Ano Xxx - No. 324 - Maio De 1989

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Projeto PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (¡n memoríam)

APRESENTAQÁO

DA EDIpÁO ON-LINE Diz Sao

Pedro que devemos

estar preparados para dar a razáo da nossa esperanca a todo aquele que no-la pedir {1 Pedro 3,15). Esta

necessidade

de

darmos

conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade

controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortaleca no Brasil e no mundo. Queira Deus abencoar este trabalho assim como a

equipe

de

Veritatis

Splendor

que

se

encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico • filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo. A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

tn

SUMARIO

"Sou Filha da Igreja!" LU

O H oo UJ

Secularidade, Secularizacao e Secularismo

O Domingo

Casáis que se Dissolvem

Igreja Favorável ao Aborto? O Mercado de Drogas tu _j

ffi

O ce a.

ANO XXX

MAIO

1989

324

MAIO- 1989 NP324

3UNTE E RESPONDEREMOS Publicacáo mensal

SUMARIO

ator-Responsável:

ístévao Bettencourt OSB <\utor e Redator de toda a materia

"Sou Filha da Igreja!"

193

publicada neste periódico Tres vocábulos densos:

Secularidade, Secularizado e

etor-Adm ¡nistrador:

Secularismo

D. Hildebrando P. Martins OSB

O dia da festa crista:

ministracao e distribuicao:

O Domingo

Edicoes Lumen Christi

Dom Gerardo. 40 - 5? andar, S/501 Tel.: (021) 291-7122

O doloroso fen&nemo dos

Casáis que se Dissolvem

194

207 219

Caixa Postal 2666 20001 - Rio de Janeiro - RJ

Está no ar:

A Igreja foi Durante Séculos Favorável

ao Aborto?

Comunicacao - O Mercado de Drogas. I "MAXQUESSARAIVA" ca4feos t toiToats s *

NO PRÓXIMO NÚMERO: 325 - Junho - 1989

Os Fiéis Leigos na Igreja. - A declaracao dos Teólogos de Colonia. - As Seitas e seu Avance - 0 Linguajar do Cristao Marxista. - "Os Versos Satánicos".

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA 5INATURA ANUAL: NCzS 10.00 Paoamento (á escolha)-

1. VALE POSTAL ¿Agencia Central dos Correios do Rio de Janeiro.

3. No Banco do Brasil, para crédito na Conta Corrente n° 0031, 304-1 em nome do Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, págável na Agencia da

Praca Máuá (n? 0435):

231 239

"Sou Filha da Igreja!*1 (Santa Teresa de Ávila) O fiel crista*o que acompanha a historia de nossos tempos, pode

sentír-se incitado a recordar uma famosa exclamacao de Sta. Teresa de Ávila' (fi582): "Sou filha da Igreja!" A Santa, que tinha um temperamento

fogoso e, ao mesmo tempo, muito feminino, vivía numa época difícil: o Renascimento disseminava certo naturalismo pagáo até em ambientes cristáos; os pastores da Igreja se viam a bracos com a invasio do mundanis

mo e a efervescencia religiosa protestante na Alemanha, na Suica e na

Inglaterra... Teresa de Ávila, em sua juventude, cedeu um tanto á mentalida-

de hedonista e mundana da sua época; depois, porém, resolveu responder aos desafios do momento abracando com a máxima fidelidade as normas de espiritualidade do Carmelo sintetizadas ñas palavras: Oracao e Penitencia.

Tornou-se assim a renovadora dos Carmelos, aderindo corajosamente aos principios que sempre nortearam a vida da Igreja: esta é sustentada nao pela forca dos homens, mas pela graca de Deus. Teresa podia entao dizer: "Sou

filha da Igreja!" em meio as tempestades e contradicoes.

A grande mestra compreendeu, com todos os Santos, que é impossfvel aderir a Deus Pai sem ser fiel a Cristo, que, como Cabeca, leva os homens

ao Pai (cf. ICor 15,28). Tal convicclo é tafo clássica e típica da fé crista que

no secuto III S. Cipriano, bispo de Cartago (t 258), escrevia em época

arriesgada por correntes e divisdes: "A Esposa de Cristo ná"o pode ser adulte

rada; Ela é incorrupta e pura, nao conhece mais que uma so casa, guarda com casto pudor a santidade do único Tálamo. Ela nos conserva para

Deus, entrega ao Reino os filhos que gerou... NAO PODE TER DEUS POR PAI QUEM NAO TENHA A IGREJA POR MÁE" {Sobre a Unidade da Igre

ja, cap. 4). Estes dizeres, aos quais muitos outros se poderiam acrescentar, tirados da hagiografía, sugerem algo que é fundamental para o crisíao até os nossos

dias: o sentir-se filho da Igreja ná"o apenas por ser esta uma instituicá*o cultural e beneficente, mas principalmente por ser o Sacramento ou o sinal sensível que nos transmite a vida de Jesús Cristo, fazendo-nos, pelo Batismo e a Eucaristía, filhos no FILHO, a fim de voltarmos ao Pai. A espiritualidade crista", bem entendida, sabe ver na Igreja a prolongac3o do misterio da EncarnacSo. Este implica, da parte do Verbo, um assumir a própria fragilidade humana para fazer déla precisamente o canal do Trans

cendental ou da vida divina. Já o Apostólo observava: "Quanto mais palpave I é a fraquera dos homens, tanto mais se evidencia que é a forca de Deus que age na Igreja" (cf. 2Cor 12,9s). BIBLIOTECA ¡ EB C K hJ T ►< A L

193

;

"PERúUNTE E RESPONDEREMOS" Ano XXX - N9 324 - Maio de 1989 Tres vocábulos densos:

Secularidade, Secularizado e Secularismo

Em lint ese: Secularidade significa a autonomía relativa que as ciencias humanas possuem em relacSo é religiao (o vocábulo opóe-se a curandeirismo, magia, supersticao, artes que pretendem fazer da religiao a chave para resolver de ¡mediato problemas temporais). Secularizado é o tornar secular, nao sacral. Pode ser sadia (se elimina

a falsa religiosidade supersticiosa), como pode ser nociva (se elimina a propria Religiao); neste caso tem-se o secularumo ou a teología da morte de Deus.

A teología da morte de Deus foi cultivada na década de 1960 por cris-

taos que se baseavam sobre duas premissas: urna, de ordem sociológica (o homem contemporáneo ¡é nSo se interessa por valores religiosos, de modo

que Deus Ihe ó um nome mono); outra, de ordem filosófica (as imagens que em nossa mente formamos de Deus, ficam muito longe de Deus; sao ídolos). Por conseguínte, diz'tam tais teólogos, o cristSo nao deve falar de Deus nem dos valores transcendentais. Faca-se um Cristianismo nao religioso ou sem Deus, visando apenas ao sen/ico do homem, a exemplo de Jesús Cristo,. que foi "o homem para os outros".

Estas idéiasperdenmsua voga na década seguintg (1970), pois os estu diosos verificaran) que, apesar de tudo, o senso religioso persiste nos homens contemporáneos; apenas pedo novas expressdes, mals correspondentes és mu

dencas culturáis dos nossos tempos. Por isto, alguns dos teólogos da morte de Deus (ou do secularismo) voltaram atrás; tenhase em vista especialmente Harvey Cox. Todavía no Catolicismo ficaram serías marcas de secularismo:

parda do senso de oracSo, de sacralídade, de pecado, de ortodoxia (preterida em favor da ortopraxis), de espirito missíonério... Em conseqüéncia. também se registra a defeccSo de muitos fiéis cató/icos, que, diante do silencio 194

SECULARIDADE, SECULARIZACAO, SECULARISMO

3

ou da morte dos valores religiosos na cateqyese e no culto da Igreja, preferí-

ram passar-se para denominares cristSs recentes e seitas, mensageiras de falsa sacralidade, de portentos fantasiosos e proposicoes irracionais... A tomada de consciéncia destes fatos é urna etapa importante para se

levar remedio á críse por que passa o Catolicismo, vulnerado pelo secularísmo ou por falsa filosofía. *

*

*

Vivemos numa época de ambigüedades: certas palavras, pelo duplo ou múltiplo sentido que podem ter, deixam os interlocutores e o público con fusos. Tais sao "liberdade, democracia, socialismo, autenticidade...". Entre estas, enumeram-se também, no vocabulario da fé, os tres termos "secularidade, secularizado e secularismo". O mundo atual está "secularizado" é, por exemplo, urna locucao cujo sentido á primeira vista nao está claro, mas, apesar de tudo, serve de ponto de partida para conclusoes diversas. Eis por que nos voltaremos para um estudo mais profundo destes termos e da pro blemática que eles conotam.

1. Secularidade Século vem do vocábulo latino saeculum, que significa nao somente urna medida de tempo, mas também o mundo ou o espapo deste mundo. O mesmo duplo sentido está ligado ao termo hebraico olam e ao grego aion.

Por conseguinte, "viver no século" pode significar nao apenas "viver em tal segmento de tempo", mas também "viver no mundo". Secular é o que tem cem anos de existencia, mas pode ser também o equivalente a mun

dano ou próprio do mundo. Este último sentido faz antftese com o sagrado; o secular (mundano) pertence a urna esfera diferente da do sagrado, e vice-

Portanto, quando se fala de secularidade de alguma coisa, designa-se a índole mundana ou nao sagrada da mesma. Últimamente os pensadores enfatizam a secularidade das ciencias humanas e do próprio universo, querendo assim dizer que tais coisas nSo slo diretamente regidas pela religiao; a religiao nao as comanda com ditames, receitas e solucoes... Assim, por exemplo, a medicina tem sua secularidade, que deve ser respeitada; ela possui, sim, seus principios e suas conclusoes deduzidas de pesquisas. A religiao nao tem

1 Sinónimo de secular é o vocábulo profano, que vem de pro (= na frente

de) e fanum (templo). Por conseguinte, profano é o que está fora do templo ou do ambiente sagrado. 195

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

receitas para a cura de doencas ou nao é curandeirismo... A economía tem também sua autonomía frente a religiao no sentido de que ninguém aprende economía na escola da fé, mas, ao contrario, deve procurar mestres de eco nomía, que tém premissas e normas adequadas ao respectivo setor. A políti ca, igualmente, é urna arte e um saber construidos a partir de principios proprios.

Claro está que indiretamente todas as ciencias e ativídades humanas estao subordinadas á fé no sentido de que nenhuma de suas proposicoes pode ser verídica se discorda de algum artigo de fé ou de Moral católica. Estas sao

criterios negativos, que podem indicar erros, mas nao substituem a pesquisa humana. De resto, nunca urna auténtica proposicáo científica será contraria a um artigo de fé, pois tanto o mundo como a mensagem do Evangelho tém

sua fonte em Deus.

A própria natureza, que o homem deve estudar e explorar, tem suas leis naturais, dadas pelo Criador; merecem respeito da parte do homem, de modo que a medicina, por exemplo, embora seja urna ciencia, nao deve rea lizar pesquisas, experiencias ou ¡ntervencóes que violem as leis da natureza ou que reduzam o ser humano á categoría de mero produto de laboratorio.

Numa palavra: o homem e as criaturas que o cercam, estao intimamente rela cionados com Deus Criador, de sorte que toda a atividade humana, para ser realmente construtiva, há de manter essa harmonía com as leis incutídas por Deus a cada urna das suas criaturas. Veja-se a respeíto a Constituícao Gaudium et Spes n? 36, do Concilio do Vaticano II. Assim a secularidade bem entendida é legítima; mas pode tornar-se ilí

cita se rompe o relacionamento (ao menos indireto) com o Criador. Pódese até dizer que o reconhecimento da secularidade é precisamente urna das ca racterísticas do Cristianismo, pois este se opds e opóe á medicina "curandeira", á divinizacao do rei, do imperador, do Chefe de Estado ou do próprio Estado,... a qualquer forma de supersticao e magia (estas atríbuem poderes divinos ou superiores a criaturas que nao os tém}, a qualquer tipo de fatalis mo; em suma, ... a qualquer modalidade de idolatría (o cientificismo, o po

der absoluto ditatorial, os mitos dos séculos passados ou da atualidade). Examinemos agora os conceitos de

2. Secularizado e Secularismo 2.1. Secularizado

O substantivo Mcularizacáb, derivado do verbo secularizar significa

tornar secular. Pode ser entendido em dois sentidos: 196

SECULARIDADE, SECULAR IZACÁO, SECULARISMO

5

1) ou é tornar secular, removendo urna componente falsamente reli giosa... Tal ocorre quando se diz Nao ao curanderismo, por exemplo; entSo seculariza-se a medicina;... quando se diz Náb ás supersticóes e á magia; en tapo secularizam-se as virtudes da prudencia, da previdencia e o próprio uso da razao humana. Tais atitudes sao cristas;

2) ... ou é tornar secular, removendo nao urna componente falsamente religiosa, mas a própria dimensao religiosa da realidade. Trata-se da recusa

dos valores religiosos, recusa que, nao obstante, professa e tenta promover os valores meramente humanos ou seculares. Tal sistema se chama secularis

mo. É a secularizado extremada ou radical. Estudemo-la mais detidamente. ZZ Secularismo

A secularizacao extremada ou o secularismo exprimiu-se, na década de 1960, no sistema dito "Teología da Morte de Deus", expressao aparente mente contraditória. Este mesmo sistema é também conhecido como "Cris tianismo sem Deus, arreligioso ou ateu". Teve grande voga e, embora hoje nao seja citado explícitamente, exerce influencia sobre alas do pensamento cristao.

Que diz a "Teología da Morte de Deus"?

Foi elaborada por protestantes, como Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), W. Hamílton, Th. J. Altizer, Harvey Cox, J.A. Robinson... Trata-se, portanto, de homens que acreditava m em Deus, mas afirmavam que Deus se tornou um nome morto ou sem significado para o homem contemporáneo; por isto

o cristao nao o deve apregoar, nem assinalar medíante símbolos ou instituícoes sagradas (igrejas, escolas, jomáis, hospitais... confessionais), mas, para poder encontrar audiencia junto aos cidadSos deste mundo, deve ¡nteressarse tao somente por valores humanos ou pela construcáo da cidade do ho

mem; de resto, dizem, quem constrói a cidade dos homens, já está construindo a Cidade de Deus ou está implícitamente sen/indo a Deus. Com outras palavras: o cristao deve vi ver ac ti Deus non daretur, como se Deus nao existisse, enfrentando os desafios deste mundo, sem recorrer á "hipótese" Deus; apenas cultuará a Deus em seu coracáo. ZZ1. Dietrich Bonhoeffer

Um dos primeiros arautos dessa mentalidade é o pastor luterano alemáo D. Bonhoeffer, que se manífestou em Cartas escritas ao seu amigo E. Bethge e reunidas num volume sob o título "Resistencia e Submissáo". Nesses textos percebe-se o estado deprimido em que se achava o autor: encon197

6

"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

trava-se no cárcere de Tegel em Berlim (1943-44), prisioneiro dos nacional socialistas, sem outra prospectiva a nao ser a condenacao á morte. Foi preci samente nesse contexto que nasceu o programa de um "cristianismo nao re

ligioso" (carta de 30/04/1944). Como o concebe Bonhoeffer?

