Ano Xiii - No. 150 - Junho De 1972

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Projeto PERGUNTE E RESPONDEREMOS

ON-LIN-E

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de

Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)

APRESENTAQÁO

DA EDIpÁO ON-LINE Diz Sao

Pedro que devemos

estar preparados para dar a razáo da nossa esperanga a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15). Esta

necessidade

de

darmos

conta da nossa esperanca e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por

numerosas correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos

assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade

controvertidas, elucidando-as do ponto de

vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortalega no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos

convenio

com

d.

Esteváo

Bettencourt

e

passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo. A

d.

Esteváo

Bettencourt

agradecemos

a

confiaca

depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

161 3Q OHNfir

OS I íN — IIIX Ol

*T VIXtOlMfí

vNizunog

índiice

Pág.

O SÍMBOLO DO CORACÁO

241

Sinal verde ? CONGELAMENTO DE ORGANISMOS E ESPERANCA HUMANA

244

Um fenómeno de nossos dias:

CONTESTAQÁO NA IGREJA : LEGAL OU NAO ?

252

Duas op?óes:

VIOLENCIA OU EVOLUQÁO PACÍFICA ?

265

Op?áo intermediaria :

E A

NÁO-VIOLÉNCIA

ATIVA ?

RESENHA DE LIVROS

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

279

287

O SÍMB>té=r©0 CORAgAO Segundo antiga concepgáo popular, o coragáo é a sede dos afetos humanos: amor, compaixáo, odio... Por isto na linguagem cotidiana ouve-se falar de pessoas que tém bom coragáo ou que parecem ter coragáo empedernido. A Biblia, escrita em ambiente judaico antigo, compartilha esse modo de ver: chega

a falar dos «pensamentos do corasáo de Javé, voltados para o bem do seu povo» (SI 32,11.18).

Os cristáos, por sua vez, acostumaram-se a venerar o Co ragáo de Jesús. Esta atitude presta-se a equívocos, podendo mesmo ser desenvolvida em linha sentimental c pouco construtiva. — Que significa, pois, a expressáo «Coragáo de Jesús»?

Diz a Escritura que «Deus é amor» (1 Jo 4,8). Esse amor concebeu e amou desde toda a eternidade cada urna de suas cri aturas. Visto que em Deus nada comeca (em Deus nao há passado, presente e futuro), Deus jamáis comecou a conhecer e amar tal ou tal criatura. Posso mesmo dizer que Deus nunca existiu sem me conhecer e amar,... Deus nunca existiu sem mim (isto é, sem me contemplar e querer bem). Esse amor eterno do Criador quis, na plenitude dos tempos, compartilhar a sorte do homem. Deus se fez homem, de modo que o amor eterno do Senhor comecou a pulsar num coragáo humano; experimentou os afetos da natureza sensível do ho mem (alegrías, tristezas, abandono, decepgóes e consolag5es...), a fim de santificar de novo modo a natureza, a vida e a historia dos homens. O Coragáo de Jesús vem a ser, pois, o testemunho concreto

desse amor que criou o homem no principio e o re-criou ou res-

taurou na plenitude dos tempos. Esse coragáo pode ser tido como um símbolo visível de todo o plano de Deus, que abrange o

céu, a térra e todos os tempos. Nele o cristáo vé significadas a proximidade e a veeméncia do amor divino.

É de notar que o surto da devogáo oficial ao Coragáo de Jesús tem suas premissas imediatas no século XVII. Este perío do da historia da Igreja foi, em grande parte, influenciado pelo jansenismo — corrente que apregoava o temor de Deus mais do que o amor; exigindo dos fiéis urna pureza estoica, anterior

á graga de Cristo, afastava de Deus os cristáos; estés jamáis — 241 —

sentiriam a coragem de se aproximar ido Senhor, de mais a mais que Cristo nao teria morrído por todos os homens, mas apenas por urna parte deles (o Crucifixo esculpido pelos jan senistas tinha os bracos verticalmente voltados para o alto,

abarcando tima faixa pequeña de homens, e nao os bracos es tendidos para o alto, abrangendo toda a humanidade). Foi

precisamente nessa época que Jesús Cristo se manifestou, os tentando o seu coragáo aberto, a S. Margarida-Maria Alacoque, monja do Mosteiro da Visitagáo em Paray-Le-Monial (Franga)

nos anos de 1673-1675 1. Jesús apresentava á santa o seu cora gáo humano como sendo o símbolo mais compreensível e elo-

qüente do amor de Deus, que é o grande inspirador e autor de tudo quanto existe. Nenhuma criatura — seja irracional, seja humana — veio a ser e subsiste se nao por efeito do amor. E esse amor de Deus é irreversível; ele jamáis se retrata, pois em Deus nao há mudanga; Ele jamáis dirá Nao depois de haver dito Sim. Pode a criatura desviar-se do Criador e atolar-se nos caminhos mais lamacentos da vida presente, sem que, por isto, o amor de Deus se modifique para com ela. A mensagem de Jesús que apontava para o seu coragáo, vinha a ser «um sorriso

de Deus» aos homens, tencionando despertar confianga, otimismo e amor nos cristáos enrijscidos pelo rigorismo e o abatimento. O Cristianismo significa essencialmente confianga inesgotável no irreversível amor de Deus; nao há situacáo moral táo degradante e ignóbil que nao encontré, da parte de Deus, o remedio e a salvagáo oferecidos a todos aqueles que Ihe apre-

/ sentem um coracáo arrependido e humilde. Sao palavras do Senhor proferidas através do profeta Oséias: «Como poderia eu

abandonar-te, ó Israel?... Meu coragáo se revolve dentro de

mim; eu me comovo de dó e compaixáo. ... Porque sou Deus e nao homem, nao gosto de destruir» (Os 11, 8s).

A mensagem do Coracáo de Cristo conserva plena atualidade mesmo em nossos dias que repudiam o sentimentalismo va-

zio. Quando os homens se debatan á procura do amor, podem estar certos de que o Amor existe, e existe divinamente, isto é, irreversivelmente... para todos aqueles que o queiram invocar! E.B.

'As revelacSes de Cristo a S. Margarlda-Marla nfio constltuem artigo de fé, pois sao revelacoes particulares. Inegavelmente, porém, esta santa se tornou instrumento do despertar de nova forma de pledade entre os crlstSos.

— 242 —

..DE FE COMO DE PAO, ÁGOA OD AR "Para a pergunta de Pdncio Pilatos: 'Que é a verdade ?', o homem jamáis esteve táo perto de encontrar urna resposta

quanto

através

da

ciencia.

Pessoalmente,

creio

na

Vitoria

derradeira da verdade. Creio que, na medida em que erescerem nossos conhecimentos da natureza, nao somente che

garemos

a

descobertas

científicas

universalmente

aceitas,

mas também chegaremos a um conjunto de regras e modelos

de comportamento humano universalmente reconhecidos.

Os materialistas do século XIX e seus herdelros marxistas

do século XX nos dizem que o progresso do conhecimento científico do universo nos permite dispensar-nos da fé em um Criador. Mas até agora qualquer resposta nova trouxe

também novas interrogacdes. Quanto melhor compreendemos a complexidade da estrutura do átomo, a natureza da vida ou o curso das galeotas, mais encontramos razóes para nos maravilharmos diante dos esplendores da criagáo divina.

Mas a nossa necessidade de Deus nao está fundada ape

nas sobre o recelo. O homem precisa de fé como precisa de pao, de agua ou de ar. Com toda a ciencia do mundo, nos precisamos de crer em Deus, visto que a nossa fé em nos mesmos já atingiu os seus limites".

Wernher von Braun Subdiretor adjunto da N.A.S.A.

— 243 —

«PERGUNTE

E

RESPONDEREMOS» Ano XIII — N* 150 — Junho de 1972

Sinal verde ?

congelamento de organismos e esperanza humana

Em sintese: Genoveva de la Poterie, aos olto anos de Idade, faleceu de cáncer renal em Janeiro de 1972. Seus país haviam-na levado do Canadá aos Estados Unidos, para que, em caso de morte, fosse submetlda ao con gelamento do organismo. Isto se deu, de modo que Genoveva está clínica mente morta, mas guardada debaixo do gelo, á espera do día em que a medicina lera descoberto o remedio para o cáncer; nesse hipotético día, a menina será reativada e, como se eré, poderá recebar o tratamento adequado. Já outros pacientes tém sido congelados na expectativa de possfvel recuperagao em época futura.

Que diz a conscléncia crista a respeito? Nao se trata de ressuscltar mortos proprlamente ditos. Com efeito, a medicina distingue entre morte clínica e morte real; mesmo depols que cessem as pulsaedes cardiacas e a respiracáo, o organismo pode estar em coma e ser sede da vida e da alma humana por algumas horas mals, pois a deteriorado dos tecldos so se dá paulatinamente; jé houve casos de

reanimagáo de pacientes tidos como clínicamente mortos e guardados em cámara mortuoria. — Por conseguinte, os médicos, congelando o organismo clínicamente morto, vlsam apenas a impedir a decomposlcáo do mesmo. A alma humana continua entáo presente nesse corpo, embora de modo latente. Caso um dia se queira descongelar o organismo, poderá talvez ser beneficiado por tratamento adequado. A moral crista nao se opoe a tal processo; este nSo constituí arrogan cia por parte do homem, mas uso do dominio que Deus concedeu ao ser humano sobre a natureza; aos dentistas cabe aliviar as sortes da huma-

— 244 —

CONGELAMENTO DE ORGANISMOS nidade, conlanto que respeltem a dignldade humana; a morte jamáis será

debelada por completo. — É para desojar, porém, que a congelado nao

seja aplicada sem o consentlmento do paciente ou, ao menos, dos geni tores (ao se tratar de criangas).

Comentario: Os jomáis noticiaram no inicio de 1972 o caso

de Geneviéve de la Foterie, menina día oito anos de idade, que, vítima de cáncer renal, morreu e foi congelada na expec tativa de que um dia a medicina disponha de recursos para curar tal molestia. O caso de Genoveva nao é o primeiro nos tempos atuais; existem mesmo setores da medicina que se dedicam exclusivamente ao estudo do assunto e ao tratamento pela congelagáo: sao a criobiologia e a crioterapia (kryos, gelo, em grego).

A experiencia empreendida com Genoveva e outras congé

neres tém suscitado o interesse do público pelo que apresentam de novo e audaz; o vocabulario empregado pelos noticiarios res

pectivos é ambiguo. Em conseqüéncia, muitas pessoas interrogam: tais tratamentos nao significam arrogancia da parte do

homem, que pretende deter a morte a qual Deus o quis submeter? Pode a ciencia ousar ressuscitar cadáveres? Será lícito obrigar um paciente a viver num futuro incerto, quando as circuns tancias ambientáis seráo totalmente outras? É a estas questóes que nos propomos dar atengáo ñas pá ginas seguintes.

1.

Que houve com Genoveva ?

1. Guy de la Poterie, cidadáo canadense com 36 anos de idade, é o pai de Genoveva. Com sua esposa Pierrette, morava em Montréal, quando verificou que sua filha padecía de cáncer. Após haver recorrido a varios processos para salvá-la, resolveu por último apelar para o Dr. Robert F. Nelson, presidente da «Cryonics Society» da California (E.U.A.). Levou, pois, a me nina para Los Angeles, onde ela veio a falecer no Burlington — 245 —

6

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

Hospital iás 6 h 49 min de 25 de Janeiro de 1972. Tmediatamente

comegou a ser submetida a urna serie de tratamentos: foi-lhe extraído todo o sangue que tinha, e, em lugar deste, injstaram-Ihe quatro litros de solucáo Collins a menos de 5' de tempera tura Celsius; depois, mais dois litros da mesma a menos de lO*. O seu corpo foi finalmente colocado em um dornütório-geladeira cuja temperatura é de 79* abaixo de zero. De quatorze em quatorze dias os peritos renovam a carga de gelo, pois a temperatura do corpo nao pode subir um só grau que seja. A congelacáo tem por fim deter o processo de deterióracáo ou destruicáo a que estaría sujeito o organismo em temperatura normal. Caso se conservem intatas as células desse corpo, poderáo um día ser reativadas mediante o descongelamento e os médicos lhe aplicaráo o remedio eficaz para debelar o cáncer, remedio que dentro de alguns anos ou decenios talvez já tsnha sido descoberto.

Mozart Monteiro, na crónica «Ciencia da Ressurreigáo» pu blicada no jornal «O Globo», fornece mais os seguintes dados: "Genovléve deve ressuscltar no ano 2.500. Quando voltar á vida, daqul a cinco séculos, deverá ter olto anos de Idade. Sua familia s3o existirá. Nlnguém do mundo atual existirá. Ressuscltando, a crianza entrará num mundo que ela nunca vlu, e terá de aprender a andar e falar.

E o pal de Genevléve, louco de amor pela fI Iría moría, acredita nlsso".

2.

Exfetem treze ou talvez mais psssoas congeladas, viti-

mas de males atualmente incuráveis, que aguardam, como Ge noveva, o dia em que provavelmente a medicina as podará curar.

