Ano Xiii - No. 151 - Julho De 1972

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Projeto

PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de

Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)

APRESErsíTAQÁO

DA EDIpÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa esperanga a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15). Esta necessidade de darmos conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortalega no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site. Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003. Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo. A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

ftLOSOflIX

acucia <

50UTCINA

sísu a MORAL

NO XIII — N?

151

JULHO DE

197

Indiice

Pág.

"TARDE TE AMEI !"

289

Os legisladores discutem :

ABORTO

LEGALIZADO :

SIM

OU

NAO ?

291

Urna alerta:

JESÚS É DEUS EM SENTIDO PRÓPRIO ? A SS. TRINDADE : TRES MODALIDADES DE DEUS ?

310

Um livro original:

"JESÚS DE NAZARÉ" do P. José Comblin

324

Dito e repetido:

"O QUE SE FAZ POR AMOR, NAO É PECADO.

AMA, E FAZE O QUE QUISERES"

332

RESENHA DE LIVROS

338

*

NO

PRÓXIMO

*

o

NÚMERO :

Jesús Cristo era Deus ? Como se prova ? Missa aos domingos ?

O Manifestó dos 33 Católicos e anglicanos concordam

entre

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA

si

PR.

"TARDE

TE

Bill

Existe em nosso vocabulario uma palavra profundamente

sugestiva: descobrir. Como é obvio, ela significa «tirar a coberta ou o véu», a fim de que vejamos plenamente a realidade. Toda descoberta é naturalmente uma surpresa ; ela dá-nos a

conhecer algo que ignorávamos, total ou parcialmente.

Ora pode-se dizer que «viver» é «descobrir». Há descobertas decepcionantes, que causam más surpresas. Mas também há descobertas positivas e alegres... As descobertas negativas abatem a muitos, como se a vida nao tivesse sentido e valor. — Mas será que o ser humano,

táo bem arquitetado como é (que sabedoria nao se reflete num

olho humano, num ouvido...?), carece de sentido ? Será que

a natureza que cerca o homem, com sua harmonía, nao tem significado ? — Após a primeira reacáo amargurada perante as más descobertas da vida, prefiro crer que as decepgóes nao sao algo de definitivo, mas apenas etapas de um processo que terminará bem, muito bem... As decepgóes, fazendo-nos perceber a exigüidade das criaturas, ajudam-nos a olhar para mais longe, na esperanga de que um dia encontraremos a plena resposta.

Quanto as descobertas positivas, sabemos que suscitam imediatamente profunda alegría,... a alegría de havermos encontrado resposta para uma, ao menos, de nossas interrogagóes. É particularmente grande a alegría de alguém que tenha descoberto o sentido da vida; vivía rotineiramente, sem

meta definida, quando finalmente encontrou a razáo de viver. Alguém fez essa experiencia certa vez, de modo clássico.

S. Agostinho (f 430), após ter batido em varias portas, encon trou finalmente a Deus através do Evangelho. E escreveu : «Tarde te amei, Beleza táo antiga e táo nova!' Tarde te amei. Tu ostavas dentro de mim ; e eu, fora de mim. Fora, eu te procurava... Tu estavas comigo, e eu nao estava contigo... Chamaste, e clamaste e abriste meus ouvidos surdos. Resplan-

desceste, e langaste para longe de mim a minha cegueira. Exa

laste de ti odor; respirei; anelo a Ti. Provei; e tenho fome e

sede. Tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz» (Confissóes X 27).

— 289 —

Para quem tenha os olhos abertos e as antenas otiladas para captar, a primeira descoberta nao é senáo o inicio de urna serie de outras, cada vez mais significativas. O homem vai tomando consciéntía de que é quase como urna crianga :

lida com valores imensos, sem o saber. E incita-se a viver mais conscientemente, pois a vida é rica.

Ser como crianca... Esta expressáo é ambigua. Pode significar infantilismo, ausencia de raciocinio coerente, sen

timentalismo. Entáo, como se compreende, é pejorativa. Mas «ser como crianga» também pode ter sentido altamente posi

tivo: o Evangelho apresenta a crianga como modelo aos adultos

(cf. Mt 18,3). Por qué? — Entre outras coisas, porque a

crianga é candida. Ela eré...; ela acredita na vida e nos valores da vida; ela constrói seus planos, seu ideal e_ procura

encaminhar-se para suas metas. Mais tarde, a vivencia do

dia-a-dia, trazendo reveses, vai endurecendo o ser humano e

o torna reservado ou um tanto cético. Quem cede ao ceticismo,

condena-se a um tipo de vida que vem a ser desumana; o homem foi feito para crer.; esta é a atitude mais espontánea e

auténtica do homem, mesmo

(e principalmente)

dos mais

cultos; para encontrar a felicidade, é preciso crer que a felicidade existe.

O cristáo nao pode dizer Sim ao desánimo e ao ceticismo. O Evangelho o convida a guardar sempre em si a candura e a capacidade de crer da manga. Nem por isto o cristáo será simplório ou sonhador alienado. Ele sabe que as criaturas sao sujeitas a falhas. Mas ele eré em Deus, e eré que tudo aquilo que Deus fez e disp5e tem valor. Ele acredita que também os

reveses tém significado,... que a vida sempre merece ser vivida nao por causa das criaturas limitadas que encontramos, mas porque Deus está sempre presente por detrás das criaturas. Cada urna destas, bem como cada acontecimento, é, de certo modo, um véu que encobre o Criador. Quem sabe disto, tenta

descobrir o Criador por detrás das criaturas; nesta afá, que nunca é váo, o homem nao pode deixar de sentir-se profun damente feliz. De descoberta em descoberta, de alegría em alegría1, o viandante vai-se dispondo a encontrar um dia a Face, sem véus, da Beleza Infinita.

«Tarde eu te amei, Beleza táo antiga e táo nova !» E. B.

Nem sempre alegría sensível, mas sempre alegria espiritual.

— 290 —

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS» Ano XIII — N' 151

— Julho de

1972

Os legisladores discutem:

aborto legalizado: sim ou nao?

Em sínlese:

A liceidade ou nao do aborto depende da resposta á

questao: será um feto em seus primeiros días já um auténtico ser humano ou apenas algo de meramente animal ? — A experiencia mostra que os geni tores desde o primelro dia da gestacSo julgam ter um filho em formacSo. A medicina, por sua vez, ensina que desde a fecundacáo do óvulo se tem organizacSo embrionaria e cromossómica característica de um ser humano. A filosofía tende também a reconhecer a identidade humana do feto desde o seu prlmeiro dia de existencia.

Por conseguinte, o aborto vem a ser a extlncáo de urna vida humana em processo de formacio. é agressáo mortífera contra um ser inocente, que tem todo direito á vida, embora aínda nao seja útil e rendável para a sociedade.

Contra esta afirmacao nao prevalecem as razóos aduzidas em favor do

aborto. A medicina nao cabe matar, mas salvar a vida; por conseguinte, o médico jamáis deve indagar: "A quem sacrificar — á máe ou ao filho?"; mas,

antes,

pergunte:

"A

quem

dispensar

os

cuidados

terapéuticos

em

primeiro lugar — á mae ou ao fllho?" De resto, a medicina tem hoje em dia crescentes recursos para evitar os abortos. — As razoes de honra de urna jovem que engravida fora do casamento nao devem mover o senti mentalismo ; nao se saneia um mal (o liberlinismo sexual, ao menos do homem) com outro mal (o homicidio).

O aborto, pois, nao é solucáo para as gestacóes difíceis ou nao de-

sejadas. O que se requer, é que os governos e as entidades particulares déem assisténcia médica e flnanceira ás futuras máes ou ás familias necessitadas; além do que, será necessário reeducar o senso moral da sociedade — 291 —

4

tPERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

e despertá-la para os valores típicamente humanos. O sexo está ligado ao amor e á vida, e nao deve ser objeto de aventuras ou de experiencias des comprometidas.

Resposta: Nos últimos decenios vem-se multiplicando o nú mero de abortos em varios países do mundo; motivos económi cos, psicológicos, sociais respondem por essa onda crescente. Ora as legislagóes civis até época recente tendiam a reprimir ou, ao menos, restringir a prática abortiva. Verifica-se, porém, que a tendencia parece incoercível; o número de intervencóes clandestinas tem-se avolumado, deixando em muitas máes, em nao poucos país e médicos o trauma psicológico resultante nao

só do ato, mas também dessa índole clandestina do ato.

Em vista da seria problemática que assim se coloca, muitos

países tém reconhecido e oficializado a prática do aborto, fazendo-lhe apenas as restrigóes que paregam necessárias para evitar arbitrariedades altamente nocivas á sociadade. As novas legislagóes váo assim avivando ñas consciéncias a questáo seguinte:

Hoje em dia, com o progresso das ciencias, é-nos possível prever com certa exatidáo os resultados indtesejáveis de urna cópula e de um processo de gestagáo; o homem também possui

recursos cada vez mais esmerados para conter tais resultados. Nao lhe seria lícito, portanto, retratar a severa condenacáo do aborto de tempos passados, para aceitar a prática científica e organizada dessa intervengáo?

É a esta questáo que dedicaremos as páginas seguintes, abordando: 1) as possíveis indicagóes de aborto; 2) a resposta da consciéncia; 3) fatos da vida contemporánea.

1.

O problema

Poucos sao os pensadores ou legisladores que pleiteiam liberdade total para os genitores ou para os médicos, a fim de suprimirem urna vida já iniciada (mesmo quando nao reconhecem a essa vida um caráter propriamente humano). Todavía — 292 —

ABORTO EM DEBATE

muitos preconizam urna posicáo intermediaria entre a liberdade absoluta e a condenagáo incondicional de qualquer aborto. Julgam poder justificar o aborto em tres tipos de casos (cujos con tornos, alias, sao um tanto variáveis):

1) Indicagoes terapéuticas: a gravidez constituí ameaca próxima ou remota para a vida da gestante. Pode também por em perigo urna fungáo fisiológica de importancia capital, induzindo, por exemplo, a perda da visáo ocular.

2) Indicagaes eugenéticas: gragas ao progresso da gené tica, é possivel diagnosticar, no embriáo, anomalías dos cromossomos e de suas combinagóes, as quais geralmente Ievam a deformagóes físicas ou á debilidade mental (mongolismo, por exemplo). Também «corre que certas molestias da genitora (a rubéola, por exemplo) sejam tidas como nocivas ao feto. 3) Indicasoes sócio-economicas: as máes solteiras correm o

perigo de perder conceito e honra perante a sociedade ou de sofrer graves traumas psicológicos. Levem-se em conta igualmente

as dificeis condicóes económicas em que vivem certos casáis, nao podendo por isto ter prole numerosa.

Muitos cidadáos julgam que as leis civis deveriam ponderar

estes diversos dados e conceder o aborto em escala relativa

mente ampia. Assim evitar-se-ia a clandestinidade (com suas conseqüéncias) de numerosos abortos que na reaiidade se praticam; extinguir-se-ia mais um foco de hipocrisia; tornar-se-iá

mais científica e atualizada a legislagáo civil de varios países; levar-se-ia em conta a evolugáo dos espirites, que desejam usufruir de liberdade neste setor.

Na Inglaterra, por exemplo, a lei que oficializa o aborto, está em vigor há mais de quatro anos, de sorte que os abortos legalizados estáo em rápido aumento: 54.157 em 1969, 82.000 aproximadamente em 1970; em meados de 1970, a media era de 227 abortos por día.

Na Franga, em julho de 1970, foi apresentado o projeto de lei Peyret, que concede o aborto no decorrer das doze primeiras

semanas da gestagáo por motivos ditos terapéuticos, eugenéticos e sociais, requerendo-se, porém, para a interv engáo o parecer favorável de urna comissáo de médicos. — 253 —

G

«PERPUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

No Brasil fazem-se ouvir vozes cada vez mais numerosas em favor de urna liberalizagáo da legislagáo concernente ao aborto. Esta é tida como inadaptada á nossa realidadie, em que se multiplicam os casos dolorosos de máes que nao querem ter o filho já concebido. O Brasil, diz-se, deveria acompanhar a evolucáo de países altamente evoluídos. Que dizer a propósito?

2.

A resposta crista

A resposta á questáo do aborto oficializado dependerá es-

sencialmente da nocáo de aborto que possamos conceber. Por isto, pergunta-se antes do mais: 2.1.

Que é propriamente um aborto ?

Mais explícitamente: será o aborto a supressáo de urna

vida já humana? Ou será apenas a interrupgáo de um simples processo biológico numa fase aínda pré-humana?

a) Para elucidar a dúvida, partamos do fato seguinte: des de o inicio da gravidez, os genitores, e particularmente a máe, esperam seu filho. Nao tém a possibilidade (nem mesmo o de-

sejo) de distinguir um momento liminar a partir do qual digam:

«Agora é urna crianca que se acha ñas entranhas maternas;

ontem era apenas um aglomerado neutro de células em via de proliferagáo». É certo que o interesse e o afeto dos genitores se váo avivando á medida que percebem o desenvolvimento do em-

briáo e qui2 se preparam para acolher a crianca no lar. Mas aquele ser que os genitores recebem ao cabo dos nove meses de gestacáo, aquela que nasce e se oferece á ternura dos pais, in

citando-as paulatinamente a urna tentativa de diálogo, é esse mesmo ser que os genitores reconhecem ter estado presente no seio materno desde os primeiros sinais de gravidez. É um fru to humano, e nao um mecanismo biológico, anónimo, que comeca a cresccr desde o primeiro dia da gestagáo. Esta afirmagáo se compreenderá muito bem se se levar em conta mais o seguinte: o encontró amoroso que dá origem no seio materno ao novo ser, é o encontró nao somente de dois or ganismos biológicos, mas também de duas pessoas; o fruto que

se forma em conseqüéncia de tal encontró, traz as marcas do — 294 —

ABORTO EM DEBATE

ser humano, do amor humano. Em sua prímeira origem e em sua consumagáo (nove meses depois), o ser que nasce do homem e da mulher é humano. É humano de maneira continua, durante todo o processo de gestagáo. Essa intuigáo que os país tém, de possuir um ser humano, desde o inicio da gravidez materna, é verídica; ela corresponde

á realidade objetiva, percebida pela consciéncia dos genitores. Desde que comece urna vida oriunda do homem e da mulher, ela é naturalmente vida humana.

b) Os dentistas confirmam, do seu modo, estas afirmagóes. Com efeito, os biólogos e anatomistas reconhecem que nao é possível ídistinguir um momento em que o embriáo colocado no seio materno mude de natureza, passando da mera animalidade para a dígnidade humana. Ao contrario, verificam que o genotipo e a configuragáo dos cromossomos estáo estruturados desde a fecundacáo; através das suas fases de crescimento, o embriáo humano se desenvolve segundo as potencialidades que ele possui desde o ponto de partida.

Verdade é que esse feto nao possui ainda a organizagáo e o sistema nervoso táo desenvolvidos que lhe permitam levar urna vida psíquica consciente e exercer as suas responsabilida

des moráis. Disto, porém, nao se segué que seja simplesmente animal; já é humano, embora ainda neo possa manifestar a sua

vida psíquica (de resto, somente quando adquire o uso da palavra é que a crianga comega a manifestar algo do seu psiquismo inteligente).