Diz o autor que o Deus cultuado pela Religiao é um Deus "tapa-bura co", ou seja, urna explicarlo á qual os homens recorrem para cobrir as lacuñas que a ciencia deixa aberta nos sucessivos momentos da historia. Aconte ce, porém, que o Deus da Religiao está sempre a perder terreno, visto que a ciencia consegue elucidar novos e novos problemas (cartas de 30/04/44 e

29/05/44). Verdade é que ficam questoes para as quais a ciencia nunca deu

resposta nem é prováve I que a dé: a da morte, por exemplo, a da Moral, a do heroísmo de muitas pessoas que renunciam aos valores ¡mediatos por causa de bens transcendentais. Mas Bonhoeffer acaba achando que mesmo as limitacóes da ciencia exigem o recurso a Deus, pois há homens que conseguem enfrentar a morte ou viver honestamente sem recorrer á ñoclo de Deus1 (cartas de 30/04/1944 e 29/05/1944). Supressa a mo? Bonhoeffer ora Cristo foi o pelo Pai (cf. Me

dimensao religiosa, pode-se continuar a falar de Cristianis acredita que sim: o Cristianismo, diz ele, é seguir a Cristo; prototipo do homem nao religioso; na cruz, abandonado 15,34), Jesús enfrentou a morte sem recorrer a Deus (cartas

de 27/06/1944 e 16/07/44). E durante toda a sua vida Jesús foi "um ho mem para os outros".

Assim se apresenta o Cristianismo nao religioso: tendo despojado o

próprio Cristo da sua dimensao religiosa, vem a ser um estilo de vida voltado exclusivamente "para os outros". Ao propor esta concepcao, Bonhoeffer se

deixa mover fortemente por seu estado psicológico deprimido, enfatizando exageradamente em Cristo a solidáo que ele mesmo experimentava. Jesús quis, sem dúvida, sentir o que o homem pecador senté (embora Ele nao fos-

se pecador), mas morreu entregando-se ao Pai (recorrendo ao Pai), pois exclamou antes de expirar: "Pai, em tuas maos entrego o meu espirito"

(Le 23,46). Assim nao se pode dizer que a vida de Jesús teve únicamente

urna dimensío horizontal; ao contrario, o evangelista S. Lucas refere nume rosas ocasióes em que Jesús rezou ao Pai; cf. Le 3,21; 5,16; 6,12; 9,18.28s;

1 Bonhoeffer nao trata de saber se tais homens representan!, estatisticamen-

toe sociológicamente, urna cota ponderável ou se safo excecoes pouco fre quemes, a ponto de n§o poder fundamentar a sua argumentado. Teña sido me/hor que Bonhoeffer nio fosse tSo sumario ao abordar esta questSo. 198

SECULARIDADE. SECULARIZAQAO, SECULARISMO

7

11,1s; 22,32.42; 23,34.46. Foiessa uniá"ocom o Pai que possibilitou á hu

manidade de Jesús o cumprimento fiel da sua missao ou da entrega aos homens (cf. Gl 2,20; Ef 5,2.25).

Ademáis a ciencia nao destrói a religiao. Verdade é que o progresso da

ciencia contribuiu para a secularizapao no bom sentido, exposto atrás á p. 197.

Mas a ciencia, além de caminhar hesitante e temerosa de errar, deixa, e deixará sempre, sem solucao questoes fundamentáis do ser humano: Donde venho? Para onde vou? Por que existo? Qual o sentido do sofrimentó,... da morte,... do trabalho? Se alguns homens prescindem da resposta para estas indagacoes, constituem urna minoría, pois espontáneamente todo homem quer conhecer os pontos cardeais que norteiam sua caminhada.

Note-se ainda que, se se priva Jesús da sua dimensao religiosa ou trans cendental, surge a pergunta: por que haveria de ser Ele, um distante aldeSo da Galiléia, o prototipo para nos, em vez de algum líder dos nossos días, como Gandhi, Albert Schweitzer, Martín Luther King, John F. Kennedy íu outro personagem dotado e generoso na sua entrega ao bem da humanidade?

Em nossos tempos há também pioneiros que sao "homens para os outros"... e que poderiam substituir Jesús, se nos atemos á tese do secularismo. Donde se vé que o Cristianismo nao religioso se descaracteriza como Cristianismo.

2.2.2. Outros teólogos da morte de Deus

As idéias de Bonhoeffer, um tanto sufocadas pelo clima da guerra (1939-45) e do ¡mediato pos-guerra, foram retomadas poucos anos depoís em ambientes culturáis diversos; apresentaram-se com vigor novo, na base de premissas da filosofía neopositivista anglo-sax&nica (a base filosófica de Bonhoeffer era mais existencialista). Distínguiram-se entáo os nomes de John Robinson, bispo anglicano, autor do livro Honest to God (Um Deus diferente, na traducao brasileira) e Harvey Cox, com sua obra "A Cidade Secular". Tais autores partem da premissa de que Deus nao pode ser objeto dire to de nossos atos. Com efeito: Deus ó totalmente diverso daquilo que nos concebemos a respeito dele, dizem. Ora, para que algum ato nosso se possa dirigir a Deus, é necessário que previamente pensemos nele ou que construamos urna imagem de Deus. Essa imagem, poróm, é, na verdade, um ído

lo, pois representa Deus de modo totalmente diverso do que Ele é. Por con seguí nte, sempre que nos queremos voltar diretamente para Deus, interpoese inevitavelmente um ídolo, que nos faz correr o risco da idolatría. Daf con199

8

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

cluir-se que a procura de urna d¡mensá*o religiosa ou vertical da nossa vida deve ser tida como utopia idolátrica. Por isto também o Cristianismo religio so vem a ser Idolatría; só Ihe resta a dimensao horizontal de entrega ao bem dos homens, tendo por prototipo o próprio Jesús: em conseqüéncia, os cristSos devem renunciar a favorecer atitudes específicamente religiosas para construir tao somente a "cidade secular" ou para resolver os problemas que angustiam a vida dos homens - o que se obtém, antes do mais, mediante um serio compromisso político.

2.2.3. Urna avaliacao a) Idolatría

O neopositivismo dos teólogos da morte de Deus incide numa falacia:

confunde conhecimento imperfeito e conhecimento falso. Sao Paulo in-

sistiu na possibilidade de conhecermos a Oeus a partir das criaturas (Rm 1,

20); o Apostólo mesmo reconhece que tal conhecimento é imperfeito OCor 13, 12), mas nao o considera falso. Quando falamos de Deus, abordamos o

Ser Perfeito, mas esse Ser nao é radicalmente diferente de nos; entre ele e a criatura existe o que em Filosofía se chama "analogía". Isto quer dizer: as perfeicóes que vemos ñas criaturas, podem ser atribuidas a Deus, pois elas realmente se realízam em Deus, isentas das imperfeícoes que em nos elas tém. Por isto Deus será sempre maior do que qualquer nocao que dele tehamos; mesmo assim as nopoes de perfeício que formulamos, afirmam algo de verdadelro e real; por isto elas nao sSo ídolos. Assim, por exemplo, quan do afirmamos que Deus é amor, nao estamos dizendo algo de falso ou equi

vocado, e, sim, algo de real, pois o amor é urna perfeicao que existe em

Deus, mas sem as límítacoes que ele tem em nos. É isto que permite afirmar:

entre Deus e nos nao há total diversidade, mas analogía. b) Dimensao vertical

O Cristianismo certamente dá grande importancia ao amor do próxi mo e á erradícacao dos males temporais, mas nem por ¡sto o Evangelho há de ser mutilado. O primeiro mandamento, disse Jesús, é "amar o Senhor Deus de todo o coracSo e de toda a alma... O segundo é amar ao próximo como a nos mesmos" (Me 12, 29-31; cf; cf. Mt 22, 37-39; Le 10,26-28).

O amor cristao é expresso no Novo Testamento mediante urna palavra rara em grego clássico: agápe {cf. ICor 13,1-13) - o que se explica pelo fato

de ser um amor novo ou inédito. Com efeito; 6 o amor gratuito ou benévolo que tenta imitar o amor de Deus, o qual primeiro e gratuitamente amou os

homens (cf. Uo 4,19). É amor que vé no próximo a imagem de Deus, cujo 200

SECULARIDADE, SECULARIZACÁO, SECULARISMO

9

resgate custou o sangue de Cristo; por istq o cristao considera o homem nao

apenas como o próximo, mas como o filtio de Deus; Sao Joao fala nao raro

de amor aos irmáos (cf. Uo 2,10; 3,10-14; 4,20) e amor aos filhos de Deus

(cf. Uo 5,2). - Em conseqüéncia, percebe-se que nao se pode eliminar do Cristianismo a dimensáo vertical; é esta precisamente que dá sentido e forca á dimensao horizontal; sorrtente num quadro de adorapfo e amor ao .Pai existe o auténtico seguimento de Jesús, Sumo Sacerdote entre Deus e os homens.

A teología da morte de Deus, como tal, perdeu sua voga na década de

1970, pois se verificou que era falsa a premissa de que o homem moderno se desinteressou dos valores religiosos ou do próprio Deus; a efervescencia

religiosa dos dois últimos decenios, tanto na Europa como na América, da qual temos urna viva experiencia no Brasil, desmentiu a idéia de que Deus é um nome morto ou sem ressonSncia a ser silenciado pelos cristaos. Nao obs

tante, o secularismo implicado por tal corrente deixou no Catolicismo atual marcas, que passamos a analisar.

3. A penetracao do secularismo Eis sete chagas de que se ressente o Catolicismo atual, afetado pelo contagio da teología da morte de Deus: 1) O declínio do sentó de adoracáb e oracao em muitos ambientes.

"Reza-se pouco ou quase nada", observam muitos católicos. A orapao é geraímente substituida pelo servico ao próximo, sob a alegacao de que "trabaIhar é rezar" ou "nao se deve subtrair ao próximo o tempo que se daria a Deus na oracao". Entre as causas explicativas do fenómeno, está o pensamentó de Bonhoeffer, segundo o qual Deus é o "tapa-buraco" para os pro

blemas que o homem nao consegue resolver; a maturidade do cidadao mo derno devena levá-lo a enfrentar os desafios sem recorrer ao Senhor, "como se Deus nao existisse"; a atitude fundamental do cristao, seguidor de Jesús, "o homem para os homens", seria a entrega ao próximo. Ademáis, segundo o neopositivismo, Deus está fora do nosso horizonte; o homem nao o aleanca pela oracao. — Na verdade, Deus está longe de ser o "tapa-buraco" ou a muleta do homem fraco e ignorante. Deus é o Sumo Ser, do qual a inteligencia humana reconhece a dependencia; voltar-se para Ele na orapao é fazer o que o homem

pode realizar de mais nobre. A oraplo nio é só petipao, mas é também adorapao, agradecí mentó, louvor e expiapao. Pelas suas súplicas o homem apre-

senta a Deus os legítimos anseios, cíente de que a orapao nada tem de mági co, mas é diálogo filial com o Pai. — A orapao nao excluí o esforpo do ho201

10

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

mem por prover as suas nncessidades; ao contrario, ela rechaca toda acornó-

dacSo indolente e covarde. Eis o que ensina o Concilio do Vaticano II:

"Aínda que re/eite absolutamente o ateísmo, a Igreja contado declara

com sinceridade que todos os homens, crentes e nao crentes, devem prestar seu auxilio á construcSo adequada deste mundo,, no qual vivem comunita riamente. Isto cortamente nSo é possfvel sem sincero e prudente diálogo" (Constituido Gaudium et Spes/i? 21j.

2} Abusos litúrgicos, que fazem das celebracóes. sagradas a ocasilo de exprimir e promover teses ou reivíndicacóes de ordem secular ou profana. Fala-se de "celebrar a vida do povo, suas lutas e campanhas", em vez de "ce lebrar o sacrificio de Cristo perpetuado sob forma sacramental". Isto acarreta a perda da reverencia que o santuario e sua liturgia exigem dos participan tes; dessacralizam-se as funcoes rituais em favor de interesses profanos ou meramente horizontais.

3} A preponderancia do político ñas pregacoes e ñas atividades pastorais. Era Harvey Cox quem julgava que o sociopolftico é primordial para os cristáos. Muitos fiéis se surpreendem por já nfo ouvirem a explicacao do Evangelho ñas prédicas; aborrecem-se e, entediados, bandeiam-se para comu nidades cristas onde a linguagem e os interesses sao mais nítidamente inspira dos pela fé (embora, muitas vezes, de fraco e discutfvel conteúdo). A dimensá"o transcendental se apaga de tal modo que os cristáfos "seculares" ou dessacralizados nSo recusam, por vezes, colaborar com facedes de ideología materia lista e anticristS, para as quais a religiao é "opio do povo". A ortodoxia ou os principios doutrinários da fé nao Ihes importam; o que pesa, é a ortopraxis ou a atividade "correta" (correta segundo os difames de ideologías nfo cristas). Observa o Concilio do Vaticano 11:

"Quando os defensores de tais ideologías chegam ao governo de urna nacSo, perseguem com veeméncia a religiio, servindo-se, na difusao do ateís mo, sobretodo na educacSo da juventude, dos meios de pressao ao alcance do poder público" (ConstituicSo Gaudium et Spes n? 20). 4) As vocacoei sacerdotal e religiosas decrescem e rarefazem-se nos setores impregnados de preocupacóes sócio-polftico-economicas, nosquaisse apcesenta o modelo do Cristo e, por conseguinte, do padre como sendo apenas

o do "homem para os outros", em vez de ser o do "dispensador dos misterios

de Oeus" (1Cor 4,1). Na verdade, para realizar o trabalho secular ou profano que a teología da morte de Deus apregoa, nato é necessário tornar-so padre. Religioso ou Religiosa; basta ser um líder sociopolftico ou um animador de tarefas tamporais. O clérigo que assuma as propostas do secularismo, faz pa pel ambiguo; traz um rótulo tradicíonalmente sagrado, que nao corresponde 202

SECULARIDADE, SECULARIZACÁO, SECULARISMO

11

as suas atividades profissionais.- o que o leva freqüentemente a desertar das fileiras sacerdotais.

5} O arrefecimento do ideal missionário. Se a esséncia do Cristianismo está na dedicacao aos problemas do próximo, o pagao que trabalha pelos seus semelhantes, é um "cristao anónimo". Nao se trata, pois, de convertirlo propriamente. Mais: o pressuposto de que nao atingimos diretamente a Deus, leva a indiferenca doutrinária; as crencas pagas entao sao consideradas como patrimonio cultural, que deve ser respeitado, sem que o cristao se ar rogue o direito de Ihes propor o substitutivo do Evangeiho ou da mensagem revelada pelo único Deus. A ortodoxia tem pouco valor, pois mais interessa a ortopraxis.

