Ano Xxxiv - No. 374 - Julho De 1993

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Projeto PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizacáo de Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoríetm)

APRESENTAQÁO DA EDIpÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa esperanga a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade

-Ul

controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortaleca no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003. Pe. EstevSo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos

convenio

com

d.

Esteváo

Bettencourt

e

passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

ANO XXXIV JULHO 1993

(O

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SUMARIO "A Alma viajadora do teu barco"

co UJ

A Astrologia considerada á luz da Ciencia:

o Pessoa: como ¡dentif ¡cala? tu

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o

A vida da máe ou a do f ilho?

ai

Eutanasia e Distanásia

tu

O que é preciso saber sobre a Renovacao Carismática

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O

Onde fica a comunidade ideal?

en o.

Livros em estante

PERGUNTE E RESPONDEREMOS

JULHO 1993

Publicarlo mensal

N9 374

SUMARIO

Diretor-Responsável Estéváo Bettencourt OSB Autor e Redator de toda a materia

publicada neste periódico

"A alma viajera do teu barco..."

289

Um Paradoxo de nossos Días:

Diretor-Administrador: D. Hildebrando P. Martins OSB

A Astrologia considerada á luz da Ciencia Pessoa: como identifícala?

Administracao e distribuicao:

Edicoes "Lumen Christi" Rúa Oom Gerardo, 40 - 5? andar • sala 501 Tel.:(021) 291-7122 Fax (021) 263-5679 Endereco para correspondencia:

290

Ciencia e Ética dialogam: 300

Abortar ou nao?

A vida da mae ou a do filho?

310

Eutanasia e Distanásia

317

Zelo Pastoral e Equilibrio: "O que é preciso saber sobre a Reno-

vacao Carismática" por O. A. A. de Miranda

Ed. "Lumen Christi"

Caixa Postal 2666

20001-970 - Rio de Janeiro - RJ Impfessío e Encadernagáo

318

Onde fica

A Comunidade Ideal? . .'.

329

Livro» em estante

333

•MARQUESSARAIVA"

GRÁFICOS E EDITORES S.A. Telt: 1021) 2730498 ■ 273-9447

NO PRÓXIMO NÚMERO O Primado de Pedro. - Celeuma: Judeus Messiánicos. - "A Escolha de

Deus" (Card. Lustiger). - A TV brasileira. - Teresa de Los Andes. - O itinerario de urna conversao. — Cientologia.

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA 4SSINATURA ANUAL 112 núimroil CrS 500.000,00 • n? avulto ou atrasado Cr* 50.000,00 O pagamento poderá ser á sua escolha: —

1. Enviar EM CARTA cheque nominal ao Mosteiro de Sao Bento. cruzado,

anotando no verso: "VÁLIDO SOMENTE PARA DEPÓSITO na conta do favorecido" e onde consta "Cod. da Ag. e o N? da C/C." anotar: 0229 -

02011469-5.

2. Depósito no BANCO DO BRASIL, ag. 0435-9 Rio C/C 0031-304-1 do Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, enviando a seguir xerox da guia de depósito para nosso controle.

3. VALE POSTAL pagável na ag. Central 52004 - CEP 20001-970 - RIO. Sendo novo Assinante, é favor enviar carta com nome e endereco legi'veis. Sendo renovacao, anotar no VP nome e endereco em que está recebendo a Revista.

'A ALMA VIAJORA DO TEU BARCO... Há breves dizeres que podem tongamente ¡mpressionar os leitores, deixando-lhes margem para proficua reflexSo. Entre outros, vao aquí transcritos alguns versos de D. Hélder Cámara:

"Quando teu navio, ancorado muito tempo no porto, te deixar a impressáo engañosa de ser urna casa, Quando teu navio comecar a criar rafees na estagnaclo do cais, fazete ao largo.

é preciso salvar a qualquer preco a alma viajora de teu barco e tua al ma de PEREGRINO". Estas frases sao ricas em sugestSes: Antes do mais, vém a ser urna alerta contra a natural tendencia á acomodacao que ameaca todo ser humano..., e ameca aos poucos, insensivelmente. De um navio pode-se fazer urna casa, e ... urna casa com sólidos

fundamentos, "lampando raizes" no seu solo. É, sem dúvida, mais atraente a nocao de estabilidade que propicia repouso, do que a de sdfrega deman da de algo que nos falta e nos deixa ansiosos. Todavía, para quem é pere grino, a estabilidade é estagnacao e foote de morbidez e putrefacao.

O cristao, já por ser humano, isto é, dotado de capacidade de Infinito, e, mais, por ser elevado á comunhao com o próprio Deus pela graca santifi

cante (cf. 2Pd 1,4), é essencialmente faminto e sedento de algo melhor do que os bens que esta vida proporciona; estes nao raro sao bolhas de sabio, coloridas por fora, mas vazias por dentro. Seduzem, e enganam..., enga-

nam no tocante ao essencial ou ao sentido da vida. Quem se deixa iludir por eles, é comparável a um viandante que, olhando para a direita e a esquerda, é atraido pelas flores e os pássaros e acaba esquecendo a meta para a qual ele se propós tender.

Já o Senhor Jesús notava que "os filhos das trevas sao mais prudentes (sabios) do que os filhos de luz" (cf. Le 16, 8b). Parecemter mais afinco em prol do mal do que os bons em prol do bem. Esta verificacao em nossos dias é tanto mais pungente quanto mais se verifica a enorme necessidade de sacudir qualquer tipo de covardia indolente em beneficio de urna presenca crista mais atuante e coerente. O apelo vem do Senhor Jesús, vem da Igreja de Cristo confiada a Pedro, vem do próprio mundo aparentemen te ateu, mas incrivelmente sensível ao testemunho sincero e abnegado dos filhos de Deus. E.B. 289

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" ANO XXXIV - N9 374 - Julho de 1993 Um Paradoxo de nossos días:

AASTROLOGIA

CONSIDERADA A LUZ DA CIENCIA

Em síntese: A Astrologia está sempre em voga, apesar de ¡é ter sido

desmentida freqüentemente pela experiencia de seus própríos usuarios, fsto se explica porque no íntimo do homem moderno mesmo fíca muitas vezes, de modo inconsciente, um resquicio de mentafidade mágica, animista, primitiva; esta se reveste, através dos tempos, de roupagem aparentemente

científica e seria, mas nao deixade ser sempre urna heranca do primitivis

mo de sáculos muito recuados. É o que demonstra, ñas páginas subseqüentes, o Prof. Dr. Fernando de Mello Gomide, até recente data docente do

ITA de Sao José dos Campos (SP) e atualmente pesquisador do Instituto de Ciencias Exatas e Naturais da Universidade Católica de Petrópolis (RJ).

O artigo traduz bem a índole científica e criteriosa do seu autor, que usa de finguagem veemente na tentativa de evidenciar como é paradoxal recorrer á Astrologia em nossa era de ciencias e tecnología avancadas. 0 leitor saberá aproveitar o muito que de sabio e profundo é dito neste arti go, sem se impressionar com certas expressoes ditadas pelo calor da explanacao. Ao Prof. Dr. Fernando de Mello Gomide seja consignada a vivagrati-

dao da Redacao de PR por sua valiosa colaboracao. *

*

*

1. ASTROLOGIA: FUNDAMENTAQÁO NO MUNDO ANTIGO PRÉ-CIENTI'FICO 1.1. Que é a Astrologia?

Parece que a astrologia entra na historia nos tempos das dinastías acadianas da Sumaria,1 a civilizapao mesopotámica que precedeu á assírio-babildnica. Isso pode ser situado por volta do séc. XX ao XIX a.C. Mas é no 290

ASTROLOGIA Á LUZ DA CIENCIA declínio da civilizacao babilónica, i. é, no séc. V a.C. que a astrologia adquire forca e entra na Grecia com o sacerdote de Bel, Berosso, no séc. III a.C. Os filósofos gregos Platao e Aristóteles (séc. V-IV a.C.) teorizam sobre a influencia dos astros no mundo sublunar, e, como suas idéias exerceram

urna poderosa pressao de prestigio ao longo dos sáculos, nao é de admirar que filósofos do mais alto gabarito, na civilizacao islámica e na cristandade medieval, tenham aderido, em grande parte, ás elucubracoes astrológicas.

Mas que é a astrologia? é, como vemos, urna pseudo-ciéncia, ou, para usar termo do físico teórico americano John Archibald Wheeler, urna cien cia patológica.3 A dita pseudociéncia professa urna doutrina ambiciosa so bre urna generalizada e totalitaria influencia do mundo planetario e estelar sobre nosso planeta, de modo que todos os fenómenos físicos, biológicos, psicológicos e sociais se encontram na dependencia dos movimentos dos planetas, do Sol, da Lúa, da abobada estelar, assim como da posicao das constelares do zodi'aco, dos planetas e também de conjuncoes planeta rias. Nao só defendem os astrólogos essa universal causalidade astronómica sobre a Térra, mas também pretendem possuir urna chave para a previ sao de acontecímentos futuros.

1.2. Quatro axiomas básicos Analisando as especulacoes e as sistematizacoes filosóficas da astrologia no pensamento platónico e aristotélico, podemos descobrir quatro axiomas fundamentáis dessa pseudociéncia: 1) A materia celeste é incorruptível e imutável, essencialmente dife rente da materia terrestre (sublunar), que é corruptível e mutável. 2) Principio de hierarquia: tudo no mundo sublunar depende da ma teria celeste. Todos os processos e movimentos na Térra sao causados pe los corpos celestes.

3) Principio da causalidade motora de Aristóteles: todo corpo só se move localmente se atuado por outro corpo (o motor) e o movimento só

existe enquanto dura a acao do motor.3

4) Todo o universo astronómico obedece a urna rigorosa periodicidade. Este é o axioma do tempo cíclico do paganismo, tao bem formulado

por Platao4.

A d¡st¡ncá*o entre as duas materias (a celeste e a terrestre) tem sua orígem ñas religiSes pagas, marcadas por um essencial imanentismo do divino

na ordem material. Pois, ou os corpos celestes eram encarados como deuses, ou o mundo astronómico era considerado como habitáculo de deus e semi-deuses. Conseqüentemente a materia celeste deveria ter urna consis291

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

téncia especial, i.é, nao poderla ser mutável ou corruptível, á semelhanca da materia sublunar. Aristóteles chega a dizer que a materia celeste é divi

na e sua substancia consiste num quinto elemento, a quinta esséncia, o éter i mutável.5 O mundo terrestre é palco da corrupcao e da morte, ao passo que o mundo dos deuses é perene, incorruptível, sujeito a um tempo

cíclico sem comeco e sem fim6. Vé-se muito bem estabelecida essa distincao no séc. VI a.C. na escola pitagórica; sua justificacao está em que o universo astronómico é considerado como o Olimpo do Panteón grego. Em larga medida, podemos dizer que as religi5es pagas sao siderais. Dessa superioridade divina do mundo astronómico decorre a inexorável depen

dencia dos acontecimentos terrestres em relacSo aos acontecimentos astrais: o mundo dos deuses, mundo dos imortais, domina os acontecimen tos da humanidade mortal. Toda a astrologia depende do primeiro axioma. Negar essa distinpSo é derrubar todo o edificio astrológico. No séc. XVII,

Sir Isaac Newton, com sua teoria da gravitacao, fez implodir este secular erro ontológico. A Fi'sica e a Astronomía newton ¡anas fizeram da materia

celeste e da materia terrestre urna coisa só. A pretensao, dos astrólogos, de

que a astrologia é urna ciencia, foi derrubada de um só golpe com o nascimento da Física e da Astronomía newton ¡anas no secuto XVII. A ciencia moderna é radicalmente infensa as especulacoes astrológicas. A incompati-

bilidade entre a Astronomía e a Física, de um lado, e a astrologia, de outro, é simplesmente total. Quem hoje acredita em horóscopos e elucubra

res astrológicas, é um ignorante vivendo antes do séc. XVII, ou um charlatao que vive ás custas desse tipo de individuo ignorante, crédulo e re trógrado.

1.3. Uso da Matemática?

Quais sao as leis da astrologia? Os astrólogos reivindicam o status de ciencia para esse corpo de idéias. Mas que é ciencia? Nos sabemos que a ciencia é um corpo de idéias dedutivo com base em principios necessários; sua estrutura dedutiva permite a inferencia lógica de leis verificáveis expe rimentalmente. Os principios básicos de urna teoria científica, antes da

confirmacao experimental, sao as hipóteses criadas pela (porassim dizer),

adivinhacao do pesquisador. É na adivinhacSo de hipóteses, a qual nao

obedece a algum método pré-estabelecido, que reside a operacao mais im portante da pesquisa científica. Nessa operacao é que se revela a inteligen cia do dentista. Urna disciplina científica deve ter axiomas ou principios básicos e leis experimentalmente verificaveis, deduzidas a partir daqueles principios. Isto acontece com a astrologia? Vimos os quatro axiomas básicos da astrologia. Suponhamos que sejam válidos e esquepamos a ambicao, dos astrólogos, de poder prever acon tecimentos psicológicos e sociais. Como tem.os a ver com causalidade de 292

ASTROLOGIA A LUZ DA CIENCIA realidades materiais, a matematizacao se faz necessária para haver previsi-

bilidade, via deducao causal, a partir dos axiomas. Como o nexo causal entre astros e Térra tem um caráter totalitario, pois toda a Física e Quí mica da Térra estaría determinada pelo universo astronómico, a matema tizacao teria de ser muito mais vasta e complexa do que a de qualquer teo ría físico-matemática moderna.

Quais sao as teorías físico-matemáticas da astrologia? Os astrólogos nada nos ensinam sobre isso; dao sempre testemunho de nada saberem de matemática e nao pertencerem a algum Departamento de Matemática ou de Física de Universidade. Eles constituem urna classe alheia á común idade científica. Portanto inexiste ciencia astrológica.

2. SAGRADA ESCRITURA E TRADIQÁO 2.1. A Escritura Sagrada O prime i ro axioma da astrologia, o da dife renga essencial entre a ma teria celeste imutável e a materia terrestre perecfvel, é ignorado na Biblia e negado num dos salmos. O salmo 101, vs. 26-28 diz:

"Outrora fundastes a Térra, e os céus sao obra de vossas maos. Nao obstante, vao deperecendo e vos permanecéis; desgastam-se todos eles co mo urna veste, como roupa os mudáis e mudados ficam; mas vos sois sem pre o mesmo e vossos anos nao terao fim".

Como vemos, a Sagrada Escritura encontra eco ñas disciplinas moder nas da cosmología, astrofísica e astronomía, que falam eloqüentemente da

mutabilidade no dominio das galaxias, das estrelas, dos planetas, das nebu losas, enfim, de todo o universo. A astrologia, com seu postulado da diferenca entre materia celeste imutável e materia terrestre, está inteiramente fora de contexto da Sagrada Escritura. Nesta, ambas as materias sao corruptíveis.