Num artigo muito interessante de «Études», novembro 1970, pp. 502-519, Édouard Pousset desenvolve a tese da realidade humana do feto mediante o seguinte raciocinio, ao qual da o título «Étre humain deja» (ser humano já): O ovo fecundado no útero materno é fruto da uniáo de duas pessoas humanas; ele provém de materia humana. Por conseguinte, desde o primeiro momento da sua existencia pode-se dizer que ele pertence á esfera do humano, embora tenha que passar pelas sucessivas etapas de urna gestagáo animal; pro venientes de seres humanos, os elementos genitais e o embriáo que deles se deriva, nunca perdem a sua qualidade e dignidade de «humanos». Mais: o desenvolvimento do feto no seio materno constituí um processo uno ou unitario. Com efeito, as fases de sua evolu-

8

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

gao, por tnais diversas que parecam, sao marcadas por urna tendencia única e constante; embora a forma exterior e as reacóes desse feto se váo modificando sucessivamente, há por babeo délas algo de permanente, que dá a identidade humana a esse embriáo. Algo de semelhante ocorre no organismo do ser hu mano após o nascimento: de sete em sete anos renovam-se as

células do respectivo corpo, nao, porém, as do sistema nervoso. O individuo guarda sua identidade, embora do ponto de vista da bioquímica ele se transforme radicalmente de período em período.

c) Vé-se, pois, que o aborto é a extincáo de urna vida hu

mana em formacáo. Essa vida humana tem o direito de se pro longar. É a vida de um ser inocente; eliminá-la seria injusto morticinio e flagrante iniqüidade, cometida contra alguém que

nao somente nao é injusto agressor, mas um ser inerme, inca paz de defender a si mesmo. A crianga (como também, por vezes, o anciáo) é o mais vulneráve! dos seres humanos; é, pois, aquele que mais deve contar com a dedicagáo generosa dos ge nitores. Ela nao produz nem rende. Por isto a maneira como os adultos tratam as criangas, é criterio para se aferir o grau de humanitarismo a que chegaram esses adultos. d) Nao se pode deixar de acrescentar que certos autores, nos últimos anos, tém sugerido a tese da «humanizacáo adiada». Distinguem entre a conceigáo do feto (ou fecundagáo do óvulo por parte do espermatozoide) e a nidasáo (ou fixacáo do ovo fecundado na parede uterina da genitora); entre um e outro termo transcorrem doze dias. Somente terminado o processo de nidagáo, no décimo segundo dia, o feto concebido seria real mente indiviso e indivisível, ou seja, individuo em caráter ir-

reversível. Após a nidacáo, dizem, inicia-«e a formagáo elemen tar dos grandes sistemas orgánicos, especialmente a do cerebro. No quadragésimo dia após a fecundagáo estaría terminado o processo evolutivo do feto; de entáo por diante haveria apenas crescimento. Em conseqüéncia, antes do quadragésimo dia nao se poderia falar de sujeito humano no seio materno. Estas consideragóas permitiriam dizer que a eliminagáo do feto nos quaronta primeiros días após a conceigíio nao ó homicidio, mas ex-

tingáo de um ser infra-humano. Vojam-sc ulteriores minucias e a bibliografía respectiva no estudo do P. Jaime Snoek citado ao fim deste artigo. Que dizer?

— Tal posicáo, que sofre alguns retoques por parte de outros autores contemporáneos, nao é senáo a renovac.áo — em — 296 —

ABORTO EM DEBATE

termos mais eruditos — da tese de Aristóteles e S. Tomás de

Aquino; a animagáo do feto só se dá quarenta dias após a conceigáo, nos casos de embrides masculinos; oitenta dias, nos casos de meninas.

Ttadavia, mesmo que se admita a tese da «humanizagáo adiada,» nao resta dúvida de que o processo que decorre da fecundagáo do óvulo é o de urna vida humana em formagáo ou evolugáo; é um processo típicamente humano ou pertencente á es fera do humano, como acaba de ser dito atrás. Basta deixar que tal processo se desenvolva naturalmente para se perceber nítidamente urna vida humana. Por isto a eliminagáo de tal embriáo fica sendo sempre um atentado contra a vida humana ou um homicidio.

Talvez, porém, alguém julgue tais consideragóes assaz teó ricas. Na prátíca, o aborto ainda parece ser a solugáo honesta para situagóes embaragosas e difíceis. Eis por que passamos a considerar as razóes geralmente alegadas em favor da interrupgáo do processo gestatívo. 2.2.

Os motivos do aborto em exame

a) Riazoes terapéuticas Há casos em que, para salvar a vida de urna gestante, é preciso matar a vida do feto existente no seio materno. Podem-se conceber tais casos de duas maneiras: — A genitora sofre de molestia tal que deve sofrer inter-

vengáo cirúrgica. O médico prevé que a cirurgia curará a enfer

ma, mas provocará automáticamente a expulsáo e a morte da crianga (imagine-se, por exemplo, o caso de urna gestante cujo

útero se torne canceroso). Em tais circunstancias, a operagáo é lícita, pois nao se destina a matar a crianga, mas a salvar a

paciente de urna molestia que por si nada tem que ver com a gravidez. A crianga perecerá em conseqüéncia da operagáo, nao, porém, porque os país ou o médico hajam determinado tirar-lhe a vida, mas porque está táo ligada ao organismo da gestante que ela nao pode sobreviver aos cuidados cirúrgicos exigidos por tal organismo.

Outra hipótese: nao urna molestia do organismo ma

terno, mas a crianga mesma constituí um perigo imediato para

a vida ds sua máe. Pergunta-se entáo: a quem sacrificar — máe ou filho?

— 297 —

10

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

A resposta será: nem a um nem a outro, pois ambos sao seres humanos com igual direito á vida. Em naufragio nao se arranca o salva-vida de um náufrago para dá-lo a outro. — Ademáis a fungáo do médico nao é extinguir a vida, mas salvá-la; por isto a questáo que o médico se póe, longe de ser «A quem matar?» será: «A quem salvar primeiramente — á máe ou ao filho?» O medico se empenhará consecuentemente por salvar em primeiro lugar aquele, dentre os dois, que mais pro babilidades oferece de ser salvo. Caso a máe venha a perecer, ficando somente a crianga em vida, apesar dos cuidados da medicina, eremos que o Pai do céu nao abandona seus filhos, mesmo quando lhes subtrai o amparo aparentemente indispensável.

De resto, com respeito ao aborto dito «terapéutico», ensinam os estudiosos que a expressáo é cada vez mais anacrónica ou fora de propósito. Entre outros pode-se citar o testemunho do Prof. Dr. Alvaro Guimaráes Filho, que foi durante longos anos regente da Clínica Obstétrica da Escola Paulista de Medi cina e da Cadeira de Maternologia da Faculdade de ¡Higiene e

Saúde Pública da USP. Atenuando a urna solicitapáo da Sociedade de Ginecologia e Obstetricia do Estado do Rio de Janeiro, o ilustre professor redigiu um relatório-tese sobre o aborto «te rapéutico», em que considera dois quesitos:

Na obstetricia moderna,

existem

condicóes inerentes

á gravidez que justifiquem o chamado abortamento terapéutico?

— A medicina atual dispóe, com o extraordinario progresso das ciencias, de recursos que possibilitem ao médico conduzir com éxito, até a viabilidade do feto, a gravidez ocorrente em gestante portadora de enfermidade grave, como cardiopatia, hipertensáo arterial, nefropatia...?

No primeiro caso a resposta do Prof. Alvaro Guimaráes Filho é negativa. Segundo o mestre, o aborto terapéutico nao se justifica hoje em dia. E ele ilustra a tese citando casos de sua longa vida profissional e de sua experiencia clínica. Analisando as causas apontadas como justificativas da indicagáo do

aborto terapéutico, diz textualmente: «As chamadas indicagóes nao subsistem dentro -de urna conduta médica, obstétrica ou ética honesta; mas, apesar disso, sao cada vez mais praticados os abortamentos, as vezes camuflados, com rótulos médicos, constituindo exatamente os abortamentos criminosos no sentido legal e social da expressáo». — 298 —

ABORTO EM DEBATE

11

Com relagáo ao segundo quesito, o ilustre professor res ponde que Sim: «Sim; nao apenas atualmente, mas já há muito

tempo, a medicina possui recursos para conduzir com éxito, até a viabilidade fetal, os casos de gravidez em que a gestante é portadora de enfermidade de natureza grave».

No fim do seu trabalho, o Prof. Guimaráes Filho afirma estar certo de que a absoluta maioria dos médicos brasileiros pensa como ele, e augura que as providencias tomadas pela Sociedade de Ginecología e Obstetricia do Estado do Rio de Janeiro tenham éxito e sirvam «para mais urna vez firmar os sadios principios médico-sociais, mormente na época atual, em que há confusáo nos reais objetivos da medicina; os tempos mo dernos nao podem alterar os direitos á vida ,do nascituro». Cf. «O Sao Paulo», 22/IV/1972, p. 3. b) Razóes eugenéticas

Que fazer quando os médicos prevéem que a crianca está

para nascer com graves anomalías?

Admitir que entáo seja lícito eliminar o feto do seio mater no equivale a admitir a eutanasia, como também a eliminacüo dos adultos inúteis, aleijados, alienados. Mesmos os seres defeituosos tém direito a sobreviver, recebando de seus familiares

ou da sociedade os cuidados necessários. O valor da vida huma na nao se pode aferir pelo que ela produz ou rende. Para um

cristáo, mesmo a vida dos «inúteis» é preciosa; só Deus sabe aquilatar devidamente o que se realiza de grandioso no íntimo

de muitos seres humanos que a sociedade despreza.

Ademáis deve-se dizer que sao cada vez menos freqüentes os casos em que se possa prever com certeza o nascimento de

urna crianea defeituosa. A medicina tem conseguido debelar

molestias outrora nocivas ao feto da gestante: vómitos incoer-

cíveis, afeccóes cardiovasculares, tuberculose, insuficiencia re nal, casos de sangue RH...

Até rossmo para a rubéola foi doscoberta recentemente urna

vacina: o inventor dessa vacina, o médico francés Dr. Plotkin, declarou que o produto seria adotado em outros países, a comegar pela Inglaterra. O teor de anticorpos dessa vacina é tres vezes mais elevado do que o de produtos congéneres já exis tentes.

— 299 —

12

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

Ademáis sabemos que todo aborto tende a produzír na mulher efeitos daninhos, afetando-lhe tanto a saúde física como o equilibrio psíquico (o sentimento de frustragáo e a neurose muitas vezes se apoderam da máe que pratique o aborto).

A fé crista é apta a fornecer poderoso sustento aos genitoros cajos fillios nascom exencionáis. A sua dor — por certo justificada — é transfigurada, tornando-se-lhes ocasiáo de he

roísmo. É o que se depreende, por exemplo, através de escritos de Emmanuol Mounier, um cristáo de tempera, que passou pela experiencia de ter urna filha excepcional: "Eu sentía que me aproximava desse leitozlnho sem voz, como se me avizinhasse de um altar ou de algum lugar sagrado onde Deus falasse por um sinal. Urna tristeza me mordía fundo, fundo, mas suave e transfigurada. E em torno dessa tristeza — nao tenho outra palavra — se colocava a adoracio. Urna hostia a viver entre nos, muda como a hostia, irradiante como ela... Se toda auténtica oracao tem por base a morte das potencias sen-

siveis, intelectuais, voluntarlas, se a fina ponta da alma da crlanca batlzada... é colocada, no momento do Batismo, em contato direto com a vida divina, que esplendor nao se oculta nesse pequeño ser que nSo pode

falar aos homens ? ... Minha pequenina Francisca, tu és para mim também a ¡magem da fé. Na térra, conhecemos em enigma e como que em espelho essas realidades da fé... Nada se parece mais a Cristo do que a Inocencia sofredora... A sorte de Francisca já nao é um reboar de trováo ñas nossas esperances do verao, mas um elo fraterno da grande miseria dos homens, elo sem o qual nos (¡cariamos para tras" (carta de 11 de maio de 1940, em "Mounier et sa génération. Lettres, carnets et inédits". Éditions du Seuil).

Repelindo o aborto, a reta consciéncia moral sugere ás fa milias que demonstren! a sua solidariadade e o seu apoio ami go aos genitores de filhos excepcionais. Estes, mediante o seu exemplo generoso e a sua dedicagáo, dáo testemunho construtivo aos demais casáis, e enriquecen! qualitativamente a sociedade.

Merecem atengáo ainda as seguintes reflexóes de Jean Vanier, em entrevista concedida a «France Catholique» de 20/XI/1970: "Os olhos dos excepcionais sao muitas vezes claros e puros. Os olhos dos tiranos, dos dominadores, dos egoístas, dos que recusam socorrer seus irmáos sofredores, sao manchados pelo egoísmo. Por que rejeitar os olhos claros e puros ?...

Com certeza, alguns estao extenuados; mas nfio sSo apenas os ex cepcionais que estao extenuados, é o destino de tantos homens que vlvem sob um jugo qualquer. NSo

resta dúvida

de

que existem

grandes

excepcionais

sem

multa

consciéncia, anormais profundos, é duro para os pais. Multo duro. Tam-

— 300 —

ABORTO EM DEBATE

13

bém para eles existe sofrimento. Contudo exlstem também homens que parecem moralmente prejudiciais, tiranos de toda especie, homens e mu-

Iheres com coracSes duros como a pedra. é terrlvel vé-los. É duro também para seus pais, e eles próprios sofrem".

c) Razoes sociais

Os motivos sociais sao os que mais freqüentomcnte levam ao aborto em nossos dias. Nos casos de gravidez contraída fora do casamento, de mo

do a comprometer a honra de urna jovem ou de urna familia

inbaira, note-se que nao se saneia um mal (urna aventura sexual irrefletida ou urna violencia) mediante outro mal (um homici dio). O auténtico remedio em tais casos consistirá em excitar

e fortalecer a resistencia moral e o vigor de ánimo das pessoas que possam ser envolvidas na desgraga, para que nao caiam ou recaiam na mesma.

É para desejar que, frente a tentacáo de provocar o aborto, nao prevalegam razóes meramenta sentimentais, que geralmente nao constroem a sociedade nem fomentam o bem comum, mas se tenha sempre em vista a reta escala dos valores. 2.3.

A auténtica solu$6o

Pergunta-sc naturalmente: que fazer para deter a onda de abortos que se alastra em nossas sociedades? Podem-se sugerir duas medidas: a) Assísténcia as familias que, desprovidas de condigóes eco

nómicas, nao podem ter filhos, Em vez de se lhes facilitar o abor to, pusstar^se-lhes-ia melhor servico se se pensasse seriamente na questáo social e na promogáo humano-crista dos casáis que

sofrem penuria. A solidariedade humana ai tem vasto campo de aplicagáo.

b) Nao basta, porém, esta provisáo. Verifica-se que a maioria dos abortos se realiza ñas carnadas medias e elevadas da sociedade, onde precisamente haveria recursos para educar

mais um filho. Isto revela que, antes do mais, o que se requer é urna reeducaba o do senso moral e um aprimoramento das

consciéncias frente aos valores verdadeiramente humanos. O

feto humano nao é «coisa», nem sua sobrevivencia pode estar

subordinada a interesses particulares de uns ou outros. — A onda de erotismo, a precipitagáo com que se desencadeia a sa-

tisfagáo sexual sao, em grande parte, responsáveis pela cota crescente dos abortos em nossos tempos.

— 301 —

14

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

Nao se paderia, de resto, deixar de mencionar a signifi cativa réplica ao aborto legalizado que médicos e enfermeiras tém feito ouvir em diversas partes do mundo. 3.

ContesfasSo ao aborto

Nao poucos médicos e seus auxiliares tém-se recusado a executar direta ou indiretamente intervencóes abortivas. 3.1.

Na Inglaterra

As enfermeiras do Hospital Stepping Hill de Stockport resolveram coletivamente, em junho de 1970, nao tomar parte

ñas operacóes de aborto. O ginecólogo e obstetra do Hospital,

Dr Calvert, explicou entáo:

«As

enfermeiras demonstram

avérsáo a essas intervencóes, principalmente quando realiza

das em fase adiantada da gestacáo. O motivo nao é propria-

mente religioso. As enfermeiras contestam a praxe de se lan-

carem no lixo criaturas humanas, segundo elas mesmas dizem».

As razóes do protesto podem-se resumir sob dois títulos: 1) As gestagóes sao, muitas vezes, interrompidas em fase evoluída, devendo-se entáo empregar recursos repugnantes

para

extingui-las.

