Ano Xi - No. 129 - Setembro De 1970

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Projeto PERGUNTE E

RESPONDEREMOS ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor com autorizacáo de Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriarñ)

APRESENTAQÁO

DA EDigÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa esperanga a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15).

Esta

necessidade

de

darmos

conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, Vv.T

visto

que

somos

bombardeados

por

numerosas correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortalega no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabal no assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site. Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003. Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo. A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabal no, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.

MO XI — N« 129

SETEMBRO DE 1970

ÍNDICE

DE QUÉ...

E PARA

I. 1)

QUÉ...!

869

AMIGA OU FANTASMA?

"Que sentido tem a morte para o homem de hoje ?

Como -pensa o crist&o a respeito ?"

II.

2)

S71

NASCEB E BENASCER

"O Batismo é dito 'o sacramento da fé'. Supoe que

o

candidato tenha aceito o Evangetko. Como entáo se podem batizar críaneinhas meapazes de conceber a fé?"

382

III. 3)

SOCIEDADE DE CONSUMO

"Os meios de comunicando social (imprensa escrita e fa-

lada) na sociedade de consumo tém sido ocam&o de problema. Lucro financeiro 'vermis' valores humanos ?"

IV. i)

398

MAIS UM ROMANCE

"Mtiito se tem comentado o romance 'Sidarta' de Her-

viann Hesse. Um dos liaros favoritos dos 'hippies'...

Que dizer ?"

íO7

RESENHA DE LIVROS

M

COM APROVAQAO ECLESIÁSTICA

.

DE QUE...

E PARA QUÉ...! A fome e a miseria sao fatos que nos inquietam, constituindo apelos para todos nos. É necessário tratemos de dar ao próximo o pao ou os bens de que possa viver. «Quem nao ama a seu irmáo, que vé, como pode amar a Deus, que nao ve?» (1 Jo 4, 20).

Es, porém, que, dito isto, algo continua a nos chamar a

atencáo. Aínda que demos a um homem pao, casa e roupa (como se costuma fazer a um cáozinho de estima), militas vézes aínda encontramos o nosso irmáo inquieto (á diferenca do que ocorre com o cáozinho); mesmo saciado no plano bio lógico, o homem nao se dá por satisfeito. E por qué?

O ser humano, por sua natureza mesma, necessita nao

sómente dos bens dé que viva, mas também de urna finalidade

ou de um objetivo por que e pora que viva. O homem normal precisa de existir em fungió de urna meta que polarize as suas energías e o ajude a se realizar como homem. £ a tendencia a um fím que faz com que o ser humano descubra em si valo res latentes e os mobilize, realizando-se plenamente. Tem suscitado eco até nossos dias o famoso Abbé (Padre) Pierre, da Franca, o fundador das chamadas «Comunidades de Emaus». A partir de 1945, ésse homem de Deus propds-se

recuperar os seus semelhantes vitimados pela guerra: esforne ados, deslocados, tendo perdido seus haveres e seus familiares, ésses homens, a fim de sobreviver, recolhiam trapos e detritos no lixo da sociedade, considerados «lixo» por si mesmos e pelos demais homens. O Abbé Pierre reuniu essas criaturas em co-

munidade e nao quis apenas prover aos parcos recursos (pao,

teto, roupa...) de que viveriam; quis também dar-lhes urna razáo de ser ou urna finalidade para que vivessem. Na verdade, despertou néles a consciéncia de que eram seres huma

nos, dotados de auténticos valores; disse-lhes persuasivamente que eram capazes de dar a sociedade e nao estavam sujeitos

apenas a reoeber; o Abbé Pierre assim respondeu as aspiracóes mais típicas de seus irmáos. — 369 —

A vida pode tornar-se tremendamente insípida, mesmo para quem possua tudo que garanta a subsistencia material. Pode haver pessoas a;quem nada falte para.ser biológicamente

felizes, mas que, nao' obstante, sao inquietas e dolorosamente

vazias ou sequiosas; faltam-lhes o «por qué» e o «para qué»

da vida, valores estes sem os quais nao há felicidade.

A literatura mundial está cheia de afirmacóes désse teor: «O fardo mais pesado é o de existir sem viver» Hugo, poeta francés).

(Vítor

«O desatino em que estáo mergulhados os homens, provém de que á noite étes nao sabem por que se levantaram nem por que amanhá háo de recomecar» (Doncoeur, S.J.).

«Sobre quantos túmulos de nossos contemporáneos nao se

poderiam gravar estas palavras: 'O homem que aqui repousa, jamáis soube por que vivia'»!» (Bopp).

«O que importa na vida, nao é tanto o local em que nos estamos, quanto a direcáo que nos tomamos» (Dolmes).

Ora ao cristáo, por excelencia, compete dar a seus irmáos nao sómente aquilo de que vivam, mas também aquilo para que vivam. Compete ajudá-los (tanto aos pobres como aos ma terialmente abastados) a estruturar a sua vida, cultivando os valores humanos do engajamento e da entrega a um ideal. Sómente o cristáo (por dom de Deus) conhece, em toda a medida do possivel na térra, o sentido da vida ou o «por qué» e o apara qué» da existencia neste mundo. Sómente o cristáo pode acenar para o Evangelho, onde aprendemos, com outras palavras, que «conhecer a Deus é viver, e servir a Deus é reinar». Vale a pena sacrificar-se, vale a pena nao se dobrar para guardar lisura e ooeréncia, vale a pena viver e morrer em prol de urna vida mais plena... Encontraremos resposta.

O Senhor todo-poderoso quis ter necessidade dos homens. Ele quis precisar de ti, leitor amigo, ... de todos nos. Obligado, Senhor! Nao permitas que eu frustre táo nobre missáo. Faze-me sinal, reflexo e instrumento de tua indiável generosidade! E.B.

— 370 —

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» Ano XI — N* 129 — Setembro de 1970

I.

AMIGA OU FANTASMA?

1) «Que sentido tem a morte para o Uomem de boje ? Como paisa, o cristáo a respeito ?» Em sintese: A morte, para muitos, é algo em que nao se pensa; o tempo é pouco para parar e refleür, dentro dos quadros da civilizacfio de consumo. Para certas correntes de pensamento, porém, a morte significa algo: o marxismo, por exemplo, a considera com serénidade; pela morte o individuo transiere sua vida e suas obras para a socledade ou o Estado, ao servico do qual ele está colocado. O existencialismo considera a morte como algo de angustiante; Heideg-

ger julga que e preciso superar essa angustia, para se levar urna vida auténtica; Sartre e Slmone de Beauvoir s&o mals inclinados a ceder ao desespero diante da perspectiva da morte; quanto a Miguel Unamuño, pensa que o homem deve resistir á perspectiva da morte e afirmar sua espontanea aversSo á mesma, aínda que Isto seia qui-

xotesco.

Para o cristáo, a morte nao é íim nem quebra, mas consumacáo de urna existencia que, iniciada na térra, desemboca na vida eterna e no consorcio de Deus. O Filho de Deus, morrendo em sinal de amor ao Pal, fez da morte de todos os cristaos, seus membros, urna reaíirmacáo de amor ao Pai ou um sacramento do encontró definitivo

com Deus.

Resposta: A morte é urna das magnas interrogacóes ou um dos grandes enigmas com que o homem se defronta. Dizia o sabio Pascal (t 1662): «Tudo o que eu sei, é que em breve hei de morrer; entretanto o que mais ignoro, é esta mesma morte, que nao poderei evitar» («Pensées» n» 194). Em nossos tempos, enquanto uns ostentam indiferenca e frieza perante a perspec tiva da morte, outros pensadores dedicam-lhe ampias consideracóes filosóficas.

Abaixo proporemos breve resenha de tres atitudes hoje em día ocorrentes em relacáo á morte tora do Cristianismo; depois examinaremos a posigáo crista (sumariamente formulada pelo Concilio do Vaticano n na Constituicáo «Gaudium et Spes» n« 18).

— 371 —

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 1

1.

lnd¡feren$ci

Em muitos ambientes da sociedade contemporánea, a morte é algo em que, voluntaria ou involuntariamente, os homens pouco pensam.

Tal realidade pode-se oompreender, em parte, pelo fato de que a sociedade de consumo chama constantemente a atencáo do homem para novas realizacóes da técnica com suas perspec tivas; o trabalho e o rendimento do trabalho ocupam e preocupam, de modo que o cidadáo, sujeíto ao ritmo da sociedade de consumo, pouco tempo tem para parar um pouco e refletir sobre o sentido de sua existencia.

De resto, ñas grandes cidades modernas tudo é calculado de maneira a fazer do acídente «morte> algo de despercebido ou normalizado. A vida empolga, descortinando horizontes iné ditos e atraentes; já se prevé o que será o cotidiano no ano 2000 e, depois, no decorrer do século XXI; váo-se debelando doencas, de modo a prolongar mais e mais a existencia do homem sobre a térra. Neste contexto de otimismo, a recordagáo da morte parece estar deslocada e fadada á esterilídade.

Os inquéritos confirmam estas observacóes.

Certos grupos de operarios da Franca, interrogados a respeito de suas preocupacóes, responderam que, se algo os inquietava, era o desemprégo, a doenga, a velhice; a morte, nunca. Caso se lhes perguntasse explícitamente se se inquietavam com

a morte, respondiam: «Nao; nela jamáis pense» ou «Nao; é

preciso que a ela nos acostumemos, pois é fatal» (Andrieux-Lágnon, «L'ouvrier d'aujourd'hui». Riviére 1961, p. 153).

O Padre Babin, em urna pesquisa realizada junto aos jovens, pode averiguar que a morte ocupa exiguo lugar entre os seus problemas («Les jeunes et la foi» 1961). Entre aqueles que se mostram indiferentes á morte, há os que procuram gozar, ao máximo, da vida presente como sendo a única existencia do homem. Seguem a recomendacáo do velho

Píndaro: «ó minha alma, nao aspires á imortalidade, mas esgota o campo do possível». Tentam utilizar todas as chances de prazer e deleite qué lhes ocorram na térra. Sao os hedonistas de varios tipos, aos quais devem interessar as palavras de Epicuro: «A morte nada é para nos. Quando existimos, a morte nada é; quando a morte existe, nos é que nao existimos» (citado por

Diógenes Laércio, em «Vitae philosophorum» X 125). — 372 —

COMO ENCABO A MORTE?

Outros há que se mantém sobrios, sacrificando o gozo aos valores do trabalho e do ideal; poderiamos chama-Ios «estoicos»;

estoicos modernos que fazem eco aos estoicos antigos; a morte1,

para eles, é um imperativo inexorável ou também urna exprés^ sao da ordem do mundo. Por isto é preciso aceita-la com dignidade e resignagáo, de acordó com a exortacáo do Imperador filósofo Marco Aurelio (t 180):
Passamos agora a

2.

O pensomento morxista

Para o marxismo, a morte é um acontecimento biológico normal. A morte do individuo nao suscita problema sentimental, pois o individuo faz parte da sodedade e esta sobrevive ou goza de perenidade; o individuo mortal ultrapassa-se a si mesmo, integrando-se no Homem total que é a sociedade.

Mais precisamente: é pelo trabalho de suas máos que o

individuo constrói a sociedade e se imortaliza nela; realizando seus planos e preparando a felicidade de geracoes vindouras, o homem sobrevive.

O jornal «Izvestia», fazendo eco a um artigo da revista

russa atéia «Nauka I Religia» (Ciencia e Religiáo) de julho de 1960, reconheceu, em um de seus artigos, que nao há questáo mais importante do que a do sentido da vida, e acrescentava:

«As religioes respondem que o sentido da vida está na imortalidadc. Ora nos, os ateus, estamos de acordó neste ponto: sim, o sen tido da vida está na imortalidade, nao da alma, mas dos grandes feitos, dos grandes pensamentos, que asseguram a felicidade das geracdes futuras» (texto citado pelo jornal «La Croix» de 24/VII/60).

