da Encarnagáo, dado que o arianismo, o nestorianismo e o monofisismo nos séc. IV/VII disseminavam falsas concepcóes a respeito. Ao mesmo tempo que os mestres cristáos muito se empenhavam por afirmar a reta fó em Cristo Deus e Homem frente as heresias, a literatura popular ia-se ampliando com o surto de numerosos escritos apócrifos, isto é, escritos que por seu

estilo imitavam os Evangelhos canónicos, mas na verdade se deviam tisfazer bíblicos outros,

a autores dos séc. m/VI. Esses escritos tendiam a saá piedade popular desejosa de saber o que os textos mesmos nao diziam a respeito de Cristo. Tais sao, entre «O livro da Infancia de Jesús» ou «Evangelho do — 214 —

O MENINO JESÚS DE PRAGA

3l

Pseudo-Mateus», o «Evangelho árabe da infancia», o «Evangelho armenio da infancia», a «Historia de José carpmteiro», o «Protoevangelho de Tiago», o «Evangelho de Tomé»... Essas obras dáo livre curso á imaginagáo e ao portentoso: narram milagros realizados pelos panos do Menino Jesús ou pela agua do seu banho, o prodigio da palmara que se inclinou para dar frutos a Sagrada Familia, a queda dos Ídolos no templo de Sotina quando ai entrou o Menino Jesús... A figura de Jesús Menino ai é muito focalizada, mas em termos que por vezes sao de nítida ficeáo. Como quer que seja, urna das fortes ten dencias da literatura apócrifa ó demonstrar a Divindade da Cristo já nos seus primeiros anos de vida terrestre. Passemos agora á 1.2.

Idade Media

A partir dos séc. DC/X nota-se nos textos dos mestres e

na piedade popular forte preferencia pelas narragSes e descricóes históricas, ficando para segundo plano as elaborac5es teo lógicas. Este fato se explica bem: de um lado, as grandes heresias estavam superadas (em 680/681, o Concilio de Constantinopla III encerrou as controversias cristológicas). De outro lado, as viagens de peregrinagáo dos cristáos ocidentais á Térra Santa, as Cruzadas e suas narrativas despertavam interesse crescente pela vida humana de Jesús, principalmente pelos seus dois polos extremos (a infancia e a Paixáo gloriosa). Em con-

seqüéncia, a piedade medieval, máxime a partir dos séc. XII e XIII, foi muito marcada por duas características: o gosto do concreto e a afetividade.

O gosto do concreto levou S. Bernardo (f 1153) a urna piedade muito viva e penetrante para com a infancia de Jesús e a figura da Virgem Máe, contempladas no Natal, na Circun-

cisáo,

na Epifanía, no Anuncio do anjo a Maria...; Sao

Francisco de Assis (f 1226) voltou-se com predilecáo para a

Natividade do Senhor; quis que o Natal fosse festa até mesmo para os animáis. Com efeito, cm Greccio no ano de 1223 Fran

cisco, desejando celebrar o Natal, encontrón num bosque urna

escavagáo em forma de gruta; mandou entáo colocar ali urna mangedoura com o boi, o asno e feno. Nao cuidou das estatuas

da Virgem, de S. José ou do Menino. Somente em visáo é que um dos irmáos viu nesse conjunto o Menino Jesús. A confecgáo

do presepio, provavelmente assim inaugurada por S. Francisco de Assis, se tornou comum; mostrava-se também o Menino — 215 —

32

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

lfil/1973

Jesús num bergo que os fiéis empurravam devagar; podia-se também encontrar a representagáo de um anjo a ensinar o Me nino Jesús a caminhar...

Muitos escritores de espirituaiidade medievais propagaram a devocáo ao Menino Jesús. Assim Elredo de Lievaulx, no seu «Tratado sobre Jesús aos doze anos» (cd. Migne lat. 195, 361-500); Sao Boaventura nos escritos «Sobre cinco festas do Menino Jesús» e «Lenho da vida». Certos tratados de piedade ensinavam aos fiéis como assistir á Virgem Máe ao enfaixar, ao bercar e ao lavar o Menino Jesús; ensinavam também a arte de «brincar» com o Menino Deus. Contavam-se entáo numerosas visóes ñas quais aparecía o Menino Jesús: a de S. Elisabete de Schonau, a de S. Clara (que, enferma e impossibilitada de assistir á liturgia de Natal, contemplou o presepio armado por Sao Francisco), a de S. Ángela de Foligno e, principalmente, a da Venerável Margarida Ebner, que gozava de amizade especial com o Menino Jesús. No fim da Idade Media teve surto o costume de confec cionar estatuetas do Menino Jesús. Os motivos inspiradores dessa praxe sao múltiplos:

— o desejo de prolongar o culto tributado a Cristo por ocasiáo do Natal;

— o desejo de conservar a lembranga de urna peregrinagáo

feita á Térra Santa (muitas estatuas eram trazidas da cidade de Belém, ou do lugar da natividade do Senhor);

— a recordacáo de milagros, segundo os quais Jesús Me nino teria aparecido a certos fiéis na hostia consagrada (a Eucaristía e o Menino Jesús eram intimamente associados entre si pela devocáo medieval);

— a intencáo de proteger a construcáo de urna casa (em

algumas regióes da Bélgica e da Alemanha, colocavam-se es

tatuetas do Menino Jesús em terracota ou argila nos funda

mentos das casas).

De modo geral, a pintura, a poesía e as artes medievais

(inclusive o teatro com seus autos e misterios) exaltaram eloqüentemente o Menino Jesús, a Virgem SS. e os episodios da

infancia do Senhor; os relatos dos apócrifos foram nao raro utilizados como fontes inspiradoras dos temas dessas expressoes — 216 —

O MENINO JESÚS DE PRAGA

33

de arte. Os cartóes congratulatorios de inicio de ano traziam

muitas vezes a imagem do Menino Jesús.

Este desabrochar da devocáo ao Divino Menino chegou ao seu auge nos séc. XVI/XVII, como abaixo veremos.

1.3.

A partir do séc. XVI

Foi na Espanha que a piedade dos fiéis mais se voltou para Jesús Menino no séc. XVI. S. Teresa de Ávila (f 1582) deixou apenas breves poesías sobre Natal e Epifanía, mas muito propagou as estatuetas do Menino-Deus: em suas viagens, ela freqüentemente levava nos bragos uma ¡magem do Menino Jesús. Em Villanueva de Jara (1580), uma das últimas fundagóes de Carmelo empreendidas

por Teresa, a santa exortou a provedora do convento, Ir. Ana de S. Agostinho, a que recorresse ao Menino Jesús; Ana entác orou diante dele com palavras cheias de ternura, e conseguiu que muitas de suas dificuldades de ecónoma e priora fossem

dissipadas por intervengáo do Menino Jesús.