O primeiro desses pacientes é o Prof. James Bedford, titu lar da cátedra de Psicología da Universidade de Phoenix, capital do Estado de Arizona (E.U.A.). Faleceu de leucemia em 1967; de acordó com a sua última vontade, foi congelado para voltar á vida quando já estiver descoberta a cura da leucemia. Em Los Angeles existe o «purgatorio frigorífico», edificio branco em forma de hangar, que nao é propriamente um cemitério, mas um criotério. Ai repousam em sarcófagos de acó

corpos congelados sem sangue (mas com urna solucáo Collins 1 Em certos comentarlos Jomalfsticos, encontramos a noticia de que, em outros casos de congelamento, o cadáver é mantldo em temperaturas ainda mais baixas: — 196? ou — 296?.

— 246 —

CONGELAMENTO DE ORGANISMOS

injetada no organismo). Aos domingos as familias dos pacientes e outras pessoas interessadas váo visitar essa estranha mansáo, a fim de alimentar as suas esperanzas. Como se compreende, tal processo de conservagáo dos or ganismos redunda muito dispendioso. Requer cuidados cons tantes, pois é necessário estar observando regularmente os sar

cófagos e renovar-Ibes com periodicidade rigorosa a carga do gelo. O Dr. Robert F. Nelson, que já congelou nove pessoas em condicóes semelhantes, julga que o caso do Genoveva é o mais interessante de todos, pois se trata de urna menina que mostrou grande resistencia á molestia e possui chances especiáis de recuperagáo.

Pergunta-se agora: que dizer do processo de congelamento de um paciente, do ponto de vista da consdéncia crista?

2.

O cristao, que diz?

Responderemos em tres etapas: 2.1.

Ressurreijáo de morfo ?

s

1. Mediante o congelamento, nao se pretende ressuscitar um defunto. Mais precisamente, eis o que tal processamento supóe e intenciona:

A medicina distingue morte clínica e morte real. Cf. PR

137/1971, pp. 193-203.

A morte clínica é a que o médico declara quando verifica

que o coracáo do paciente já nao pulsa e a respiragáo cessou.

Todavía nao se sepulta alguém que esteja clínicamente morto senáo 12 ou mesmo 24 horas depois de ocorrido o óbito: na verdade, é extremamente improvável que, com a última pulsacáo do coragáo, o organismo se modifique de tal modo que já nao possa ser vivificado pelo seu principio vital, ou seja, pela alma

humana; esta deve ai permanecer latente por mais algumas ho

ras após o óbito clínico, até dar-se a morte real. Alias, a expe

riencia mesma ensina que pessoas clínicamente mortas recuperaram suas funcóes vitáis.

Com efeito, em 1970, por exemplo, na Inglaterra, registrou-

-se o caso de urna jovem iraniana que em Brighton ingeriu pe— 247 —

8

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 150/1972 t

sada dose de barbitúricos. Foi transportada para o hospital, onde o médico de servico nela averiguou todos os sinais de morte clí nica. Todavía na cámara mortuária a jovem "-megou a se agi tar; estava apenas em coma profundo. Foram-lhe entáo aplica dos os processos de reanimacáo, mediante os quais a paciente se recuperou e, sadia, deixou o hospital cinco semanas mais tarde.

Donde se vé que a cessacao das pulsagóes cardiacas e da respiragáo nao indica a morte real do individuo. 2.

Mais precisamente, no tocante ao coma, convém notar

o seguinte: o coma é um estado caracterizado pela perda (total ou parcial) da consciéncia e a cessagáo mais ou menos total das fungSes de sensibilidade e motricidade. Distinguem-se seis graus de coma segundo a respectiva profundidade e gravidade. Desses seis, sejam mencionados ao menos quatro graus:

o

coma

leve ou de vigía, o coma de gravidade media, o profundo e o ultrapassado.

No coma profundo ainda há síntomas <3e que o cerebro es teja vivo, pois o sistema vegetativo ainda se manifesta espon

táneamente. Somente no coma ultrapassado (que já nao é pronriamente coma) ó que o cerebro já nao funciona e a vida vege

tativa central está extinta. O eletroencefalograma se conserva

constantemente liso. O colapso do organismo é total. Nessas

circunstancias, os peritos já tentaram de todos os modos restabelecer as funcóes cerebrais, mas em váo. Já nao há recuperagáo.

Condui-se, pois, que, entre o estado de morte clínica (de clarada por haverem cessado respiragáo e pulsagóes cardiacas) e o de coma ultrapassado irrecuperável, há urna gama assaz va

riada de estados do organismo suscetiveis de reativagáo e recuperagáo para a plena vida.

3. Conscientes disto, os médicos, desde que verifiquen! a morte clínica de alguém, podem supor que o principio vital (ou a alma) desse paciente perdure no respectivo organismo até que

se de tal destruigáo dos órgáos e tecidos que já nao possa mais subsistir ai um principio de vida (ou a alma humana).

Interessa, pofs, aos médicos deter o processo de .deterioriza-

gáo do organismo em virtude do qual se dará a morte real. Ora,

para deter tal processo, nao há (segundo dizem muitos) recurso — 248

CONGELAMENTO DE ORGANISMOS

mais indicado do que o congelamiento. Este parausa as atividades todas do organismo (inclusive a deterioragáo); conseqüen-

temente, conserva-se presente na pessoa em coma a respectiva alma. Pode-se entáo esperar que, em época futura, o organismo esteja em condigóes de ser descongelado e receber medicamentos ou tratamentos novos, que a medicina esteja para descobrir.

Caso tal medicagáo seja aplicada com éxito e o paciente recu pere a vida plena, nao se dará a ressurreicáo de um morto, mas apenas a reativagáo de um organismo inerte. * Fica naturalmente a dúvida: será que a babea temperatura,

parausando as fungóes do organismo, nao constitui um clima violento ou artificial demais para a vida humana? Será que o organismo do homem pode subsistir a 79* Celsius abaixo de zero ou a temperaturas aínda mais baixas? Será que os corpos

até hoje congelados ainda estáo vivos? — Quem julgar poder responder afirmativamente, nao terá dúvida em admitir que o congelamento ou a crioterapia é aceitável do ponto de vista me dicinal.

Todavía póe-se agora urna dúvida de consciéncia: 2.2.

Será lícito congelar?

A resposta abrange dois aspectos:

2.2.1.

Congelamento do organismo e plano de Deus

A prática ido congelamento se enquadra tranquilamente den

tro do programa geral da medicina, que é «preservar a vida hu

mana e defendé-la contra as ameagas da morte». Nao há dúyi-

da, trata-se de recurso novo de medicina e, por isto, raro e dis pendioso; além do mais, os seus resultados sao incertos e forterhente hipotéticos, podendo mesmo ser nulos. Em conseqüéncia, nenhum paciente tem a obrigagáo de pedir tal tratamento, nem médico algum tem o dever de aplicar tal processo. É certo que o congelamento em vista de urna reativagáo posterior nao derroga aos designios do Criador. O homem deve 1 Note-se bem: a palavra precisa, no caso, é realmente reativacáo, Isto é, volta ás ativldades; nao reanfmacao (o que poderla significar volta da anima, alma, ao corpo).

— 249 —

10


morrer tanto segundo as leis naturais da biología (os órgáos se desgastam pelo uso e perdem sua vitalidade) como segundo as proposigóes da fé (a morte é o salario do pecado, diz Sao Paulo em Rom 6,23). Seria utópica e vá a pretensáo de livrar da morte o composto «corpo e alma» que peregrina sobre a térra; cedo ou tarde, este deve ceder á decomposigáo para ser restaurado sob forma gloriosa, em configuracáo a Cristo ressuscitado (ape nas a alma humana, e nao o composto «corpo e alma», é, por sua natureza, imortal).

Ademáis o sabio cristáo tem consciéncia áa que as conquis tas positivas da medicina em nada derrogam ao poder e á so beranía de Deus. É por graga e dom do Criador que o homem consegue progredir nos setores da ciencia e da técnica; tais avan-

gos tém levado muitos dentistas a reconhecer ainda mais evi dentemente a sabedoria e a grandeza de Deus no mundo criado. É, pois, para desejar que a ciencia continué a desenvolver-se, contanto que respeite sempre as leis de Deus e a (dignidade do ser humano (imagem e semelhanga do Criador).

Tenham-se em vista as palavras do Concilio do Vaticano H: "Bem longe de julgar que as obras produzidas pelo ta lento e a energía dos homens se opSem ao poder de Deus e de

considerar a criatura racional em eompeticáo com o Criador, os

cristáos estáo antes convictos de que as Vitorias do género humano sao um sinal da magnitude de Deus e fruto de seu inefável designio" (Const. "Gaudium et Spes" n"? 34c). 2.2.2.

E a ¿«antología médica?

Dois tópicos vém ao caso: 1) Visto que o congelamento ainda é recurso extraordináro e incerto, nao deve ser aplicado a um paciente adulto sem o consentimento deste — consentimento dado previamente em es tado de lucidez mental. Muitas pessoas, embora nao tentem o suicidio, aspiram a terminar seus dias na térra e repousar-sc

da fadiga cotidiana. A fé crista reconhece a legitimidade de tal atitude. É lícito a alguém desejar a morte para si mesmo, con tanto que nao o faga por covardia, mas, sim, para unir-se a Deus mais plenamente; tenham-se em vista as palavras de Sao Paulo:

— 250 —

CONGELAMENTO DE ORGANISMOS

11

«Para mim, a vida é Cristo, e morrer é lucro... Sinto-me coa gido por esta alternativa: de um lado, o desejo de partir e estar

com Cristo, o que é muito melhor. Mas, de outro lado, por vos-

sa causa, é mais necessário permanecer na carne» (Flp 1,21.23). Note-se também que o pacíante congelado está sujeito a voltar á vida pública dentro de decenios, quando as circunstan

cias ambientáis e a civilizagáo seráo muito diversas das atuais. Poderá readaptar-se ao ambiente? Sentir-se-á á vontade, sem

poder contar com o apoio dos familares e amigos que o acompanharam anteriormente? — Tal sorte nao deve ser imposta a

pessoa alguma. Sabe-se que sao rejeitadas pela consciéncia mo ral as experiencias «in anima nobili» (no ser humano) cujo re sultado seja incerto.

Ao se tratar de enancas pequeñas, a responsabilidade do processo pode ser compartilhada pelos genitores e pelo médico;

julgaráo em consciéncia se o congelamento poderá ser benéfico ao pequenino.

2) A congelacáo de paciente supóe a morte clínica devidamente averiguada; somente depois desta pode empreendida. Co mo se entende, nao seria lícito a um médico antecipar-se á morte clínica para provocar o congelamento do individuo, pois tal pro cesso extingue a consciéncia psicológica e moral do enfermo, sem garantía de recuperacáo da mesma.

Em suma, o novo processo de defesa da vida humana aínda está envolto em numerosas interrogacóes, apresentando tragos de fantástico. Nao deve ser desprezado nem condenado porque

se baseia em premissas aceitáveis, tem sua lógica e nao recorre

a meios ilícitos; pode-se talvez tornar fator de progresso da ciencia. Contudo requer-se sobriedade e uso de raciocinio quando se pensa em aplicar concretamente tal tipo de tratamento e pre

ver os seus efeitos: que o bom senso e o realismo prevalecam sempre sobre a fantasía e a imaginagáo mirabolantes! Vejam-se a propósito dois artlgos de PR: 75/1964, pp. 137-143 (con gelamento o reativagáo de paciente segundo as condiedes da medicina em 1964) e 137/1971, pp. 193-203 {morte aparente, morte clínica e morte real).

— 251 —

Um fenómeno de nossos dias:

contestado na igreja:

legal ou nao?1

Em síntese: A autoridade na Igreja nao é delegada pelo povo de Deus aos seus governantes eclesiásticos, mas é comunicada por Cristo aos homens que Ele escolhe. Orava o Senhor ao Pai a respeito dos seus Apos tólos: "Assim como Tu me enviaste ao mundo, também eu os envió ao mundo" (Jo 17,18). Em conseqüéncia, a autoridade na Igreja tem algo de intocável. De modo especial, a autoridade do Sumo Pontífice nao está sujeita a ulterior instancia judiciária: "Prima sedes a nemine ludicatur. — A sede primacial por ninguém é julgada".

Isto, porém, nao quer dizer que nao haja possibilldade de diálogo na Igreja. Os medievais falavam mesmo de corregió fraterna, correcto que podia ser dirigida pelos subalternos aos seus superiores, caso estes caíssem em erro notorio. Registram-se episodios de historia da Igreja, em que

santos

(como S. Catarina de Sena, S. Brígida da Suécia, S. Bernardo de

Claraval...) deram a ver ao Papa abusos humanos ou deficiencias no seio da Igreja . — Nada impede que se continué o diálogo na Igreja de hoje; é, ao contrario, desejável. Tal diálogo, porém, nao deverá recorrer ás formas irreverentes da contestacao nem assumlr o tom de corregió propriamente dita. Esse diálogo franco, destinado a sanear possfveis defi ciencias na Igreja, decorrerá em clima de fé e carldade. Além disto, há de guardar sempre o primado do amor (agápe) sobre as belas Idéias; con servará também a comunháo com a Igreja, repudiando todo tipo de cisma ou ruptura; deverá outrossim ser paciente para respeltar a índole das cri aturas, que nem sempre evoluem segundo o ritmo que se poderla desejar.