(26/VI/1970)

A

revista

inglesa

«Catholic

Herald»

referiu o testemunho impressionante de urna

enfermeira que descrevia como era praticado o aborto nos casos de doze semanas de gesíagáo.

2) A preferencia dada as operagóes de aborto faz que intervengóes ginecológicas mais graves e outros tratamentos spjam recusados nos hospitais, que se acham lotados por pa

cientes de aborto. Ficam assim prejudicadas numerosas senhoras.

Vinte e seis Irmas da Congregagáo do Bom Pastor de Bishopton, dedicadas a máes solteiras e jovens desadaptadas, enviaram urna carta de apoio as enfermeiras inglesas em que

diziam: "Dedicadas como voces, a um servico profundamente humano, sentimo-nos estimuladas pela atitude de voces. Manlfestam com clareza quao

grandes sao o privilegio e os deveres de urna enfermeira ou de um médico

que servem á vida humana desde as suas origens, de maneira consentánea com a dlgnldade da pessoa. Parece-nos que todo ato realizado sobre um

ser humano, nascldo ou n8o, desde que nao respelte tal dlgnidade, nao é um servico, mas urna prostituicáo".

— 302 —

ABORTO EM DEBATE

15

Ginecologistas como o Prof. Jan Morris do St. Mary's Hos pital de Manchester tacharam o aborto de «borrivel e nojento dever». A Sociedade das Parteiras da Inglaterra, na sua assembléia anual de junho pp., pediu com urgencia um estatuto

que impega os abusos... A Associagáo Nacional das Enfermeiras, que reúne 67.000 enfermeiras profissionais e estudantes, escrevcu a Sir Keith, Ministro dos Servicos Sociais, pe-

dindo urgente revisáo da atual legislagáo inglesa. Como o próprio Ministro reconheceu na Cámara dos Comuns, a pressáo em prol de uma reforma da legislagáo de 1967 crescia no país e era atentamente acompanhada pelo Governo, que desejava conhecer as opinices de todas as partes interessadas.

Na Inglaterra, fundou-se nova sociedade contra o aborto: «Life» (Vida), a qual se propóe «oferecer auxilio material e moral ás senhoras que sofrem física ou moralmente por causa da maternidade ou que sao tentadas a pedir o aborto». Todavia faz-se mister também mencionar que é atuante na Inglaterra uma facgáo que pede aborto ainda mais fácil. A

«Frente Libertadora da Mulher» acolheu a rainha, em sua vi sita á Universidade de Warwick, com urna chuva de mensagens que solicitavam plena liberdade para o aborto e os anticoncepcionais. 3.2.

Na Franca

O problema do abortamento tem sido calorosamente de batido na Franga, tanto nos meios médicos e sociais como no setor ,cla Igreja. Tenha-se em vista o n° de margo 1972 da re

vista francesa «Ecclesia», onde se encontra longo dossié so bre o assunto. Entre outros dados importantes, extraimos desse documentário a seguinte carta escrita por uma senhora fran cesa ao jornal «Le Monde» aos 29/VII/1971, e transcrita por «Ecclesia»

(n" citado, p. 34) com o titulo «O testemunho de

uma 'operada'».

«Fui 'operada' há oito meses em uma das maiores clínicas de Londres, clínica particular, mas reconhecida — o que me fazia crer que teña certas garantías. Era uma clínica situada na Laugham Street e mundialmente conceituada por sua seriedade e pelo número

de casos tratados. . . Nao ponho em dúvída esse grande número, mas posso dízer que tudo mais ai nao passa de chantagem. Quando chegueí a Londres, tudo aconteceu como fora previsto. Por certo,

estive sob cuidados alheios durante doís

días;

mas que

chantagem, moral e profesional ! O secretario do Dr. B. . . me prometeu um exame médico minucioso após algumas formalidades e,

— 303 —

16

«PERPUNTE E RESPONDEREMOS »

151/1972

depois disso, 24 horas de hospitalizacao. Na verdade, isso nao aconteceu ; o que houve, foram formalidades. A equipe do hospital

finge respeitar escrupulosamente a legalidade, ou seja, finge pedir a autorizacao de um médico psiquiatra (que tem consultorio do outro lado da rúa); finge que ¡ndenizará em caso de acídente; e coloca

urna serie de perguntas pessoais : Quem é o pai da cri-anca ? Por

que é que ele nao se casou com vocé ?, etc.

A lei prevé dois exames médicos : um, antes ; outro, depois da operacáo, e mais vinte e quatro horas de hospitalizacáo. Quanto ao «xame pré-operatório, vi o Dr. B...

durante tres

minutos. Ele me tocou o ventre com a ponta dos dedos por cima do

vestido; perguntou-me desde quando eu estava grávida e se eu nao era alérgica aos antibióticos. . . Nao interrogou a r.espeito de grupo sanguíneo, nem me auscultou, aínda que sumariamente.

Passei a primeira noite no hotel, repartindo o quarto desconfortável com duas outras pacientes. Um taxi do médico veio apanhar

urna leva d« seis gestantes na manha seguinte as 7 h 30 min. As 8 h eu tinha sido operada; as 10 h, a equipe me vestía de novo,

por forca, e colocou-me num taxi. Foi preciso que- me carregassem,

pois eu aínda estava sob o efeito da anestesia, levaram-me de volta ao hotel, onde o gerente se surpreendeu por saber que eu nao tomaría ¡mediatamente o aviáo, mas só partiría no día seguinte. O Dr. B...

trabalha das 7 da manha as

11

horas na sua

clínica. E as operacoes se sucedsm visivelmente de cinco em cinco minutos.

O preco da operacáo é de 1.500 F (parece que aínda é ba rato). Mas nao esquecamos que o Dr. B... faz 'víver' toda urna organiza cao : 100 F para o psiquiatra, mais 36 F por noite e por

pessoa no hotel, mais 12 F se a paciente nao toma o taxi de volta ao aeroporto no momento indicado.

Nao sofri nenhuma conseqüéncia física da operacáo, embora

tenha voltado esgotada e louca de ¡nquietacao. Como quer que se¡a, o Dr. B...

nada tem a recear: dáo-nos um monte de injecoes e

antibióticos, para que agüenremos bem ao menos até o aeroporto de Orly (em París).

Do ponto de vista dos ñervos, voltei arrasada,

nao por causa

dos médicos ingleses apenas, mas pelo aspecto coletivo e organizado do negocio, que me desmoralizou por completo. Sou ¡ovem ; tenho 25 anos ; eu me julgava lívre. Era favorável ao abortamento livre. Essa experiencia fez-me compreender agora

— 304 —

ABORTO EM DEBATE

por que tantos médicos franceses

T7

(que nao sño necessariamenre

reacionarios ou racanhos) ainda se mostram táo reticentes no tocante

á liberacáo total do «oborto. Nao há motivo para qu,e a Franca nao venha a conhecer os mesmos escándalos que a Gra-Bretanha».

Este episodio nao pode deixar de ser tomado em conside-

ragáo, pois ajuda a refletir sobre o problema do aborto nao

somonte aqueles que tém concepcces religiosas, mas tambóm

os cidadáos que se interessem sinceramente pelo bem comum

da humanklade. Pode-se dizer que nao será a liberalizacáo da legislacáo concernente ao aborto que trará auténtico alivio a sociedade; a solusáo do problema está em carnadas mais pro fundas, ou seja, num vivo despertar da consciéncia moral de todos os cidadáos.

Troisfontaines (artigo citado na bibliografía destas pá

ginas) infere que em 1970 havia em Londres venda de em-

brióes humanos vivos. O Dr. Paúl Chauchard no jornal «Le Monde» de 7/IV/1970 fala de abortadores profissionais re

gistrados que jogam fetos ainda chorando no crematorio. 3.3.

Nos Estados Unidos da América

Também ai se tém registrado veementes campanhas con

tra o aborto principalmente no Estado de Nova Iorque, onde desde l'/VII/1970 está em vigor urna lei que permite o aborto dentro das primeiras 24 semanas da gestacáo. Entre os inci

dentes verificados, pode-se salientar o fato de que dez enfermeiras do Child's Hospital de Albany se recusaram a auxiliar intervencóes abortivas. As autoridades hospitalares responde-

ram-lhes dando-lhes garantías e assegurando-lhes que o Hos pital «respeitaria a sua opiniáo moral, pessoal e religiosa so bre o assunto».

Os bispos norte-americanos, aos 18 de novembro de 1970,

emitiram a seguinte declaragáo sobre o assunto:

"Desde os primelros séculos da Igreja, o aborto fol tldo como um

atentado á vida humana. Nada nos permite julgá-lo diversamente em nossos dias Os homens de ciencia nos enslnam que, desde o prlmeiro momento da concelcSo, a crianca é um ser complexo, que cresce rápidamente,

dotado das características da vida humana. Embora o seu desenvolvimento dependa de ambiente favorável, a crlanca tem vida próprla no selo materno.

Este principio fundamental foi solenemente recordado pelo Concilio

do Vaticano II: 'Deus, Senhor da vida, conflou aos homens a elevada mlssio de proteger a vida — missio que deve ser sempre cumpnda de — 305 —

18

tPERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

maneira digna do homem. é por ¡sto que a vida há de ser protegida com o máximo cuidado desde o inicio da conceicio. O aborto, como também o infanticidio, é crime abominável' (Const. "Gaudium et Spes' n? 51). Desde o seio materno, a crianga ó um ser humano. O aborto vem a ser injusta destrulcáo da vida humana; no plano moral, equivale a um assassínio. A sociedade nao cabe o direito de destruir essa vida; nem mesmo á mulher grávida. A lei deve assegurar á crianga toda a protegió possivel antes e depois do nascimento.

Lembramos aos médicos e as enfermeiras católicas que, independentemente das lels clvls, o aborto direto em si é sempre urna falta moral. Os hospitais católicos e o seu pessoal devem dar testemunho da santldade da vida, respeitando-a e defendendo-a antes e depois do parto. Deveriam comprometer-se ao máximo a fim de proteger incondicionalmente tanto a mSe quanto o filho.

Nao se pode langar a responsabilidade do mal do aborto sobre urnas poucas pessoas apenas. Muitas vezes a sociedade também é culpada da falta de compreensao e de justica em relacao á mulher grávida. No cumprimento das suas responsabilidades, a sociedade deveria tentar tudo que é possivel a fim de dispensar a assisténcia necessária as futuras máes, tanto no plano da medicina como em outros setores.

Pedimos ao Governo e a todas as organizares voluntarias, inclusive ás que sao patrocinadas pela Igreja, intensifiquem e ampliem as suas ini ciativas destinadas a aconselhar e a assistir ás mulheres grávidas que, sem este subsidio, poderiam ser tentadas a recorrer a solugóes contrarias á iei de Deus" (cf. SEDOC 36 [maio 1971] 1335s).

3.4.

No Brasil

O Prof. Otávio Rodrigues Lima, catedrático de Clínica

Obstétrica da Universidade do Brasil, divulgou recentemente no Rio de Janeiro urna pesquisa sobre a prática do aborto, revelando os seguintes dados:

Anualmente sao praticados no Brasil um milháo e 488

mil abortos provocados,

correspondendo a 22% .dos partos e

ocupando 25% dos leitos existentes em toda a rede hospitalar. Nao se referia o levantamento a casos que nao levaram á acáo hospitalar. O Prof. Rodrigues Lima calcula o custo me

dio do leito-aborto em 75 cruzeiros por dia. — Feita a projecáo do alendimonto diario sobre o total de abortos que exigem so

corro, verifica-se que anualmente no Brasil se despendem mais de onze milhóes de cruzeiros em operaeóes abortivas (levando-se em conta a permanencia mínima de um dia no hospital para cada paciente). A pesquisa revelou que os abortos sao

mais freqüentes entre as mulheres casadas, raima proporc.áo de 56% contra 44% día abortos em mñes solteiras. Na opiniáo do Dr. Otávio Rodrigues Lima, o confronto prova que o abor— 306 —

ABORTO EM DEBATE

19

to resulta principalmente ide pressóes socio-económicas, ou seja, da impossibilidade que muitas familias experimentan!, de ter prole numerosa.

No Brasil a legislacáo oficial permite o aborto em dois ca sos: 1) terapéutica em favor da vida materna que se ache em perigo; 2) estupro desonroso para a máe solteira. Pensam os juristas em alargar ainda mais essa legislagáo, alegando, entre outras coisas, ser incoercível o rumo da sociedade em favor do abortamento legalizado. Pergunta-se, porém: será que a le gislacáo de um pais tem apenas a funcáo de legitimar situagóes feitas e fatos consumados, sem levar em conta os valores que possam correr perigo em conseqüéncia ide tal legalizacáo? Ao legislador compete, antes, ajudar a populacáo a cultivar va lores e a nao perder consciéncia de certos bens que as tenden cias de massa ou de moda muitas vezes ameagam destruir.

Bibliografía :

Declarares dos blspos dos EE. UU. A., do Canadá, da Bélgica, da Holanda, da Franca, em SEDOC 3 (1971) n? 36, pp. 1333-1360. DeclaracSo dos blspos dos países nórdicos europeus, em "Documentation Catholique" n? 1598, 5/XII/1971, pp. 1076-1084.

Declaracao

dos

blspos

da

Italia,

em

"Documentation

Catholique"

n? 1606, 2/IV/1972, pp. 312-314.

Jaime Snoek, "Aspectos biológicos, éticos e jurídicos do aborto" em REB vol. 31 (1971), pp. 878-890, onde se encontram ampias indicag6es de bibliografía moderna.

Pe. Paschoal Rangel, "Contracepcio, DIU e aborto diante de urna filosofía personalista", em "AtualizacSo", maio/29 de 1972, p. 200-211. V. Marcozzi, "La liberalizazzione della legge sull'aborto", em "La Civiltá Cattoüca" n? 122, 3/IV/1971, pp. 18-30. Nos números seguintes da mesma revista o assunto é freqüentemente debatido.

Troisfontalnes, "Faut-ll légaliser l'avortement ?" Théologlque" 103 (1971) pp. 489-512.

em

"Nouvelle Revue

Cahiers Laennec 31 (1971) 1 (todo dedicado ao assunto). P. Pousset, "Étre humaln déjá", em "Études" novembro de 1970, pp. 506-512.

R. Heckel, "Lo! sur l'avortement et anesthésie des consclences", em "Cahiers de l'actualité religleuse et soclale", 1? nov. 1970. Revista "Ecclesla" n? 276, mars 1972; "Le dossier du mols — L'avor tement, par le Docteur Robert de Montvalon", pp. 17-47. Revista "II Regno", 1/X/1970, pp. 394s: "Opposizlone all'aborto".

— 307 —

20

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

APÉNDICE O seguinte documento, embora redigido em estilo de fic-

gáo, poderá ilustrar o problema abordado:

CARTA DE UM MENINO QUE NAO NASCEU, A SUA MÁE «Quando eu devía nascer, mamae, vocé estava tao desnor teada que já nem sabia o que fazia. Sabe, mamae, entre vocé « papai havia muitas mentiras. Vocé nunca pensou que todo aquele 'sexo' devia ter urna finalidade « que vocé estava abusando de urna

forca muito poderosa que feria dado urna verdadeira felicidade a vocé se tivesse sido dirigida direíto, nao é ? Vocé tinha urna grande vontade da viver e, para vocé, 'viver' era gozar a vida. Só que a vida existe para um fim determinado e vocé, mamae, devia ter refletido mais, em vez de se lancar nela com tanta avidez. Amor, veja lá, mamae, a gente nao o 'faz'. Amor, a gente o recebe por milagre e dá depressa aos outros para agradecer, e também para sobreviver, porque quem nao ama, morre. Nao é verdade que amor se 'faz'; isto é mentira que vocé oprendeu no cinema. Olha, mamae, se eu tivesse nascido, vocé teria entendido tudo na hora. E que alegria teria sido para mim ! Vocé já pensou na feli cidade que é dar a vida a alguém? Se eu tivesse nascido, vocé teria aprendido a ser móe, e agora eu ¡á seria grande, e um dia até saberia cuidar de vocé. Mas vocé nao gostava da palavra 'mae' no tempo em que eu devia nascer. Papai também nao. Ele quería ser livre. Imagina tudo que ele teria aprendido comigo I Eu teria mudado toda a vida dele. Ele se queixaria um pouco no comeco, mas acabaría louco por mim. Era para mim que ele gostava de

fazer aquelas coisas de madeira, barquínhos « avioes — sem saber. Nos feriamos tido tantas coisas para fazer juntos que vocé até ficaria com ciúmes das nossas conversas, se eu tivesse nascido. Mas voces

tiveram medo de mim, medo de que eu nascesse, e medo de crescer.

