Projeto PERGUNTE E
RESPONDEREMOS ON-LINE
Apostolado Veritatis Spiendor com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)
APRESENTAgÁO
DA EDipÁO ON-LINE Diz Sao
Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da nossa esperanza a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15).
Esta
necessidade
de
darmos
conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e
V*..
religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante aprofundamento do nosso estudo.
um
Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questdes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de
i_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. dissipem e a vivencia católica se fortaleca
Uj" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003. Pe. Esteváo Bettencourt, OSB
NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos
convenio com d.
Esteváo
Bettencourt e
passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo. A
d.
Esteváo
Bettencourt
agradecemos
a
confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.
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Extinto o Celibato, haveria mais Padres?
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PERGUNTE E RESPONDEREMOS
ABRIL 1993
Publicacáb mensal
N9 371
SUMARIO
Diretor-Responsável Estéváo Bettencourt QSB Autor e Redator de toda a materia publicada neste periódico
Páscoa: a Vitoria da Vida
145
Monumento da Fé: O Catecismo da Igreja Católica
146
Mal-entendido famoso: Encerrado o caso Galileu
160
Diretor-Administrador:
D. Hildebrando P. Martins OSB
Administracao e distribuicao: Edicoes "Lumen Christi"
Rúa Dom Gerardo. 40 - 5? andar - sala 501 Tel.: (021) 291-7122 Fax {021) 263-5679
Para correspondencia: Edicoes "Lumen Christi" Caixa Postal 2666 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ Impfcssao e Encadernafao
Fatos Candentes: A Ordenacao de mulheres na Inglaterra
171
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Questao discutida: O riso ñas tradicoes antigás e medievais
18;
Questao atual: Extinto o Celibato, haveria •MARQUESSARAIVA "
mais Padres?
19i|
GRÁFICOS E EDITORES S.A.
Tels.: (021) 2733498 - 273-9447
NO PRÓXIMO NUMERO: "Se¡, mas nao me conformo". - "Aborto. Guia para Tomar Deci-
sóes Éticas". - Stephen Hawking: "Deus, Euea Ciencia". - Os Comerciáis da TV. - O Domingo: por qué? - A Arte Mahikari. COM APROVAgAO ECLESIÁSTICA ASSINATURA ANUAL <12 númaroi) da P.R.: Cr$ 200.000,00 - n? svul» cu atrasadoCr$ 20.000.00 O pagamento poderá ser á sua escolha:
1. Enviar EM CARTA cheque nominal ao Mosteiro de Sao Bento. cruzado anotando no verso: "VÁLIDO SOMENTE PARA DEPÓSITO na coma do favorecido" e onde consta "Cod. da Ag. e o N? da C/C " anotar- 0229 02011469-5.
2. Depósito no BANCO DO BRASIL, ag. 0435-9 Rio C/C 0031-304-1 do Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, enviando a seguir xerox da guia de depósito para nosso controle.
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BIBLIOTECA
PÁSCOA: A VITORIA DA VIDA O mes de abril é marcado pela solenidade de Páscoa. — Pás-
coa, em poucas palavras, é a Vitoria da Vida sobre a morte, do no vo Adao sobre o tentador e o pecado. Os cristaos sabem que tal
acontecimento nao é meramente pretérito, mas se perpetua através dos séculos mediante os sacramentos do Batismo e da Eucaris tía. Por isto os fiéis trazem em si um principio: da vida nova de Cristo, já que foram enxertados no Senhor Jesús pelo Batismo. A conviccao desta profunda verdade levou um poeta — Jean Harang - a escrever os versos que aqui se seguem em traducao portugue
sa (de M.M. e M.C.), versos cheios do otimismo que sonriente a Boa-Nova de Cristo pode suscitar:
POIS EU AMO A VIDA Senhor, que nao digam um dia que eu "passei desta para melhor", que nao digam que eu entrei na vida... Em Ti, Senhor. eu estou vivo desde á eternidade, em Ti eu existo, e existirei.
Que nao digam que eu adormecí em Ti
justamente no momento em que abrirei intensamente os olhos, estes olhos que me fazem ver-Te,
segurando minha máo com ternura*. Que nao digam que eu estou, enfim, no céu,
como se eu já nao estivesse em Ti, esperando sonriente ver-Te.
Que nao digam que a vida é somente urna passagem, como se Tu nao estivesses já aqui, ressuscitando-me a todo instante em Ti.
Eu amo a vida como a menina dos meus olhos; é nela que Te vejo através do véu do amor que no meu último dia se rasgará. Amo a vida que sei ser eterna, como Teu amor por mim, como meu amor por Ti. Possam os dizeres do poeta levantar os ánimos dos fiéis, pe
regrinos pelas estradas da vida, sobretudo os dos enfermos e atri bulados! "Nao temáis, diz Jesús, eu venci..." (Jo 16, 33). E.B. 145
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" ANO XXXIV - N? 371 - Abril de 1993 Monumento da Fé:
O CATECISMO DA
IGREJA CATÓLICA
Em síntese: O "Catecismo da Igreja Católica", promulgado em 1992 pelo Papa Joao Paulo II, vem a ser o referencia! para se ensinar a doutrina católica no mundo inteiro; propondo em ter mos claros e simples a mensagem da fé, dissipa as dúvidas que úl
timamente tém sido levantadas a respeito de pontos do Credo; desta forma o povo de Deus terá como se orientar frente a teorías que hofe o sacodem.
O texto foi elaborado por urna Comissao de Cardeais e Bis-
pos no decorrer de seis anos de estudo, passando por redacoes
diversas resultantes de consultas feitas a peritos e a todo o epis
copado católico. Consta de 2863 parágrafos, distribuidos em quatro Partes: 1) A Fé Professada (Credo); 2) A Fé Celebrada
(Sacramentos e Liturgia); 3) A Fé Vivenciada (Moral); 4) A Fé feita Oracao (Oracao em geral e Pai-Nosso).
A obra destina-se a todos os fiéis da Igreja, podendo ser lida com proveito por clérigos e leigos. Os Catecismos regionais deverao levé-la em consideracao de modo a garantir a homogeneidade do ensino da fé católica no mundo inteiro. Como se vé, a obra veto preencher urna /acuna muito grave, dada urna certa desorientacao em materia catequética hofe existente. Alias, já em outras épocas a Igreja sentiu a necessidade de publicar um
Catecismo oficial: tal foi o caso do Catecismo Trídentino (1566)
eodo Catecismo de Pió X(1912). * *
146
*
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
Foi lancado pelo Papa Jólo Paulo II, aos 7-8/12/1992, o "Catecismo da Igreja Católica", destinado a servir de padrao a
qualquer Catecismo regional. Os fiéis tém assim um referencial seguro para dirimir dúvidas relativas a pontos de fé hoje em dia controvertidos. Nao restará motivo para hesitar diante de teorías propostas por autores contemporáneos, desejosos de traduzir a
fé numa linguagem moderna, mas nem sempre bem sucedidos.
Examinaremos as características de tal obra em geral. Após o qué, passa remos á considerapao de ce ríos temas de relevo nela abordados.1 1.TRACOSGERAIS Antes do mais, devemos notar que nao se trata de um Cate cismo no sentido dé livro didático para criancas, mas antes temos em maos um compendio da fé, como observa o próprio S. Padre na Constituicao Apostólica Fidei Depositum (de 11/10/92), que apresenta a obra; esta é "urna exposicao da fé da Igreja e da dou trina católica, atestada ou esclarecida pela S. Escritura, pela Tradicao Apostólica e o magisterio da'lgreja" (ibidem n° 4). 1.1. Dados históricos Percorrendo os antecedentes de tal obra, verificamos que a catequese ou a transmissao sistemática da doutrina da fé sempre foi praticada pela Igreja desde os seus primordios, consoante o mandamento do Senhor Jesús em Mt 28,18-20. A transmissao se
fazia, a principio, por via meramente oral. Aos poucos, porém, foi-se sentindo a necessidade de redigir por escrito algumas sinte ses da pregacao, que facilitassem a memoria dos ouvintes. Assim
1 Dado que estamos escrevendo antes da pub/icacao do texto
portugués do Catecismo, valer-nos-emos da edicao francesa (que é a oficial), traduzindo-a para o portugués. — O francés foi escola do por motivos um tanto aleatorios, dizem os comentaristas: todos na Comissao de Redacao falavam, mais ou menos bem o francés, ainda que só houvesse nela um participante francés
(Mons. Jean Honoré, Arcebispo de Tours, Franca). 147
4
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
surgiram os Evangelhos canónicos, que sao o eco da pregacao oral
dos Apostólos.
Houve também recurso ás ¡magens, que, representando ce nas da historia sagrada, se tornavam a Biblia pauperum ou a Bi blia dos mais simples ou dos iletrados.
Na Idade Media, S. Antonio de Pádua (t 1231) e S. Bernardino de Sena (t 1444) se distinguiram pela sua obra catequética. No sáculo XVI as controversias religiosas suscitadas pelo
protestantismo levaram a Igreja a publicar um catecismo oficial
dito "Catecismo Tridentino" ou do Concilio de Trento (editado
em 1566), que até nossos dias tem sido referencial para Catecis mos regionais.
No inicio do sáculo XX o racionalismo vigente fez que o Papa S. Pió X se interessasse pela redacao de novo compendio da fé em linguagem da época, visando aos problemas do seu tempo:
em 1912 publicou o Catecismo de Pió X.
Finalmente, após a segunda guerra mundial (1939-45) a fé
foi sacudida por teorías diversas, que deixaram confusas as men tes de muitos fiéis. Por isto, por ocasíao do Sínodo Geral dos Bispos de 1985, vinte anos após o Concilio do Vaticano II, os Padres Sinodais pediram ao S. Padre Joao Paulo II que mandasse redígír um Catecismo ou Compendio da Fé Católica que respondesse ás interrogares do povo de Deus e dirimisse as dúvidas lancadas so bre os fiéis. Assím se manifestaram os Bispos Sínodaís reunidos em Roma no ano de 1985:
"Deseja-se... que seja redigido um Catecismo de toda a Doutrina Católica tanto em materia de fé como em Moral; servirá de referencial... A apresentacao deve ser tal que seja bíblica e litúr gica, ofereca urna doutrina íntegra e... adaptada á vida atua/dos cristSos".
Em conseqüéncía, o Papa nomeou urna Comissao de Car-
deais, presidida pelo Cardeal Josef Ratzinger, a quem confiou a
tarefa de examinar (fosse para aprovar, fosse para emendar) o texto que devia ser elaborado por outra Comissao de cinco ou 148
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
oito redatores, escolhidos pelo Cardeal ñatzinger dentre os Bispos devotados á Pastoral.
Os redatores elaboraram dois esquemas; depois, um Anteprojeto, submetido a quarenta peritos, o Projeto e o Projeto Revi sado. Este foi enviado a todo o episcopado em outubro de 1989 a título de consulta; em conseqüéncia, foram apresentadas 24.000 propostas de emenda á Comissao Redatora, propostas que foram classif¡cadas e analisadas mediante computador; 90% do episcopa do havia-se manifestado favorável ao texto, sendo que a Parte re lativa á Moral era a mais sujeita a sugestoes de emenda. Levadas
em conta as propostas do episcopado, elaborou-se um texto pré-
definitivo; a seguir, urna outra versao também pré-definitiva; por último, estava pronto o texto definitivo, que as Comissoes aprovaram unánimemente aos 14/02/1992. Finalmente o texto foi en tregue ap Santo Padre, que desejou aínda alguns retoques e o aprovou definitivamente aos 26/06/1992. 1.2. O conteúdo O texto oficial, que é o francés, estende-se por 650 páginas,
com 2863 parágrafos, 3.000 citacoes da Biblia, dos Padres da Igreja e dos Concilios (1.000 referencias ao Concflio do Vaticano II) e 68 citacoes de dizeres de Santos e Santas (S. Francisco de Assis, S. Joao Maria Vianney, S. Teresinha de Lisieux, S. Rosa
de Lima...).
A obra compreende quatro Partes:
DA Profissio de Fé (o Credo): 39% do livro; 2) A Celebracao da Fé (Sacramentos e Liturgia): 23% do livro; 3) A Vivencia da Fé (Moral): 27% do livro; 4) A Fé feita Oracao (Oracao em geral e Pai-Nosso): 11% do livro.
Estas quatro Partes corresponden! aos passos dados na antigüidade para instruir os catecúmenos: havia a Traditio Symboli (a entrega do Símbolo de Fé ou do Credo), a Catequese do De cálogo (Moral, a transmissao do Pai-Nosso e a mistagogia (inicia-
cao) nos Sacramentos. Tais eram as etapas da Iniciacao Crista nos séculos IV/V.
149
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
A ordem dessas quatro Partes tem seu significado ou mensagem: após o Credo vem nao a Moral, mas os Sacramentos, pois a
Etica crista nao é senao urna expressao da fé professada e da gra-
9a recebida nos sacramentos; é urna Moralidade sacramental.