Besposta: O fato de que na Igreja de hoje existam grupos contestatarios que, em manifestacóes públicas, levantam a voz contra as instituicóes e as autoridades eclesiásticas, tem sur-

preendido a muitas pessoas — católicas e nao católicas. Donde a 'Este artigo continua e termina o que foi publicado em PR 149/1972, pp. 195-208.

— 252 —

AUTORIDADE E CONTESTACAO NA IGREJA

13

pergunta de uns: Será legitima a contestagáo na Igreja? Outros replicam: Nao deveria ser reconhecida como a forma moderna de se obter a renovagáo de certos setores da Igreja?... renovagao que, se nao for arrebatada pela forga, jamáis se dará.

Diante

da

perplexidade suscitada por tais interogacóes,

procuraremos lembrar alguns principios que contribuam para se formar um juízo sobre táo delicado assunto.

1.

1.

A autoridade na lareia

Toda sociedade, para subsistir, está sujeita a duas (en

tre outras) exigencias peremptórias:

— ter um código de leis ou urna constituicáo jurídica que

defina e distribua as responsabilidades (direitos e deveres) den tro da sociedade;

— ter urna autoridade que explicite e salvaguarde a cons-

tituigáo ou a ordem estabelecida na sociedade, aplicando as leis ou délas dispensando (quando necessário).

Assim também a Igreja Católica neste mundo: na medida em que consta de seres humanos, Ela necessita dos dois elemen

tas ácima apuntados. Note-se ainda que na Igreja as estruturas jurídicas e a autoridade devem, em última análise, fundamen-

tar-se sobre os escritos do Novo Testamento. Isto nao quer di-

zer que o Novo Testamento confénfia normas jurídicas muito

explícitas e minuciosas. Ele apresenta, sim, alguns fatos que sao necessários pontos de referencia para o Direito da Igreja: assim

— a missáo, que Jesús confiou aos Apostólos, de irem a to das as nacóes a fim de comunicar-lhes a Boa-Nova e batizá-las (cf. Mt 28, 18-20);

— as funcoes próprias que Cristo entregou a Pedro, para que fosse fundamento visível da Igreja (cf. Mt 16,17-20), pastor do rebanho (cf. Jo 21,15-17) e confirmador da fé de seus irmáos (cf. Le 22,31s); — a promessa da infalível assisténcia de Cristo aos doze

Apostólos como colegio (cf. Mt 18,18) e a Pedro em particular (cf. Mt 16,18-20); — 253 —

14

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

— a organizagáo das comunidades cristas sob a guia de

andaos, presbyteroi, e superintendentes, epískopoi (cf. At 20, 17.28; Flp 1,1; 1/2 Tim; Ti);

— o Concilio de Jerusalém destinado a dirimir dúvidas ori undas entre os primeiros cristáos (cf. At 15, 6-30);

— a solicitude pela unidade dentro da multiplicidade de co munidades que iam surgindo (cf. Gal 1, 6-9; 1 Cor 11,2; 2 Tes

2,5);

— a preservagáo do depósito da fé (cf. 1 Tim 6,10s. 20:

2 Tim 4,1-5), etc.

A Igreja Católica sempre viu ñas funcóes do Sumo Pontí fice e dos bispos o prolongamento auténtico do ministerio de Pedro e dos Apostólos. A esses sucessores dos doze cabe, sob a prometida assisténcia de Cristo e do Espirito Santo, formular e explicitar de maneira auténtica ñas sucessivas fases da historia as leis da Igreja (cf. Jo 16,13-15; At 2,1-12).

2.

Em vista dos textos bíblicos aqui citados, diz a teología

que os Papas e os bispos exercem sua autoridade por direito di vino. Esta expressio nao quer dizer que a exercam de maneira arbitraria e despótica. Ela significa, sim, que a autoridade na Igreja nao tem sua fonte na iniciativa dos homens que compóem a Igreja, mas na escolha que o próprio Cristo faz dos seus ministros (através dos homens, sem dúvida). Nao sao as comu

nidades católicas que delegam sua autoridade aos respectivos bispos, mas é Cristo quem comunica aos bispos a sua missáo e os

seus poderes de pastores do rebanho. Dizia o Senhor Jesús ao Pai em sua oracáo sacerdotal, referindo-se aos Apostólos: «As-

sim como Tu me enviaste ao mundo, também eu os envió ao mundo» (Jo 17,18).

Em outros termos: o povo de Deus sabe (ou deve ser induzido a saber) que a fungáo dos bispos participa da índole sacra mental que compete á Igreja: assim como a Igreja nao é simples-

mente a soma dos seus membros, mas é o sinal sensível pelo qual Cristo santifica os homens, assim os bispos sao os sinais e instru mentos (ora mais perfeitos, ora menos perfeitos) pelos quais

Cristo exerce sua acáo santificadora entre os homens. Pelos bis pos nao é o povo que governa a si mesmo, mas é Cristo quem

governa o seu povo; a autoridade é comunicada aos bispos por

imposigáo das máos e por invocagáo do Espirito Santo. — 254 —

AUTORIDADE E CONTESTACAO NA IGREJA

15

3. Destas consideragóes se segué que o ministerio do Sumo Pontífice e dos bispos na Igreja tem algo de intocável; assim como o povo de Deus nao confere a autoridade aos bispos, as sim ele nao a pode retirar. Existe mesmo um axioma de direito,

muito antigo na Igreja, que diz: «Prima sedes a nemine iudi-

catur. — A primeira sé (a de Pedro) por ninguém é julgada», ... julgada no sentido de jotUciariamente oondenável. Nao há apelo do juízo do Sumo Pontífice para instancia ou tribunal superior.

Os sucessores dos Apostólos na Igreja sao enviados de Cristo: a missáo que eles exercem, é santa,... .santa no sentido de «instituida por Cristo»; conseqüentemente, ela tem direito ao respeito e a inviolabilidade que compete ás coisas santas ou ou á presenga e á acáo de Cristo. Este fica sendo sempre a Cabeca e a única fonte de vida na Igreja.

Após haver afirmado a índole sacramental ou divino-humana da autoridade oficial na Igreja, compete agora fazer urna observagáo: a reverencia devida aos pastores da Igreja nunca foi entendida como algo de táo absoluto que excluisse o que hoje se chama diálogo e o que na Idade Media se chamou, em certos casos, correcao fraterna. Vejamos, pois, o que se entende por

2. 2.1.

Diálogo e corre$5o fraterna

Diálogo

A palavra diálogo é assaz usada na linguagem mo derna. Ela significa o intercambio entre dois interlocutores cu-

jos pontos de vista ou cujas posicóes doutrinárias nao sao idén ticas entre si; cada um desses interlocutores, através do relacionamento (oral ou escrito) mutuo, faz esforgo por compre-

ender o outro tal como ele é, com suas premissas ou seus prin cipios, sua educagáo, sua idade, suas experiencias... Compreendendo (o que nao significa aceitando) o outro, cada um dos

dialogantes terá ensejo de dissipar mal-entendidos e falsas suposicóes a respeito do oponente; talvez nao lhe atribua mais tudo que ]he atribuia. Caso isto se dé, aproximar-se-io um do outro, podendo mesmo em alguns casos reformular suas po sicóes próprias (sem trair a verdade, nem de um lado nem de outro) e abrir-se para a amizade e quigá a colaboragáo.

— 255 —

16

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

O diálogo tem sido preconizado na Igreja \ A sua utilidade se evidencia pelo fato de que muitas vezes os homens só por etapas chegam ao pleno conhecimento de urna verdade ou de urna realidade; padem és vezes estar mal informados ou com a mente preconcebida; é o encontró dialogado com o próximo (as vezes, encontró do subalterno que vai procurar o superior ou vice-versa) que possibilita remover os obstáculos á plena consecugáo da verdade ou á formulagáo da reta sentenga. Por isto, sempre que haja dificuldade de aceitagáo mutua e colaboragáo na Igreja, é para desejar se institua o diálogo entre os interessados. Este normalmente transcorrerá em clima de serenidade e dignidade. Aqueles que hoje contestam tumultuadamente dentro da Igreja, mais atenderiam ao plano de Deus se recorressem ao diálogo nos termos aqui expostos. 1 Tenham-se em vista as palavras de S. Santldade o Papa Paulo VI na

encíclica "Ecclesiam Suam" datada de 6/VIII/1964:

"A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive... O diá logo está no plano de Deus... O nosso diálogo convida os filhos da Casa de Deus — a Igreja una, santa, católica e apostólica, de que esta romana é máe e cabeca. Quanto prazer nos trará esse diálogo doméstico, em plenítude de fé, de caridade e de obras! QuSo Intenso e familiar o desojamos! Quanto ambicionamos que tenha em conta todas as verdades, todas as vir tudes e todas as realidades do nosso patrimonio doutrinal e espiritual! Ouao sincero e comovtdo o pretendemos, na sua genuina espiritualidade!

Quao pronto a recolher as múltiplas vozos do mundo contemporáneo! Quito

apto a transformar os católicos em homens verdadeiramente bons, pruden tes, livres, serenos e fortes!

... Este desejo de que as relacSes Interiores da Igreja se caracterizem pelo tom próprio do diálogo, entre membros de um corpo cujo princi pio constitutivo é a caridade...

Multo desojamos que o diálogo interior, isto é, dentro da comunidade eclesiástica, desperté novo entusiasmo, multiplique assuntos e interlocuto res, de modo que aumentem o vigor e a santldade do Corpo Místico terreno de Cristo" (n? 67. 72. 117.118. 120). O Concillo do Vaticano II retomou eloqüentemente as idéias da encí clica "Ecclesiam Suam", preconizando o diálogo dentro e fora da Igreja. Entre outras, pode-se citar a seguinte passagem, tirada do Decreto sobre a formac&o sacerdotal:

"Cultlvem-se nos estudantes as aptldSes convenientes que mals contribuam para o diálogo com os homens, como sejam a capacidade de ouvlr os outros e de abrir o coracSo, em espirito de caridade, ás varias situagóes humanas" ("Optatam totius" n
— 256 —

AUTORIDADE E CONTESTACAO NA IGREJA

17

Mas na historia da Igreja houve — e pode haver — mais do que diálogo. Este, as vezes, parece insuficiente para satisfazer á realidade e obter as metas que devem ser obtidas. Fala-se entáo de «correcáo fraterna»: esta cabe quando há erro evi dente da parte de um dos interlocutores. Como entendé-la? 2.2.

Corresóo fraterna

1. A fé crista ensina que todo homem é solidario com ssus irmáos e, até certo ponto, responsável pela salvacáo de muitos deles. Por conseguinte, desde que alguém possa (desviar do pecado o seu semelhante e reconduzi-lo ao bom caminho, cabe-lhe o dever e, por conseguinte, também o direito de fazé-

-lo. Dá-se entáo a correga» fraterna: esta vem a ser urna adver tencia efetuada por um irmáo a fím de preservar a outrem da queda moral ou ajudá-lo a livrar-se de erros e faltas. Constitui um ato da virtude da caridade, que nos obriga a socorrer ao próximo, principalmente em suas necessidades espirituais. Tem

fundamento ñas palavras de Cristo consignadas em Mt 18, 15-17: «Se teu irmáo pecar,1 vai, repreende-o entre ti e ele somente. Se te oüvir, terás ganho teu irmáo. Se nao te atender, toma contigo mais urna ou duas pessoas, para que pela boca de duas ou tres testemunhas se decida toda questáo. Se nao os atender, dize-o á Igreja. E, se nem á Igreja quiser atender, considera-o como gentío e publicano».

Distmgue-se a correcáo fraterna da correcáo penal ou jurí dica. Esta é exercida pela autoridade como autoridade e tem em vista restabelecer, com a forga da sangáo, a ordem pública violada pela culpa de um membro ou de um grupo da sociedade. Prende-se á virtude da justica.

A correcáo fraterna é praticada nao sonriente pelos supe riores em relacáo aos subalternos, nem apenas por colegas ou

companheiros em seu relacionamento

mutuo, mas também,

caso haja oportunidade, pelos súditos em relagáo aos seus su periores.

2. Na historia da Igreja, ela foi mais de urna vez dirigida (de maneira legitima e santa) ao Sumo Pontífice por pessoas 'Varios manuscritos gregos acrescenlam: "contra ti". Todavía a forma mais abalizada do texto é a que transcrevemos ácima.