Na Espanha, difundiu-se o costume de representar o Me nino Jesús como Rei triunfante, aureolado, a segurar o globo da térra e a cavalgar sobre uma águia. Um companheiro do

navegador espanhol Fernando de Magalháes em 1521 teria deixado uma dessas estatuetas em Cebú ñas Filipinas.

A reforma carmelita realizada por S. Teresa na Espanha

propagou-se logo na Franga; com ela, incrementou-se a devogáo ao Menino Jesús neste país. O Cardeal francés de Bérulle (t 1629) entrou em contato com os arautos espanhóis de tal devocáo e escolheu como priora do primeiro Carmelo refor mado na Franga a Ir. Ana de Jesús, fervorosa devota do Me nino Jesús. Teólogo como era, Bérulle elaborou uma serie de escritos em que desenvolve os grandes temas da piedade para com o Menino Jesús; a dependencia, o silencio, o apagamento, a humildade de Jesús sao considerados por Bérulle como véus que encobrem a riqueza de vida e de poder do Menino Deus: «No Menino Jesús,... há incapacidade, mas muito capaz, isto é, capaz da Divindade e mesmo cheia da Divindade. Há indi gencia, mas cheia de vida, e da vida mais sublime» («Oeuvres de piété» 48,3). — 217 —

34

«PERPUNTE

E

RESPONDEREMOS*

1G1/1973

Oulra notávci porta-voz da devogáo ao Menino Jesús foi a carmelita Margarida do SS. Sacramento (1619-1648) do Car melo de Beaune (Franca). Aos 24 de margo de 1636, cssa Irma reuniu pea primeira vez «os domésticos e associados da familia

do Menino Jesús». Essa «familia» celcbrava o dia 25 de cada mes em memoria da Anunciagáo a María e da Natividade do Verbo, recitava diariamente a «Coroa de Jesús» (12 Ave-Maria o 3 Pai-Nosso); alcm do que, cada um dos devotos procurava

acompanhar, com o espirito e o afeto, todas as acijes, as pnlavras e os misterios de Jesus-Mcnino. Sao Joáo Eudes (f 1680), J. Parisot (f 1678), Jean-Jacques Olier (f 1657), S. Francisco de Sales (t 1622) concorreram, cada qual do seu modo, para incentivar a devocáo ao Menino Jesús. Ela se conservou até os nossos tempos, podendo-se notar que no século XIX se introduziu na piedade católica o costume de dedicar o mes de Janeiro ao Menino Jesús; esta prática inspirou ampia bibliografía e, sem dúvida, fomentou a oragáo e a santificacáo de numerosos fiéis católicos. Resta-nos agora

2.

considerar diretamente

A imagem do Menino Jesús de Praga

1. A tendencia a confeccionar estatuetas do Menino Je sús, que se manifestou na Idade Media, e tomou particular im pulso a partir do séc. XVI (tenha-se em vista S. Teresa de

Ávila), deixou seus vestigios até hoje em algumas famosas es tatuas do Menino Jesús, guardadas' em santuarios próprios. Geralmente se contam milagres obtidos por fiéis que em tais santuarios pediram gracas. É o que dá fama especial a tais esta tuas e seus santuarios.

Vamos enumerar algumas dessas imagens famosas e re-

fletir sobre o sentido teológico que possa ter a respectiva de vocáo.

a) A mais conhecida dessas imagens ó, sem dúvida, a do Menino Jesús de Praga.

Tem sua origem na Espanha do séc. XVI. Com efeito, a princeza Polixena de Lobkowitz levou da Espanha para Praga,

como presente de nupcias, urna estatueta de cera, que repre-

sentava um pequeño roi, que com urna máo segurava um globo — 218 —

O MENINO .TKSUS DE PliAGA.

35

(segundo o estilo espanhol) e com a outra abencoava. Em 1628, a princesa de Lobkowitz doou essa imagem as Carmelitas de S

Maria da Vitoria em Praga. Em 1638, tal imagem tornou-se objeto de culto em toda a Boémia: atribuiam-se-lhe milagres,

conversóes e feitos maravilliosos. Um dos mais ardorosos apos

tólos desse fervoroso movimento de expansáo foi um religioso chamado Cirilo da Máe de Deus (no século, Nicolau Schokwilerg), que desde 1629 dizia ler sido largamente agraciado pelo snu «Jesulein» (pequeño Jesús). Em 1G41, construiu-se em Praga um oratorio, com urna ermida anexa, onde os fiéis podiam passar días de retiro. A estatua do Menino Jesús ai foi entronizada em 1651 e coroada em 1655.

A irradiagáo da devo;áo ao Menino Jesús de Praga foi enorme e duradoura até nossos dias. No século XVm, o racio nalismo e a legislacáo josefista (José II da Austria era o «Im perador Sacristáo», imbuido, porém, de racionalismo e prin cipios antipapais) detiveram um pouco a difusáo da deyocáo ao Menino Jesús de Praga: todavía nño a puderam impedir. Scjam mencionados ainda

b) «II Santo Bambino» da igreja Araceli em Roma, con

feccionado no séc. XVI com lenho do horto das Oliveiras ou Getsémani. É nao raro levado aos hospitais e casas de enfer mos. Na épocas de Natal, torna-se especial objeto da piedade dos fiéis:

c) na igreja de S. Andrea della Valle em Boma, sao vene-

ü'rudas outras duas imagens do Menino Jesús, assim como

d) na Casa das Salcsianas em Viterbo (Italia). Note-se,

alias que a cidade de Lucca (Toscana- se tornou um grande

centro de fabricacáo de «Bambini», que os fiéis levavam para os seus oratorios particulares:

d) na igreja das Dominicanas de Altenhohenau (Austria) existe urna estatua do Menino Jesús do séc. XVI: c) o mesmo se diga com re'agáo ao santuario de Filsmoos (Austria);

f) no

mosteiro

de

Reutberg

(Alemaiüia),

enconüa-se

lambém urna estatua do Menino Jesús, muito venerada pelos fiéis ai agraciados. — 219 --

36

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

1G1/1973

g) Na igrcja de Loreto em Salzburg (Austria), venera-se o «Salzburger Jesulein» (o pequeño Jesús de Salzburgo), muito visitado por peregrinos. Pergunta-se agora:

3.

Qual o sentido de tais devo^óes ?

Respondamos por etapas: 1) É lícito confeccionar imagens e estatuas do Senhor Je sús e dos santos. Tais objetos nao sao o termo da adoragáo dos

fiéis, mas desempenham fungáo relativa: lembram Cristo e os heróis que nos preccderam na vida presente, excitando assim os fiéis á piedade.

2) Ao Senhor Jesús, como Deus, os cristáos pedem gragas; aos Santos apenas rogam que intercedam pelos irmáos na térra e assim lhes obtenham as gragas necessárias para chegarem, também eles, á Casa do Pai.