É por isto que muitos ¡mpressos de ¡nstituicoes missionárias (re vistas, jomáis, cadernos...) mais se interessam pelo desenvolvimento hu mano e cultural dos povos pagaos do que pela catequese e o Batismo dos mesmos. Há até agentes de pastoral que querem fomentar os cultos pagaos em sincretismo relativista.

Ora, se as missoes entre os "pagaos" (nao civilizados e civilizados) se reduzem á promocSo humana e cultural, perdem a sua nota especffica enun

ciada pelo Senhor em Mt 28,18-20'; nao apresentam razao de ser ou atrativo mais fortes do que qualquer outro movimento humanitario e beneficente; as vocac8es para as missoes católicas nao se distinguiriam dos chamamentos para trabalhar em Organismos de colaboracáo internacional. Além disto, levem-se em conta dois pontos: de um lado, existe, sim, a necessidade de respeitar a heranca cultural e religiosa dos povos nao cris-

taos; isto implica que nSo se escarnecam as crencas alheias nem se procurem conquistar adeptos para o Cristianismo mediante chantagem ou meios espu rios (promessas de emprego, salario, viagens ao estrangeiro, assistdncia mé dica e escolar...); tais procedimentos se chamam protelitismo; s3q exploracao da indigencia do próximo e derrogam a dignidade humana. — De outro

lado, a pregacao do Evangeiho fica sendo dever primordial de todo fiel cató

lico, consoante a ordem deixada pelo Senhor Jesús em Mt 28,18-20; Me 16, 15-20. O anuncio de que Deus é Pai e convida o homem ao consorcio da sua vida, é de primeira importancia; é o que dá sentido á existencia de todo ho-

1 "Toda a autorídade sobre o céu e a térra me foi entregue. Ide, portante,

e fazei que todas as nafdes se tomem meus discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que estou convosco todos os días até a consumafSo dos sáculos".

203

12

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

mem, rico ou pobre, o qual nSo pode deixar de indagar por que e para que vive.

Mais: o ser humano, dotado de inteligáncia e vontade, tem o direito de

que se Ihe aprésente a Verdade, e nao se I he apregoe apenas o amor, a bon-

dade, a dedicacao; sim, a inteligencia foi feita para a Verdade, principalmen

te no campo religioso ou no tocante aos pontos cardeais que orientam a ca-

minhada humana. É por isto que nao basta promover a boa f¿, a sinceridade,

a lealdade em todos os homens, mas é necessário ajudá-los a encontrar a verdadeira fé ou a mensagem crista tal como Cristo a entregou á Igreja confia da a Pedro {cf. Mt 16,16-19; Le 22,31s; Jo 21,15-17; Jo 14,25s; 16,13-15). Se o fiel católico eré convictamente que Ihe foi dado o conhecimento da ver dade religiosa, ele há de sentir o desejo de a transmitir aos irmaos, pois "as coisas boas" sao espontáneamente compartí Ihadas. Somente se a fé titubeia, pode ela ser relativizada ou colocada no plano de qualquer outra cosmovisSo. — Como dito, a evangelizado nao significa proselitismo ou desrespeito ao próximo, mas é antes um servico de caridade, o mais construtivo, decisivo e profundo de todos os servicos que se possam prestar aos semelhantes.

6) Ecumeniímo indiferentista. O ecumenismo é o movimento tenden te a extinguir as rupturas que através dos sáculos separaram os discípulos de

Cristo entre si. É o diálogo que tenta restaurar a untdade violada, fomentan

do o amor fraterno á luz da única e indivísivel verdade revelada por Jesús Cristo. Isto significa que o ecumenismo visa a superar preconceitos e paixoes, mantendo, porém, íntegra a mensagem evangélica.

Ora a teologia da morte de Deus subestima a verdade doutrinária ou a ortodoxia. Se Deus é totalmente diverso e fica além dos horizontes do nosso conhecimento, as fórmulas de fé professadas pelos diferentes grupos cristaos sao relativas e secundarias; todas nos deixam longe de Deus. Em conseqüén-

cia, o ecumenismo consistiría apenas na procura do amor fraterno, prescindindo do plano doutrinário.

Tal concepcSo já nao é a do Catolicismo ou, melhor, nao é a do Cris tianismo como tal. Este professa a objetividade das verdades da fé:nao sao

enunciados filosóficos provenientes da razSo ou do bom senso dos homens

(como os principios de um Partido político); s3o, antes, proposicces que

tém seu fundamento em Deus Pai, que nos fala em Jesús Cristo e na Igreja por Ele fundada. Em conseqüéncia, n3o é lícito aos cristSos prescindir délas,

relativizá-las ou adaptá-tas ás conveniencias de aliancas e pactos. Dizia ó

Apostólo: "Praticai a verdade na caridade" (Ef 4,15), associando assim o amor fraterno e a verdade. E também o que propoe o Concilio do Vaticano 11 no Decreto Unitatii Redintegratio n? 11: 204

SECULARIDADE. SECULAR IZACAO, SECULARISMO

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"É absolutamente necessárío que a doutrina inteira seja lucidamente

exposta. Nada 6 tao alheio ao ecumenismo quanto aquele falso irenismo, pe lo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e seu sentido genuino e certo é obscurecido".

7) O apagamento do tenso do pecado. Se o homem nao se pode dirigir diretamente a Deus mediante os seus atos bons, segue-se que também nao o pode mediante os atos maus. Disto se depreende que nao há pecado que seja ofensa a Deus. Desta mane ira o conceito de pecado é esvaziado; poderá ser tido como violacao do amor fraterno, sem conseqüéncias no foro das relacoes com Deus. Isto implica urna radical revisita da Moral; com efeito, o bem e o mal se distinguiriam apenas no relacionamento com o próximo. Tal mentalidade vai-se difundindo, fazendo do homem (e nao de Deus) o grande referencial do comportamento cristao.

Ora estas concepcoes encontram na própria Biblia a sua refutacao. Basta lembrar como os Profetas do Antigo Testamento censuram pecados que nao causam daño algum ao próximo, como sao os pecados de idolatría;

cf. Is 1,2-4; 48,5-11; 57,3-13; Ez 16,23-43; Os 1,2-3,5... No Novo Testamen to, o Apostólo Sao Paulo recrimina outrossim os desmandos dos pagaos que, em vez de reconhecer o único Deus mediante o testemunho das criaturas, adoraram animáis e ídolos;cf. Rm 1,18-27.

Estes poucos dados mostram que, se a teología da morte de Deus ou o secularismo nem sempre é teóricamente professado em nossos días, ela está presente através de suas conseqüéncias práticas; suscita urna atmosfera den tro da qual se desenvolve a atual crise da Igreja. A tomada de consciéncia deste fato vem a ser importante, pois é um diagnóstico que pode servir de passo decisivo para se promover a cura da enfermidade.

4. Conclusao Como dito, a teología da morte de Deus surgí u, em grande parte, da pre-

missa de que os valores religiosos já nao interessavam ao homem de hoje. Dar a tentativa de se fazer urna reinterpretacao nao religiosa do Cristia nismo (cf. D. Bonhoeffer). Acontece, porém, que o homem é um animal essencialmente religioso, como ele é sapiens, faber, oeconomicui... Por isto a premissa em foco nao era mais do que um equívoco. Talvez se possa dizer que os arautos da teología da morte de Deus confundiam a necessidade de procurar novas expressóes de culto religioso (bem compreensfveis num mundo de grandes transformacoes culturáis) com o desinteresse pela pró pria R eligí ao. A busca de novas expressóes religiosas, na medida em que era legítima, foi assumida pelo Concilio do Vaticano II na Liturgia, na Cate205

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"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

quese, na Pastoral em geral... Quanto ao desinteresse pela Religiao, certos

sociólogos, entre os quais A.M. Greeley, mostraram que na verdade'ele nao existe. Cf. A.M. GREELEY, El hombre no secular. Persistencia de la Reli gión. Madrid 1974.

Fato curioso: quando se tornaram conscientes de que o ponto de par tida sociológico e psicológico era falso, alguns defensores do secularismo empreenderam urna guiñada de vulto: Harvey Cox, por exemplo, escreveu o livro "A Festa de Loucos. Para urna teología feliz", exaltando a importancia da festa como expressao do senso religioso. É de lamentar que nem todos os seguidores do jovem Harvey Cox o tenham acompanhado em sua evolucao teológica; até hoje, em ambiente católicos, continuam a disseminar slogans de época já ultrapassada.

Entrementes o espapo deixado vazio pela falta de pregacao propriamente dita foi infelizmente preenchido por urna serie de substitutivos ¡nadequados. Novas e estranhas expressóes do senso religioso foram-se propagan do entre os próprios cristSos: a magia, o culto do demonio, as denominac5es protestantes modernas, as seitas orientáis, o sincretismo e o ecleticismo, nao raro com índole exploratoria da boa fé e do bolso do povo... Sao mais do que modas extravagantes; revelam sintomáticamente a fome do sagrado per

sistente no homem contemporáneo. Era natural que se desse tal reacio, pois a fome n3o saciada auténticamente procura suprímentos, embora falsos, que Irte sirvam de resposta ou aparente resposta.

Estes acontecimentos todos sugerem.seria reflexá*o aos clérigos católi cos. Julgando corresponder melhor aos anseios do homem de hoje, deixaram de atender ás suas aspiracdes mais profundas e germinas, ocasionando o des

vio de numerosos fiéis para "cisternas furadas, incapazes de conter agua" (Jr 2,13); tais cristaos sao por vezes vftimas do ridículo em seitas e grupos movidos por um entusiasmo irracional ou em corren tes imobilistas de pensamentó pré-conciliar cegamente conservadoras. - Em última análise, sao estes

os frutos do apagamanto do específicamente religioso em ambientes outrora sujeitos ao secularismo ou á "teología da morte de Deus". A verificacáo dos fatos seja penhor de recomposicio do que foi vulnerado.

"Dá-me alguém que. ame, e ele sentirá o que digo. Dá-mealguóm que desoje, que caminhe neste deserto, qua ten ha sede e suspire em demanda da patria celeste. Dá-me esse homem, e ele saberá o que quero dizer" (S. Agos-

tinho, In lohannem 26, 4).

206

O dia da festa crista:

O Domingo

Em tíntese: Muitos fiéis católicos tém perdido o sentido do domingo com a sua Eucaristia e corto lazer restaurador do corpo e do espirito. Em

vista disto, deve-se recordar que a observancia do domingo é pedra de toque da ídentidade crista desde os tempos dos Apostólos (cf. 1Cor 16, 1-3; At 20, 7s; Ap 1,10). A Igre/a, herdeira desta prática, formulou os preceitos da Missa dominica/ e do repouso respectivo. Para compreender e viver plena

mente estas normas, o cristio deve reavivar em si a consciéncia de que ele 6

membro do Corpo de Cristo, que se reúne e consolida mediante a Eucaristia. O preceito dominical tem sentido pedagógico; é um apoio para que o cristio freqüente e aprofunde o significado do domingo e da Eucaristia, passando a fazer espontáneamente o que a principio tenha feito apenas por dever. No mundo secularizado em que vivemos, a observancia do domingo é dificultada, pois a vida civil ocupa o domingo com varias solicitacoes de ordem profana. Para nSo ser arrastado pela descristianizacao, o fiel católico deve ter sua consciéncia bem formada e fazer lúcida escala de valores. A Igre/a

facilita a participacao da Missa dominical, ampliando o horario das Missas

desde o sábado ¿ tarde até o domingo á noite. A Missa transmitida pelo ra dio e a televisao é importante subsidio para a piedade católica, mas nao atende ao preceito dominical, visto que este requer a presenca física dos membros da assembféia litúrgica.

0 domingo também é o dia dos valores humanos (que sao cristaos): fa milia, parentes, amigos, prática da caridade..., além da oracao pessoal e co munitaria. *

*

*

Sao cada vez mais numerosos os católicos que, sem querer abandonar a sua religiao, nSo freqüentam a celebracSo eucarfstica no domingo, nem se preocupam com a especial observancia deste dia. Muitos sabem que existe o

preceito da Missa dominical, mas ¡gnoram o porqué e o significado do mesmo. Por isto sentem-se pouco motivados para cumprir sua obrigapáo na igre207

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

ja. Alias, de modo ge ral verifica-se que está muito empalidecida a nocao do domingo na espiritualidade crista, o que torna anémica a vivencia de grande número de fiéis.

No intuito de reanimar a fé e a prática desses cristaos, as páginas seguintes desenvolverlo o sentido do domingo e dos deveres religiosos que se Ihe prendem.

1. O valor teológico do domingo Relatam os documentos antigos que um grupo de fiéis cristaos da pro

vincia romana da AbitCnia, no Norte da África, foi detido em 304, tendo consigo o sacerdote Saturnino. Eram acusados de praticar a fé, numa época em que o Imperador Diocleciano proibia severamente o culto cristao. Tendo ¡ncorrido em desobediencia formal, foram submetidos a tortura e, por fim, interrogados... Responderam entao aos seus algozes: "Muito conscientemen te celebramos a Ceia do Senhor no domingo, porque nSo é Ifcito omitir a Ceia do Senhor e nao podemos viver sem celebrar o dia do Senhor" (Atas dos Mártires. Ed. BAC 75, pp. 981 s).

Tais cristSos ficaram conhecidos como "mártires do domingo". Mostraram-se enérgicamente fiéis a urna prática que devem ter aprendido junta mente com as verdades da fé, tao fundamental era, e é, para um fiel cristao.

- Com efeito; o domingo comecou a ser caracterizado solenemente pelos cristá*os desde' a primeira hora do Cristianismo e as suas varias facetas foram sendo aos poucos desdobradas, como passamos a ver.

1.1. Origem apostólica

É de notar que Jesús ressuscitou na man ha do primeiro dia da semana

judaica, após o sábado da Lei de Moisés e nesse mesmo dia a noitinha apareceu aos Apostólos reunidos para Ihes manifestar a sua vitória sobre a morte e confiar-lhes o dom do Espirito (cf. Me 16,14-18; Le 24,36-49; Jo 20,19-

23). Oito dias depois, voltou a aparecer-lhes manifestando-se particularmen te a Tomé {cf. Jo 20, 26-29).

O próprio evento de Pentecostés ocorreu no 50? dia, como diz o nome, ou seja, após sete semanas (49 dias) - o que quer dizer: no primeiro dia da semana judaica (49 + 1 = 50).

Em 56 Sao Paulo atesta a observancia do domingo como dia de reun¡3o e culto cristao: "Em cada primeiro dia da semana, cada um de vos ponha de lado o que conseguir poupar" para ajudar a comunidade de Jerusa208

O DOMINGO

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lém (cf. 1Cor 16, 1-3). Os fiéis deviam conhecer o alcance desta expresslo:

"primeiro dia da semana".

Em Trdade (Asia Menor) semelhante prática é atestada pelo livro dos Atos: "No primeiro dia da semana, estando nos reunidos para a frapfo do pao, Paulo entretinha-se com eles..." (At 20,7s). Vé-se aqui que a Eucaristia (fracáo do pao) era solenemente celebrada no domingo, dia em que o Senhor ressuscitara.