— 257 —

18

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

santas, que gozavam de grande prestigio moral na Igreja. — Tal foi, por exemplo, o caso de S. Catarina de Sena (1347-1380) e o de S. Brígida da Suécia (1303-1372), que instaram ardorosamente junto aos Papas Urbano V (1362-1370) e Gre gorio XI (1370-1378) para que voltassem de Avinháo (Franga) para Roma, conseguindo finalmente obter esta sabia decisáo do Sumo Pontífice; ambas apontaram com o máximo de clareza os males que ameagavam a Igreja, caso o Papa nao voltasse a ocupar a sua sede em Roma: as reis de Franga fariam dos Pon tífices os instrumentos de suas tramas políticas e os incompatibilizariam com o resto do povo de Deus. — Papel semelhante tocou a S. Bernardo, abade de Claraval, que dirigiu ao Papa Eugenio m, monge e antigo (discípulo de Bernardo, o tratado

' «De consideratione»:

nesta obra, em cinco livros,

datada de

1152 ou 1153, Bernardo fazia ver ao Pontífice certos males dos funcionarios papáis (propensos á vaidade e á ambigáo), assim como abusos existentes em setores da Igreja. — Nos sáculos Xn/Xm S. Francisco de Assis, S. Domingos de Gusmáo e ou-

tros mentores de familias ou grupos férvidos apregoaram alta mente a pobreza e a simplicidade na Igreja, tendo em vista o prestigio de que gozava o Papado (especialmente o Papa Ino cencio III, 1198-1216, junto aos reis e príncipes da sua época). 3.

A título de complementagáo e numa perspectiva um

pouco diversa, pode-se notar o seguinte:

No século XVI, o dominicano Bartolomeu de las Casas, bispo de Chiapa no México (1543-1551), insurgiu-se contra a vio lenta redugáo de indios a escravatura, praticada pelos «conquis

tadores» espanhóis que apelavam para concepgoes teológicas. A fim de defender os interesses dos aborígenes, viajou sete ve-

zes á Espanha a fím de obter da Coroa mitigacáo do regime. Alias, o Papa Paulo m em 1537, por instancia idos missionários,

publicou urna bula em que, sob pena de excomunháo, proibia

a escravatura no Novo Mundo e sublinhava expressamente que

os indios possuem alma imortal como os brancos; por isto eram

capazes de receber o cristianismo e os sacramentos; todavía os abusos continuaran!.

Aínda no século XX registra-se a figura do Padre Lebbe (1877-1940), lazarista, que insistiu junto aos seus superiores re ligiosos sobre a necessidade de se reconhecerem os valores da cultura chinesa ñas missóes católicas da China; evangelizar nao seria oridentalizar. Todavía as idéias do Padre Lebbe eram pre maturas na sua época, sendo por isto contraditadas até pela — 258 —

AUTORIDADE E CONTESTACAO NA IGREJA

19

Santa Sé. Finalmente, porém, Pió XI, sagrando os priméiros bispos chineses em 1926, reabilitou o pensamento do Padre Lebbe e preparou elementos de doutrina que o Concilio ido Va

ticano n assumiu em seus documentos sobre a Igreja e as missóes.

4. Através destes e outros varios casos que se poderiam citar, compreende-se que dentro da Igreja se possa exercer um diálogo franco, sereno e carinhoso, inspirado por auténtico zelo do reino de Deus, mediante o qual os subalternos procuram mostrar aos seus superiores males a evitar ou bens a promover. Na Idads Media, esse tipo de diálogo era chamado cortesa© fra>terna. Poder-se-á conservar esta expressáo hoje em dia. Parece, porém, que ela já fez época, devendo, de preferencia, ser substi tuida simplesmente pelo diálogo, menos ambiguo e já mais habitual.

Nada impede que esse diálogo continué a ser praticado hoje em dia. O fato de que ele atuabnente assuma em varios casos as formas indelicadas, irreverentes ou mesmo violentas da contesta$áo (formas ide todo indesejáveis), nao torna ilícito dentro da Igreja o diálogo como tal.

Estas consideracóes pedem ulterior complementagáo. Com efeito, é oportuno frisar com clareza em que termos ou dentro de que condigóes se pode conceber um diálogo construtivo e vá lido dentro da Igreja.

3.

O legítimo diálogo dentro da Igreja

Podem-se estabelecer quatro condifióes para que se tenha legitimo diálogo dentro da Igreja. 3.1.

Respeito á autoridade papal

Na Igreja Católica, o Sumo Pontífice é o tutor e fautor da unidade dos fiéis, dessa unidade que o Senhor Jesús, em sua oracáo sacerdotal, ardentemente pediu para a Igreja. Por con-

seguínte, estar em comunháo com o Sumo Pontífice é urna das condicdes indispensáveis para que alguém esteja na Igreja e em plena comunháo com Cristo. Toda facgáo que, em sua mogáo contestadora, rompa com o Sumo Pontífice, rompe com a Igre ja e viola a unidade desta.

Podem-se desenvolver-se estas idéias,

título:

— 259 —

colocando-se

novo

20

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

3.2.

Permanencia na comunhoo do todo

Toda auténtica reforma há de ser inspirada pelo Espirito de Deus ou pelo Espirito Santo. Ora o Espirito Santo exerce a sua atividade imediata vivificando e animando o Corno Místico de Cristo como tal. Vía de regra, cada individuo em particular

é atingido pelo Espirito Santo na medida em que está vinculado

ao corpo de Cristo ou á comunháo com Cristo Cabega e com os membros de Cristo (que sao os irmáos na fé). Vé-se, pois, que as circunstancias ñas quais o Espirito Santo exerce a sua ativi dade sao comunitarias. Por conseguinte, quem se separa da comunidade, subtrai-se á acáo do Espirito de Deus, e arrisca-se a fazer obra (ou reforma) satánica, em vez de fazer a obra (ou reforma) genuinamente crista. O vendadeiro reformador de qualquer setor da Igreja nao se desliga desta nem se insu bordina violentamente contra seus superiores hierárquicos, mas, antes, sorve dos tesouros da própria Igreja, representada por tais e tais prelados, a vitalidade, assim como a pureza de doutrina e costumes, neceísárias á realizacjio do seu ideal. Foi desse modo que procederam: Sao Francisco de Assis e Sao Domingos de Gusmáo, arautos da pobreza no século XIII, como atrás dito;

Santa Tereza de Avila, Sao Joáo da Cruz, Sao Pedro de Alcántara, Sao Caetano de Tiene, porta-vozes do ideal da peni

tencia no século XVI, época em que a mentalidade da Renascenca embotava o espirito religioso de muitos prelados. Paradoxalmente (dir-se-ia), conservando a subordinacáo a seus su periores, tais santos conseguiram mudar o espirito desses mesmos superiores, e preparam a grande reforma católica do Concílo de Trente (1543-1565).

Claro está que esta ssgunda característica de auténtica re forma dentro da Igreja só pode ser posta em prática por quem tenha profunda fé. Mas nao seria justamente a fé urna das vir tudes que mais devem caracterizar o verdadeiro reformador? 3.3.

Primazia da caridade

(amor fraterno)

sobre a

gnose

(ou as «bolas idéias»)

O binomio ácima se deve a urna frase de Sao Paulo, que

diz: «A ciencia (gnüse) incha, isto é, ensoberbece; mas a cari— 260 —

AUTORIDADE E CONTESTACAO NA IGREJA

21

dads (agápe) edifica» (1 Cor 8,1). — O Apostólo tinha em vista

certos fiéis de Corinto que, dotados de formagáo esclarecida,

bem sabiam que podiam comer qualquer tipo de carne vendi da no agougue, embora certas carnes tivessem sido previa mente imoladas aos ídolos nos templos pagaos da cidade. Os ídolos nao contaminavam religiosamente carne alguma, pois nada eram. Ao lado desses cristáos, havia outros em Corinto que, de formagáo mais fraca ou menos esclarecida, julgavam estarem contaminadas as cames imoladas aos ídolos; nao as comiam e

se escandalizavam quando viam que alguém as comia. — Di ante de tal situagáo, S. Paulo mandava que os fiéis esclareci dos (gnósticos) renunciassem a comer carnes imoladas aos ídolos, embora tivessem o direito de as comer. Evitassem o es cándalo dos pequeninos, praticassem a caridade para com eles; tais atitudes valeriam muito mais do que o frió comportamento gnóstico ou intelectualista. O «conhecer mais» no Cristianis mo está inseparavelmente associado ao amor e deve fomentar a este.

Passando agora ao tema «reforma da Igreja», que nos interessa neste contexto, observamos o seguinte: Todo reformador é alguém que concebe urna «bela idéia», um plano grandioso ou ideal, ao qual ele propóe adaptar a realidade presente «deformada». Esse homem pode-se deixar empolgar pela sua bela idéia a ponto de lhe subordinar todo e qual quer outro valor (como sejam os da caridade, das relagóes fra ternas e humanas, da edifícagáo do próximo, da salvagáo das almas); torna-se unilateral. Entáo os seus empreendimentos

vém a ser destrutivos em vez de se tornar construtivos; dividem, separam, provocam litigios e escándalos.

Com outras palavras: todo reformador, dizem os estudio sos, é um simplificador; nisto está a sua forga, mas está também o seuperigo. As heresias geralmente nasceram do fato de que alguém isolava do conjunto da Revelaeáo Divina urna de terminada verdade e a afirmava unilateralmente ou exagera damente, sem levar em conta a capacidade de assimilagáo das pessoas a quem pregava.

Em outros termos ainda: todo reformador julga possuir urna missáo que o póe em imediato contato com Deus e o dis— 261 —

22

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

pensa de dar coritas aos homens; essa missáo, o reformador po

de tender a executá-la «a ferro e fogo» ou apaixonadamente. Caso ceda a esta tentacáo, certamente nao faz a obra de Cristo; deteriora, em vez de reformar.

Muito a propósito vém as palavras de Fénelon (1651-1715), bispo de Cambraia, que soube associar elevada erudic.áo e pro funda humildade:

"Se queréis urna reforma seria, nao a comeceis por fora... com urna critica áspera e altiva; realizai-a, antes, em vos mesmos... Quanto mais vos reformardes desse modo, tanto me nos desejareis reformar a Igreja" ("Lettres sur l'autorité de l'Église" III, ed. Didot, t. I, p. 226). Para terminar, sejam citadas oportunas observagóes do Papa Pió XI em sua encíclica «Mit brennender Sorge» (14/m/ 1937) sobre o nacional-socialismo :

"Toda reforma verdadeira e duradoura, em última análise, se deriva da santidade de homens inflamados e impedidos pelo amor de Deus e do próximo. Generosos, prontos para ouvir todo chamado de Deus e realizá-lo em si fielmente, estavam seguros de si mesmos, por

que seguros de sua vocacáo; cresceram até tornar-se .os ilu minadores e reformadores do seu tempo. Ao contrario, onde o

zelo reformador nao jorrou da pureza do individuo, mas foi expressáo e explosáo da paixáo, ele anuviou em vez de aclarar, destruiu em lugar de construir, e mais de urna vez tornou-se ponto de partida para aberragoes mais fatais do que os males que ele esperava ou Sedis" 1937, p. 154). 3.4.

pretendía remediar" ("Acta Atpostolicae

Paóantar ou aguardar os momentos oportunos

A Providencia Divina apreende horizontes mais ampios do

que aqueles que o homem atinge. Sabe levar em conta a lentidio inerente ás criaturas. Por isto pode julgar conveniente di ferir até mesmo as mudangas salutares, aguardando que as cri aturas, de acordó com o seu moroso ritmo de amadurecimento,

oferecam as condigóes humanas mais adequadas para receber alguma reforma. Sendo assim, o reformador que se obstine a

executar de pronto os seus planos, anisca-se a nao servir a Deus, mas, sim, a si mesmo e ás suas paixóes.

— 262 —

AUTORIDADE E CONTESTACAO NA IGREJA

23

Ttenha-se em vista o caso de um pastor de almas ou de um catequista que, comegando a trabalhar em determinada regiáo, ai encontra urna populagáo fervorosa, mas muito simples e rude. Os exercícios de piedade daquela gente sao alheios ao espirito da Liturgia oficial; além disto, a igreja do lugar é cheia de imagens e flores artificiáis... O pastor ou catequista percebe que é preciso mudar. Se contudo quiser bruscamente mudar os costumes e as devocóes dos fiéis, correrá o grande

risco de destruir em vez de construir: os fiéis, nao estando (do

ponto de vista humano, isto é, psicológico e cultural) prepara dos para assimilar as novas práticas de piedade, largarlo as antigás e nao adotaráo as novas; ideixaráo simplesmente de re zar ou mesmo de praticar o catolicismo, passando-se para o pro testantismo popular ou para o espiritismo, a umbanda... — o que será profundamente doloroso. A genuína reforma da pieda de, no caso, há de ser feita devagar, mediante gradativo esclarecimento dos interessados, levando sempre em conta a lentidáo intelectual dos mesmos.

A sabedoria popular ensina que «o étimo é inimigo do bom». É o que se verifica também em assuntos religiosos: muitos reformadores, querendo obter imediatamente, e por meios

drásticos, o que de melhor se poderia conceber, nao conseguiram sequer atingir algum bom resultado.

As reflexóes até aqui propostas já bastam para dar a ver quáo lamentáveis sao os movimentos contestatarios que, dentro

da Igreja, disseminam divisóes, ressentimentos, azedume, mal-estar entre os fiéis. Provocam desconcertó no povo simples e nos cristáos despreparados, que, em conseqüéncia. se afestam

da Igreja e sofrem dolorosas crises de fé. Mesmo que haja mo tivos para pleitear novas formas de disciplina na Igreja, nao é

com desordem e violencia que elas háo de ser obtidas. Nem s?

diga que somente as atitudes acintosas e desafiadoras podem dar resultado hoje em dia (tal seria a inercia ou insensibilidade das autoridades eclesiásticas!). Toda atitude acintosa larica de satino e escándalo no povo de Deus, provocando graves males espirituais. Ora meios maus nao devem ser aplicados nem para obter fíns bons. O fim nao justifica os meios. — É na fé, na esperanga e no amor que se faz a obra de Deus. A respelto pode-se consultar o n? 68 da revista "Concilium" (ed. fran

cesa): "Droit Canonique".