3) Existe um só Senhor Jesús e, por conseguinte, um só Menino Jesús. Os títulos que se lhe atribuem («de Praga, de Viterbo, de Salzburgo...») apenas recordam manifestacóes especiáis do Senhor aos seus fiéis — manifestagóes ocorridas neste ou naquele santuario...

Pode-se entender que o Senhor Jesús, presente em toda

parte, queira tornar particularmente notoria a sua presenga

em determinado lugar. As criaturas humanas sao psicossomáticas, constando de materia e espirito; por isto sao beneficiadas em sua piedade se podem recorrer a sinais sensiveis para se

excitar na devoclo. A Biblia apresenta numerosos exemplos de santuarios que o próprio Deus, já no Antigo Testamento, quis assinalar com testemunhos especiáis de sua presenga e agáo em favor dos homens; assim os santuarios de Betel, Mambré, Dá, Jerusalém...

No Cristianismo pode-se crer que também haja lugares em que Deus faz notar mais sensivelmente a sua benevolencia a fim de convidar os fiéis a maior fervor e piedade. 4) De modo especial, pode-se crer que realmente em Pra

ga Cristo tenha dado o testemunho de sua misericordia aos fiéis, atendendo a pedidos de gragas, derramando luzes de conversáo, etc. Cada fiel católico é livre para formar sua conscién— 220 —

O MENINO JESÚS DE PRAGA

37

cia a respeito. Caso julgue haver motivos para o fazer, ore ao

Senhor Jesús, tendo em vista a misericordia de Cristo manifes

tada a outros fiéis em Praga. Tal devo;áo é legitima.

5) É absolutamente necessário, porém, que a oracáo inspi rada pela perspectiva de favores notorios ou extraordinarios nao degenere em superstigáo e fanatismo. Deus, sem dúvida, quer que oremos: «Pedi e recebereis; procurai e acharéis; batei e abrir-se-vos-á», diz Jesús (Le 11, 9). Sabemos que nenhuma oracüo bem feita é perdida; mas nao temos garantía alguma de que, orando, seremos atendidos da maneira que estipulamos, recebendo necessariamente o objeto que pedimos. Deus sabe melhor do que nos o que nos convém; por isto pode atender ás nossas preces nao nos dando o que rogamos, mas algo de equi valente ou melhor, mais correspondente ao plano salvifico do Pai.

6) Por fim, diga-se: é para desejar que a figura do Meni no Jesús venerada em Praga nao limite os horizontes espirituais dos fiéis devotos. Nao faga esquecer que Cristo veio ao mundo

para remir os homens do pecado e da morte. O ponto culmi nante da vida de Cristo é a sua Páscoa Morte e Ressurreicáo).

(que inclui Paixáo,

Nao há dúvida, Cristo Homem deve pairar sempre ante

os olhos da mente do cristáo, porque a vida humana de Cristo dá certeza aos fiéis de que a nossa vida humana hoje já foi

vivida e santificada pelo Filho de Deus até ñas suas circuns tancias mais dolorosas. Todavía é preciso nao esquecer que a

humanidade de Cristo nos deve levar a Deus Filho, a fim de

que por Deus Filho vamos a Deus Pai. Em suma: «por Cristo

homem a Cristo Deus; por Cristo Deus (Filho) a Deus (Pai)>.

Vista no contexto de tais idéias, a devogáo ao Menino Je sús de Praga nao degenerará em superstigáo, mas poderá ser estímulo de piedade para os fiéis que a ela quiserem recorrer. Bibliografía:

I. Noye, "Enfance de Jésus (dévotion)", em "Dlctlonnalre de Splrltuallté" t. IV.1. Paris 1960, cois. 652-682.

C. van Hulst, "Créche (dévotion)", Ib. II, 2. París 1953, cois. 2520-2526.

C. van Hulst, "Bambino Gesü", em "Encllclopedla Cattolica" II. Clttá del

Vaticano, cois. 771 s.

H. Klene, "Jesuskind, wundertátiges", em "Lexikon für Theologle und

Kirche", t. 5, Frelburg i./Br. 1960, col. 966.

— 221 —

Lima aparicáo em foco .

a senhora de todos os povos.,

Em síntese: As mensagens da Senhora de Todos os Povos lém sun origem em urna serie de "aparifc'es do María Santíssima" a tima vidente de Amslerdam (Holanda), enlre maico de 1945 e maio de 1959.

Anuncian) calamidades sobre o mundo, mudanzas na Igreja e apresentam María SS. como Senhora de todos os povos, Co-Redentora, Medianeira e Advogada. Estes títulos de María SS. deveriam ser objeto de novo dogma a ser definido pelo sucessor do Papa Pió XII (ou seja, por J060 XXIII).

Que dizer de tais "revelagóes"? — A Igreja admite a possibilldade de auténticas revelagóes particulares. Aplica, porém, criterios rigorosos para

julgá-las; entre esses criterios, está a ortodoxia da doutrina professada pela respectiva mensagem. Ora no caso da vidente de Amsterdam verítica-se

que é muito oportuno o despertar de fervor que ela pode suscitar nos leitores e no povo de Deus em geral. Todavia a predicSo de que María serta solertemente proclamada Co-Redentora, Medíaneira e Advogada nao se cumpriu; o Concilio do Vaticano II pronunciou-se discretamente sobre o assunto, evitando acalorar os debates e as divergencias que nos anos de 1940/1960 se reglstraram em torno de tais títulos na bibliografía teológica. Ademáis a justificativa que a vidente de Amsterdam aprésenla para a Mediacáo e a Senhorla de María é fraca e estranha. É por tais motivos que julgamos poder nfio atribuir crédito ás "revelacdes" doutrínárias de Amsterdam. Dizendo isto, nio tencionamos depreciar em nada a genulna devocao a Maria SS.

Comentario: Vém-se difundindo grandemente os opúsculos e estampas aue transmiten! as mensagens de «Nossa Senhora

de todos os Povos». Tém por base 56 «aparigóes» da Virgem Maria, ocorridas no decurso de quatorzc anos, ou seja, desde 25 de mar o de 1945 até 31 de maio de 1959 em Amsterdam (Holanda): Maria SS., apresentando-se a uma vidente (que desejou ficar no anonimato), ter-lhe-á feito diversas comunicacóes oráis; estas foram consignadas por escrito sob a assisténcia do confessor da vidente, que era o padre dominicano Frelie O. P. As «aparigóes» deram-se geralmente em casa da vidente;

esta repetía o que ouvia, e a sua irmá se encarregava da reda-

gáo escrita das mensagens. Por fim, a vidente completou o texto • __ 222 —

A SENHORA DE TODOS OS POVOS

39

oscrito. Este, ao monos ñas suas primoiras páginas, é um tanto prolixo e, as vezes, obscuro ou hermético. Em linhas gerais, tais mensagens aludem as calamidades

materiais e moráis que o mundo padece. A Virgem SS, porém, promete o finí da era ancíustianie c a viuda do Espirito Santo: "Sabei que o Espirito Santo está mais próximo que nunca; entretanto só vira se o pedlrdes. Desde o inicio Ele já eslava, mas agora chegou o

seu tempo... Procuráis, tentáis aquí e acola. Também a isto a Senhora dará urna resposta. É que o Paráclito integra tudo isto em sua obra. Sabéis o que a Senhora quer dizer: Ele é Sal — Ele é a agua" (aparicSo 51a. do 31/V/1955).