Voces fugiram da verdade, estragaram tudo e eu perdi vida. E agora estamos todos sozinhos e separados».

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¡he resiste, o trabalhador imprime-lhe o seu

ciinho, enquanto para si adquire lenacidadc, engenho e espirito de invencao. Mais aínda, vivido em roinum, na esperunca, no soj'rimentó, na aspirando e na alegría partilhada, o tralmlho une as vontades, aproxima os

espiritas e sóida os coracoes: realizando-o, os homens descobrem que sao irmaos."

PAULO

VI

(Carta Encíclica Populorum Progressio) marco - 1967

ENGEFUSA

Ética- Seguranca- Pioneirismo

Urna alerta

jesús é deus em sentido próprio? a ss. trindade: tres modalidades de deus?

Em síntese:

A partir de 1966, tém sido publicados estudos de fa

mosos teólogos que visam a tornar mais compreensfvel ao homem de hoje a profissáo de fé na Divindade de Cristo. Acontece, porém, que tais tentativas redundam na negacáo de que Jesús seja Deus no sentido próprio da palavra; Jesús Cristo seria mero homem, embora de modo excelente e singular, porque Deus nele se revelarla a toda a humanidade. Visto que as novas proposites afetam em termos graves o cerne da fé crista, a S. Congregagáo para a Doutrina da Fé em Roma, aos 8/MI/1972, houve por bem publicar urna Declaracüo que reafirma ser Jesús a segunda

Pessoa da SS. Trindade, coeterna com o Pai e o Espirito Santo, a qual tomou a natureza humana de María Virgem, tornando-se verdadeiro homem.

Em Jesús Cristo, urna só pessoa — a Divina — subsistía em duas naturezas — a Divina e a humana.

Esta profissáo de fé resulta dos estudos de padres e

doutores da

Igreja dos primeiros séculos e fol formulada definitivamente pelo Concilio de Calcedonia (451). O seu vocabulario, preciso como é, tornou-se garantía

de conservacáo da verdadeira fé, de sorte que o abandono dessa nomen clatura suscita ambigüidade ou erros, apesar da boa intencao dos teólogos contemporáneos.

Rflsposta: Aos 8 de marpo de 1972, a S. Congregagáo para a Doutrina .da Fé cm Roma publicou notável Declaragáo a

respeito de erros modernos concernentes a Jesús Cristo e á SS. Trindade. Havia alguns anos que tal órgáo da Santa Sé

nao se manifestava desse modo — o que supóe urna situagáo

grave no campo da teología. A Declaragáo deve ter sido ela

borada por urna comissáo de teólogos; o texto respectivo ha

de ter sido discutido pelos consultores e os Cardeais vincula dos á Congregagáo para a Doutrina da Fé. A redagáo defini— 310 —

JESÚS, DEUS E HOMEM

23

tiva do documento foi por último levada ao S. Padre Paulo VI, que houve por bem aprová-la. Ñas páginas que se seguem, procuraremos delinear o fun do de cena da Deciaracjio; a seguir, transcreveremos o respec tivo texto e lhe acrescentaremos breves comentarios.

1.

O fundo de cena

O S. Padre Joáo XXIH, ao convocar o Concilio do Vati cano n, manifestou o desejo de que os teólogos procurassem exprimir as verdades da fé em termos claros e compreensíveis ao homem moderno; poderia trocar a linguagem clássica, quando necessário, guardando, porém, absoluta fidelidade as proda fé revelada.

Esta tarefa foi empreendida com especial interesse pelos teólogos holandeses que, em tempos idos, propuseram a troca de «transubstanciacáo» por «transignificacáo» e «transfinalizacáo» para designar a conversáo do pao e do vinho eucarísticos no corpo e no sangue de Cristo. Tal troca, porém, suscitou mais incompreensáo do que compreensáo da real presenga de Cristo na Eucaristía. Embora os autores nao pretendessem negar a esta, nao obtiveram o resultado almejado.

A partir de 1966, apareceram também na Holanda estudos de teólogos que tentaram reformular o conceito de «Jesús Cristo, Deus e homem». Nos primeiros séculos da Igreja, o assunto foi arduamente considerado: o arianismo, o apolinarismo (ambos no séc. IV), o nestorianismo e o monofisismo (am

bos no séc. V) eram correntes teológicas que tendiam a dimi

nuir um dos termos do binomio: «Jesús é verdadeiro Deus e

verdadeiro homem». Finalmente, o Concilio de Calcedonia em 451, após longos estudos de teólogos e doutores da Igreja, de-

finiu que em Jesús Cristo subsiste urna só pessoa ou um só Eu

(a segunda Pessoa da SS. Trindade, Deus Filho) em duas naturczas (a Divina e a humana); o que quer dizer: o Filho de Daus passou a subsistir aqui na térra em urna natureza hu mana recebida de Maña Virgem. Tal modo de falar tornou-se clássico na teología católica; os vocábulos «natureza» e «pes soa» nao causavam dificuldade ao entendimento dos medievais. Eis, porém, que alguns teólogos contemporáneos julgaram dever procurar outra formulagáo para exprimir como Jesús é Deus e homem. — 311 —

24

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

Apresentaremos aqui apenas tres espécimens dessas no

vas tentativas:

1.1.

Prof. A. Hulsbosch

O Priof. A. Hulsbosch publicou em 1966 o artigo intitulado

«Jezus Christus, gedenk ais mens, beleden ais Zoon Gods» (Je

sús Cristo, conhecido como homem, professado como Filho de Deus) em «Tijdschrift voor Theologie» 6 (1966) 250-273. O autor pretende eliminar o dualismo das duas naturezas e realgar a unidade de Cristo. Parta entáo do conceito de evolu-

Cáo: a materia viva, diz ele, nao é senáo o desdobramento da

materia inanimada; a própria vida intectual do homem é urna das formas de .desenvolvimento da materia; secundo o autor,

nao necessária urna especial intervengáo de Deus para jus tificar a transigáo da vida náo-humana para o grau humano. De modo paralelo, diz ele, as prerrogativas divinas de Jesús nao se devem a um principio divino distinto da sua natureza humana; podem ser ditas divinas porque tém semelhanga com

Deus, mas, na vcrdade, nao sao senáo o resultado do desen

volvimento das virtualidades da própria materia. Sao palavras de Hulsbosch: «Jesús é um homem que é homem de mo do novo e superior. Já nao 6 o Filho, uno com o Pai na natu

reza divina. É um homem exccpcionalmente dotado de graga»

(p. 254). Como todas as criaturas sao manifestagóes do Cria

dor, Jesas-homem é a mais alta manifestagáo do Criador, ma-

nifestagáo única ou singular. O autor afirma em conseqüéncia: «Posso chamar Cristo criatura; entáo digo que é homem.

Posso chamar Cristo revelagáo de Deus; entáo digo que é

Deus» (p. 265).

Longe de negar que Jesús seja «verdadeiro Deus e ver-

dadeiro homem», é preciso sustentar que toda criatura é «ver-

dadeiro Deus e verdadeira criatura», pois é manifestado de Deus.

Nesta nova interpretagáo da doutrina crista, que vem a

ser o Espirito Santo? — O Espirito Santo é o próprio Deus que se revela em Cristo. Com outras palavras: Cristo é a forma na

qual Deus se revela; o Espirito Santo é Deus que se

revela

n>sssa forma.

Assim, segundo Hulsbosch, a teologia se simplifica. Apa

rece muito melhor a unidade de Cristo, porque nele nao há senáo um homem,. .. um homem diferente dos outros por ter — 312 —

JESÚS, DEUS E HOMEM

25

um conhecimento e urna experiencia única de Deus. Em conseqüéncia, ele pode ser chamado «Homem celeste» (cf. 1 Cor 15, 45-49). Quando os Evangelistas Mateus e Lucas dizem que Jesús foi concebido do Espirito Santo, apenas querem insinuar que desde o inicio da sua existencia Jesús foi a grande revelac.áo de Deus.

Em suma, interpretando a seu modo os textos bíblicos que falam da preexistencia de Cristo (tenha-se em vista, por exemplo, Jo 1,1.14: «No principio era o Verbo... e o Verbo se fez carne»), o autor holandés propunha em 1966 mais urna tese filosófica do que o eco da mensagem bíblica. A posigáo de Hulsbosch difundiu-se na Holanda. Foi reto cada e parcialmente criticada por um ou outro teólogo (Schillebeeckx, Schoonenberg, Smulders), de sorte que em 1971 o Prof. Hulsbosch publicou novo artigo sobre o assunto, apre-

sentando o seu pensamiento um tanto modificado; cf. «Christus, de sheppende wijsheid van God», em «Tijdschrift yoor Theologie» 1971, n" 2, pp. 66s. O autor retirou entáo a idéia de que Cristo seja o produto de evolugáo. Em Jesús, diz Huls bosch, se encontra a presenga criadora da sabedoria que abraga toda a evolugáo. Todavía o autor nao admite em Jesús urna pessoa divina: Cristo é mero homem, no qual Dsus está pre

sente como sabedoria; em conseqüéncia, tendo-se em vista a

pessoa humana de Jesús, pode-se falar de urna pressnga pes-

soal da sabedoria de Deus!

Á guisa de eco das novas teorías, seja citado aqui um tex to do 1.2.

Prof. P. Smulders

No encerramento de urna assembléia de bispos e sacerdo tes, o P. Smulders, professor da Faculdade de Teología católica

de Amsterdam, leu urna profissáo de fé. Esta é estritamente pessoal, isto é, nao responsabiliza a referida assembléia. Eis o teor de sua primeira parte: "Creio em Deus Pal, que tem tudo em suas maos. A minha existencia

é dom de Alguém que é amor e solicitude.

Crelo no homem Jesús, que nasceu de Maria e é o dom de Deus a nos. Nele aparecem a solicitude de Deus por todos, o seu convite ao amor e a sua paciencia para conosco, pecadores.

— 313 —

26

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

Esse Jesús vive, e diante dele e do seu Pai responderemos finalmente

por aquilo que somos nos mesmos e por aquilo que fazemos ao nosso próximo. Creio no Espirito Santo: o bem que desejamos e fazemos, é graca, e, por este motivo, é mais forte do que nossa fraqueza, nossa culpa, nossa

¡ncapacldade" ("Het priesterberaad in Boordwijkerhout. Inleiding en slotheschouwing", em "Theologie en Pastoraat" 64 [1968] 330).

Os silencios ou as omissóes dessa profissáo de fé sao pro

fundamente estranhos. — Nao diz que Jesús seja Deus ou Filho de Deus; nem afirma que nasceu de María Virgem por obra do Espirito Santo; nem professa a morte e ressureigáo de Cristo (apenas diz que Jesús «vive»). Também pairam som bras sobre o Espirito Santo nesse texto. O juízo final parece insinuado, mas em termos vagos.

Aínda pode merecer atengáo o ponto de vista dos 1.3.

Prof. F. Haorsma e Prof. P. Schoonenberg

O Prof. Haarsma julga que o artigo de Hulsbosch resume bem a tendencia de teólogos que desejam abandonar as fórmulas dos Concilios de Éfeso (431) e Calcedonia (451) e nao mais dizer que em Jesús há urna só pessoa: pessoa divina.

A teología moderna — diz ele — fala da transcendencia huma na de Jesús. Ela reconhece Jesús Cristo como Filho de Deus, isto é, como o homem no qual Deus está presente da maneira mais intima. Essc homem difere de nos nao essencialmente, mas escatologicamente (isto é, no tocante ao seu destino final). Cristo nao tem preexistencia (isto é, nao existia antes de nas-

cer de Maria), mas tem preexistencia (urna existencia voltada para o futuro): ele é o homem para todos, porque Deus nele se manifcsta a nos. Cf. o artigo «Ontvvikklingen in de rooms ka-

tholicke theologie in Nederland»,

em «Ds nieuwe mens» 20

(1968) 55.

O Prof. P. Schoonenberg converge com Haarsma, afirman

do que «Jesús é urna pessoa humana, um ser humano, psicoló

gico e ontológico, um centro de consciéncia, de decisáo e de projeto de vida». Cf Jezus Christus vandaag dezelfde», em «Geloof bij kenterend getij». Roermond-Maaseik, 1967, 173s. E concluí: "No tocante a Cristo, tudo se reduz ao exemplo...

um exemplc que

toca em profundldade a existencia e que tem por fonte um contato pessoai". Mas "nao temos o direito — por causa de nossa fé em Jesús — de excluir

— 314 —

JESÚS, DEUS E HOMEM

27

outras fontes de inspiragáo e exemplo. Jesús mesmo se referiu aos profetas, a Moisés, etc., que eram os grandes exemplos da tradÍQáo religiosa do seu país. A nossa fé professa apenas que ele é para nos o exemplo

eminente e insuperável" ("Sept problémes capitaux de l'Égllse". París 1969, p. 157).

Estes textos sao suficientes para dar a ver como pensam

os autores que, desejando expressar de novo modo a fé em

Jesús Cristo, admitem que Jesús nao seja, em sentido próprio, verdadeiro Deus feito homem.

2.

Guem tem razao ?

Diante das sentengas dos eruditos autores citados, pode

alguém ter motivos para interrogar: nao estaráo eles com ra záo? Profundos estudiosos, doutos conhecedores do pensamen-

to moderno, nao estaráo eles traduzindo para o homem contem

poráneo o teor dos documentos bíblicos? Se no século V o Con

cilio de Calcedonia falou de duas naturezas e urna pessoa em

Cristo, nao poderíamos nos reformular tal linguagem, cujo vo cabulario se tornou estranho aos nossos dias?

A resposta nao é difícil. A realidade de Jesús Cristo só

nos é conhccida pela revelagáo do próprio Jesús Cristo, que nos vem através das Escrituras e da Tradigáo, que o magisterio da

Igreja exprime auténticamente. O assunto nao ó do setor da filosofía ou da física, mas estritamente do ámbito; da fé. Por isto a razáo ou o «bom senso» nao sao criterios decisivos para se de finir quem era Cristo, e, sim, a Palavra de Deus, que falou e fala pela Igreja através dos sáculos. Ora a Igreja, seguindo o ensinamento dos Apostólos, em todos os tempos professou que Jesús é Deus verdadeiro Mto homem verdadeiro no seio de María Virgem; é a segunda Pessoa da SS. Trindade que sub siste eternamente com o Pai e o Espirito Santo. Esta fe foii for

mulada em termos técnicos nos Concilios de Niceia I (ó¿i>),

Constantinopla I (381), Éfeso (431) e Calcedonia (451). Diante de contradigóes e das mais diversas sentengas propostas por

correntes ¡novadoras (arianismo, macedonianismo, nestoriamsmo monofisismo), os blspos e teólogos da Igreja antiga foram incitados a sondar os documentos da fé (as Esenturas e a Tra digáo sagrada), chegando conscientemente as profissoes de fe dos Concilios mencionados. Hoje em dia pode-se exprimir a mesma doutrina em termos equivalentes, contanto que se afir me sempre a fé em Jesús Cristo Deus feito homem. Qualquer eqplicagáo que de algum modo derrogue a esta fé, já perverte — 315 —

28

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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o Cristianismo, reduzindo-o á categoría de mera corrente hu mana de pensamento. Ora é o que acontece as teses dos autores citados: movidos pela louvável intengáo de atualizar a linguagem da teología, já nao estáo simplesmente substituindo expres sóes antigás por equivalentes expressóes modernas, mas estáo afetando o conteúdo mesmo da fé crista.