— 263 —

..." Debrucado

sobre

urna

materia

¡he resiste, o trabalhador imprime-lhe

que

o seu

cunho, enquanlo para si adquire tenacidade,

engenho e espirito de invencao. Mais aínda,

vivido

em

rom uní,

na

mentó, na aspiraeáo

e

esperanza, na

alegría

no

sofri-

partílha-

da, o trabalho une as vontades, aproxima os espíritos e sóida os coracoes: realizando-o, os

homens descobrem que sao irmaos."

PAULO

VI

(Carta Encíclica Populorum Progressio) marco

-

Ética- Seguranca- Pioneirismo

Duas opgoes:

violencia ou evolucáo pacífica?

Em sfntese: A revolucSo armada é apregoada por pensadores nao crlstSos (marxistes) como também por alguns crlstños, como sendo a solucSo para as Injusticas sociais vigentes em varios países e, em particular, na América Latina. — A esta posicáo o S. Padre Paulo VI e o episcopado católico em geral, fazendo eco ao Evangelho, opCem solucSes pacificas: o amor, que transforma o ser humano, há de ser a forca revolucionaria do cristáo. Ademáis lembram que violencia gera violencia. Todavía a recusa de revotucSo armada na América Latina nao signi fica inercia ou displicencia frente aos males sociais do continente; é, ao contrario, acompanhada de veemente apelo a que os cristáos assumam as

suas responsabilidades na constru?5o de urna ordem de coisas mals justa e humana nos seus respectivos países.

A revolucSo armada nao é sempre ilegitima; ao contrario, pode ser justa, desde que nSo haja outro recurso (menos violento) para remover urna sltuacSo tiránica e duradoura. A revolucSo, porém, há de evitar exorbitan cias Injustas e há de ser empreendlda com probablildade de éxito, a fim

de nao se tornar mero e víngativo derramamento de sangue.

Resposta: Vivemos numa época em que as revolugóes se

multiplicam, atingindo os mais diversos sistemas políticos (de mocracias ocidentais, totalitarismos de esquerda), independen* temente dos diversos regimes económicos (capitalistas e coletivistas); aliciam em sua onda fiéis de todos os credos religiosos. Tal época um día poderá ser considerada a era das revolucóes

e da violencia, como outros periodos da historia foram tidos co mo o século do iluminismo, a era da democracia, a época da industrializacáo e da técnica... Isto nao quer dizer que em outras épocas nao se tenha registrado o recurso á violencia; mas o que caracteriza a violencia em nosso século é que os estu— 265 —

26

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

diosos (filósofos, sociólogos e políticos) procuram justificá-la mediante teorías diversas, apresentando-a como método necessário para superar insustentáveis situagóes ide desequilibrio em que se encontra o género humano.

Vive-se hoje em dia como que o mito da revolugáo, que tem

seus homens simbólicos de fama mundial: Che Guevara, Mao-

-Tse-Tung, Ho-Chi-Min, Fidel Castro, Camilo Torres... Os es critos de Mao, de Che, de Marcuse tornaram-se os clássicos da revolugáo na era presente.

Compreende^se entáo que os cristáos se perguntem que ati-

tude tomar diante do processo revolucionario que é apregoado com aparato de teorías filosóficas, ora mais, ora menos impressionantes. «Se o cristáo é chamado a viver e agir na his toria, como poderá ficar alheio a um movimento de dimensóes mundiais?», eis o que perguntam muites. As respostas a esta pergunta sao contraditórias. Camilo Torres, ex-pastor de almas católico, caiu morto em guerrilha,

afirmando que «a luta revolucionaria é urna luta crista e sa

cerdotal» (Camilo Torres, Comunicado á imprensa, 24/V/1965). Ao invés, Martinho Lutero King sucumbiu assassinado enquanto professava que o Evangelho recomenda a náo-violéncia. Diante da contradicáo assim proposta, importa ao cristáo tomar conhecimento exato de qual deva ser o seu auténtico pa pel na hora presente. A fim de favorecer a formagáo das consciéncias, proporemos, a seguir, as posigóes que hoje se defrontam diante do problema social: revolugáo violenta, evolugáo pací fica, ficando a questáo da pressáo moral (que, as vezes, é tida como urna das expressóes da náo-violéncia) reservada para o próximo artigo de PR.

1.

Revolucáo violenta

Muitos pensadores julgam que a justica e o equilibrio en tre as dasses sociais só poderáo ser obtidas mediante o recurso á violencia armada. Esta seria instrumento de libertagáo.

Entre os protagonistas desta tese, podem-se contar — 266 —

VIOLENCIA OU EVOLUCAO PACÍFICA?

27

1) Os partidarios do marasmo. A revolucáo (e revolucáo armada, se for necessário) está incluida no programa de agáo do comunismo. Este encara a luta entre dasses como algo de plenamente justificado. Entre outros, podem-se citar os seguintes dizeres de Lenine proferidos em 1920 no IH Congresso da Juventude Comunista:

"Existe urna moral comunista? Existe urna ética comunis ta? Certo que existe... Dizemos que nossa ética está em tudo

e por tudo sujeita aos interesses da luta de classe do proleta riado... Eis por que dizemos: para nos nao existe mora! to mada fora da sociedade humana; admitir isto seria enganar-se. A nossa moral comunista, nos a subordinamos a este dever. Nos dizemos: moral é aquilo que serve para destruir a velha

sociedade exploradora e para reagrupar todos os trabalhadores em volta do proletariado" (Lenine, "Obras", Moscou 1948, vol. II, p,p. 645-647). Muito significativo é também o programa de Che Guevara: "O odio como fator de luta, o odio intransigente para com

o ¡nimigo, o odio que leva o ser humano para além dos limites humanos e o transforma em urna eficaz, violenta, seletiva e e fria máquina para matar. Tais devem ser os combatentes; um ¡povo sem odio nao pode vencer um inimigo brutal" (Che

Guevara, "Creare due, tre, moltt Vietnan: é la parola d'ordine".

Miláo 1967, p.24; extrato da carta de Che ao Secretario executivo de O.S.P.A.A.L., Berlim 1967).

Nao é necessário desenvolver aqui o ponto de vista marxista. Passamos, pois, a outra expressáo da mesma tese:

2) Herbert Marcuse © seus seguictores também admitem a legitimidade ida revolugáo violenta, embora sejam os arautos

de urna sociedade tranquila, movida pelo amor. A fim de der-

rubar a sociedade de consumo, em que vivemos, Marcuse nao recusa a revolucáo violenta:

"A relacáo entre os fins e os meios é o problema ético da revolugáo. Em certo sentido, o fim justifica os meios, no caso em que estes contribuam claramente para o progresso

humano. Este fim legítimo (o progresso), que na verdade é o único legitimo, exige a criacáo de um clima que facilite e promova a sua realizacáo. A criagáo de um tal clima pode justifi car sacrificios, como ela os justificou no decorrer da historia. — 267 —

28

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

Todavia a relagáo entre fim e meios fica sendo diaiética. O fim deveria ser levado em consideracáo já nos meios repressivos destinados a atingi-lo. Visto que os sacrificios implicam violencia, urna sociedade nao violenta só será possível num período da historia que ainda estamos por alcancar" (citado por IDOC n? 1, 1/V/1969, pp. 62s).

A respeito de Herbert Marcuse e suas idéias, veja-se PR

106/1968, pp. 405-406; 114/1969, pp. 229-239.

3) Entre os pensadores cristáos, também há os que propugnam a violencia revolucionaria como meio legítimo de ins taurar nova ordem de coisas no mundo presente. a)

Apelando para as Escrituras Sagradas, alguns lem-

bram que a Biblia promete o Reino de Deus, Reino que pora

termo a toda injustiga e todo pecado existentes na presente ordem de coisas; subverterá todas as instituigóes iníquas. A perspectiva desse Reino habilita os cristáos a empreender as mudanzas e revolugóes violentas que estejam ao seu alcance. Nada do que é alheio a Deus na sociedade, é intocável; o cristáo pederá empreender a derrabada e a transformagáo necessárias, até por meio de violencia. Segundo a Biblia, o Senhor abate o poder do opressor para instaurar a sua justiga; é prin cipalmente nos tempos messiánicos que se deve dar tal reviravolta; cf. 1 Sam 2,1-11; SI 9. 71.146; Le 1,50-53.

b) A moral crista ensina que todo ser humano injusta mente atacado tem o direito de se defender da violencia do agressor mediante a violencia. — Ora pode-se dizer que em cer tas nagóes a violencia está institucionalizada (isto é, oficialzada e atuante nos poderes públicos), oprimindo as populagóes pobres e modestas. Em conseqüéncia, será lícito a um cristáo pegar em armas e opor-se violentamente a tal violencia institucionaliza da. A revolugáo assim movida poderá ser tida como fruto do amor, pois o amor manda preferir os mais fracos e lutar ao lado deles para assegurar-lhes urna vida melhor e mais livre. Um espécimen representativo desta atitude encontra-se ñas palavras de Thomas R. Melville, religioso norte-americano, que deixou sua Congregagáo Religiosa para apoiar a revolugáo na América Latina e reunir-se aos guerrilheiros da Guatemala: "Meu irmáo e eu chegamos á conclusáo seguinte: a atual violencia, que se afirma na subnutrigáo, na ignorancia, na — 268 —

VIOLENCIA OU EVOLUCAO PACÍFICA?

29

doenga e na fome, em que está imersa a maioria do povo guatemalteco, é a conseqüéncia direta do sistema capitalista que póe, frente uns aos outros, indios sem defesa e proprietários de térras poderosos e bem armados.

Decidimos entáo nao nos tornar cúmplices do exterminio decorrente desse sistema e ,comecamos a ensinar aos indios que ninguém haveria de defender os seus direitos se nao eles mesmos. Se os governos e ricos proprietários recorrem ás armas para os manter na sua miseria, eles tém a obrigagao de também pegar em armas para defender o direito, que Deus Ihes deu, de ser homens.

Acusaram-nos de sermos comunistas, nos e aqueles que nos escutavam. Nossos Superiores Religiosos e o Embaixador dos Estados Unidos nos rogaram que deixássemos o pais — o que realmente fizemos. Mas fago questáo de dizer que so sou comunista se Cristo é comunista. Foi por causa do ensinamento de Cristo, e nao por causa de Marx ou Lenine, que fiz o que fiz e continuarei a fazer. Também me importa dizer que somos muito mais numerosos do que pensam a hierarquia ou o governo dos Estados Unidos. Quando a batalha se tornar mais manifesta, dai a saber

ao mundo que nos nao lutamos nem pela Rússia nem pela China, nem por algum outro país, mas, sim, pela Guatemala. Nossa atitude frente á situagáo atual nada deve á leitura de Marx ou Lenine; ela provém de uma leitura do Novo Testamen to" (citado em IDOC, n
Tenha-se em vista também o seguinte trecho

da

última

carta de Camilo Torres dirigida aos colombianos: "Agora o povo já nao eré em colsa alguma. O povo nao

eré ñas eleigóes. O povo sabe que os recursos legáis estáo esgotados. O povo sabe que nao Ihe ficam senáo as armas. O povo está desesperado e decidido a arriscar a vida, para que a próxima geragáo de colombianos já nao viva na escravidáo, ... para que os filhos, pelos quais os pais estáo dispostos a dar hoje a vida, recebam uma educagáo, um teto, alimentos, vestes e principalmente a dignidade...

Cada revolucionario sincero tem consciéncia de que a única salda que resta, é a das armas. O povo espera ansiosa mente que os responsáveis, por seu exemplo e sua presenga, daráo o sinal da batalha. — 269 —

30

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

Todos os patriotas colombianos devem colQcar-se em pé de guerra. Aos poucos, em todos os recantos do país, chefes

guerrilheiros experimentados nao de se levantar. Nos também

devemos estar ¡prontos. Entender-nos com nossos vizinhos mais próximos. Reunir vestes, medicamentos e provisoes afim de nos prepararmos para um longo combate".

Os dizeres de Melville e Camilo Torres, embora apelem pa ra o Evangelho e principios cristáos, nao constituem a única maneira de se entender a mensagem de Cristo e do Novo Tes

tamento. Grande número de cristáos e — de modo especial — o S. Padre Paulo VI, com o episcopado católico em geral, tém-ss mostrado contrarios á tese de que a revolugáo armada é solucáo para a América Latina ou, de modo geral, para os países em desenvolvimento. Vejamos o seu modo de pensar.

2.

Evolujóo pacífica

Procederemos por etapas sucessivas. Antes do mais, convém notar que a recusa de violencia armada ou guerra civil nao quer dizer desconhecimento de ma les vigentes na sociedade contemporánea, nem indiferencia ao sofrimento dos pobres. A consciéncia de que há situacdes ini-

quas no mundo de hoje é bem viva no laicato e na hierarquia da Igreja contemporánea. Donde a primeira observacáo: 2.1.