Há urna passagem no Génesis, que, nao negando explícitamente qual quer influencia dos corpos celestes na vida humana, contudo relaciona o Sol, a Lúa, os corpos celestes com a ordem humana, apenas na linha de serem sinais para a cronología e para a iluminacao:

"Ha/a luzeiros na abobada do céu para distinguir o día da noite, e sirvam eles para sinais e marquem as estacoes, os días e os anos; e brílhem na abobada do céu para projetar luz sobre a Térra". "Portanto Deus fez os

grandes luzeiros: o luzeiro maiorpara dominar odiaeo luzeiro menor pa

ra a noite e as estrelas; e colocou-os na abobada dos céus para que luzis293

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

se/77 sobre a Térra, e para que presidissem ao día e á noite, e separassem a luz das trevas" (Gn 1, 14-18). Contra a pretensao dos astrólogos de conhecerem as influencias pla netarias e estelares sobre a Térra, diz o livro de Jó:

"Conheces as feis dos céus e darás razao da sua influencia sobre a Térra?" (38, 33). Com respeito a fenómenos astronómicos como passagens de cometas, conjuncoes planetarias, etc., diz o profeta Jeremías:

"Nao imitéis o procedimento dos pagaos; nem receeis os sinais celes tes como os temem os pagaos. Pois as leis desses povos sao apenas coisas vas" (10,2). Parece claro que presságios astrológicos sao rejeitados pela Biblia, e as leis que envolvem tais sondagens, sao obra da gentilidade, obra de vacuidade. E que nos diz o profeta Isaías? Eis suas palavras irónicas para o reí da Babilonia:

"Esbanjaste teus esforcos entre tantos conselheiros. Que eles entao se levantem e te salvem, aqueles que preparam o mapa do céu e observam os astros, que comunicam cada mes como ¡rao as coisas" (47, 13). 2.2. A Patrística* Os Padres da Igreja, do séc. II ao séc. VIII, na sua confutacao do pensamento gentílico, sao unánimes em rejeitar a astrologia; esta é visualizada segundo o espirito da Sagrada Escritura:

1) Taciano (séc. II) — Relaciona a astrologia com a religiao sideral. Considerando-se que os ídolos dos gentios, conforme a Sagrada Escritura, sao demonios, Taciano afirma que os demonios estao ligados aos corpos celestes e que exercem urna conduta irracional sobre a Térra. Os pecadores estao sujeitos á acao desses demonios; daí seus Horóscopos7..

2) Tertuliano (t após 220) — Diz que a astrologia tende á idolatría, sendo ¡nvencao dos demonios*. 3) S. Gregorio Nazianzeno (t 390) — Diz que a astrologia é perigosa

para muitos e condena os horóscopos9.

* Patrística é a doutrina dos Padres da Igreja, autores que nos oito primeiros sécu/os contribuiram brilhantemente para a correta formulacSo de grandes verdades da fé. Gozam de especial autoridade na Teología. (Nota do Editor). 294

ASTROLOGIA A LUZ DA CIENCIA 4) S. Cirilo de Jerusalém (+386): "Nos nao vivemos segundo os ho róscopos e a conjuncao dos astros, como os astrólogos delirantemente acreditam". "Nao devemos dar crédito aos astrólogos, pois deles disse a

Sagrada Escritura... Is 47.1310.

I

5) S. Gregorio de Nissa (t394) - Oefende o livre arbitrio contra o fa talismo astrológico. Reduz ao absurdo a idéia de que a posicao das estrelas no nascimento determina o destino dos homens11.

6) S. Joao Crisóstomo (t 407) - As profecías dos astrólogos sao pro-

duto do demonio. Argumenta contra aqueles que acham as previsoes astro lógicas bem sucedidas nos seguintes termos: quem abandona a fé e se en trega aos astrólogos, leva os demonios a dispor dos fatos a fim de que acontecam para o agrado dessas pessoas. Diz aínda que a astrologia é urna

doutrina perversa12.

7) Sto. Agostinho (+430) - Diz que se libertou dos grilhdes da astrologia após sua conversao. Propoe argumentos contra os horóscopos tirados das experiencias de amigos e cita o caso dos gémeos Esaú e Jaco (Gn 25, 19-28), que nasceram sob mesmas condicoes planetarias e tiveram historias

radicalmente diferentes13.

8) S. Joao Damasceno (t 749) - Ao abordar a passagem do Génesis que trata dos astros como sinais, nega que esses sinais possam ser conside rados como causas dos acontecimentos sublunares. Nega, portanto, o principio de causalidade astrológico.

3. O FIM E A PARADOXAL PERSISTENCIA DA ASTROLOGIA 3.1.0 Fim da Astrologia

No inicio deste trabalho, indaguei sobre as ieisda astrologia. Contes-

tei a pretensao daqueles que querem ver na astrologia urna ciencia, por

que Ihe faltam as condicoes que determinam a especificidade de uma cien cia. Essas condicoes sao sobretudo as leis deduzidas dos axiomas funda mentáis e que podem ser verificadas experimental mente. Mas essas leis devem abranger os nexos causáis, e, como temos a ver com a ordem mate

rial, esses nexos causáis devem ser formalizados matemáticamente. Ora isto os astrólogos nao o exibem. E por qué? Porque nao o podem. E nao o podem, pois nao sabem o porqué da natureza desses nexos causáis imagi nados entre os astros e os acontecimentos sublunares, ignorando assim sua formalizacao matemática. Vejamos.

Qual a relacao matemática entre uma conjuncao de planetas, vg., Jú

piter-Saturno e o nascimento de Joaozinho no dia 5 de outubro? Os anti295

8

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

gos pagaos pensavam que era no nascimento que comecava a evolucá*o de

um ente humano. Mas hoje sabemos que a m'orfogénese do individuo é de

terminada no momento da concepcao, quando se constitui seu código ge nético inserido em cadeias moleculares, o célebre DNA. Nessas cadeias mo leculares estío contidas todas as ¡nformacoes biológicas que levaráo o indi viduo a ser, digamos, louro com tendencias a introspectivo ou nao, etc. No momento da sua concepcao, Johan Christian Bach recebeu os fato res here ditarios de seu pai Johan Sebastian, que o levariam a ser um grande com positor. Foi na concepcao que Johan Christian recebeu o poder para ser músico e nao no nascimento. Por conseguinte, se existe acao astral, ela deve ser efetiva no instante da concepcao, e nao no do nascimento. Os as trólogos continuam a operar como se estivessem na Babilonia. Todavia, para se atualizarem, consideram a acao dos astros como sendo do tipo gravitacional ou magnético. Bem; como disse antes, se existe apio astral, ela deve-se verificar no instante da concepcao. Ora, os processos moleculares que constituem o código genético, obedecem aos principios da teoria quántica. Se a acao astral é do tipo gravitacional, devemos dizer que os as trólogos sao totalmente ineptos para tirar conclusSes ai. Pois se sabe na

comunidade científica que ainda nao existe uma teoria física que associe a teoria quántica com a teoria da gravitacao. Suponhamos agora que a apio seja magnética. O fator "distancia" deve ser considerado, pois o campo magnético produzido, digamos por Júpiter, devido á distancia, é muito in ferior ao campo magnético da Térra. Isto quer dizer: se é o campo magné tico que influencia a concepcao de Joaozinho, entao esse campo tem de ser o do nosso planeta e nao o de Júpiter, que aqui tem um valor muito in ferior ao do campo magnético terrestre. Falei no fator "distancia". Isto se aplica também ao campo gravita cional. A influencia das estrelas que estío a anos-luz distantes do sistema solar, é insignificante, se comparada á influencia do campo gravitacional produzida pela massa do pai de Joaozinho, próxima do óvulo fecundado, mesmo alguns metros distante. Com respeito aos planetas com distancia de minutos-luz ou horas-luz da Térra, os cálculos mostram que os campos gravitacionais planetarios mais significantes sao os de Júpiter (por causa da sua massa 320 vezes a massa da Térra) e Venus (por ser o planeta mais próxi mo). Fazendo-se os cálculos numéricos para a maior aproximacao desses planetas em relacao ao nosso, se chega á conclusao de que seus campos gravitacionais aqui na Térra seriam da ordem de grandeza do campo gravi tacional produzido pelo pai de Joaozinho a centímetros do zigoto do futu ro herdeiro. Os campos gravitacionais dos outros planetas seriam bem mais fracos que o do pai de Joaozinho. E o das estrelas a anos-luz distantes se ria totalmente insignificante. Conseqüentemente os astrólogos deveriam fazer horóscopos su bstitu indo os planetas e estrelas pelos corpos do pai, da cama, da mesinha de cabeceira, da massa de concreto da laje do quarto, 296

ASTROLOGIA Á LUZ DA CIENCIA etc. Os campos gravitacionais desses objetos, de si com valor numérico muito baixos, sao muitíssimo superiores aos campos gravitacionais locáis produzidos pelos muito distantes planetas e incrivelmente distantes estrelas. Como vemos, os astrólogos, ao insistirem na influenciados astros, estío vivendo antes do sáculo XVII, quando nao havia o mínimo conhecimento das distancias planetarias estelares. Os astrólogos, se quisessem ser um pouco mais científicos, teriam de conhecer o instante da concepcao de Beldroegas, o quarto em que seu óvulo foi fecundado, a distribuicao de massas perto do óvulo, tais como a massa das pessoas, dos objetos caseicos, das paredes, da I aje, das vigas, etc. Os horóscopos deixariam de ser celestes para ser terrestres. Como terrestres, e muito terrestres, seriam as explicacoes para o futuro enriquecimento do Dr. Beldroegas em sua "carreira" política. Assim, pois, nao pode haver leis da astrologia, ou seja: nao existe ciencia astrológica. Esta nao passa de fabulosa impostura de homens alheios á comunidade científica, obra de mestres em fraude e mistificapao.

3.2. Paradoxal Persistencia Apesar de todas as demonstracoes científicas em contrario, verifica se que a sociedade contemporánea continua a procurar assiduamente os arautos da astrologia. Por qué? Quero aqui emitir urna reflexao:

"0 número de náscios é infinito", diz o Eclesiastes (1,15 —Vg). Isto significa que as pessoas de bom senso serao sempre minoritarias. Portante nao nos surpreendemos se em nossos dias, apesar dos progressos da ciencia e da tecnología, o povoem sua maioria é propenso a acreditar em charlataes. 0 físico americano Wheeler se lamentava de existir nos Estados Uni dos apenas dois mil astrónomos contra vinte mil astrólogos. Na última e deprimente campanha eleitoral para a presidencia desta República, vimos como varios dos muitos candidatos andaram consultan do gurús e videntes. Há pouco tempo, a imprensa noticiou declaracoes de pessoa da área govemamental, no sentido de ter feito oferendas a ídolo de seita africana. Nao só em "república de opereta" a crendice entre políticos

aparece. Há alguns anos, a imprensa noticiou que na Casa Branca sen/icos de astrólogos eram solicitados. Na "Nomenklatura" soviética os poderosos do Kremlin também apelavam para gurús e sensitivos da adivinhacao.*

* A respeito do contraste de nossa época, em que a astrologia e sofucoes mágicas pululan) num contexto de cientificismo dito "ateu", escreve o Pe. Paul-Eugéne Charbonneau: "0 homem, pretendiendo ser totalmente autónomo e, poressa razao,

negando qualquer vínculo com o Absoluto, acaba por se precipitar em cu/297

10

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

4. CONCLUSÁO Nesta análise histórico-crítica procurei evidenciar a origem dos postu

lados fundamentáis da astrologia situados ñas religioes gentílicas e no pen-

samento filosófico de homens como Platao e Aristóteles. O imanentismo

do divino no mundo astronómico e as falsas Física e Astronomía de Pla

tao, máxime de Aristóteles, infestaram o pensamento das ciencias naturais ao longo dos sáculos. Mostrei que, com base nesses postulados, nao pode

existir urna ciencia da astrologia, o que significa a impossibilidade de verdadeiras previsoes astrológicas. 0 fato histórico da contestado da Física aristotélica e as críticas lúcidas de Nicolau de Oresme, no sáculo XIV, en-

fraqueceram no meio universitario o prestigio dos astrólogos, sendo que a Revolucao Científica do séc. XVII desferiu um golpe mortal na astrologia:

deu-se a queda definitiva do primeiro postulado, o da distincao entre ma teria terrestre e materia celeste, gracas á teoría da gravitacao e á Física de Newton. Mostrei como a Astronomía, a Física e a Biología tornam impossíveis e absurdos os horóscopos.

A astrologia subsiste até hoje por razoes moráis e psicológicas. Os ar gumentos científicos e de bom senso contra a astrologia sao abundantes, e, nao obstante, a astrología tem exercido um fascínio ¡nacredítável sobre poderosos e multidoes. Quero aqui apresentar fatos recentes contestadores das reivindicacoes dos astrólogos. continuacao da pág. 9

tos substitutivos que o mais desenfreado dos espirites supersticiosos enco raja, provoca, promove e defende. Quando Garaudy afirma que nao é o ateísmo que caracteriza nossa época, mas antes a supersticao, tem toda a razio. A prova disso está no pulular infra-racional dos ocultismos, das pa rapsicologías, das astro/ogias, dos espiritismos, dos cultos mistagógicos, etc. Tantas panacéias que pretendem salvar o homem do absurdo. Este é tao virulento, ameaca tao profundamente o ser humano que contra ele todos os recursos parecem ser bons" (O Homem á Procura de Deus, Ed. Loyola 1984, pp. 248s).

A nota 109 da mesma página observa: "Um duplo fenómeno mana a nossa civilizacao, sobretudo nestes últimos anos: o renascimento do misti

cismo religioso e o renascimento das ciencias ocultas. Existe indubitavef-

mente o que Edgar Morin, após muitos outros, assinala como urna persis tencia e ressurgéncia, porexemplo, da astrologia".

Estas observacoes poem em foco o problema: o homem que perdeu a fé em Deus, cria inconscientemente seus deuses, nos quais deposita a sua fé. (Nota do Editor).

298

ASTROLOGIA Á LUZ DA CIENCIA

U.

Andrew Fraknoi, da "Astronomical Society of the Pacific",14 nos re

lata investigares estatfsticas realizadas nestes últimos anos, que negam a existencia de nexos causáis entre os astros e os fatos humanos. Vejamos algumas:

Os astrólogos afirmam, com base nos signos astrológicos, que podem

prever a compatibilidade ou a incompatibilidade entre pessoas. O psicólo

go Bernard Silverman, da Universidade do Estado de Michigan, analisou as datas de nascimento de 2.978 casáis em vias de casamento e outros 478 a caminho do divorcio. Ele comparou as predicoes astrológicas com os dados reais e nao achou conf¡rmacSo. O físico John McGervey, da "Case Western Reserve University", analisou aniversarios e biografías de 6.000 políticos e 17.000 dentistas, a fim de ver se estas profissoes se agrupavam em torno de certos signos, conforme as predicSes dos astrólogos. McGervey verificou que ambos os

grupos se distribuiam em torno dos signos, de modo completamente aleatorio.