De resto, somente se Jesús é verdadeiro Deus encarnado, se entende a mensagem do Cristianismo: este afirma que na

plenitude dos tempos Deus quis assumir a natureza ,do homem,

sua vida, seus sofrimentos e sua morte, para dar sentido novo a estas realidades, ou seja, para santificar e divinizar o homem e o mundo; em conssqüéncia, o cristáo tem a esperanga e a cer teza de que a sua vida cotidiana, por mais comezinha que seja, tem um valor de eternidade; ela é o cenário no qual Cristo pro longa a sua vida de Filho de Deus, fazendo-nos com Ele voltar ao Pai.

Para reafirmar tais nocóes, que sao essenciais ao Cristia nismo, é que a S. Congregagáo para a Doutrina da Fé houve por

bem publicar o documento que transcrevemos abaixo:

3.

«O misterio do Filho de Deus»

DECLARACÁO PARA SALVAGUARDAR DE ERROS RECENTES A FÉ NOS MISTERIOS DA ENCARNACÁO E DA SS. TRINDADE 1.

É necessário que o misterio do Filho de Deus feito homem e

o misterio da Santíssima Trindade, que fazem parte das verdades principáis da Revelacao, iluminem, com a pureza da sua verdade, a vida dos cristaos. Mas, como estes misterios foram impugnados por alguns erros recentes, a Sagrada Congregacáo para « Doutrina da

Fé tomou a decisao de recordar « salvaguardar a fé transmitida sobre estes mesmos misterios.

2.

A fé católica no Filho de Deus feito homem

Jesús Cristo, durante a Sua vida terrestre, manifestou, de diver

sos modos, com as palavras e com as obras, o misterio adorável da Sua pessoa. Depois de se ter tornado «obediente até a morte» (Flp 2,8), fot exaltado pelo poder de Deus, na nessurreicao gloriosa, como convinha ao Filho «por meio do qual tudo foi criado pelo Pai» (1 Cor 8,6). A respeito d'Ele, Sao Joao afirmou solertemente: «No

— 316 —

JESÚS, DEUS E HOMEM

29

principio ¡ó existia o Verbo, e o Verbo estova com Deus, e o Verbo era Deus... E o Verbo fez-se homem» (Jo 1,1 e 14; cfr. 1,18). A Igreja conservou sempre, santamente, a fé no misterio do Filho de Deus feito homem, transmitindo-a «no decurso dos anos e dos séculos» (I Concilio Vaticano, Dei Rlius, c. 4; DS 150), com urna

linguagem cada vez mais explícita. Com efeito, no Símbolo de Constantinopla, que até hoje é recitado na celebracáo eucarística, ela professa a sua fé «em Jesús Cristo, Filho Unigénito de Deus, nasddo do Pai antes de todos os séculos... Deus veradeiro de Deus ver dadero... da mesma substancia do Pai... que por nos homens, <e pela nossa salvacáo. . . se fez homem» (Missal Romano; DS 150). O Concilio de Calcedonia decretou que se devia crer que o Filho de Deus foi aerado pelo Pai, segundo a Sua divindade, antes de todos os séculos, e nasceu, no tempo, de Mario Virgem, segundo a Sua humanidade {Cfr. Concilio de Calcedonia, Definicáo; DS 391). Além disso, este mesmo Concilio atribuiu o termo pessoa ou hypostasis ao único e mesmo Cristo, Filho de Deus, usando, porém, o termo nofureza para

desi,grtar a Sua divindade e a Sua humanidade. Com estas palavras, ensinou que estao unidas, na única pessoa do nosso Redentor, as duas naturezas, divina e humana, sem confusao e sem mudanca, sem

divisao e sem separacao I cfr. ibid., 302). Do mesmo modo, o IV Con

cilio de Latrao ensinou que se deve crer e professar que o Filho Uni

génito de Deus, eterno como o Pai, se tornou verdadeiro homem e é urna só pessoa em duas naturezas (cfr. IV Conc. de Latrao, Firmiter

credimus; DS 800 s.). Esta é a fé católica que o II Concilio do Vati

cano, de acordó com a Tradicao constante de toda a Igreja, ensinou

recen'temente com muita clareza em numerosas passagens dos seus documentos. :

3.

Alguns erres retentes sobre a fé no Filho de Deus feito homem

Sao claramente opostas a esta fé as opinioes segundo as quais nao nos foi revelado e nem se sobe que o Filho de Deus subsiste ab aeterno, no misterio de Deus, distinto do Pai e do Espirito Santo;

e também as opinioes segundo as quais nao tem sentido a afirmacao de que Jesús Cristo tem urna só pessoa, gerada, ant.es dos séculos, pelo Pai, segundo a natureza divina, e, no tempo, de María Virgem, segundo a natureza humana ; e, por fim, a assercño segundo a qual 1 Cfr II Concilio do Vaticano, Lumen GenMum, nn. 3, 7, 52, 53; Dei

Verbum, nn. 2 e 3; Gaudum et Spes, n. 22; Unitalis Redlntegratio, n. 12; Chrlstus Dominus, n. 1 ; Ad Gentes, n. 3; Paulo VI, Solene Profissio de Fé, em: A.A.S. 60, 1968, 437.

— 317 —

30

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

a humanidade de Jesús Cristo existe nao como assumida na pessoa

eterna do Filho de Deus, mas em si mesma, como pessoa humana, e, por conseguirle, o misterio de Jesús Cristo consiste no fato de Deus se revelar presente de um modo supremo na pessoa humana de Jesús.

Aqueles que pensam assim estáo longe da verdadeira fé em Cristo, mesmo quando asserem que a singular presenta de Deus -em Jesús faz com que Ele seja a expressao suprema e definitiva da revelacao divina, e nao recuperam a veradeira fé na divindade de Cristo, quando acrescentam que Jesús pode ser chamado Deus, porque Deus

está sumamente presente naquela pessoa a que «les chamam a Sua pessoa humana.

4.

A fé católica na Santíssima Trindade e no Espirito Santo

Quando se nega o misterio da .pessoa divina e «terna de Cristo,

Filho de Deus, também se negam a verdade da Santíssima Trindade e, com e!a, a verdade do Espirito Santo, que proceda ob aeterno do Pai e do Filho, ou, por outras palavras, do Pai pelo Filho (cfr. Conci lio de Florenca, Laetentur coeli; DS 1300). Por isso, considerando os erros recentes sobre esta doutrina, devem ser recordadas algumas verdades de fé na Santíssima Trindade e, particularmente, no Espi rito Santo.

A segunda carta aos Corintios termina com esta admirável fór mula : «A graga do Senhor Jesús Cristo, o amor de Dieus e a comu-

nicacao do Espirito Santo sejam com todos vés» (2 Cor 13,13). No

mandato de ¿atizar, referido pelo Evangelho de Sao Mateus, sao

nomeados o Pai, o Filho e o Espirito Santo, como tres que fazem parte do misterio de Deus e em cujo nome os novos fiéis devem ser regenerados (cfr. Mt 28,19). Por fim, no Evangelho de Sao Joáo, Jesús fala da vinda do Espirito Santo, deste modo : «Mas, quando vier o Consolador, que vos hei de enviar da parte do Pai, o Espirito da Verdade, que procede do Pai, Ele dará testemunho de Mim» (Jo

15,26).

Baseando-se nos dados da divina revelacáo, o Magisterio da

Igreja, o único que recebeu «a missáo de interpretar auténticamente a palavra de Deus escrita ou transmitida» (II Concilio do Vaticano, Del Verbum, n. 10), professou, no Símbolo de Constantinopla, a suo

fé «no Espirito Santo que é Senhor e dá a vida.. . e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado» (Missal Romano; DS 150). Igual mente, o IV Concilio de latráo ensinou a crer e a professar «que um só é o verdadeiro Deus... Pai e Filho e Espirito Santo : tres pessoas,

— 318 —

JESÚS, DEUS E HOMEM mas urna única essénáa...

31

o Poi que nao procede de ninguém, o

Filho qua procede somente do Pai, e o Espirito Santo que procede igualmente de ambos, sempre sem inicio c sem fim» (IV Concilio do Larrao, Firmiter Credimus; DS 800). 5.

Alguns erros recentes sobre a Santíssima Tríndade e, par

ticularmente, sobre o Espirito Santo

É contraria á fé a opiniáo segundo a qual a revelacáo nos deixa em dúvída sobre a eternidade da Santíssima Trindade «, particular mente, sobre a existencia eterna do Espirito Santo, como pessoa dis tinta, em Deus, do Pai e do Filho. é verdade que o misterio da San tíssima Trindade nos foi revelado na economia da salvacao, princi palmente! em Cristo, que foi enviado ao mundo pelo Pai e que, jun tamente com o Pai, envia ao Povo de Deus o Espirito que vivifica. Mas, por meio desta revelacáo, foi dada aos fiéis também a possibilidade de conhecer de algum 'nodo a vida íntima de Deus, na qual «o Pai que gera, o Filho <,je é gerado e o Espirito Santo que procede» sao «da mesma substancia, iguais, do mesmo modo omni

potentes e eternos»

6.

(ibid.).

Os misterios da Encarnacáo e da Santísshna Trindade devem ser fielmente conservados e explicados

O que é expresso nos documentos conciliares ácima citados sobne o único e mesmo Cristo Filho de Deus, gerado, antes dos séculos, segundo a natureza divina, e, no tempo, segundo a natureza humana, e sobre as pessoas eternas da Santíssima Trindade, pertence á verdade imutáviel da fé católica.

Isto nao impede, certamente, que a Igreja considere como seu dever, levando também em consideracáo os novos modos die pensar dos homens, nao deixar de envidar esforcos, a fim de que os mencio

nados misterios sejam aprofundados, por meio da contemplacáo da fé e da investigacáo dos teólogos, e mais amplamente explicados, de um modo adequado. Mas, quando se cumpre a necessária tarefa de investigar, é preciso evitar diligentemente que estes misterios arcanos

sejam considerados num sentido diverso ¿aqueles segundo o qual «a Igreja os «ntendeu e entende». 1

51 Concilio do Vaticano, Del Fllhis, c. 4, can. 3 ; DS 3043 ; Joáo XXIII,

Alocucáo na abertura do II Concillo do Vaticano, em : A.A.S., 54 1962, 792 ■ II Concilio do Vaticano, Gaudium et spes, n. 62; Paulo VI, Solene Pro-

fissao de Fé, 4, em : A.A.S. 60, 1968, 434.

— 319 —

32

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

A verdade intacta desfes misterios é de suma inportáncia para toda a revelacáo de Cristo, porque eles de tal modo fazem parte do seu núcleo, que, se forem alterados, também será falsificado o resto do tesouro da fé. A verdade destes mesmos misterios é igualmente importante para a vida crista, porque nada manifestó tao bem a caridade de Deus, da qual toda a vida dos cristáos dieve ser urna resposta, como a Encarnacáo do Fílho de Deus, nosso Redentor (cfr.

1

Jo 4,9$), e também porque «aprouve a Deus, na Sua bon-

dade e sabedoría, revelar-se
Verbo Encarnado, tém acesso ao Pai no Espirito Santo e n'Ele se tornam participantes da natureza divina» (II Concilio do Vaticano, Dei Verbum, n. 2; cfr. Ef 2,18; 2 Ped 1,4). 7.

Portanto, com respeito as verdades que a .presente Decía-

racao defende, é dever dos Pastores da Igreja exigir a unidade na profissao de fé do seu povo e, principalmente, daqueles que, em virtude do mandato que Ihes foi confiado pelo Magisterio, ensinam as ciencias sagradas ou pregam a palavra de Deus. Este dever dos Bispos faz parte do múnus que, divinamente, Ihes foi confiado : de «conservar puro e íntegro o depósito da fé», ;em comunháo com o sucessor de Pedro, e de «anunciar incessantemente o Evangelho» (Paulo VI, Exortacáo Apostólica Quinqué jam Anni; em A.A.S. 68, 1971, 99, e em : O.R. ed. port., 10 de ¡aneiro de 1971, p. 9). Por causa do mencionado múnus, sao obrigados a nao permitir que os ministros da palavra de Deus se afastem da sa doutrina e a trans mita m corrompida ou incompleta 1, Com efeito, o povo confiado aos

cuidados dos Bispos, « «do qual» eles «sao responsáveis diante de Deus» (Paulo VI, ibid.), .goza do «direito ¡rrevogável e sagrado» de «receber a palavra de Deus, da qual a Igreja nunca deixou de adquirir

urna compreensao cada vez mais profunda»

(ibid.).

Além disso, os cristáos, «, principalmente, os teólogos, por causa do seu importante oficio e do seu necessário servico na Igreja, devem

professar fielmente os misterios que sao recordados na presente De cía racao. Igualmente, sob a acáo e a luz do Espirito Santo, os filhos

da Igreja devem aceitar toda a doutrina da Igreja, sob a guía dos seus Pastores e do Pastor da Igreja universal2, de modo que hoja «urna singular colaboracáo de Pastores e fiéis,

na conservacáo,

no

exiereído e na profissao da fé recebida» 3. 'Cfr. 2 Tim 4,1-5; Paulo VI, ibid.; Sínodo dos Bispos, Assembléla de 1967, Rotatorio da ComlssSo Sinodal constituida para o exame das oplntóes perlgosas e do ateísmo, 11,3,3 em O.R. 30-31 de outubro de 1967, p. 3.

' Cfr. II Concillo do Vaticano, Lumen Gentlum, nn. 12 e 25; Sínodo dos Bispos, Assembléla de 1967, Ibid. II, 4. 1II Concilio do Vaticano, Dei Verbum, n. 10.

— 320 —

JESÚS. DEUS E HOMEM

33

O Sumo Pontífice, por divina Providencia Papa Paulo VI, na

audiencia concedida, no día 21 de fevereiro de 1972, ao subscrito Prefeito da Sagrada Congregacáo para a Doutrina da Fé, ratificou

e confirmoü esta Declaracao que visa a salvaguardar a fé nos mis terios da Encarnacao e da Santissima Trindade, e ordenou que fosse publicada.

Roma, Sagrada Congregacao para a Doutrina da Fé, 21 fevereiro de 1972, fesfa de Sao Pedro Domino. t

t

de

FRANJO Cardeal SEPER Prefeito PAÚL

PHIUPPE

Arcebispo titular de Heracleópoüs magna Secretario

4.

Breve comentario

Como se vé, o texto da Declaragáo nao cita nomes de au

tores nem profere anatemas ou condenagóes sobre quem quer

que seja. Apenas indica posigóes doutrinárias, distinguindo do

erro a verdade. Termina com apelo aos bispos e pastores de

almas, a fim de que exergam fielmente o seu ministerio de arautos e defensores da reta fé, em beneficio do povo de Deus, que

muitas vezes se vé sujeito a pregagóes e leituras pouco equili

bradas, as quais perturbara e pnejudicam seriamente a vida crista.

Recapitulando o teor do documento atrás transcrito, po demos dizer que sao quatro os erros nele rejeitados:

1) A tese segundo a qual a' psssoa de Cristo nao seria an terior á encarnagáo. A pessoa do Filho de Deus nao seria coeterna com o Pai e o Espirito Santo.

2) A tese que nega, possa a única pessoa de Jesús Cristo —

coeterna com o Pai e o Espirito Santo — subsistir na natureza

humana desde o primeiro instante da encarnagáo no seio de

Maria .Virgem. Duas naturezas — a divina e a humana — seriam incompatíveis com a unidade que se deve afirmar em Cristo. — 321 —

34

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

151/1972

3) A tese que admite em Jesús Cristo urna só pessoa — a humana — e urna só natureza (humana). Em Cristo, mero

homem, Deus se revelarla de modo singular. — Reconhega-se

que em Cristo Deus Pai se revela, nao, porém, mediante urna pessoa humana, mas, sim, mediante a segunda Pessoa da SS. Trindade.