Essas quatro Partes se dispSem em dois pares: Fé e Sacra
mentos ( o que Deus fez por nos) e Moral e Oracao (o que devemos fazer em resposta — viver e orar). Como dito, aproximada mente 2/3 do Catecismo ou 62% correspondem a Fé e Sacramen tos, e 1/3 aproximadamente (38%) correspondem á resposta do
homem. Há, pois, urna tónica sobre a obra de Deus; ao Senhor
compete o comecar e o levar a termo a obra da nossa salvacao; afirma-se assim o primado da graca, em antftese a qualquer posicao pelagiana.
A linguagem dessa obra é muito significativa e de fácil compreensao. Argumenta sólidamente sem cair na erudiclo reservada
a poucos. O povo de Deus pode regozijar-se profundamente por dispor atualmente deste Compendio de Fé, referencial precioso para dirimir dúvidas. Quem deseja ir diretamente a determinado assunto, tem dois grandes índices fináis: um de citacoes (da S. Es critura, dos Símbojos de Fé, dos Concilios Ecuménicos, dos Con cilios e Sfnodos regionais, dos documentos pontificios, dos docu mentos da Igreja, do Direito Candnico, da Liturgia, dos escritores eclesiásticos); o outro índice é o de temas. Os dois perfazem um
total de cem páginas na edicto francesa.
Cada artigo da obra, co/npreendendo urna dezena de páginas aproximadamente, tem no seu final um resumo dos principáis pontos explanados.
O Catecismo nada traz de novo (nem o podia trazer) em ma teria essencial de fé e de Moral, mas expSe as clássicas verdades e
normas, aplicándolas ás realidades de hoje.
Ñas páginas subseqüentes poremos em relevo a posicao assu-
mida pelo Catecismo, fiel ás fontesda fé, frente a questionamentos que perturbam os fiéis. Infelizmente a imprensa deturpou o conteúdo desse Compendio, fixando-se únicamente sobre aspec tos de Moral para ridicularizá-los. 150
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
2. A RESPOSTA AS DÚVIDAS Examinaremos dez assuntos de ¡nteresse candente. 2.1. O Ser Humano
De acordó com toda a Tradíelo, o Catecismo ensina que o homem consta de corpo (material) e alma (espiritual); sao realida des distintas uma da outra, que se unem entre si para formar o ser uno que é o homem.
"A pessoa humana, criada á imagem de Deus, é um ser cor
poral e espiritual" (§ 362).
"Nao raro o termo alma designa na Sagrada Escritura a vida humana ou toda a pessoa humana. Mas designa também o que há de mais íntimo no homem e de mais valioso, designa aquilo por que o homem é mais particularmente imagem de Deus: 'alma' sig nifica o principio espiritual no homem" (§ 363). "A Igreja ensina que cada alma espiritual é ¡mediatamente criada por Deus - nao é 'produzida' pelos pais -; Ela ensina tam bém que a alma é ¡mortal; nao perece quando se separa do corpo na morte, e se unirá de novo ao corpo por ocasiao da ressurreicáo final" {§ 366). A distincao de corpo e alma aqui professada nada tem que ver com dualismo. Este implica antagonismo ontológico entre dois elementos (um sería por si bom, o outro por si mau); isto
nao é cristab. Para escapar do dualismo, nao há necessidade de re correr ao monismo; entre dualismo e monismo existe a dualidade, que é a distincSo de dois elementos entre si, sem implicar antago nismo; tal é o caso de corpo e alma.
2.2. O Pecado Original O texto afirma a elevacao dos primeiros pais á justica origi nal ou a um estado de riqueza espiritual, que devia ser confirma do pela livre aceitacao do homem. Submetido a uma prava (sim bólicamente expressa pela proibicao de comer de uma fruta), o 1S1
8
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
homem disse Nao ao dom de Deus. Conseqüentemente perdeu os dons origináis e os seus descendentes nascem privados de tais dons, sentindo em si as conseqüéncias do pecado (a desordem das paixSes, o sofrimento e a morte como arranco doloroso). — Eis os textos do Catecismo: "O homem nao sonriente foi criado bom, mas foi constitui do em amizade com o seu Criador e harmonía consigo mesmo e com as criaturas que o cercavam..." (§ 374).
"A Igreja, interpretando de modo auténtico o simbolismo da linguagem bíblica á luz do Novo Testamento e da Tradicao, ensina que nossos primeiros país Adao e Eva foram constituidos num estado de santidade e justica original. Esta grapa da santidade original era urna 'participacao da vida divina' " (§ 375). "Pela irradiacao dessa grapa, todas as dimensoes da vida do
homem foram reconfortadas. Enquanto permanecía na intimidade com Deus, o homem nao devia morrer (cf. Gn 2,17; 3,19) nem
sofrer (cf. Gn 3,16). A harmonía íntima da pessoa humana, a har monía entre o homem e a mulher (cf. Gn 2,25), enfim a harmo nía entre o primeiro casal e todas as criaturas constituiam o esta
do chamado 'justica original'" (§ 376).
"O dominio do mundo que Deus concederá ao homem des de o inicio, realizava-se, antes do mais, no homem mesmo como autodominio. O homem era integro e ordenado em todo o seu
ser, porque livre da tríplice concupiscencia (cf. Uo 2,16) que o sujeita aos prazeres dos sentidos, á cobica dos bens terrestres e á autoafirmacao contraria aos imperativos da razio" (§ 377). "O sinal da familiaridade com Deus,, ó que. Deus o colocou
no jardim (cf. Gn 2,8). Lá vivía "o homem para cultivar o solo 0 guardá-lo (cf. Gn 2,15); o trabalho nao é urna pena (cf. Gn 3,1719), mas a colaboracao do homem e da mulher com Deus para o aperfeicoamento das criaturas visíveis" (§ 378).
"Toda essa harmonía da justica original, prevista para o ho
mem segundo o designio de Deus, foi perdida pelo pecado de nossos primeiros país" (§ 379). 152
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
9
O texto acentúa a realidade do pecado original, que vem a
ser urna verdade essencial da fé: "A doutrina do pecado original vem a ser, por assim dizer, o 'reverso' da Boa-Nova de que Jesús é o Salvador de todos os homens; todos tém necessidade de salvacao, salvacao que é ofere-
cida a todos grapas a Cristo. A Igreja, que tem o senso de Cristo
(cf. ICor 2, 16), bem sabe que nao se pode tocar na revelacao do pecado original sem afetar o misterio de Cristo" (§ 389).
"O relato da queda (Gn 3) utiliza urna íinguagem figurada, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no inicio da historia do homem (cf. Constituicao Gaudium et
Spes 13 § 1). A Revelacao nos dá a certeza, de fé, de que toda a historia humana é marcada pela culpa original livremente come tida por nossos primeiros pais" (§ 390).
Em suma, o tema "pecado original" nao é da aleada da razao filosófica nem da arqueología, mas peitence estritamente ao ámbito da fé. Por conseguinte, só pode ser elucidado a partir das fontes da fé, que o Catecismo transmite auténticamente ao Povo de Oeus. 2.3. Os Anjos
A realidade dos anjos é professada com toda a Tradicao cris ta, assim como a queda de parte dos mesmos, que se tomaram adversarios do plano salvffico de Deus e sedutores do homem pa ra o pecado. Eis o texto respectivo: "A existencia dos seres espirituais, nao corpóreos, que a Sa grada Escritura habitualmente chama anjos, é urna verdade de fé. O testemunho da Escritura é tao nítido quanto a unanimidade da Tradicao" (§ 328). "Como criaturas puramente espirituais, tém inteligencia e vontade; sao criaturas pessoais e ¡moríais. Ultrapassam em perfeicao todas as criaturas visíveis. O brilho da sua gloria dá testemu nho disto (cf. Dn 10,9-12)" (§ 330).
"A Escritura fala de um pecado desses anjos. Essa queda consiste na livre escolha desses espirites criados, que, de maneira 153
K)
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
radical e irrevogável, recusaram Deus e seu reino. Encontramos um reflexo dessa rebeliao ñas palavras do tentador aos nossos primeiros país: 'Vos vos tornareis como Deus' (cf. Gn 3,5). O diabo é 'pecador desde a origem' (Uo 3,8), 'pai da mentira' (Jo 8, 44)" {§ 392).
"é o caráter irrevogável da escolha dos anjos, e nao urna de ficiencia da infinita misericordia de Deus, que faz que o seu peca do nao possa ser perdoado. 'Eles nao sentem arrependimento após a queda, como nao há arrependimento para os homens após a morte' (Sao Joao Damasceno, Fé Ortodoxa 2,4)" (§ 393). 2.4. O Purgatorio Postumo
O purgatorio postumo é entendido como um estado onde, após a morte, as almas dos fiéis que ainda tragam resquicios do pecado, repudiam plenamente essas sombras que Ihes impedem a visao de Deus face-á-face. Percebendo claramente a hediondez do pecado, ainda que leve, o cristao, na outra vida, se liberta de qualquer afeto desregrado com que tenha morrido. Para que isto ocorra, os fiéis neste mundo podem oferecer a Deus suas preces em favor das almas do purgatorio: "Aqueles que morrem na graca e na amizade de Deus, mas imperfetamente purificados, estao certos da sua salvacao eterna,
todavía sofrem urna purificacáo postuma, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do céu" (§ 1030). "A Igreja chama purgatorio essa purificacáo final dos eleitos, purificapao que é totalmente diversa da punicao dos conde nados. A Igreja formulou a doutrina da fé relativa ao Purgatorio principalmente nos Concilios de Florenca e de Trento" (§ 1031). "Este ensinamento baseia-se também sobre a pratica da ora-
cao pelos defuntos de que já fala a Escritura Sagrada: 'Eis por que
judas Macabeu mandou oferecer este sacrificio expiatorio em
prol dos morios, a fim de que fossem purificados de seu pecado" (2Mc 12,46). Desde os primeiros tempos a Igreja honrou a memo ria dos defuntos e ofereceu sufragios em favor dos mesmos, parti cularmente o sacrificio eucarístico, a fim de que, purificados, 154
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA possam chegar á visao beatífica de Deus. A Igreja recomenda também as estriólas, as indulgencias e as obras de penitencia em favor
dos defuntos" {§ 1032). A respeito do Purgatorio e dos sufragios ver ulteriores consideracoes no recém-publicado Curso de Novi'ssimos (Escatologia) pela Escola "Mater Ecclesiae", Caixa postal 1362, 20001-970 Rio(RJ). 2.5. Ressurreicáo da carne Eis outro ponto que suscita dúvidas hoje, pois quem nao distingue entre corpo e alma afirma que a ressurreicao ocorre logo depois da morte do individuo. Tal nao é a doutrina da Igre ja, que, professando a distincao de corpo e alma, atribui a ressur reicao ao fim dos tempos, com base na Escritura e na Tradicao:
"O Credo cristao... culmina na proclamacáo da ressurreicao dos mortos no fim dos tempos e na vida eterna" (§ 988).
"Que é 'ressuscitar? Em conseqüéncia da morte, separacao da alma e do corpo, o corpo humano sofre a deterioracáo, ao passo que a sua alma vai ao encontró de Deus, permanecendo na
expectativa de ser reunida ao seu corpo glorificado. Deus, em sua on i potencia, restituirá definitivamente a vida ¡mortal aos nossos corpos, unindo-os ás nossas almas, em virtude da Ressurreicáo de Jesús" (§ 997). "Quando? Definitivamente 'no último día' (cf. Jo 6,39s. 44.
54; 11,24), no fim do mundo (Constituicao Lumen Gentium n? 48). Com efeito, a ressurreicao dos mortos está intimamente associada á segunda vinda de Cristo" (§ 1001). 2.6. Pecado Mortal e Pecado Venial O texto distingue pecado mortal e pecado venial apenas, e
nao pecado leve, grave e mortal, como se tem lido em alguns Manuais de Teología Moral:
"Convém classif¡car os pecados segundo a sua gravidade. Já perceptível na Escritura (Uo 5,16s), a distincao entre pecado 15S
J2
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
mortal e pecado venial se impós na tradicao da Igreja. A experi encia dos homens a corrobora" {§ 1854). "Para que um pecado seja mortal, requeremse tres condi
coes simultáneas: 'é pecado mortal todo pecado que tenha por objeto urna materia grave, e que seja cometido com plena consciencia e com propósito deliberado' (Exortacao Apostólica Re-
conciliacao e Penitencia n? 17)" (§ 1857).
"Cométese um pecado venial quando nao se observa em materia leve a medida prescrita pela tei moral, ou quando se deso
bedece á lei moral em materia grave, mas sem pleno conhecimentó de causa ou sem inteiro consentimento" (§ 1862).
Passamos agora a questoes que a imprensa abordou em tom pouco respeitoso.