Muito significativo também é o romance «O fim da lenda» do jovem escritor russo Anatólio Kouznietsoff, que descreve suas experiencias nos campos de trabalho da Sibéria. Lá um companheiro mais antigo disse-lhe urna vez: — 373 —

6

tPERGUNTE E RESPONDEREMOS> 129/1970. qu. 1

«É preciso que tenhas um objetivo, um ideal elevado em tua vida, e que, ao cabo desta existencia, deixes após ti o trabalho das tuas máos; vendo-o, os homens poderáo ser-te agra decidos !» (p. 303).

Urna vez morto o camarada, escreveu Kouznietsoff:

«Era um homem... Ele se dissolvera na vida, todo e por completo. Nao acumulara bens; nada deixara após si. Durante a revolucáo, fóra maquinista de um trem blindado; depois combatera em Leningrado durante o céreo. Construirá usinas, trans portara pecas de cimento para a represa de Angara. Entregara-se todo a isto.

No país inteiro, ele deheen a obra de anas máos, obra gran diosa, embora anónima, mas fadada a viver eternamente. Por conseguinte, que podía significar ésse montículo de térra lá, sobre o seu túmulo, em meio as colinas ? Nada; nao era lá que

que se devia procurar Zakharytch; ele se encontrava alhures: no ruido, e no movimento do mundo».

Depois de referir o fim da construcáo de urna represa, o

autor comenta:

«Aqueles que um día caminharem pelas estradas que nos construimos, contemplaráo os muros de cimento que nos ergue-

mos, e sobre os quais fícaram gravadas as marcas de nossos dedos. Jamáis saberáo quem os construiu. Dentro de alguns decenios, quando já nao existirmos, quem pensará no paradeiro daqueles que ai penaram ? Todavía é profundamente consolador pensar que nossa obra 'dará testemunho de nos diante da posteridade».

Eis o tipo de imortalidade que o marxismo aceita: como os homens da pré-história, há decenios de milhares de anos,

nos deixaram vestigios de suas máos ñas grutas que habitaram,

assim posteriormente sobre as represas e construgóes modernas os nossos descendentes deseobriráo as marcas digitais de quantos tiverem trabalhado para entregar um mundo industriali zado e feliz as geracóes futuras ! É preciso aínda considerar

3.

A atitude existencialista

Ao contrario de outras correntes, o existencialismo reflete

intensamente sobre a morte. Para ele, a morte nao é simples-

mente o termo da vida, para o qual nos encaminhamos, mas — 374 —

COMO ENCARO A MORTE?

é urna realidade qué atua em nosso intimo desde o primeiro instante de nossa existencia; cada passo que damos na vida, é marcado pela acáo da morte em nos... Em conseqüéncia, o homem é um «ser-para-a-morte» (Sein-zmn-Tode), «ser-para-morrer», nao, porém, para morrer urna só vez, pois em cada instante o homem se realiza como «um ser que morre». O homem se encaminha inexoravelmente para o naufra gio total. Ésse naufragio, porém, nao é espedñcamente humano, pois destrói também ios outros viventes. A tragedia do homem consiste em que ele se dirige conscientemente para o naufragio. Encaminhando-se para a ruina total sem se poder deter, o homem experimenta angustia (conforme Heidegger) ou náusea (segundo a terminología de Sartre). Que atitude entáü tomar diante da morte angustiante ? Os existencialistas respondem com pequeñas divergencias: a) Para Heidegger, a angustia nao deve levar ao deses pero. É preciso superar a angustia, mediante a aceitacáo do naufragio; extinga-se a resistencia espontanea á perspectiva de naufragio; sámente assim se leva urna existencia auténtica.

Reconheca o homém que urna vida sem limites óu urna duracjlo indefinida carecem de sentido; é justamente a consideracao coti diana da morte que dá significado é. vida do homem, estimu

lando as suas energías e a sua criatívidade. b)

Sartre e Simona de Beauvoir acentuam mais a idéia

de que a morte é um absurdo que repercute em toda a existen cia do homem. Éste é um «projeto inútil»; a vida, «um divertimento sobre o nada», como diz Sartre. «Todo ser existente nasce sem razáo, se prolonga por fraqueza e morre por acaso» (Sartre, «La nausee» p. 174). Nada tem sentido: nem a vida, nem a morte, tudo é igual.

Simone de Beauvoir propde reflexóes particularmente an

gustiadas :

«Para ser interessante, a vida deveria assemelhar-se a urna ascensáo: subimos um degrau, depois outro, e cada um é feito

para o degrau seguinte... Mas, se no alto tudo desmoronar... O progresso se tornará absurdo desde o coméco, voces nao acham ?» («Le sang des autres», p. 67).

O homem nao pode responder ao absurdo da vida com a resignacáo; ele tem que mostrar revolta e desespero: «A velhice infecta também o coracáo... A morte já nao é, no decorrer do tempo, urna aventura brutal: ela assombra o meu sonó; — 375 —

8

gPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 1

acordada, sinto a sua sombra entre o mundo e mim; ela já comegou» (Simone de Beauvoir, «La fon» des dioses», p. 786).

c)

O existencialista espanhol Miguel de Unámonos embora

reconheca que a morte é um naufragio total e angustiante, julga que a existencia auténtica consiste nao em o aceitar, mas, sira, em rebelar-se contra a condigno do homem dai decorrente. Unamuno, em vez de sufocar, afirma enfáticamente a repug

nancia e a resistencia espontáneas á idéiá de perecer ou naufra gar. Embora esta resistencia pareca vá, ele a sustenta, aceitan do mesmo fazer o papel de D. Quixote, o qual quería matar gigantes que eram momhos de vento: «Fagamos que o nada, se é que nos está reservado, seja urna injustiga; pelejemos contra o Destino, embora sem esperanga de Vitoria; pelejemos contra ele quixotescamente» («Del sentimento trágico de la vida» c 11). Tal luta é loucura aos olhos da razáo, mas deve ser lutada; sómente assim se vive urna vida auténtica e suportável. Unamu no faz de D. Quixote o seu mito e pergunta a si mesmo por que nao quér morrer e se rebela. Para ele, a vontade de nao morrer é talvez o caminho pelo qual o homem poderá chegar á verdadeira imortalidade: «É preciso crer talvez na outra vida para merecé-la, para consegui-la; talvez nao a mereca nem a consiga quem nao a deseja passando por cima da razáo ou, se fór necessário, opondo-se á razáo» de la vida», c. 10).

(«Del sentimiento trágico

O que há de interessante nesta posigáo, é que Unamuno valoriza a aspiracáo espontánea de todo homem á vida e h imor talidade; ele eré que a instintiva resistencia a idéia de nau

fragio total talvez nao seja absurda, mas encontré um eco ou urna resposta positiva (haverá um Deus que responda ao brado espontáneo de todo homem que quer viver ?).

Após éste percurso de opinióes, podemos voltar-nos para a posigáo crista frente á questáo da morte.

4.

A Knguagem crista

O Concilio do Vaticano II, tendo em vista a problemática

moderna relativa á morte, principalmente como é colocada pelo exietencialismo, procurou tragar as grandes linhas do pensamento cristáo sobre o assunto. Cf. Constituigáo «Gaudium et Spes» n» 18. — 376 —

COMO ENCARO A MORTE?

1.

Eis parte do texto do Concillo:

«É por acertada insplrac&o do seu coracao que o homem afasta com horror e repele a ruina total e a morte definitiva de sua pessoa. A sementé de etemldade que ele traz dentro de si, irredutivel a ma teria apenas, insurge-se contra a morte. Todas as conquistas da técnica, aínda que utllíssimas, nSo conseguem acalmar a angustia do homem. Pote a longevldade que a biología lhe obtém, nSo satisfaz ao desejo de viver sempre mais que existe inelutavelmente em seu corac3o> (Const. «Gaudium et Spes» n' 18).

Vé-se que o cristáo supera a antltese estabelédda por Uhamuno entre cabeca e coracáo: a espontánea resistencia do homem a idéia de naufragio total vem a ser, para ele, um argu mento em favor da imortalidade ou da sobrevivencia da pessoa após a morte.

Essa resistencia, para o cristáo, nao significa médo, como para o existendalismo clássico, nem é algo de inseguro ou ambiguo, mas algo de profundamente positivo: é o indicio de que o homem possui em si urna «sementé de imortalidade», ou seja, urna alma espiritual, que nao se pode reduzir á materia; quando esta (o corpo humano) se decompóe, a alma do homem se conserva em vida.

Pergunta-se, porém: por que dar tanta importancia & resis

tencia que ©pomos & idéia de desaparecimento total ?

Porque essa resistencia é algo de inato em todo e qualquer homem; se ela fósse va, a natureza do homem nao estaña retamente arquitetada; ela seria algo de ilógico ou absurdo, seria um clamor sem eco ou urna grande questáo subsistente sem resposta. Consecuentemente, tornar-se-ia impossível filosofar a respeito da natureza humana, ou seja, procurar sondá-la medi ante o raciocinio e as leis da lógica.

Ademáis verifica-se que as grandes aspiracóes ou os gran des «apetites» da natureza jamáis sao frustrados: se há ólho, que por toda a sua estrutura pede luz, existe luz para responder-lhe; se há ouvido, que pede som, existe o som como resposta; se há pulmáo, que pede ar, existe o ar;

se há estómago, que espera alimento, existe alimento; se existe agulha magnética que pede o seu polo Norte, inquieta e agitada, existe o polo Norte que a atrai e lhe permite repousar quando para ele se volta.

— 377 —

10

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 129/1970. qu. 1

Por conseguinte, também, se há no homem instinto de imortalidade, existe a imortalidade para a qual ele apela espon táneamente. O homem traz dentro de si urna alma imortaJ, de modo que a morte física, longe de ser fím do homem, é a con-

sumacáo da sua existencia.

2. O cristáo, porém, nao encara a morte apenas do ponto de vista filosófico ou racional; éste aínda deixa abertas impor tantes questóes. É á luz da Palavra de Deus que a mensagem crista, em última análise, se orienta. Essa palavra proferida,

por excelencia, por Jesús Cristo é acompanhaüa de credenciais

históricas que corroboram sua autentícidade e autoridade. «A qualquer homem que reflita, a fé, apresentada com argumen tos sólidos, oferece resposta á angustia sobre a sorte futura» (Const. «Gaudium et Spes» n« 18).

Em verdade, a fé ensina duas proposigóes a respeito da

morte :

a) O homem foi destinado por Deus a urna felicidade a ser alcanzada após a morte. Com efeito, a Biblia promete aos fiéis de Deus a vida, entendida nao apenas como duracáo ou prolongamento da existencia, mas como o conjunto de bens aptos a saciar as aspiragóes naturais do homem; cf. SI 15, 11; Mt 19,17.29; At 13,48. b)

A morte é um fenómeno natural. Todavía Deus quis

¡sentar déla o homem, de modo que a morte hoje existe no mundo em conseqüéncia de urna desordem infligida pelo homem

á ordem de coisas Inicial; a morte veio a ser a conseqüéncia do primeiro pecado.

Ela nao será, porém, a palavra última e definitiva da historia. Deus quis restaurar a ordem violada; por isto Ele

assumiu em Cristo a natureza do homem com suas miserias

físicas. Passando pela morte, Jesús Cristo mudou-lhe o sentido:

a morte, que era O sinal do pecado ou a manifestagáo da révolta contra Deus, tornou-se a expressáo da total entrega ao Pai

no amor.