O estatístico francés Michel Gauquelin enviou o horóscopo de um dos piores assassinos da Franca a 150 pessoas, perguntando como elas se encaixavam no dito horóscopo, nao revelando obviamente a origem do

mesmo. Resultado: 94% das pessoas se reconheciam ai descritas. Os astrónomos Roger Culver e* Philip lanna analisaram 3.000 predic5es astrológicas publicadas por conhecidos astrólogos e organizacoes astrológicas durante cinco anos. Essas predicoes se referiam a persona-

gens famosos, como artistas de cinema e políticos. Os astrónomos verificaram que apenas 10% das previsoes podiam ser aceitas. Tal resultado po día ser obtido por mero palpite de bom senso. Se 90% das predicóes astro lógicas nao se realizam, isto é sinal evidente de que tais predicóes nao obedecem a alguma lei de causa-efeito. Os fatos estatístícos analísados nestes últimos anos confirmam a analise teórica que aprésente i: nao existem leis da astrologia; nao existe urna teoría lógico-causal que possa fazer da astrologia urna ciencia e, por isso, suas previsoes sao pura mistificacao.

REFERENCIAS 1. Rene Labat. La Másopotamie, ¡n Histoire Genérale des Sciences. Presses Universitaires de France. Vol. I. 1956. 2. J.A. Wheeler. O laboratorio contra a fraude e a mistificacao. O Estado de Sao Paulo, 29-7-1979. 299

12

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

3. Aristóteles. Física. LVII. 1,241b;2,243a. 4. Platao. As Leis, Vil, 822; Timeu,37. 5. Aristóteles. Tratado do Céu, /, 9; I, 10; II, 1; II, 7. 6. Aristóteles. Metafísica, Livro Teta. 7. Taciano. Discurso contra os Gregos. 8. Tertuliano. Da Idolatría, IX. 9. S. Gregorio Nazianzeno. Em Louvordo Irmao Cesário.

10. S. Cirilo de Jerusalém. Sobre a Penitencia. 71. Johannes Quasten. tbid.

12. S. Joao Crisóstomo. Homilía 75 sobre o Evangelho de Sao Mateus. 13. Sto. Agostinho. Confissoes, L. Vil 14. Andrew Franknoi. Your Astrology Defense Kit. Sky and Telescope, 78, 146(1989).

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QUANDO TUDO FALTA E É GRANDE DEMAIS A AGONÍA, ENTRA NA IGREJA, QUIETINHA, E CONTEMPLA A MAE DE DEUS, MARÍA. SEJA O QUE FOR QUE SOFRAMOS, SEJAM QUAIS

SOFREM NOSSOS AIS, SEMPRE QUE OS FILHOS SOFREM, A MAE AÍNDA SOFREMAIS.

OLHA AQUELA QUE ESTA ALI, SEM QUEIXA E SEM ESPERAN-

CA. ESPERANDO. COMO POBRE QUE ENCONTRA OUTRO MAIS POBRE, E FICAM CALADOS A SE OLHAR MUTUAMENTE... (Paúl Claudel)

300

Ciencia e Ética dialogam:

PESSOA: COMO IDENTIFICA-LA?

Em síntese: Há quem identifique a pessoa humana com as atividades do raciocinio, da consciéncia de si e da ordem ética. Em conseqüéncia nem todo ser humano seria pessoa, pois há quem, dentro da especie huma na, se mostré inconsciente e incapaz de raciocinar (fetos, criancinhas, mentecaptos, moribundos); de outro lado, dizem, há animáis nao humanos (chimpanzés, gorilas...) que emitem linguagem e parecem raciocinar. Tais animáis hao de ser tidos como pessoas. Opróprio computador parece me recer o status de pessoa por sua "inteligencia automática".

Tais teorías sao falsas, porque reduzem as pessoas aos fenómenos ou ás suas atividades sensiveis. Deve-se levar em conta, porém, que tais ativi

dades hao de ter um sujeito ou um suporte permanente que seja o princi

pio das mesmas. Sem esse suporte nao seriam expressoes de um su/eito úni co e uno.

Portanto o que faz a pessoa é o principio da racionalidade, da auto-

consciéncia, do senso moral ou, com outras palavras, a alma humana (espi ritual); esta, unida ao corpo, produz um su/eito psicossomático que se chama homem. O ser humano norma/mente manifestase como individuo racional e autoconsciente, mas, mesmo quando nao se exprime assim, é pessoa. Há, pois, sinonimia entre ser humano epessoa. Quanto aos animáis antropomórficos, podem usar a linguagem dos surdo-mudos porque, guia dos pelos instintos, sSo suscetfveis de certa aprendizagem mecánica; esses . animáis, porém, nao raciocinam, nSo sao capazes de corrigir falhas de suas operacoes instintivas nem de se rever e atualizar, progredindo no seu modo de viver. *

*

*

A nocao de pessoa e suas características está hoje muito em foco, pois geralmente se reconhece que toda pessoa goza de dignidade e direitos, merecendo ser respeitada. Este principio, porém, suscita a questao: mas,

afinal, quem é pessoa? Como identificar a pessoa? Classicamente se diz que é pessoa todo ser humano, e somente o ser humano. Atualmente, po301

14

"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

rém, há autores que afirmam que nem todos os seres humanos sao pessoas e, vice-versa, varios seres nao-humanos safo pessoas.

É a esta problemática que se dedica rao as páginas seguintes, conside

rando: 1) as novas teorías; 2) a análise crítica das mesmas; 3) embriao hu mano, pessoa e personalidade.

1. NOVAS TEORÍAS Principalmente dois autores propoem as novas concepcoes, que passamos a examinar:

1.1. O pensamento de H.T. Engelhardt

Para este autor, nao todos os seres humanos sao pessoas. Os fetos, as enancas, os gravemente retardados mentáis e os individuos humanos em coma e desengañados sao exemplos de seres humanos que nao sao pessoas.

Tais individuos podem ser tidos como membros da especie humana, mas nao participam da vida ética (The Foundations of Bioethics. Oxford University Press, New York 1986; em traducSo italiana Manuale de Bioética, II Saggiatore, Milano 1991, p. 126s). Doutro lado, certos sujeitos nao-hu manos como os robos, que no futuro poderao ter inteligencia artificial e consciéncia, podem ser tidos como pessoas, como sao pessoas algumas es pecies de animáis (macacos antropomorfos e outros), sujeitos de direitos civis. Na base destas afirmacoes, está um principio filosófico: deve ser con

siderado pessoa quem mostra empíricamente possuir as características de urna pessoa. Para H.T. Engelhardt tais características sao tres: a autoconsciencia, a racionalidade o senso moral (ao menos, em grau mínimo). Tais características devem exercer-se ou devem ser averiguadas. Por conseguinte, se um ser humano nao dá demonstracSes de racionalidade e autocons-ciencia, nao é pessoa. Donde se segué que nao sao pessoas os embrides, os fetos, as enancas, os retardados mentáis, os andaos decrépitos e os doentes em coma irreversível. Disto se segué que tais individuos nao tém os direitos á inviolabiJidade e ao respe ito que tocam a urna pessoa Com certa benevolencia considerem-se as criancas sadias, que, embora inconscientes, estao em via de se tomar conscientes e pessoas, ao passo que urna crianca deficiente que nao se poderá comportar de modo racional e consciente, nao tem direito á vida. 302

.

PESSOA: COMO IDENTIFICÁ-LA?

15

O criterio para tratar os seres humanos nao-pessoas é a utilidade que podem ter para a sociedade. É, pois, a sociedade que decide se tais indivi

duos devem ou nao viver. No caso dos fetos e das enancas, sao os genitores

que avaliam se eles tém ou nao tém valor; nao raro sao estimados como fiIhos e, por isto, os pais Ihes concedem o direiio de viver; podem, porém, os genitores julgar que a existencia de um filho mongolóide é muito mais trabalhosa do que compensadora; por isto é-lhes facultado tirar a vida desse filho.

Paralelamente a sociedade é quem avalia se há vantagem ou nao em deixar viver os seres humanos deficientes, tendo em vista especialmente os encargos sociais e económicos que a subsistencia desses individuos impor ta; se é posto em xeque o bem-estar da sociedade, nao há por que entreter a vida desses seres. Cf. H.T. Engelhardt, Manuale di Bioética pp. 138-140 A tal modo de pensar pode-se opor a objecao: privilegiam-se alguns individuos - as pessoas - com detrimento dos outros. - Engelhardt res ponde que nao há como evitar esta conclusSo, pois as pessoas sao os úni cos seres capazes de refletir sobre o mundo e de dizer que coisas tém valor e quais as que nao o tém, ao passo que as nao-pessoas nao tém capacidade

de definir o que seja o bem e o que melhor Ihes convém (ob. cit., pp. 128-130).

Praticamente, segundo Engelhardt, tornam-se lícitas operacoes ge ralmente tidas como ¡moráis: o uso de embrides para experimentacao médi ca, o aborto, a eliminacao dos bebés deficientes, a fecundacao artificial em todas as suas modalidades, a eutanasia ativa e passiva, o aproveitamento de adultos mentalmente doentes para experimentacao clínica sem o consentimento dos mesmos.

1.2. As idéias de P. Singer No seu volume "Etica Pratica" (Ed. Liguori, Ñapóles 1989), P. Singer define a pessoa como o ser que possui em alto grau os síntomas "indicati vos de humanidade": consciéncia de si mesmo, autocontrole, senso do fu turo, senso do passado, capacidade de relacionar-se, atencao aos outros, común ¡cacao, curiosidade... Estes indicios podem reduzirse a dois: racio nal ¡dade e consciéncia de si mesmo. Na base destes criterios, pode ser tido como pessoa um individuo que nao pertenca a especie humana homo sa piens, como também alguém dessa mesma especie (se nao manifesta racionalidade e autoconsciéncia) nao é pessoa. Exemplificando: sao pessoas o chimpanzé, o gorila, a baleia, o delfim,

o porco, o cao, o gato, porque tém linguagem e sao capazes de "pensar"; 303

16

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

ao contrario, os homens mentalmente retardados nao sao pessoas. Por con seguí nte, nao se deve crerque a vida dos membros da nossa especie humana tem mais valor do que a vida dos de outras especies. É mais grave matar um chimpanzé sadio do que um ser humano marcadamente deficiente; ver ob. cit. p. 102. A P. Singer tem sido feita a objecao: os chimpanzés e gorilas nao tém linguagem para exprimir conceitos. A isto responde o pensador, dizendo que tais animáis nao podem reproduzir a linguagem humana porque Ihes falta o aparelho bucal correspondente; podem, porém, aprender a lingua gem do sinais utilizada pelos surdo-mudos. Escreve Singer:

"A

chimpanzé

chamada

Washoe compreende quase 350 sinais

diferentes e é capaz de usar cornetamente cerca de 150. Combina os sinais

para formar breves frases. No tocante á consciéncia de si mesma, Washoe nao hesita, ao ver a sua própria imagem no espelho, em responder á pergunta 'Quem é?', dizendo: 'Sou eu, Washoe'. Também usa sinais que expri men) as suas intencoes referentes ao futuro" ^Etica Pratica, p. 99). Acrescenta Singer que os sussurros e os chiados das baleias e dos del-

fins sao "urna forma sofisticada de comunicarlo, que poderia um dia ser reconhecida como linguagem" (ibd., p. 100). A estes argumentos voltaremos quando tracarmos a crítica da teoría de Singer. Disto se seguem as conclusSes já apregoadas por Engelhardt: sao líci tos o infanticidio, o aborto, a eliminacao dos bebés defeituosos e dos mentecaptos irreversíveis:

"Visto que o feto nao é umapessoa, nenhum feto pode ter pretensao

á vida de urna pessoa. Ademáis, é muito improvável que fetos de menos de 18 semanas sejam capazes de sentir algo, dado o insuficiente desenvolvi-

mento do seu sistema nervoso. Em conseqüéncia um aborto nesse perío

do de tempo interrompe urna existencia destituida de valor intrínseco" (ob. cit, p. 122). Na base do pensamento de Engelhardt e Singer acham-se utilitarismo e hedonismo: o valor máximo da vida consiste em levar ao auge o pra zer e reduzir ao mínimo a dor. A vida vale a pena de ser vivida na medida em que o vívente senté o prazer. Por isto urna vida incapaz de sentir prazer nao tem valor e nao merece consideracao. Se tal vida provoca dor ao sujeito ou a outros, é justo suprimi-la; justo, portanto, matar todas as enancas que sejam causa de sofrimento para os seus genitores (cf. ob. cit., p. 135). 304

PESSOA: COMO IDENTIFICA-LA?

17

Exposto sumariamente o pensamento de Engelhardt e Singer, procu

remos avaliá-lo.

2. QUE DIZER?

As conseqüéncias a que levam os principios dos dois autores citados,

podem causar espanto: o robó merecería o status de pessoa, ao passo que o ser humano deficiente mental em estado grave e a crianca onerosa para seus pais nao o mereceriam.

Poderia isso estar certo?

— Usando da razao (sem recurso á fé), dizemos que nao. — E por que nao?

— O erro consiste em definir a pessoa pelos seus atos (pelas suas expressoes ou os síntomas), em vez de a definir pelo substrato subjacente a esses atos (substrato que torna possíveis tais atos). Com efeito, a consciéncia de si próprio e a racionalidade estao fundadas sobre algo de permanen te, que subsiste mesmo quando os respectivos atos ainda nao ocorrem ou já ocorrem. Se a pessoa consiste em atos de autoconsciéncia e racionalida de, dever-se-ia dizer que quem dorme, enquanto dorme, nao é pessoa; o bébado, que perde a capacidade de raciocinar, nao seria pessoa enquanto bébado.

Em última análise, a concepcao de Engelhardt e Singer se deriva do empirismo e do fenomenismo de David Hume (t 1776), segundo o qual o homem é um leque de percepcoes (ou de atos psicológicos) destituidas de um fio que garanta a sua contínuidade ou destituidas de um suporte do

qual procedam.

Segundo este principio, Engelhardt e Singer verificam que alguns se res possuem a consciéncia de si mesmos e outros nSo, mas nao vao além;

nao indagam por que alguns seres humanos mostram-se autoconsc¡entes e racionáis, enquanto outros nao aparecem como tais. Ficam na observacao dos fenómenos, e nao procuram a origem ou as causas do que observam.

Para eles, só existe o que aparece, ou o fenómeno acessivel á experiencia

dos sentidos.

Na verdade, porém, a racionalidade e autoconsciéncia süo sinais da ¡dentidade ou da esséncia do individuo; por esses sinais podemos e devemos penetrar até o ámago do ser humano. Com outras palavras: esses 305

18

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

síntomas ou essas atividades tém um sujeito que as explica e que nao se

identifica simplesmente com as suas atividades. Tal sujeito ou suporte é o

que nos chamamos pessoa.

é tendencia da filosofia contemporánea identificar a pessoa com os

seus atos, como faz, por exemplo, Jean-Paul Sartre: "O homem nao é se-

nao aquilo que ele faz". Em conseqüéncia, muitos querem identificar o homem com o exercício da sua liberdade ou o da sua autoconsciéncia. — Ora isto é falso, porque identifica o sujeito com as suas manifestacoes, quando na verdade pode haver um auténtico sujeito altamente qualificado sem as manifestacSes correspondentes á sua dignidade.

Se nao se distinguem o principio permanente de atividades e as ativi dades mesmas, o sujeito se dissolve em seus atos; estes perdem o seu fio condutor ou o seu principio unificador; em conseqüéncia nao se pode falar de pessoa.