O nome novo desse primeiro dia da semana judaica é-nos transmitido por Sao Joao em Ap 1,10: "No dia do Senhor fui movido pelo Espirito". Dia do Senhor por excelencia, porque dia da consumacao da vitória de Cristo... Em grego diz-se kyriaké hemera, ou seja, día senhorial; em latim, dominica dies; donde dominga, domingo, em portugués. Vé-se, pois, que a Igreja comecou a celebrar o domingo por instituicao dos Apostólos, que assim professavam a identidade do Cristianismo, fren te ao seu preámbulo, que fot o Antigo Testamento, caracterizado pelo sába do. Por conseguinte, antes de ser objeto de preceito, o domingo foi pedra de toque da identidade crista. Ao preterir o sábado em favor do domingo, os Apostólos nao violavam a Lei de Moisés, pois esta manda santificar todo sétimo dia com um repouso (shabbath); nao indica, porém, qual seja o primeiro dia da contagem.

Os Apostólos continuaram a manter a observancia do sétimo dia da semana ou do thabbath (repouso); apenas transferiram o primeiro dia da contagem para a segunda-fe ira. Nao há um sétimo dia no calendario cristao que nao se ja dedicado ao shabbath (repouso); o sétimo dia cristáo é precisamente o da ressurreicio do Senhor, e nao aquele que a precedeu ou aquele em que Jesús permaneceu sepultado. Consideremos agora as varias facetas do dia do Senhor.

1.2 Dia da Igreja e da Eucaristia 1.21. Dia da Igreja Vé-se que no tempo dos Apostólos o domingo era o dia da assembléia

crista; os fiéis se reuniam com os Apostólos ou com os seus pastores para a celebracao da Eucaristia. Era, pois, o dia em que o Corpo Místico de Cristo afirmava a sua índole comunitaria. Ser cristáo nao é apenas ter fé e amor, mas á viver emcomunhSo com Cristo existente na Eucaristia (muito singular209

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

mente) e nos irmaos... Mas nao é qualquer agrupamento de cristaos que sa tisfaz a essa exigencia comunitaria; é necessário que o cristao se integre naquela assembléia que Cristo constituiu e da qual Ele quer ser Cabepa,... assembléia que Cristo chamou "minha Igreja" quando Ele a fundou (cf. Mt 16, 18). Por conseguinte, ná"o me é lícito criar minha assembléia, meu grupo próprio (ao meu gosto) ou minha igrejinha, esquecendo a comunidade que o

Senhor Jesús mesmo instituiu.

A vida em comunhao com a Igreja é um sinal de autenticidade do Cris tianismo. Nao se deve separar Cristo Cabeca de Cristo Corpo (Igreja), nem separar do tronco os ramos da videira; estes so potíem dar fruto a partir da seiva do tronco que passa por todos os seus intermediarios visi'veis.

A unidade dos cristaos na Igreja é um sacramento ou canal de santificacao, que prolonga o sacramento da humanidade de Jesús e que, por sua

vez, se prolonga no sacramento da Eucaristía.

A consciéncia desta verdade se exprime num texto do século III, cha

mado Didascalia Apostolorum (Ensinamento dos Apostólos); aludindo á assembléia dominical, exorta:

"Que ninguém seja causa de detrimento para a Igreja pelo fato de nao comparecer; nem seja o Corpo de Cristo destituido de um de seus membros... NSo vos engañéis a vos mesmos nem privéis Nosso Senhor de seus membros, nem esfaceleis ou disperséis o seu Corpo. Nao anteponhais vossos assuntos á Palavra de Deus; mas deixai tudo no día do Senhor e acudí com diligencia ás vossas assembléias, pois aquí está o vosso título de louvor. Se nao o fízerdes, que desculpa terao diante de Deus os que nao se reúnem no diá do Senhor para escutar a Palavra da vida e nutrirse do alimento divino,

que permanece eternamente?" (n? 13). Estas concepcoes explicam a énfase com que o Concilio do Vaticano

11 recomenda a participacao dos fiéis na vida da sua paróquía, que é a comu

nidade eclesial em miniatura: "É preciso esforcar-se para que floresca o sen

tido comunitario paroquial, principalmente na celebracao comum da Missa dominical" (Sacrosanctum Concilium n? 42).

O Corpo de Cristo se empobrece pela ausencia dos que nSo comparecem á Missa dominical, como também por causa daqueles que, fugindo de urna assembléia maior, procuram formar grupinhos desligados da comuni dade paroquial. A propósito vém as palavras de Hb 10, 24s:

"Velemos uns pelos outros para nos estimulamos á caridade e ás boas obras. NSo deixemos as nossas assembléias, como alguns costumam fazer. 210

O DOMINGO

19

Procuremos, antes, animar-nos sempre mais, á medida que vedes o Dia se aproximar". Cf. Tg 2,1-4; 1Cor 11.17-25.

1.2.2 Diada Eucaristía

Os textos do Novo Testamento atrás citados evidenciam a ligacaó exis tente entre domingo e Eucaristía. Esta é a perpetuapao da Páscoa do Senhor; por isto o dia do Senhor nao pode deixar de ser marcado pela celebracao eucarfstica.

Desde o ¡nfcío, a Igreja assocíou doís elementos á Eucaristía: a leitura previa da Palavra do Senhor (At 20,7s.11) e a subseqüente distríbuicao de bens aos irmaos necessitados (cf. 1Cor 16,2).

O próprio Senhor parece ter incutido o nexo entre o Pao da Palavra e o pao sacramental. Assím, quando se encontrou com os discípulos de Emaus, fez-lhes primeramente um comentario das Escrituras, comecando por Moisés e continuando por todos os Profetas (cf. Le 24,27); depois sentou-se á mesa com eles para partir o pao (Le 24,30-32). Algo de semelhante pode-se ter dado em outra ocasiao, quando Jesús apareceu aos Apostólos,

explicando-lhes Moisés, os Salmos e os Profetas e corriendo com eles (cf. Le 24,36. 43-45). Fundamentando-se na praxe mais antiga, a Igreja até hoje mantém a Liturgia da Palavra como antecedente necessário da Liturgia euca ristía.

Quanto ao exerefeio da caridade fraterna (agápe), percebe-se também que estava em íntimo nexo com a Eucaristía já nos primordios da Igreja:

"Os discípulos mostravam-se assfduos aos ensinamentos dos apostólos, é comunhao fraterna, á fracao do pao e ás oracoes... Todos os que tinham abracado a fé, reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suasproprie-

dados e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um" (At 2.42.44s). Ver A14, 3237.

Este nexo se explica bem pelo fato de que a participacao na oblacao eucarística de Cristo obriga o cristao a fazer de sua vida um dom ou urna oferta unida á do Senhor em prol dos seus irmaos; cf. Rm 12,1; IPd 2,5.

No século II Sao Justino ( T 165) atestava a conexao dos tres elemen tos: liturgia da Palavra, liturgia do sacramento e ágape ou caridade fraterna: "No dia que se chama do Sol, celebrase urna reuniao dos que moram ñas cidades ou nos campos e a/i se léem, quanto o tempo permite, as Memo211

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

rías dos Apostólos ou os escritos dos Profetas. Assim que o leitor termina, o presidente faz urna exortacao g convite para imitamos tais belos exemplos.

Erguemo-nos todos, entao, e elevamos em conjunto nossas preces, após as

quais se oferecem pao, vinho e agua, como já dissemos. O presidente tambóm, na medida de sua capacidade, eleva a Deus suas preces e acoes de gra pas, respondendo todo o povo 'Amém'. Segue-se a distribuicao e participa(So, que se faz a cada um, dos alimentos consagrados pela acao de gracas, e seu envió aos ausentes, por meio dos diáconos. Os que tém, e querem, dio o que Ihes parece, conforme a sua livre determinacao, sendo a coleta entregue ao presidente, que com ela auxilia os órfaos e viúvas, os enfermos e outros necessitados, os encarcerados, os forasteiros de passagem, constituindo-se, numa palavra, o provedor de quantos se acham em necessidade" ("Apología 167).

Este testemunho de Sao Justino mostra que a Eucaristía nao se esgota no ámbito da assembléia litúrgica, mas a ultrapassa sob forma de amor aos irmSos. Primeiramente, os diáconos levavam o pao eucarfstico aos ausentes

(enfermos ou impedidos de participar). Depois os fiéis colocavam ñas maos do celebrante as suas dádivas para que este as fizesse chegar aos mais caren tes.

Isto quer dizer que o cristao que participou da Eucaristía, se bem a compreendeu, deve sentir-se devedor em relacao aos irmáos. Poderá desempenhar-se dessa dfvida ou ajudando materialmente os mais pobres (com dinheiro, roupas, alimentos... como faziam os primeiros cristáos; cf 2Cor 8, 14; Rm 15,25-27) ou levando o amor de Cristo aqueles que nao puderam freqüentar a igreja ou nao o quiseram; nenhum fiel católico pode permanecer insensfvel diante da indiferencia religiosa de tantos que ou nunca foram au ténticamente evangelizados ou, se o foram, se afastaram por algum motivo. 1.3. Oitavo dia

Muitas vezes os antígos escritores da Igreja referiram-se ao domingo como sendo o oitavo día. Supunham a contagem hebraica dos dias da sema na, na qual o sábado é o sétimo dia. O domingo seria o primeíro dia da sema na seguinte; mas foi considerado o dia oitavo. Com isto, os escritores cristaos recorriam ao simbolismo dos números: 7 significaria o mundo atual e o seu curso, visto que, conforme Gn 2,1-3, o mundo foi feito em seis dias e o Criador repousou no sábado; 7 + 1, no caso, significaria sair fora do curso deste mundo e entrar no dia único, ou sem ocaso, da eternidade. Assim o

domingo passava por antegozo da vida definitiva, dia em que o cristao procurava esquecer, tanto quanto possfvel, o rebolico das coisas temporais para

entregar-se mais plenamente ao encontró com Deus e com os valores eternos

mediante a S. Eucaristía. É o que Sao BasClio ( f 479) assim exprime: 212

O DOMINGO

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"O dia do Senhor é grande e solene. A Escritura conhece este dia sem noite. sem sucessSo e sem fim. O salmista o chamou também dia oitavo,1 porque está fora do tempo septenario... Chamem-no dia ou sáculo..., o senti do é o mesmo; destinase a transportar o nosso espirito para a vida futura" (\n Hexaemeron 2, 21).

Em suma, a designacao de domingo como oitavo dia incute a expecta tiva dos bens celestes, que sao Paulo recomenda aos Colossenses: "Procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado a direita de Deus. Pensai ñas coi sas do alto" (3,1s). 0 mesmo Apostólo nos diz que o mundo material todo espera ansiosamente ver-se libertado da servidao a que o pecado o submeteu; a desordem existente entre as criaturas que o homem utiliza para o mal, sugere ao Apostólo a idéia de que elas gemem na expectativa do fim dos tempos, quando o homem estará totalmente isento de pecado (cf. Rm 8,

18-22). Consciente disto, o cristao também anseia pela "chegada da gloria do grande Deus e Salvador nosso Senhor Jesús Cristo (Tt 2,13). Ora o do mingo é o dia em que tais verdades sao mais intensamente vividas pelos cristaos; assim abastecidos, eles assumem durante a semana as suas tarefas temporais destinadas a colaborar para a instauracao da harmonía final. A expec tativa do fim nao aliena o cristao, mas torna-o ainda mais cioso de bem desempenhar a sua missao, pois este fiel desempenho, de certo modo, anteci pa a plenitude do Reino de Deus.

Entre os 52 domingos do ano, há um que sobressai como o domingo por excelencia: é aquele em que explícitamente a Igreja celebra a Páscoa do Senhor. Os demais sao miniaturas daquele; sao a Páscoa semanal. — Sabe-se

que a data da Páscoa varia de ano para ano. A razao disto é que ela é calcula da na base do ciclo da Lúa, que nao é o dos meses solares; conforme Ex 12, 1-3. 6-8.18, ela deve ser celebrada na primeira Lúa cheia após o equinócio da primavera do hemisferio setentrional. Os cristaos esperam o domingo subseqüente a essa fase da Lúa para celebrar a Páscoa. Vejamos agora

2. O preceito dominical 2.1. Dados históricos

Vimos que o domingo, desde os primordios da Igreja, foi santificado pela celebracSo da Eucaristia e que os pastores admoestavam os fiéis a que

1 Alguns Salmos, como o SI 6, tém no seu título a indicacao "Sobre a oita-

va", que era uma rubrica de índole musical. Os escritores antigos entenderam essa rubrica como se fosse uma alusao ao oitavo dia da semana ou ao domingo. 213

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

nao faltassem a esta. Todavía, enquanto o Imperio era pagao e mesmo perse guidor, ou seja, até 313, nao era sempre fácil aos cristaos responder a este apelo, visto que o domingo era dia de trabalho. Sabe-se que no sáculo II a Eucaristia era celebrada ñas primeiras horas do domingo, visto que Cristo ressuscitou de man ha cedo.

O primeiro vestigio de preceito de Missa dominical é o canon 21 do Concilio de Elvira (Espanha), datado de 305 aproximadamente: "Se alguóm, encontrándose na cidade, deixar de comparecer á igreja durante tres domingos, será privado, por aigum tempo, da Comunhio para que veja que precisa de se emendar".

Outros testemunhos de Concilios e de Bispos exortavam os fiéis a nao antepor trabalho ou negocio aigum a celebracao eucarística do domingo, pois esta era essencial.

Em 321 o Imperador Constantino decretou festivo em todo o Imperio "o dia do Sol" (domingo). Era entao de crer que a freqüentacao da Eucaris tia seria facilitada aos cristá"os.

Eis, porém, que novas dificuldades comecaram a aparecer, derivadas do próprio ocio dominical; a populacao, principalmente nos centros urba nos, entregava-se a divertimentos varios, nem sempre edificantes. Os pastores da Igreja redobraram entao suas exortacoes ao culto dominical, a oracSo e a prática da caridade; e, a fim de reforcar estas normas, deram-lhes como base bíblica o terceiro mandamento da Lei de Deus, que mandava san

tificar o sábado. Em conseqüéncia, as prerrogativas religiosas do sábado (en tre as quais o preceito de nao trabalhar e o de cultuar o Senhor) foram trans feridas para o domingo, embora os cristáos soubessem que o domingo pertence a nova ordem de coisas.

Na Alta Idade Media (sáculos XI-XIII), os moralistas e canonistas esmiucaram as regras da observancia dominical. A partir do sáculo XII, ficou estabelecida com toda a clareza a obrigacáb, sob pecado grave, de freqüentar a S. Missa e n3o trabalhar. Os doutores insistiam especialmente na proibicSo de trabalhos servís ou trabalhos dos servos e criados, trabalhos pesa dos e exaustivos, ás vezes exigidos pelos senhores em.domingo.