Maria SS. deverá ser reconhecida como a Senhora de todos os povos, como Co-Redentora, Medianeira e Advogada; estes

tres últimos títulos haviam de ser especialmente proclamados pelo S. Padre. Além disto, as aparigóes aludem a diversas na-

c5es (Alemanha, Franca, Inglaterra, Italia, Rússia...); também aludem (segundo os intérpretes) ao Concilio do Vaticano II e á reuniáo de todos os homens num só rebanho sob um só Pastor: "O Senhor e Rei quer conceder a unidade espiritual aos povos deste

mundo, é para isto que envia Miriam ou María — e a envia como Senhora de todos os povos" (36a. visSo, 20/IX/1951). "Vlm dizer a este mundo corrompido e desamparado: uni-vos todos! Vos, cristaos, reencontral-vos uns aos outros junto ¿ Senhora de todos os povos I Asslm como vos en contráis uns aos outros perto da cruz do Fllho!" (41a. vlsSo, 6/IV/1952).

A real presenca de Cristo na Eucaristía é particularmente

incutida — o que seria, como se julga, um eco antecipado da onc:clica de Paulo VI «Mysterium fideb, a qual tinha em mira desvíos doutrinários oriundos na Holanda sobre a Eucaristía. A vidente também terá visto antecipadamente o S. Padre Paulo VI e a visita do arcebispo de Cantuária, Dr. Ramsey, a S. Santidade ocorrida em 1966.

No domingo 11 de íevereiro de 1951, a Senhora de todos

os povos ditou á vidente a seguinte oracáo: "Senhor Jesús

Cristo, Filho

do

Pai, enviai

agora á térra o

vosso

Espirito. Fazel que o Espirito Santo habite no coracáo de todos os povos,

a flm de que sejam preservados da corrupgao, das calamidades e

da

guerra. Se]a a Senhora de todos os povos, que de Inicio fol María, a nossa Advogada. Amém".

O aposto da frase final «que de inicio foi María» causou

estranheza ao Pe. Frehe e ás autoridades eclesiásticas que vi— 223 —

40

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

ram tal prece; na verdade, a Virgcm é e será scmpre María. Por isto quiseram omitir tais palavras do texto a ser divulgado. Em conseqüéncia, diz a vidente que numa aparigáo posterior a Senhora confirmou, com tipo de imprensa, o texto da ora gáo e apresentou a seguinte justificativa:

"Que de Inicio foi Marta significa: multas pessoas conhecem María

como María. Agora, porém, neste periodo novo que se inicia, eu quero ser

a SENHORA

DE

TODOS

OS

POVOS.

Isto,

todos

o

podem

entender"

(2/VII/1951).

Já que nao se dissipavam as dúvidas sobre a discutida expressáo, a Virgem a terá novamente recomendado á vidente em 6/IV/7952: "Dize aos teólogos que nao estou contente com as modificacóes da oragáo. 'Que a Senhora de todos os povos, que de inicio foi María, seja nossa Advogada', deve flcar asslm. O Senhor e Criador escolheu entre todas as mulheres Miriam ou Maria para MAE do seu Divino Filho. Ela velo a ser a SENHORA no sacrificio da cruz..."

A vidente descreveu ao pintor alemáo Heinrich Repke os

tragos da «Senhora de todos os povos» que lhe aparecía: esta

pisa o globo terrestre; em torno da térra vé-se urna multidáo de ovelhas q;ue representam todos os povos; das máos da Senhora jorram raios; por tras da mesma aparece a Cruz do Salvador, e, á guisa de auréola, ao redor da cabega da Senhora, lé-se: «De Vrowe van alie Volkeren» (A Senhora de todos os povos). O trabalho do pintor sofreu numerosos retoques para me

recer finalmente a aprovagáo da vidente em 1951. O Sr. Bispo de Haarlem, D. J. P. Hulbers, em cuja diocese se davam os fatos, levantou dificuldades para permitir a divulgagáo de tal

imagem. Chegou mesmo a retirar a licenga anteriormente con

cedida para tanto, pois foi aberto um processo sobre a autenticidade das aparigóes da Senhora de todos os povos em 1955.

Finalmente a estampa, juntamente com a oragáo «revelada pela

Senhora», foi entregue ao uso do público; o texto, traduzido para 32 linguas, está sendo espalhado com a respectiva estam pa pelos mais afastados recantos do mundo.

Já que as mensagens da Senhora de todos os povos tém despertado interesse e também certa perplexidade, as páginas seguintes proporáo algumas reflexóes

sobre

as

mesmas, no

intuito de ajudar o leitor a se orientar diante das interrogagóes

que o caso tem suscitado. — 224 —

A SENHORA DE TODOS OS POVOS

1.

41

Revelogóes particulares

A fé católica nao recusa admitir que Deus, por soberana e gratuita disposigáo, possa permitir a aparigáo de algum santo ou personagem defunto aos viventes deste mundo. Tais aparigoes sao chamadas «aparigóes ou (quando trazem mensagem) revelagóes particulares», para se distinguirem da Revelagáo pública, que o Senhor Deus fez através da Tradigáo oral e das Escrituras Sagradas. Para se julgar a autenticidade de alguma apanga» ou re velagáo particular, aplicam-se determinados criterios, que podem ser assim compendiosamente recenseados: 1) A «aparigáo» há de ser espontánea, isto é, nao provo

cada por algum «despacho, trabalho» ou artimanha. Os viventes deste mundo nao tém faculdades sobre os seus irmáos que partiram da vida presente, de modo a poder constrangé-los a

«voltar» ou aparecer na térra. Os cristáos podem, sim, pedir a

Deus a intervengáo ou intercessáo dos santos, mas nao a po dem desencadear. — Nisto o catolicismo se diferencia essencialmente do espiritismo e da umbanda, que julgam ter receitas ou passes capazes de atrair a interferencia dos defuntos ou «de sencarnados».

2) A finalidade de urna

aparigáo de santo (a), quando

permitida por Deus, é a confirmagáo dos homens na fé e nos bons costumes. Deus nao realiza portentos ou milagres sem objetivo serio e proporcionalmente imperioso.