2.7. Pena de Morte. Guerra Defensiva A Igreja nao tem posicao definida diante da questao da pena de morte. Reconhece que pode ser legítima em casos de defesa da sociedade para os quais nao se veja outra solucao. Julga, porém, que se devem preferir alternativas mais brandas, desde que se Ihes possa prever a eficacia de salvaguardar o bem comum:
"Preservar o bem comum da sociedade exige que o agressor seja impossibilitado de a prejudicar. A este título, o ensinamento tradicional da Igreja reconheceu a validado do direito e do dever, da autoridade pública legítima, de punir com penas proporcio náis á gravidade do delito, sem excluir, em casos de extrema gravidade, a pena de morte. Por razoes análogas os detentores da autoridade tém o direito de rechacar pelas armas os agressores da nació que Ihes é confiada" (§ 2266). "Se bastam os recursos nao sangrentes para defender a vida, humana contra o agressor e proteger a ordem pública e a seguranca das pessoas, as autoridades deverao ater-se a esses meios, por que correspondem melhor ás condicoes concretas do bem comum e sao mais conformes á dignidade da pessoa humana" (§ 2267). 156
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
13
Alias, nao se pode esquecer que a pena de morte era vigente no Antigo Testamento, segundo a Lei de Moisés; cf. Lv 20,8-21. 2.8. A Prostituicao
A prostituicao é condenada como pecado grave. O Catecis mo, porém, julga que nem todas as pessoas que se prostituem sao igualmente culpadas; pode haver aqueles e aquetas que sao, de algum modo, induzidos a isto, com responsabilidade atenuada, porque nao devidamente livres ou esclarecidos. Só Deus vé as consciéncias. Ao observarmos o fato bruto e objetivo da prosti tuí?ao, devemos condená-lo peremptoriamente; todavia mal sa bemos o que possa haver de constrangimento, confusao, ignoran cia ou tara no íntimo das pessoas que se entregam ou que sao en
tregues á prostituicao:
"A prostituicao fere a dignidade da pessoa que se prostituí, reduzida ao prazer venéreo que déla se tira. Aquele que paga, peca gravemente contra si mesmo; viola a castidade á qual o obri-
ga o seu Ratismo e polui seu corpo, templo do Espirito Santo
(cf. ICor 6,15-20). A prostituicao vem a ser um flagelo social.
Afeta habitualmente mulheres, mas também homens, enancas ou adolescentes (nestes dois últimos casos, o pecado é agravado
pelo escándalo), é sempre gravemente pecaminoso entregar-se á
prostituicao, mas a miseria, a chantagem e a pressao social podem atenuar a imputabilidade da falta" (§ 2355).
2.9. Homossexualismo
É outra aberracao moral, porque contraria á lei natural. To
davia é preciso evitar desprezo das pessoas homossexuais; median te a ajuda sincera e desinteressada de pessoas amigas, podem gra-
dativamente encaminhar-se para a pe rife ¡cao crista, desde que vivam castamente:
"O homossexualismo designa relacoes entre homens ou mu lheres que experimentara atracao sexual, exclusiva ou predomi nante, para com pessoas do mesmo sexo. Assume modalidades muito variegadas atreves dos sáculos e das culturas.
A sua origem psíquica está, em grande parte, inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que as apresenta como de157
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
pravacoes graves (cf. Gn 19,1-29; Rm 1, 24-27; 1Cor 6,10; 1Tm 1,10), a Tradicao sempre declarou que 'os atos homossexuais sao intrínsecamente desordenados'. Sao contrarios á leí natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Nao procedem de urna complementariedade afetiva e sexual verdadeira. Nao podem ser aprovados em caso algum" (§ 2357).
"Nao poucos homens e mulheres apresentam tendencias ho mossexuais básicas... Nao escolhem sua condicao homossexual; esta vem a ser, para a maioria deles, urna provacao. Devem ser
acolhidos com respeito, compaixao e delicadeza. Evite-se para com eles todo sínal de discriminacao injusta. Essas pessoas sao chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se sao cris tas, chamadas a unir ao sacrificio da Cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar pelo fato de serem tais" {§ 2358).
"As pessoas homossexuais sao chamadas'á castidade. Pelas
virtudes do auto-dominio, que educam a liberdade interior, algumas vezes pelo apoio de urna amizade desinteressada, pela oracao e pela grapa sacramental, podem e devem aproximar-se, gradativa e resolutamente, da perfeicao crista" (§ 2359).
Notemos que o texto do § 2358 exclui a discriminacáo in justa dos homossexuais. Isto quer dizer que pode haver discrimi
nacao justa: com efeito, esta ocorre sempre que o bem comum corra perigo, ou sempre que a anormal idade possa ser confundi da com a normalidade ou, ainda, sempre que naja perigo de des vio para pessoas nao homossexuais.
2.10. Adivinhacao,-Horóscopo, Quiromancia... A imprensa em 1992 comentou amplamente tais ftens, deturpando os dizeres do Catecismo, que sao os seguintes:
"Deus pode revelar o futuro aos seus profetas ou a outros Santos. Todavía a atitude crista correta consiste em entregar-se confiantemente ñas maos da Providencia no que diz respeito ao futuro e em abandonar toda curiosidadé mórbida a tal propó sito. A imprevidéncia, porém, pode tornarse urna falta de responsabilidade"(§2115).
'Todas as formas de adivinhacao nao de ser rejeitadas: re curso a Satanás ou aos demonios, evocacao dos mortos ou outras 158
O CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA
15
práticas erróneamente tidas como aptas para desvendar o futuro
(cf. Dt 18,10; Jr 29,8). A consulta de horóscopos, a astrologia,
a quiromancia, a interpretacao de presságios e sones, os fenó menos de videncia, o recurso aos médiuns incluem a vontade de
dominar o tempo, a historia e também os homens, assim como
o desejo de conciliar potencias ocultas. Estao em contradicao com a honra e o respeito, mesclado de temor amoroso, que de-
vemos a Deus somente" (§ 2116). *
*
*
Sao estes alguns espécimens do conteúdo do Catecismo da Igreja Católica. Vemos que se trata de ensinamentos coerentes
com a S. Escritura e a Tradicao, formulados de modo claro, vi sando, quando necessário, a atender a problemas e questionamentos do mundo atual.
Tal obra é tida, com base sólida, como a mais notave I e sig
nificativa de todo o benemérito pontificado do Papa Joao Paulo
■ I-
* * * A Esperanca Crista, por varios autores. Curso de Teología
para Leigos, vol. 6. - Ed. Cidade Nova, Sao Paulo 1992, 135 x 205mm,232pp.
O presente volume encerra urna colegio de seis voluntes que
apresenta a doutrina da fé em nivel médio-superior. Nem todos os volumes, como nem todas as páginas de cada volume, tém o mesmo valor, como se compreende numa obra de varios autores.
O tomo 6, sobre a Esperanca Crista, trata primeramente da histo ria do mundo e seu significado, em termos válidos e interessantes.
Depois aborda a escatologia, tema extremamente delicado, pois hofe diversas teorías querem reexplicá-lo, nem sempre em linha ortodoxa. — No tocante é ressurreicao da carne, o livro mantém devidamente a distincao entre corpo e alma como componentes do^ ser humano (cf. p. 157); todavía com re/acao ao purgatorio, nao é claro, tendendo a propor o purgatorio como algo de instan táneo ocorrente na hora da morte (cf. p. 173). Esta hipótese é va
ga e inconsistente. — Com isto nao queremos dizer que o purgato
rio se/a um lugar no qual ha/a dias e noítes - o que é falso; mas afirmamos que é um estado de alma postumo, dimensionado pelo evo e concedido pela Misericordia Divina a quem tenha morrido com o amor voltado para Deus, mas aínda contraditado por res
quicios do pecado. - A propósito pode-se recomendar o Curso
de Escatologia (Novíssimos) publicado pela Escola "Mater Ecc/esiae". Caixa postal 1362,20001 - Rio (RJ). 159
Mal-entendido famoso:
ENCERRADO O CASO GALILEU
Em símese: Em 1981 o Papa Joao Paulo II nomeou urna ComissSo de teólogos, dentistas e historiadores, a fim de aprofundarem o exame do caso especial interesse a temática sentou seus resultados ao S. cia Academia de Ciencias,
Gali/eu. Tal ComissSo estudou com e, após onze anos de trabalho, aprePadre. Este entao, perante a Pontifi proferíu memorável discurso, aos
31/10/1992, em que reconhecia o erro dos teólogos contempo
ráneos a Galileu: julgavam dever defender o geocentrismo em nome de urna falsa interpretagao da S. Escritura. Daía condenacao de Galileu por parte do S. Oficio em 1633. -Ao lembrar isto, o Pontífice também chama a atencao para a dificuldade que os homens do sécu/o XVII deviam experimentar, para aceitar a tao revolucionaria teoría de Galileu; era preciso que, de um lado, se fixassem novos criterios de hermenéutica bíblica e, de outro lado, a proposigao heliocéntrica se corroborasse com argumentos ainda mais sólidos do que os que Galileu podia apresentar. Hojenao há dúvida de que nao existe problema em conciliar a mensagem da fé com as sentengas seguras da ciencia, pois os estudiosos tomaram consciéncia de que a Biblia nSo pretende ensinar ciencias naturáis, mas se refere aos fenómenos da natureza usando urna Unguagem familiar pré-cientifica, suficiente para exprimir a mensa gem religiosa que a Escritura Sagrada tenciona transmitir. A propósito ainda observamos que a condenagSo de Galileu
nao afeta a validade do magisterio da Igre/a, visto que este só é infalfvel quando define artigos de fé e de Moral. Ora o caso de Galileu versava sobre sistemas astronómicos e a interpretacSo da
Biblia. *
* *
160
ENCERRADO O CASO GALILEU
V7
Na primeira metade doséculo XVII Gal i leo Galilei, dentista florentino, lanpou ao público a teoría heliocéntrica, segundo a qual o Sol, e nao a Térra, é o centro do nosso sistema planetario. Tal teoría, ¡novadora na época e aínda carente de fundamentado evidente, suscitou controversias. Especialmente os teólogos se ¡nsurgiram contra a proposicao, visto que Ihes parecía contrariar a doutrina da S. Escritura, geocéntrica á primeira vista (cf. Js 10, 12-14; Ecl 1,5; Hab 3,11). Em conseqüéncia, Galileu foi condena
do por duas sentencas do Santo Oficio, a saber: em 1616 e ém 1633.
A resistencia ao heliocentrismo se protraiu também fora do Catolicismo até o século XIX, em grande parte por causa de urna inadequada interpretacao da Biblia, tomada como manual de ci encias naturais. Na época atual, tem-se consciéncia de que as Es crituras nao tencionam ensinar Física ou Astronomía; usam linguagem pré-cienti'fica ou familiar ao se referir aos fenómenos fí sicos, linguagem que há de ser interpretada como tal e nao segun do o rigor científico. Hoje em dia, portanto, verifica-se que nao
havia motivo para condenar Galileu em nome da S. Escritura; tem-se consciéncia outrossim de que ná*o há oposicao entre cien cia e fé, pois cada qual destas fontes do saber tem seu método e seu ponto de vista próprios; falam em planos diferentes.
Todavía, para que isto ficasse claro e os equívocos associados ao caso Galileu fossem dissipados, o S. Padre Joao Paulo II, desde o inicio do seu pontificado, tomou as devidas providencias, que culminaram na manha de 31 de outubro de 1992, como vere mos a seguir.
1. INICIATIVAS E PRONUNCIAMENTO DE JOAO PAULO II Desejoso de sanar os mal-entendidosdecorrentesdo caso Gali leu, o Papa Joao Paulo II assimencaminhou osacontecimentos:
Aos 10/11/1979, por ocasiao da celebracao do primeiro cen tenario do nascimento de Albert Einstein, exprimiu na Pontificia Academia de Ciencias o desejo de que "teólogos, dentistas e his toriadores, animados por espirito de sincera colaboracSo, apro-
fundassem o exame do caso de Galileu e, no reconhecimentó leal 161
J8
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
dos erras, de qualquer lado que tenham vindo, fizessem desapare cer as desconfianzas que tal assunto opunha, em muitos espíritos, a urna concordia frutuosa entre ciencia e fé" (Acta Apostolicae Sedis 71,1979, pp. 1464s). Conseqüentemente, aos 03/07/1981 foi constituida urna Comissao de Estudos destinados a rever a temática. Tal Comissao constava de quatro Grupos de Trabalho, tendo á frente respecti vamente o Cardeal Cario María Martini, de Milao, para as questoes de exegese bíblica; o Cardeal Paúl Poupard, para as questoes de cultura ge ral; o Professor Carlos Chagas Filho e o Pe. George Coyne S.J., Diretor do Observatorio Vaticano, para assuntos cien tíficos e epistemológicos; Mons. M¡chele Maccarrone, para temas históricos e jurídicos. Seria Secretario o Pe. Enrico de Rovasenda.