Prossigamos o nosso racioci'nio: se a pessoa nao é a atividade da auto consciéncia e da racionalidade, mas é o principio permanente donde fluem essas atividades, compreendemos que, para que alguém seja pessoa, nao é necessário que exerca aqui e agora tais atividades, mas basta que tenha a

possibilidade de as exercer. Tal exercício ocorrerá desde que sejam postas as condicoes para tanto. Geralmente essas condicoes existem, permitindo

á pessoa explicitar suas capacidades de raciocinio e autoconsciéncia. Mas podem nao existir tais condicoes: é o que acontece no caso das criancinhas, que tém todas as faculdades típicas de uma pessoa, mas aínda em

brionarias ou nao plenamente desenvolvidas; é também o caso dos adultos

que sofrem lesoes do cerebro ou lesoes do organismo que impedem a ple na manifestacao de sua racionalidade e sua autoconsciéncia. Tais indivi duos (traumatizados por um desastre automobilístico, uma infeccao, uma doenca...) conservam seu estatuto de pessoas, na medida em que subsiste o principio permanente donde fluem as suas atividades típicas coibidas por agentes extrínsecos.

3. COMO ENTENDER TAL PRINCIPIO PERMANENTE? Os atos de racionalidade e autoconsciéncia sao atos que ultrapassam os limites da materia. Com efeito; pelo raciocinio o individuo chega a fór mulas abstratas un ¡versáis, definicoes de esséncia... Tomando consciéncia

de si mesmo, o individuo reflete sobre o seu próprio seré o seu agir, o que de novo significa ir além do concreto e material. Donde se segué que o principio do qual procedem tais atividades imateriais ou espirituais, é

um principio ¡material ou espiritual. A pessoa é, pois, um ser psicossomáti-

co; além da sua corporeidade, possui uma psyché espiritual, que Ihe permi306

PESSOA:COMO IDENTIFICÁ-LA?

]9

te realizar seus atos típicos. A pessoa, que é racional, autoconsciente e livre, 6 também aquele sujeito que come, bebe, senté, anda...

4. QUEM É PESSOA?

Na base destas reflexoes, podemos responder á pergunta inicial: quem

é pessoa? - É pessoa todo sujeito que, por sua estrutura ffsica e mental, é

capaz de realizar atos de autoconsciéncia, racional idade e liberdade, mesmo que nao efetue tais atos em virtude de algum impedimento alheio á sua natureza e á sua estrutura.

Mais: dado que a autoconsciéncia, a racionalidade e a liberdade sao características da especie humana, afirmamos que sao pessoas todos os in dividuos da especie humana, independentemente das condicóes em que nesta ou naquela fase de vida se encontrem. Por consegu inte, rejeite-se a distincao entre seres humanos e pessoas, pois há sinonimia entre estas duas expressoes.

Faz-se mister, porém, distinguir entre pessoa e personalidade. Pessoa

é a personalidade ainda em formacao, que chegará ao seu pleno desenvolvimento mediante bons hábitos. Personalidade é a pessoa que atingiu ou

quase atingiu a sua plena medida ou estatura íntima. Este termo ideal é di fícil de ser obtido, mas nao está fora do alcance do ser humano.

Isto quer dizer que o conceito de pessoa é dinámico e nao pode ser identificado plenamente com este ou aquele segmento de seu desenvol

vimiento.

Quanto ao argumento segundo o qual os animáis antropomórficos tém a linguagem, ao menos, dos surdo-mudos, deve-se dizer o seguinte: o chimpanzé e o gorila, tendo urna estrutura cerebral aperfeicoada, pos-

suem urna capacidade de imitar assaz elevada; em conseqüéncia, podem ser "educados" para realizar funcoes que tém (ou parecem ter) semelhanca com as funcoes propriamente humanas; além disto, sao dotados da chamada "estimativa natural" (ou faculdade do instinto), mediante a qual o animal apreende o que é útil e o que é nocivo para si; aprende também certas artes e as recorda, tornando-se capaz de se orientar dentro do seu ámbito de vida. Isto explica que possa aprender e utilizar cerros sinais de comúnicacao. Notemos, alias, que a estimativa ou o instinto é faculdade altamente aperfeicoada nos animáis irracionais, permitindo-lhes, porexempío, fabricar os favos de mel da abelha, as galerías das formigas, as teias das aranhas...; todavia é faculdade cega, que nao se dá conta dos porqués do seu agir, de modo que nunca corrige alguma falha imprevista nem empreende alguma facanha para progredir. 307

20

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Observemos ainda que os chimpanzés e gorilas, dotados da sua "linguagem", s3o incapazes de exercer atos de inteligencia propriamente dita: incapazes de prever urna finalidade e adotar os meios adequados, incapazes

de formular definicoes, de usar de liberdade de arbitrio, de autocohtrole e autodominio; sao determinados a escolher aquilo que o seu instinto pede; nao sao capazes de autoconsciéncia ou de tomar consciéncia daquilo que sao e daquilo que fazem.

Somente o homem é apto a fazer progressos, a corrigir e melhorar seu comportamento; somente o homem possui senso ético ou a consciéncia do bem e do mal; somente o homem pode escrever sua historia... Os animáis ¡nfra-humanos, como se sabe, comportam-se hoje como há milhares de anos, sem que déem sinais de avancos técnicos. A razio disto é que Ihes falta o principio vital (alma) espiritual que caracteriza o homem; por isto nao se podem abrir a novos horizontes, mas estao fechados nos limites da materia e do instinto cegó. Daí dizermos que nao sao pessoas, ao passo que o ser humano, por sua própria constituicap psicossomática, é pessoa.

5. E O EMBRIAO HUMANO? Em vista da prática do aborto e das experiencias da Engenharia Gené tica, existe especial interesse em saber se o embriao — e o próprio feto — humano é pessoa. Para responder á pergunta, levem-se em conta dois principios:

1) Últimamente os estudos da formacao do zigoto mostram que, logo após a fecundacao do óvulo pelo espermatozoide, tem inicio um novo sis tema vital. Este contém, como se fosse a memoria de um computador, um projeto de ser bem definido com a "¡nformacao" necessária para a gradual realizacao de tal projeto; nesse novo ser, por menor que seja, se encontra toda a riqueza morfológica da nova criatura.

2) O exame do desenvolvimento do embriao unicelular manifesta que, a partir do embriao unicelular, através de etapas sucessivas bem deli neadas, se chega ao organismo completo. Este desenvolvimento é caracte rizado por tres propriedades biológicas: — coordenado: as atividades das moléculas e células guiadas pela informacao contida no zigoto convergem para a produelo de um organismo uno e único constituido por milhoes de células; — continuidade: o novo ciclo vital, que comeca com a fecundacao do óvulo, procede sem interrupcao, desde que as condicSes pré-requisitas se308

PESSOA: COMO IDENTIFÍCALA?

jam preenchidas. é sempre o mesmo individuo que vai adquirindo a sua forma definitiva;

— gradualidade: a formacao do organismo se faz pela passagem de formas mais simples a formas sempre mais complexas. Esta leí da graduali

dade implica que o embriao, a partir do estado unicelular, mantenha perma nentemente a sua identidade e individualidade através de todo o processo.

A nova célula humana é, pois, um novo individuo humano que inicia o seu próprio ciclo vital e, suposto o ambiente adequado, gradualmente se desenvolve, atualizando suas potencialidades segundo um plano uno e con

tinuo.

Disto se segué que o embriao nao é mera potencialidade capaz de tornar-se um ser humano, como sao o óvulo e o espermatozoide, quando se

parados, mas é um novo individuo vivo, que tem sua identidade em si mesmo. Nao é urna virtualidade ou urna potencial idade de ser humano, mas é auténtico ser humano, que se desenvolve segundo um programa in terno até tornar-se o embriao um homem completamente desenvolvido. Conseqüentemente, se o embriao jé é um ser humano com sua identi dade própria, é também urna pessoa humana e merece ser tratado como tal. Exclua-se qualquer tipo de manipulacao, de experimentacao e de pes quisa do embriao que tenha finalidades industriáis, farmacéuticas ou mes mo cientificas. A diferenca entre o embriao e o homem plenamente desen volvido é a de tamanho, tamanho que supoe o tempo adequado para a maturacao. O tempo, porém, nao muda a identidade dos seres. Este artigo vem a ser urna adaptacao do Editorial de La Civiltá Cat-

tolica, 14/12/1992, n? 3420, pp. 547-559, com o título "Chi é persona? Persona Umana e Bioética".

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Abortar ou nao?

A VIDA DA MÁE OU A DO FILHO?

Em síntese: Duas mulheres heroicas na Italia, Gianna Beretta Mofle e Carla Levati Ardenghi, optaram por nao se tratar de cáncer a fim de nao

pre/udicar a vida da enanca que elas traziam em seu seio; ambas morreram,

vítimas de tal opcao. A opiniao pública tem criticado essas atitudes, /u/gando estar ai subjacente um falso conceito de maternidade; a muiher seria simplesmente a reprodutora, que devería sacrificarse em qualquerhipótese, para gerar filhos. — Ora tal nao é o modo de ver cristao: as duas mulheres poderiam ter licitamente escolhido o tratamento do cáncer, aín da que este acarretasse, como efeito secundario, a perda do feto. Nao o quiseram, porém, por amor ao filho, amor que só pode dignificar a muIher, levando-a á imitacao de Cristo, que morreu por todos. A maternida

de humana está longe de ser urna funcao meramente biológica; e/a partici

pa da espiritualidade que existe em toda muiher, e, se esta é católica, par ticipa da obra redentora de Cristo, como diz Sao Paulo em 1Tm 2,15. O testemunho de Gianna e Carla é um benéfico despertar de consciéncias neste mundo em que o amor gratuito e benévolo é cada vez mais raro, neste mundo em que a violencia e a morte marcam profundamente o rit mo da sociedade.

*

*

*

Nos últimos tempos tem estado em foco o caso de maes gestantes postas na iminéncia de se sacrificar para nao perder o filho. Duas se-

nhoras italianas aceitaram o sacrificio heroico, provocando os comentarios desfavoráveis e favoráveis da opiniao pública. Na Bosnia, o S. Padre dirigiu um apelo ás gestantes estupradas para que nao abortassem, o que também suscitou protestos da parte de jornal¡stas e outros profissionais. Tencionamos abordar o assunto, detendo-nos especialmente ñas figu ras de Gianna Beretta Mol le e Carla Levati Ardenghi, heroicas personali

dades, que foram injustamente criticadas precisamente por causa do seu heroísmo.

310

MÁEOUFILHO?

23

1. AS DUAS HEROÍNAS ITALIANAS 1.1. Gianna Beretta Molle

Médica pediatra, Gianna, aos 40 anos de idade em 1962, estava no inicio da gravidez de seu quarto filho, quando soube estar cancerosa; eraIhe indicada a extracáo do útero grávido como tratamento da molestia. Recusou, porém, a cirurgia, que removería o órgao doente, com a crianca,

e escreveu ao seu médico: "Se tiver de optar, nao hesitarei. Exijo que a crianca seja salva". A gestacao foi levada adiante até o momento em que se pode reali

zar a operacao cesariana. O feto nasceu recebendo o no me de Gianna Emmanuela, que hoje é médica como a mae. Acontece, porém, que, uma semana após o nascimento da filha, Gianna Beretta Molle veio a falecer nao diretamente de cáncer, mas de pe r¡ton ite decorrente da intervencSo cirúrgica necessária para o parto.

O S. Padre Joao Paulo II em 1992 beatificou Gianna Beretta Molle, reconhecendo assim a heroicidade das virtudes dessa muí he r. O Postulador da Causa de Gianna observou que "o sacrificio consciente da mae pelo fi lho que deve nascer, é apenas o gesto conclusivo de toda uma vida católica coerente, simples e generosa". Com efeito; a facanha heroica da mae no final da sua vida foi o coroamento de toda uma existencia fiel e dedicada ao Senhor.

Nao obstante, houve quem criticasse a atitude de Gianna e o gesto de Joao Paulo II, como se pode depreender do artigo "Apuros de Santo Novo" de VEJA, 06/01/1993. 1.2. Carla Levati

Muito mais recente é o caso de Carla Levati Ardenghi, casada com Valerio Ardenghi, natural de Albano Sant'Alessandro (Bergamo). Tinha um filho, Ricardo, hoje com dez anos de idade, quando, há tres anos, foi vítima de melanoma ou tumor maligno de prognósticos sombríos. Foi ¡mediatamente operada, de tal modo que se sentia bem,- por isto julgou poder ter outro filho. Carla, de fato, concebeu, mas em dezembro de 1992 comecou a sentir fortes dores na coluna, síntomas de que a metástese ata cara a espinha dorsal. O tratamento proposto foi a quimioterapia; esta, po rém, poria em grave risco a vida da crianca. Por isto, de acordó com seu marido, Carla resolveu nao aceitar tratamento algum, até que Ihe nascesse o segundo filho. Aos 26 de Janeiro de 1993 foi submetida a operacao cesa

riana; mas faleceu oito horas depois do nascimento de Stefano, seu segun do filho. Tinha 28 anos de idade. Infelizmente a própria crianca pouco sobreviveu á míe, pois aos 4 de fevereiro de 1993 também faleceu. 311

24

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Carla Levati era humilde senhora; teria podido tratar-se, mesmo com risco de vida para o filho. Com efeito, a Teologia Moral ensina que é líci to realizar urna acao que tenha duplo efeito — um bom, o outro mau — desde que - o efeito bom nlo decorra do mau, mas seja diretamente atingido; - o efeito mau nio seja intencionado ou desojado, mas apenas tole rado, como conseqüéncia inevitável de urna acao que, como tal, nao é má; - o efeito bom compense, por sua importancia, o efeito mau; - nao haja outro recurso para obter o efeito bom. Ora no caso de Carla Levati, como também no de Gianna Beretta

Molle, o tratamento do cáncer seria urna acao boa, visando á cura da pa ciente; o efeito mau seria a perda da crianca, efeito nao intencionado, mas apenas tolerado. A histerectomia ou a quimioterapia naoseriam aplicadas para matar a crianca, mas para curar a mué; seriam indicadas independentemente do fato de haver ou nao urna gravidez em curso. Carla e Gianna, porém, nao quiseram atender a si mesmas, valendo-se licitamente dos recursos da medicina, para nao fazer a enanca correr o risco de perder a vida. Tal gesto é plenamente cristao, pois o Senhor Jesús no Evangelho ensina: "Nao há maior amor do que o daquele que dá a vida por seus amigos" (Jo 15, 12s). Ao que Sao Joao acrescenta: "Nisto conhecemos o Amor; Ele deu a sua vida por nos; por isto devemos também nos dar a vida por nossos irmaos" (Uo 3,16). A atitude das duas mies que se

sacrificaram, significa a seqüela fiel de Jesús Cristo. Além desta dimensao crista, muito positiva, a conduta das duas senhoras tem profundo valor humano. Ambas quiseram viver a matemidade no seu sentido mais elevado de amor que dá a vida e se entrega para que haja vida. A matemidade é um processo de dar a vida que nao pode deixar de ser doloroso; ná*o há de ser exercida como urna funcao meramente ra

cional ou cerebrina, mas, sim, como algo que procede da "inteligencia do coracio"; o coraclo tem suas razoes que a razio ignora; nao raro essas razSes podem parecer paradoxais, mas na verdade inspiram-se em magnanimidade e generosidade que ultrapassam o frío cálculo da razio. A atitude das duas muiheres assinaladas vem a ser um referencial para todo ser humano que queira viver realmente o amor.