Consciéncia dos males vigentes

A existencia de situacóes de desequilibrio social é fato que

todos os estudiosos apontam com estatísticas minuciosas e per

suasivas. É natural que se queira, seja tal desequilibrio remo vido, a fim de que todos os hornera tenham a oportunidade ideal de se alimentar, de se instruir e de trabalhar em todas as partes do globo. Por isto dizia S. Santidade o Papa Paulo VI: "A situagao presente deve ser encarada com coragem, e as ¡njusticas que ela comporta, nao de ser combatidas e extintas. O desenvolvimento exige transfórmaseos audazes, pro

fundamente (novadoras" (ene. "Populorum Progressio" rfi 32).

Fazendo eco ao Sumo Pontífice, os bispos, principalmente no Terceiro Mundo, tém-se pronunciado em sentido análogo.

— 270 —

VIOLENCIA OU EVOLUCAO PACIFICA?

31

Eis, por exemplo, o que declarava o episcopado latino-ameri

cano reunido em Medellin (Colombia) no mes de agosto de 1968:

"Sao respohsáveis pela injustiga todos os que nao atuam

em favor da justica na medida dos meios de que dispóem, e permanecem passivos por temor aos sacrificios e riscos pessoais que implica toda agáo audaz e verdaderamente eficaz ... Criar uma ordem social justa, sem a qual a paz é ilusoria, é tarefa eminentemente crista" (cf. SEDOC n
"O desenvolvimento exige mudangas de estrutura bem or

denadas, mas urgentes e eficazes. A Igreja, chamada a agir diretamente no campo de sua competencia, julga ¡ndispensá-

vel formar a consciéncia crista, para que tome uma atitude di námica de responsabilidade e participagáo".

Ao ler estas declaragóes, talvez julgue alguém que exor-

bitam da missáo da Igreja, a qual é essencialmente espiritual e religiosa. — Nao há dúvida, á Igreja foi confiada a tarefa de levar os homens a Deus; todavía a historia da salvagáo se idesenrola neste mundo, onde o cristáo se defronta com afazeres temporais; é lidando com os misteres terrestres que o discípulo de Cristo dá o testemunho de sua fé; por isto a Igreja quer que

seus filhos leigos se empenhem (nao, porém, de qualquer modo, como abaixo se dirá) na promogáo de uma justa ordem social.

Vé-se, pois, que a visáo crista das realidades terrestres nao é menos perspicaz, realista e dinámica do que a visáo nao crista ou marxista. Acontece, porém, que, ao conceber a maneira de

remediar aos males da sociedade presente, cristáos e marxistas se distanciam entre si. 2.2.

1.

A diferenca banca

Para o marxista, o ser humano é materia; as suas su-

perestruturas (senso de fraternidade, direito, moral, religiáo ...) sao fungóes da estrutura básica, que é a satisfagáo das necessidades materiais do homem. Por conseguinte, conforme o marxismo, a sociedade será melhor ou plenamente harmoniosa — 271 —

32

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

quando se fizer a redistribuigáo dos bens materiais, de modo que nenhum individuo seja proprietário, mas todos recebam do Es tado as mesmas chances. Nao é assim que pensa o cristáo. Este sabe que, além de

ser materia, o ser humano é espirito; a sua personalidade é marcada por sua alma espiritual, que aspira, antes do mais, ao amor, á justiga, á paz, á vida sem fim... Isto nao quer dizer que o homem na térra se possa saciar exclusivamente com bens

espirituais, mas significa que nao pode haver solugáo para o homem subdesenvolvido se nao se levam em conta também as suas aspiragóes transcendentais; estas nao sao fungóes da ma teria, mas sao táo básicas e imperiosas quanto a fome e a sede físicas.

2. Em outras palavras: o cristáo professa um humanismo integral, isto é, afirma que as mudangas sociais a ser realiza das exigem a conversáo interior de cada homem; é preciso que cada um se transfira do pecado para a graca, do egoísmo para o amor, do orgulho para o servigo humilde; se nao se cuida dessa transformagáo íntima do ser humano, vaos se tornam os

projetos de reforma de estruturas sócio-económicas. É por isto que o cristáo nao pode simplesmente colaborar com os movi-

mentos revolucionarios de esquerda: estes partem de outro conceito de homem e sociedade, julgando que a materia e a forga bruta sao os grandes fatores da historia; tais movimentos propugnam naturalmente o recurso á violencia, ao passo que o

cristáo apregoa, antes do mais, a reforma do homem e a aplicagáo do amor, para que haja reforma de estruturas sociais.

3. Verdade é que muitos cristáos, ao propugnar a revolugáo armada, nao tencionam pactuar com o marxismo, nem

abragar idéias materialistas. Acontece, porém, que, assim fazendo, aceitam correr urna aventura arriscada: difícilmente escaparáo ao perigo de ser absorvidos e sobrepujadas pelo mar xismo, que também apregoa a guerra armada. Para o revolu cionario marxista, os fins justificam os meios, ao passo que

o mesmo nao se dá para o revolucionario cristáo: este terá que respeitar sempre os valores da sinceridade, da lealdade, da fi delidade á palavra, enquanto o marxista poderá tranquilamen te julgar-se dispensado de fidelidade ao compromisso desde que isto parega conveniente á sua causa. Tendo, pois, caminhado junto com o cristáo até certo ponto, beneficiando-se da colaboragáo deste, o marxista nao recusará langar máo de qualquer — 272 —

VIOLENCIA OU EVOLUCAO PACÍFICA?

33

recurso para suplantar e assujeitar o seu aliado cristáo quando julgar que é chegada a hora para tanto. 4.

OS. Padre Paulo VI em Bogotá (1968)

aludía ainda

a outra justificativa de alianca entre cristáos e nao cristáos. É a tese do Cristianismo seculaaista, que se pode assim formular: embora os cristáos professem valores espirituais e transcerufentais, estes nao devem influir no modo de agir dos cristáos na vida pública e na sociedade contemporánea. Diante de tal tese, S. Santidade lembrava a auténtica posiclo crista: "A caridade para com o próximo depende da caridade para com Deus. Conheceis os assaltos em nossos días sofridos por esta doutrina de claríssima e inatacável origem evangé lica: pretende-se secularizar o Cristianismo, olvidando a sua essencial referencia á verdade religiosa, á comunháo sobrena tural com a inefável e transbordante caridade de Deus para com os homens... Esses assaltos tém por fim livrar o Cristia nismo 'daquela forma de neurose que é a religiáo' (Cox), evi

tar qualquer preocupagáo teológica e oferecer ao Cristianismo

urna nova eficacia toda ela pragmática, a única que poderia

dar a medida de sua verdade, e o tornarla aceitável e operante na moderna civilizagáo profana e tecnológica" (cf. SEDOC, n9 5, novembro 1968, col. 647). Ainda acrescentava o S. Padre: "Nem o odio nem a violencia sao a forca da nossa cari dade. Entre os diversos caminhos que levam a urna justa regeneragáo social, nao podemos escolher nem o do marxismo ateu, nem o da rebeliáo sistemática, nem milito menos o do derramamento de sangue e o da anarquia. Distingamos nossas

responsabilidades das daqueies que fazem da violencia um nobre ideal, um heroísmo glorioso, urna teología complacente. Para reparar erras do passado e para curar enfermidades atu-

ais, nao precisamos de cometer novas faltas, porque seriam contra o Evangelho, contra o espirito da Igreja, contra os próprios interesses do povo, contra o sinal feliz da hora presente, que é o da justica rumo á fraternidade e á paz" (cf. SEDOC ibd. col. 649s).

Sem comentarios a estas palavras de Paulo VI, resumi mos quanto foi dito até agora nos seguintes termos: o cristáo, diante da situagáo atual do mundo, é francamente favorável á instauragáo da justica onde há desequilibrio injusto. Todavía — 273 —

34

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

ele nao admite que qualquer método seja lícito desde que ten-

da a tal objetivo; ele recusa o fatalismo histórico que está na base das teorías em favor de revolugáo violenta; sabe que a historia é arquitetada por criaturas livres e responsáveis, que devem ser ajudadas a usar de sua liberdade e responsabilidade, em vez de ser subjugadas como elementos meramente materiais. Procuremos agora aprofundar as razóes pelas quais o cris-

táo recusa a violencia. 2.3.

Por que nao a violencia armada ?

Dois sao os grandes motivos que justificam a atitude ne

gativa do cristáo: um, de ordem antropológica e histórica; outro, de índole teológica. a)

Em nomo do próprio hotnem

A violencia é, por sua natureza, um fenómeno emocional,

freqüentemente irracional, difícilmente controlável; é militas

vezes a negacáo do que deve ser um auténtico comportamento

humano. Por isto, via de regra, pode-se dizer que nao é por si apta a garantir a justiga, que é essencialmente relacionamento racional, nao emocional, comportamento controlável. Com outras palavras: é difícil, se nao impossível, instau

rar um regime de liberdade e justiga a partir da violencia. Esta destrói a fraternidade, a solidariedade e a equidade, precisa mente ao pretender instaurá-las; além do que, dá muitas vezes ganho de causa ao contendente mais forte, e nao ao mais justo.

Somente quem aceita urna visáo mecanicista da historia, pode crer que a violencia seja fator ordinario e normal do progresso. Na verdade, porém, o desenvolvimento da sociedade, o amadurecimento de um povo nao sao fatos que decorrem de cega dialética; sao, antes, fenómenos humanos, que dependem da li berdade e da responsabilidade dos individuos e das comunida des. Nao basta, pois, aos reformadores sociais destruir ou pro curar destruir o «status quo» para que outra ordem, mais jus ta, se faga; este objetivo só é atingido mediante um processo de maturagáo espiritual e moral que nenhum ato de violen

cia pode produzir «por encanto». Ao contrario, pode dar-se que a violencia venha a ser fator negativo ou retardante no — 274 —

VIOLENCIA OU EVOLUCAO PACIFICA?

35

desenvolvimento de um povo, pois destroi, muitas vezes de maneira indiscriminada, iniciativas e empreendimentos justas ao lado dos empreendimentos injustos. Sao palavras de Paulo VI proferidas em Bogotá na famosa «Jornada do Desenvolvimento» (23/VHI/68): "Muitos, especialmente entre os jovens, insistem na necessidade de mudar urgentemente as estruturas sociais que, se gundo eles, nao permitiriam a obtencáo de efetivas condicdes de justica, para os individuos e para as comunidades; alguns

concluem que o problema essencial da América Latina nao pode ser resolvido senáo com a violencia. Com mesma lealdade com que reconhecemos encontrarem tais teorías e atitudes práticas a sua motivacao última em nobres impulsos de justica e de solidariedade, devemos dizer

e reafirmar que a violencia nao é evangélica, nao é crista e que mudancas bruscas e violentas de estruturas seriam iluso rias e certamente nao em conformidade com a dignidade da

populacio, a qual exige que as necessárias transformagoes se realizem de dentro para tora, isto é, mediante urna conve niente tomada de consciéncia, urna preparagáo adequada e

aquela participagáo efetiva de todos, que a ignorancia e as condicóes de vida, por vezes infra-humanas, nao permitem hoje garantir" (SEDOC n
Alias, na encíclica «Populorum Progressio», baseando-se em motivos de ordem antropológica e histórica, S. Santidade formulou semelhante juízo sobre a violencia: «é fonte de no vas injusticas, introduz novos desequilibrios e provoca novas ruinas. Nao se pode combater um mal real a prego de um mal maior» (n' 31).

Procuremos julgar a questáo também e diretamente b)

Em nome do Evongelho

O Evangelho é essencialmente arauto do amor entre os

homens, repudiando tudo que possa fomentar o odio ou a divi-

sáo, O amor constituí, portanto, a arma com a qual o cristáo

deve procurar mudar as estruturas injustas. É o que decorre,

por exemplo, do sermáo sobre a montanha (Mt 5-7), em que Jesús louva os mansos e os pacíficos («pacífico» é aquele que — 275 —

36

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

«faz a paz», empenhando-se por ela), e condena a antiga lei do taliáo («olho por olho, dente por dente»). É o que se pode depreender também da palavra de Jesús que proibe a Pedro usar da espada para ferir os enviados do sinedrio (cf. Mt 26,52-54).

Vé-se, pois, que em tese o cristáo nao pode apregoar a vi olencia e a revolugáo armadas como instrumentos normáis e or dinarios de reforma sociaL Todavía nao seríamos fiéis ao pensamento cristáo se apenas afirmássernos esta proposigáo. Daí o eeguinte subtítulo:

3.

A questóo da revolugáo ¡usta

O cristáo sabe que o amor e a mansidáo integram o grande

programa apontado pelo Evangelho a todos os homens. Todavia ele também sabe que o pecado ainda existe na historia dos homens, impondo-se por vezes de maneira tenaz e violenta. Consciente disto, o amor cristáo pode ver-se obrigado a opor violencia a violencia, a fim de que a ordem e os valores evan gélicos nao sejam expostos á burla e á sufocacáo. A opgáo pela violencia será sempre delicada e difícil para o cristáo, pois este a deve repudiar por principio. Os teólogos elaboraram conseqüentemente o conceito de «guerra justa», que a encíclica «Populorum Progressio» (n' 31) nao deixa de reconhecer. — A guerra justa há de atender aos seguintes requisitos:

1) Causa justa: a guerra legítima deve procurar defen der ou restabelecer os justos direitos iniquamente violados.