Os peritos trabalharam durante onze anos e, finalmente, aos
31/10/1992 apresentaram um conjunto de publicares como re sultado de suas investigares. Nesse mesmo dia, 350? aniversario
da morte de Galileu, realizou-se urna solene sessao da Pontificia Academia de Ciencias. Tomou entao a palavra o Cardeal Paúl
Poupard, encarregado de prestar contas dos trabalhos (de seu dis curso publicaremos alguns trechos sob o título 3 deste artigo). Após o qué, o S. Padre proferiu memorável discurso, do qual extraímos os seguintes segmentos:
2. O DISCURSO DE JOÁO PAULO II "A representacao geocéntrica do mundo era comumente admitida na cultura do tempo, como plenamente concorde com o ensinamento da Biblia, da qual, algumas expressSes, tomadas á letra, pareciam constituir afirmacSes de geocentrismo. O proble ma que entao os teólogos da época se puseram, era o da compatibilidade do heliocentrismo e da Escritura. Deste modo a ciencia nova, com os seus métodos e a liberdade de investigacao que eles supoem, obrigava os teólogos a in-
terrogarem-se sobre os seus próprios criterios de interpretacao da Escritura. A maioria nSo o soube fazer.
Paradoxalmente, Galileu, fiel sincero, mostrou-se sobre este ponto mais perspicaz do que os seus adversarios teólogos. Se a Es162
ENCERRADO O CASO GALILEU
19
critura nao pode errar, escreve ele a Benedetto Castelli, alguns
dos seus intérpretes e comentaristas o podem e de mu ¡tas maneiras (Carta de 21.12.1613, em Edizione nazionale delle Opere di Galileo Galilei, dir. A. FAVARO, reedicao de 1968, vol.V, p. 282). Também é conhecida a sua carta a Cristina de Lorena (1615), que é como que um pequeño tratado de hermenéutica bí blica (Carta a Cristina de Lorena, 1615, em Edizione nazionale delle Opere di Galileo Galilei, dir. A. FAVARO, reedicao de 1968, vol. V, pp. 307-348)... A viragem provocada pelo sistema de Copérnico exigiu assim
um esforco de reflexá"o epistemológica sobre as ciencias bíblicas, esforco que devia produzir mais tarde frutos abundantes nos trabalhos exegéticos modernos, e que encontrou na ConstituicSo conciliar Dei Verbum urna consagracao e um novo impulso...
é preciso repetir aquí o que eu disse ácima. É um dever para os teólogos manterem-se regularmente informados sobre aquisicoes científicas, para examinar, quando necessário, se é ou nao o caso de as ter em consideracao ñas suas reflexSes, ou de fazer revísfies no seu ensinamento.
Se a cultura contemporánea está assinalada por urna tenden cia para o cientismo, o horizonte cultural da época de Galileu era unitario e trazia a marca duma formacao filosófica particular. Este caráter unitario da cultura, que em si é positivo e desejável ainda hoje, foi urna das causas da condenacao de Galileu. A maioria dos teólogos nao percebia a distincao formal entre a Escritura Sagra da e a sua interpretado, o que os levou a transpor indevidamente para o campo da doutrina da fé urna questao, de fato, relevante da investigacá*o científica. Na realidade, como recordou o C árdea I Poupard, Roberto Belarmino, que tinha percebido o que estava realmente em jogo no debate, considerava, por sua parte, que, diante de eventuais pravas científicas do movimentó orbital da térra em redor do sol, devfamos "interpretar, com urna grande circunspeccSo", toda passagem da Biblia que parece afirmar que a térra é ¡móvel, e dizer que nao o compreendemos, antes de afirmar que é falso o que se demonstra (Carta ao Padre A. Foscarini, 12.4.1615, cf. Edizio163
20
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
ne nazionale delle Opere di Gal i leo Galilej, dir. A. F AVARO, vol.
XII, p. 172). Antes dele, já havia a mesma sabedoria e o mesmo respeito pela Palavra divina, que inspiravam Santo Agostinho ao escrever: Se a urna razao evidenti'ssima e segura se procurar contrapor a autoridade das Sagradas Escrituras, quem o fizer nao
compreende e opSe á verdade ná"o o sentido genuino das Escritu ras, o qual nao se conseguiu penetrar, mas o próprio pensamento, a saber, nao o que encontrou ñas Escrituras, mas o que encontrou em si próprio, como se existisse nelas (Epistula 143, n.7; PL 33, col. 588). Há um século, o Papa Leao XIII fazia eco deste conseIho, na sua Encíclica Providentissimus Deus: Dado que o verdadeiro nao pode de modo algum contradizer a verdade, podemos estar certos de que um erro se insinuou ou na interpretado das palavras sagradas, ou noutro lugar da discussao (Leonis XIII Pont. Max. Acta, vol. XIII, 1894, p.361).
O Cardeal Poupard recordou-nos igualmente que a sentenca de 1633 nao era irreformável e que o debate, que nSo tinha cessado de evoluir, se concluiría em 1820 com o Imprimatur, concedi do á obra do Cónego Settele (cf. Pontificia Academia Scientiarum, Copernico, Galilei e laChiesa, Fine della controversia [1820]. Gli atti del Sant'Ufficio, obra de W. Brandmüller e E.J. Greipl, Florenca, Olschki, 1992). A partir do século das Luzes até aos nossos dias, o caso Galileu constituiu urna especie de mito, no qual a imagem que se ti nha formado dos eventos estava bem longe da realidade. Nesta perspectiva, o caso Galileu era o símbolo da pretendida rejeicao, por parte da Igreja, do progtesso científico, ou entao do obscu rantismo dogmático oposto á livre investigacao da verdade. Este mito desempenhou um papel cultural considerável; contribuiu para. ancorar numerosos dentistas de boa fé á ¡dé¡a de que havia incompatibilidade, por um lado, entre o espirito da ciencia e a sua ética de pesquisa e, por outro, a fé crista. Urna trágica incompreensáo recíproca foi interpretada como o reflexo duma oposicao constitutiva entre ciencia e fé. Os esclarecimentos fomecidos pelos recentes estudos históricos, permitem-nos afirmar que este doloroso mal-entendido já pertence ao passado...
No tempo de Galileu, era inconcebível representar-se um mundo que fosse desprovido dum ponto de referencia física abso164
ENCERRADO O CASO GALILEU
21
luto. E como o cosmos entao conhecido estava, por assim dizer, contido no único sistema solar, ná*o se podia situar este ponto de referencia senao na térra ou no sol. Hoje, depois de Einstein e na perspectiva da cosmología contemporánea, nenhum destes dois pontos de referencia reveste a importancia que tinha entao... O erro dos teólogos daquela época, quando sustentavam a centralidade da térra, foi pensar que o nosso conhecimento da estrutura do mundo físico era, de certa maneira, imposto pelo sentido literal da Sagrada Escritura. Recordemos a palavra célebre
atribuida a Barónio: Spiritui Sancto mentem fuisse nos docere quomódo ad coelum eatur, non quomodo coelum gradiatur.1 Na realidade, a Escritura nao se ocupa dos pormenores do mundo físico, cujo conhecimento está confiado á experiencia e ao racio cinio humano. Existem dois campos do saber: o que tem a sua
fonte na Revelacao e aquele que a razao só pode descobrir pelas suas forcas. A este último pertencem sobretudo as ciencias expe rimentáis e a filosofía. A distincao entre os dois campos do saber nao deve ser entendida como urna oposicfo. Os dois campos ná*o sao puramente estranhos um ao outro, mastém pontos de encon
tró. As metodologías próprias de cada um permitem por em evi dencia aspectos diferentes da realidade".
3. DO DISCURSO DO CARDEAL POUPARD Eis alguns trechos que complementam os dados históricos
contidos no discurso de Sua Santidade:
"2. O Candeal Roberto Belarmino já expusera, numa carta de 12 de abril de 1615, dirigida ao Pe. Foscarini, carmelita, as questoes suscitadas pelo sistema de Copérnico1: a astronomía de Copérnico é verídica no sentido de apoiada por provas reais e
1 "O propósito do Espirito Santo foiensinar-nos como devemos
ir ao céu, e nao como caminha (vai) o céu". (Traducao da Re-
dacao).
1 Nicolau Copérnico (1473-1543) foi cónego polonés, que. antes
de Galileu, já propusera a teoría heliocéntrica tímidamente em 1507 e mais sólidamente em 1543. (Nota do tradutor). 165
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
comprováveis? Ou fundamenta-se apenas sobre conjeturas e ve-
rossimilhancas? E, mais, as teses de Copémico sao compatfveis com os enunciados da S. Escritura? Segundo Belarmino, enquanto nao houvesse prova da revolucao da Térra em torno do Sol, seria preciso interpretar com grande circunspeccao as passagens bí blicas que afirmam a imobilidade da Térra. Se alguma vez a movimentacao da Térra viesse a ser demonstrada, entao os teólogos deveriam, segundo Belarmino, rever as suas interpretacoes das passagens bíblicas aparentemente opostas as teorías de Copérnico,
de modo a nao tratar como falsas as opinioes comprovadamente verdadeiras:
'Digo que, se realmente fosse demonstrado que o Sol está
no centro do mundo e a Térra no terceiro céu e que o Sol nao gi ra em tomo da Térra, mas a Térra em torno do Sol, seria preciso proceder com muita circunspeccao na explanacSo das Escrituras que parecem contrariar a esta tese e, antes, dizer que nao a com;
preendemos em vez de afirmar que asentenpacomprovada é falsa'
(Opere di Galileo Galilei, Florenca 1890-1909, vol. XII, p.' 172).
3. Na verdade, Gal ¡leu nao conseguirá provar de modo ¡rrefu tave I o duplo movimentó da Térra, ou seja, a revolucao anual em torno do Sol e o giro cotidiano em torno do eixo dos polos; ele estava convicto de ter encontrado a prova respectiva ñas mares dos océanos — fenómeno do qual sonriente Newton devia demons
trar a verdadeira origem. Galileu propós outro esboco de prova na
existencia dos ventos alisios, mas ninguém possuia entao os conhecimentos indispensáveis para deduzir daí conclusoes claras e necessárias.
Foi preciso que decorressem mais de cento e cinqüenta anos aínda para se encontrarem as provas óticas e mecánicas da mobilidade da Térra. Doutro lado, os adversarios de Galileu, nem antes nem depois dele, nada descobriram que refutasse, de modo convicente, a astronomia de Copémico. Os fatos se ¡mpuseram e, sem demora, deram ocasiio a que aparecesse a índole relativa da sentenca proferida em 1633. Esta nao tinha caráter ¡rreformável. Em 1741, diante da prova ótica da revolucao da Térra em tomo do Sol, Bento XIV se empenhou para que o Santo Oficio desse o
Imprimatur á prímeira edicao das obras completas de Galileu. 166
ENCERRADO O CASO GALILEU
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4. Esta reforma implícita da sentenca de 1633 se tomou explícita pelo decreto da Sagrada Congregacá'o do índex que retirou da edicao, de 1757, do Catálogo dos Livros Proibidos as obras que favoreciam a teoría heliocéntrica. Todavía, apesar deste decreto, mu ¡tos foram aqueles que permaneceram reticentes dian te da nova interpretacao. Em 1820, o Cónego Settele, professor na Universidade La Sapienza de Roma, dispunha-se a publicar os
seus Elementos de Ótica e Astronomía. Sofreu a recusa do Pe.
Anfossi, Mestre do Sagrado Palacio, de Ihe conceder o Imprima-
tur. Este incidente dava a impressao de que a sentenca de 1633 ficara. irreformada porque irreformável. O autor, injustamente cen surado, ¡nterpos apelo ao Papa Pió Vil, do qual recebeu em 1822 sentenca favorável. Deu-se entao um fato decisivo: o Pe. Oliveri, antigo Mestre Geral dos Frades Pregadorese Comissário do Santo Oficio, redigiu um relatório favorável á concessao de Imprimatur ás obras que expunham a astronomía de Copérnico como uma tese, e nao mais apenas como hipótese. A decisao pontificia havia de ter sua api ¡cacao prátíca em 1846, por ocasiao da publ¡cacao de novo índex, atualizado, dos Livros Proibidos. 5. Em conclusao, a releitura dos documentos dos Arquiyos
mostra mais uma vez: todos os personagens de um processo, sém
excecao, tém direito ao beneficio da boa fé, na falta de documen tos contrarios. As qual ¡f¡capóes filosóficas e teológicas abusiva mente atribuidas ás teorías outrora novas a respeito da central idade do Sol e da mobilidade da Térra foram a conseqüéncia de uma situacao de transicao na área dos conhecimentos astronómicos e de uma confusSo exegética referente á cosmología. Herdeíros da concepcao unitaria do mundo que se impds de modo geral até o principio do sáculo XVII, alguns teólogos contemporáneos de Galileu nao souberam interpretar o significado profundo, nao li teral, das Escrituras, quando estas descrevem a estrutura fisica do universo criado; isto os levou a transpor indevidamente uma questao de observacao factual para o setor da fé.