3) Caso os dizeres de urna revelagáo particular destoem dos artigos da fé católica e das retas normas da moral, tal «re

velagáo» é comprovadamente falsa; será fenómeno parapsicológico (projegáo da personalidade subjetiva do vidente) ou produto de intervengáo diabólica (o que se pode crer seja mais raro).

4) «Pelos frutos se conhece a árvore» (cf. Mt 7, 15-20). Por conseguinte, se de urna determinada aparigáo decorrem frutos positivos, principalmente no campo espiritual (conversóes á fé, ao fervor da piedade, mudanga de vida moral...),

tem-se indicio de provável autenticidade dessa aparigáo. Também sao criterios positivos e abonadores: a virtude dos viden tes, sua fidelidade á reta doutrina, sua humildade, sua obedién— 225 —

42

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

cia as legítimas autoridades da Igrcja, seu desapego de dinheiro e vantagens materiais...

5) Nos últimos anos, tem-se

multiplicado o número de

ditas aparicóes sobrenaturais. Nao poucas destas foram poste riormente comprovadas como efeitos de imaginacáo fértil, sugestáo forte, alucinacáo patológica ou embuste dos «videntes». Dai a cautela com que as autoridades da Igreja procedem quando se anuncia alguma visáo sobrenatural.

6) Ainda que haja sinais positivos em favor de determina da aparigáo, esta nunca se impóe obrigatoriamente
penitencia, conversáo, oragáo, funcáo de Maria SS. no plano re dentor de Deus...). Em geral, contém proposigóes e exortagóes

que visam a reafervorar o povo de Deus abatido ou angustiado.

Sob a luz destas ponderales, lancemos um olhar para os

fatos relacionados com a Senhora de todos os povos.

2.

A mensagem da Senhora

Alguns pontos das revelagóes feitas á vidente de Amsterdam chamam a atengáo do estudioso e do teólogo:

1) A énfase com que é prometida a efusáo do Espirito Santo O fato de Pentecostés ocorrido no inicio da era crista parece nao ter sido suficiente e definitivo — o que seria erróneo pensar. Tenham-se em vista as seguintes declaracóes atribuidas á Senhora:

"Dlze o segulnte: O TEMPO É CHEGADO. O ESPIRITO SANTO DEVE

VIR A TÉRRA" (44a. vlsao, 8/XII/1952).

"ISTO AGORA É O TEMPO DO ESPIRITO" (43a. vlsao, 5/X/1952). "Ambos agora (O Pal e o Fllho) querem ENVIAR O SANTO' EVERDADEIRO ESPIRITO. So Ele pode trazer a paz" (33a. vIsSo, 31/V/1951).

2) Com grande realce a mensagem promete o envió de Maria — o que é ambiguo:

"Agora o Pal e o Fllho quer enviar a Senhora, enviá-la ao MUNDO

INTEIRO. Pola fol ela que outrora PRECEDEU o Fllho: fol ela que o SEGUIU. — 226 —

A SENHORA DE TODOS OS POVOS

43

Por esta razáo estou AGORA em pé sobre o mundo — o globo —; e a cruz está nele sólidamente flxada e PLANTADA. De novo, a Senhora vem

pór-se em pé dlante da cruz, na qualldade de Máe do Fllho : a Máe que com Ele cumprlu a obra da RedengSo" (31a. vIsSo, 15/IV/1951).

"Vou dlzer-te por que me aprésenlo sob esta forma: EU SOU A

SENHORA EM Pé OÍANTE DA CRUZ. A cabega, as mSos, os pés, asse-

melham-se aos dos homens; o resto do corpo, porém, dá testemunho do Espirito. Porque o Fllho velo por vontade do Pal. E AGORA é O ESPIRITO QUE DEVE VIR AO MUNDO. E eu venho a flm de que rezem neste sentido" (28a. vIsSo, 4/111/1951).

3) Nao poucos tragos da mensagem sao estranhos c pare-

cem exprimir mais fantasía do que auténtica revelagáo sobre natural. Levem-se em conta os seguintes dados:

"A Senhora aparece, tendo nos bracos urna crlanca. Depois, como se houvesse súbitamente desoldó, el-ia a(, de pé sobre o globo. E o globo glra-lhe debalxo dos pés. Ela me fita e diz: 'Vem! Segue-me1. Eu a sigo. É como se estlvéssemos a percorrer o globo. A Senhora volta-se para mlm e. designando o Menino, diz: 'É ele que eu quero novamente levar ao mundo1. Ao dizer Isto, sua cabega oscila sem cessar da esquerda para a dlrelta e da dlrelta para a esquerda.

Eu considero o Menino; mas já nfio ó um Menino; o Menino transformou-se numa Cruz. A cruz cal por térra e quebra-se. Eu vejo o mundo. O mundo iaz coberto de trevas. A Senhora diz: 'Leval-o DE NOVO para este mundo I' Ela designa a Cruz. A Cruz está erguida no lugar central do mundo Urna multldao a rodela. Véem-se all pessoas de toda especie; todas, porém, esqulvam-se da Cruz. EntSo sou tomada de urna extrema fadlga. Quelxo-me disso á Senhora. Ela me responde com um sorrlso. EntSo eu vi: a Senhora aflgura-se-mo agora como sentada numa especie de trono: e o Menino, de quem emana urna grande luz, descansa em seus loelhos. Ela diz: 'Antes de mals nada, voltal para ele. Só entao viré a PAZ VERDADEIRA'" (9a. vlsáo, 29/111/1946). Ou ainda:

"Sucedeu depois disto um lato bem estranho. Do globo tenebroso, surqlram cabecas humanas em grande número. E homens de toda especie sublam lentamente das .profundezas. E els que, de súbito, vl-os todos agru pados na superficie do hemisferio. E eu dlzla de mlm para mlm, ao con

templar aqullo: como ó posslvel que haja tanta dlversldade, tantas ragas entre os homens I

Entfio a Senhora estendeu as máos sobre a multldao e pareceu abengoá-la...

E a Senhora de repente desapareeeu; e o que a substltulu fol urna Imensa Hostia. Urna hostia enorme, mas comum, felta com pfio ázimo,

semelhante ás que se véem na Igreja.

Depois disto, dlante da hostia velo um cálice. Era de um ouro mara-

vllhoso. O cálice entornou-se na mlnha dlrecfio. Um rio de sangue dele — 227 —

44

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

jorrou. Ríos de sangue. O sangue derramou-se pelo globo e escorreu sobre a térra. Aqullo durou tempo conslderável. E o sangue corría em torrentes

incessantes. Eu estava 'tomada de horror. Bruscamente a visao

apagou-se, ou

antes transformou-se na de

urna

só hostia, porém táo esplendorosa de luz que, mais urna vez, precisel proteger-me os olhos com as máos. E também desta feita sentl-me obrigada a olhar o claráo ofuscante. Fitei a hostia. Ela me pareceu entáo ser como um fogo ordinario, porém branco.