Embora os dois casos, heroicos como foram, merecam a admiracao da sociedade, tal nao foi a reacá"o de muitos setores da opiniao pública. A 312

MÁEOU FILHO?

?5

seguir, referiremos alguns comentarios de jomalistas da Italia relativos ao gesto de Carla Levati.

2. A IMPRENSA E CARLA LEVATI

No jornal II Messagero, de 29/01/93, A. Bevilacqua escreve: "O heroísmo chega muitas vezes ás raías do fanatismo... Devo decla rar o meu pleno desacordó frente a tal episodio. Foi um sacrificio em fa vor da vida? Sim. Um ato heroico em pro! de urna criatura que nascia? Sim. Todavía, a meu ver, embora se/a desagradável, um egoísmo se manífestou, egoísmo de natureza materna, distorcido por urna deformagao an gustiada da esperanca e por convicgoes religiosas exageradas até o fana tismo". Em La Repubblica, de 29/01/93, escreve Camilla Cederna:

"Eu me insurjo, sim, eu me insurjo profundamente contra a 'moral'

que muitos querem deduzir dessa historia... Mas quem pode dizer o que aquela pobre menina pensava?... Talvez julgasse que iría para o paraíso ou que a declarariam Santa. Sendo portadora de um tumor, devia resignarse a abortar. Mas somos loucos? Ela coiocou no mundo um fi/ho órfao. Parece-me um sacrificio inútil, erróneo; morrer para deíxar nascer um fetozinho que talvez nao tenha condicdes de sobreviven E coisa tao terrivei co mo querer dará luz com sessenta anos de idade. Nisto há ignorancia, retar do cultural, um desejo de martirio que nao posso entender".

Mais dura ainda foi Dacia Maraini em entrevista ao mesmo jornal La

Repubblica de 29/01/93: "Nao se fale de sublime sacrificio... A renuncia de Carla Levati reproduz a concepcao arcaica segundo a qual a tarefa da mulher é a reproducao,

mesmo ás cusías da vida própria. É inquietante observar como resiste fortemente essa perigosa mitología, que remonta aos primordios da civiliza-

gao ocidental, grega e romana. A razio de ser e existir da mulher estaría na sua capacidade de garantir a prole, isto é, o futuro da humanidade. Evi dentemente ainda há pessoas inf/uenciáveis por feiticos desse género. Respeito as decisoes individuáis. Talvez Carla quisesse terum filho a qualquer prego. Talvez levasse urna vida infeliz ou tivesse baixa consideracao de si

mesma. Nao nos interessa explorar as motívagoes secretas que a levaram a

rejeitar o tratamento e a por no mundo um filho órfao". 313

26

"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

A antropóloga Ida Magli também protestou no mesmo jornal e na mesma data: "Quanto barulho, quanta exaltacao\ Mais urna vez a pressao social di ta o significado dos acontecimentos. Mais urna vez tenta incutir no ánimo das mulheres a conviccap de que o único valor para a mulher é a maternidade".

A deputada Alessandra Mussolini, do Movimento Social Italiano, professou nao querer julgar a opcao de Carla Levati, mas acrescentou: "Todavía creio que querer ter um filho a qualquer prego é ato de ex

tremo egoísmo. A senhora de Bergamo, Carla Levati, já nao tinha um fi lho? Agora acontece que teve outro, mas incapacitado de gozar dos cuida dos maternos. A verdade é que deveríamos ter um pouco mais de normalidade ao passo que, segundo me parece, caminhamos para urna sociedade

disposta a premiar sempre mais as excecoes e as aberracoes" fL'Unitá, 29/01/93). Em suma, verifica-se que os comentarios tacharam o gesto de Carla Levati de "egoísmo" (A. Bevilacqua), "extremo egoísmo" (A. Mussolini), "sacrificio inútil, erróneo, fruto de ignorancia e de retardo cultural" (C. Caderna), "compensacao de quem levava vida infeliz e tinha baixa consideracao de si mesma" (D. Maraini).

3. QUE DIZER? Proporemos tres observacoes.

3.1. Aberracao: onde? A aberracao nao está no gesto de Carla e de Gianna, mas, sim, nos pa

receres emitidos a respeito. Dir-se-ia que as pessoas que assim seexprimiram, sao incapazes de compreender que o amor é querer bem ao outro — e nao servir-se do outro —, querer bem a ponto de realizar grandes sacrifi cios em favor do outro. Quem sustenta urna visao da vida centrada sobre seu próprio prazer e seus interesses, urna visao egoísta, nao pode entender as atitudes altruistas de seus semelhantes. Seria para désejar, porém, que, mesmo que nao entendam gestos de magnanimidade rara, os comentadores saibam guardar respeito e nao os condenar como deformacao psíquica. Em compensacao, podemos comunicar que, aos 30/01/93, vinte ca sáis de diferentes países, reunidos em Roma para participar de urna Reu314

MÁEOU FILHO?

27

niao Plenária do Pontificio Conselho para a Familia, escreveram uma carta ao marido de Carla Levati, em que diziam: "O testemunho heroico de amor é vida prestado por Carla nos tocou

no mais profundo do coracao. £ um exemplo luminoso para as familias cristas do mundo inteiro nestes tempos dificéis, nos quais sao obscureci dos os valores da matemidade.

Julgamos que Carla representa um modelo, porque nela vemos uma

mulher casada, como nos, que deu a vida por seu filho, e pedimos a Deus queira derramar a sua graca, mediante o testemunho de Carla, sobre todas as familias do mundo".

3.2. O conceito de matemidade

Os críticos do gesto de C. Levati quiseram basear sua censura num ri dículo conceito de matemidade atribuido a essa senhora: Carla teria con cebido a matemidade como mera funcao reprodutora a servico da especie humana, funcao de índole física apenas ou até animalesca, em nada distin ta da matemidade no mundo animal. Tal seria uma concepcao arcaica, mi tológica, incompatível com o feminismo contemporáneo. Ida Magli afirma que a matemidade foi durante muitos sáculos um trágico destino das muIheres: "Até o fim do sáculo XIX as mulheres eram sempre obrigadas a morrer em lugar dos filhos, desde que houvesse que optar pela vida da mae ou a da prole... Até a década de 1960 quem definia qual dos dois sobreviveria era o pai". - Porconseguinte, a matemidade seria um trágico destino da mulher encarregada da funcao reprodutora.

A propósito devemos dizer que o Cristianismo sempre distinguiu a matemidade humana da matemidade meramente animal. O prototipo da Mae para o cristao é a Santa Mae de Deus, cuja funcao foi certamente cola borar na obra da Redencao; toda mae crista continua o papel de María a seu modo; ela gera filhos chamados á vida eterna, realizando no seu lar uma "igreja doméstica"; Sao Paulo chega a ver no exercício da matemida de o caminho de salvacao da mulher: "A mulher será salva pela matemida de, desde que, com modestia, permaneca na fé, no amor e na santidade" (1Tm2, 15).

Por certo, a matemidade nao é única via de salvacao da mulher;

existe também a da virgindade consagrada a Deus. Como quer que seja, a vocacao ao matrimonio está longe de condenar a mulher á funcao de re produtora e de submeté-la, por isto, a trágico destino. Na verdade, a ma

temidade nao é fato meramente camal ou fisiológico, mas é também uma realidade espiritual; é amor que se exprime camalmente e que eleva a car ne a significar valores humanos muito superiores aos valores meramente 315

28

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

animáis. A maternidade, portante, dignifica a mulher e nao a reduz a me ro instrumento destinado á reproducao da especie. Inegavelmente a grande dignidade de ser mae, como qualquer outra dignidade, pode colocar a pessoa em situacoes dif icéis e exigentes, com apelos ao sacrificio. Aceitar tais desafios com nobreza e coragem é a plena realizacáo da muIher-mSe. Para que isto aconteca, a grapa de Deus nao fal ta á pessoa interessada, incutindo-lhe aquela concepcSo de amor que tem seu prototipo em Jesús Cristo. Num mundo como o nosso, impregnado de interesses individualistas e egocéntricos, movido pelo anseio do prazer, especialmente no setor da

sexualidade instintiva e cega (em muitos casos), ressoa de modo muito significativo o sacrificio de Gianna e de Carla; o seu amor altruista e puro fez algo que surpreendeu o mundo e pode despertar as consciéncias para o sentido do auténtico amor. Esse altruismo ultrapassa os limites de um

episodio de familia para assumir a Índole de urna "santa novidade" para a sociedade contemporánea.

3.3. A morte de Stefano

O filhinho de Carla — Stefano — nao sobreviveu senao poucos dias após a morte de sua mae. Neste fato, particularmente, baseou-se a critica de que o gesto de Carla foi tolo, inútil e desarrazoado. Respondemos que a grandeza de urna atitude ética nao pode ser avaliada simplesmente a partir do sucesso visível; mesmo que um sacrificio ditado pelo amor nao atinja o objetivo colimado, tal sacrificio conserva seu pleno valor.

Nem se diga que o gesto de Carla foi inútil. Veio a ser um brado em favor da vida num mundo em que a violencia e a morte tém dominado em varias regioes, instaurando a cultura da morte; sejam recordados os doloro sos episodios ocorridos na Bosnia (tragedia para a qual nao se vé fim), as

guerras fratricidas em países da África, as guerras e guerrilhas do Oriente Medio, os confutes entre hindúístas e muculmanos na India, aaprovacao de urna lei em favor da eutanasia direta na Holanda (aos 10/02/93), a po lítica abortista do governo B. Clinton nos Estados Unidos... O gesto da

modesta mulher Carla Levati, como também o de Gianna Beretta Mol le, sao sinais que podem e devem avivar a opiniao pública para que tente promover outro tipo de comportamento social; matar por paixao e egoís mo nao leva á felicidade, ao passo que a vivencia do amor que pretende salvar o próximo será penhor de dias melhores. 316

MÁEOUFILHO?

29

Aos olhos dos incrédulos, a Cruz de Cristo será sempre loucura e escándalo como diz S3o Paulo (1Cor 1,18.23). Por conseguinte, nao nos surpreende a incompreensao de muitos frente ao caso de Carla Levati e Gianna Beretta Molle. Mas continua o Apostólo dizendo que oque é lou

cura aos olhos dos homensé sabedoria aos olhos de Deus (1Cor 1,25).

Essa sabedoria de Deus é, nao raro, revelada aos pequeninos e humildes, como foi Carla Levati, para que proporcionen! aos sabios e poderosos a ocasüo de repensar sobre o sentido da vida e da morte, do sofrimento e do amor.

Este artigo muito deve ao Editorial "Una testimonianza per la vita" de La Civiltá Cattolica, n? 3425, 06/03/1993, pp. 417-423.

*

*

*

EUTANASIA E DISTANÁSIA A respeito de eutanasia, a Moral Católica (e também a Medicina) distingue entre eutanasia positiva e eutanasia negativa. A primeira é a elimina?ao consciente e volunta ria da vida do paciente mediante injecSo ou coisa semelhante; merece reprovacao, pois é usurpacao de direito que nao toca ao hornern. A eutanasia indireta consiste na suspensao dos meios de subsistencia; estes podem ser ordinarios (soro, alimentacao, sangue...) e extraordinarios. Suspender os meios ordinarios nao é lícito pelo mesmo moti vo. Quanto aos extraordinarios, se nao há proporcao entre a aparelhagem aplicada e os resultados nulos ou quase nulos obtidos, é lícito desligar os aparelhos, conforme Decíaracáo da Congregacao para a Ooutrina da Fé datada de 5/5/1980. A patavra distanásia tem duplo sentido. Etimológicamente falando, distanásia se ria a morte dolorosa, visto que o prefixo grego dys significa algo de mau (dispepsia, disritmia, disfuncao...). Ora nao é lícito deixar um paciente morrer sem procurar aliviar os seus sofrimentos mediante analgésicos (ainda que estés redundem em abreviacfo da vida do enfermo). Parece, porém, que distanásia, na linguagem médica atual, significa a desistencia de reanimar um

paciente (ONR ou NTBR); tal desistencia é lícita, se en tendida nos termos atrás indicados: nao aplicacao de aparato caro e penoso sem resul tados correspondentes. A obstinacao terapéutica, que priva o paciente do reconforto dos seus, sem que haja sólida esperance de alguma melhora, nao se ¡mpoe a conscjéncia

moral, pois privilegia os aspectos mecánicos e técnicos em detrimento de valores hu manos propriamente ditos.

317

Zelo Pastoral e Equilibrio:

'O QUE É PRECISO SABER SOBRE A

RENOVAQÁO CARISMÁTICA"

por D. Antonio Afonso de Miranda

Em símese: O Sr. Renovacao Carismática, zido, como também os franqueza do perigo de

Bispo de Taubaté publicou um l'tvro simpático á no qual expoe os frutos positivos que tem produdesvíos e exageros a que está sujeita. Fala com se confundírem estados emocionáis com dons do

Espirito Santo. É preciso ha/a, da parte dos Bispos e sacerdotes, assisténcía mais assídua aos grupos de oracao, a fim de que, evitando fainas doutrinarías e moráis, possam continuar a ser núcleos de urna Igreja viva, voltada para o Transcendental e o sen/ico aos irmaos, ponto de atracao de fiéis afastados e tibios e foco de afervoramento dos mais piedosos. *

*

*

0 Sr. Bispo de Taubaté, D. Antonio Afonso de Miranda, acaba de pu

blicar um pequeño livro sobre a Renovacao Carismática, seus frutos e des víos.1 É opúsculo equilibrado, que com estima considera a Renovacao Ca rismática e aponta resultados valiosos como também fainas que podem

prejudicar o seu futuro. É, pois, o zelo pastoral e o desejo de preservar a Renovacao Carismática que inspira o autor. Visto que se trata de explanacoes muito judiciosas, publicaremos abaixo urna síntese das principáis pá ginas da obra em foco.

1. OS PORQUÉS DO QUESTIONAMENTO Sao variadas as denominacoes que o fenómeno carismático tem recebido: Renovacao Carismática Católica, Experiencia do Espirito Santo,

1 O que é preciso saber sobre a Renovacao Carismática. Ed. Santuario,

Rúa Pe. Claro Monteiro 342, 12570-000 Aparecida (SP), 125 x 180 mm, 62 pp. 318

RENOVAgÁO CARISMÁTICA: QUE DIZER? Oracao Carismática, Renovado Espiritual Católica Carismática, Renovacao no Espirito Santo...