É em tal conjuntura histérico-cultural, bem distante do nosso tempo, que os juízes de Galileu, incapazes de díssociar de uma cosmología milenaria os artigos de fé, julgaram erróneamente que 167
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
a aceitacao da teoría de Copémico (alias, nao definitivamente comprovada) podia abalar a tradicao católica, de modo que era
seu dever proibir fosse ensinada. Este erro subjetivo de julgamento, tao claro para nos hoje, levou-os a urna medida disciplinar que
muito fez sofrer Galileu. É preciso sinceramente reconhecer esses passos erróneos, como Vos mesmos pedistes, Santo Padre.
Tais sao os frutos da pesquisa interdisciplinar que solicitas-
tes á Comissao por Vos nomeada".
4. CONSIDERARES FINÁIS Lendo os discursos de Joao Paulo II e do Cardeal Poupard, cinco ponderacoes podem ocorrer á mente do leitor:
1) O caso Galileu deve-se a mal-entendidos da parte de teó logos, que ¡nterpretaram a S. Escritura como fora obvio fazer até entao, isto é, como se fora redigida segundo um único ou poucos géneros literarios; nao podiam levar em conta certos expressionismos dos semitas por falta de conhecimento daslínguase
da arqueología do Próximo Oriente. Mais: tendo a S. Escritura como livro inspirado por Deus, julgavam que era cartilha nao só de ensinamentos religiosos, mas também de ciencias humanas e naturais. Sendo assim, tomavam ao pé da letra as passagens em que os autores sagrados professam o geocentrismo (único sistema cosmológico aceito na antigüidade).
2) O Santo Oficio condenou Galileu, contando, para tanto,
com a aprovacao dos Papas Paulo V (1603-21) e Urbano VIII
(1623-44). Hoje reconhece-se o erro, que outrora nao foi percebido (a teoría de Galileu era nova demais e ainda sujeita a reformulacSes, de modo que nao podia ser aceita por todos logo ao ser lancada). 0 erro nao afeta a validade do magisterio da Igreja, pois este só é infalível quando define alguma sentenca de fé ou de Mo ral como pertencente ao depósito da RevelacSo. Ora no caso de
Galileu tratava-se de urna proposicSo de ordem científica relacio; nada com a interpretado da S. Escritura.
3) Hoje tem-se consciéncia nítida da verdade professada por Barónio: o propósito do Espirito Santo, que inspirou as Escritu168
ENCERRADO O CASO GALILEU
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ras, nao era o de nos ensinar como vai o céu, mas como se vai pa ra o céu. A finalidade da Biblia é de ordem espiritual ou religiosa, nao de ordem científica profana. A S. Escritura se refere ao mun do e á natureza em termos precientíficos, que nao podem ser tidos como erróneos, porque nao era intencao dos autores sagrados afirmar algo em materia de astronomía. Hoje ainda usamos tal linguagem familiar, que, analisada aos olhos da ciencia, é errónea, mas que ninguém considera tal porque nao pretendemos definir
nocoes de ciencias ao falar do "nascer" e do "por do Sol",... do "Oriente (Levante)" e do "Ocidente (Poente)".
4) Em conseqüéncia, verifica-se que nao há oposicao entre ciencia e fé, como enfáticamente declara o S. Padre. Os dentistas devem pesquisar livremente, sem que a fé se Ihes oponha, porque esta nada tem a recear da parte daquela; a fé considera o mundo e o homem paralelamente ás ciencias naturais, mas num plano su perior, de modo que nao há choque entre as proposicSes seguras da ciencia e os artigos de fé. Qualquer aparente colisáo decorre de um mal-entendido (precipitacao, parcialidade...) ou do dentista ou do teólogo.
5) Há quem receie que a Igreja, pronunciando-se negativa mente a respeito da Biogenética ou de questSes éticas relaciona das com a sexualidade (limitadlo da prole, fecundacao artificial, mae de aluguel...), esteja preparando para si um novo "caso Galileu". — Na verdade, tal nSo ocorrerá poique a razio da recusa da Igreja é simplesmente a fidelidade á lei natural (valor da vida hu mana, dignidade da pessoa...), lei natural que é perene ou válida < para todos os tempos e lugares. A Igreja nao discute teorías cien tíficas; apenas considera os seus aspectos éticos á luz da lei natu ral, que nao é somente a lei de Deus, mas é também a lei da sal vaguarda da dignidade humana.
Possam as decíaracoes do Papa Joao Paulo II contribuir para a dissipacSo dos equívocos que até nossos días foram suscitados pelo caso Galileu! A bibliografía recém-publicada em torno do caso Galileu é ampia, pois a questao foi penetrada em todos os seus aspectos mediante ampia consulta de Arquivos. Eis alguns dos principáis títulos: 169
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
Edizione Nazionale delle Opere di Galileo Galilei, direzione di Antonio Favaro, Firenze, Giunti Barbera, reimpressao 192939, 20 vols.
I Documenti del Processo di Galileo, a cura di P. Sergio Pa gano, Pontificiae Academiae Scientiarum Scripta Varia 53. Cittá del Vaticano 1984.
M. D'Addio, Considerazioni sui processi a Galileo. Quaderni
della R¡vista di Storia della Chiesa in Italia, n? 8. Roma, Herder Editricee Librería 1985.
Galileo Galilei, 350 ans d'histoire, 1633-1983, sous ladirection du Cardinal Paúl. Poupard. Collection "Cultures et Dialo
gues" n? 1. París, Desclée Intemational 1983.
Galileo Galilei. Toward a Resolution of 350 Years of Deba te, 1633-1983. Pittsburgh, Duquesne University Press 1986. O. Pedersen, Galileo and the Council of Trent. Studi Gali-
leiani, vol. I, n° 1, Specola Vaticana 1983.
Pontificia Academia Scientiarum, Copernico, Galileo e la Chiesa. Fine della controversia (1820). Gli Atti del Sant'Uffizio, di W. Brandmüllere E.J. Greipl, Leo Olschki ed., Firenze 1992. *
* *
Prezado leitor, conheca melhor a sua fé. Para amar a Deus, é preciso conhecé-lo; em vista disto, vocé tem á sua disposicab dez cursos por correspondencia, que podem ser solicitados mesmo sem obrigacao de pravas: Curso de S. Escritura, Iniciacao Teológi ca, Teología Moral, Historia da Igreja, Liturgia, sobre Ocultismo,
Parábolas e Páginas Di ficéis do Evangelho, Doutrina Social da
Igreja, Novfssimos (Escatologia), Diálogo Ecuménico.
Há também doze opúsculos concernentes a questoes muito atuais: "Por que nao sou protestante?. Por que nao sou espirita?. Por que nao sou ateu?. Por que nao sou macom?. Por que nao
sou rosa-cruz?. Porque sou católico? ... "
PEDIDOS DE INFORMACOES E ENCOMIENDAS SEJAM DIRIGIDOS A ESCOLA "MATER ECCLESIAE" - CABÍA POS
TAL 1362, 20001-970 - RIO (RJ). 170
Fatos Candentes:
A ORDENAQÁO DE MULHERES NA INGLATERRA
Em síntese: Aos 11/11/92 o Sínodo Geral da Comunhao Anglicana na Inglaterra resolveu admitir as muiheres é ordenacao sacerdotal. A decisao aínda aguarda a confirmacao do Parlamento
e da fíainha, confirmacao que é tida como altamente provável. Tal fato tem provocado agitacao dentro do próprio Anglicanis-
mo; este consta de Provincias Eclesiásticas autónomas, govema-
das por um Sínodo Geral local, que nSo é obligado a aceitar decisdes de outros Sínodos (no caso:... nao é obrigado a aceitar a reso/ucao do Sínodo da Inglaterra). O fato.porém, é que o movimentó feminista se tem estendido dentro do Anglicanismo, pro vocando posicdes acirradas, que ameacam a Comunhao Anglicana
mediante dissidénciase cismas. Nao poucos ministros anglicanos tem procurado a Igreja Católica, desiludidos com o rumo tomado pela sua denominacao de origem. - A Igreja Católica julga que nao Ihe é lícito derrogar ao gesto de Cristo e ápraxe de vinte séculos de Tradicao, durante os quais nSo foi conferido o sacerdo cio ministerial a muiher alguma. Ademáis os ortodoxos orientáis também se opoem á inovacao — o que mostra como decisoes
unilaterais podem deteriorar as refac&es entre os crístaos.
De resto, a grandeza de alguém, lembra o S. Padre, nao con siste ñas funcoes que exerce, mas na vivencia da santidade; todos os ministerios existentes na Igre/a tém em mira exclusiva promo ver a santif¡cacao dos homens e das muiheres e a gloria de Deus. *
* *
A ordenacao sacerdotal de muiheres tem sido um ponto ca lorosamente debatido entre cristaos ocidentais, principalmente 171
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
entre protestantes e anglicanos. A Igreja Católica tem-se pronun ciado negativamente ante tal proposta: em 1976 a Congregacao para a Doutrina da Fé explicou longamente os porqués dessa posicao; em síntese, o procedí mentó de Cristo é decisivo; Ele nao ordenou muiheres; nao chamou alguma mulher para participar da
Última Ceia, na qual Ele conferiu aos Apostólos o ministerio sa
cerdotal; cf. Mt 26, 17-26; Me 14, 12-24; Le 22, 7-20. - Oscristaos orientáis ortodoxos também sao contrarios á ordenacao de muiheres, por fidelidade á S. Escritura e á Tradlcao. Entre os protestantes, o exercício do pastorado por parte de muiheres é mais compreensfvel, visto que negam o sacerdocio ministerial ou o sacramento da Ordem; só reconhecem o sacerdo cio comum ou universal dos crentes, decorrente do Batismo. Ora todas as muiheres protestantes sao batizadas, de modo que, entre os protestantes, nao se véem graves motivos para nao permitir ás muiheres o exerci'cio de faculdades que o Batismo já Ihes con feriu.
O Anglicanismo pretende guardar o sacramento da Ordem, de modo que a ordenacao de muiheres em tal ambiente deve en frentar os mesmos obstáculos que existem no Catolicismo e na Ortodoxia oriental. Nao obstante, aos 11/11/1992 o Sínodo Geral da Comunhao Anglicana na Inglaterra resolveu aprovar a orde nacao de muiheres para o diaconato, o presbiterato e o episcopa do. A decisao foi muito debatida, mas tomou-se um fato, que deixa perplexos nao somente os demais cristaos, mas também mu ¡tos anglicanos contrarios á sentenca. No presente artigo apresentaremos urna nocao mais ampia do que seja a Comunhao Anglicana e do problema nela discutido. A seguir, apontaremos algumas etapas da mesma problemática tal como se coloca entre os protestantes em geral.
1. A COMUNHAO ANGLICANA: QUE É? Em 1534, há 459 anos portanto, o reí Henrique VIII na In glaterra houve por bem separar da Igreja Católica o seu reino pelo fato de que o Papa Clemente Vil em 1531 nao Ihe concederá o 172
ORDENAQÁO DE MULHERES NA INGLATERRA
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divorcio almejado1. Tendo-se propagado para fora da Inglaterra, o Cristianismo inglés formou a chamada "Comúnhao Anglicana" ou o Anglicanismo, que assimilou varios pontos doutrinários do protestantismo do continente europeu.
A Comunhao Anglicana é hoje um conjunto de "Igrejas" ou Provincias que gozam de comunhao entre si e a sede de Cantuária, considerada primacial porque fundada por S. Agostinho de Cantuária em 597. Nao há sobre elas alguma autoridade central; sao, pois, autocéfalas ou, de certo modo, autónomas entre si. Ca da urna dessas "Igrejas" ou Provincias é governada por um Síno
do Geral2, que se compoe de tres Cámaras: Bispos, clero e leigos.
De dez em dez anos reúnem-seem Lambeth (Inglaterra) todos os bipos anglicanos que estejam em comunhao com a sede de Can tuária; esta guarda urna especie de primado de honra, dada a sua antigüidade. Esta Conferencia pode votar "resolucoes", que, na verdade, nao sao senao recomendacoes; só obrigam as Provincias se o Sínodo Geral local as reexaminar e aprovar. Estes dados ajudarn a compreender o que está ocorrendo na Comunhao Anglicana.
2. COMUNHAO ANGLICANA: ABERTURA AO SACERDOCIO FEMININO O sacramento da Ordem consta de tres graus: o diaconato,
o presbiterato e o episcopado. Consideremos os fatos ocorridos em relapso a cada um desses graus na Comunhao Anglicana3: 1 O rei estava casado com Catarina de Aragao, que só ihe dera urna filha como herdeira; daí pleitear o divorcio para casarse
com Ana Boleina, da qual, alias, Henrique VIII também haveria de se separar mais tarde.