Assim a casuística da observancia dominical se desenvolveu; todavía nSo foi suficientemente acompanhada por explícacoes doutrinárias e teológi cas, de modo que ficou, na mente do povo de Deus, o domingo assocíado a um preceito muito mais do que a urna mística. 214

O DOMINGO

23

Em nossos dias, diante da baixa freqüentacao da Eucaristía dominical por parte dos fiéis, há autores que preconizam a abolicao do preceito de Mis sa. Outros querem ao menos diminuir a gravidade desse preceito; mais outros acham que deverá ficar a criterio de cada católico participar ou nao da assemblóia dominical, alegando que "quem nao tem vontade de ir, nao deve forcar-se, pois o que é feito sem espontaneidade nao tem valor".

Todavía a Igreja, apesar dessas diversas sentencas, renovou em seu no vo Código de Direito promulgado em 1983 a obrigacao da Missa dominical formulada nos seguintes termos:

"Canon 1247 - No domingo e nos outros dias da festa de preceito, os fiéis tém a obrigacao de participar da Missa; além disto, devem abster-se das atividades e negocios que impecam o culto a ser prestado a Deus, a alegría própria do dia do Sanhor e o devido descanso da mente e do corpo".

"Canon 1248 - § 1. Satisfaz ao preceito de participar da Missa quem assiste á Missa em qualquer lugar onde é celebrada em rito católico, no proprio dia da festa ou na tarde do dia anterior".

Notemos que no texto ácima nao se fala de "ouvir Missa", e sim de participar da Missa. Ao mesmo tempo, a Igreja procura despertar nos fiéis a consciéncia do sentido do domingo e da Eucaristía dominical. A principal motivacao para que os fiéis participem da S. Missa nao há de ser o preceito jurídico, mas a conviccao de que "nao podemos viver sem celebrar o dia do Senhor" (mártires de Abitina).

3. Aprofundando... Distinguiremos aínda tres aspectos da temática. 3.1. O Sacramento

Nao é possi'vel a um cristSo compreender e estimar a Missa dominicrl se n3o possui urna sólida formacáo doutrinária. Muitos sao inclinados a ver

no Cristianismo um código de Moral, de modo que quem vive honestamente e pratica a caridade, parece guardar a esséncia do Cristianismo, ficando a dimensao cúltica reservada "para quem goste" ou "para quem possa"...

Ora tal Cristianismo nao pode deixar de ser anémico, equiparando-se talvez á religiosidade natural de todo homem. Na verdade, o aspecto primor

dial do Cristianismo nao é o da Ética, mas é o do Sacramento; o cristao tem que ser ontologicamente um homem novo (cf. Ef 4,22-24) para poder agir 215

24

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

segundo urna Ética nova
do a participar da vida do próprio Deus (cf. Gl 2,20; Rm 8,15); para tanto ele é atingido por Deus Pai em Cristo (Deus feito homem), que exerce a sua acSo salvífica mediante os sete sacramentos, dos quais a Eucaristía é o cen

tro... Assim enxertado em Cristo e comungando com a vida do Pai, do Filho e do Espirito Santo é que o cristao desenvolve a sua conduta moral; esta é mero efluxo da inserpao do cristao no Corpo de Cristo prolongado (= a Igre-

ja) mediante o Batismo e a Eucaristía. Por isto é que o cristao deve ter urna consciéncía muito viva de ser membro da Igreja, integrante do Corpo de

Cristo, cujo ato central é a celebracao da Eucaristía. Mediante esta, o cristao

participa da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, vitória que ele tenta difundir através do seu traba I ho e da sua luta cotidianos.

Estes conceitos hSo de pairar em primeiro plano ante os olhos do crístSo. E a eles que a catequese deve dedicar o máximo de sua atencáo. Quem os assimilou, nSo precisará de preceito para freqüentar a Missa dominical, mas experimentará a necessidade espontánea de participar déla. O preceito dominical é mantido pela Igreja como estfmulo pedagógico, como auxilio á fragilidade da criatura, que, motivada pela lei, poderá aos poucos descobrir o auténtico sentido desta norma e fazer por amor e fidelidade espontánea o que fazia por dever.

É de notar, porém, que, mesmo quando alguém "ná"o tem vontade" de

freqüentar a Missa, a obrigacao persiste. Com efeito; o ser humano deve guiar-se pela inteligencia e a vontade e nao pelos caprichos ou sentimentos; o "sentir vontade" é algo de muito superficial, que n3o pode reger o comportamento de alguém nem mesmo no plano meramente natural; nao posso comer só quando "tenho vontade"; devo tratar da minha saúde mesmo quando nSo tenho vontade. Pode-se até dizer que chegam a ter mais valor diante de Deus os atos que cumprimos á revé lia de nossos caprichos, se tais atos sao ditados pela sá razáo ou pela fé.

3.2 Num mundo secularizado

Verdade é que em nossos tempos a prática da Missa dominical sofre obstáculos por parte do contexto do mundo em que vive o cristao. Os fins de semana sao, para muitos, ocasiSo de repouso fora da cidade, em lugares distantes de igreja; varias atividades (concursos, exames, vacinac5es...) sá"o colocadas em sábado e domingo; o esporte, cada vez mais atraente, ocupa tais días; comicios, reunióes e concentracoes de ordem política solicitam também os fins de semana dos ¡nteressados... Em suma, varias

ameacas (justificadas ou nao) tendem a dificultar a observancia dominical.

É preciso, pois, que o fiel católico saiba fazer sua escala de valores de acor216

O DOMINGO

25

do com sua consciéncia bem formada, a fim de ná"o ser vítima de correntes laicistas ou do hedonismo do ambiente contemporáneo. Requerem-se con-

viccoes sólidas e lúcidas da parte de todo cristáo a fim de que possa dar o devido testemunho de que Oeus nao é palavra morta, mas o Grande Tu e o primeiro valor na vida de um homem.

A fim de facilitar a prática dominical, a Igreja tem ampliado o horario de Missas: desde o sábado a tarde até o domingo á noite, o católico tem oportunidade de freqüentar a Eucaristía. Desde o sábado a tarde..., pois, se gundo a contagem bfblica, os dias vao de por do sol a por do sol... Nao há restricSo alguma á participacao da Missa no sábado á tarde, desde que alguém que ira assim garantir a sua fidelidade ao Senhor.

Alguns fiéis propoem que se desloque o preceito da Missa para qualquer dia da semana. Isto seria relativizar o sentido grandioso do domingo. Este é o dia da festa crista por excelencia, o dia da familia de Deus reunida na Casa do Pai...; deve, portanto, ser um dia de convergencia de todos os fiéis para a igreja e a Missa. Se alguém, por motivo de forga maior, nao pode participar da Eucaristía dentro do prazo definido, está dispensado da mesma; é claro, porém, que muito louvavelmente pode procurar a Eucaristía em dia de semana; assim nutre a sua vida espiritual, que é preciosa.

Também para contrabalancar os obstáculos á participacáo da Eucaris tía na igreja, a Missa é irradiada ou televisionada em muitos lugares. Isto é de grande valor principalmente para quem na*o pode sair de casa, detido pela ve I hice ou pela doenca ou por outros motivos; a pessoa no seu lar ouve

a Palavra de Deus e une-se á oragao do sacerdote celebrante; quanto á Co mún nao Eucarística, pode-lhe ser levada por um ministro extraordinario. Mas é preciso notar que a assisténcia á Missa pelo radio ou pela televisáo nao atende ao preceito dominical, pois falta entao a primeira condicao para

a participacao, que é a presenca f i'sica na assembléia litúrgica. Deve-se também registrar que, quando dois dias de preceito se suce de m na semana — o domingo e um sábado ou urna segunda-feira que seja

dia santo1 —, nao é suficiente ao fiel católico participar de urna só Missa, ainda que seja a Missa vespertina limítrofe entre os dois dias de preceito; mas requer-se que o católico participe da Missa correspondente a cada um dos dois dias festivos; poderá, por exemplo, participar da Eucaristia no do

mingo de manha e no domingo de tarde, se nao Ihe for possfvel ir á Missa segunda-feira.

1 Tal caso ocorre no Brasil, por exemplo, quando a festa da Imaculada Conceicao (sempre aos 8 de dezembro) cai num sábado ou numa segunda-feira. 217

26

.-,-

"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

3.3. O rapouso dominical .'. ■'

As normas concernentes ao repouso dominical foram, pelo novo Códi go de Direito Canónico, expressas em termos que manifestam principalmen

te a finalidade desse descanso:

"Canon 1247 - No domingo e nos outrós días de festa de preceito, os fiéis tém a obrigacSo de particpar da Missa; além disso, devem abster-sedas

atívidades e negocios que impecam o culto a ser prestado a Deus, a alegría

própria do dia do Senhor e o devido descanso da mente e do corpo".

Depreende-se do texto ácima que o descanso é considerado como condic3o necessária para que possa haver o culto do Senhor e a elevacao da alma

a Deus no domingo. É preciso que o homem saiba distanciarse periódica

mente dos afazeres que o materializam a fim de poder levar urna vida autén

ticamente humana e crista. Assim torna-se-lhe mais fácil realizar a justa esca la de valores e urna s(Vítese harmoniosa das diversas solicitacoes que tendem a dilacerá-lo.

O ocio dominical, além de facilitar a freqüentacao da Eucaristía, pode

também propiciar o exercfcio de alguma atividade recreativa que tenha dignidade: passeio e esportes sao saudáveis também para o espirito, contanto que nao suscitem paixSes obsessivas (como, por vezes, acontece ñas competicoes atléticas). Mas seria desejável que o cristáo se lembrasse de que o dia do Senhor é o dia oportuno para a oracfo pessoal e tranquila, para a leitura de alguma obra de espiritualidade, inclusive a S. Escritura. Os valores humanos (que também sao cristaos) deveriam ser reavivados igualmente pelo domingo: assim o convfvio em familia (especialmente a refeicao familiar em torno da mesma mesa como ocasiao de partilha de interesses e afetos), a visita a parentes vizinhos ou distantes, a amigos, a enfer mos (familiares ou nao).

Observadas estas sugestoes, o sentido do domingo pode ser recuperado com grandes vantagens para os fiéis católicos e o testemunho que devem dar aos seus concidadaos neste mundo.

"O Verbo, tendo auumido um corpo, tornou-se homem. Assim nos, homens, auumido) na carne do Verbo, somos por Ele divinizados a nos tor namos herdeiros da vida eterna" (S. Atanásio. 3? Discurso Contra os Aria-

nos 24).

218

O doloroso fenómeno dos

Casáis que se Dissolvem

Em sínteje: Q triste fato dos numerosos casamentos que se dissolvem, tem múltiplas causas, entre as quais a volubilidade da vida contemporánea; esta quer arrastar consigo também os valores perenes da fidelidade, da responsabilidade, do brío, da honra..., assim como os próprios difames da fé. Há, porém, remedios para esta situacao: a preparacao para o casamento há de ser mais esmerada, numa época em que, para o exercfcio das principáis profissoes, o ¡ovem se prepara intensamente. Além do qué, é de Sembrar que quem semeia amor, colhe amor; o amor, porém, nSo há de ser identificado

simplesmente nem com genitalidade nem com a felicidade terrestre. 0 amor auténtico consiste num querer bem, que é sempre portador de renuncia ao

egoísmo; significa querer construir o outro, em vez de querer o outro cons truido — o que so pode ocorrer num clima de paciencia e magnanimidade, penhor da verdadeira alegría interior.

É isto que se há de incutir aos jovens chamados ao casamento, a fim de que possam assumir a sua missSo com ánimo adulto e maduro, evitando o espirito aventureiro e superficial, penhor de fracassos penosos. *

* *

É freqüente hoje em día a ruptura de casamentos, com suqs dolorosas conseqüéncias tanto para os cdnjuges como para os ftihos. Os ¡nteressados se

lamentam, e com razao. Mas nao basta prantear... É preciso analisar de perto os fatos, suas causas e procurar pistas de solucao que atenuem as desgracas

de tantas pessoas chamadas ao matrimonio. É o que taremos ñas páginas subseqüentes, valendo-nos dos estudos de peritos no assunto.

1. Um fato constante é ¡lustrado Em todos os tempos, o casamento aparece como urna instituicao muito frágil. Por sua índole mesma é algo de estável e duradouro, mas, vivido por criaturas sempre sujeitas a influencias e oscilacoes, torna-se planta tenue. 219

28

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989 1.1. No paitado

Para se ter urna idéia do que era o problema nos tempos de Cristo, sejam lembrados alguns trapos da vida da Roma antiga. O povo do Lacio origi nariamente constava de camponeses, de índole dura e corajosa, que vivía da agricultura e do pastoreio. Produziu a figura do paterfamiliai (pai de fami

lia) esbopada posteriormente pelo Direito Romano, e a da matrona, ornada de virtudes domésticas. Com o tempo, porém, Roma foi dilatando suas fronteiras e seu poder, tornando-se vrtima da corruppao sexual desde as carnadas da plebe até o cume do Capitolio. O Imperador Augusto, contemporáneo de Jesús, promulgou entao a lei Papia Poppea, que prescrevia sob pena de seve ras multas, o casamento a todos os homens livres; puniu o adulterio com a sentenpa de morte e premiou com isencao de tributos os casáis que tivessem tres filhos. A corruppao, porém, era tal que no século I o filósofo estoico

Séneca (t 65 d.C.) registrava em tom burlesco: as damas romanas trocavam

de companheiro tantas vezes que o seu calendario pessoal se pautava "nao pelos Cónsules de Roma, mas pelo número de maridos". Além do mais, sabe-seque Sao Paulo em Rm 1,18-32 no ano de 58 teceu com vivas cores o quadro de degradacao que afetava a situapfo da familia no Imperio Romano...1 1.2. Urna ¡magem

O mal se prolongou através dos sáculos, como dito, visto que o casa mento é urna instituí pao que se poderia comparar a urna célula viva (nao sem

razio se diz que a famflia é a primeira célula da sociedade). Na verdade, a cé lula consta de um núcleo central cercado do seu protoplasma; neste atuam forpas diversas, das quais algumas sao centrípetas ou produzem coesáo e uniáo das diferentes partes do conjunto, e outras sao centrífugas ou tenden tes á separapSo e a dispersao dos respectivos elementos. Ora em qualquer conjunto submetido a forpas contrarias vigora urna lei universal: prevalecem as mais poderosas. Se estas sá"o as centrípetas, o todo permanece unido; se, ao contrario, sSo as centrífugas, o conjunto tende a romperse.

1 Eis o trecho da Rm 1,24-27: "Daus os entregou (os gentíos), segundo o desejo dos seus coracoes, á impureza em que eles mesmos desonraram seus corpos. E/es trocaram a

verdade de Daus pela mentira a adoraran) e serviram á criatura em tugar do Criador, que é bendito pelos sáculos. Amém.

Por isso Daus os entregou a paixoes aviltantes: suas mulheres mudaram as ralacoes naturais por relacoes contra a natureza; igualmente os homens,

deixando a relacSo natural com a muihar, arderam em desojo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens a recebando em si mes mos a paga da sua aberracSo ".