Logo de inicio é preciso distinguir a Renovacao Carismática dentro da Igreja Católica e a Renovacao Carismática Pentecostal ou Protestan te. Esta última professa os principios doutrinários do protestantismo (aversao a María SS., recusa do primado de Pedro, rejeicao do sacramento da Eucaristía... ), de modo que a confusao entre o movimento católico e o protestante gera polémicas e ansiedades nos me ios católicos. Parece que alguns grupos católicos se deixaram influenciar pelo Pentecostalismo pro testante, entregándose a exageras ou desvíos doutrináríos. Por outrapar te, crentes pentecostais foram aceitos em grupos católicos de oracao, e levaram para estes certas ¡nterpretacoes da Biblia nao condizentes com o ensino da Igreja Católica: assím alguns carismáticos católicos puseram-se a

combater o culto á Vírgem Santíssima e aos Santos; comecaram a profes sa r urna "Igreja Carismática" teológicamente diluida, ¡nsensível ao Magis terio. 0 Batismo no Espirito Santo foi excessivamente valorizado, como se

desse origem a urna classe privilegiada de cristaos, portadores de carismas únicos - dons de linguas e de curas; assim se constituiría a verdadeira Igre ja, cujo único Mestre seria o Espirito Santo, propulsor direto e intimo de cada cristao. A meditacao da Palavra de Deus e a oracao cederiam, em grande parte, á euforia de louvores, aleluias, "Viva Jesús". Tais proposicoes sao heréticas. * Nao há dúvida de que a Igreja de Cristo é, por sua natureza mesma,

carismática ou vivificada por carismas (dons) do Espirito Santo. Em todos os tempos nela brilharam os carismas da oracao intensa, da caridade ope rante, do zelo apostólico, da contemplacao mistica, como também, em al guns Santos, os dons de milagres, de curas e de profecía. Sobretudo a Igre ja teve sempre os carismas essenciais do sacerdocio, da vida consagrada, do Magisterio pontificio e episcopal, a atividade exuberante de teólogos e doutores e a multiforme atuacao dos leigos.

Disto se segué que a Renovacao Carismática ou a Oracao Carismática nao é estranha nem esdrúxula na Igreja. Pode e deve ser aceita dentro de urna linha pastoral bem orientada.

O Documento de Puebla assim se expressou: "Os carismas nunca estiveram ausentes da Igreja. Paulo VI expressou

sua complacencia para com a Renovacao espiritual que aparece nos meios e lugares mais diversos e que leva á oracao de alegría, á uniao íntima com

Deus, é fidelidade ao Senhor e a urna profunda comunhao de almas. Do 319

32

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

mesmo modo procederán) varias Conferencias Episcopais. Contado esta Renovacao exige dos pastores bom senso, oríentacao e discernimento, para

que se evitem exageros e desvíos perígosos" (n?207).

2. OS FRUTOS DA RENOVACÁO CARISMATICA A Renovado Carismática tem dado frutos excelentes, que podem correr o perigo de deterioracao por falta de assisténcia. Ei-los: 1) A consciéncia cada vez mais viva da presenca e da ac§o do Espirito

Santo na Igreja e no coracao de cada fiel. Ter consciéncia da acao do Espirito e saboreá-la é fundamental na Igreja. A profundeza do misterio da Igreja está aqui. Quando o cristao per mite que o Espirito nele desenvolva sua vida, a Igreja toma novo sentido no fiel; Ela nasce de fato em seu coracao.

É neste sentido que se pode falar de "batismo no Espirito Santo", expressao muito usual nos meios carismáticos. Sem dúvida, todo cristao foi batizado no Espirito, quando recebeu o sacramento do Batismo na in fancia. Mas poucos fiéis tomam consciéncia da vida nova que o Batismo Ihes trouxe. Os encontros da Renovacao Carismática tém conseguido des pertar esta consciéncia, constituindo-se como verdadeiro "Batismo no Es pirito" para os conscientizados. Fora desta interpretacao, o "Batismo no Espirito Santo" é algo de ambiguo, sujeito a mal-entendidos e a erros doutrinários. 2) Como fruto dessa consciéncia, tem-se avivado nos fiéis o gosto pe la oracao no e pelo Espirito Santo.

Na realidade observa-se que a oracao, nos grupos carismáticos, apare ce em proporcoes e modalidades menos usuais em outros grupos: assim a oracao de louvor, nao simplesmente de pedidos; a oracao espontánea, nao a partir de fórmulas escritas, a oracao pessoal e comunitaria; a oracao ale gre, que se prolonga por horas, e nSo afasta, mas atrai grande número de. pessoas.

Jólo Paulo II verifica o fato na sua Encíclica Oominum et Vivifi cantem:

"Nestes últimos anos vai crescendo também o número de pessoas que, em movimentos e grupos cada vez mais desenvolvidos, poem a oracao

em prímeiro lugar e nela procuram a renovacao da vida espiritual" (n?65). 320

RENOVAQÁO CARISMÁTICA: QUE DIZER?

33

3) Os grupos de oracá*o tém oferecido aos que estao afastados da Igre

ja a oportunidade de um reencontró com Deus mediante o exercício da prece e a vivencia da fraternidade. Os grupos de oracao apresentam aos que estao longe e impressionados pelo secularismo de nossos dias, urna fa

ce da Igreja voltada para o Transcendental e para a procura da intimidade com Deus — valores estes que em muitos lugares tém sido sufocados pela preocupacao com problemas de ordem material.

4) Registra-se outrossim renovado amor pela Palavra de Deus consig nada na Biblia. Os fiéis passam a ler as Escrituras com freqüéncia e mesmo a saboreá-la, ciernes de que é palavra consignada pelo Espirito Santo. O Concilio do Vaticano II lembrou a todos os fiéis que a leitura das Divinas Escritu ras há de ser assidua e acompanhada de oracao, a fim de que se estabeleca o coloquio entre Deus e o homem (Constituicao Dei Verbum n?25). 5) As pessoas mais conscientizadas pela Renovacá*o Carismática tém mostrado grande disponibilidade para o apostolado. A catequese, a pasto ral dos enfemos e a dos encarcerados tém-se dinamizado com a participacao de agentes muito dedicados.

6) Dos grupos de oracao tém provindo nao poucas vocacoes ao sacer

docio e á Vida Religiosa. Também se tém fortalecido os grupos de jovens, perseverando na sua ded¡cacao á Igreja e á vida sacramental, quando prepa rados pela Renovacao Carismática. Outros varios beneficios se poderiam apontar como frutos dos grupos de oracao. Já estes granjeiam, da parte dos observadores sinceros, grande estima para a Renovacao Carismática. — Todavía nao se pode deixarde le var em conta certos desvíos; conscientes destes, os fiéis os evitarao muito decididamente.

3. DESVÍOS E EQUÍVOCOS Os desvíos e equívocos no Movimento Carismático sao expl¡cavéis e

naturais. Resultam do fato de que a grapa de Deus é recebida dentro de moldes humanos, que podem, ás vezes, dificultar a acao do Espirito. A graca nao modifica ¡mediatamente as tendencias da natureza. Por isto, com razio observou o Cardeal Joseph Ratzinger: "Como toda realidade humana, também a Renovacao Carismática fica exposta a equívocos, a

mal-entendidos e exageras. Mas seria nocivo considerar apenas os perigos e nao o dom que nosé oferecido pelo Espirito Santo" (citado em A Renova cao Espiritual Católica Carismática. Ed. Loyola, p. 31). 321

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Quais seriam esses exageras e desvíos?

1) O mais grave é o fato de que alguns participantes acreditam, talvez inconscientemente, que, movidos pelo Espirito Santo, tém todo o conhe-

cimento necessário e aprofundado da fé. As vezes, alguns presumem ser as únicas pessoas que receberam o Espirito Santo de modo a formar um gru po elitista dentro da Igreja.

2) Em conseqüéncia, nao poucos dispensam o estudo da doutrina; outros créem que encontram todo o saber religioso nos textos sagrados l¡dos de modo subjetivo; por isto também há os que eufóricamente se julgam habilitados a falar amplamente sobre Teología. Assim o "dom da pro fecía" é exercido com desvíos doutrinários, que podem ser funestos á comunídade.

0 Papa Joao Paulo II, na sua Exortacao sobre Catequese Hoje, falando de grupos de oracao como focos importantes de catequese, chamava a atencáo dos respectivos dirigentes: "Nunca permitáis, custe o que custar, que a esses grupos falte um estudo serio da doutrina crista. Sem isto, eles correriam o risco — e tal perigo infelizmente tem-se verificado muitas ve

zes — de decepcionar a própria Igreja" (n? 47).

3) O desvio fundamental que elva a presumir saber muito, suscita outras graves conseqüéncias, apontadas pelos Bispos latino-americanos reuni dos em La Ceja (Colombia) em setembro de 1987:

"Concentrarse únicamente em determinados carísmas, nao valorizar debidamente a riqueza sacramental, interpretar as Sagradas Escrituras se

gundo um criterio fundamentalista,* que, em atgumas ocasioes, desconhe-

ce o devido entendimento dado pelo Magisterio hierárquico, menosprezar a verdadeira devogao mariana e aceitar criterios e afirmacoes protestantes equivocados" (citado em A Renovacao Espiritual Católica Carismática, p. 33). Está claro que estas falhas nao sao generalizadas, mas ocorreram, e podem ocorrer aqui e ali.

1 Chamase "fundamentalismo" a tendencia a interpretar a S. Escritura cegamente, ao pé da letra, sem levar em conta os matizes de expressSo existentes em toda finguagem, e também no linguajar bíblico. Parece o fundamentalismo ser expressSo de fidelidade, quando na verdade se fecha

ao auténtico sentido do texto sagrado. (Nota do Redator). 322

RENOVAgÁOCARISMÁTICA:QUE DIZER?

35

4) O criterio fundamental ista suscita outros desvíos: a crenca na possessao diabólica como algo de freqüente - o que provoca o desejo de apli car o carisma do exorcismo em qualquer situacao problemática; os outros carismas, como o de curas (com imposicao das maos) e o de línguas, sao também ocorrentes com freqüéncia que parece mais doentia do que opor tuna. Verdade é que os adeptos de dons extraordinarios em profusao se baseiam no texto de Me 16,17, em que Jesús promete:

"Os sinais que acompanharao aqueles que acreditaren), sao estes: expulsarao demonios em meu nome, falarao novas Ifnguas; se pegarem serpentes ou beberem algum veneno, nao sofrerao nenhum mal; quando colócarem as maos sobre os doentes, estes ficario curados".

Este texto nao deve ser interpretado como fundamento para a genera-

lizacao de prodigios; exprime sonriente a promessa feita aos primeiros evangelizad ores nos meios pagaos e arautos da Divindade de Jesús Cristo. Sabemos que no decorrer da historia da evangelizacao, através dos sáculos, tais milagres nunca foram necessários sinais de Deus para autenticar o trabalho de seus missionários.

5) Acontece também que em alguns encontros carismáticos sao acóIhidos crentes pentecostais e pessoas de psiquismo doentio. Estas últimas, movidas por emocoes súbitas, tomamnao raro a atitude de individuos possuidos por espíritos malignos e manifestam histeria ou síntomas mórbidos. O dom das línguas é entao confundido com o falar confuso de quem está sob o impacto de emocoes. Quanto aos crentes, influenciam os irmaos na interpretacao subjetiva de textos bíblicos e na recusa do Magisterio ecle siástico, o que leva alguns católicos a falsa ñoclo de ecumenismo ou até ao abandono da Igreja.

6) Os Bispos da Provincia Eclesiástica de Aparecida arrolaram aínda outros desvíos:

"Muitas pessoas buscam na ñenovacao Carísmática urna experiencia exagerada de Deus e de seus dons. Há os que se angustiam e desesperam por nao conseguirem os carismas que almejam com sofreguidao. Sentem-se interiorizados diante da ausencia dos sinais que aguardam, diante do silen cio de Deus... Convém saber que os dons de Deus, os carismas se destinam, antes de tudo, ao bem comum da comunidade, e Ele os distribuí quando, como, onde e a quem quiser. Ninguém presuma obter os dons de Deus em proveito próprio e como se fossem urna conquista. Este ponto deve fícar bem esclarecido" fRenovacao Carísmática. Orientacoes e Normas Pastorais dos Bispos da Provincia Eclesiástica de Aparecida, pp. 7s). 323

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

Destes tatos negativos depreende-se a necessidade de q.e a Igreja acompanhe com carinho e ¡nteresse os grupos de oracao. Sentem-se, por vezes, desassistidos. Nao se corrigem os erros pelo abandono dos que erram. Os sacerdotes e pastores de almas tém ai' fecundo campo de at¡vidades.

Passemos agora a outro aspecto da questao.

4. O RAZOÁVEL E O DOENTIO Já foi dito que a grapa de Deus nao dispensa o respectivo fundamen to humano ou psíquico. Alias, toda atividade humana é impregnada do

psiquismo, de emocoes que impressionam, mais ou menos fortemente, a

pessoa. Ocorre, portanto, que na ñenovacao Carismática pessoas bem in tencionadas, se tém índole fortemente emotiva, podem impressionar-se e

chegar a crer que proceda do Espirito Santo o que é produto das próprias

emocoes ou imaginacóes. Há entao falta de discernimento e passa-se do razoável para o doentio. Este perigo nao é de hoje. Em muitas épocas da Igreja existiram "visionarios", de modo que o Magisterio da Igreja sempre se mostrou cauteloso frente a muitas "aparícoes" e "visoes" de Cristo ou

dos Santos. Poucas aparicoes, como as do S. Coracao de Jesús em ParayLe-Monial a S. Margarida-Maria Alacoque, as de Nossa Senhora em Lour des e em Fátima... sao aceitas pela Igreja nao como revelacoes a que se de-

va um ato de fé, mas como manifestacoes que nada tém de suspeito, de

doentio, sendo os "videntes" pessoas honestas e merecedoras de crédito; o conteúdo das "revelacoes" foi tido como ortodoxo ou condizente com a fé crista. Fica a criterio de cada fiel aceitar ou nao tais fenómenos extraor dinarios; a Igreja reconhece a validade do culto a Nossa Senhora aparecida em Lourdes, em Fátima..., mas nao o impoe.

As ilusoes a respeito de fenómenos extraordinarios, como, por exemplo, certos carismas do Espirito Santo, podem acontecer com facilidade, especialmente em pessoas que tenham urna certa propensao para superestimar esses fenómenos; aguardam-nos sofregamente, a ponto de imaginar

que os receberam, quando na verdade apenas manifestam sintomas de sua ansiedade e expectativa.

Como discernir até onde vai o auténtico fenómeno carismático e on

de comeca o doentio?

- Via de regra, quando as pessoas proclamam fenómenos milagrosos em massa e com enorme freqüéncia, pode-se supor que ai há i I usa o. Os mi-

lagres sao fatos extraordinarios; nao sao acontecimentos em serie, aos 324

RENOVAQÁOCARISMÁTICA:QUE DIZER?

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quais todos possam ou devam aspirar. Por isto nao devem ser tidos como fenómenos carismáticos as curas de tudo quanto é "doenca" em favor de todas as pessoas que as pedem, até por telefone... Isto é ¡rrazoável. Quem julga ser o intermediario de tais milagres, ainda que os atribua a Jesús, acha-se em condicoes de exaltacá*o doentia.

Exemplo muito significativo é citado por D. Antonio Afonso de

Miranda:

"Certa vez urna senhora do Movimento Carismátlco Católico velo di-

zer-me que ¡é havia realizado mais de mil casos de cura de cáncer. Nao conseguí, por mais que me esforcasse, demové-la de tal conviccao. Fácil

concluir que essa senhora era vi tima de um processo psíquico doentio.

Para se ver até onde podem ir as ilusoes emocionáis, registro mais um caso. Urna mulher, declarada cancerosa pelos médicos, fot levada a um grupo de oracao. Impuseram-lhe as mios, fizeram 'oracao de cura', como

costumam dizer. Ela sentiu alivio considerável, certamente sob o impulso de sugestao. Urna semana depois, diziam-me os componentes do grupo

(entre eles um médico): 'Ela está radicalmente curada... Desapareceu com

pletamente o cáncer'.