Por conseguinte, a morte, para o cristáo, mera sancáo infligida pela justica divina; ela é 0 consorcio definitivo com Deus, desde que o ao Senhor Jesús mediante os sacramentos do

deixou de ser passagem para cristáo se una Batismo e da

Eucaristía; morrer em Cristo ou com Cristo (cf. 1 Tes 4, 16; 1 Cor 15, 18) significa entrar na posse irrefragável da vida: «Se morrermos com Cristo, eremos que também viveremos com Ele» (Rom 6,8).

— 378 —

COMO ENCARO A MORTE?

11

Por isto pode-se dizer que a morte é o sacramento do nosso

encontró supremo com Deus, encontró que rematará a acáo

imaada pelo Batismo e a Eucaristía. Compreende-se assim a exckmacáo do Apocalipse: «Felfees os mortos que morrem no Senhor!» (14,13).

Eis o texto conciliar em foco: «Enquanto tóda imaginacSo fracassa dlante da morte, a Igreja coñudo, instruida pela Revelacáo divina, afirma que o homem foi

^52? Pf.Deus Para «" *» «* além dos limites da miseria te™

restre. Mais ainda: ensina a íé crista que a morte corporal, da qual o homem seria subtraido se nSo üvesse pecado, será vencida um dia.

quando a salvacao perdida pela culpa do homem lhe fflr restituida

por seu onipotente e misericordioso Salvador. Pois Deus chamou e chama o homem para que ele, com a sua natureza inteira, dé sua adesao a Deus na comunhSo perpetua da incorruptivel vida divina Cristo conseguiu esta Vitoria por sua morte, libertando o homem da morte e ressuscitando para a vida. Para qualquer homem que reflete apresentada com argumentos sólidos, a fé dá urna resposta á angustia sobre a sorte futura. Ao mesmo tempo oferece a possibilidade de comunicar-se em Cristo com os lrmSos queridos já arrebatados pela morte, trazendo a esperanca de que éles tenham alcancado a verdadeira vida junto de Deus» (Const. «Gaudium et Spes» n' 18)

5.

Teología moderna

Os teólogos católicos contemporáneos tém procurado expor

o conceito cristáo de morte servindo-se do vocabulario e das

categorías de pensamento da filosofía moderna. É obvio que

nao negam, mas afirmam com clareza, a sobrevivencia do ser

humano e a vida eterna. O que lhes interessa, é a sorte do homem no momento preciso da morte.

Oassicamente diz-se que, por ocasiáo da morte do homem,

a alma se separa do corpo. Éste, achando-se desgastado ou

tesado, pode nao oferecer mais as condigóes para que a alma néle exerca as funcóes vitáis; neste caso, a alma se separa do

corpo, comparecendo diante de Deus (que a julga), ao passo

que a materia do corpo se decompóe, reduzindo-se a cinzas.

Ora a idéia de alma separada do corpo nao corresponde as cate gorías de pensamento da filosofía moderna: hoje em dia os

filósofos preferem considerar o homem como um todo, evitando

a distincáo entre corpo e alma. Em conseqüéncia há teólogos católicos que fazem reservas ao conceito de alma humana (ser puramente espiritual) separada do corpo; sem negar a existen

cia da alma e a sua sobrevivencia após a morte do composto, julgam que a alma conserva sempre urna rela$áo oom a corpo— 379 —

12

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 1

reidade. Demos a palavra a abalizado porta-voz desta nova concepgáo:

«Nao se segué que (com a morte do homem) seja aniquilado (o seu principio vital) nuraa vlsáo puramente materialista; contudo nSo permanece um principio espiritual, como puro espirito. O principio

espiritual humano so existiu como principio de urna corporeldade indi vidualizada, que por sua vez existe dentro de um cosmo. Rompida esta relacSo com a corporeidade individualizada, éste principio espiri

tual deverá manter urna relacáo com o mundo corpóreo cósmico, de modo mais ampio e profundo, aínda que nao carente de misterio para nos. Na morte, diz K. Rahner, a alma adquire urna proximidade malor e urna relacáo interna com o núcleo real da unldade do mundo — realldade difícil de conceber-se —, no qual todas as coisas do mundo se comunicam entre si por mutua influencia» (J. B. Llbanio, «ReflexSes teológicas sdbre a morte>, em «Atualizacáo» n' 3, fevereiro de 1970, pp. 15-24).

A propósito destas observagóes, parece que se pode dizer serenamente que elas sao obscuras; nao se vé bem o que as palavras assim arquitetadas possam significar de objetivo e real (os seus próprios autores reconhecem tratar de misterio ou de realidade difícil!). Na verdade, pode-se afirmar que a alma humana, embora seja meramente espiritual, foi criada para determinado corpo e para se realizar neste mundo mate rial; ela nao foi concebida como anjo, mas conserva sempre urna relagáo com seu corpo; em conseqüénda, sabemos que a Sabedoria Divina a reunirá ao corpo no dia da ressurreigáo final. Disto, porém, nao se segué que. a alma deva permanecer unida a alguma corporeidade após a morte; que corporeidade seria essa ? (Note-se que «corporeidade» é um substantivo abs-

trato). Os próprios arautos dessa tese nao o sabem explicar, como se depreende dos textos atrás citados.

Nao se diga que a concepcáo de alma separada do corpo nao é bíblica, mas paga ou platónica; em «P. R.» 123/1970, pp. 110-114 sao aduzidos varios textos bíblicos que demonstram como a Escritura propóe a distincáo entre corpo (materia) e alma (espirito). Esta distincáo parece merente a urna visáo crista e teológica do ser humano. Ela nada tem que ver com dualismo maniqueu ou gnóstico nem com a filosofía platónica,

pois nao significa que o corpo seja algo de mau em oposigáo á alma humana. O Cristianismo nao é pessimista em relacáo á materia, mas ele admite que a alma humana transcende a maté* ría, embora só se realize como tal em uniáo com a materia. — 380 —

COMO ENCARO A MORTE?

6.

13

Reflexoo final

A morte é, sem dúvida, um acontedmento de inestimável importancia para todo homem. É por ela que o homem se torna, ao máximo, um misterio para si mesmo, misterio que só Deus pode esclareosr.

Quem eré em Jesús Cristo, ou seja, o cristáo, poderá dizer que no Cristianismo a morte é valorizada como salvacio ou entrada na verdadeira vida, Paradoxalmente, o Cristianismo é a Religiáo que faz da morte de um homem (um homem-Deus, Jesús Cristo) o acontecimento fundamental da historia da salvacáo como também da historia universal. Aos olhos da fé, portante, e sómente aos olhos da fé, a morte toma seu sentido pleno. É o que se pode perceber no seguinte documento: No inicio do século n, o bispo S. Inácio de Antioquia (t cérea de 110) foi levado a Roma para ser entregue as feras no Coliseu em testemunho a Cristo. Sabedor de que seus amigos pelejavam para libertá-lo da morte, escreveu-lhes:

«É bom para mim morrer a fím de me unir ao Cristo Jesús... Aproxima-se o momento em que serei dado á luz. Perdoai-me, irmáos. Nao ponhais empedlho a que eu viva; nao queirais que eu morra» (Aos Romanos 6,ls). É da eternidade que o cristáo vive, trazendo-a implantada em seu intimo. Em tal quadro, a morte se torna meta ardentemente desejada:

«Escrevo-vos, possuido do amor da morte;... há em mim urna agua viva que fala e dentro de mim diz: Vem para 'o Pai» (S. Inácio de Antioquia, Aos Romanos 7,2; a agua viva é, con forme Jo 7, 37-39, símbolo do Espirito Santo).

Sereno, pois, e alegre, caminha o cristáo na térra de encon tró ao seu nascimento para a vida eterna; a sua fé lhe ensina quáo verídicas sao as palavras do grande Lacordaire: «Aceitar voluntariamente a morte é, na crdem moral, o ápice da grandeza. Por isto urna das leis déste mundo reza que aqueles que querem morrer sao os mestres daqueles que querem viver» («Panégyrique du B. P. Fournier»). Bibliografía:

C. Pozo, «Teología del más allá», em 'Biblioteca de Autores Cris

tianos» n* 282.

— 381 —

14

«PERPUNTEJE RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 2

E. Bettencourt, «A vida que comega com a morte». Rio de Janeiro, 1958.

J. B. Libanio, iReílexdes teológicas sobro a morte*. em «Atualizaqüo» n* 3, íevereiro 1970, pp. 15-24. K. Rahner, «Zur Theologle des Todes». Freiburg, 1965. ídem, «Tod», era «Sacramentum Mundi» IV. Freiburg i./Br. 1969,

920-27.

L. Boros, «Mysterium mortís. Der Mensch in der letzten Entschei-

dung». Olten Freiburg, 1966.

•iLa Vie Spirituelle. Supplément» n« 77, mal 1966: «La perspecüve

de la mort».

«La Vie Spirituelle, t. XVIII, n» 492, mars 1963: «Le sens chréüen

de la mortp.

«Christus. Cahiers Spirituels» n' 34, avril 1961: «La mort». M. Rocha, «Quem é éste homem?». Sao Paulo 1970.

II.

NASCER E RENASCER

2) «O Batismo é dito 'o sacramento da fé'. Sopóe que o candidato tenha aceito o Evangelho. Como entao' se podem balizar criancinhas incapazes de eonceber a fé ?» Em sfrtese: A Escritura nao refere explícitamente o batismo de criancas. Todavía narra que varios personagens pagaos professaram a íé crista e se fizeram batlzar «com toda a sua casa» (cf. At 10,1-2.24.44.47-48; At 16,13-15; At 1631-33; At 18,8; 1 Cor 1,16). A expressáo «casa» (dómus. ólkos) tinha sentido pregnante na antigüidade: designava o chefe da familia com todos os seus domésticos, inclusive as criancas (que geralmente nao faltavam). Indiretamente, pois, as Escrituras sugerem o Batismo de criancas. Esta impressáo se confirma desde que se considere que os judeus batizavam os filhos pequeninos dos pagaos que aderissem á fé de Israel. Ademáis, na passagem de Mt 19,13-15, Jesús chama a si as criancinhas, pedindo que os Apostólos nao as impegam; o verbo «im pedir» (hoolyeln) era técnico na linguagem batismal (cf. At 836; 10,47; 11,17; Mt 3,14). As crianzas eram, e sao, batizadas em vista da íé de seus geni tores, padrinhos ou, em suma, de toda a Igreja. Esta fé é útil as cri ancinhas que nao a podem eonceber, como insinúa o Evangelho ñas passagens em que Jesús beneficia a uns impotentes (mortos, ausentes ou enfermos) mediante a fé de outros. A Tradicáo sempre lembrou éste procedimento do Senhor.

— 382 —

BATEAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

15

A razáo por que a Igreja até hoje insiste no Batismo (urgente)

das criancas, procede do íato de que o Batismo é o meio normal, ins tituido por Deus, para comunicar aos homens a vida sobrenatural ou a liliacao divina, que os habilita a ver a Deus face a face após a morte. Sem Batismo a crlandnha é simplesmente herdeira do estado em que o primeiro pecado colocou a humanidade.

Deve-se, porém, reconhecer que Deus pode, por vias ocultas, fazer

que as criancinhas se salvem, mesmo que morram sem o Batismo; todavía nao se pode basear a praxe pastoral sobre conjeturas; é necessário seguir os meios instaurados e recomendados pelo próprio

Cristo.

*

Besposta: A questáo ácima é freqüentemente Iancada nos tempos atuais, em que se procura renovar salutarmente a praxe pastoral da Igreja. Os pastores de almas e teólogos dese-

jam que os sacramentos sejam ritos chelos de significado, alheios a formalismo vazio; dai especial atencáo ao Batismo, que habitualmente, por rigorosa prescricáo da Igreja, se administra

aos pequeninos.

O assunto será abaixo considerado em tros etapas: 1) o problema; 2) linhas de solucáo (a voz das Escrituras); 3) urna

objecáo; 4) razóes positivas.