1 Em algumas Provincias tal Sínodo pode ter outro nome, mas desempenha sempre as mesmas funcdes.
3 É de notar que a Igre/a Católica, tendo examinado o modo co mo foi reconstituida a hierarquia no Anglicanismo depois que a rainha Elisabete mandou extinguir a hierarquia católica, nao reconhece a validade da ordenacSo dos bispos, presbíteros e diáconos anglicanos, 173
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
2.1. Diaconato
As Conferencias de Lambeth em 1968 e 1978 pedíram que o diaconato fosse amplamente concedido ás mulheres. Varias Pro vincias atenderam ao proposto, de modo que na Inglaterra as prime ¡ras diaconisas foram ordenadas em 27/02/1987. Atual men te existem cerca de 1.300 diaconisas na Inglaterra, aguardando o sinal verde do Sínodo de sua Provincia para receber a ordenacao presbiteral. 2.2. Presbiterato
A prime ira ordenacao presbiteral de mulher anglicana foi a da Sra. Li Tim Oi em Hong Kong, destinada a atenderá urna comunidade muito ¡solada por causa da guerra vigente em 1944.0 bispo que a ordenou nao podía, na época, comunicar-se com seus
colegas. Sete anos após a ordenacá*o, a ministra anglicana1 teve
que renunciar por efeito das pressoes que sobre ela pesavam da parte dos bispos de Cantuária e York.
Em 1968 urna Conferencia de bispos anglicanos rejeitou como improcedentes os argumentos contrarios á ordenacao de mulheres.
Em 1971, novamente em Hong Kong outro bispo ordenou
urna presbitera, apoiando-se em um Parecer do Conselho Consul tivo Anglicano, que carecía de autoridade1.
Em 1975, quinze mulheres foram ordenadas em Filadélfia (U.S.A.) por bispos aposentados, sem autorizacao do Sfnodo Ge-
ral. Tais ordenacoes foram ilegais, mas válidas segundo a concepcao anglicana.
Nesse mesmo ano a Provincia Anglicana do Canadá aprovou a ordenacao de mulheres. 1 Os presbíteros anglicanos sao chamados "ministros".
1 Esse Conselho é constituido por representantes dos bispos, do clero e dos let'gos de toda a Comunhao. ñeúne-se de tres em tres anos únicamente para atender a consultas. Nao tem poder de cisorio. 174
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Aínda em 1975 foi levada ao Sínodo Geral da Provincia da Inglaterra urna pergunta, para a qual se deu a seguinte resposta:
"Nao há objecao contra a ordenapao de muiheres, masostempos ainda nao estao maduros". Em 1976 o Sínodo Geral dos Estados Unidos aprovou o sa cerdocio feminino e reconheceu as quinze muiheres ordenadas ilegalmente em Filadélfia.
Em 1977 a Provincia Anglicana da Nova Zelandia deu o sinal verde.
Em 1978, quándo se abriu a Conferencia de Lambeth, estavam presentes algumas presb iteras na qualidade de joma listas. A Conferencia se viu diante de urna questao espinhosa: algumas Provincias haviam agido por conta própria, ordenando muiheres sem o consentimento de todos os bispos (ou, ao menos, sem o estudo do assunto por todos); outras Provincias haviam resolvido aguardar e outras nao tinham ainda examinado a questao. O fato, porém, estava, em parte, consumado. Os calorosos debates dessa Conferencia de Lambeth (1978) terminaram com a aprovacao, por grande maioria, dos seguinte^ pontos: 1) aceitar a diversidade na unidade da fé é parte integrante da heranca anglicana; 2) as Provincias, sendo autónomas, tinham o direito de tomar suas re sol upoes próprias, mas sem esquecer o peso dos seus gestos sobre o conjunto da Comunhao; 3) as Provincias que tinham ordenado muiheres, haviam-no feito na conviccao de que essas ordenacoes estavam na linha da historia anglicana, que devia ser respeitada,
ou seja, na linha do que foi chamado "urna tradicao dinámica". Por ocasiao da seguinte Conferencia de Lambeth, em 1988, já as Provincias do Quénia, de Uganda e do Brasil haviam confe rido o sacerdocio ás muiheres. Naquela data sete Provincias representavam aproximadamente 1270 muiheres ordenadas na Co munhao Anglicana. Alias, urna dentre elas era teóloga da Confe rencia. Após 1988, outras Provincias tomaram ou dispuseram-se a
tomar decislo semelhante: Irlanda, África do Sul, Australia, País de Gales... 175
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Finalmente, aos 11 de novembro de 1992, o Sínodo Geral da Provincia da Inglaterra, por su a vez, disse Sim á inovacao. Para
a aprovacáb da proposta, requeriam-se 2/3, ou seja, 66% dos vo tos em cada Cámara; ora na dos bispos houve 33 Sim contra 13 Nao, ou seja, aproximadamente 75% de votos favoráveis; na do
Clero, houve 70% (176 x 74 votos), e na dos leigos 67% (169 x 82 votos, o que representa a mais exigua maioria). As outras Provincias anglicanas já se haviam, em grande
maioria, manifestado favoráveis á novidade, pois de 44 dioceses anglicanas apenas 6 ficavam avessas. Em 21/11/1992 a Provincia da Australia, fragmentada pelos debates, resolveu seguir a orientacao da maioria. A decisao tomada pelas Cámaras da Inglaterra teve grande
repercussao nao só dentro da Comunhao Anglicana, mas também fora da mesma, afetando as relacoes do Anglicanismo com a Igreja Católica e com os ortodoxos orientáis, como ainda se dirá adiante. 2.3. Episcopado
Urna vez concedido o "presbiterato" ás mulheres, poe-se naturalmente a questao: E o episcopado...? — A Conferencia de Lambeth em 1988 mostrou-se prudente a tal propósito. Todavia em setembro do mesmo ano foi escolhida urna mulher— Barbara
Harris — para ser "bispa auxiliar" da diocese anglicana de Massachusetts (U.S.A.) e em 1990,outra mulher — Penny Janneson —
tomou-se bispa diocesana da Nova Zelandia. Aos 19/11/92 Jane Dixon foi constituida a terceira "bispa" anglicana, desta vez nos Estados Unidos. Nao se pode ainda deixar de dizer que a resolucao tomada
pelas Cámaras da Provincia da Inglaterra em 11/11/92 deve opor tunamente (junho/julho 1993) passar pelo Parlamento Inglés ou,
melhor, por urna Comissao Parlamentar destinada a assuntos ecler siásticos (o Anglicanismo está vinculado ao Estado e, de certo modo, depende dele). Tal Comissá*o constará de membros das duas Cámaras Legislativas: Cámara dos Comuns (Deputados) e Cámara dos Lords. Esta Comissao nao tem o poder de emendar 176
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urna le¡ proposta pela Igreja; pode ou declará-la oportuna e submeté-la a assinatura da Rainha ou pode bloquear o texto, nao o
entregando á assinatura regia, é muito pouco provável que esta segunda alternativa ocorra. Como quer que seja, a exigencia da Cháncela da Rainha oferece aos hesitantes um certo prazo para tomar posicáo. Entrementes prosseguirao os debates, de modo a se evitarem adesSes ou rupturas precipitadas.
3. CONSEQÜÉNCIAS Graves tensoes se oríginaram na Comunhao Anglicana. Nos Estados Unidos, alguns bispos (um já aposentado), varios presbí teros e fiéis criaram pequeñas comunidades, que queriam perma necer em comunhao com a sede de Cantuária, mas nao reconheciam mulheres ordenadas nem os bispos que as quisessem orde nar. O bispo anglicano aposentado de Londres parece ter apoiado esses núcleos; numa viagem feita aos Estados Unidos, manifestouse-lhes favorável; ao regressar á Inglaterra, foi censurado pelo arcebispo de Cantuária. Já antes da votacao de 11/11/92 um presbítero foi ordena do bispo numa dessas comunidades dissidentes norte-americanas,
a fim de criar "urna diocesc missionária da Igreja Anglicana da Inglaterra e do País de Gales". A Associacao anglicana "Cost os Conscience" pretende fundar urna "Igreja Anglicana Tradicio nal", paralela á Comunhao Anglicana.
Acontece assim que na Comunhao Anglicana, onde "a corte sía amável era o 119 mandamento" (Time, 23 nov. 1992, p. 53), as brechas se abriram. Numerosos bispos e quase 3.000 dos 10.500 ministros anglicanos se declararam irredutivelmente opos-
tos á mudanca. Disse o vigárío Christopher Colven, de Londres:
"Deixamos de caminhar juntos passo a passo, embora ainda com-
partilhemos pontos comuns e estejamos ligados uns aos outros pelo afeto". O bispo anglicano de Londres, Dr. Hope, declarou, por sua vez: "Quero permanecer bispo, mas nao consigo sobreviver numa Igreja em que me sinto marginal izado".
A legislacao inglesa propicia, de certo modo, novos proble mas. Os tradicionalistas, por exemplo, estao aborrecidos porque 177
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a leí permite que determinado bispo recuse a ordenacao de muIheres em sua diocese, mas faculta ao seu sucessor reconhecé-la. 0 bispo anglicano de Londres, David Hope, disse em tom angus tiado que os opositores "serao inevitavelmente cada vez mais ignorados e marginalizados". A Sra. leiga Elizabeth Miles, que chefia um grupo contrario ás ordenacoes de mulheres, contando com 6.750 membros, nutre a esperanca de que o Parlamento rejeite o voto das Cámaras Eclesiásticas — o que é inverossfmil. De modo especial, na Australia a Comunhao Anglicana está dividida: a maior diocese, que é a de Sidney, é francamente con servadora. Os tradicionalistas, julgando que as mulheres nao podem ser ordenadas validamente, nao reconhecem os sacramentos por elas ministrados.
Também os membros da Church Unión, que congrega muitos ministros de tendencia anglo-católica, levantam serias dúvidas sobre a sua permanencia na Comunhao Anglicana, ao mesmo tempo que rejeitam qualquer decisao precipitada. Nao poucos ministros dizem que nao podem, em consciéncia, continuar o seu ministerio, a tal ponto que varios já pediram admissao na Igreja Católica. A título de abono, o Sínodo Geral da Inglaterra tem concedido quantias monetarias aos ministros dissidentes. O diálogo da Comunhao Anglicana com a Igreja Católica nio cessará, mas certamente encontrará um obstáculo novo (embora nao imprevisto). Ao Espirito Santo tocará esclarecer as men tes e mover os coracoes para que a uniao de anglicanos e católi cos, tao facilitada em outros pontos de doutrina, nao venha a ser um sonho dissipado.
O Patriarcado de Moscou também lamentou oficialmente a decisao da Igreja Anglicana. Os russos ortodoxos, que a propósito compartilham a posicao dos católicos, receiam que "o fosso exis
tente entre ortodoxos e anglicanos venha a se aprofundar". O Cardeal Basil Hume, arcebispo católico de Westminster, decía rou:
"Estou decepcionado, mas nao surpreso, pela votacao do Sfnodo Geral ho/e... A decisao do Sínodo nao corresponde ao ensi178
ORDENAQAO DE MULHERES NA INGLATERRA
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namento da Igreja Católica. A questao da ordenacao de mulheres depende da compreensao que cada Igreja tem da sua ¡dentidade própria, dos sacramentos e do culto. Nao se trata apenas de urna questao de igualdade ou de justica; nem pode tal problema ser resolvido exclusivamente em funcao da mudanca de atitudes da sociedade em refacao á mulher, por mais importantes que sejam.
Comporta aspectos ponderáveis: qual o auténtico sentido da ordenacao sacerdotal? ... Que é a Eucaristía?... Em que consiste o papel singular do presbítero nesta celebracao? ... A decisao da Igreja da Inglaterra nao é o sinal de ruptura das relacoes ecumé
nicas. Permanece a comunhao real, mas parcial, entre cristaos uni dos pelo mesmo Batismo. Continuaremos a rezare trabalharjun tos, apesar do novo obstáculo criado pela Igreja da Inglaterra. Na Igreja Católica, a procura deve continuar em comum com outras Igrejas para se encontrar o modo de desenvolver o ministerio das
mulheres" (La Documentation Catholique, n? 2063, 03/01/93,
p. 47).
Como se vé, o cardeal Hume enfatiza que a temática nio há de ser avallada apenas á luz da promovió da mulher na socie dade civil, pois há outros criterios — de fé — que pesam decisiva mente no caso; tratase de saber se as fontes da Revelacao crista
autorizam a ¡novacao.
Completemos estas noticias, acrescentando-lhes alguns da dos sobre a designacao de mulheres como pastoras no protestan tismo nao anglicano.
4. PROTESTANTISMO NAO ANGLICANO Os protestantes, como dito atrás, nao admitem o sacramen to da Ordem ou do sacerdocio ministerial, distinto do sacerdocio comum dos crentes derivado do Batismo. Daí ser-lhes menos difí cil encarar o problema em foco. Em 1853 Antoinette Brown, protestante congregacionalista, que depois se tornou protestante unitaria, foi a prímeira mulher a assumir funcoes de direcao no protestantismo. O caso, porém,
nao deixou seqüelas durante quase um sáculo. 179
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Em 1948 os metodistas africanos (negros) nos Estados Uni dos resolveram aceitar a ordenacao de mulheres para o pastorado.