220

CASÁIS QUE SE D1SSOLVEM

29

Pois bem; em todo casal há forcas. centrípetas ou de coesao e forcas centrífugas ou de dispersao; urnas e outras podem ter origem dentro ou fora do casal. Concretamente:

Exemplo de torca centrípeta oriunda de dentro: o amor e a confianca mutua existentes num casal XY.

Exemplos de forca centrípeta oriunda de fora: o código de Moral ou de Religiao adotado pelos cdnjuges. Ou a pressao exercida pelos respectivos familiares, que nao aceitam o divorcio.

Exemplo de forca centrífuga proveniente de dentro: antipatía e aversao oriundas do fato de que um dos dois cdnjuges nao aceita as mentiras que o outro Ihe conta para justificar suas ausencias. Exemplo de forca centrífuga externa: o surto de um terceiro indivi duo {homem ou mulher) que dé origem a um triángulo afetivo. Ou ainda: a interferencia da sogra na vida do marido.

1.3. Dois casos típicos

Aplicando estes dados teóricos a realidade, podem-se imaginar os dois seguintes casos:

1.3.1. Helena-Januário

Januário é um músico famoso, que trabalha numa orquestra de espetaculos noturnos. Ganha vultosas quantias em troca de intenso trabalho. Num dos saldes de festa que freqüenta, Januário conheceu Helena, estudante de certo nivel social e intelectual. Entre os dois surge um "amor" fulminante, que os leva a conceber um filho; para resolver a delicada situacáo, resolvem casarse, estando Helena grávida.

Feita esposa e máe, Helena nao pode sair de noite, acompanhando o marido para os festivais noturnos, de modo que se senté cada vez mais só. Sobrevem-lhe urna segunda gravidez, que a varios títulos Ihe é pesada... Ouve dizer outrossim que no horizonte de Januário apareceu urna artista, colega de espetáculos noturnos. Interrogado, Januário Ihe confessa que sim, mas que "nao há nada de grave entre eles". Helena, porém, desconfia obsessivamente e consulta um advogado, amigo de seu pai, a respeito de possívál separacao, pois tem a impressáo de que vive com um desconhecido.

Analisemos agora o campo de forcas que atuam entre Januário e Helena. 221

30

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989 Forcas centrípetas:

a) casaram-se porque estavam, ou ao menos acreditavam estar, enamo

rados um pelo outro. Quiseram ter seu filho e educá-lo num auténtico lar coisa que nem todos fazem;

b) já existe urna segunda enanca a caminho;

c) a situacá*o económica é boa, de sorte que o casal nao tem as preocupacoes que afetam muitos outros;

d) alern do mais, existe em Helena urna básica aceitacao da vida noturna de Januário, pois se enamorou e casou com ele sabendo que era "ave noturna". Há, porém, forcas centrífugas:

a) a falta de convivencia é penosa. Urna coisa é aceita-la teóricamente; outra coisa é experiméntala todas as noites ao som do relógio; b) Helena casou-se precipitadamente, a revelia dos país, que nao Ihe dfo apoio em seu lar. De resto, as fami'lias dos dois cónjuges nao se en tendem e nao colaboram; c) no plano cultural, Helena e Januário pertencem a ambientes diver sos: ela é de familia de classe media e abastada, que Ihe deu boa formacao,

ao passo que ele é de origem rude e pouco instruido. Mas é ele quem pessoalmente triunfa mediante a sua vida de artista;

d) neste contexto aparece um fator desagregador externo, que é urna colega de traba I ho de Januário, també m ela "ave noturna". Isto tira a confianca de Helena no marido e nela mesma; insegura, ela tende a ampliar imagi nariamente os problemas que a cercam;

e) as forcas externas centrípetas faltam a Helena, porque, além de nao contar com o apoio da famflia, nSo tem a fé que a poderia fortalecer nesse transe difícil.

ConclusáTo: o casal Helena-Januário está num campo de forcas antagó nicas desiguais; as centrífugas $9o mais poderosas,...; comeca a haver ruptu ra, que provavelmente terminará em total desagregacSo. 222

CASÁIS QUE SE DISSOLVEM

31

1.3.2 Dora-Ricardo Deixando a metrópole, transferimo-nos para uma cidade do interior.

Dora pertence a uma famClia de classe media, na qual o pai foi primeiramente humilde agricultor e depois se tornou um próspero comerciante, almejando sempre subir na escala social e profesional. Dora, educada em Colegio

religioso, conhece um rapaz chamado Ricardo, formado em Economia. A fa milia déla muito se empenha pelo casamento, que parece vantajoso para o pai e os irmaos de Dora; com efeito, Ricardo ¡nteressa-se por trabalhar nos negocios do futuro sogro, contribuindo para a modernizacáo e a ampliacao da empresa.

Realizam-se as nupcias. O jovem é inteligente e dinámico, bom mari do e bom pai, dando plena satisfacao ao sogro. Acontece, porém, que Ricar do viaja muito para a capital, onde abríu um escritorio a fim de intensificar os negocios. Dora, aos poucos, pergunta a si mesma se tantas ausencias se devem únicamente a interesses profissionais; nao haveria outra mulher em foco,... mulher de nivel social e económico mais elevado, mulher mais semeIhante ás colegas de Faculdade que Ricardo conheceu como estudante? Um belo dia, certa amiga intrometida I he diz que Ricardo chegou a montar um apartamento para essa outra mulher na grande cidade. Dora se cala; continua a ter amor por seu marido e vé que é sempre bom pai para os filhos. Mas as ausencias se multiplican-), inclusive para o estrangeiro. Assim a tensao sobe.

Romper-se-á tal casamento?

Ponderemos as forcas que atuam no binomio Dora-Ricardo. Forcas centrífugas:

a) Talvez nunca tenha havido profunda compreensao mutua entre os

dois conjuges. É possível que Ricardo tenha subconscientemente encarado

o casamento como uma fase promissora de sua carreira profíssional mais do

que como uma doacao de amor.

b) A origem social e a formacáo religiosa de Dora diferem das de Ricardo.

c) As viagens repetidas, especialmente quando para o estrangeiro, embora profissionalmente justificadas, aumentam a tensao de Dora, mormente em seu último período de gravidez. Forcas centrípetas

a) Dora, com tres filhos e seis anos de casada, tende naturalmente a reproduzir o modelo de familia que ela viu em casa dos país; estes nunca cogí223

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"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

taram de separacao e ajudam a filha, acompanhando-a principalmente nos momentos diffceis.

b) Dora, embora um tanto perplexa, continua a amar Ricardo e ser-lhe fiel; por isto rejeitou a sugestao, de urna amiga, de mandar vigiá-lo durante as suas andancas palas grandes cidades.

c) Dora é profundamente religiosa. Por isto considera a sua tribu lacao como partí I ha da Cruz de Cristo a ser carregada generosamente. Conclusío: as forcas centrífugas e as centrípetas sao poderosas no caso. Acontece, porém, que Dora é valiosamente sustentada por sua familia e sua fé pessoal. Do seu lado, Ricardo nSo parece pensar em separacáo; ama

os filhos e nao deseja dissolver o lar. É de crer entao que o casal nao se des trocará.

Estes dois casos, que sao espelho fiel de certa faixa da realidade, aju dam a compreender o problema da estabiiidade do casamento; vé-se quanto é complexo pelo fato de que muitas variantes nele entram.

Examinemos agora mais precisamente quais sejam os fatores que, em nossos dias, mais ameacam desagregar os lares (forcas centrífugas).

3. As causas hoje mais deletérias Apontaremos os oito seguintes fatores.

3.1. As mudancas topográficas Outrora os casáis novos permaneciam na órbita dos respectivos genito res, de modo que os avós podiam transmitir aos netos o patrimonio humano, moral e religioso característico de suas tradicoes. Podia-se falar de "familias patriarcais", das quais a estabiiidade era urna nota clássica.

Em nossos dias, sao muitas as ofertas de em prego e iniciativas que levam os casáis novos a procurar em outras regióos oportunidades mais vanta-

josas para se realizar económica ou profissionalmente. Essas migracoes contribuem para que os jovens percam a identidade de suas tradicoes; ñas gran des cidades existe massificacáo; os atrativos e as necessidades provocam dispersSo dos conjugas e dos filhos - o que gera instabilidade e ameacas de desagregacSo.

224

CASÁIS QUE SE DISSOLVEM

33

3.2 A mentalidade da mudanca

As mudanzas de domicilio, justificadas como sao, vém a ser apenas um aspecto de fenómeno mais ampio, que afeta a sociedade e o mundo, repercutindo na estabilidade do casamento. Seja lembrado o consumismo acelerado, que incita os cidadaos a com

prar e vender sempre mais e melhor. A publicidade se encarrega de suscitar os desejos ou as necessidades de adquirir novos aparelhos, novas pecas de roupa, novas comodidades... Comprar o último e o mais funcional modelo vem a ser um projeto que afeta a economía de urna familia modesta. Ora esse afa pode solapar também os valores moráis, como é, por

exemplo, o amor fiel. Quando o(a) consorte vai envelhecendo e se desgasta, pode sugerir a tentacao de trocá-lo(a) por ou trola). 3.3. A recusa do permanente

O homem moderno tem aversá"o a instituicoes e normas permanentes. Existe medo do futuro, tido como ¡ncerto;daf também a recusa de compro-

missos vitalicios. Este fator produz nao somente a instabilidade matrimo nial, mas também a proposta de "casamento provisorio ou temporario... enquanto for conveniente". O "amarrarse para sempre" parece sufocar a liberdade humana e sua capacidade típica de fazer novas e novas opcoes. Mais: há quem diga que tudo evolui nao só no mundo físico, mas tam bém no plano ético: o que hoje é verdade, amanhá poderá ser falso; o que hoje é moralmente bom, aman ha será mau, como diz a filosofía existencialista.

3.4. Os meios de comunicacáb social

É notorio o poder de influencia dos meios de comunicacao social, es pecialmente da televisao. Esta, particularmente, cria hábitos e dependencia,

dos quais o telespectador ná"o se defende se nao possui um senso crítico agudo e inteligente. Perante o televisor a pessoa adota freqüentemente, sem ter consciéncia disto, urna atitude passiva, que bloqueia a funcao crítica;

após urna novela ou um filme, muitos emitem, sim, urna sentenpa, limitada, porém, a dizer "se gostaram ou nao gostaram", "se oespetáculofoi interessante ou molesto"; os aspectos educativos e moráis... escapam a esse julgamento. Ora as imagens e os enredos colhidos na televisao sao geralmente mais vivazes e penetrantes do que os da escola e da familia; sao absorvidos sem re225

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

flexao nem jufzo crítico e vao construindo a tessitura secreta ou a trama do modo de pensar de muita gente, especialmente dos que se habituaram ás no velas e aos filmes. Assim o televisor é o permanente visitante do lar, cuja presenca foi ató mesmo paga e ao qual os familiares permitem diga coisas que nao seriam toleradas da parte de outros visitantes. Infelizmente os dados

fornecidos por tais meios sao, muitas vezes, deletérios: exibem a infidelidade

conjugal, o adulterio, o hedonismo ou a procura do prazer baixo em lugar da renuncia nobre - o que redunda em detrimento do conceito de familia está-

vel; o telespectador vai-se insensibilizando para os grandes desmandos ou es cándalos, que (he váo sendo exibidos como fatos consumados, aos quais se ria tolice querer resistir no mundo de hoje.

3.5. Dificuldades económicas

O fato económico pode afetar negativamente os casáis que estejam nos extremos da escala socio-económica.

Ñas carnadas mais modestas a penuria ou a falta de bens materiais, ás vezes de primeira necessidade, excita os ñervos dos cónjuges: o marido assume múltiplas oportunidades de trabalhar, que nao o deixam mais viver com a familia; ou um dos cónjuges culpa o outro seja de nao ganhar o suficiente, seja de gastar demais...

Ñas carnadas mais abastadas, a riqueza faz que se pense mais em ter do que em ser, justamente ao contrario do que o Papa Joáo Paulo II apresentava as familias da Espanha, que o ouviam em 1982: "A familia é a única comunidade em que todo ser humano é amado por si mesmo, por aquilo que ele é e na"o por aquilo que ele tem". O hábito de gozar e desfrutar suscita a dificuldade de renuncia; quando necessária, neqhum dos dois cónjuges está

disposto a aceitá-la para salvar a harmonía do lar. É neste sentido que a vul-

tosa riqueza pode atuar como elemento desagregador do lar.

Quanto á classe media, nao escapa á influencia do consumismo, que mais valoriza o ter do que o ser; se ela sucumbe a esta filosofía, será vitima da desagregacá"o.

3.6. Supersensibilidade sexual Ná"o há dúvida de que sSo altamente chamativos os apelos á genitalida-

de no nosso mundo, onde os muráis, os comerciáis, as bancas de jomáis... estao impregnados de erotismo e incutem a idéia de que amor e genitalidade nffo se separam; donde a expressao "fazer amor"... Em conseqüéncia, a noca"c~de vida conjugal se empobrece, reduzindo-se ás suas expressoes corporais 226

CASÁIS QUE SE DISSOLVEM

35

e eróticas. Visto que os aspectos corpóreos do ser humano se desgastam com relativa rapidez, desvaneoem-se, para muitos, os encantos do matrimonio; se guardassem a consciéncia de que o valor de alguém está, antes do mais, em suas prendas espirituais e moráis (que, em vez de definhar, podem até o fim da vida intensificar-se), nao aborreceriam tá*o fácilmente o casamento. 3.7. Ofator religioso

A fé ensina que o matrimonio sacramental é monogámico e ¡ndissolúvel. 0 elemento religioso é o fator unitivo mais forte de todos, apto a supe rar as seducoes desagregadoras; faz que o amor ao consorte seja unido ao amor a Deus, que é o amparo mais sólido possfvel para qualquer iniciativa humana lícita. A fé, traduzida em amor, inspira a oracao para pedir a grapa de Deus e suscita a imitacáo de Cristo em sua entrega aos homens, entrega que significa também renuncia; na verdade, nao há amor (especialmente amor conjugal) que nao inclua renuncia; esta, exercida de parte a parte, constituí a chave da solucao de muitos problemas do casal. Sendo assim, pode-se avaliar quá*o deletéria é, para um casal, a falta de valores religiosos; permite a expansáo do egoísmo e leva muitas vezes á recu sa de qualquer autoridade, em favor do capricho momentáneo dos cónjuges.

Existe hoje urna tendencia á "privatizapao do matrimonio", que rejeita dar satisfacao tanto á Igreja quanto ao Estado e á sociedade, admitindo que homem e mulher contraiam e dissolvam o vínculo matrimonial segundo seus interesses pessoais. Na verdade, porém, o casamento nao é ¡nstituipfo de índole meramente privada, mas possui urna dimensao social que é da competencia do Estado, guarda e intérprete do bem comum; além disto, o casamento de um cristáo católico é um sacramento, regulamentado pela Igreja em obediencia ao Evangelho. 3.8. SilSncio e comunicacao

Por último, assinalese, entre as causas de ruptura do casamento, o si lencio e a palavra indevidos.