1.

O problema

Nao é sómente entre católicos que últimamente se discute a conveniencia de dar o Batismo as criancas. O problema foi lancado entre os protestantes contemporáneos, dos quais as denominagóes mais antigás (luteranos, presbiterianos, meto distas. ..) administram o «sacramento da fé» as criancas. Entre os estudiosos náo-católicos do assunto, destaca-se Karl Barth, que em 1943 publicou, a guisa de manifestó inci sivo, a obra «Die Idrchliche Lehre van der Taufe» CA doutrina da Igreja a respeito do Batismo). Éste livro reforcou a posicáo de certos pregadores do sáculo XVI, atacando veementemente o chamado «pedobatismo» (pedo vem de país, paidós, enanca, em grego). Em breve, Barth dizia que a praxe de batizar os pequeños se deriva do conceito de «Tgreja multitudinista», isto é, Igreja que prefere o grande número k qualidade de seus

adeptos; tal «Igreja» nao exige condicóes previas para dar o Batismo, recrutando-se de criancas que nao podem nem conhecer nem querer o «ser cristáo». A tal nocáo de Igreja, Barth

opóe a de «Igreja confessante», Igreja que considera o Batismo — 383 —

16

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 2

como um ato de fé e um compromisso pessoais, apenas aos adultos.

acessiveis

A obra de K Barth desencadeou ecos favoráveis a si, na literatura protestante. Theo Preiss, por exemplo, julga que o pedobatismo pode ser equiparado á magia ou a urna especie de falso «seguro para a vida eterna».

A critica movida pela ala barthiana do protestantismo suscitou réplicas nao menos calorosas por parte de outros e abalizados protestantes. Estes esmeraram-se por sondar as Escrituras a fim de nelas descobrir os fundamentos bíblicos do Batismo das enancas; perscrutaram também os documentos da antiga tradicao crista, trazendo assim ampio material e judiciosas reflexóes á apreciacáo dos teólogos em geral. Sendo assim, o estudo da questáo entre católicos se pode beneficiar

dos resultados formulados nao sómente por exegetas católicos,

mas também por eruditos protestantes como Osear Cullmann, Joachim Jeremías, H. Grossmann, Michel, Jean-Jacques von AUmen.

O problema hoje em dia pode ser assim formulado: Nos livros do Novo Testamento nao se menciona o Batismo sem mencionar também a fé,... geralmente urna profissáo de fé anterior ao sacramento; o Batismo tornou-se assim o «sacra mento da fé» por excelencia. Tenha-se em vista, entre outros, o texto de Me 16,16 («Quem crer e fór batizado, será salvo»).

Ao problema que assim se póe, sejam indicadas as

2.

Linhas de solugáo

Procederemos por etapas: sobriedade do Novo Testamento, os textos bíblicos, o fundo de cena judaico, Jesús e as enancas no Evangelho. 2.1.

A sobriedade do Novo Testamento

Antes de entrarmos no exame dos textos bíblicos concernentes ao Batismo, importa observar o segutnte: a) A S. Escritura nos consignou informagóes esporádicas e ocasionáis a respeito da vida da Igreja primitiva; os autores sagrados nao intencionavam relatar tudo que entao ocorria, mas — 384 —

BATIZAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

17

em seus escritos apenas abordavam temas a proposito dos quais seus leitores imediatos precisavam de esclaredmentos. Dai a

índole incompleta das noticias bíblicas a propósito do Batismo. Tenha-se em vista, de modo especial, a breve alusáo que Sao Paulo, ao tratar de assunto muito diverso (a ressurreicáo da

carne), faz ao «Batismo pelos mortos» :

«(Se Cristo n5o ressuscitou), que proveíto alcancariam aqueles que se fazem batízar em favor dos morios? Se os mortos nao ressuscitam, por que se fazem batízar em favor déles?» (1 Cor 15, 29).

Ficamos assim sabendo, de maneira ocasional, que Corinto alguns cristáos praticavam o Batismo em favor mortos. Sao Paulo nao explica em que tenha consistido praxe (nao a aprova nem reprova; varias sao as hipóteses

em dos tal dos

comentadores desejosos de explicar ésse uso). Desta observagao pode-se concluir que, aínda que a Igreja antiga tenha pra-

ticado o Batismo das criancas, nao se deve pretender encon

trar necessáriamente a mencáo de tal praxe na S. Escritura. O silencio da Biblia a respeito de determinado tópico nao é obrigatdriamente equivalente a urna negagáo désse tópico. Ao contrario, o silencio do Novo Testamento a respeito do pedobatismo é bem compatível com a praxe do Batismo das criancas; com efeito, quando os escritores cristáos de épocas posteriores (séc. m, por exemplo) aludem explícitamente a tal praxe, nao manifestam indicios de que tenha sido urna inovacáo; nao há noticia de que tenha provocado admiragáo ou contradicáo.

Ao contrario, Orígenes (após 244) chega a atribuir aos Apos tólos o costume de batizar críangas: «A Igreja recebeu dos Apos tólos a tradiQáo de dar o Batismo aos pequeninos» («In Rom» 5,9 PG 14, 1047). b)

As circunstancias mesmas em que se desenrolava a

vida das primeiras comunidades cristas, explicam muito bem que o Batismo das criancas nao se tenha apresentado como

questáo de primeiro plano. Como em todo territorio de missáo ainda hoje, era aos adultos que os Apostólos e pregadores do sáculo I se dirigiam quando chegavam a determinada cidade para anunciar o Evangelho; nao havia familias cristas cujos

filhos pudessem ser batízados pelos missionários, mas era pre ciso constituir tais familias apregoando aos adultos a Boa-Nova. De antemSo, portante, vé-se que os casos de Batismo de criancas só se podiam tornar normáis na segunda geragáo cris ta, ou seja, em época que em grande parte já escapa ao ám bito do Novo Testamento. — 385 —

38

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 2

Feitas tais ponderagóes, passemos á consideracáo de 2.2.

Os textos bíblicos do Novo Testamento

Verdade é que a S. Escritura nao menciona explícita mente o Batismo de enancas. Também é verdade que, nos ca sos de conversáo individual de adultos (tais eram os casos mais obvios), os Apostólos exigiam unía profissáo de fé pre

via ao Batismo.

Note-se, porém, que havia na Igreja antiga casos de con versáo coletiva (alguém abracava o Evangelho «com todos os seus» ou «tóda a sua casa, toda a sua familia»). Em tais casos, diz a Escritura, era o chefe de familia quem professava a fé em nome de todos; após o que o esposo e pai recebia o Batismo

com todos os seus.

Levem-se em conta os seguintes textos, que referem con-

versóes coletivas:

At 10, 1-2. 24. 44. 47s: «Havia em Cesaréia um homem chamado Cornélio, que era centuriáo da coorte denominada itálica. Piedoso e temente a Deus, como também toda a sua familia, dava militas esmolas ao povo e orava a Deus assiduamente...

Pedro chegou a Cesaréia um dia depois. Cornélio esperava-o e tinha reunido seus párente» e seus amigos mais ín timos. ..

Aínda Pedro nao tinha acabado de falar e o Espirito Santo desceu sobre todos os que lhe ouviam a palavra... Disse entáo Pedro : 'Pode porventura alguém recusar agua

para serem balizadas estas pessoas que receberam o Espirito

Santo, do mesmo modo que nos o recebemos ?' E ordenou qtte

fóssem balizados em nome de Jesús Cristo».

At 16,13-15 : «No sábado, saímos (Paulo, Timoteo e Lucas) pela porta da cidade e fomos á margena de um rio, que supúnhamos ser lugar de oracáo. Sentamo-nos e comecamos a

falar és mulheres que ali se tinham reunido. Escutava-nos certa mulher, chamada Lidia, vendedora de púrpura, natu ral da cidade de Tiatira, e adoradora de Deus. O Senhor abriu-

-Ihe o corado, dispondo-a para atender ao que Paulo dizia. Depois de ter sido batízada, juntamente ootn sua famPfa, ela nos fez éste pedido: 'Se julgastes que tenho fé no Senhor, entrai em minha casa e habitai nela1». — 386 —

BATIZAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

19

At 16, 31-33: «Paulo e Silas disseram ao carcereiro de Filipos: 'Cré no Senhor Jesús e serás salvo, tu e tua familia'. £ anunciaram-lhe a palavra do Senhor, assim como a todos os qne estavam em sna casai. Tomando-os consigo aínda naquela hora da noite, o carcereiro lavou-lhes as chagas e, logo em se guida, foi batizado junto com toda a soa familia». At 18, 8: «Crispo, chefe da sinagoga de Corinto, creu no Senhor com toda a sna familia. E mtdtos corintios, ouvindo a Paulo, abragavam a fé e eram batizados».

1 Cor 1, 16: «Batizei também a familia de Estéfcuras. No

mais, nao sei se batizei algum outro dentre vos».

Em tais casos de conversáo coletiva, nao se pode provar apodicticamente que havia fílhos pequeninos em «casa» e que tais criangas itenham sido batizadas. Pode-se, porém, admitir com verossemelhanca que tal se tenha dado: a «casa» (óikos, em grego, domos, em latím), para os antigos, era a familia com todos os seus domésticos, as vézes muito numerosos, dos quais faziam parte as crianzas e os bebés (embora desprezíveis, no oonceito dos gregos e romanos). Por conseguinte, embora nao haja prova de que os tex tos bíblicos atrás citados suponham a existencia de criangas

e o Batismo das mesmas ñas casas de Comélio, lidia, Crispo, Estéfanas e do carcereiro de Filipos, ésses elementos fícam

sendo

nao sámente

possiveis

e

verossimeis,

mas positiva

mente prováveis; basta recolocar tais textos em seu contexto histórico — em seu «Sitz im Leben» (posicjáo na vida) — para que se tornem muito sugestivos.

A conclusáo assim deduzida é corroborada mediante a consideracáo de 2.3.

O fundo de cena judaico

Os judeus, embora professassem urna religiáo nacional, baseada sobre o vinculo do sangue, admitíam estrangeiros ou pagaos á confissáo da fé israelita; tais eram chamados «pro sélitos». Sabe-se que a agregacáo dos prosélitos ao judaismo compreendia tres ritos: a circuncisáo, o Batismo e o sacrificio.

Ora eis como procediam os israelitas em relacáo aos filhos

pequeninos dos seus prosélitos : nao batizavam as enancas cujo nascimento fósse posterior á conversáo dos genitores; batiza vam, porém, juntamente com os pais, os filhos, pequeninos e — 387 —

20

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 2

grandes, nascidos antes que os genitores fóssem incorporados ao povo de Deus; julgavam que tais criancas nao eram «filhos de santos» e deviam, mediante o Batismo, ser consagradas a

Deus.

O Cristianismo afastou-se, sem dúvida, do judaismo, reconhecendo Jesús como Messias. Todavía os cristáos conservaram nao poucos costumes da Sinagoga, desde que fóssem compatíveis com a fé e a moral cristas. Nao seria, pois, para estranhar que os cristáos tivessem continuado (como, de fato, parecem ter continuado) a administrar o Batismo as enancas.

Verifica-se, alias, que os costumes adotados pelos cristáos no seu Ritual de Batismo reproduzem, em boa parte, costumes dos judeus: assim a instrugáo dada previamente ao Batismo, o jejum antes da administragáo do rito, a renuncia, por parte do candidato, a Satanás (á iniqüidade), a promessa de aderir a Cristo (á Lei de Deus, segundo a praxe israelita), o mergulho em agua viva ou fluvial, a imposigáo de veste branca e de coroa... Tendo em vista a afinidade de ritos batimais vigentes entre judeus e cristáos, os estudiosos (nao sómente católicos, mas também protestantes) consideram o Batismo de criancas na Igreja primitiva como algo de altamente provável, quando se tratava de pequeninos cujos pais se convertiam a

Cristo com «toda a sua casa».