Em 1950/1 os metodistas e presbiterianos (brancos) decidí-
ram tomar a mesma atitude nos Estados Unidos.
Em 1958 os luteranos da Suécia fizeram o mesmo.
Em 1980, entre os metodistas dos Estados Unidos, Marjorie Matthews tornou-se a primeira "bispa".
Em 1992 foram nomeadas as primeiras "bispas" luteranas: María Jepsen, aos 30/08 na Alemanha, e April Larson, aos 11/10 nos Estados Unidos. Atualmente nos Seminarios protestantes norte-americanos pode-se dizer que urna terca parte do recrutamento é feito entre mulheres. Entre os mórmons, porém, todos os oficiáis do culto sao masculinos.
Merece referencia aínda o fato de que também entre os judeus o problema foi colocado, de modo queem 1972 a primeira mulher rabina foi designada nos Estados Unidos.
5. CONCLUSÁO O moví mentó pró-ordenacao de mulheres tem suas rafzes
doutrinárias (que nao sao decisivas). Todavía nao se pode deíxar de reconhecer que, em grande parte, é incentivado pelo feminis mo, que se tem avolumado nos últimos decenios. Os comentado
res do fato associam-no á tentativa de fazer nova traducao da Bi blia, donde seriam eliminadas todas as expressoes que sugiram um JDeus masculino (propósito este que também tem suscitado ardentes debates). Assim, por exemplo, em vez de se dizer "Pai Nosso, que estáis nos céus...", dir-se-ia: "Deus, nosso Pai e Míe, que estáis nos céus..."; em lugar de "Pai, Filho e Espirito Santo", usar-se-ia a expressao "Heavenly Parent", Párente Celeste... Tal modo de entender a Biblia tem sido amplamente discutido, a 180
ORDENAQÁO DE MULHERES NA INGLATERRA
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ponto de julgarem alguns teólogos protestantes que se poderia
assim mudar a própria religiao.
A posicao da Igreja Católica, tem sido expressa em documen tos sucessivos, dos quais o último é a Carta Apostólica "Sobre a
Dignidade e a Vocacao da Mulher", do Papa Joao Paulo II, data da de 15/08/1988. O Sumo Pontífice ai' poe em relevo o papel eminente da mulher na historia passada e na sociedade contempo ránea; exalta seus méritos na vida da Igreja e reafirma quanto foi dito pela Congregacao para a Doutrina da Fé aos 15/10/1976 na Declaracao "ínter Insigniores" sobre a admissao das mulheres ao sacerdocio ministerial: as funcoes do homem e da mulher nao sao idénticas, mas complementares entre si; á mulher tocam prerroga tivas que aos hornens nao competem, e vice-versa. Ademáis o
exemplo de Cristo, a praxe da Tradicao de vinte séculos desaconselham a ¡novacao em nossos dias. Acrescenta ainda o Santo Pa dre importante observacao: o que faz a dignidade de urna pessoa, nao sao os seus encargos, embora estes atraiam, porque conferem
poder de acao; mas a grandeza de alguém está em suas virtudes ou em sua riqueza interior. Por isto nao se devem transferir para den tro da Igreja criterios de avaliacao geralmente usuais em outras sociedades, onde a promocao e .a chefia sao por todos e todas almejadas:
"Evite-se transferir para a Igreja... criterios de compreensao e de julgamento que nao dizem respeito á sua natureza. Mesmo que a igre/a possua urna estrutura hierárquica, esta se ordena inte gra/mente á santidade dos membros do Corpo Místico de Cristo. E a santidade é avahada segundo o grande misterio em que a Es posa responde com o dom do amor ao dom do Esposo" (n? 27).
Nesta perspectiva da santidade, a mulher se destaca grandio
samente na historia da Igreja e da humanidade. é para desejar que seu olhar de fé e amor nao se deixe perturbar por categorías sociológicas e políticas estranhas á mensagem do Evangelho, mas continué a mostrar ao homem como deve responder a Deus, que se oferece como o Primeiro Amor.
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Questao discutida:
O RISO ÑAS TRADICOES ANTIGÁS E MEDIE VAIS
Em sintese: Existe na tradicao ascética crista urna certa aversao ao riso, aversao derivada: 1) da experiencia dos sabios précristaos, que veríficavam como o riso frivolo ou leviano pode ser
deletério; 2) derivada também da mensagem bíblica, na qual o
Edesiastes deprecia o riso e o Evangelho nunca narra que Jesús tenha rido. Os autores cristaos que, baseados em tais episodios, condenam o riso, sao, por vezes, peremptóríos, parecendo nao admitir excecao; há, porém, aqueles que tém em mira re/eitar apenas o riso excessivo e fútil. Outros pensadores cristaos dados á Filosofía recordavam com Aristóteles que o riso é próprio e típi co do ser humano; por conseguíate, nao pode sercoisa má em si. Em conc/usao, pode-se dizer que o riso é algo de natural no homem, e só há de ser condenado quando despropositado e con trario a outros valores. *
*
*
0 romance "0 Nome da Rosa" de Umberto Eco trouxe á tona um tema delicado e outrora muito candente: o significado do riso. 0 romance tem por eixo central a biblioteca de um mosteiro medieval, na qual se encontra um livro do filósofo grego Aristóteles (t 322 a.C), que qualifica o riso como distintivo do ser humano em relaca"o aos irracionais. Acontece, porém, que os monges, fazendo eco a outra tradicao (pré-crista e crista) baniam o riso de seus mosteiros como sendo algo de todo inconveniente; Cristo mesmo nao o teria praticado; daí o confuto que U. Eco supoe ter havido no mosteiro. No romance, o Visitador (Inquisidor) Guilhemne de Baskerville responde a Jorge de Burgos que o riso é 182
Q RISO ÑAS TRADIQÓES
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propriedade da natureza humana; por ¡sto nada ¡mpede que Cris to tenha rido. Ver PR 275/1984, pp. 330-340 e 303/1987, pp. 367-372.
U. Eco tanca assim a questao do riso na Filosofía grega e na Tradicao crista, questao que passamos a examinar atentamente,
percorrendo os argumentos contrarios e favoráveis ao riso.
1. CONTRA O RISO 1.1. Gregos e latinos précristaos
Entre os autores clássicos encontram-se restricoes ao riso.
Platao (+ 347 a.C.) afirma que é sinal de nobreza de ánimo regido pela razao o fato de alguém nunca ser sobrepujado pelo ri so. Conseqüentemente adverte que nao devem ser aceites pelo povo homens de responsabilidade que se deixam arrastar pelo riso; muito menos serao reconhecidos deuses dados ao riso; cf. República 111388b.
No sáculo 11 d.C. Claudius Aelianus observava que nem Anaxágoras (+ 428 a.C), filósofo pré-socrático, nem Aristomenes, herói de Atenas que no século Vil a.C. venceu Esparta, jamáis riram. Plfnio, autor romano, acrescentava a essa lista Crassus Dives
(t 53 a.C), cónsul romano bem sucedido na guerra. Sao Jeróni
mo (t 421), porém, observava que Crassus riu ao menos urna vez (Contra Rufinum I XXX 32). Em suma, para pensadores gregos e latinos diversos, tanto
os homens dignos quanto os deuses deviam estar ácima do hábi to de rir.
Passemos agora á Tradicao bíblica. 1.2. No Antigo Testamento
Saltam aos olhos os textos do Eclesiastes, severo e pessimis ta, autor do século IV a.C: 183
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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 371/1993
Ecl 7,3s: "Mais vale o desgosto do que o riso... 0 coracao dos sabios está na casa em luto; o coracao dos insensatos está na casa em festa".
Ecl 2,2: "Do riso eu dísse: Tolice!' e da alegría: 'Para que serve?' ". Ecl 1,18 sugere a pergunta: Como rir? Visto que "muita sabedoria, muito desgosto; quanto mais conhecimento, tanto mais sofri mentó". Acontece, porém, que o autor reconhece haver "um tempo para rir e um tempo para chorar" (Ecl 3,4). Em Gn 18,9-15 Sara é censurada pelo Senhor Deus por ter rido;... riu incrédula, ao imaginar que na sua idade avancada aín da teria um filho.
Todavia nao falta no Antigo Testamento a referencia ao riso sadio, decorrente dos beneficios de Deus. Assim, por exemplo, conforme o SI 126, 2, os exilados que voltaram da Babilonia no sáculo VI a.C, riam de alegría. 0 filho prometido a Ábralo e Sara em idade ancia recebeu o nome de Isaque, filho do riso, nome
que Sara assim justificou: "Deus me deu motivo de riso; todos os que o souberem, riráo comígo" (Gn 21,6). Por conseguinte, pode-se dizer que o Antigo Testamento condena o riso vazio, mas reconhece a legitimidade do riso alegre provocado pelas dádivas de Deus.
1.3. No Novo Testamento
Os escritores do Novo Testamento pouco se referem ao riso. Lembram, sim, que o riso leviano nesta vida pode ser pe: nhor de decepcao na outra, como também o pranto agora pode preparar o riso futuro: Le 6,25 e 21: "Ai de vos, que agora rides, porque conhecereis o luto e as lágrimas. 184
O RISO ÑAS TRADigÓES
Bem-aventurados vos que de rir"
agora
choráis,
porque haveis
S. Tiago exorta os pecadores "a chorar, transformando o riso em luto, a fim de poderem regozijar-se no futuro"; cf. Tg4,9.
Há também alusao ao riso escarnecedor, como ocorreu em casa de Jaira, onde Jesús ressuscitou urna menina:
Me 5,39s: "Disse Jesús: 'A crianca nao morreu; está dormindo'. E cacoavam dele".
Como se vé, o Novo Testamento é sobrio a respeito da temá tica. Condena o riso malvado e vazio, como fazem os autores do Antigo Testamento.
Consideremos agora a Tradicao crista.
1.4. Os escritos patrfsticos e medievais
É freqüente encontrar ai' a-censura ao riso de maneira geral. Assim S. Basilio (t 379), Bispo de Cesaréia, na Capadócia:
"O cristao deve, em tudo, ultrapassar a justica ditada pela Leí de Moisés, e nunca jurar nem mentir. Nao deve falar mal; nao deve fazer violencia nem combate... nüo deve ceder a gracejos; nao deve rir nem tolerar brincadeiras" fEpístola 22).
0 riso é, muitas vezes, tido como sinal de leviandade, ao passo que, segundo S. Ambrosio (t 397), as lágrimas sao sinal de es pirito de penitencia. Em conseqüéncia, quem muito tiverchorado seus pecados nesta vida, será salvo na vindoura (De Paenitentia
116). Sao Joao Crisóstomo (t407), Bispo de Constantinopla, queixava-se da dificuldade de impedir o riso dos fiéis durante a celebra-
cao da Liturgia. Quanto mais, dizia ele, o monge nao déve absterse de riso, ele que tem a incumbencia de prantear os pecados 185
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do mundo e estar crucificado para o mundo! Em parte alguma lemos que Cristo ten ha rido; so chorou... sobre Jerusalém e sobre Lázaro. Cf. In Hebraeos XV 8. Alusao a Le 19,41 e Jo 11, 35. Todavía o mesmo Sao Joao Crisóstomo admitía que o riso nos proporciona um certo alivio e reergue os coracoes abatidos;
pode exprimir a nossa alegria de rever um amigo desde muito de saparecido; cf. In Hebraeos XV 9. Os escritos dos próprios monges insistem muito mais sobre a rejeicao do riso. Tinham, alias, seus antecedentes no monaquismo judaico; com efeito, no mosteiro de Qumran (a N. O. do Mar Morto) o Manual de Disciplina prescrevia que o monge que risse com espalhafato, devia ser punido por trinta dias. Ñas biografías dos Padres do Deserto léem-se episodios que exprimem a mesma mental¡dade. Eis alguns: "Um anciao viu um irmao que estava a rír, e disse-lhe: havemos de dar contas de nossas obras ao Senhor do céu e da térra, e tu aínda ousas rír?" (De Vitis Patrum III 23). "Certa vez, um dos irmaqs, á mesa, pds-se a rír. Entao o
abade Joaó prorrompéu em lágrimas e perguntou: 'Que julgais que esse irmao traz em seu coracao, pois ele rí quando deveria chorar?'" Obid. VIII6).
A Regra de Sao Rento é" muito explícita, ao dizer: "Quanto ás brincadeiras e ás palavras ociosas que provocara riso, condenamo-las em todos os lugares a urna eterna clausura;
para tais palavras nao permitimos ao discípulo abrir a boca" (me, 8).
"O décimo grau da humildade consiste em que o monge nao se/a fácil e pronto ao riso, porque está escrito: 'O estulto eleva a
sua voz, quando rí' (Eclo 21,23)" fRB 7,59).