No centro, havia algo como urna

pequeña abertura — urna ruptura — nem sel bem como descrever Isso.

De repente, aconteceu como se a hostia explodisse. Déla saiu urna figura. Urna Pessoa que (lutuava: Alguém. Tinha um aspecto táo sublime, dele emanava um tal poder, ¡rradlava urna tal majestade que, tomada de medo, eu mal me atrevía a olhar. E enquanto contemplava este Ser, este Ser único, algo interior me instlgava de continuo a pensar: E todavía eles sao DOIS. Eu, porém, nada mais vía do que UM.

A advertencia durou tanto quanto a visao: E todavia eles sao DOIS. E eis que, NO MEIO DELES, jorrou urna luz. NO MEIO DELES, slm,

urna luz Inefável e, nesta luz, urna Pomba. Salda como o coriseo, ela preclpltou-se em dlregSo ao globo, numa IrradiacSo indizível de táo intensa claridade que, pela terceira vez, precisei proteger-me os olhos com a máo. Embora sentlsse os olhos magoados e a arderem-me, sentl-me nova-

mente obrigada a olhar. Que gloria, que potencia emanava de tudo aqullo!

Duma parte, ELE-DOIS, a Figura flutuante, ñas irradiares de sua majes tade sublime; doutra parte, o mundo, agora Iluminado I" (56a. vlsáo, 31/V/1958).

O leitor mesmo julgará o que estas visóes possam ter de estranho e fantasista.

3.

A Medianeira e Advogada

1. É notoria a insistencia com que a mensagem da Senhora de todos os povos pede a proclamagáo de María como Co-Redentora, Medianeira e Advogada. Assim, por exemplo, refere a vidente as seguintes palavras colhidas na 31» visáo, aos 31/V/1951: "Els que venho; estou aquí em pé, e venho para dizer-te que quero ser María, a Senhora de todos os povos.

Presta atencSo e vé : Eu me mantenho em pé dlante da cruz do Re

dentor; a minha cabeca, as mlnhas mSos, os meus pés assemelham-se aos dos homens; em meu corpo, ressalta a natureza do Espirito.

— 228 —

A SENHORA DE TODOS OS POVOS

45

Tenho os pés firmemente apolados no solo, porque o Pal e o Fllho

quer, nos dias de hoje, enviar-me ao mundo na quatldade de Co-Redentora, Medianeira e Advogada. E ta! será o objeto do novo e derradeiro dogma mariano".

Aos 6 de abril de 1952 (41» visáo), voltava a Senhora a falar; "Dlze aos teólogos: a Senhora estava presente ao sacrificio da cruz. O Filho disse á sua máe: 'Mulher, els o teu filho'. Destarte, ao sacrificio é que remonta esta transmutacao.

O Senhor e Criador escolheu, dentre todas as mulheres, para ser Máe do seu Divino Fllho, Miriam ou Maria. Ela passou a ser a Senhora, Co-Redentora e Medianeira, ao consumar-se o sacrificio da cruz. E foi o Filho quem o proclamou, no instante de retornar a seu Pal.

Eis por que na hora presente estou revelando este nome e dizendo: Eu sou a Senhora de todos os povos, que de inicio fol María. Dize isto aos teólogos. E tal é, para os teólogos, o sentido destas palavras. O tempo atual é o nosso tempo.

O novo dogma, urna vez promulgado, será o último dogma mariano: a Senhora de todos os povos, Co-Redentora, Medianeira e Advogada. Fol para o mundo inteiro que, na hora do sacrificio da cruz, o Filho fez outorga deste titulo. Portanto quem quer que sajáis ou o que quer que tacáis, eu sou para vos a SENHORA".

2. Diante de táo enfáticas recomendagóes do novo dog ma mariano, pergunta-se: que diz a teología atualmente sobre a Mediagáo de Maria na Redengáo do género humano? No sáculo passado, e mais aínda no século XX, foi tomando vulto na bibliografía teológica a tese de que Maria é Medianei ra de todas as gragas distribuidas aos homens ou mesmo Co-Redentora. As maneiras de explicar tais atributos da Virgem

SS. eram variadas e múltiplas; algumas chegavam a exagerar

as fungóes e prerrogativas de Maria, nao ressalvando devidamente o inconfundivel sacerdocio de Jesús Cristo; a piedade mañana foi assim perdendo contato com as suas fontes bíbli cas e tradicionais.

Em 1940-1960 houve mogóes de bispos, sacerdotes e fiéis católicos que pleiteavam da Santa Sé a definigáo de que Maria é a Medianeira de todas as gragas, a Co-Redentora com Cristo...; os teólogos, em livros e artigos que se avolumavam, procuravam

estudar em que sentido exato se poderiam entender tais títulos da .Virgem SS. — Sobreveio o Concilio do Vaticano II (1962-1965). Este d'eixou aos fiéis católicos um capítulo dedicado a — 229 —

46

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

161/1973

María (cf. Const. «Lumen Gentium» c. 8). Neste texto sao exal tados os predicados e o papel que a S. Escritura e a antiga Tradicáo atribuem á Virgem Máe na obra da Redencáo. A ex pressáo «Medianeira de todas as gracas» ai nao se encontra como tal; era relativamente nova e nem sempre clara entre os teólogos. O título «Maria Medianeira» sofreu forte oposigáo por parte de bispos e teólogos do Concilio. Finalmente foi aceito em justaposicáo com outros predicados («Advogada, Auxiliadora, Protetora, Medianeira»), de modo que perdeu no texto conciliar o seu significado técnico e sujeito a ser controvertido. A media gáo de Maria é admitida como continuagáo de sua maternidade. Com efeito, a fungáo maternal de Maria em relagáo a Cristo explica que ela possa ser tida como Máe, Auxiliadora, Prote tora, Advogada e Medianeira dos membros de Cristo Místico ou dos cristáos. Todavía — frisou bem o Concilio — tais fungóes de Maria nao derrogam em absoluto á mediagáo sacerdotal de Jesús Cristo; mas, ao contrario, derivam-se desta como fru tos e expressóes da mesma. Eis a passagem do Concilio que vem ao caso:

"A maternidade de Marta na dispensado da grasa perdura inlnterruptamente a partir de consentimento que ela fielmente prestou na Anun ciadlo, que sob a cruz resolutamente sustentou, até a perpetua consumacáo de todos os eleitos. Assunta aos céus, nao abandonou este salvffico encargo, mas por sua múltipla IntercessSo prossegue em granjear-nos os dons da salvando eterna. Por sua maternal carldade cuida dos irmSos de seu Filho, que ainda peregrinam rodeados de perlgos e dificuldades, até que sejam conduzldos á feliz patria. Por Isso a Bem-aventurada Virgem Maria é invocada na Igreja sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, Proletora, Medianeira. Isto, porém, se entende de tal modo que nada derrogue, nada acrescente á dlgnidade e eficacia de Cristo, o único Mediador" (Const. "Lumen Gentium" rfl 62).