O autor protestante H. Grossmann chega a julgar que «as Escrituras Sagradas do Novo Testamento deveriam conter urna proibicáo explícita do Batismo das criancas, caso ele nao estívesse em uso entre os cristáos, tanto se achava difundida ñas comunidades judaicas a praxe de batizar criancas» («Ein Ja zur Kindertaufe». Zürich 1944, p. 14).

Tal sentenca se torna ainda mais provável desde que se leve em conta a solidariedade que caracterizava a familia antiga, Essa uniáo ou mesmo essa unidade da «casa» fazia que todos os membros da familia passassem a compartilhar a fé do chefe da casa quando éste se tornava cristáo; essa uni dade sugere também, no caso que nos interessa, o Batismo

dos pequeninos, como exigía a circuncisáo dos primogénitos

nos tempos pré-cristáos K Reconhecem os estudiosos que o fato de que os judeus, obedecendo á Lei do Senhor, circuncidavam i S. Inácio de Anüoqula (t 107) saudava «as casas de (seus) irmáos com sua3 mulheres e seus filhos» (cAos Esmirnenses» 13,1); saudava também «a viúva de Epitropo com toda a casa déla e de seus filhos» («A Pollcarpo» 8,2). Nestes textos aparecem os filhos explícitamente incorporados á «casa». .

— 388 —

BATTZAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

21

seus filhos pequeninos, influiu positivamente na praxe crista de dar o Batismo as criangas.

As idéias até aquí propostas aínda podem-se tornar mais

claras mediante ulterior consideracáo: 2.4.

Jesús e os criongas

Merecem particular atencáo os textos do Novo mento que apresentam Jesús em contato com criangas.

Tes-

A passagem mais sugestiva é a de Mt 19,13-15:

«Apresentaram a Jesús alguns meninos para que Ihes im-

pusesse as máos e rezasse por éles. Como os discípulos tentassem repeli-los, Jesús Ihes disse: 'Deixai os pequeninos, nao

impeláis que venbam a mbn, porque o reino do céu pertence

a tais como estes*. Impós-lhes as máos e afastou-se dali» (cf. Me 10,13-16¡ Le 18,15-17).

Nestes versículos a palavra «impedir» (koolyein, em grego), que ocorre igualmente nos textos de Me e Le, é de especial

importancia. Reaparece no Novo Testamento quando éste fala

do Batismo; tenham-se, por exemplo, em vista os textos se-

guintes:

At 8,35-38: «Filipe... anunciou ao eunuco a. Boa-Nova de Jesús. Seguindo pela estrada, chegaram a um lugar onde havia agua. 'Eis aqui agua!, disse o eunuco. Que empedlho existe para que eu seja batizado ?' Mandou parar o coche e ambos — Filipe e o eunuco — desceram á agua e Filipe a batizou».

At 10,47: «Disse Pedro: 'Pode porventura alguém re cusar (koolyein) agua para serem batizadas estas pessoas que receberam o Espirito Santo, do mesmo modo que nos o rece bemos ?'»

At 11,17 : «Disse Pedro: 'Se, portante, Deus Ihes concedeu o mesmo dom que a nos, por terem acreditado no Senhor Jesús Cristo, quem era eu, para que me pudesse opor (koolysai) a Deus ?'»

Mt 3,13s: «Veio Jesús da Galiléia ao Jordáo e apresentou-se a Joáo para ser batizado por ele : Joáo se opunha (diekoolyen), dizendo: 'Eu é que devo ser batizado por vos,

e vos viñdes a mim !'»

Analisando tais textos, os exegetas julgam que o verbo

koolyein (impedir) devia ser urna expressáo técnica do ritual

— á89 —

22

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 2

de Batismo da antíga Igreja; signlficava «impedir alguém de ser batizado». Mais precisamente: denegar a alguém o catecumenato após o exame (escrutinio) que sempre precedía o Batismo, «reprovar alguém» nesse exame era o mesmo que «impedir» ou koolyein.

Ora, verificando que koolyein ocorre nos labios de Jesús

que chama as criancas a si, nao poucos estudiosos julgam que os textos de Mt 19,13-15; Me 10,13-16; Le 18,15-17 podem con firmar a praxe do Batismo das criancas na Igreja primitiva. Note-se ainda que Le, referindo-se as criancinhas em 18,15-17,

nao usa o substantivo grego paidía, mas, sim, brephé, que é mais significativo ainda, pois designa o bebé. A propósito tenhase em vista a bibliografía:

O. Cullmann, «Les traces d'une vieille formule baptismale dans le Nouveau Testamento, em «Revue d'Hlstoire et de Phllosophie Religieuse» 1937, pp. 424-434. Id., «Le baptéme des eníants», pp. 63-70.

J. Jeremías, «Die Klndertaufe...», pp. 61-68. Id., «Mark 10:13-16, Par., und die Übung der Kindertaufe in der Urklrche», em «Zeitschrlít für dle neutestamentllche Wissenschaft» 1941, pp. 243-245.

Leve-se em consideracáo outrossim o declara os pequeninos aptos ao Reino dos que a atitude candida, confiante e humilde do Pai Celeste vem a ser modelo para os exemplo, diz o Senhor :

fato de que Jesús Céus, de tal modo das criancas diante adultos. Assirn, por

«Em verdade vos digo, se nao voltardes a ser como as criancinhas, nao pederéis entrar no reino dos céus. Quem, pois, se fizer humilde como éste menino, será o maior no reino dos céus. Quem receber um menino como éste, em meu nome, é a Mim que receberá» (Mt 18,3-5).

«E, tomando um menino, Jesús colocou-o no meio déles, abracou-o e disse-lhes: 'Quem receber um déstes pequeninos em meu nome, é a Mim que receberá; e quem Me receber, nao receberá a Mim, mas áquele que me enviou'» {Me 9,36). Esta claro que nao se poderiam interpretar o gesto e as palavras de Jesús favoráveis as criancas como sendo a promulgacáo do pedobatismo. £ plausível, porém, admitir o seguinte: é possivel que nos prímeiros decenios da Igreja tenha sido suscitada ñas comunidades cristas alguma dúvida sobre a oportunidade de balizar as crlangas. Em conseqüencia, os _ 390 —

BATEAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

23

Apostólos e pregadores teráo lembrado aos fiéis o episodio de Mt 18,3-5, que proporcionava luz para a solucáo da dúvida. Esta conclusáo torna-se aínda mais plausivel, desde que se considere que o episodio de Mt 19,13-15; Me 10,13-16; Le 18, 15-17 foi, logo nos primeiros sáculos da Igreja, evocado pelos escritores cristáos a fím de fundamentar o Batismo das criancas (assim fizeram, por exemplo, Tertuliano, no «De Baptismo» 18; S. Agostinho, no sermáo 174,9). Tal dado histórico é assim comentado pelo exegeta protestante O. Cullmann: «Éste fato prova que tal relacionamento (entre Mt 19 e o Batismo) era umversalmente aceito desde os primeiros tempos do Cristianismo» («Le Baptéme des enfants», pp. 67s).

3.

Urna ob¡e;ao :...

e a fé ?

A principal dificuldade movida contra o Batismo das criancas parte do principio de que a fé é necessária & recepeáo do

sacramento.

Pergunta-se, portante: ainda que os antigos cristáos tenham batízado enancas, pode-se até hoje sustentar tal praxe, dado que os pequeninos sao incapazes de conhecer a fé ? Em resposta, observa-se o seguinte :

— É certo que a fé está associada ao Batismo no sentido

de que o neófito, em conseqüéncia do seu Batismo, está obrigado a viver e testemunhar a fé. A S. Escritura, porém, nao obriga a dizer que se requer, da parte do candidato ao Batis mo, uma previa profissáo de fé. Com efeito, sejam de novo recordados os textos bíblicos segundo os quais toda uma fami lia é baüzada após a profissáo de fé do respectivo chefe. Tenham-se em vista também os casos em que Jesús, no Evangelho, cura alguém ou lhe perdoa os pecados, nao em vista dá fé do interessado, mas em atencáo á fé dos que o acompanham e recomendam: É o que se lé, por exemplo, em Ble 2,3-12 : «Levaram a Jesús um paralitico transportado por quatro bomens. Como nao o podiam fazer chegar á presenga de Jesús,

por causa da multidio, descobriram entáo o teto no lugar onde Jesús se encontrava e, fazendo uma abertura, desceram por ela o leito em que jazia o paralitico. Vendo a fé que os animava, Jesús disse ao paralitico: 'Meu filho, teus pecados estáo perdoados'».

— 391 —

24

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 2

Como se vé, é a fé das amigos doi paralitico que suscita a bondade do Senhor para que perdoe os pecados e cure o enfermo. Considere-se também o texto de Le 9,37-43:

íAconteceu que, no día seguinte, ao descerem do monte,

foi ao encontró de Jesús grande multidáo. Do meio do povo, um homem gritou dizendo: 'Mestre, eu vos suplico que lan céis os olhos sobre meu filho, pois é o único que possuo. Um espirito mau apodera-se déle e de repente solta gritos. Agita-o com violencia fazendo-o espumar e a muito custo o abandona, depois de o ter contundido. Pedi a vossos discípulos que o ex* pulsassem, mas éles nao o puderam'.

Tomando a palavra, Jesús disse: 'ó geracáo incrédula e perversa, até quando precisarei estar convosco ? Até quando

vos hei de suportar? Traze aqui o teu filho'.

Quando o menino se aproximava, o demonio o langou por térra e o agitou violentamente. Mas Jesús repreendeu o espirito ímundo, curou o menino e o entregou a seu pai. E todos ficavam pasmos ao ver o grande poder de Deus».

Jesús, pois, curou o jovem convulsionado, atendendo á fé

do pai que Iho pedia.

Note-se outxossim a bela passagem de Me 7,25-30: «Urna mulher cuja filhinha cstava possessa do espirito imundo, logo que ouviu falar déle, entrou e lancou-se a seus

pés. A mulher era gentia, de origem siro-fanicia. Suplicava-lhe que expulsasse de sua filha o demonio.

Disse-lhe Jesús: T)eixa que primeiro se fartem os filhos. Nao é bom tirar o pao dos filhos e atirá-lo aos cáezinhos'. Ela

respondeu: 'É verdade, Senhor, mas os cáezinhos, debaixo da

mesa, comem das migalhas que caem da mesa dos filhos'. E ele lhe disse: 'Em atengáo ao que acabas de dizer, vai para tua casa, pois o demonio saiu de tua filha». Ela voltou para casa

e encontrou a moga deitada no leito. O demonio havia saído». Considerando a fé insistente da mulher siró-fenicia, Jesús

lhe curou a filha que estava ausente.

Também é digno de nota o texto de Mt 8,5-18 : «Quando Jesús entrou em Cafarnaum, aproximou-se déle um centuriáo, que lhe fez um pedido, dizendo : 'Senhor, o méu servo está em minha casa preso ao leito pela paralisia e sofre cruelmente.

— 392 —

BATIZAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

_25

Disse-lhe Jesús : 'Eu irei lá e o curarei'. Mas o centuriáo

lhe respondeu: 'Senhor, eu nao sou digno de que entréis em minha casa, mas dizei sómente urna palavra e meu servo recuperará a saúde. Eu sou um homem que devo obedecer a autoridade superior e tenho soldados sob meu comando. Se digo a éste: 'Vai', ele vai; ou a outro: 'Vem', ele vem; ou a meu escravo: 'Faze isto', ele faz.