2) Reta intencao: a finalidade da legitima guerra há de ser a paz, ou seja, a convivencia dos povos entre si, e nao a eliminagáo ou sufocagáo injusta de determinada populacáo.

3) Observancia dos códigos internacionais: nao se apliquem meios ou métodos de guerra reprovados pelo direito na tural ou por justos tratados positivos. 4)

Bazáo .proporcional: os danos causados pela

guerra

nao sejam mais vultuosos do que os bens ameagados pelo adver sario injusto. — 276 —

VIOLENCIA OU EVOLUCAO PACÍFICA?

37

5) Ultima instancia: antes de se empreender urna guer ra justa, tentem-se todos os recursos possíveis para resolver em termos pacíficos o confuto em questáo. Somente em caso de absoluta impossibilidade de solugáo pacífica, empreenda-se a luta armada.

Nos tempos atuais, quando os interesses dos diversos po vos sao cada vez mais variados e complexos, torna-se sempre mais difícil aplicar os criterios ácima e afirmar tranquilamente que determinada guerra seja justa ou injusta. Isto nao invalida o conceito teórico de «guerra justa». Quanto á América Latina, o sabio pensamento cristáo e o magisterio da Igreja julgam que nao é o caso de recorrer á revolugáo armada para se ins taurar nova ordem socio-económica. Apresentam-se vias pací ficas de evolugáo para os povos jovens da América Latina, que

agora váo despertando para seu destino na historia da huma-

nidade.

Educagáo, abrangendo nao somente os aspectos científicos, técnicos e culturáis, mas também a dimensáo ética e crista do homem — eis a necessidade mais urgente e decisiva da América Latina, onde se acham enormes energias humanas e materiais ainda em estado latente. Resta abordar a questáo da pressáo moral ou da náo-violéncia atuante, que tem encontrado voga entre os adversarios da revolugáo armaSa. É o que faremos no artigo seguinte.

"SÓ SE VÉ BEM COM O CORACÁO. O ESSENCIAL É INVISÍVEL PARA OS OLHOS."

(Antoine de Saint-Exupéry)

— 277 —

Nem mesmo urna Companhia que há 60 anos v'em acompanhando o

progresso, presente em todo o país (com cerca -de 3500 .

postos de servic^)), ha industria.(com mais de 300 prodütos), no campo e no lar. A Esso tém urna tradigáo de pioneirismo. Chegou á Transamazónica com as

e abastece as máquinas que abrem novas estradas. •

Mas su a

responsabilidade máior é com gente.

Seu pessoal é tremado de acordó com as modernas . técnicas administrativas. A Esso sabe que precisa de gente, porque ninguém, nem mesmo urna

grande compa nhia, pode fazet

pfimeiras frentes cíe trabalho nada sozinho.

Opcáo Intermediarla:

e a nao-violencia ativa?

Em sintese: A náo-violéncia ativa é a resistencia a urna ordem de coi

sas tlda como Injusta, nSo mediante o recurso ás armas, mas por meio de greves, bolcotes, sonegacao de impostos, passeatas, jejuns, consclentlzacio do público... Em certos casos, é dita "pressao moral". Seus princi páis representantes sao o Mahatma Gandhl, o pastor Martín Luther King, o arceblspo D. Hélder Cámara... O juizo a ser proferido sobre a nflo-vlo-

léncla ativa deve levar em conta que: 1) em nao poucos casos, a náo-vloléncia vem a ter algo da brutalidade da violencia (notem-se as greves); 2) geralmente a nSo-violencla provoca represalias violentas da parte das autoridades constituidas. Em conseqüéncla, ve-se que a nao-violéncla há de ser lulgada caso por caso; há sltuacSes em que ó legitima (tenha-se em vista, por. exemplo, a atuacfio de Martín Luther Klng nos EE. UU.); há outras sltuacfies, porém, em que a nao-violencia suscita males plores do que aqueles que ela pretende sanear; se, por exemplo. Pió XII, durante a guerra de 1939-1945, tivesse presslonado mals fortemente os nacional-so cialistas da Alemanha, teria provocado, da parte de Adolf Hitler, mais re quintadas brutalidades contra judeus e crlstáos, pois o governo alemfio dominava quase toda a Europa a partir de 1940.

Em suma, a nSo-violéncia nao é Ilegitima em si; mas requer-se que seja realmente justificada e aplicada com propósito.

Rcsposfa: Entre a revolugáo armada e a evolucáo pacifica,

muitos pensadores preconizan! a náo-violéncia ativa, de que se tornaram famosos pioneiros o Mahatma Gandhi, o pastor Martín Luther King, o líder italiano Danilo Dolci. Evitando a índole brutal e sangrenta da primeira, assim como a aparente

passividade da segunda, a náo-violéncia ativa parece ser a forma ideal de contribuicáo para a renovac.áo da sociedade.

Vamos, pois, examinar em que consista propriamente, para poder tentar um juizo sobre ela. — 279 —

40

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

1.

Nao-violencia ativa: que é ?

Náo-violéncia ativa é a resistencia oposta a urna situacáo tida como injusta; traduz-se pelo nao emprego de armas, mas por greves, sabotagens, sonegagáo de impostas, recusa de pres tar servico militar, como ainda por jejuns, passeatas silencio sas, consdentizacáo da opiniáo pública... Tal tipo de reagáo, em alguns casos, se chama também prassáo mqral; visa a in

fluir sobre o senso ético e humanitario dos ¡detentores do poder, levando-os a tomar consciéncia mate viva dos males que estejam afligindo a sociedade. Alguns tipos ditos de náo-violéncia

ativa aproximam-se muito da violencia brutal; acarretam prejuízos físicos ou materiais, como no caso de greves e sabota gens. Visto que sao múltiplas as formas que a náo-violéncia po de asumir, abaixo daremos a palavra a escritores que ilustraram de algum modo o que entendem por náo-violéncia ativa. a)

Mohandas Karamchand Gandhi (*1869), dito «Ma-

hatma» (isto é, Grande Alma)1 foi um homem de estrutura pequeña, físico frágil, olhos negros e fundos, que se revestía de paño branco, trazia boné branco e os pés descalcos. Alimentava-se de arroz, frutas e só bebia agua; jejuava severamente, dormia pouco e no chao, e trabalhava corajosamente. Apregoava a náo-cooperagáo com o governo inglés estabelecido na india, a fim de obter a independencia nacional. Entre as suas palavras mais significativas, encontram-se as seguintes:

"Quisera sofrer todas as humilhagóes, todas as torturas,

o ostracismo absoluto e até a própria morte, para impedir que nosso movimento se torne violencia ou precursor de violen cia..."

Todavia Gandhi distinguía ciosamente da covardia a sua posicáo; antes ser violento que covarde, diría ele:

"Onde só resta a escolha entre covardia e violencia, aconselharei violencia... Cultivo a coragem de morrer sem matar. Mas quem nao tem essa coragem, desejo-lhe que cultive a arte de matar e de ser morto antes que fugir vergonhosamente ao perigo. Porque aquele que foge, comete urna violencia men tal; foge porque nao tem a coragem de ser morto matando... Mil vezes eu aconselharia a violencia antes que o acovardamento de urna

populacáo inteira...

1 Maná = grande; alma = alma.

— 280 —

Prefiro francamente ver

.

NAO-VIOLfiNCIA ATIVA?

41

a fndia recorrer ás armas para defender-se a vé-la testemunha covarde de sua própria desonra. Todavia sei que a nao-violéncia é infinitamente superior

á violencia, e que o perdao é mais viril do que o castigo. O perdao é o adorno do soldado. Abster-se, porém, de castigar nao é perdao senao quando existe a possibilidade de castigar. Nao tem sentido quando realizado por urna criatura fraca... Nao creio na fraqueza da India. Cem mil ingleses nao podem espantar trezentos milhóes de seres humanos... E, por outro lado, a torga nao se acha nos meios físicos, ela reside em urna vontade indomável... Náo-violéncia nao é submissáo benévola á desgrasa. Nao-violéncia opde toda a forca da alma á vontade do tirano. Um só homem pode assim desafiar um

imperio e provocar a queda deste".

O prego da libertagáo nao violenta seria o sofrímento, que Gandhi assim elogia:

"O sofrímento é a insignia da estirpe humana... É a con-

digáo indispensável do ser. A vida sai da morte. Para que o

trigo brote, é preciso que a sementé morra. Jamáis coisa alguma se elevou sem passar pelo fogo do sofrímento... Ninguém pode escapar a este... O progresso consiste apenas em pu

rificar o sofrímento, evitando fazer os outros sofrer... Na me dida em que mais puro é o sofrímento pessoal, maior é o progresso... Náo-violéncia é sofrímento consciente. Tomei a liberdade de apresentar á india a antiga lei do sacrificio de si mesma, a lei do sofrímento. Os Rishis que descobriram a lei da náo-violéncia em meio ás piores violencias, eram maiores ge nios do que Newton, guerreiros mais ilustres do que Wellington: realizaram a inutilidade das armas que conheciam... A reiigiao da náo-violéncia nao é somente para os santos; é para o •comum dos homens. é a lei da nossa especie, como a vio lencia é a lei do animal bruto. O espirito dorme no bruto. A

dignidade do homem requer urna lei mais elevada: a forca do espirito... Quero que a India pratique esta lei; quero que tenha consciéncia de seu poder. Ela tem urna alma que nao

pode perecer. Essa alma pode desafiar todas as forcas materiais do mundo inteiro".

Grande impulso a praticar a náo-violéncia terá sido dado a Gandhi pela leitura do Evangelho, como ele próprio confessa: "Foi o Novo Testamento aue realmente me despertou. Quando li no Sermáo da Montanha passagens tais como 'Nao — 281 —

42

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 150/1972

resistáis aos maus; se te esbofetearem na face direita, apresenta a esquerda1, senti-me simplesmente transportado de ale gría" (textos transcritos da autobíografia de Gandhi).

A coragem pacífica de Gandhi foi bem sucedida, apesar da tragedia que marcou o fim de vida do Mahatma. Este mor-

reu assassinado aos 30 de Janeiro de 1948, tendo iniciado a sua campanha de náo-colaboracáo em 1920. Despertou trezentos milhóes de compatriotas, emocionou o Imperio Británico e empreendeu na política o mais poderoso movimento de todos os tempos.

b)

Também merece atencáo a figura de Martín Luther

King, o protagonista do anti-racismo nos EE. UU.,

transcrevemos os seguintes dizeres:

do

qual

"Aceitar passivamente um sistema injusto é colaborar com ele; o homem oprimido entáo compartilha a maldade do seu agressor. Há tanta obrigagio moral em nao cooperar com o mal como em cooperar com o bem. O oprimido nao deve dar repouso á consciéncia do opressor. A religiáo recorda que to do homem é o guardiáo de seu irmáo. Aceitar a injustiga pas sivamente equivale a dar justificativa moral ás agóes do opres sor; é uma maneira de deixar dormir a consciéncia dele. Nesse momento o oprimido deixa de ser o guardiáo de seu irmSo".

Na véspera de morrer assassinado (o que se deu aos 4/IW1968), Luther King fez a seguinte declaracáo: "Temos diante de nos dias diffceis, mas isto me é indife rente agora... Como todos, também eu gostaria de ter uma vida longa... Mas so desejo a vontade de Deus. Ele permitiu-

-me que subisse ao cume da montanha, e de lá eu vi a térra prometida. Pode acontecer que eu nao chegue lá convosco,

mas quero que saibais hoje que o nosso povo o atingirá. Por isto estou feliz nesta tarde e nao receio homem algum. Meus olhos viram a gloria da vinda do Senhor" (transcrito de "Ecclesia" n
O último livro de M.L. King «Para onde vamos?» termina-se com estas palavras: "Hoje ainda temos a escolha entre a coexistencia nao-vi olenta ou a codestruigao violenta. É esta talvez a última chan

ce que se .oferece á humanldade, de poder optar entre o caos ou a comunidade".

— 282 —

NAO-VIOLENCIA ATIVA?

43

c) Entre nos, tornou-se notoria a figura de D. Hélder Cá mara, arcebispo de Olinda-Recife, cujos discursos e conferen cias no estrangeiro seo famosos. Dom Hélder é o iniciador (com 32 bispos do Brasil) do «Movimento de Pressáo Moral e Liber tadora», que vem a ser urna forma de náo-violéncia mediante o despertar de consciéncias dos homens de hoje. Sao palavras do arcebispo de Recife: "Devemos organizar-nos para exercer urna pressáo mo ral libertadora, que esteja em harmonia com os principios dos Direitos do Homem promulgados pelas Nagóes Unidas. Nossa pressáo visará a eliminar toda forma de servidáo e a mobilizar a opiniáo pública para ajudar as massas a tornar-se um

verdadeiro povo, para defender seu direito a urna vida livre

e á seguranga social".

"Acuso os que realmente favorecem a violencia, todos aqueles que, de direita ou de esquerda, ferem a justiga e impedem a paz.