Cerca de vinte dias depois, quando me encontré! com seu marido, ele me disse: 'Aceito a vontade de Deus. Ela foi sepultada ontem'.

Julgo que se equiparem a este tipo de ilusao os casos em que todo um ¡menso auditorio se poe, debaixo de insinuante exortacao de um co ordenador, a 'orar em línguas', num como explodir de algaravia. Nao é isto razoável. Creio tratarse, no caso, apenas de um fenómeno de psicología de massa" fob. cit., p. 25). Nao se podem negar os dons de cura e de glossolalia mencionados no Novo Testamento (cf. At 2, 4.6; 1Cor 12, 10; 14,2.30). Foram muito freqüentes no inicio do Cristianismo a fim de despertar a fé nos gentios (cf. 1Cor 14, 22), mas nao sao fenómenos generalizados em toda a historia da

Igreja. Com o decorrer do tempo, foram raneando; Santa Teresa de Ávila e

Sao Joao da Cruz no século XVI nao os mencionam. Em nossos dias o Es pirito Santo pode suscitar os mesmos dons onde e como Ihe apraza. Mas é preciso que os fiéis se acauteiem contra as ilusoes e os disturbios psíqui

cos. O próprio Sao Paulo já advertía os corintios: "Se numa assembléia da Igreja inteira todos falarem línguas, e se entrarem homens simples ou in fléis, nao dirijo que estáis loucos?" (1Cor 14, 23).

Diga-se ainda breve palavra sobre 325

38

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

5. OS CARISMAS

O carisma pode ser tido como um dom gratuito de Deus ordenado á edif¡cacao da común¡dade crista. O Concilio do Vaticano II menciona os carismas sem referir os aspectos extraordinarios dos mesmos; reconhece que sao "multiformes os carismas dos leigos, dos modestos aos mais eleva

dos, e os presbíteros devem descobri-los com senso de fé e incentivá-los com entusiasmo" (Presbyterorum Ordinis n? 9). Alguns carismas sao essenciais e imprescindíveis á estrutura da Igreja. Outros sao extraordinarios, conferidos a alguns de seus membros. Procuremos enumerar uns e outros. 5.1. Dons essenciais á vida da Igreja

Sao dons sem os quais a Igreja nao pode ría subsistir; nao poderia con tinuar a obra salvadora de Cristo na qualidade de "sacramento do mun do".

Desses dons essenciais, alguns sao dados globalmente a todos os fiéis, e outros sao concedidos especialmente a alguns individuos. 5.1.1. Dons concedidos globalmente a todos os fiéis

1) O senso da fé, sensus fidei; sao como que antenas para identificar e captar as verdades da fé; 2) o dom da grapa: participacao da vida trinitaria, común nao íntima com o próprio Deus;

3} o sacerdocio comum, pelo qual todos podem cultuar a Deus e oferecer-lhe as suas dádivas;

4) a funcao profética e regia, pela qual todo cristao pode anunciar Cristo (dom profético) e colaborar com Cristo na construcao do Reino de Deus (dom regio);

5) a caridade (ágape), o mais sublime dos carismas, como incute Sao

Paulo (1Cor 13,13).

Esses dons derivam-se do Batismo e da Crisma e. por isto, sao essen ciais a todos os fiéis. 326

RENOVACÁO CARISMATICA: QUE DIZER?

5.1.2. Carismas essenciais concedidos a alguns fiéis Em virtude de vocacSo especial, o Espirito Santo con fere, por vía sacramental, tres dons ou carismas também essenciais e indispensáveis á Igreja:

1) o Episcopado, que encerra a plenitude dos dons do Espirito em vista da santificarlo, para ser distribuidos gradualmente na Igreja;

2) o Presbiterato ou sacerdocio especifico, que é uma participacao

maior no carisma santificador dado em plenitude aos Bispos;

3) o Diaconato, participacao menor no carisma santificador. Esses tres carismas sao inerentes a uma consagracao definitiva de homens a servico do povo, para manter nele a santidade e os carismas essen ciais a todos os batizados.

4) Pode-se acrescentar o carisma da consagracao religiosa sob o trí plice voto de pobreza, castidade e obediencia, é sinal sublime de santidade e servico sob a acao do Senhor, que a Igreja sempre teve em privilegiada consideracao.

5.2. Carismas extraordinarios concedidos a alguns fiéis

Além dos carismas essenciais até aqui mencionados, o Espirito pode dar, e dá, esporádicamente a alguns membros da Igreja dons extraordina rios, que se destinam a edificar os fiéis e converter os infiéis. Eis os prin cipáis:

1) O dom dos milagres. É raramente concedido. Narra-se, porém, que o tiveram S. Antonio de Pádua, S. Joao Bosco, S. Bento de Núrsia... I ri el u ¡-se sob este título o carisma das curas físicas e o das curas espirituais (o dom de curar de vicios e más tendencias).

2) O dom das línguas e o da interpretacao das mesmas. é menciona do pelo Apostólo, que julga necessário haver a interpretacao das línguas extraordinarias para que a comunidade se possa edificar: "Aquele que fala em línguas, deve poder interpretá-las... Numa assembléia prefiro dizer cin co palavras com a minha inteligencia para instruir também os outros, a dizer dez mil palavras em línguas" (1Cor 14, 13.19). A glossolalia (como é

chamada técnicamente) parece ter gerado confusoes na comunidade de Corinto a tal ponto que Sao Paulo fez a seu respeito serias advertencias

(cf. 1Cor 14, 22s). 327

40

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

É de notar que já no sécuio IV Sao Joao Crisóstomo (+407) nao sabia explicar o que fosse tal carisma, pois caira em desuso. 3) Os dons de iluminacáo interior, de discernimento espiritual e de éxtase na oracao. Também podem ser tidos como raros se consideramos a sua exigua freqüéncia na vida dos Santos. Os dons extraordinarios estao na linha dos milagres. Serviam (e servem) mais para edificar e converter do que para a construpao cotidiana e ordinaria do Reino de Deus (com excecao do dom do discernimento). 6. CONCLUSÁO Acabamos de apresentar em poucas páginas o conteúdo do livro de D. Antonio Afonso de Miranda. Em suma, é favorável á Renovacao Carismática; precisamente para garantir a sua persistencia incólume na Igreja e evitar que se deteriore, o autor aponta tanto os frutos benéficos quanto os desvíos da Renovacao Carismática. Estes sao compreensi'veis, já que o ser humano vibra sob a acao da graca, mas nem sempre de maneira consentánea com o Espirito. A fim de impedir exageras e deturpacoes dos grupos de oracao, é claro que se requer, da parte dos pastores, urna assisténcia assídua e benévola, disposta a promover o que é bom, afastando o que seja falho ñas expressoes dos orantes.

Congratulamo-nos com D. Antonio A. de Miranda pelo valioso servico que, com o seu estudo, prestou á Renovacao Carismática e á Igreja. •

*

*

"O QUE ME IMPRESSIONOU EM JESÚS, É ESSE PROGRAMA DE

IR SEMPRE A FRENTE, DE TAL MODO QUE SE PODERIA DIZER

QUE O ELEMENTO ESTÁVEL DO CRISTIANISMO É O DE NUNCA PARAR". (Henri Bergson)

"CRISTO MOSTRA AO HOMEM UMA PERFEICAO IMPOSSlVEL DE SER ATINGIDA, MAS A QUAL ELE ASPIRA DO FUNDO DO SEU

CORAQÁO. É MOSTRADO AO HOMEM UM IDEAL, DO QUAL O HO

MEM PODERÁ SEMPRE MEDIR A DISTANCIA QUE O SEPARA. A

DOUTRINA DE CRISTO SE PARECE COM UM HOMEM QUE TRAZ UMA LANTERNA DIANTE DE SI NA PONTA DE UMA VARA MAIS

OU MENOS LONGA: A LUZ ESTA SEMPRE DIANTE DELE E LHE REVELA A TODO MOMENTO UM ESPACO NOVO QUE ELA ILUMI NA E QUE VAI CAMINHANDO COM ELE". (LeaoTolstoi) 328

Onde fica a

COMUNIDADE IDEAL?

Em sfntese: O presente artigo tem por centro urna página do escritor

luterano Dietrich Bonhoeffer, que morreu em 1944 num campo de concen-

tracao. Este autor faz ponderacoes inspiradas por fé profunda a respeito de comunidades cristas e, em particular, a respeito da Igreja. Embora o conceito luterano de Igreja nao se/a equivalente ao católico, o que está di to por Bonhoeffer é plenamente válido: a comunidade da Igreja é divinohumana; Deus vem aos homens mediante os homens. Quem sonha com

urna comunidade angelical ou destituida de criaturas frágeis, sujeitas ao pecado, ilude-se e foge do plano de Deus; vivera numa utopia, que Deus

nao qu'er. O autor insiste muito na necessidade de se dissiparem tais sonhos, em favor de urna adesao firme e fiel ao dom de Deus, que é a continuagao do misterio da Encarnacao ou do Deus velado pela face do homem.

■k

*

*

É normal que, ao ¡ngressar em alguma comunidade religiosa, todo

cristao deseje ver encamada a realizacao de seu ideal ou urna comunidade

perfeita. Na verdade, porém, toda comunidade existente na vida presente

ainda está a caminho da perfeicao; incluí muitos elementos de grande va lor ou pessoas altamente respeitáveis, mas compreende também membros marcados pelas limitacoes humanas e deficientes. Isto nao surpreende, da do que o próprio Apostólo Sao Paulo exclamava: "Realmente nao consi

go entender o que faco, pois nao pratico o que quero, mas faco o que de testo... 0 querer o bem está ao meu alcance, nao, porém, o praticá-lo.

Com efeito, nao faco o bem que eu quero, mas cometo o mal que nao quero" (Rm 7,15-19).

A fraqueza humana acompanha sempre a caminhada de todos neste mundo Daí a necessidade de que o cristao, ao mesmo tempo que susten

ta seu ideal e peleja para o atingir, esteja munido de fé viva, a fim de nao fugir da vía certa. Diz o mesmo Apostólo tres vezes: "O justo vive da fé (Rm 1,17; Gl 3, 11; Hb 10, 38, referindo-se sempre a Hab 2, 4). 329

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

A exgiéncia de fé, para quem ¡ngressa numa comunidade religiosa ou

nela vive,1 é proposta por autores católicos e também por Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano morto em campo de concentrac§o em 1944. Es te autor escreveu a respeito palavras lúcidas e fortes, que passamos a traduzir, cientes de que tal depoimento tem grande peso: "Querer mais do que aquilo que Cristo estabeleceu entre nos, nao é desejar uma'fraternidade crista; 6, antes, ir a procura de nao sei quais expe riencias comunitarias inéditas, que pensamos encontrar na Igreja, porque nao as encontramos albures; é introduzir na comunidade crista o turbulen

to fermento dos nossos desejos. É aquí que a fraternidade dos fiéis corre

os mais graves perigos. E isto, na maioria dos casos, desde os primeiros

días: a intoxicacao por dentro, provocada pela confusao entre fraternidade crista e um sonho de comunidade piedosa,... pela mistura de nostalgia co munitaria que todo homem religioso traz dentro de si, com a rea/idade de índole espiritual que a fraternidade em Cristo implica. Ora é da máxima importancia tomar consciéncia, desde o inicio, de que a fraternidade cris

ta nao é um ideal humano, mas urna realidade dada por Deus, e... de que esta realidade é de índole espiritual, e nao de índole psíquica."1 Sao incontáveis as comunidades cristas que pereceram por terem vivi do de urna ¡magem quimérica da Igreja. Porcerto, é inevitável que um cristao serio, ao entrar numa vida de comunidade, leve consigo um ideal preci so do que ela deve ser, e tente realizá-lo. Mas é graca de Deus que esse tipo de sonhos se/a sempe dissipado. Para que Deus nos possa dar a conhecer a comunidade crista auténtica, é preciso mesmo que sejamos decepciona dos, decepcionados pelos outros e decepcionados por nos mesmos. Em sua graca, Deus nao nos permite viver, aínda que por poucas semanas apenas, na Igreja dos nossos sonhos, nessa atmosfera de experiencias benfazejas e

de exa/tacao piedosa, que nos embriaga. Pois Deus nao é um Deus de emocoes sentimentais, mas um Deus de verdade. Eisporque somente a comu nidade que nao receia a decepgao que inevitavelmente ela experimentará to mando consciéncia de todas as suas taras, poderá comegar a ser tal como Deus a quer e afcangar pela fé a promessa que Ihe é feita. Mais vale para o conjunto dos fiéis, e para o fiel em particular, que essa decepgao se realize quanto antes. Querer a todo prego evité-la e pretender agarrarse a urna

1 Essa comunidade pode ser a própria Igreja como tal; pode também ser urna instituigao de vida religiosa existente dentro da Igreja.

2 O autor aqui alude á distingao, feita por Sao Paulo, entre o homem psí quico (psychikós) e o espiritual (pneumatikós);c¿ 1Cor2,14s. Psíquico é aquele que se orienta únicamente por principios e normas de índole natu

ral, racional, meramente humana. Ao contrario, pneumatikós é aquele que tem em si o Espirito fpneumal de Deus e é por Ele orientado segundo cri terios de fé e de índole transcendental. 330

COMUNIDADE IDEAL?

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imagem quimérica da Igreja, destinada, sem dúvida, a se 'desinchar', é construir sobre areia e condenarse, cedo ou tarde, a desfalecer. Devemos persuadir-nos bem de que, transferidos para dentro da comunidade crista, nossos sonhos de comunhao humana, quaisquer que sejam, sao um perigo público e devem ser dissipados sob pena de morte para a Igreja. Aquele que prefere o seu sonho á realidade, tornase um sabotador da comunidade, aínda que suas intencoes se/'am, segundo efe, perfeitamente respeitáveis e sinceras.

Deus odeia o sonho piedoso, pois este faz de nos seres duros e pre tensiosos. Leva-nos a exigir o impossfvel de Deus, dos outros e de nos mesmos. Em nome do nosso sonho, colocamos condicoes á Igreja e erguemonos em juízes de nossos irmaos e do próprío Deus. Nossa presenca tornase para todos como que urna censura permanente. Assemelhamo-nos a pessoas que pensam que poderao finalmente fundar urna auténtica comunida

de crista e exigem que cada qual compartilhe a imagem que elas concebem. E, quando as coisas nao vao como quiséramos, ameacamos recusar nossa colaboracao, prestes a proclamar que a Igreja desmorona quando ve mos nosso sonho dissiparse. Comecamos a acusar nossos irmaos; depois acusamos a Deus e, a seguir, em desespero de causa, é contra nos mesmos que se volta a nossa amargura. As coisas sao muito diferentes quando nos compreendemos que Deus mesmo já colocou o único fundamento sobre o qual se pode estabelecer a nossa comunidade e que, antes de qualquer ini ciativa da nossa parte, Ele nos uniu num só corpo ao conjunto dos fiéis por Jesús Cristo; pois entao aceitamos unir-nos a e/es, já nao com as nossas exigencias, mas com coracoes gratos e dispostos a receber" (De la Vie Communautaire, pp. 21-23, extraído do livro de Fierre Miquel: La Voie Monastique. Bellefontaine 1986, pp. 53-55).