Ouvindo esta resposta, Jesús se encheu de admiragáo e disse aos que o seguiam : 'Na verdade vos digo: Nao encontrei fé táo grande entre os filhos de Israel. Digo-vos também que viráo muitos do Oriente e do Ocidente e se assentaráo á mesa junto com Abraáo, Isaque e Jaco no reino do céu. Mas

os filhos do reino seráo langados as trevas exteriores, onde haverá choro e ranger de dentes'. E ao centuriáo disse Jesús: •Vai, e seja-te feito do modo como creste!' E na mesma hora -o servo recuperou a saúde».

Por último, seja citada a ressurreicjáo da filha de Jairo, obtida pela fé do pai: «Eis que se aproximou um príncipe da sinagoga e prostrou-se diante de Jesús, dizendo: 'Minha filha morreu neste instante, mas vinde, imponde-lhe vossa máo, e ela vivera'. Je sús levantou-se e o seguiu com seus discípulos... Quando Jesús chegou á casa do principe da sinagoga e viu os tocadores de flauta e a multidáo em alvordgo, disse: 'Retirai-vos, porque a menina nao está moría, mas dorme'. E éles riram-se déle. Depois que a multidáo foi afastada, ele entrou, segurou a máo da menina e ela levantou-se. E a noticia déste milagre espalhou-se por toda aquela regiáo» (Mt 9,18s. 38-26). Estes textos chamam a atengáo para o fato de que a fé de outros pode valer a irmáos incapazes de crer. Sem dúvida,

o Senhor exige fé para conceder as suas gragas; todavía muito sabiamente nao condiciona seu dom á fé do> interessado quando esta nao é possível; Ele quer atender a uns em vista de outros.

Os doutóres e escritores da Igreja realgaram muito éste procedimento do Senhor, intencionando assim corroborar o fun

damento bíblico do Batismo das enancas. A fé dos genitores e

padrinhos, em suma, a fé de tódá a Igreja se torna válida

para a criancinha, possibilitando-lhe ser regenerada pela agua e pelo Espirito desde os seus primeiros dias de existencia. — 393 —

26

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 2

Eis alguns dos testemunhos mais interessantes a éste pro

pósito :

Sao Beda Venerável (f 735), no seu comentario em Mar■cos, escreve:

«*E Ele disse: Em atencáo a essa palavra, vai; o demo nio saiu da tua filha' (Me 7,29). Por causa dessa palavra hu milde e cheia de fé, o demonio deixou a menina. Assim foi-nos dado o exemplo de catequizar e de batizar as enancas, pois realmente é pela fé e a profissáo dos genitores por ocasiáo do Batismo que sao libertadas do demonio as criancas que ainda nao podem raciocinar por si, nem praticar algum ato

írom ou mau» (PL 92,203).

Eis o depoimento de escritor Drotmaro (f cérea de 850) : «'Ide, ensinai a todas as nacóes!' Ordem excelente: primeiramente aprender quem é Deus, Pai, Filho e Espirito Santo, por quem é dada a remissáo dos pecados. Quando o homem compreendeu isto, deve ser batizado. Pois, se tem idade e nao eré, o seu Batismo seria váo como o do animal ou o do mine ral. Caso, porém, se trate de criancinhas, a remissao se rea liza em vista da fé daqueles que respondem por elas, segundo o que é dito a respeito ao paralitico; Jesús, vendo a fé daque les que o apresentavam, disse ao paralitico; 'Coragem, meu filho, teus pecados te sao perdoados' (Mt 9,2) > (PL 106, 1501). Bruno de Segni (t 1123), no seu «Comentario sobre Mateus», escreve:

«Nao está dito simplesmente: 'Será salvo aquéle que fór

batizado', mas 'Aquéle que crer e fór batizado...' (Me 16,16). Pois os pequeninos sao salvos pela fé daqueles que os batizam; todavía, desde que cheguem a compreensáo das verdades da

fé (com o uso da razáo), já nao sao salvos senáo por sua própria fé »(PL 165, 156s).

Honorio de Autun (meados do século XH) : «Os filhos sao salvos em consideragáo da fé dos genitores e padrinhos, assim como a jovem possessa pelo demonio foi libertada, segundo o Evangelho, em vista da fé de seus geni tores» («Libellus de Sacramentis» PL 172,750 A).

Pedro o Venerável, no seu «Tractatus contra Petrobru.sianos» escrito em 1139/1140, observa : «Dizem os herejes (petrobrusianos) : 'As criancas, ainda que as batizeis, nao sao salvas, pois nao sao capazes de crer — 394 —

BATEAR CRIANCAS: SIM OU NAO?

27

em virtude da sua idada Por conseguinte, é ocioso e váo der ramar agua sobre ésses seres humanos em tal periodo de sua vida1.

... Que diréis? ... Sirvo-me do Evangelho. Vos acreditáis néle; por conseguinte, ou admitiréis que alguém pode ser salvo em vista da fé de outrem, ou negareis, se o puderdes, o que está no Evangelho. Eis o centuriáo: a fé déle, que intercede nao por si, mas por seu filho, é atendida; a fé déle, que intervertí humildemente nao em seu favor mesmo, mas em favor de seu filho, é nao

sonriente atendida, mas realcada com elogio especial. A filha do chefe da sinagoga ressuscitou nao por causa de sua fé própria, mas por causa da fé de seu pal. O possesso foi curado nao por sua fé, mas em vista da fé de seu pai. Marta, porque creu, viu a gloria de Deus com a ressurreicáo de Lázaro. A cananéia, que orou nao por si, mas por sua filha cruelmente atormentada por um demonio, ouviu em resposta: 'Seía-te feito como pedes!' Em vista da fé dos que levavam o parali tico, Cristo nao sómente curou o enfermo, mas perdoou-lhe os

pecados; num ato de misericordia absoluta, o Salvador salvou o homem todo e nao pela metade. Digo, portante: se o Cristo

dá com tanta Iiberalidade a uns em consideracáo da fé de um so crente, a fé da Igreja inteira de nada Valeria para as crian-

cas batizadas? Que significa entáo essa palavra do Senhor...: Tudo é possivel aquele que eré?' ... Se realmente tudo é possivel a um só crente, nada pode ser impossível a todo o povo

fiel que ora pelas criancas balizadas» (PL 189, 749-750).

Poder-se-iam multíplicar tais testemunhos. É claro que também nao constituem argumento decisivo em favor do Ba-

tismo das criancas, mas desenvolvem, com acertó e autoridade, a doutrina do Evangelho, evidenciando as conseqüéncias desta na controversia sobre o pedobatismo. Parece, portante, claro que o Batismo das criancas nao pode ser tido como o resultado de processo evolutivo e degenerescente; nao é o prolongamento abusivo da praxe de batízar os adultos. Ao contrario, tanto o Batismo de adultos como o de criancas sao a expressáo genuína da doutrina do Novo Testamento. Coube la Tradigáo sadia e aos teólogos do povo de

Deus confirmar a praxe inicial da Igreja e explicitar todas as virtualidades da doutrina do S. Evangelho. Cabe agora perguntar:

— 395 —

28

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 2

4.

E quais as razoes teológicas ?

Quais os motivos doutrinários que nao sómente levam a aceitar oU tolerar o Batismo das mangas, mas ainda o recomendam positivamente? Em resposta sumaria, deve-se dizer com o Apostólo Sao Paulo e a Tradigáo crista: o Batismo incorpora o homem a

Cristo; comunica-lhe urna vida nova, fazendo-o participar da morte do Senhor ao pecado assim como da ressurreigáo do Redentor.

Com efeito, o Batismo vem a ser um canal da graga, que, jorrando da cruz de Cristo, atinge o neófito, de modo a lhe comunicar a vida sobrenatural e a filiagáo divina perdidas pelo primeiro pai; o Batismo extingue a nódoa original com que

todo homem nasce l, e infunde-íhe um principio de vida nova e bela, que é a graga santificante (cf. Rom 6,3-11).

Sem o Batismo, a crianga permanece privada de harmonía interior. Por conseguirte, um pequenino que morra sem Ba

tismo, nao está habilitado a entrar na visáo de Deus face a

face, pois esta supóe a regeneracáo ou a elevacüo a um estado sobrenatural. Verdade é que Deus pode conceder a crianga meios invisíveis de salvagáo; todavía é certo que o Batismo é o meló normal instituido pelo próprio Deus para a regeneragáo de todos os homens. Diz Jesús a* Nicodemos : «Em verdade, em verdade te digo: Quem nao nascer da agua e do Espirito, nao pederá entrar no Reino de Deus» (Jo 3,5).

É por isto que a Igreja de nossos días, fazendo eco a antiga Tradigáo, deseja nao seja protelado sem graves motivos o Ba tismo das criangas. Embora os pequeninos nao possam professár pessoalmente a fé crista nem orientar os seus atos segundo a

mesma, o Batismo néles deposita um germen de vida nova e lhes merece as gragas atuais necessárias para que vengam mais fácilmente as sedugóes do mal; todo sacramento age e santi fica por eficacia própria; nao é apenas um sinal ou um estí mulo para que o sujeito se santifique. É o que ja S. Agostinho (t 430) lembrava num texto clássico :

«A crianga se torna fiel, nao por ter a fé que se encontra

na vontade dos crentes, mas por ter recebido o sacramento 1 Todo homem nasce privado dos dons infusos que os primeirós pais perderam pelo pecado original c que deveriam transmitir se nao tivossem pecado. É essa privacáo que se chama «nódoa original».

— 396 —

BATEAR CRIANQAS: SIM OU NAO?

29

dessa fé. A comunidade responde que a crianga eré, chama-a fiel, nao porque a crianga dé seu assentímento as realidades da fé por um ato pessoal, mas porque recebe o sacramento dessas realidades mesmas. Quando a razáo humana se despertar no pequenino, ele nao receberá de ndvo o sacramento, mas o compreenderá com a inteligencia e se conformará a ele em pleno

acordó de sua vontade com o que ele é na verdade. Enquanto

o pequenino nao puder fazer isto, o sacramento o protegerá contra as potencias adversarias, a tal ponto que, se a crianga deixar esta vida antes do uso da razáo, será libertada, pelo auxilio cristáo, da condenacáo que por um só homem entrou no mundo, gragas á caridade da Igreja que lhe assegura tal sa cramento. Quem nao erg nisto e julga que isto nao possa acontecer, nao é senáo um infiel, embora possua o sacra mento da fé; está muito melhor do que tal pessoa, a crianga que, embora nao tenha ainda urna fé consciente, nao lhe opóe o obstáculo de raciocinios contrarios e por isto recebe o sa cramento com seus frutos de salvacáo» (epístola 98, a Boni facio, n' 10PL33, 360-4). Éste texto é resposta clara e autorizada as dúvidas hoje

levantadas contra a necessidade de se batizarem as criancas. Bibliografía:

P. Talec, «O sinal da fé». Rio de Janeiro 1970 (livro profundo e atualizado, portador de valiosas lndicacSes doutrinárlas e pastarais). J.-Ch. Didier, «Faut-11 baptiser les enfants? Tradition». París 1967.

B. Rey,

La

«L'Église et le baptéme des enfants»,

réponse de la

em «Revue

selences philosophiques et théologiques> 52 (1968) 677-697.

des

L. Villette, «Le baptéme des enfants. Dossier et interprétationa, cm 8 (1965) pp. 112-132. J. N. Walty, «Controverses au sujet du baptéme des enfants», em

«Revue des selences philosophiques et théologiques» 36 (1952) 52-70.

J. Jeremías, «Le baptéme des enfants pendant les quatro premiers siécles». Puy-Lyon 1967. O Cullmann, «Le baptéme des enfants».

E. H. Schillebceckx, «Cristo, Sacramento do encontró com Deus».

Petrópolis 1967.

«P.R.s 101/1968, pp. 205-216; 6/1958, pp. 229-235; 10/1958, pp. 401405.

— 397 —

30

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 3

III.