Em suma, a maternidade de Maria, perdurando através dos séculos em relacáo a Cristo Místico, significa igualmente me diagáo ininterrupta na distribuigáo da graga obtida pelo Re dentor. Nota muito a propósito o Padre J. Balot: "Será preferfvel, ao admitir a legitimldade do vocábulo 'medianeira', fazer sobressalr a maternidade de Maria e da Igreja. A [déla de uma colaboracáo maternal para o nascimento e a educacáo dos cristSos surge

notavelmente mais rica do que aquela da medlacáo na dlstrlbuigSo das gracas. Esta última expressáo representarla a graca mals como uma colsa, enquanto as relagdes pessoals se revelam principalmente na nocáo de

maternidade. Nao é falso reconhecer em Maria a Intermediaria que con corre para a concessSo das gracas divinas, mas é mais verdadeiro aínda encontrar nela a m8e que vela pelo desenvolvlmento da vida espiritual de

seus fllhos. E, a exemplo da Virgem, a Igreja se torna mals próxima de nos com o titulo de m3e do que com o titulo de medlaneira" ("A Igreja do Vaticano II". Petrópolls 1965, p. 1184).

— 230 _

A SENHORA DE TODOS OS POVOS

47

3. Voltando agora a considerar as revelacóes de Amsterdam, verificamos que dependiam das circunstancias da época

em que foram feitas; exprimiam o modo de pensar de muitos

fiéis católicos de 1940-1960, mas nao correspondían! ao que haveria de acontecer. Nao somente nao se deu a definicáo dogmática dos títulos marianos preconizados pela mensagem de Amsterdam,l mas atualmente, após o Concilio do Vaticano II, nem os teólogos nem o magisterio da Igreja pensam em pro mover a definicáo de novo dogma mariano. Tem-se, mais do que nunca, consciéncia de que as definieres papáis ou concilia res sao pronunciamentos do magisterio dito «extraordinario» da

Igreja; para que determinada proposieáo possa ser tranquila

mente professada pelo povo de Deus, nao é necessário que o

magisterio extraordinario a defina, mas basta seja reconhecida com unanimidade pelos bispos unidos ao Sumo Pontífice. Estas consideragdes lancam em certo descrédito as noti cias da vidente de Amsterdam relativas á Medianeira. Pode-se dizer que nao foi María SS. quem comunicou tal mensagem, mas foi a própria vidente quem (inspirada por quanto se dizia em seu tempo) a formulou.

Ademáis a fundamentacáo teológica que tal mensagem apresenta em favor dos títulos marianos de «Senhora, Co-Redentora, Medianeira e Advogada» é sujeita a reformulacáo. Com efeito, diz a vidente: "María passou a ser a Senhora, a Co-Redentora e Medianeira, ao consumar-se o sacrificio da cruz. E foi o Filho quem o proclamou, no Ins tante de retornar a seu Pai".

Numa visáo teológica apurada, nao se vé por que assinalar com tanta precisáo o momento em que María terá recebido tais títulos. É, antes, todo o teor da vida e da missáo de María

(desde o sim dito ao Mensageiro da Anunciagáo) que a torna Máe, Senhora, Auxiliadora e Medianeira. A principal prerroga tiva de María SS. é a Maternidade divina; a sua mediacáo na obra da Redencáo há de ser vista estritamente a luz deste titulo máximo da Virgem Máe. 'Na 54a. vIsSo (19/11/1958) a Senhora terá dito & vidente: "O sucessor de Pió XII promulgará o Dogma (da Co-Redentora, Me

dianeira e Advogada)".

Ora o Papa Jo§o dogma algum.

XXIII,

que

sucedeu

— 231 —

a

Pío

XII,

nfio

promulgou

48

«PERGUNTE

E

4.

RESPONDEREMOS»

161/1973

Conclusao

A mensagem da vidente de Amsterdam é válida e aceitável

na medida em que constituí um despertar de consciéncias e urna exortagáo á conversáo para Deus e lá pureza de vida. Parece, porém, temerario atribuir á Virgem SS. os dizeres da mensa

gem. Esta é fantasista demais para poder ser tida como autén tica revelasáo do Céu; traz o estilo hermético e imaginativo que muitas vezes caracteriza a literatura apócrifa antiga e

moderna. Este julgamento nao pretende derrogar em absoluto ao valor da devogáo a Maria SS. Nem seja tido como desestímulo da auténtica piedade. Apenas tenciona fornecer ao leitor os meios para distinguir «mensagens do Além», a fim de que tenha urna fé e urna vida de oragáo firmadas sobre os sólidos

fundamentos da Palavra de Deus, e nao sobre concepgóes de videntes nao autenticadas. A mensagem da Senhora de todos os povos encontra-se em opúsculos de H. A. Brouwer a.a. (C.p. 285, Porto Alegre, RS) e Raoul Auclair (C. p. 310, Rio de Janeiro, GB).

Estévao Bettencourt O.S.B. X

carta aos amigos Da Cidadc Santa üe Jerusalém, onde a Providencia Divina, por meio da bondade de amigos, me quis proporcionar o ensejo de estudos e reciclagem, desejo enviar aos leitores de nosso PR as mais efusivas saudacSes e o testemunho de que lhes continuo muito unido através do espaco.

Vivemos numa fase da historia da Igreja e da humanidade em que os contatos humanos o os confrontos de idéias se fazem especialmente necessários e enriquecem a agáo dos individuos e dos grupos. Os encontros com pessoas que só conheciamos á distancia e a contemplagao de novas facetas da natureza (montanhas, océanos, animáis e flores...) manifestam-nos de novo modo os vestigios do Criador e sua acao eficaz também em nossos dias. Teria muita coisa a dizer aos amigos á guisa de eco das vivencias dos últimos meses. Espero fazé-lo paula tinamente nos próximos números de PR.