Verdade é que algumas Regras monásticas antigás parecem condenar apenas o riso ¡moderado. Assim a Regula Pauli et Ste186
O RISO ÑAS TRADiqOES
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phani (sáculo VI) diz que as brincadeiras e o riso ¡moderado muitas vezes suscitam litigios entre os irmaos; por isto o riso descon trolado é desedificante e pode até abrir entrada ao Maligno. No sáculo V a Regula SS. Patrum Serapionis, Macharü, Pafnutii et alterius Macharü prescreve que todo monge vencido pelo riso deva ser punido por um período de duas semanas.
Pode-se-iam citar ainda outros testemunhos avessos ao riso, principalmente entre os monges. Deixando-os de lado por nada acrescentarem aos que transe revemos, voltemo-nos para um dos argumentos que corroboraram a Tradicao crista contraria ao riso: o exemplo de Cristo.
1.5. O Retrato de Cristo Parece que Sao Joao Crisóstomo (t 407) foi o primeiro en tre os escritores cristaos a observar que Jesús nunca ríu, conforme os Evangelhos.
No Ocidente esta concepcao.aparece sob a pena de varios au
tores monásticos do sáculo V ao*sáculo XIV. Encontrou sua ex-
pressao mais significativa numa famosa Carta a Léntulo, devida a um autor anónimo medieval, que quer passar por testemunha ocular e assim descreve a figura humana de Jesús: "Apareceu nestes tempos, e ainda existe, um homem (se é lícito considerá-lo homem) de grande virtude, chamado Jesús
Cristo, é tido pelos povos como profeta da verdade; os seus dis
cípulos chamam-no Filho de Deus; ressuscita morios e cura todas
as doencas. É homem de estatura e/evada, moderado e respeitá-
ve/. Tem semblante venerável, cábelos da cor de ave/a nao plena mente madura, quase lisos até os ouvidos, crespos dos ouvidos para baixo, um tanto brilhantes, caindo sobre os ombros. A cabeleira se reparte no meto de sua cabeca, como é costume entre os Nazarenos. A sua testa é lisa e muito serena, as faces sem ruga. Nenhuma falha traz no nariz e na boca. Tem barba densa, da cor dos cábelos, nao longa, levemente bifurcada na altura do queixo. Seu ofhar é simples e maduro; os olhos sao claros e esverdeados. Quando repreende, é terrfvel; quando admoesta, é manso e ama187
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vel; é alegre, ao mesmo tempo que serio. Chorou algumas vezes, mas nunca riu. Tem estatura bem erecta, as maos e os bracos bem
configurados. £ ponderado ao falar, sobrio, modesto, de tal mo do que o Profeta bem pode dizer: '£ o mais belo dos fimos dos homens'". Tal documento é apócrifo ou espurio. Procede da pena de um cristao que desejava parafrasear o salmo 45, 3 citado no fim do texto. Na verdade, nao temos testemunhos fidedignos que descrevam o semblante humano de Jesús. Como se compreende, a Tra-
dicao crista, desejosa de suprir tal lacuna, esmerou-se em descrever a presumida harmonía f i'sica do Senhor. Quanto ao riso, é certo que o Evangelho jamáis o atribuí a Jesús; é de notar, porém, que os evangelistas nao tínham em mira escrever urna biografía de Jesús ou um relato completo de seus dizeres e gestos; por isto nao é lícito deduzir do texto escrito do Evangelho que Jesús nunca
riu. É bem possfvel que seus contemporáneos nunca o tenham
visto rir, mas a narracao dos evangelistas nao é suficiente funda mento para tal suposicao. Examinemos agora o outro aspecto da questao.
2. 0 RISO COMO PRÓPRIO DO SER HUMANO Ao lado da tradiclo teológica e ascética que acabamos de mencionar, os cristaos antigos e medievais conheceram a tradicao filosófica menos avessa ao riso, embora nao tao influente quanto a primeira.
Aristóteles (t 322 a.C), como dito, ensinava que o homem, sendo um vivente racional, é naturalmente dotado da faculdade
de rir. Esta nao pertence a esséncia do homem, mas decorre da mesma, como algo de próprio, diferenciando-o de qualquer outro ser. Em conseqüéncia, pode-se dizer: "Todo homem é capaz de
rir" e "Todo ser capaz de rir é homem".
Esta noció passou para as geracdes posteriores e foi professa-
da por Quintiliano (1-69 d.C), orador romano, Porfirio (+305 d.C), 188
O RISO NASTRADigÓES
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lósofo neoplatónico, Luciano de Samosata (t 190 d.C), poeta sa tírico e sofista greco-sirio... Entre os cristaos, foi assumida por Anfcio Boecio (t 524), comentador de Porfirio, que a transmitiu aos medievais nos seguintes termos:
"É próprío do homem aquilo que a todo homem, somente ao homem e sempre Ihe ocorre, como é a faculdade de rir. Menos adequadamente dizemos que a raciona/idade é própria do ho mem '... Menos adequadamente, porque ela é comum aos homens
e aos deuses" (\n Isagogen Porphyrii Commenta V 4). Sem dúvida, para que o homem seja considerado homem, nao é necessário que ria, mas sim que ele possa rir. Esta verdade temperou a severidade de muitos mestres que
proscreviam o riso na Idade Media. Existe urna santa hilaritas (hilaridade), que é o contrario do ser tristónho e que deve caracterizar o cristao. Ser alegre nao coincide necessariamente com o riso freqüente e espalhafatoso. A consciéncia do pecado deve, sim, levar o cristao á contricao dolorida, mas esta própria dor contrita há de se Ihe tornar motivo de alegría, pois arrepender-se dos pecados é fruto da graca de Deus dada *ao homem. Diz S. Agostinho: "Doleat peccator de peccato suo, et de dolore gaudeat. — Que o pecador se condoa do seu pecado, e alegre-se por sua dor". Alias, os medievais souberam ser alegres e, fora dos mosteiros, nao recusaram o riso. Riam de alegría, de surpresa e tam-
bém ... de escarnio (tenhamos em vista os autos teatrais da Idade Media). O espécimen mais típico do homem medieval é o cavaleiro ufano e impetuoso, que nao conhecia medo e enfrentava os pe-
rigos com ánimo alegre e sorridente; tal é o testemunho de Ph. Ménard:
"O riso mais freqüente — e talvez o mais típico da epopéia — é o riso impetuoso e ufano do guerreiro que nao se deixa es
pantar nem pelos perigos nem pelas ameacas" (Le rire et le souri-
re dans le román courtois en France au Moyen Age 1150-1250, Genéve 1969, p. 34).
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3. CONCLUSÁO A leítura da documentado antiga e medieval atinente ao ri so deixa perceber uma certa tensao entre o conceito filosófico de riso e a nocao crista de penitencia. Os monges nao negaram o riso como valor próprio do homem, mas foram impressionados pelos abusos do riso frivolo e agitador de ambientes; ademáis julgaram
que o riso nao tem sentido numa vida penitente; o penitente
aguarda a vida definitiva para gozar tranquila e alegremente dos bens celestes. Há, porém, certa ambigú¡dade ñas proibicoes de riso que nos
sao transmitidas; trata-se de banir o riso como tal e peremptoriamente? Ou quer-se coibir apenas o riso vazio e deletério? A prirneira interpretacao parece auténtica em muitos casos, mas póde se crer que a segunda representa a corrente preponderante entre os monges e os mestres da Tradicao crista.
Este artigo muito deve ao de Irven M. Resnick: Risus Monasticus. Laughter and medieval Monastic Culture, em: Revue Bénédictine 97 (1987} N? 1e2, pp. 91-100. *
*
*
fcontinuacao da pág. 192) zacao, tais provas sao a conseqüéncia do ambiente geral... Fácil mente temos a impressao de que aquí se exerce uma estrategia específica, cu/o objetivo, entre outros, é afastar a igre/'a da fidelidade ao seu Senhor e Esposo.
Todavía o Senhor é fiel é sua Al¡anca, e opera por meio do Espirito Santo, que a/uda a superar o espirito deste mundo e con siderar o celibato pelo Reino de Deus como uma opcao de vida frente as debilidades e estrategias humanas. E preciso tao somente que nao desanimemos e nao criemos em torno a essa vocagao e opcao um clima de desalentó. A Igreja Católica estima as outras tradicoes, particularmente as das fgre/as do Oriente, mas quer
permanecer fiel ao carisma que recebeu do seu Senhor e Mestre". Estévao Bettencourt O.S.B. 190
Questao atual:
EXTINTO O CELIBATO, HAVERIA MAIS PADRES?
Em símese: O artigo refere-se aos muitos pedidos de presbí teros que, tendo abandonado o ministerio sacerdotal, hoje pedem é Santa Sé a readmissao ao mesmo. Este fato suscita a pergunta sempre atual: extinto o celibato, haveria padres em maior núme
ro? — A resposta dada por peritos em Roma dé a crerque nao, pois as comunidades religiosas cujos ministros podem casarse (protestantes e ortodoxas) nem por isto tém o desejado número de ministros. Alguns dados estatísticos ilustram a resposta. *
*
*
A Santa Sé está estudando algumas dezenas de petipoes de sacerdotes que deixaram o ministerio presbiteral há alguns anos e pleiteiam sua readmissao ao servico do altar e do povo de Deus. Mons. Crescendo Sepe, Secretario da Congregacao para o Clero, ao revelar tal noticia, anunciou outrossim que a Santa Sé está pensando em promover um Simposio internacional sobre o celibato sacerdotal, a fim de focalizar todas as objecoes que se fazem ao mesmo e elucidar seus valores positivos. Tem-se propaga do a tese segundo a qual a ordenacao de homens casados poderia resolver o problema da falta de clero. Ora Mons. Sepe observou que precisamente "onde o casamento dos ministros do culto é permitido, como ñas comunidades ortodoxas e protestantes acon tece, a situacao nao é mais alvissareira do que na Igreja Católica". Eis a linguagem dos números: as comunidades protestantes da Inglaterra tém 30.000 postos de trabalho vacantes. Na Ale mán ha, os luteranos da cidade de Oldenburg contam apenas 200 191
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pastores para 583.000 crentes, ao passo que a Igreja Católica da
mesma cidade conta 362 presbíteros para 216.000 fiéis. Mons. Sepe aínda observou que, se o número total de sacer
dotes em nivel mundial baixou de 418.522 em 1978 para403.173 em 1990, o número de ordenacoes está em ascensao desde 1978. Neste mesmo período o número de seminaristas aumentou signi ficativamente, passando de 62.670 a 96.155. O mesmo prelado enfatizou que nao se deve considerar a lei do celibato como violacao dos direitos humanos, pois "o candidato ao sacerdocio, que faz sua opcao em idade adulta, nao é detentor do direito de ser sacerdote"; é-lhe possibilitado o casamento, se o quer, como também Ihe é oferecido o sacerdocio desde que o aceite tal como Ihe vem da parte do Senhor Deus através da Igreja. Nao é, pois, ¡ntencao da Igreja abrir mao do celibato sacer dotal, que é plenamente justificado á luz do Novo Testamento (cf. 1Cor 7, 25-35; Mt 19, 12) e que propicia ao padre maiorliberdade interior, mais radical capacidade de amar a Deus e a to dos os homens. Sao palavras do S. Padre Joao Paulo II aos Presi
dentes das Conferencias Episcopais da Europa em 19/12/1992:
"As palavras concernentes ao celibato por amor do Reino
dos Céus estao relacionadas com a explicacao que Cristo deu aos Apostólos: 'Nem todos entendem esta linguagem, mas, sim, aque
les a quem isto foi concedido' (Mt 19, 12). Neste contexto do
Evangelho o celibato é dom para a pessoa e nesta, e gracas a esta,
é dom para a Igreja. O Sínodo dos Bispos de 1990 convidou mais urna vez a esti mar este dom e manifestou de novo a vontade de que permaneca como heranca da Igreja latina para o bem da sua missao. Quem
participou desse Sínodo, nao pode esquecer a serie de testemunhos dos Bispos do mundo inteiro sobre o grande valor do celiba to sacerdotal. Esses testemunhos deram, de modo substancial, o tom ao Sínodo...
No tocante ás vocacoes, a Igreja está exposta ao risco de provacoes especiáis. Num mundo marcado por crescente secular!(continua na pág. 190)
UN
192
A
EDIQOES "LUMEN CHRISTI" 3?
edigao em latim-
portugués, tacoes
por
Enout.
A
com
ano-
D.
Joao
Regra que
Sao Bento escreveu no sáculo VI continua viva em todos os mos-
teiros do nosso tempo, aos quais nao fal-
BENTO
LATIM-PORTUGUES
tam
vocacoes
para
monges e mojas. 21Opágs. 1992. Cr$ 200.000,00.
LIVHOS MONÁSTICOS: 1.CONCORDANCIA DA REGRA DE S. SENTÓ. A. de Vougué -
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4.INICIACÁO Á HISTORIA MONÁSTICA (notas, esquemas e mapas) 1? de urna serie. 2? edicáo com textos monásticos em apéndice. 1985. lOOp
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6.SÁO GREGORIO DE NISSA: O DESIGNIO DE DEUS E VIDA DE SANTA MACHINA. Publicacab da Cimbra. 1992. lOOp
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