SOCIEDADE DE CONSUMO

3) «Os meios de comnnicacSo social (impnensa escrita e ralada) na sociedad© de consumo tem sido ocasiao de pro blemas.

Lacro fínanoeiro 'versus' valores humanos ?» Em slntese: A palavra é comunicadora nao sómente de ciénda, mas também do aíeto e dos valores (ou desvalores) de urna personalidade. A influencia da palavra como elemento de construcáo ou destruicao íoi grandemente aumentada pela criacSo e crescente diíusao dos meios de comunicacao de massa (imprensa escrita e falada). Infelizmente a arte de escrever (livros, revistas...) como também o cinema, o radio e a televisáo estáo hoje em dia associados ao poder económico. O livro e a revista deixaram de ser a expresslo de urna mensagem de homem para homem, a fün de ser objeto de mercado, sujeito & lei da oferta e da procura (atualmente, íala-se de best-sellers e de records de livraria). O jógo dos interésses íinanceiros explica, em grande parte, a baixa do nivel da arte e dos programas transmitidos pelos meios de comunicacao social.

A Igreja, por voz de seus Pontífices e do Concilio do Vaticano n, lembra a necessária subordinacSo da arte e dos meios de comunicacao social as leis da honcstidade e ao servico do bem comum.

Respuesta: Nos últimos tempos, mais e mais se fala do papel ou educativo ou deletério dos «mass media» ou dos meios de comunicacao de massa: jomáis, revistas, radio, televisáo, cinema, teatro... Ás vézes verifica-se que a influencia de tais meios de comunicacao nao é positiva, mas, antes, destrui dora. Ha quem lamente estes efeitos, como há também quem se lhes mostré indiferente. Dai a necessidade de se considerarem certos grandes principios concementes ao assunto. Parece

fora de dúvida que «o futuro da sociedade humana depende, cada vez mais, do reto uso dos meios de comunicacao social» (Conc. do Vaticano n, decreto «ínter Mirifica» n» 24). 1.

A palavra

A palavra oral (e, em proporcóes menores, a escrita) é mais do que a expressáo da inteligencia de quem a profere. Ela comunica algo da personalidade e dos valores ou desvalo res do respectivo sujeito.

— 398 —

IMPRENSA ESCRITA E FALADA

31

Os homens sempre tiveram consdéncia do extraordinario alcance de sua palavra. O mestre era outrora tido como pai, porgue, mediante suas palavras, comunicava nao sómente cien cia, mas também algo da riqueza de sua vida intima. Os sabios

de .todos os tempos multo insistirám sobre a necessidade dé

se ponderarem e graduarem as palavras; a palavra, para quem a ouve, pode ser instrumento de vida ou de morte moral. Te-

nham-se em vista as advertencias de S. Tiago, que fazem eco

tas de numerosos filósofos :

«A lingua é um pequeño membro e gloria-se de grandes coisas. Vede como um pequeño fogo pode incendiar urna grande floresta !■ A lingua também é um fogo, um mundo de iniqui dades. .. Com ela bendizemos a Deus Pai, e com ela amaldicoamos os homens, feitos á semelhanca de Deus. De urna mesma boca procedem a béngáo e a maldigáo. Nao convém, meus irmáos, que isto seja assim» (Tg 3,5s.9s).

Hoje em día a criagáo e a crescente difusáo dos meios de comunicagáo de massa (imprensa escrita e falada) tornam aínda mais importante o papel da palavra. A palavra — e, com ela, a ciencia e a ignorancia, os bons e os maus predicados de quem a profere — se derramam sobre massas humanas, im pregnando-as, sem que estas possam sempre distinguir o que de auténtico e menos auténtico haja no que se Ihes diz. Sao ésses meios de comunicagáo de massa que criam ou, ao menos, orientam a opinláo pública.

Deseamos a alguns tópicos particulares referentes á im prensa escrita e falada.

2.

Imprensa em geral

Tem-se dito que a imprensa é todo-poderosa. Nao há dúvida de que a imprensa, hoje distribuida em varios setores escritos e falados (jomáis, revistas, radio, televisáo, cine ma. ..), vai penetrando o mundo inteiro, até os seus recantos mais modestos e outrora abandonados, transmitindo a todos os homens no lar, na rúa, ñas condugóes, ñas oficinas, ñas escolas as mais recentes e sensacionais noticias; ésse servico, que nao cessa durante a noite, exerce inegável poder avassalador, despertando no público as mais variadas reagóes. A imprensa é alimentada por potentes agencias noticiosas, das quais hoje se contam cérea de 155, estabelecidas em 54 países.

— 399 —

32

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/197<X qu. 3

Urna das principáis dessas agencias é a «Associated Press» (AP), empresa norte-americana que já existia nos coméeos do século XIX, anteriormente k invencáo do telégrafo, do tele fone e do radio. Usava entáo, como meios de transmissáo, o bar co a remo, os pombos-correios e os estafetas a cávalo; em 1828 comecou a utilizar o iate; em 1848, o telégrafo substituiu os recursos anteriores. Hoje a AP serve a mais de 4.000 jomáis e estacoes de radio, espalhados pelo mundo inteiro; produz cerca de 1.000.000 de palavras por día (o equivalente a sete ou oito romances de tamanho medio), transmitidas por cir cuitos de teletipo arrendados, cabos submarinos, cañáis sem ño Morse e cañáis de radio-teletipo. Mais de 100.000 pessoas ai participam da transmissáo do noticiario de um dia normal. A partir de 1» de Janeiro de 1935, a AP iniciou o sistema de rádio-fotos : a mesma fotografía, via radio, pode ser captada si multáneamente e com nitidez em mimares de.lugares do globo terrestre.

Outra grande agencia noticiosa é a «United Press International» (UPI), que, aos 7/7/1968, completou cinqüenta anos de servigo no Brasil. Fornece a reportagem de acontecimentos ocorridos em todas as partes do globo para 3.300 jomáis e estagóes de radio. A populacáo de 61 países lé e ouve os des

pachos da UPI, que sao traduzidos para 48 línguas. A fim

de colhér e difundir essas noticias, a UPI possui 165 sedes, de Bostón a Buenos Aires e Bombaím, e canta com mais de 6.000 correspondentes, repórteres e telegrafistas. Estes dados sao aqui referidos a fim de ilustrar o raio de

acáo de uma agencia de noticias. Ela pode manipular os dados a ser transmitidos, de modo a formar ou deformar em larga escala o modo de pensar de grande parte da populacáo do globo. Passemos agora a especial consideracáo da

3.

Televisoo

Entre os meios da comunicagáo, o que mais fascinlo e influencia exerce, é certamente a televisáo. Observava o Pre sidente John Kennedy : «A televisáo é o instrumento que tem o poder de ensinar mais coisas a mais gente em menos tempo do que outro meló já vislumbrado». Ela aínda nao penetrou ñas

selvas e nos pequeños povoados do Terceiro Mundo, mas julga-se que nao tardará a devassá-los. Neil Hurley^ estudioso

do assunto, julga que em 19?5 o mundo estará vivendo urna

civilizagáo no singular, e nao clvfliza$5es; naverá uma telecol-

— 400 —

IMPRENSA ESCRITA E FALADA

33

tora, que suscitará em todos os homens as mesmas formas de pensar através dos meios áudio-visuals.

Alias, pode-se dizer que já vivemos a dvilizacáo da imagem e do som. Leve-se em conta, entre outros muitos, o dado seguinte: em 1966 houve no futebol a disputa da Copa do

Mundo; a populacáo brasileira acompanhou-a vibrantemente. Em 1970 o acontedmento se repetiu, mas com características diferentes: a televisáo via satélite ensejou ao público ver o desenrolar dos jogos no México; pode-se dizer que mais de 600 milhóes de pessoas esparsas pelo mundo inteiro acompanharam

em suas casas ou ddades as partidas do certame no México. Sabe-se que conseqtténdas isto teve no Brasil: movimento de trabalho e escolas interrompido durante e após os jogos, ho rarios públicos modificados; manifestacóes carnavalescas ñas mas... Considerando estes fatos, podemos dizer que em nossos tempos, após quatro anos, nao se repete um acontedmento nos moldes do anterior evento; quatro anos significam profunda transformacáo da realidade por causa da crescente penetracáo da televisáo.

O uso da televisáo tende a aumentar, pois a técnica e os progressos da nova ordem sodal proporcionan! ao homem mo derno mais tempo de lazer, tempo que vem a ser freqüentemente passado frente ao televisor. Os programas mais apre

ciados pelo público sao os «shows», as novelas, os filmes (em

serie ou nao). Os programas educativos ou de certo nivel cul tural atingem faixas mais restritas das populacoes — o que é incentivo a que as emissoras de televisáo déem preferénda aos programas de pouco conteúdo educativo e tíe teor recreativo mais marcante. A televisáo passou a ser o ingresso num mun

do de fantasía e emocóes; é um convite ao descanso, ao esque-

dmento dos problemas diarios.

Apesar da crescente propagagáo da televisáo, a imprensa escrita continua em voga. Isto se explica porque ela tem a seu favor urna nota de permanencia que falta a imprensa falada: a palavra do radio se val; a imagem da televisáo e do cinema

se dissipa; ao contrario, o jornal e a revista apresentam documentacáo escrita, que pode ser lida e relida. Nos Estados

Unidos, embora 98% dos lares possuam um, dois ou mais tele visores, as grandes revistas do país atingem a tiragem de sete a oito milhóes de exemplares, o que mostra que a impreiisa es crita guarda seu prestigio. — 401 —

34

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 3

Para ser mais fácilmente aceites, os impressos devem

acompanhar a civilizagáo da imagem, apresentando boas üustracóes e esmerado acabamento técnico.

Depois déste rápido balanco da crescente difusáo dos meios de comunicacáo, importa considerar propriamente a sua influ encia sobre a formagáo humana e moral do público nos nossos tempos.

4.

Imprenso e «fígnldode humana

1. Comecaremos por analisar a acáo dos escritos em geral: livros e revistas. Antes da descoberta da imprensa (em 1445 aproximada

mente), o escritor redigia suas obras sem ter a possibilidade

de multiplicar as respectivas copias e assim ganhar dinheiro; Dante e Petrarca, por exemplo, na Idade Media nao viram senáo um, dois ou poucos exemplares de seus escritos, todos éles devidos ao trabalho manual. O escritor redigia com sacri ficio financeiro, com gasto de suas energías e de seu tempo, únicamente em vista do ideal de comunicar urna mensagem aos homens. Devia viver de outro trabalho e de outra fonte de renda que nao a literatura. O prazer de escrever e a gloria daí decorrente eram a recompensa dos que lidavam com a pena.

No sáculo XV, a descoberta da imprensa revolucionou tal

ordem de coisas. Os escritos e livros puderam doravante ser

multiplicados e vendidos; por conseguirte, tornou-se possivel utilizá-los para ganhar dinheiro. De entáo por diante, máxime a partir do século XVH, foram-se criando gráficas e editoras,

que boje em día pagam aos escritores seus direitos autorais e financiam edicóes numerosas a ser vendidas por preco lucra tivo; o livro passou a ser — e hoje é — industrializado, comer cializado.

Em conseqüéncia, a arte de escrever tornou-se mercadoria sujeita as leis da oferta e da procura; o escritor, em certos

casos, veio a ser. alguém que vive da sua pena e que precisa, antes do mais, de ganhar dinheiro para viver mediante os seus escritos. A procura do sucesso financeiro (tenham-se em vista os títulos best-seller, record de livraria) passou a influir na confeccáo de nao poucos livros. — 402 —

IMPRENSA ESCRITA E FALADA

35

Compreende-se entáo que o uso da palavra escrita, tenha, em parte, degenerado. O que outrora se praticava por arte ou por ideal, segundo criterios elevados, passou a ser exercido em vista do mercado, atendendo ás oscUacóes déste, que nem sempre condizem com os ditames do bem e do belo.