O silencio inoportuno ou a falta de comunicacao é evidentemente desagregador, como, alias, registra a locupáo popular: "Eles nao falam um com

o outro"; "Deixaram de conversar entre si". O silencio inoportuno pode explicar-se por temperamento fechado, absorcao de cada qual no seu mundo de trabalho, ñas suas preocupacoes dentro ou fora de casa, por ressentimento ou mágoa... Estas atitudes corroem o amor e a confianca mutua, fazendo que a vida conjugal deixe de ser urna vida a dois. Requer-se, de parte a parte, 227

36

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

um esforco grande para superá-las e manter no casal o diálogo sincero, que

é, por assim dizer, a respirapao da vida conjugal.

De outro lado, as palavras inoportunas sao tambám mortfferas para o casal; quando inspiradas pela paixío, ofendem o interlocutor, exprimindo

jufzos precipitados unilaterais e atingindo por vezes a familia do(a) consor te. Os grandes conflitos comecam verbalmente e terminam em fatos doloro

sos; as brechas abertas ñas discussóes váo-se dilatando, a ponto de tornar-se agressoes físicas e ruptura total.

Pergunta-se agora:

4. E quais sao os remedios?

A própria denuncia dos fatores centrífugos do matrimonio já incluí a indicacao dos respectivos remedios; estes hao de ser o antídoto dos males apontados. Como quer que seja, vao aqui frisados alguns pontos mais impor tantes.

4.1. Samear amor para colher amor

O amor benévolo (nao interesseiro), que quer o bem do outro por cau sa do outro (e do Cristo), é a forca centrípeta mais poderosa; vem a ser a raíz e o compendio de todos os remedios para manter o matrimonio. Esse amor verdadeiro "é paciente, prestativo, nao procura o próprio interesse, nao se irrita, nao guarda rancor, tudo desculpa, tudo espera, tudo suporta" (ICor 13,4-7).

4.Z O mundo em mudencas A evolucSo e as mudancas no mundo de hoje sao fatos ¡ncontornáveis, com os quais é preciso saber conviver sem se deixar afetar negativamente.

Os deslocamentos geográficos nao sao propriamente causas de ruptura do casamento; apenas podem favorecer o desabrochamento de gérmens de desagregapffo já existente nos dois cdnjuges. Donde se vé que estes tém que .ser preparados e esclarecidos antes do casamento para que saibam sustentar seu nobre ideal em meio a circunstancias diversas urbanas e habitacionais, sem precisar de "estufa" para se conservar.

Quanto a mentalidade das mudancas ou á volubilidade de pensamento e conduta que marca o mundo de hoje, o casal cristáo há de se convencer deque 228

CASÁIS QUE SE DISSOLVEM

37

- existem valores perenes, que fazem a grandeza do ser humano, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doenca, na alegría e na tristeza. Tais sao a fidelidade, a honra, o brío, a lealdade, o senso de responsabilidade, o amor benévolo e altruista... Tais valores sao corroborados pela fé e o senso religio so naqueles que reconhecem Deus e sua Santa Palavra;

— o compromisso definitivo ou vitalicio, que amedranta a muitos, é algo de grande, pois contribuí para emancipar o individuo do egoísmo, da veleidade e dos caprichos infantis; concorre para tornar a pessoa adulta e madura. Mas, como se compreende, no mundo volúvel de hoje, é necessário

seja assumido após seria deliberacao. Precisamente o fracasso de muitos casa-

memos se deve á precipitapáo dos nubentes. É necessário que estes se compenetrem de que casamento nao é aventura, mas tarefa vital; amar nao é

querer o outro construido, mas é querer construir o outro.

Está claro que, mesmo após razoável preparapao, o matrimonio fica sendo um risco, pois o futuro é sempre urna incógnita. Mas ninguém pode fugir de todo perigo; para crescer, é necessário aceitar certos riscos previa mente ponderados. Quem corre o risco do compromisso matrimonial com sinceridade, pode estar certo(a) de que a grapa de Deus nSo Ihe faltará, para que, através das vicissitudes inerentes ao convivio de duas criaturas limitadas, ambas se engrandecam e santifiquem. A felicidade plena nesta vida á utopia inatingfvel; existe já grande felicidade na fidelidade, na honradez, na dignidade de conduta...; tal felicidade será plena na vida postuma, consumadlo de urna caminhada militas vezes ardua e penosa. "Sei em quem acreditei", dizia

Sao Paulo (2Tm 1,12), certo de que sua fidelidade ao Senhor Jesús ná*o o havia frustrado.

4.3. Dif¡cuidadas económicas

Estas certamente agravam a situacao de muitos casáis, suscitando ner vosismo e paixoes. Mas nao sao insuperáveis. O cristüo deve ter.em si a soli dez suficiente para saber manter os valores moráis mesmo ñas grandes tem pestades que por fora o ameacam. Toda personalidade bem formada deve trazer seu lastro interior, que a defenda dos adversarios exteriores, inclusive da agressividade dos modelos dos meios de comunicapao social. Tal grandeza espiritual há de ser entregue pelos pais como heranca preciosa aos filhos, pa

ra os quais o exemplo dos genitores é freqüentemente a escola mais marcan te e influente de toda a sua vida. 4.4. Preparacao

É sempre melhor prevenir que remediar. Daí as referencias á prepara-

pao matrimonial nestas páginas. É paradoxal o fato de que, para assumir ta229

38

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

refas menos vultosas e delicadas, os jovens tenham que passar por anos de preparado, ao passo que, para o casamento (convivencia fntima de duas pessoas), se registra muita leviandade e irresponsabilidade. Esta preparapao nSo incluí relacoes sexuais, como se fossem o princi pal do casamento. Ao contrarío, a abstinencia pré-matrimonial educa a vontade e a habilita a resistir a seducoes que os cónjuges tenham de enfrentar posteriormente. Mesmo que se ajustem sexualmente, doís jovens podem nao

ter condicoes de conviver ou de partilhar entre si seus interesses e sua vida.

O amor é algo de muito mais ampio do que o exercfcio da genitalidade;

esta só se enquadra bem dentro de um lar constituido estavelmente e assim apto a receber e educar novas criaturas. Onde ná"o há a estabilidade de espo so e esposa, nao há o clima necessário para formar os pequeninos.

O Papa Joab Paulo 11, em sua Exortacao Apostólica Familiar» Consor-

tio, distingue tres momentos principáis na preparacáo para o casamento:

a) a preparacáo remota, que ocorre desde a infancia, na escola do lar, onde pai e má*e ensinam a seus filhos os auténticos valores humanos e cristSos; trata-se, em grande parte, de formar o caráter, incutir-lhe o amor ao brío e á responsabilidade, para que saiba moderar dignamente as inclinacoes da natureza;

b) a preparacáo próxima, que se realiza na adolescencia. A catequese deve contribuir para o discernimento vocacional dos pupilos e ministrar aos que sentem o chamado matrimonial, as nogoes nobres e profundas que caracterizam esta vocaca*o;

c) a preparacáo ¡mediata, que antecede de perto o sacramento do matri

monio. Geralmente compreende o Curso de Noivos ministrado ñas paróquias e que merece todo o carinho da parte tanto dos instrutores como dos discí pulos; há de oferecer a ocasiao de urna reflexao concreta e profunda sobre a vida matrimonial, pondo ante os olhos dos futuros nubentes a rosa com seus espinhos, que simboliza o convivio matrimonial.

Eis algumas ponderacdes que a delicada questSo da ruptura de casamentos sugere a luz da sS razao e da fé. Possa o discurso ter sua continuida-

de nos coracdes dos interessados!

230

Está no ar:

A Igreja foi Durante Séculos Favorável ao Aborto? Em síntsse: A Igreja sempre foi contraria ao aborto, ou seja, ao morti-. cínio de uma enanca contida no seio materno. Já no sáculo I se encontra um testemunho deste repudio na Didaquá. Os Concilios regionais, desde o de El

vira (inicio do sáculo IV), foram impondo penas severas aos réus de aborto.

0 Dimito Canónico hoje vigente, fazendo eco ás diretrizes do passado, prevé

a excomunhao latao sententiae para quem provoque o aborto (seguindo-se o efeito).

Todavía até época recente os dentistas hesitaram sobre o momento em que tem inicio a vida humana: seria ¡mediatamente após a concepcao ou após a fecundacSo do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles, um intervalo (de 40 ou 80 días) entre a concepcao e a animafio do feto? A hesi-

tacao da ciencia, bem compreensivel, dada a falta de meios de pesquisa, fez que varios teólogos católicos julgassem com menos severidade a eliminacao

do feto antes do 40? dia (no caso dos individuos masculinos) ou antes do

80? dia (no caso dos individuos femininos). Note-se bem: sempre foi conde

nada a ocisao de uma crianca; a hesitacSo versava apenas sobre a questao de saber se já existe verdadeiro ser humano desde o momento da concepcao.

-..

*

*

Aos 20/02/1989 num programa de televisSo sobre o aborto foi consi

derada a posicao da Igreja em termos que deixaram interrogacoes na mente do público. Entre outras coisas, foi dito que a Igreja ná*o tem autoridade pa ra impugnar o aborto, pois que ela o permitiu desde o sáculo IV até o sáculo XIX. A afirmadlo foi realmente surpreendente e exige esclarecimientos e retificacSes. Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos pronunciamentos oficiáis da Igreja sobre o aborto através dos sáculos; após o que voltar-nos-emos para a questao do inicio da vida humana, que deixou dúvidas em escritores de todos os séculos até época recente. 231

40

"PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

1. Os pronunciamientos da Igreja 1. Desde o século I manifesta-se na Igreja a consciéncia de que o abor to é pecaminoso. Assim, por exemplo, reza a Didaqué, o primeiro Catecis mo cristáo, datado de 90-100:

"Nao matarás, nao cometerás adulterio... NSo matarás crianza por

aborto nem crianza Jé nascida" (2,2).

"O caminho da morte é... dos assassinos de enancas" (5¿2).

Na segunda metade do século II, o autor da Epístola a Diogneto obser va:

"Os crístaos casam-se como todos os homens; como todos, procriam, mas nio rejeitam os filhos" fV 67.

O autor da Epístola atribuida a S. Barnabé no século II e depois Ter

tuliano (t 220 aproximadamente), S. Gregorio de Nissa (t após 394), Sao Basilio Magno (1379) fizeram eco aos escritores precedentes. 2. A legislacao da Igreja oficializou esse modo de pensar, estipulando sancoes para o crime do aborto.

Assim o Concilio de Ancira (hoje Aneara) na Asia Menor em 314, ca non 20, menciona urna norma que os conciliares diziam ser antiga e segundo a qual as muiheres culpadas de aborto ficavam excluidas das assembléias da Igreja até a morte; o Concilio atenuou o rigor dessa penalidade, reduzindoa para dez anos:

"As muiheres que fornicam e depois matam os seus filhos ou que pro-

cedem de tal modo que eliminem o fruto de seu útero, segundo urna leí an

tiga sio afastadas da Igreja até o fim da sua vida. Todavía num trato mais humano determinamos que Ihes sejam impostos dez anos de penitencia se gundo as etapas habituáis" (Hardouin, Acta Conciliorum París 1715 t I

col.279)1.

'

Outros Concilios repetiram a condenagáo do aborto: o de Elvira (Espan ha) em 313 aproximadamente, canon 63; o de Lérida, em 524, canon 2;

"De mulieribus quae fornicantur et partus suos necant, vel quae agunt se-

cum ut útero conceptos excutiant, antiqua quidem definitio usque ad exi-

tum vitae eas ab Ecclesia removet. Humanius autem nunc definimus ut eis decem annorum tempus secundum praefixos gradus paenitentíae largiamur". 232

IGREJAFAVORÁVELAO ABORTO?

41

o de Trullos ou Constantinopla, em 629', canon 91; o de Worms em 869,

canon 35...

Em 29/10/1588, o.Papa Sixto V publicou a Bula Effraenatam: refe-

rindo-se aos Concilios amigos, especialmente aos de Lérida e Constantinopía, condenou peremptoriamente qualquer tipo de abordo e ¡mpós severas penas a quem o cometesse, penas que só poderiam ser absolvidas pela San

ta Sé. Além disto, a Bula nao distingue entre feto nao animado e feto ani mado por alma intelectiva, distincSo esta de que falaremos ás pp. 234-236 deste artigo e que na época parecía muito importante.

Tal Bula era rigorosa demais para poder ser observada, principal

mente pelo fato de reservar á Santa Sé a absolvipSo das penas infligidas aos réus de aborto. Por isto foi substituida poucos anos depois pela Bula Sedes Apostólica de Gregorio XIV, datada de 31/05/1591; este documento distin

gue entre feto animado e feto nao animado por alma humana: o abortu de feto animado ou verdadeiramente humano seria punido com a excomunhSfo para os culpados, mas sem reserva da absolviólo á Santa Sé; quanto ao abor to de feto n3o animado ou nao humano, ficaria a questao como estava antes da Bula de Sixto (seria passivo de sancáb menos severa do que o aborto de feto animado).

Como se vé, a questao da animacáo mediata ou ¡mediata era ardente na época. Diante das posicoes extremadas que alguns autores professavam, o Papa Inocencio XI condenou em 02/03/1679, como escandalosas e na práti ca perniciosas, as seguintes sen tencas:

"34. £ lícito efetuar o aborto antes da animacáo para impedir que urna jovem grávida se/a morta ou desonrada.

35. Parece provável que todo feto carece de alma racional enguanto está no seio materno; só é dotado de tal alma quando é dado á luz. Em conseqüéncia. deve-se dizer que nenhum aborto implica homicidio" (DeñzingerSchOnmetzer, Enquirídio de Símbolos e Definicoes n? 2134s).

Como se vé, o Papa nao quis abonar a tese do aborto sob pretexto de que nao afeta um ser humano propiamente dito. Embora nao se soubesse com certeza no século XVII quando comeca a vida humana, Inocencio XI ná"o se prevaleceu desta incerteza para legitimar a eliminacao do feto contido no seio materno.

No século XIX o Papa Pió IX renovou a condenapao do aborto, sem distinguir animacáo mediata ou ¡mediata:

"Declaramos estar su/'eitos a excomunhao latae sententiae (anexa dirétamente ao críme), reservada aos Bispos ou Ordinarios, os que praticam o 233

42

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

aborto com a eUm'macSo do concepto" (Bula Apostólicas Sedis de 12/10/ 1869).

Esta sentenca categórica persistiu na Igreja até o Código de D'ireito Ca

nónico atual, que prevé a excomunháo para o delito:

"Canon 1398. Quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito, incorre

em excomunhao latae sententiae".