4) Quem nega a Pessoa divina de Cristo nega também a SS. Trindade; a eternidade da Pessoa do Espirito Santo é posta em causa. A SS. Trindade teria comegado a existir com a vida humana de Cristo. A linguagem da Declaragáo de Fé é assaz técnica, pois re toma as definigóes de antigos Concilios. Como quer que seja, ela se opóe a qualquer tentativa de negar seja Jesús Cristo ver-

dadeiro Deus e verdadeiro homem. Essa doutrina foi expressa

em termos rigorosamente precisos nos primeiros sáculos ida Igreja; a nomenclatura entáo adotada tornou-se garantia de conservagáo da reta fé, de sorte que a reforma dessa nomenclatura hoje em día pode acarretar ambigüidades ou mesmo erros em um setor capital para a mensagem crista. — Eis por que a S. Igreja interveio enérgica e claramente no momento oportuno. Para o estudioso sincero, nao pode restar margem á hesitagáo. Bibliografía:

Marcelo González, "La foi en Jésus-Christ et en la Sainte Trlnlté", em "L'Osservatore Romano" (ed. francesa), S/V/1972, p. 11. Jean Galot, "Alcunl recenti error! sui misterl dell'lncarnazione e della Trinitá", em "La Civiltá Cattollca", n? 2923, 1/IV/1972, pp. 41-46. Jorge Mejia, "La 23/111/1972, pp. 144-146.

Declaración

doctrinal",

Jean Galot, "Tentativi di una nuova Cattolica" n
ídem,

"Rinnovamento

della

em

"Criterio"

Cristologia",

Cristologla",

em

"La

em

Civiltá

n?

"La

1640,

Civiltá

Cattolica"

n? 2887, 3/X/1970. pp. 31-41.

ídem, "Alcuni recenti error! sui misteri deli'lncamazione e della Trlni tá", em "La Civiltá Cattolica" n° 2923, 1/IV/1972, pp. 41-46.

"UM

A

CRISTÁO

QUEM

CONFIOU

É

UM

JESÚS

TODOS

OS

HOMEM

CRISTO HOMENS" Perreyve

— 322 —

RENOVACÁO E FIDELIDADE "Para um cristáo, a renovacáo continua é um programa.

O principio de Aristóteles segundo o qual a imobilidade do •centro é principio de mobilidade da periferia para o centro reflete bem a vida crista. A vida crista define-se essenciaimente e ao mesmo tempo pela fixidez e pela novidade.

Deveríamos ter sempre ante os oihos essa dualidade que, tanto no plano doutrinal como no plano prático, nos traz a resposta a urna grande questáo

muito atual:

cristaos

fervorosos,

fiéis,

auténticos,

livres,

como sermos

enraizados

em

verdades e em formas de vida que nao toleram variacóes, e, ao mesmo tempo, sempre em demanda de novas formas de

vida portadoras de progresso ? é preciso tendamos para urna constante renovacáo de vida (.cf. Rom 6,4) numa firme fideli-

dade á fé, sem equívocos (cf. 1 Pe 5,9). Essa associagáo entre a fixidez na fé, na esperanca e na caridade, num profundo

desejo de coeréncia e de autenticidade crista, de um lado, e, de outro lado, a aspiracáo a explorar incessantemente a verdade revelada, com o desejo de imitar o Cristo e de trabalhar na salvagáo

de

nossos

irmaos

de

maneiras

sempre

novas... deveria constituir o objeto de um dos anseios cons tantes do verdadeiro cristáo. Isto quer dizer que a nossa capa-

cidade de resistir ao espirito revolucionario próprio do nosso século e de transcendé-lo vitoriosamente,

ao

mesmo tempo

que ela imprime á nossa vida crista urna liberdade de movimento, urna aptidáo a agir de maneira benfazeja...

deveria

lembrar-nos o genio do cristianismo, que é urna floracáo sem pre nova da vida presente (vida que é precaria) em vista da vida futura (vida que é

segura)

da

eternidade.

Ela

deveria

manifestar ao mundo a adesao e a fidelidade de nossa vida ao Cristo ressuscitado, que já nao morre (Rom 6,9)". (Paulo VI, alocucáo de 25-IV-1972).

— 323 —

Um livro original:

"jesús de nazaré" do padre José comblin

Em síntese: O livro do P. Comblin "Jesús de Nazaré" constituí urna tentativa de fazer o leitor reviver a experiencia dos Apostólos e discípulos que acompanhavam Jesús antes de Páscoa. Jesús devia parecer-thes miste rioso, mas nao se revelava plenamente como Deus, segundo Comblin. Tal tentativa em si é válida. Acontece, porém, que, ao executá-la, Comblin aos poucos contribuí para que Jesús de fato nao apareca aos leitores senáo como mero homem ; o "Jesús" de Comblin nao só era mero homem na apreensáo subjetiva dos Apostólos, mas vertí a ser em si, objetivamente, mero homem. O autor prescinde da sua Divindade a tal ponto que a fé em Cristo Deus parece algo de adventicio ou supérfluo. Por certo, a Intencáo de Comblin nao era a de negar a Divindade de Cristo ; mas o livro apresenta o perlgo de dificultar a fé em Crlsto-Deus, em vez de a purificar e tornar mais forte e auténtica, pois as Impressóes subjetivas dos Apostólos s8o confundidas com a realidade objetiva de Cristo.

Comentario: O P. José Comblin langou em fins de 1971, pela Editora Vozes de Petrópolis, mais um de seus estudos teológico-bíblicos: «Jesús de Nazaré. Meditacóes sobre a vida e a agáo humana de Jesús». Neste livro de 144 páginas, o autor tendona descrever o perfil de Jesús tal como os Apostólos e dis cípulos o viram antes de Páscoa, ou seja, quando «aos olhos dos discípulos Jesús ainda era um homem, simplesmente homem» (p. 7). A fé em Jesús parece exigir que se tome clara consciéncia de quem era Jesús, verdadeiro homem que viveu na Palestina há mais de dezenove séculos; caso se descuide o perfil humano

de Cristo, a fé no Senhor pode tornar-se mítica, ou seja, urna atitude de piedade subjetiva, sentimental, desvinculada da rea lidade passada. É consciente disto que o P. Comblim escreve o seu estudo sobre Jesús.

O livro se le com muita facilidade; destina-se a ampio cír

culo de leitores. Mas tem suscitado comentarios contraditórios. — 324 —

«JESÚS DE NAZARÉ» DE COMBLIN

37

É por isto que abaixo o analisaremos, acrescentando-lhe algumas reflexóes, embora saibamos que o erudito autor da obra está ausente do Brasil; em tudo procuraremos ser objetivos e ponderados.

Comecaremos por expor sintéticamente os tragas princi páis do livro

1.

«Jesús de Nazaré»

O autor procura, em todo o decurso do seu escrito, abstrair da Divindade de Jesús. Recoloca Jesús no seu ambiente geo

gráfico, étnico e familiar, equiparando o futuro profeta aos demais meninos e adolescentes da Galiléia; estes eram intensa mente imbuidos de cultura biblica e tinham consciéncia de pertencer a um povo destinado á liberdade (pp. 16s). Já adulto, Jesús iniciou sua vida pública, mas «nunca ex-

plicou realmente quem era ele» (p. 18). «Jamáis ninguém, du

rante todo o tempo .da sua vida terrestre, desconfiou que fosse mais do que um homem» (p. 19).

O grande objetivo da míssáo de Jesús foi despertar os seus

compatriotas para a conquista da liberdade que o patrimonio

bíblico-religioso de Israel lhes indicava. Essa liberdade era en-

travada principalmente «palo medo e a falsa submissáo religio sa em que os fariseus mantinham o povo judeu» (p. 38). «Jesús nao lutou contra o sistema económico, social, político do seu tempo: o povo faria isso. Ele libertou o povo do adversario que o mantinha escravizado dentro de si mesmo» (p. 38).

Aconteceu, porém, que Jesús encontrou seria resistencia da parte da classe mentora de Israel. Reconfortou-se, porém,

ao lembrar-sc do que os profetas haviam predito que a obra de Deus se continuaría mediante o «resto de Israel»; este resto, no caso de Jesús, eram os doze Apostólos,

" " O grande mestre anunciou a vinda do Reino de Deus so bre a térra. Como e quando este acontecimento se daría, ele o ignorava Devia presumir, de acordó com as profecías, que o Reino (com o julgamento final ,dos povos e a restauracáo da or-

dem no universo) irromperia em breve; por isto tambem nao cuidou de organizar a sua Igreja. O Pai, em sua Providencia,

despertaría nos Apostólos a intuigáo necessária para levarem

adiante em ordem e eficiencia o ideal de Jesús. O que Jesús le— 325 —

38

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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gou aos seus Apostólos é sumario: «Deixou apenas algumas recomendagóes de humildade e de caridade, reuniu os Doze e entregou-lfass a continuagáo da sua obra, deu urna missáo especial a Pedro, recomendou que fizessem a ceia em sua memoria e como sinal da nova alianca selada na cruz. Mais nada» (p. 96).

Essa ceia «nao era um ato de culto. .. A eucaristía virou missa dentro do contexto de eivilizagáo do mundo mediterráneo, como adaptagáo cultural» (p. 68).

Ñas suas relagóes com Deus, Jesús era extremamente so brio: «nao praticava ato religioso, nem parecía preocupar-se com a prática religiosa dos seus discípulos» (p. 66). Quando ia ao templo, ia para tomar a palavra; «usava o templo como tri buna ou teatro das suas atividades, num sentido totalmente se cularizado; o templo é lugar em que se encontram muitas pessoas reunidas» (p. 67). «A missáo de Jesús girava ism torno de duas preocupagóes principáis: a mensagem de libertagáo e a mensagem de fraternidade para refazer a alianca de Israel, a verdadeira e eterna» (p. 66). Em suma, o livro em foco apresenta um Jesús secularizado, isto é, reduzido as suas dimensóes meramente humanas. O autor nao pretende negar a Divindade de Jesús Cristo, pois é sacerdo te católico; julga, porém, oferecer aos seus leitores urna autén tica faceta de Jesús, que poderá contribuir a fundamentar urna fé mais adulta e madura no Senhor Jesús; este, depois de Páscoa, foi plenamente reconhecido e comprovado como Deus. Diante de tal tese, vem a propósito a pergunta:

2.

Que

dizer?

Proponamos tres observagóes: 2.1.

Difícil artificio

O P. Comblin tcnciona reviver, com seus leitores, a expe riencia dos Apostólos que acompanhavam Jesús durante a sua vida mortal: viam em Jesús um homem, apenas um homem, embora extraordinario. Dinamos ser bem possível que os Apos tólos tenham passado por tal experiencia (embora em Mt 16,16 Pedro reconhega Jesús como o Filho do Deus vivo — confissáo esta que só podía ser feita por revelacáo do Pai)... Mas o fato é que o P. Comblin nao se limita a apresentar apenas a atitude

— 326 —

«JESÚS DE NAZARÉ» DE COMBLIN

39

subjetiva dos Apostólos; ele chega a insinuar que Jesús mesmo, em seu comportamento exterior e em seu íntimo, só se regia por criterios humanos au pslo estilo de vida dos profetas antigos; a quanto se pode depreender da leitura do livro, Jesús mes mo ignoraría ser verdadeiro Deus, e nao teria nogáo exata do plano do Pai referente a Israel e á humanidade. Em suma, o Jesús de Nazaré de Comblin nao somente aparece como homem aos seus seguidores, mas é homem, mero homem, e nao Deus

feito homem... É esta a impressáo que o leitor vai colhendo através da leitura das páginas de Comblin. Embora este autor nao tencione negar que Jesús seja Deus e homem, apresenta-o de modo que equivale a por de lado (ou praticamente cancelar) a Divindade de Cristo. Notemos que tentar reconstituir as expe

riencias subjetivas dos Apostólos no convivio com Jesús antes

de Páscoa é tarefa válida. Nao se deve, porém, confundir o subjetivo com o objetivo, ou seja, insinuar que Jesús objetiva mente ou em si nao era mais do que o homem extraordinario reconhecido pelos Apostólos. O homem «Jesús de Nazaré» de Comblin carece mesmo

de dimensóes religiosas propriamente ditas. É um humanista, arauto de liberdade e fraternidade, nao, porcm, de um relacionamento novo e mais íntimo com Deus Pai. A nogáo de pecado como ruptura do amor a Deus nao aparece no contexto da obra.

Ora tal apresentagáo de Jesús, em vez de purificar a fé dos cristáos, pode concorrer para destrui-la. As páginas de Comblin circunscrevem táo bem Jesús como homem que parece supérfluo ou até mitológico ainda querer professar a Divindade de Jesús.

De resto, o método de Comblin dá lugar a ambigüidades ou questóes abertas. Conforme o Evangelho, Jesús julgará os homens e os separará no fim dos tempos, levando em conta o comportamento de cada um em relagáo a Ele (cf. Mt 25, 31-46); Jesús se colocou no lugar de Javé, reformulando as leis dadas ao antigo Israel (cf. Mt 5,21.27.31.33.38.43); apresentou-se como Senhor do sábado ou do dia que Javé dedicava a Si (cf. Me 2, 27s). Estas e outras passagens do Evangelho — que Com blin nao ignora — dáo tcstcinunho da Divindade de Cristo. A

confissao de Pedro («Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo») e a resposta de Jesús em Mt 16,17-19 nao sao explanadas pelo autor, que só utiliza o texto breve de Me 8,29: «Tu és o Cristo»;

Comblin julga que a formulacáo de Mateus pode ser expressao apenas do modo de pensar dos primeiros cristáos — o que é gratuito ou preconcebido (a resposta de Jesús em Mt 16,17-19 — 327 —

40

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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é um tecido de aramaismos, o que nos faz supor tratar-se das próprias e diretas palavras de Cristo, «ipslssima verba Christi»).

Quanto ao culto de Jesus-Deus, compraende-se que os Apos

tólos nao o tenham prestado antes de Páscoa. Nao se julgue, po-

rém, que o culto a Jesús tributado pelos Apostólos e pelos pri-

meiros cristáos (cf. At 7,56-60; Rom 9,5) nao soja essencial ao Cristianismo. Comblin acha legitimo o culto a Jesus-Deus, mas o coloca em luz ambigua: «houve um tempo em que ser cristáo apareceu aos olhos do mundo como sendo 'praticar o culto de Jesús'. Há os que praticam o culto de Serápis, outros

de Atis, outros de Mitra, outros de Cristo. Contudo nao pode mos aceitar (p.20).

precipitadamente essa definigáo

de ser cristáo»

i

2.2.

Jesús e a oracáo

Dizer que Jesús nao tinha interesses religiosos explícitos nem deu o exemplo de vida mística (cf. p. 69) significa violen tar os textos do Evangelho. Verdade é que estes nao tencionam retratar de maneira completa a vida interior de Jesús Cristo, mas apenas fornecem episodios seletos em vista da catequese. Todavía dáo-nos a entender suficientemente que Jesús praticava a oracáo e a quis inculir aos seus discípulos. Tenha-se em vista principalmente o Evangelho segundo Sao Lucas: Um ensinamento profundo sobre a oracáo se encontra na secgáo de Le 11,1-13: após dar o exemplo (11,1), o Mestre for mula, para uso de seus discípulos, o «Pai Nosso»

(11,2-4); ao

que acrescenta duas parábolas (a do amigo insistente e a do pai bondoso), que recomendam ao orante perseveranca e confianga (11,5-13). A parábola da viúva importuna (18,1-8) e a do fariseu e do publicano (18,9-14) completam o quadro, sublinhado perseveranca e humildade na oracáo.