COMENTARIO 1) As palavras do autor lembram, em última análise, que a Igreja nao é urna sociedade meramente humana, mas um sacramento, um dom de Deus revestido de humanidade. Daí a necessidade de nao se julgar a Igreja segundo criterios meramente naturais. Assim como o Filho de Deus, em sua Encarnacao, realizou obras admiráveis, mas também escandalizou, porque nem sempre correspondía á expectativa dos homens piedosos de seu tempo (cf. Me 2, 15-3,6; Mt 27,42s; Le 7,22s), também a Igreja tem em seu favor facanhas em prol da evangelizado e da cultura, mas carrega os traeos da realidade humana que a integra. Bonhoeffer admoesta: "Que rer mais do que aquilo que o Cristo estabaleceu entre nos nao é desejar urna fraternidade crista, mas ir á procura de..."

Os cristaos sempre foram tentados a imaginar urna Igreja de Santos apenas, com exclusao dos pecadores; tal foi o caso de Tertuliano (+220 331

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

aproximadamente), dos donatistas (séculos IV-V) no Norte da África, e de outros mu itos, que acabaram caindo na heresia e no cisma. S. Agostinho Ihes lembrava a parábola do joio e do trigo (cf. Mt 13, 24-30. 3643): os servidores do patrio do campo que re m arrancar o joio logo que aparece no campo, mas o patrio Ihes responde que nao o facam; o joio

deve créscer juntamente com o trigo até o fim dos tempos; somente entao serao separados o joio e o trigo; a presenca do joio pode ser salutar, de modo que querer arrancá-lo prematuramente pode implicar daño para o trigo...

2) Por isto Bonhoeffer julga que é oportuno que o Senhor se encarregue de dissipar qualquer ilusao subjetiva dos seus fiéis e os eduque na fé para que possam apreender melhor o dom de Deus. "Deus nao é um Deus de emocoes sentimentais, mas um Deus de verdade". Sim; a fé nem sempre coincide com os sentimentos espontáneos e ¡maturos da pessoa. Os autores místicos falam freqüentemente da noite dos sentidos e da noite da fé; felizes aqueles que sabem atravessar a noite, certos de que após a noite vém o dia e a plena luz!

3) Quem nao aceita o dom de Deus encarnado, mas o quer "a seu modo subjetivo", pode tornar-se um "sabotador" da comunidade, urna pessoa permanentemente crítica, infeliz e portadora de mal-estar para as outras. Chega a criticar o próprio Deus e em lugar algum encontra repouso. Ao contrario, quem, movido pela fé, diz Sim ao dom de Deus, sabe es

tar unido a todos os fiéis no Corpo de Cristo prolongado, onde certamente o Senhor I he faz chegar as suas grapas. Para tanto, requer-se também humildade,... humildade que nao é acovardamento nem capitulapao, masé a única atitude digna da criatura diante da grandeza de Deus, que a quer

enriquecer.

4) O que estas reflexoes sugerem, nao é um conformismo mediocre, "achatado", mas é o reconhecimento do designio de Deus, que quer vir a nos de maneira soberana e ser reconhecido pela fé. Esta visao de fé tran quila é plenamente compatível com a demanda da utopia que o Sermlo da Montanha (Mt 5-7) recomenda aos discípulos de Cristo. Estes sao incita dos a procurar ser perfeitos como o Pai celeste é perfeito (cf. Mt 5, 48); incitados a se ultrapassar constantemente na procurada santidade, devem saber oportunamente dar a face esquerda a quem os esbofeteia na direita, a veste a quem deseje levar a túnica, caminhar duas milhas a quem os obrigar a andar urna milha (cf. Mt 5,39-42). Isto quer dizer que os verdadeiros discípulos de Cristo nunca se dao por satisfeitos na procura da perfeicao pessoal ou na obra de sua santif¡cacao, mas vivem da fé, sem perceber o fruto de seus esforcos, crendo que a fidelidade Ihes valere a coroa da vida eterna, prometida pelo Senhor aos servidores bons e perseverantes. Ver dois textos famosos do pé da pág. 328 deste fascículo. Estévao Bettencourt O.S.B. 332

LIVROS EM ESTANTE

Deus e o Misterio do Tempo, por Henrí Boulad. TraducSo de Bar bara Theoto Lamben. - Ed. Loyota, Sao Pauto 1992, 210x145mm, 157 pp.

0 autor é um /esu/'ta egipcio, que estudou na Franca, no Líbano e nos Estados Unidos. Trabalhou em favelas, entre leprosos e doentes, além

de participar de profetos educacionais pioneiros. O presente iivro origina se de palestras proferidas pelo autor, que merece o cognome de "Profeta do Otimismo". Escreve sobre o tempo, utilizando dados científicos (como os da teo ría da relatividade) e propondo reflexoes de ordem filosófica e teológica assaz profundas e valiosas. No Sumario do Iivro lemos os títulos de seus sete capítulos: "Existem muitos tempos diferentes, A profundidade do presente, A eternidade no coracao do tempo, A Sabedoría do Tempo, 0 passado continua, A Redencao do Tempo, Tudo é Graca". Boulad narra varios fatos de sua experiencia e ilustra seus dizeres com lendas e proverbios do Oriente, que dio sabor muito agradável a urna temática em si ardua e árida. Em síntese, o autor, que em última análise fala como cristao, quer chamar a atencao para o valor do tempo, apregóando urna vivencia inten sa e consciente do mesmo. Isto nao implica em cair em estafa; muito ao contrario, o autor sabe relatívizar a corrida dos homens ao encalco de bens transitorios, e esmerase por mostrar como o tempo está prenhe de eterni dade, de tal modo que é preciso preenché-lo com valores correspondentes ou que persistam por todo o sempre. — O tempo que alguém possa ter mal vivido até boje, é posto sob a luz da graca redentora, de sorte a suscitar no leitor fiel um olhar de confianca e otimismo sobre o futuro. Digno espécimen do Iivro é o trecho que se lé ás pp. 19s:

"Existe urna saudapao em árabe: 'Allah yetavwvel omrak. Que Deus prolongue sua vida! 'Contudo eu nao Ihes desejaria urna longa longa vida 333

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

se ¡sso significare apenas urna vida prolongada; eu Ihes desojaría urna vida,

o mais possível plena de satisfago interior. Alguns momentos vividos in tensamente valem mais do que cem anos inúteis e desperd¡9ados. Nao é a duracao, mas a qualidade que dá significado á vida. Nao me interessa saber quantos anos vocé tem, porque conheco al guns anciaos que sao tío argutos quanto jovens de vinte anos, e jovens de

vinte anos que agem como se tivessem oitenta anos, é o ánimo que deter mina a nossa idade.

Gostaria de acrescentar alguns pensamentos que anotei no Líbano

em 1962:

'Nao é tempo que nos falta, falta-nos ánimo'. Nunca afirme nao ter tempo. Em geral, sao as pessoas mais ocupadas que arranjam tempo para outras tarefas, e as que tém mais tempo de lazer que se recusara, quando Ihes pedimos que facam alguma coisa. Nao nos falta tempo, falta-nos ánimo. 'O tempo verdadeiro nao é o do relógio ou do calendario, mas o tempo da consciéncia'. Podemos ter quatro meses de ferias que valham quarenta anos porque proporcionam experiencias tao ricas e intensas que, em um verao, vivemos toda urna vida. Para outras pessoas, esses quatro

meses valem menos de quatro horas, porque foram um tempo vazio, de mera ausencia. O tempo verdadeiro nao é o do relógio ou do calendario, mas o tempo da consciéncia". O livro merece grande apeco, pois, inegavelmente, lé-lo com vagar e atencao "relaxa" a mente e reergue os ánimos.

A guisa de complemento, seja aqui transcrita outra interessante seccao do livro: "Certo dia um homem de negocios dirigíase ao trabalho, quando viu um beduino sentado debaixo de urna palmeira da cidade, descansan do e sonhando, como muita gente faz no Egito. Parou e perguntou: - Que faz ai? Respondeu o beduino: - Como vé, estou sonhando, descansando... - Sabe, poderla ganhar dinheiro se trabalhasse.

- E que faria com o dinheiro? - Se ganhasse dinheiro, podería abrir um escritorio. -Edaf? 334

LIVROS EM ESTANTE

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— Daí poderia ganhar mais dinheiro e abrir urna fábrica. -Edaí? — Ai poderia ter urna bela casa de campo,

-ótimol Edaí?

— Ainda teria dinheiro para guardar no Banco.

-Sim. Edaí? — Aipoderia sentar-se e descansar. — Mas é isso que estou fazendo neste momento".

(Henri Boulad, Deus e o Misterio do Tempo. Ed. Loyola 1992, p. 65). Os Sacramentos da Fé, por Cario Rocchetta. — Ed. Paulinas, Sao Paulo 1991, 135x21 Omm, 453 pp.

O autor centra o seu livroem torno do conceito de "maravifhas de Deus", conceito que na Biblia designa os fettos salvíficos do Senhor desde o Antigo Testamento. Os sacramentos sao apresentados como ritos que atualizam essas "maravilhas de Deus" em favor do seu povo até ho/e. Após o Concilio de Trento (1545-1563), os teólogos se preocuparam muito com a apologética, para responder aos protestantes. No sáculo XX, porém, o interesse da Teología volta-se mais para a riqueza doutrinaría da S. Escri tura, da Tradicao patrística e da Liturgia; poe em evidencia o fio condutor da historia da salvacao: Deus fala aos homens e Ihes comunica os seus dons mediante sinais sensiveis, que tém seu prototipo no éxodo do Egito (1240 a.C); a primeira Páscoa é penhor da Páscoa na plenitude dos tempos;por esta última o próprío Deus se dé á humanidade como novo Adao, que con tinua sua obra através dos tempos mediante a Igreja e os sete sacramentos, que o Espirito Santo vivifica. Ele que é o Dom por excelencia. 0 livro vem a ser urna obra interdisciplinar, em que a Escritura, a Teo logía Sistemática e a Liturgia se entretacam para oferecer ao leitor urna

notável e proficua sintese dos sacramentos em geral e de cada um dos sete sacramentos em particular.

De Olhos Abortos para a Realidade, volume III, por Freí Paulo Avelino de Assis. Centro Bíblico Católico, Caixa Postal 50500, CEP 03095-970, Sao Paulo (SP), 225x 160 mm, 64 pp. Este livro vem a ser um caloroso apelo missíonário dirigido aos fiéis católicos. Em trinta breves capítulos, destinados a reunioes ñas paróquias e comunidades religiosas, o autor apresenta dados estatisticos, textos dos Papas e sabias ponderacdes que evidenciam a urgencia de novo empenho

pela transmissao da Boa-Nova: "De cada tres habitantes do mundo, dois 335

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 374/1993

ainda nao conhecem Cristo" (Joao Paulo II). Observa o mesmo Pontífice: "Povos nao cristaos crescem em populacao. E assim aumenta continua mente o número de pessoas que ignoram... que Cristo é o Redentor" (En

cíclica Redemptoris Missio, n? 40). Acrescenta Frei Paulo: "Se cada ano a Igreja conseguir converter 2.000.000 (o que agora ainda nao está conseguindo) em trínta anos conseguirá converter 60.000.000. Nesses trinta anos terao nascido mais de 1.800.000 novos nao cristaos agnósticos, des

cremes, ateus, nao católicos" (p. 20). Estes dados despertam vivamente a consciéncia católica para o seu dever expresso porJesús varias vezes, especi

almente no seu ato de despedida: "Ensinai a todos os povos" (Mt28, 19); "Anunciai o Evangelho a toda criatura" (Me 16,15). Para que isto possa acontecer, o autor explana o papel das escolas católicas, dos Seminarios, dos meios de comunicacao social... Com referencia és escolas católicas cha ma a atencao para o enorme investimento de dinheiro que exigem e o exi guo aproveitamento desse meio para formar bons católicos, zelosos arautos da mensagem; cf. pp. 28s. "Cristo detesta os momos, que nao querem nada com nada (Ap 3, 16)" (p. 44).

Frei Paulo nao esquece o valor decisivo da oracao..., oracao missionária. Ha/a, pois, sempre o Momento da Oracao e... a Oracao do Momento (pp. 48s). Pois, sem a graca de Deus, sao inúteis todos os esforcos de mensageiros e catequistas.

0 livro será valioso instrumento para fomentar grupos de ref/exao e promover a Nova Evangelizacao, muito apregoada por Joao Paulo II. 0 Centro Bíblico Catequético de Sao Paulo publica outros livros, oportunos para a preparacao da Crisma, a Catequese em geral, a Liturgia, a leitura da Biblia... Serio Citéis aos nossos catequistas e ao povo de Deus na sua totalidade. E.B.

POR QUE NAO.. . ? Por que nao sou protestante? Por que nSo sou espirita? Por que nao

sou ateu? Porque nSo sou macom? Por que nao sou Rosa-Cruz? Porque sou

católico? 0 fenómeno religioso: sim ou nao? Jesús, Deus e Homem? A

Ressurreicao de Jesús: FiccSo ou realidade? Os Milagres de Jesús: Historia ou mito? Jesús sabia que era Deus? Os novos movimentos religiosos. Por que nao sou Testemunha de Jeová? Por que nao sou Johrei?... Seicho-noié? 0 Estado do Vaticano.

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O MOSTEIRO DE SAO BENTO

DO RIO DE JANEIRO 1590- 1990

Em Comemorapao do IV Centenario de sua Fundagao 440

páginas (30 x 23) de uma obra ricamente policromada Texto histórico documentado por D. Mateus Rocha OSB

É a crónica corrida e compacta da construclo do Mosteiro, da sua igreja e das obras de arte nele comidas. Resume as mais diversas contribuicóes que, durante sáculos, formaram o patrimonio da Ordem Beneditina na provmcia do Rio de Janeiro. Palavras do renomado arquiteto Lucio Costa:

"Esse mosteiro — este monumento - é, sem dúvida, a áncora da cidade do Rio de Janeiro. — Em boa hora o intelectual e fotógrafo Humber

to Moraes Franceschi que já nos deu a obra-prima "O Ofi'cio da Prata", resolveu fazer, com o pleno apoio do engenheiro-Abade D. Inácio Barbosa Accioly (falecido a 26 de maio de 1992) — impecável dono da esa — este definitivo inventario visual, velho sonrio de D. Clemente da Silva Nigra." De D. Abade Inácio Barbosa Accioly:

"Hoje o Mosteiro é realmente a áncora da cidade do Rio de Janeiro.

É igualmente foco de luz ardente que, sem qualquer ostentacáo ilumina to

dos aqueles que aqui vivem, que aqui vém louvar o Senhor, ou que aqui encontram alimento para a chama misteriosa de sua fé — pois o Mosteiro nao é um simples monumento ou um museu, mas uma casa viva a irradiar

a presenca de Deus." Oa mesma obra, álbum com 110 págs. (30 x 23) somante sobra a IGREJA OE SAO BENTO. em S volumes seprados ñas linguas portuguesa, espanhola. francesa. Inglesa a alema.

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