Vé-se, pois, que a Igreja desde os seus primordios se manifestou con traria ao morticinio de urna crianca contida no seio materno. Existia, porém, para os teólogos a grave questao de saber quando comeca a vida huma na; a falta de conhecimentos genéticos adequados levava alguns a crer que, em determinadas circunstancias, nao havia verdadeira vida humana no seio

materno. É o que passamos a examinar mais detidamente.

2. Animacáo mediata ou ¡mediata? Os seres vivos sao compostos de um corpo organizado e um principio vital (chamado anima, em latim). AnimacSo, portanto, é o ato de se unirem o principio vital (anima) e o corpo organizado. No homem, a animacáo ocorre quando a alma (anima) é criada por Deus e infundida nos elementos materiais orgánicos, aptos a exercerem as funcoes da vida humana (que é ve getativa, sensitiva e intelectiva). Pergunta-se, pois, quando se dá a animacáo:

logo por ocasiáo da fecundacao do óvulo pelo espermatozoide? Tem-se entao a animacáb ¡mediata... Ou a certo intervalo após a fecundacao? Tem-se assim a animacáb mediata.

Vejamos como os pensadores responderam á questao. Na antiguidade pré-cristá* somente o filósofo grego Aristóteles (|322 a.C.) tratou do assunto. O seu raciocinio nao é claro, mas parece defender a animacáo mediata: o embriao humano teria primeramente um principio vi tal meramente vegetativo; depois seria animado por um principio vital vegeta

tivo e sensitivo, e só posteriormente por um principio (anima) vegetativo, sensitivo e intelectivo ou por urna alma humana propiamente dita. Passemos agora aos pensadores cristaos, distinguindo gregos e latinos. 2.1. Os escritores gregos

A maioria destes era partidaria da animacáo ¡mediata.

Foi principalmente S. Gregorio de Nissa (t após 394) quem marcou a tradicSo grega. Rejeitava a teoria da preexistencia seja da alma, seja do cor234

IGREJAFAVORÁVELAO ABORTO?

43

po, e afirmava a origem simultánea de'um e outro elemento; desde o primeiro instante da existencia do embriao, a alma encontra-se nele com todas as suas potencialidades, que se vao manifestando á medida que o corpo se desenvolve.

Sao Basilio Magno (t 379), irmao de S. Gregorio de Nissa, adotou o pensamento deste. Por isto considerava assassinos os que provocam o abor to de um feto.

Sao Máximo Confessor (t 662) abracou a mesma tese, fundamentan-

do-se do seguinte modo: se o corpo existe antes de ter uma alma, é um cor po morto, pois todo vívente possui uma alma. Se preexiste á alma racional, tendo uma alma meramente vegetativa ou sensitiva, segue-se que o ser huma no gera uma planta ou um animal irracional — o que é impossfvel, pois toda

planta provém de outra planta e todo animal irracional nasce de outro ani mal irracional, e nao do homem.

Entre os defensores da animapao mediata, está Teodoreto de Ciro

(t 466 aproximadamente). Apela para o livro do Génesis, onde Ihe parece

que Moisés propoe a formapao do corpo humano primeiramente e só depois a infusSo da alma humana (cf. Gn 2,7).

É certo, porém, que entre os gregos prevaleceu a tese da animapao

¡mediata.

ZZ Os escritores latinos

Entre estes destaca-se Tertuliano (t 220 aproximadamente). Era favo-

rável a animapSo ¡mediata, argumentando, porém, a partir de um principio que Ihe valeu a réplica dos pósteros. Com efeito; Tertuliano defendía a ani mapao ¡mediata, julgando que as almas dos genitores desprendiam de si uma sementé (tradux) da qual se originaria a alma da prole; por conseguinte, jun tamente com os óvulos e os espermatozoides, os genitores transmitiriam se men tes de alma humana. Esta doutrina, chamada traducianismo, nao preservava devidamente a espiritualidade da alma, mas reduzia a psyché humana á materialidade. Por isto os escritores latinos, desejosos de ressalvar a espiri tualidade da alma, puseram-se a combater o traducianismo e, com este, a dou trina da animapao ¡mediata. Afirmavam: a conceppao é obra dos genitores, mas a animapSo é obra direta de Deus que cria e infunde a alma humana. Pa ra bem distinguir uma da outra, distanciaram-nas também cronológicamente: a animapao se daria tempos após a concepcao da crianpa. O autor do livro De spiritu et anima falsamente atribuido a S. Agosti-

nho (t 430) afirmava que o corpo vive a vida vegetativa e cresce no seio ma235

44

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

temo antes de recebar a alma intelectiva ou humana. Outro autor anónimo, que foi confundido com S. Agostinho, comparava a formacao de cada ser humano a formacao de AdSo: Oeus só daría a alma intelectiva ao corpo hu mano depois que este estivesse formado, como aconteceu no caso de Adao

(Quawtiones ex Vetare Testamento c. XXIII). Cassiodoro (t 580) raciocinava do mesmo modo e acrescentava o testemunho dos módicos que estabele ciam a animacSo do corpo humano no quadragésimo dia após a concepcao (De anima c. Vil). Cassiodoro, porém, observava que, em assuntos tao obs curos, seria melhor confessar a própria ignorancia do que talar com temeridade arriscada. Na Alta Idade Media a sentenca da animacSo mediata foi reforcada pe la difusSo das obras de Aristóteles a partir do século XI11. S. Tomás de Aquí-

no (t 1274) a adotou com outros pensadores da época, estipulando a infu-

sao da alma humana ou racional no 40? dia para os individuos masculinos e no 80? dia para os individuos femininos. Houve também aqueles que, seguindo urna insinuacfo do médico grego Hipócrates, estabeleciam o 30? dia para o sexo masculino e o 40? para o sexo feminino. A partir do século XIII, algumas vozes, principalmente dentre os médi

cos, comecaram a se fazer ouvir contra a hipótese dos pensadores medievais, de modo que aos poucos foi predominando a sentenca da animacáo ¡media ta. A Genética contemporánea, com seus apurados estudos, só contribuí pa ra confirmar definitivamente esta nocao científica. Os defensores da animacSo mediata apelaram para tres textos bíblicos,

cujo alcance nos compete agora considerar.

3. Tres textos bíblicos Vfim ao caso Ex 21,22s; Lv 12,2-5 e Jó 10,9-12. 3.1. O texto de Ex 21,22»

Segundo a traducSo grega dos LXX, este texto supoe que um homem imprudente dé um golpe numa mulher grávida e provoque o aborto. Se a mulher morre ou se o fruto de seu ventre estava formado, a punicffo para o delinqüente será a morte ("morte por morte"). Se, porém, a mulher nao morre e seu fruto nao estava formado, o réu pagará apenas urna multa. Este texto parece supor que existe feto formado, plenamente humano, e feto nao

formado, nSo plenamente humano. S. Agostinho e outros autores latinos (que usavam a Biblia traduzida do grego para o latim) e gregos se apoíaram 236

IGREJAFAVORÁVEL AO ABORTO?

45

em tais versículos bíblicos para propugnar a animacao mediata; cf. S. Agostinho, In Heptateuchum, II c. LXXX.

Em resposta, deve-se observar que a traducao grega citada nao corres ponde ao texto original hebraico, nem ás versoes latina (da Vulgata), sarfiaritana, siria, árabe. Eis o mais verossímil teor do texto segundo o original he braico:

"Se homens brigarem e ferirem mulher grávida, e forem causa de abor to sem maior daño, o culpado será obrigado a indenizar o que /he exigir o marido da mulher, e pagará o que os arbitros determinarem. Mas, se houver daño grave, entio dará vida por vida".

Esta lei quer dizer o seguinte: se o delínqueme provocar expulsao do

feto, mas sem morte nem da mae nem da crianca, a punicao será uma multa.

Se, porém, houver morte ou da mae ou da crianca, o réu será condenado á morte. Como se vé, nato há ai distincSo entre feto formado e feto ná"o for mado.

O próprio texto dos LXX, ao falar de "feto formado" e "feto n3o for mado", nSo tem necessariamente em vista os períodos de pré-animapao e de animacao; pode apenas referír-se á fase em que o embríáo ainda é quase indiferenciado e áquela em que já pode ser identificado como ser humano. Como quer que seja, só pode ser utilizado, no caso, o texto hebraico

como instrumento de argumentagao, e nao o texto grego. 3.2. Oidizeres de Lv 12,2-5

A Lei de Moisés prescreve quarenta dias de purificacáo ás mulheres que tenham dado á luz um menino, e oitenta dias no caso de terem gerado uma menina. — Ora esta lei nada tem que ver com períodos de formacao

do feto no seio materno; mas foi por numerosos autores antigos considerada como símbolo de fases de animacSo. Esta consideracáo, porém, nada prova, pois um símbolo nSo é demonstrado nem prova. 3.3. As palavras de Jó 10,9-12

Eis os dizeresde Jó:

"Lembra-te de que me fizeste da barro, e agora me farás voltar ao pó? NSo me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne me revestiste, de ossos e de ñervos me teceste. Oeste a vida e o amor, e tua

solicitude me guardou".

237

46

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

Neste texto o autor sagrado menciona primeramente a formacáo do corpo (pele, carne, ossos, ñervos) e, depois, a entrega da vida como dom da misericordia divina. Por conseguinte, a alma humana teria orígem posterior ao corpo. Esta conclusao parece corroborada pelo paralelismo que o texto tece entre a formacáo do corpo de Jó e a do corpo de Adáo, ambas partindo do barro, que só depois de plasmado recebeu a aima humana.

Em resposta, notamos que o autor sagrado quer apenas referir a ordem que vai do menos importante (corpo) ao mais importante (principio vital); nao há ai sucessao cronológica de fases de formacaó do ser humano. De res to, sabemos que o autor sagrado nao tencionava oferecer urna descrigao

científica dos fenómenos que ocorrem na origem de urna criatura, de modo que é despropositado querer deduzir de tais dizeres urna sentenca de Genéti ca ou de Embriología. Adao e Jó sao comparados entre si nao sob o aspecto geneticista ou biológico, mas, sim, na medida em que ambos sao objeto da Providencia Divina. Passemos agora a urna

4. Conclusao Como se deduz das declaracoes dos Concilios e dos Papas atrás cita dos, a Igreja sempre foi contraria á ocisao de urna enanca no seio materno. Acontece, porém, que, nlo sabendo quando o feto se torna crianca (ser hu

mano) propriamente dita, os doutores antigos distinguiam a eliminagio do

feto antes do 409 ou 80? dia e o aborto propriamente dito. Nfo chegaram a legitimar ou aprovar aquela, mas julgaram que nao podia ser considerada com tanto rigor como o aborto propriamente dito; veja-se a ¡ntervencao de Gregorio XIV em 1591 (p. 233 deste fascículo). Na verdade, a extracao de um elemento nao humano nao pode ser tida como aborto.

Os antigos estavam, pois, condicionados pelo seu insuficiente conhecimento de Genética, mas por certo nao toleravam o morticinio de urna crian ca, por mais incómoda que parecesse aos pais. Hoje em dia tal condicionamento desapareceu, de modo que se pode com mais nitidez e firmeza repu diar o aborto desde a concepcao no seio materno, qualquer que seja a fase de evolucao do feto.

A propósito ver:

BEUGNET, A., Avortement, em Dictionnaire de Théologie Catholique 11/2, cois. 2644-2652.

CHOLLET, A., Animation, em Dictionnaire de Théologie Catholique 1/2. cois. 1306-1320. 238

IGREJA FAVORÁVEL AO ABORTO?

1972.

47

CONFERENCIAS EPISCOPAIS, A Igreja e o Aborto. Ed. Paulinas

HÁfíING, B.. Etica Médica, Roma 1973;

Medicina e Manipulapao. Ed. Paulinas 1977.

1982.

VARGA ANDREW, Problemas de Bioética.

Untónos, Sao Leopoldo

VIDAL, MARCIANO, Ética de Atitudes, vol. 2°. Ed. Santuario Apa

recida 1979.

***

Comunicagáo O MERCADO DE DROGAS A pedido, publicamos a seguinte advertencia emanada da Policía nor

te-americana, que chama a atencao para um problema existente nao s6 nos Es

tados Unidos, mas também na Argentina e quicá também no Brasil. AOS PAÍS O Departamento de Policía nos informou que há um novo perigoem

nossas comunidades.

É urna tatuagem chamada "ESTRELA AZUL", vendida em todos os

Estados Unidos.

Consiste em uma pequeña folha de papel que contém "ESTRELAS AZUIS" do tamanho de uma borracha de apagar. Cada estrela está impreg nada de LSD (ácido lisérgico).

Cada estrela pode ser removida e levada á boca. O LSD pode também ser absorvido através da pele, simplesmente ao manipular o papel, que apresenta cores brilhantes, semelhantes aos solos do correio, e trazem impressas

as figuras do Superman, borboletas, palnacos, o rato Mickey e outros perso-

nagens de Walt Disney, tá"o atraentes para todas as enancas. Estas estampas vfim em caixas vermelhas de papelao, envolvidas em película. Esta é uma nova forma de vender ácido e criar severos problemas por estar dirigida ás nossas pequeñas enancas.

Uma enanca pode deparar-se com isto e fazer uma "viagem" fatal. Sabe-se, inclusive, que uma enanca pequeña pode receber estes selos das maos de enancas maiores, que se queiram divertir com eles, ou por meio de adul tos, que os repartem gratuitamente para conquistar novos clientes de drogas. 239

48

"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 324/1989

Urna estampa vermelha chamada "Pirámide Vermelha" está sendo dis

tribuida junto com "Micropontos", que tém varias cores; outra forma é o "Vidro deJanela", que tem um pontilhado, o qual pode ser recortado.

Tudo isto está ligado a drogas! Por favor, avise seus filhos sobre esta nova forma de distribuicSo de drogas. Se seus filhos virem algo parecido ao que foi aqui mencionado, NAO O DEVEM TOCAR. Sabe-se que estas dro gas provocam reacio rápida e algumas estáo contaminadas com estriquinina, que é um alcaloide muito venenoso. Os síntomas sao: - Alucinares - Vómitos intensos

- Mudanca de caráter - Mudancas de temperatura do corpo

LEVE A CRIANCA MEDIATAMENTE AO MÉDICO E CHAME A POLICÍA.

DISTRIBUA ESTA MENSAGEM E COMPARTÍLHE-A COM PAÍS DE CRIANCAS E AUTORIDADES ESCOLARES.

Este alerta foi emitido pelo Condado de Gloucester - New Jersey, atencáfo de Beverly Ockney, Jackson Laboratorios, voluntarios do Comité H.O.K. Na Argentina já se iniciou a fabricapá'o e distribuicáo de tais produtos através de bancas de jornais e particulares. A Policía Federal está a par e se sabe de urna prisao na zona de Palermo, Capital Federal. Esta traducao foi feita por DUCILO; outras empresas internacionais colaboraram na sua distri buidlo, mas certamente ainda ná"o chegou a todos os pais nem a todos os

Colegios. QUEM RECEBER ISTO, COPIE-0 E DISTRIBUA-0 O MAIS

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