Referindo^se á segunda vinda de Cristo, Jesús incita os dis

cípulos a vigiar e orar (cf. Le 21,36). De resto, o cristáo deve orar sem cessar (cf. Le 18, 1). Jesús também deu o exemplo da oracáo: certa vez, retirou-se para o deserto a fim de orar após ter curado a muitos (Me 1, 35). Orou também por ocasiáo do seu batismo (Le 3,21); após a cura do leproso, orava no deserto (Le 5,1); antes de escolher os Apostólos, passou a r.oite em oragáo (Le 6,12); antes da confissáo
«JESÚS DE NAZARÉ» DE COMBLIN

41

de ensinar a oragáo do «Pai Nosso», Jesús dera o exemplo res pectivo (Le ll.ls); após a multiplicagáo dos páes, retirou-se ao monte para rezar (Me 6,46); no horto das Oliveiras, rezou ao Pai (Le 22,39-46); antes da Paixáo, rogou especialmente por

Pedro (Le 22,32); crucificado, rogou pelos inimigos (Le 23,34) e, finalmente, em oragáo entregou o espirito ao Pai (Le 23,46). Quanto á participagáo de Jesús nos atos de culto do Tem plo, é insinuada por Le 2,42 (Jesús tinha doze anos), assim co mo pelo desejo que Jesús manifestou de ser batizado e cumprir em tudo os preceitos legáis dados a Israel (cf. Mt 3,15). Celebrou a ceia ritual de Páscoa, após a qual cantou o Halel pascoal (cf. Mt 26,30) e mandou que seus discípulos repetissem tal ato (cf. Le 22,19); essa ordem de Cristo foi entendida como preceito litúrgico, como atestam os escritos do Novo Testamen

to, onde se lé, por exemplo: «Os discípulos, unidos de coracáo, freqüentavam todos os dias o Templo. Partiam o pao ñas casas

e tomavam a comida com alegría e singeleza de coragáo, louvan-

do a Deus e cativando a simpatía de todo o povo» (At 2,46s). A

estima que Jesús tinha pelo Templo como casa de oragáo se ma-

nifesta claramente na expulsáo dos vendilhóes do Templo (Mt 21,12s).

Estes textos constituem base suficiente para dizer que a oragáo — tanto em seu aspecto privado como em sua dimensáo

comunitaria — ocupa lugar de relevo na mensagem de Cristo.

Para facilitar a reflexáo do leitor, segue-se aqui urna pá

gina do P. Reno Voillaume, que também analisa o tema «Jesús e a oragáo»:

"A oracSo de Jesús fica sendo, para nos, um misterio, decorrente do

seu misterio pessoal de Filho de Deus felto homem. Sua oracSo era um face-a-face Inalterado e ¡nalterável com o Pai; para ele, nao havla diticuldades na oracáo nem método de oracSo. Todavía era realmente como homem, como verdadeiro homem, que ele orava ; a sua oracao no horto das Oli veiras o atesta eloqüentemente.

A oracáo de Jesús foi, antes do mais, a oracáo de um filho de homem. Realmente, em sua alma humana e com toda a sua alma humana, Ele orou

ao Pai como nos oramos. Assim vemo-Lo retlrar-se na solidao para orar, nao slmplesmente a fim de nos dar o exemplo; Ele preclsava disso como homem.

Mas a sua oracáo era divinamente filial, pois Jesús vivia humanamente a sua própria vida de Filho único do Pal. Aquí nao podemos talar dessa oracSo senáo balbuciando: era a repercussáo, em sua inteligencia e em seu coragáo humano, do fluxo e refluxo de conhecimento e de amor que jorram no selo mesmo da Trindade. É até lá que Cristo nos quer levar con sigo, pois também nos devemos orar filialmente.

— 329 —

42

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

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Jesús também orou como nosso Cabera e em nome de todos nos. E o Evangelho nos mostra que a sua ora?áo pessoal, se posso dizer, estava toda modelada pelo seu ser e pela sua missáo de Salvador. Mesmo quando Jesús em oracao no Tabor deixou transparecer o fulgor da sua Divindade, Ele se entretlnha a respeito da sua morte. A Paixáo, a Cruz e a oferenda de sua vida marcaram a ora?áo do Salvador, como elas devem marcar também a nossa" ("Prier pour vivre". París 1966, pp. 6s).

2.3.

Ciencia e consciénda psicológica de Cristo

Jesús nao teria consciéncia de sua missáo de Salvador dos homens? Nao previa o futuro de sua Igreja? Ignorava o que seria feito de sua mensagem? Pensava que o juízo final se daría ainda no século I da era crista? Sao questóes suscitadas pela leitura da. obra de Comblin, que apresenta Cristo como dotado de ciencia humana limitada, incapaz de afirmar o que se daria após a morte do «profeta» Jesús. Ora, apesar de nao se poder sondar o íntimo de Jesús e as experiencias psicológicas que Ele como homem (que também era Deus) viveu, parece difícil admitir que Jesús (como ho mem) nao tenha recebido da parte do Pai os conhecimentos ati nentes ao bom e seguro desempenho de sua missáo. Foi nestes termos que os teólogos conceberam a ciencia humana de Jesús. Já o Evangelho de Sao Joáo póe nao raro em realce a ciencia profunda que Cristo tinha dos homens e ¡do plano doiPai:

Jo 2,24: «Jesús mesmo nao se fiava nelas, porque os conhecia a todos. Ele nao necessitava de que alguém desse testemunho de homem algum, pois Ele bem sabia o que havia no homem».

Jo 12,23. 27s: «Disse Jesús: É chegada a hora para o Filho do homem ser glorificado... Presentemente a minha alma está perturbada. Mas que direi?... Pai, salva-me desta hora...

Mas foi exatamente para isso que vim a esta hora. Pai, glorifi ca o teu nome».

Jo 13,1: «Antes da festa de Páscoa, sabendo Jesús que che-

gara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus que estavam no mundo, ate o extremo os amou».

Ter-se-ia o Evangelista engañado ao apresentar tal clarivi

dencia no Senhor Jesús? — Evidentemente, nao. Os textos que

parecem diminuir a ciencia humana de Jesús (Me 9,1; 13,32) foram classicamente explicados em sentido conciliável com o conhecimento sublime que Cristo devia ter do alcance de sua missáo. — 330 —

«JESÚS DE NAZARÉ» DE COMBLIN

43

Em sumo, o livro do P. Comblin «Jesús .de Nazaré» é inspi rado pela válida intengáo de nos fazer viver a experiencia dos Apostólos anterior á Páscoa; nao tinham plena consciéncia da Divindade de Jesús. Merece, porém, serias reservas pelo fato de que, consciente ou inconscientemente, o autor contribuí para que seus leitores acabem por nao ver em Jesús Cristo senáo um mero homem, ... mero homem que nao se sabe bem como ainda possa ser tido como verdadeiro Deus... Após a leitura do livro de Comblin, talvez a fé em Jesus-Deus aparega como algo de mitológico, em vez de se tornar urna fé mate sólida e pura, como pretende o autor.

Urna auténtica descrigáo da figura de Jesús Cristo jamáis poderá prescindir da realidade divina (Deus) que desponta com suficiente clareza através das narragoes mesmas ido Evangelho.

"Os pobres nao sao aqueles que, na térra, tém a receber tudo, e nada podem dar. A pior situacáo, para um homem, nao é, sem dúvida, a de viver a penuria, mas a de ser julgado e se julgar incapaz de dar coisa alguma. Nada esperar do pobre e querer constantemente ajudá-lo é aumentar a forca aniquiladora da sua pobreza; é relegar o pobre para essa franja da humanidade que provoca o desprezo dos maus e a compaixáo dos bons... Ora, se a veracidade do homem consiste em sua possibilidade de pedir, a honra do homem consiste em sua possibilidade de dar. Nenhum homem veraz, isto é, nenhum pobre, pode viver se nio se Ihe reconhece, juntamente

com aqueta veracidade, também esta honra. Se o dar sem experiencia de necessidade é urna máscara mentirosa, a necessídade sem dádiva é urna marginalizacao mortífera." André Dumas em "Prospective et prophétie"

— 331

Dito e repetido:

"o que se faz por amor, nao é pecado, ama, e íaze o que quiseres.

o pecado comeca quando se prejudicam terceiros". Em sintese: A filosofía e a teología hoje em dia realcam fortemente a grande importancia do amor como dínamo do comportamento e da vida moral do homem. é tal valorizacSo que leva a legitimar tudo que proceda do amor.

É necessário, porém, distinguir dols tipos de amor. Existe o amor

decorrente do uso da inteligencia, amor que subordina instintos e tendencias sensuais ao nobre ideal que o homem conceba. É este proprlamente o amor humano, que o Cristianismo ainda eleva ao plano de participacSo do amor de Deus. — Existe outrossim o amor-apetite, que é comum ao homem e aos irracionais. Tal amor, deixado a si, pode degradar o ser humano. É, pois, com vistas ao primeiro tipo de amor, e somente a este, que a Moral crista ensina : "Ama, e faze o que quiseres". Quanto ao pecado contra o próximo, é hoje particularmente recrimi nado, vistas as injusticas sociais de que padece a sociedade. Todavía nSo é o único tipo de culpa. Existem também faltas contra Deus e contra o próprlo

individuo. A Deus o cristao deve adesao direta na fé, no amor, na espe ranza, na oracáo. A si deve respeito, principalmente no uso de seu corpo.

Quem viola os direítos de Deus ou os de sua personalidade, indlretamente prejudica o próximo.

Em suma, encerram profunda sabedoría as palavras de Saint-Exupéry: "Amar, entre duas pessoas, nao consiste em olhar urna para a outra, mas em olharem juntas na mesma direcáo". O verdadeiro amor é aquele que leva duas ou mais criaturas a se auxiliarem mutuamente, a fim de que cheguem certeramente a Deus. De tal amor se dirá sempre: "Ama, e faze o que quiseres".

Comentario: Em nossos días dá-se énfase especial ao amor, seja amor conjugal, seja amor fraternal. Tornou-se mesmo — 332 —


45

axioma de grupos jovens: «Make love, not war» (Fazei o amor, nao a guerra). O odio, as guerras e as divisóes tém conotaeáo fortemente negativa na opiniáo pública. — A própria moral crista em sua renovagáo contemporánea, procura incutir, antes do mais, o preceito do amor, pois toda a Lei de Cristo se resume

em amor a Deus e ao próximo (cf. Le 10,27s). Nao dizia Sao Joáo que Deus é amor (cf. 1 Jo 4,8) ? E Sao Paulo nao afirmava que o amor c o vinculo da perfeigáo (cf. Col 3,14) ? S. Agostinho (f 430), por sua vez, ensinava: «Ama, e faze o que quise-

res». A consciéncia destas verdades tem sugerido frases como as que estáo reproduzidas no titulo deste artigo. Em conseqüéncra, póe-se mesmo a pergunta: pode-se ainda dizer que naja pe cado no caso de dois jovens solteiros que, de comum acordó, resolvem dar plena expansáo ao seu amor numa noite livre, sem lesar direitos alheios? Praticam tudo o que o amor lhes sugere sem cometer violencia entre si nem em relacáo a terceiros. Vis to que é o amor que inspira tal procedimento, pode-se reprovar a conduta dos dois jovens? Numerosos casos semelhantes sao julgados do mesmo modo: o amor legitima tudo, mesmo aquilo que os antigás, numa compreensáo mesquinha dos afetos huma nos, condenavam. Tais proposigóes mereceráo a nossa atengáo ñas páginas seguintes. 1.

Dois

amores

1. «O que se faz por amor, nao é pecado...» A ambigüidade sedutora da linguagem pede urna distincáo. Reconhegam-se dois tipos de amor:

a) Existe o amor propriamente humano, que é o que se segué aos atos da inteligencia. Esta apreende a verdade e a aponía a vontade. Conseqüentemente, a vontade se deleita na verdade, podendo mesmo querer praticá-la com afeto. É este querer com afeto que se chama amor em sentido próprio. Sempre coloca os bens do espirito ácima dos bens da carne. Um tal amor supóe o ideal, ou seja, urna meta que o homem pretende atingir para se realizar plenamente. Esse ideal atende as aspiragóes mais profundas da pessoa, que implicam sempre

doagáo e generosidade, com renuncia a interesses egoísticos.

No cristáo, tal amor é elevado a um plano ainda superior. A inteligencia guiada pela fé indica a meta mais elevada ou o — 333 —

46

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS*

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ideal supremo. A vontade e a afetividade, movidas pela caridade infusa, dirigem-se a esse ideal e a tudo que se lhe prende, com amor forte e nobre.

b) Existe no ser humano outro tipo de amor, que mais proprramente deveria ser dito «apetite» ou «instinto cegó»; é o amor sensual ou carnal, que visa ao prazer momentáneo, sem levar em conta a escala dos valores e os ditamos da inteligen cia. Tal apetite muitas vezes trai o homem e o degrada, assemelhando-o aos animáis irracionais e instintivos. Pode ser erótico, cobigoso, egoísta, etc.

Ora, quando o Cristianismo ensina que o amor é o vínculo da perfeigáo e que a lei de Cristo se reduz ao amor, entende o

amor no primeiro sentido, pois somente este é propriamente hu mano e cristáo. Sem desprezar afetos e sentimentos (nem o sexo), subordina-os completamente á visáo de fé que caracteriza o cristáo; é um amor de servigo a Deus e ao próximo, e nao de servigo do individuo a si mesmo diretamente \ 2. No que se refere a S. Agostinho em particular, note-se: este mestre reduzia toda a vida moral á prática do amor. Dis tinguía, porém, duas orientagóes possíveis para o amor (fora das quais nao vía terceira): — o amor do sujeito a si até o desprezo de Deus; seria a cupiditas ou cupidez; — o amor a Deus e ao próximo até a renuncia ao eu in dividual (caso fosse necessária para se guardar a integridade do amor generoso); seria a caridade ou o amor cristáo. Tenha-se em vista a obra do mestre: «A Cidade de Deus».

Ora era a este segundo tipo de amor que S. Agostinho atri

buía a legitimagáo de todos os nossos atos. O que se faga por

inspiragáo de tal amor, nao pode ser pecado, pois sempre dará o primado a Deus e á sua santissima vontade; nunca poderá su gerir a prática do desmando ou do pecado. No cristáo, o auténtico amor, inspirador de todos os atos bons, nao é menos do que a participagáo no amor do próprio Deus, como diz Sao Paulo: «O amor de Deus foi derramado em nossos coragóes pelo Espirito Santo, que nos foi dado» 5,5).

(Rom

1 Está claro que quem serve a Deus e ao próximo, Indlretamente serve

também a si mesmo, pois constrói a sua personalidade. "É dando que se recebe, é perdoando que se chega á vida eterna" (Sao Francisco de Assis).

— 334 —

«AMA, E FAZE O QUE QUISERES»

£7

3. Esse amor cristáo parte da convicgáo de que o ser hu mano nao é apenas carne e sensualidade, mas um conjunto de alma e corpo, bens espirituais e bens materiais, entre os quais é necessário estabelecer urna escala de valores. Ninguém chega a ser auténtica personalidade e filho de Deus se nao domina os instintos, dizendo Nao a si mesmo no momento oportuno. O amor cristáo entrega-se ao próximo nao por interesse mesquinho ou concupiscencia desregrada, mas porque quer o bem do próximo. Estas reflexóes permitem langar um olhar claro sobre cer tas casos concretos de «amor». Pergunta-se, por exemplo:

As concessóes ao sexo numa noite libertina ou num género de vida que nao tenha definigáo, tornam realmente os seus cli

entes mais felizes? — Pode-se dizer que na»; o uso libertino do

sexo vem a ser ilusáo e fuga; em vez de construir personalida

des, suscita seres obcecados e moralmente amorfos.