Minha vocagáo pessoai é a de peregrino da paz, segundo o exemplo de Paulo VI; pessoalmente, ¡prefiro mil vezes ser morto a matar.

Esta posigáo pessoai funda-se sobre o Evangelho. Toda urna vida de esforco para compreender e viver o Evangelho leva-me á conviegáo profunda de que o Evangelho, se ele po

de e deve ser chamado revolucionario, é no sentido de que ele exige urna conversáo de cada um de nos. Nos nao temos o direito de nos fechar no egofsmo; temos de nos abrir ao amor de Deus e ao amor dos homens. Basta pensar ñas bem-aventurangas — quintesséncia da mensagem evangélica — para descobrir que a escolha para os cristáos parece clara:

nos, cristáos, estamos do lado da náo-violéncia, que nao é de modo algum escolha de fraqueza e passividade. A náo-vio léncia é acreditar na torga da verdade, da justiga e do amor mais do que na forga das guerras, dos morticinios e do odio" ("Informations Catholiques Internationales" n
— 283 —

44

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

"Pego a meus amigos que já optaram, ou que pensam em

optar, em favor da violencia: nao confundam em absoluto nao-violéncia e passividade, covardia, falta de coragem. Está sen do ultimada atualmente urna pressáo moral organizada, atuante, eficaz, que aproveitará de todos os recursos da publicidade moderna. E veréis os privilegiados, em reagáo contra a nossa agáo pacífica, encarregar-se de demonstrar que a náo-violéncia nao é nem táo cómoda nem táo simplória quanto alguns pensam" ("Informations Catholiques Internationales" n9 315, 1/VII/1968, p. 5). d)

Barbara Deming, no boletim «Revolution, Violent and

Non Violent» (suplemento da revista «Liberation» 1968) p. 6, observa o seguinte: "As palavras sao insuficientes: Gandhi chamava a agáo náo-violenta satyagraha, o que se pode traduzir por 'agarrar se á verdade'. É isto que se requer: agarramo-nos á verdade

tal como a vemos. É preciso que nos agarremos a ela com to do o nosso peso. Nao nos contentemos com dizer: 'Tenho o

direito de sentar-me aqui'; realizemos essa verdade, e sentemo-nos ali. Nao nos limitemos a dizer: 'Se nos somos clientes nessa toja, nao é normal que ai jamáis sejamos tratados como clientes!' Nao digamos apenas: 'Nao creio nessa guerra'; recu semos vestir um uniforme. Nao nos contentemos com dizer: 'O emprego do napalm é coisa atroz'; recusemos pagá-lo so ne gando os impostes. E assim por diante.

Apliquemos todo o nosso peso económico, nosso peso po lítico, social, psicológico, nosso peso físico. Trata-se de muito mais do que urna exortagáo moral. Aqueles que combatem por ela, deveriam reconhecer que nos também nos apoiamos so bre a forga".

Urna vez exposto o pensamento de grandes arautos da náo-violénda, impóe-se a pergunta:

2.

Lícita ou nao?

1. O fenómeno da náo-violéncia é complexo e, por isto, difícil de ser julgado em tese ou de maneira geral. Com efeito, note-se que a náo-violéncia pretende nao re correr as armas nem provocar derramamento de sangue, mas — 284 —

NAO-VIOLENCIA ATIVA?

45

apenas tocar as consciéncias para provocar ou catalisar a reta

evolugáo dos homens e das estruturas da sociedade. Todavía, co

mo foi dito atrás, algumas formas de náo-violéncia aproxümam-

-se assaz da violencia direta, pois provocam males materiais ou físicos e nao apenas convicgóes ou concepgóes novas. Tal é o ca so de greves, sabotagens, boicotes. Nos EE. UU. urna empresa

de ónibus boicotada pelos cidadáos de raga negra foi levada á falencia. — Ao lado destas formas mais marcantes de protesto náo-violento, outras formas se registram que nao atingem propriamente as condicóes físicas ou materiais da sociedade: tenham-se em vista o jejum empreendido por um líder ou um gru po, urna passeata silenciosa...

As formas menos brandas

da

náo-violéncia (sabotagens,

greves, boicotes...) provocam fácilmente odios, divisóes, re presalias entre os homens. Poder-se-ia mesmo dizer: de modo geral, a náo-violéncia, por mais bem intencionada que seja, sus cita fácilmente a reagáo violenta ou armada das pessoas ou instituigóes atingidas. Ela redunda assim em provocagáo á vio

lencia: o poder constituido vé-se obligado a empregar meios vi olentos para assegurar a sua subsistencia. Este contra-golpe dialético é inevitável.

2.

Tais fatores nos levam a proferir um juízo vago sobre

a náo-violéncia considerada de maneira genérica ou abstraía.

Para se poder falar com precisáo, é necessário considerar cada caso de náo-violéncia de per si. A nao violencia pode ser legíti ma e justificada aos olhos da consciéncia crista; tal é provavelmente o caso da campanha desencadeada por Martín Luther King; será legitima e válida, pois nao se entende, do ponto de vista da consciéncia crista no século XX, a discriminacáo racial. A náo-violéncia entáo é um mal necessário,... necessário por que a humanidade aínda caminha sob a infuéncia do pecado.

É preciso, porém, que o cristáo que assuma urna campanha

de protesto náo-violento, se acautele decididamente contra to da especie de paixáo e obsessáo; procure servir únicamente a Deus e ao próximo, inspirando-se sempre no amor e evitando toda ofensa desnecessária.

Outros tipos de pressáo moral podem ser bem intenciona dos, mas, em vez de beneficiar a boa causa, podem prejudicá-la seriamente, provocando, da parte dos poderosos, tais represa lias que se deve entáo questionar a validade da campanha náo-violenta: será oportuno prossegui-la, quando suscita tais resul— 285 —

46

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

tados? Á guisa de exemplo, tenha-se em vista o caso do Papa Pió XII durante a guerra ide 1939-1945: S. Santidade sofría du ramente pela injustiga praticada contra os judeus por parte do regime nacional-socialista da Alemanha. Pío XII deu a saber as autoridades hitleristas o seu protesto contra o anti-semitismo. Podía, porém, ter chamado mais forte e concitado os povos do mundo ao repudio do anti-semitismo; a pressáo moral contra o nazismo era inegavelmente justa. Todavía pergunta-se: teria sido eficaz e proficua? Respondem os peritos negativamente; se Pío XII tivesse desenvolvido campanha mais forte contra o anti-

-semitísmo, teria provocado a violenta represalia do nazismo, nao só contra os israelitas, mas também contra grande núme ro de outras pessoas inocentes; o nacional-socialismo a partir de 1940 dominava quase toda a Europa; podía fazer impune mente quase tudo que a furia de seus mentores tentasse empreender contra os inocentes residentes na Europa. Daí dizer-se que seria inoportuna urna mais intensa pressáo moral de Pío XII sobre o hitlerismo em favor dos judeus.

Ao cristáo tocará, pois, julgar sempre com prudencia e es pirito de fé todo movimento que traga em si os gérmens de odio e divisóes facciosas entre os homens.

Bibliografía:

Mohandas Karamchand Gandhl, "Minha vida e minhas experiencias com com a verdade", 3? edlcao 1964. Edades "O Cruzeiro".

Hélder Cámara, "Revoluto dentro da paz". Rio de Janeiro 1968. B. Hárlng, "A contestado dos corro, Porto, Portugal.

nao-violentos".

Editorial

Perpetuo

So

Revista "Concllllum" n? 35 (ed. francesa), ano de 1968.

"Selecciones de teología" n? 38, vol. 10 (1971), fascículo dedicado Intelramente á teología política e aos temas correlatos. "Informatlons

ano de 1968.

Catholiques

"IDOC Internatlonal",

Internationales",

fascículos

qulnzertais

1/V/1969.

Estéváo Bettencourt O.S.B.

— 286 —

do

resentía de livros Os flitios do divorcio, por Jeanne Delais; traducáo de Thamar Lin-

denberg Sette; prefacio de Maria Junqueira Schmidt. — Editora Agir, Rio de Janeiro 1972, 135 x 210 mm, 220 pp.

Este livro se deve a urna prolessora e orientadora educacional que

se dedlcou, mediante inquéritos e entrevistas variadas, a averiguar a

situacao em que sao colocados os filhos em conseqüéncia do divorcio dos genitores. Com multo senso psicológico, Jeanne Delais ouviu os fi

lhos do divorcio, leu suas cartas e dassiíicou os respectivos depoimentos em seccoes que constituem o conteúdo desse livro, com os seguintes

títulos (entre outros): «Causas do divorcio segundo as criancas». «Cri-

ancas dilaceradas», «Padrastos do domingo», «Perdáo, Jamáis!» A leitura dessas páginas poe o leitor diante do realismo de cenas profun damente dolorosas e angustiantes; um por um, todos os aspectos do problema, váo-se desvelando: degradagáo moral, vulgaridade de sentimentos, forca do odio... Resulta de tal leitura a conclusáo de que

quase sempre os filhos sao as grandes vítimas do divorcio, quer este

seja considerado desejável, quer nao. Os filhos do divorcio até o fim da vida conservam as impressdes traumatizantes colhidas na infancia, quando seus pais se digladiavam ou viviam separados; «eles jamáis esquecerao o que marcou a sua juventudes» (p. 220).

O livro de Jeanne Delais constitui um documentarlo de alto valor, muito apto a despertar a atencao dos adultos para urna face do pro blema do divorcio que geralmente é menos considerada: enquanto se

pensa em salvar, mediante o divorcio, a felicidade dos cdnjuges em

litigio, nao se leva em conta a ruina moral e material que a pretensa solucao geralmente acarreta para os filhos, que seráo os portadores do amanhá da sociedade.

Encontró com o infinito, por Carlos da Silveira. — Gráfica Olím

pica Editora Ltda., Rúa da Regeneracáo 475, Rio de Janeiro 1971,

140 x 210 mm, 302 pp. Carlos da Silveira estuda as origens do mundo e do homem, do ponto de vista cientifico, filosófico e cristao. Apresenta rigorosamente os dados da cosmología e das demais ciencias naturais, recorrendo & nomenclatura técnica; mas nunca se detém numa análise meramente científica dos fatos; examina também a questao do sentido e do valor que o mundo e o homem tém; a mensagem da Biblia é assim utilizada. O autor recorre a estilo poético — o que dá certa graca as suas pági nas. É interessante como num total de 302 páginas Carlos da Silveira consiga explanar tantos temas: expansáo e retragao do universo, Oreopiteco e Homo Sapiens, celibato do clero, conselhos evangélicos, «uni-

sex»... Ao servir-se da Biblia, o autor é por vezes superficial; veja-se, por exemplo, a interpretacáo do firmamento bíblico á p. 110. A abordagem um tanto sumaria de assuntos importantes parece desnecessária num livro desse Upo. Isto nao impede que a obra tenha valor por apresentar urna slntese muito válida entre ciencia e fé; o conjunto é realmente positivo e útil. VocacSo: tnquietaoóes e pesquisas, por Chenu, Congar, Garrone, Léger, Tillard, Jeanne d'Arc, Carrier; traducao de M. Cecilia de M. Duprat. Colecáo «Eu sou aquele que serve» 1 — Edicñes Paulinas, Sao Paulo 1971. 130x200 mm, 188 pp. Este livro, que é urna coletánea de estudos, enfrenta o arduo pro blema das vocaeñes sacerdotais e religiosas. As necessidades da Igreja e do mundo váo-se multiplicando de maneira impressionante, enquanto se nota que vao escasseando os operarios do Senhor. A coletánea de

— 287 —

48

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 150/1972

estudos ácima pretende ser um testemunho de que bispos e padres pensam seriamente no assunto: analisa Batlsmo e vocagáo á vida consagra da, mentalidade e psicología dos jovens, despertar e amadurecimento das vocagóes, o padre e o Religioso no mundo de hoje. Oportuna énfase é dada á fé profunda e á boa íormagao teológica do padre, assim como á íungáo da vida religiosa como sinal dos bens deíinitivos em meio á vida temporal (pp. 104 e 110). — O livro merece ser difundido em ambientes de formacáo, assim como entre sacerdotes, Religiosos e Religiosas, que encontrarao ai substancioso material para reflexao e progresso espiritual. Equilibrio psíquico e vida consagrada, por Romain Matignon; tradugáo de M. Cecilia de M. Duprat Colecáo «Eu sou aquele que serve» 6. — Edigóes Paulinas, Sao Paulo 1972, 130x200 mm, 142 pp. Esta obra saiu conjuntamente com a anterior, completando-a, pois desenvolve os aspectos psicológicos que servem de substrato á vida da grasa e á agáo do Espirito Santo numa pessoa chamada ao servigo do Senhor. Exp8e sabiamente as dimensSes psicológicas da opgáo, do engajamento, da vivencia consagrada, da perseveranga... — o que é muito necessário. Nao se esquegam, poréra, os fatores sobrenaturais da vida consagrada; em última analise, é Deus quem age no cristáo vocacionado; se este é dócil á voz do Espirito, pode superar certos obstá culos que a técnica humana ná0 conseguirla suplantar. Esta observagao em nada diminuí o valor da obra de Romain Matignon, digna de ser recomendada. E. B.

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