1. Como muitos dos leitores sabem, Uve a oportunidade de par ticipar do 40' Congresso Eucaristico Internacional realizado em Mel— 232 —

bourru» (Australia) de 18 a 25 de feveroiro pp. Este certame de íé tove suas notas próprias, que poderiamos assim resumir:

O

número de peregrinos

nao

foi tüo avultado quanto em Con-

gressos anteriores — o que se explica dada a distancia geográfica que separa a Australia do resto do mundo. Nao obstante, vlam-se

Cardeais, bispos, sacerdotes e fiéis de todas as partes do globo... Essa assembléia na parte mais jovem do mundo (a Australia tem apenas

200 anos de vida política) devia significar a presenca da Igreja Cató lica naquele distante continente, presenca táo atuante quanto no Velho

Mundo. Na verdade, o Congresso Eucaristico implicou urna renovacáo e intcnsificagüo da vida católica na Australia: durante meses a fio, as paróquias e comunidades religiosas se prepararam para o grande en contró mediante estudo e trabalho assíduos. O variado programa da semana do Congresso (Missas, conferencias. exposicñes, encontros...)

rovelava densidade de vida católica. Os cantos coráis e as cerimónias foram executados com dignidade c harmonía, que bem traduziam o espirito británico posto a servico do Scnhor e do Evangelho. Notou-se

ecuménica.

na

programacáo

do Congreso

Os católicos representam

urna

forte

preocupagáo

apenas 25% da populacáo da

Australia. Constituem. porém, urna minoria dialogante: as autoridades

religiosas protestantes e ortodoxas, bem como membros do Governo do país, estiveram presentes a diversas funedes do Congresso. Ñas

comissdes organizadoras do mesmo, colaboraram cristáos nao cató licos (nao no tocante á orientagáo doutrinária, mas no setor do atendi-

mento social). Em exposieñes, cartazes e programas era muito enfati zada a cooperagao dos crlstáos em prol da justiga social e do alivio ás populachos que sofrem de íome, desabrigo, molestias, analfabetismo... Dentre os atos litúrgicos da semana, destacaram-se:

a inauguragáo do Congresso, na bela Catedral de S. Patricio, sob a presidencia do Cardeal Lawrence Shehan, arcebispo de Baltimore (U.S.A.) e Legado papal;

— a Liturgia dos aborígenes, no sábado 24/11. Foi entSo celebrada urna Missa em que os primitivos habitantes da Australia executaram suas melodías típicas e representaram artísticamente a Última Ceia

do Senhor. O ato foi altamente original: constituiu urna tentativa de aculturagáo ou adaptagáo da arte de povos primitivos á Liturgia cató lica, sem detrimento para a devida reverencia; — a Missa das Escolas, da qual cerca de 100.000 estudantes de diversas cidades da Australia participaran! ativamente, cantando e aclamando;

o Culto Ecuménico, realizado no Grande Estadio de Melbourne com a presenga de representantes das comunidades anglicanas, pro

testantes e ortodoxas do país. Entre leituras, cantos e preces, todos

os fiéis presentes, de velas acesas na máo, renovaram as promessas

do batismo e recitaram o símbolo da fé;

— a Missa de encerramento, no domingo 25/11, ás 18 h, também

dita «Statio Orbis», ou seja, assembléia litúrgica do mundo inteiro. Foi inegavelmente o digno fecho e o ponto alto da semana. Comecando ás 18 h. esse ato terminou ao por do sol, pois a luz do día no veráo de Melbourne se fazia sentir até as 20 h 30 mm. — Nao houve procissáo de encerramento, em vista do ambiente fortemente protes tante da cidade, mas após a Missa realizou-se breve paraliturgia: um

jovem, um anci&o, urna mulher e um representante de Cristo fizeram

a proclamacao de palavras do Senhor no Evangelho, que exortavam

os cristáos a confiarem no Mestre e a se dedicarem á obra do Senhor neste mundo

que d'Ele tanto necessita. Tal proclamacao foi acom-

panhada pelo toque lianos, que, segundo Tal cenário suscilou 115.000 pessoas, que

de trombetas por parto de marinheiros austra o estilo bíblico, bom lembravam o juizo final. as palmas entusiásticas da densa assembléia de assim puseram o tormo linal ao Congresso.

Deste notável certame de fe nos resta urna mensagem perene compendiada ñas palavras de Cristo tomada como tema-programa do Congresso e constantemente repetidas ñas alocucóes da semana. «Amai•vos uns aos outros como Eu vos amei¿ (Jo 15,12).

«Como Eu vos amoi...» K nesle termo do comparacao quo eslao a forca e a novidade das palavras de Cristo. Os homens de bom senso compreendem som grande dificuldade que devem amar uns aos outros. pois todos sao irmáos entre si. Mas o que lhos podo cuslar, ó seguir

o exemplo de Cristo, quo amou a ponto do dar a vida por seus amigos e inimigos. Tal exomplo ó sobro-humano ou divino. Como podoria o lioinom, deixado a si rnosmo, pó-lo i-m práliea? Cristo, porém, sahin o que dizia: se propós aos sous discípulos um tal p
S. Eucaristía'. É nesta que os.-orisUtos .pgdem "hauriK.asVQrcas necessárias'.para amar realmente 'todo^o's.seuSft.irtpSb^j;- ínesmo,Os que llii* querem mal. Tal ámórfraterh9/há?'dev»SL4\anota;'tip.ica;vdó compoctamento dos discípulos de Cristo nesXe-ímVpiíó/Ke'dunda^em'maior. uni-

dade entre os filho's do mésmo" Pai e mais viva; com preensffó do sofri-.

mentó alheio! 2.

l

.

'

■".' '

A segunda grande experiencia destes últimos tempos tem sido,

para este irmáo, o contato com a Terra'S^nta, que vem a ser contato,

mais vivo com a palavra de Deus e com' todo o plano salvífico que aqui se vem desenrolando desde .os tempos

desde a pré-história, quando

cavernas aínda hoje patentes.

de

Abraáo,

aqui vivía o homem

ou melhor.

do Carmelo ém

Jerusalém está na regiáo limítrofe de tres continentes: a Asia, a África e a Europa. As tres grandes religiocs monoteístas do globo — o Judaismo, o Cristianismo e o Islamismo — aqui tém seus prin cipáis santuarios. Em conseqüéncia, pode-se dizer que Jerusalém é verdaderamente o centro do mundo, como costumavam afirmar os antigos rabinos. Nao foi, portanto, sem especial motivo que a Pro videncia Divina quis escolher esta cidade e as térras vizinhas para fazer ouvir a Palavra feita carne ou a Boa Nova da salvacüo para o mundo inteiro. Ó admirável Sabedoria de Deus, que aprendemos a descobrir todos os dias um pouco mais, até que a possamos contem plar um dia facc-a-faee!

Meus caros amigos, voltaremos a rcfletir sobre a mensagem desta

térra venerável.

Na Semana Santa, que ontem

inauguramos percor-

rendo o caminho que Jesús trilhou de Betfagé a Jerusalém, estarei unido a todos os irmáos em Cristo pela oracáo. De modo especial, desejo deste modo testemunhar a minha profunda gratidáo ao Deputado Alvaro Valle e ao Dr. Eduardo Portella Netto, que, após o Congresso Eucaristico de Melbourne, me possibilitaram esta permanencia na Térra Santa. Em julho pf., se Deus quiser, estarei de volta no Brasil. Entrementes, PR continuará a sair regularmente, contando sempre com a colaboracáo dos seus leitores e amigos. O irmño em Cristo Estéváo Bettcncourt O.S.IÍ.

Jerusalém, 16 de abril de 1973

Related Documents


More Documents from "Apostolado Veritatis Splendor"