Pode-se dizer que alguém quer bem a outrem pelo fato de lhe proporcionar um prazer sensual que nao tenha qualidadc nem significado claro? — Nao; urna tal concessáo nao se chama amor. Amor quer dizer «ajudar o semelhante a ser mais ele mesmo, mais honrado e digno, andando de cabega erguida». Para amar assim, genuinamente, o cristáo tem que saber resistir ás seducóes, repelindo certos convites com vontade de cidida. Essas atitudes negativas sao expressóes de auténtico amor, porque ajudam o próximo a se libertar das suas paixóes e a se levantar do seu estado de vida indefinida.

De modo geral, o homem mais ama o próximo quando lhe diz um Nao oportuno do que quando lhe diz um Sim desproposi tado e meramente sentimental.

2.

Pecado e prejuíro do próximo

1. Inegavelmente certas correntes de filosofía moderna njudaram o homem contemporáneo a tomar consciéncia dos va lores da sociedade e das dimensóes sociais de sua vida. Ninguém

pode viver isoladamente; ninguém se realiza a sos. Estas proposigóes sao verídicas também no plano cristáo.

Contribuiram para avivar nos fiéis a consciéncia de suas res-

— 335 —

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«PERGUNTE E RESPONDEREM0S rel="nofollow">

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ponsabilidades perante a sodedade edesiástica e civil. Furtar-se aos deveres para com o próximo violando a justiga ou o amor ao semelhante, eis pecados que, sem grande dificuldade, todos

os cristáos reconhecem como pecados. Muitos sentem-se fácil mente culpados de um pecado coletivo, ou seja, de participar

mais ou menos voluntariamente no egoísmo social ou na exploracáo dos pobres ou ainda nos horrores da guerra. Essa sensibilidadc para com os valores sociais e os deveres dai decorrentes é por certo urna vitória do pensamento cristáo sobre o individualismo. Existe, porém, em nossos días o perigo de se res tringir o conceito de pecado as faltas contra a justiga e o amor ou contra o próximo. Só haveria pecado quando se ferissem direitos alheios ou quando se prejudicasse o próximo.

Ora esta última afirmagáo é evidentemente errónea. As dimensóes sociais da vida do cristáo jamáis deveráo levá-lo a

esquecer o aspecto pessoal e intransferível de seu comportamen-

to. O cristáo tem deveres para com Deus e para consigo que nao afetam diretamente as relagóes com o próximo e que devem ser cumpridos a fim de que nao cometa pecado. A Deus o cristáo deve fé, amor, obediencia, culto (oragáo individual e comuni taria, incluindo a S. MLssa aos domingos)... A si mesmo o

cristáo deve respeito: respeito as lejs de natureza, reverencia

ao corpo (que nao pode ser reduzido á categoría de instrumento do prazer). A infragáo desses deveres para com Deus e com o próprio sujeito pode ser táo grave quanto os pecados contra a

justiga; além do que, note-se que quem prejudica a si pelo pe cado, por mais secreto que este seja, nao pode deixar de estar prejudicando também ao próximo, pois concorre para o depau-

peramento de urna personalidade que faz parte da sociedade.

O Cristianismo tanto é comunitario quanto é personalista.

Diz muito bem o arcebispo de Tolosa, D. Jean Guyot, em docu mento publicado aos 23/1/1972: «Toda a tendencia da Revela-

gáo crista é urna tendencia á interiorldade. O paradoxo do Cris tianismo consiste em que ele é simultáneamente urna comunida-

de e urna intimidade incomunicável» («Documentation Catholique» n' 1604, 5/ÜI/1972, p. 228).

Vfi-sc, pois, que o uso livro do sexo por parte de duas pes-

soas que oslejam do comum acordó entro si e nao lesem tercei-

ros ao fazé-lo, nao deixa de ser pecado; é, sim, ofensa a Deus e ás duas pessoas envolvidas na «aventura»; além do que, será indiretiimenlo detrimento para a sociedade.

«AMA, E FAZE O QUE QUISERES»

2.

49

Verdade é que se poderia conceber a seguinte réplica a

tal afirmagáo:

O conceito de desonra decorrente da liberdade sexual é convencional. Por que nao se dizer que o uso do sexo inspirado pelo amor é sempre honroso, quaisquer que sejam as circuns tancias em que ocorra?

A tal observagáo se daria a seguinte resposta: o ser huma no nao improvisa sua grandeza; mas ele encontra os tragos de sua grandeza e nobreza impressos na sua própria natureza. Ora a natureza humana é tal que a inteligencia (e a fé) devem obter a primazia de comando, subordinando a si os instintos e apetites sexuais. O uso do sexo forado matrimonio carece de fínalidade

e contradiz ao planejamento harmonioso da vida dos interessados; a crianga que desse consorcio nasga, há de ser urna crianca sem lar constituido. Para que nao venha a ser tal, faz-se necessário o uso de anticoncepcionais, que permitem o uso do sexo sem a conseqüéncia da prole. Ora o prazer e a satísfagáo sensuais justificariam tais recursos ou tais desmandos? — Razoavelmente falando, nao. Somente a renuncia ao raciocinio, ou seja, á dignidade do homem, pode legitimar o libertinismo sexual.

3.

Talvez, porém, queira alguém observar ainda: «Nunca

matei, nunca roubei, nunca cometí adulterio ou coisa semelhante! Nao vejo pecado em mim!»

Tal pessoa, sem o saber, poderia incorrer no erro dos fariseus. O pecado nao consiste apenas em atos exteriores, mas tam-

bém em atos internos, mesmo que nao atinjam diretamente o

próximo. Mesmo sem matar ou roubar ou adulterar, pode al-

gucm, de consciéncia tranquila, afirmar que ama a Deus com todo o seu coragáo, todas as suas forgas e ao próximo como a si mesmo? Pode essa pessoa dizer que satisfaz á exigencia, pro

posta por Jesús, de amarmos como Ele amou (cf. Jo 15, 12) ?

Esse amor apregoado por Cristo exige severa disciplina de vida e luta do cristáo «contra o velho homem». É em fungáo da sua vida interior, ou seja, do seu relacionamento consigo mesmo

e com Deus, que o cristáo consegue amar devidamente ao pró

ximo. Sem interioridade ou sem contato direto e explícito com Deus, difícilmente chegará o cristáo a praticar o preceito do amor ao seu somelhante.

— 337 —

50

«rPERGUNTE E RESPONDEREMOS*

3.

151/1972

Urna conclusáo

Estas reflexóes sobre o amor cristáo podem encerrar-se com

valiosa frase de Antoine de Saint-Exupéry, autor de «O pequeño Príncipe»: «Amar, entre duas pessoas, nao consiste em olhar urna para a outra, mas em olharem juntas na mesma diregáo».

Nestas palavras encerra-se profunda filosofía. Com efeito, pode parecer obvio, á primeira vista, que o amor consista em nos determos sobre a criatura amada, contemplando-a e pro curando desfrutar tudo que ela possa dar; é o que fariam, por exemplo, esposo e esposa. — Observe-se, porém, que um tal amor vem a ser ilusorio. Cedo ou tarde, a criatura se cansa de olhar para outra criatura, por mais encantadora que esta parega a principio. A fim de que o amor seja duradouro e construtivo, é preciso dirigi-lo para o Infinito. O verdadeiro amor, portante, é aquele que une firmemente duas criaturas para que, juntas, auxiliando-se mutuamente, olhem para Deus e se encontrem em Deus. O marido nao foi feito para se realizar plenamente na sua mulher, nem vice-versa, como também criatura alguma foi feita para se realizar adequadamente em outra criatura. Esposo e esposa sao pequeños demais um para o outro porque ambos tém a capacidade do Infinito. Por isto só amamos verdadeiramente quando nos ajudamos uns aos outros a nos enca-

minharmos todos para o Infinito e a nos encontrarmos todos em Deus. É a respeito de um tal amor que bem se pode dizer: «Ama, e faze o que quiseres». Estcvao Bcttencourt O.SB.

resenha de livros Cristo para o mundo. O Corac.£o do Cordeiro, por Bertrand de Margene S.J. — Editora Herder, Sao Paulo, 140x210 mm, 494 pp.

O P. de Margerio tom-se comprovado como teólogo que se interossa nao somente pela ciencia e a pesquisa, mas também pelo signifi cado espiritual e religioso dos seus esturlos. É o que explica o título

<• o subtitulo dostn obra trularlo sobro Cristo, nao do índolo meramonUr (.-.sjionulat.'.va, mas, sim, <;rn vista da vivóncia crista dos loitores. Considera Jesús Cristo em si ou em sua roalidade intima, divino-humana ; a seguir, focaliza posiedes modernas (Teilhard de Chardin, Bultmann, Bonhoeffer) frente a Cristo; por último, detém-se sobre

Cristo na Igreja e na S. Eucaristía. O livro é erudito, vasado em linguagem técnica, mas acessivel ao leitor de media formacáo crista. Desenvolve com seguranca as suas teses, de modo a merecer os aplau sos do público interessado.

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RESENHA DE UVROS

51

Credo para amanha S, por numerosos colaboradores sob a coor-

denacáo de Frei Raimundo Cintra O.P. — Editora Vozes, Petrópolis 1972, 135x210mm, 246 pp. Este livro, o terceiro da sua serie, propoe um total de quinze artigos (com urna introducto de Frei Raimundo Cintra) sobre a fé,

escritos por teólogos católicos (Dattler, Boff, Libánio, Fassini...), um teólogo protestante (Zwinglio Mota Dias) e membros do laicato (José e Beatriz Reís, Dorian J. Freiré...). Versa sobre o pensamento bíblico,

o pensamento católico contemporáneo voltado para o futuro e o pensamento de escritores protestantes dos tempos modernos (Bonhoefler, Gogarten...). Como toda coletánea, esta tem páginas de valor desigual: digno de especial encomio é o artigo do P. Dattler sobre

a íé na Biblia (esta é sempre o grande manancial da Teología e da vida espiritual); assaz original é o artigo de Frei Leonardo Boff, que aborda a crlse de íé, mas se torna ambiguo á p. 152, quando fala da Igreja de Cristo. Em suma, o balanco total é positivo,... positivo para quem queira estudar e aprofundar, dotado de previo conhecimentó do assunto, para que nao se arrisque a mal-entendidos; o livro aborda aspectos filosóficos e questdes teológicas que tém seu lugar na mente e ñas máos de pessoas sólidamente preparadas. O ser do padre, por Frei Boaventura Kloppenburg O.F.M. PublicacOes CID, Teologia/4. — Editora Vozes, Petrópolis 1972, 135 x 210 mm, 203 pp.

O conhecido teólogo Frei Boaventura Kloppenburg publicou neste livro o texto, ampliado e enriquecido, de conferencias que fez em retiros do clero no Brasil, na Argentina, na Colombia e no Panamá. Comeca

por expor a crise que atingiu também a figura do padre hoje em dia; na realidade do mundo da técnica, em que os padroes de valores se

vém transformando rápidamente, qual será o significado do padre?

O autor nao pretende abordar estilos e maneiras de ser: estes podem variar de acordó com regiSes e culturas em que o padre se ambiente; mas o que Frei Boaventura tonciona focalizar é o essencial do padre. Para tanto, recorre copiosamente aos textos do Concilio do Vaticano II e do III Sínodo Mundial dos Bispos (outubro/novembro 1971). As reflexóes do autor oferecem urna síntese fiel do que deva ser o ministro de Cristo: «o padre é por Deus habilitado a agir publicamente em favor dos homens na pessoa de Cristo» (p. 72). «O padre deve viver aquilo que ele faz enquanto padre» (p. 81). «A missao própria do padre nao é de ordem política, económica ou social, mas, sim, de ordem religiosa» (p. 143). Muito interessantes sao os depoimentos e os resul tados de votagóes ocorridos no Sínodo des Bispos a respeito da orde nado de homens casados e reproduzidos por Frei Boaventura ás pp. 115-137. O livro é rico em documentos; procede por exposigóes sistemáticas e bem concatenadas. Em certas passagens pode-se dizer que se detém excessivamente sobre problemas sem despertar o leitor para solucdes e valores positivos. A juventude de hoje, sequiosa de abracar ideáis grandiosos e generosos, nüo pode deixar de se interessar pelo ideal sacerdotal,

desde que este lhe seja auténticamente apresentado e vivido. Se muitos jovens enveredam por caminhos pouco crlstáos, isto se deve, em parte, ao fato de nunca terem sido postos em contato com os verdadeiros valores cristáos. É de notar, por exemplo, que a imprensa noticiou aos 9/VI/1972 o seguinte tópico:

«Jovens que leram Playboy descobrem vocacáo sacerdotal. — Anuncio de página inteira publicado na revista Playboy pela Ordem

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«PERGUNTE E RESPONDEKEMOS>

151/1972

da Santissima Trindade atraiu 600 jovens para o sacerdocio, 30 dos quais já foram aceitos e iniciaram as provas para o ingresso no seminario. O diretor vocacional da Ordem, Padre Joseph Lupo, expressou sua satisfacáo pelos resultados do anuncio, pois, devido á crise de vocagdes, apenas cinco jovens ingressavam na Ordem por ano, dis-

postos a trabalhar entre os pobres, os presos e os doentes mentáis.

O anuncio saiu em apenas urna edicto da revista destinada á Costa Oriental e custou US$ 10 mil (Cr$ 59 mil). Consistiu numa foto, em branco o proto, de dois jovens sustentando em suas máos

as Escrituras Sagradas, com os dizeres: tens

coragem

de

oferecer,

vem

para

'Tu que gostas de dar e

trabalhar

com

teus

irmáos'.

O padre Lupo assinalou que os anuncios publicados em outras revistas tiveram pouca repercussáo e o recrutamento entrou em franco declínio. Ele comegou entáo a pensar em Playboy. 'Nao tinhamos meio de nos íazer ouvir pelos alunos que cursam o segundo e o terceiro ano do ensino secundario, e solicitei a Playboy que nos facilitasse o acesso', aíirmou o sacerdote. O éxito do anuncio, segundo Lupo, foi porque 'quase todos os jovens léem a revista e nunca tinham visto algo de semelhante nela'» («Jornal do Brasil», 9/VI/1972, p. 9). Apesar das interrogares que esta noticia possa despertar na mente do leitor, ela nao deixa de ser altamente significativa para se aquilatar a forca de atracáo que o ideal sacerdotal pode exercer sobre a juventude.

O livro de Freí Boaventura, devidamente entendido, poderá con

tribuir para esclarecer positivamente numerosas interrogacOes sobre o ser do padre.

X

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS»

Assinatura anual

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Número avulso de qualquer mes

Cr$

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Índice de qualquer ano

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Volumes encadernados de 1958 e 1959 (prego unitario) índice Geral de 1957 e 1964

EDITORA

LAUDES

REDACAO DE PR

S.

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Caixa Postal 2.666 ZG-00

Rúa Silo Rafael, 33, ZOO!) 20000 Rio de Janeiro (GB)

20000 Rio de Janeiro (GB)

Tels.: 268-9981 e 268-2796

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Brasil, o Oriente a Europa e as Américas. Agora, em suas viagens pelo Brasil, prefira os novos trijatos Boeing 727, da VARIG.

MELBOURNE - AUSTRALIA

18 a 25 de fevereiro de 1973

A CREDIBRÁS TU RISMO, sucessora de Camillo Kahn, orgulha-se de ter organizado

com total éxito, peregrinacóes aos Co.ngressos Eucarísticos de MUNICH, BOM-

BAIM e BOGOTÁ, e agora está organizando urna ao 40.° Congresso Eucaristico que terá a Assisténcia Espiritual de D. Esteváo Bittencourt, O. S. B., e que visitará: Papéete, Nandi, Auckland, Melbourne, Sidney, Hong Kong, Teherán, Térra Santa, Roma e Paris. Vocé podefá participar deste ato de fé crista com tudo financiado-a,longo prazo e comas facilidades; que o Grupo. Uniáb de Bancos pode Ihe.

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3 HORIZONTE - AV JOÁO PINHEIRO 146- T ANO - TELS 22-6957 e 27-6170 oí. em qu.vno.i

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