Nesta nova ordem de coisas o romance comegou a tomar vulto crescente.

«A industrializacáo do livro fez que os editores procurassem livros que se possam vender em grande quantidade para

diminuir o respectivo prego de custo. Ora só existe um género literario capaz de encontrar compradores em todos os tipos de pessoas que saibam ler, mesmo que nao saibam outra coisa senáo ler: é o romance. AJguns leitores nao léem outra coisa, mas nao há pessoa, por mais fina que seja, que nao seja capaz de ler romance. O filósofo A. N. Whitehead gostava de ler romances policiais, embora fdsse um grande logística Come-

cava sempre pelo fim do livro; assim tendo repousado a mente, ele passava para o comégo do livro, a fim de ver como o autor

preparava o seu desenlace. Visto que o romance em numerosos

casos se dirige á imaginagáo apenas, constituí o género litera rio mais freqüentado tanto pelos autores como pelos leitores»

(K. Gilson, «La sodété de masse et sa culture». París 1967,

pp. 92s). Oompreende-se que o romance tenha explorado o erotis mo, materia & qual o público é cada vez mais sensível.

A procura do lucro tem suscitado outrossim a criacjio e ampia divulgagáo de revistas ilustradas que em alta escala desenvolvem «sexo». Os concursos de «misses» com seu exibidonismo lascivo, os aspectos escabrosos da vida de artistas, a vaidade e a futilidade sao assim explorados, nao se levando

em conta outro criterio senáo o de agradar aos instintos do ser humano e assim desenvolver as vendas. Escritores e edito res já nao dispensam a devida atencáo ao aspecto nobre e cons untivo da arte de escrever, mas apenas ás necessidades do comercio — á custa mesmo dos valores mais típicamente hu manos. Os poderes económicos vém assim sufocando a litera tura, principalmente a das massas, e, mediante a literatura, vém concorrendo para conspurcar a dignidade humana.

A titulo de ilustragáo, transcrevemos aquí alguns dados fornecidos por Steven v. Roberts do «New York Time» e pu— 403 —

36

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 3

blkados pelo «Jornal do Brasil» de 22/23-IH-1970, caderno

especial, p. 6:

«A pornografía tornou-se um grande negocio nos Estados Unidos. Numa nacao fundada por puritanos, desenvolveu-se urna industria imensa e íreqüentemente escusa, dedicada & explorado do sexo.

Usando as modernas técnicas, ... a industria da pornografía produz urna grande variedade de livros, revistas, filmes, discos, fotogra fías c 'aparelhagens sexuais1. Seus clientes sao milhfies de americanos. ... O volume anual da industria da pornografía é difícil de esti mar. Segundo alguns observadores, seria de dols bilhSes de dólares (NCr$ 8,8 bilhoes).

... Quase todos aqueles que lucram com a industria da porno grafía, admiten» que quase tudo o que publicam é lixo. A maioria (dos editores) nem sequer lé o que publica, quando se oonhece o autor. No entanto, tais livros se vendem tao bem que até as grandes editoras já estao copiando o estilo. ... De acordó com as pesquisas da oplhiao, a nacáo continua a

ser contra a pornografía... No entanto, os récordes de venda parecem revelar melhor o que o público realmente pensa... Ao que parece,

as pessoas mostram-sc pouco inclinadas a lutar contra a maré».

2.

Os meios de comunicagáo falados (radio e, principal

mente, televisáo) estáo sujeitos, do seu modo, ao mesmo im perio da comercializagáo. Visando lucro, desenvolvem freqüentemente novelas e outros programas de fundo erótico; também .tceitam anuncios comerciáis de semelhante teor. De modo especial, tem-se estudado o caso da televisáo.

Destinada originariamente a «informar, educar e distrair», ela

vem desempenhando urna nova tarefa: «fazer consumir». Trans-

mitindo anuncios comerciáis de todos os tipos, a televisáo está

a servico da sociedade de consumo, sociedade para a qual produzir e vender sao os criterios, ficando os valores própriamente humanos subordinados aos interésses financeiros. O telespecta dor é incitado pelo seu televisor, muitas vézes sem o saber, a

ir comprar tal ou tal artigo, a se vestir diste ou daquele modo, a usar tal ou tal droga, a comer e beber os últimos produtos da fábrica A, B, C... Ora nisto há, sem dúyida, urna burla

da honra e da honestidade do ser humano; o dinheiro intervém

como senhor do próprio homem.

Consciente dos perigos moráis e da influencia deletéria que a imprensa mal orientada (sob qualquer de suas formas) pode acarretar para o homem de hoje, a Igreja tem-se feito ouvir, tentando avivar as consciéncias dos responsáveis pelos meios de comunicagáo social. No ítem abaixo transcreveremos alguns dos testemunhos do magisterio da Igreja. — 404 —

IMPRENSA ESCRITA E FALADA

6.

37

A voz da Igreja

O S. Padre Pió XII diriglu-se aos participantes de um Congresso Internacional de Imprensa Católica, reunido em Roma de 16 a 18 de fevereiro de 1950, propondo as seguintes .consi-

deragóes:

«A imprensa tem urna fungáo iminente a desempenhar na educagáo da opiniáo (pública), nao para a ditar ou dirigir, mas para a servir utilmente. Esta fungáo delicada supóe, nos membros da imprensa católica, competencia, cultura geral, sobretudo filosófica e teo lógica, dons de estilo, tino psicológico. Mas o que lhes é indispensável ácima de tudo, é o caráter. O caráter, isto é, muito simplesmente amor profundo e inalterável respeito pela ordem divina que abraca e anima todos os setores da vida; amor e respeito que o jornalista católico nao se deve contentar com sentir e alimentar no segrédo do próprio coragáo, mas que deve cultivar nos coragoes de seus leitores. Em certos casos, a chama- que assim brotar, bastará para reacender ou reavivar nos leitores a centelha quase extinta das conviccóes e dos sentimentos adormecidos no fundo da

consciéncia. Em outros casos, a largueza de vistas e de juízos poderá abrir aos leitores os olhos demasiado fixos e apegados a preconceitos tradicionais. Em todo e qualquer caso, porém, o jornalista terá o cuidado de se abster de fazer a opiniáo; multo melhor que isso: terá a ambigáo de servi-la» (transcrito da «REB», vol. 10, junho 1950, p. 502).

O dever de servir á opináo pública foi sucesivamente incutido nos anos seguintes tanto por bispos como por especia listas dos meios de informagáo católicos. Tornou-se objeto da alocugáo de Paulo VI aos participantes do Seminario Regional Europeu das NagÓes Unidas sobre a Liberdade de Informagáo

(17/IV/1964):

1>

«A informagáo deve ser verdadeira e honesta... Ela deve, antes do mais, corresponder á verdade. Ninguém tem, pois, o direito de propagar conscientemente informagóes erróneas ou de apresentá-las sob urna luz que deforme as suas dimensóes.

Também ninguém tem o direito de escolher arbitrariamente as

suas informagóes, divulgando apenas o que esteja de acordó com as próprias opinióes e passando em silencio o resto. Pode-

— 405 —

38

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970, qu. 3

-se pecar contra a verdade tanto por omissóes calculadas como

por afirmacóes inexatas.

Nao basta que a informagáo seja objetiva. É preciso que ela saiba impor a si mesma os limites exigidos pelo bem supe rior. Ela deve saber, por exemplo, respeitar o direito dos outros á boa reputacáo e deter-se diante do legítimo segrédo da vida privada dos outros. Quantas infracóes hoje a estes dois pontosí. .. Respeitosa da pessoa e do bem dos outros, a informa gáo deverá ser aínda, e talvez mais, respeitosa do bem comum. Quem ousaria sustentar que toda informacáo, seja qual fór, é igualmente benéfica ou inofensiva em todas as ocasióes e em todos os ambientes? Pensai, por exemplo, neste setor parti cularmente sensivel e vulnerável que é a juventude! A infor macáo tem limites que Ihe sao impostes pela sua própria dignidade, ... em virtude das exigencias de sua nobre missáo

social» (transcrito da «REB», vol. 24, junho 1964, p. 463).

Deve-se aínda mencionar a alocugáo de Paulo VI dirigida

a urna assembléia de artistas e jornalistas reunidos em Roma aos 7/V/67 por ocasiáo da I Jornada Mundial das Comunicacóes Sociais. A tais profissionais lembrou S. Santidade que exercem «urna missáo que os estabelece mestres e guias, inter mediarios entre a verdade e o público, entre as realidades do mundo exterior e a intimidade da consciéncia dos homens»; tém «o direito de nao estar condicionados por pressóes ideológicas, políticas, económicas».

Estes diversos pronunciamentos pontificios encontram ple na ressonánda no decreto do Concilio do Vaticano II referente aos meios de comunicacáo social (4/XH/1963). De tal do cumento podem-se extrair os seguintes tópicos principáis: «... as relagóes entre os direitos da arte e as normas da lei moral. Como as incessantes controversias nesta materia se

originam de falsas doutrinas acerca da ética e da estética, o

Concilio declara que absolutamente todos devem professar a

primazia da ordem moral objetiva... Pois sómente a ordem moral atinge o homem em toda a sua natureza, criatura ra cional de Deus...; e, se esta ordem moral é observada fiel e integralmente, leva o homem á plena consecugáo da perfeigáo e da felicidade.

Em último lugar, a narracáo, a descricáo e a representacáo do mal moral podem certamente, com o recurso inclusive dos meios de comunicacáo, prestar-se para um conhecimento e um estudo mais profundos do homem, para manifestar e exaltar a magnificencia do bom e do verdadeiro, obtendo-se, — 406 —

«SIDARTA» DE HERMANN HESSE

39

além disso, mais oportunos efeitos pragmáticos; contudo, para que nao venham a causar daño antes que utilidade aos espi

rites, obedecam estritamente ás leis moráis, principalmente se se tratar de coisas que exigem a devida reverencia ou que incitem com mais facilidade o homem, ferido pelo pecado original, a desejos perversos» («ínter Mirifica» ns. 6 e 7).

É nestes termos que o Concilio lembra que a arte está sujeita á Moral ou as normas da ética; sem o que, ela poderia vir a ser degradante, e nao nobilitante. A confeccáo do presente artigo multo deve a E. Gilson, «La société de masse et sa culture». París 1967.

Vejam-se também: «Gli strumenti della comunicazlone sociale c la gioventü», em «La Chrflta Cattolica» 2/V/1970, qu. 2877, pp. 209-213. Francois-Xavier Hutin, «Pour une lnformation objective», em «Études» 329 (1968) pp. 194-206. MIchel Souchon, «La publicité á la televisión», em «Études» 328 (1968) pp. 329337. «L'Ami du Clergé» l/VI/1967 n* 22, pp. 348-350. Anuario Inaciano 1970.

IV.

MAIS UM ROMANCE

4) «Milito se tem comentado o romance 'Sidarta' de Hermann Hesse. Um dos livros favoritos dos 'hippies'... Que dizer?»

Em stntese: No livro ácima, Sidarta é um herói hindú que se pde á procura da verdade e da perfeicSo ética, seguindo sucessivamente

diversos caminhos. Certa vez, cansado da renuncia chega a levar vida ■ luxuosa e luxuriosa. Mas esta também o enfastia. Finalmente retira-sc á margem de um rio, onde vive com um balseiro e aprende diretamente da natureza (agua, pedras, árvores...) — que ele identifica com a Divindade — a sabedoria que ele nao aprendeu junto aos nomens. Concluí asseverando que vida e morte, pecado e santidade, sabe doria e tolice vém a ser a mesma coisa. Ceticismo, eis a insinuac&o final do romance!

Ora é necessário afirmar

— a distincáo entre Deus e o homem, entre o Infinito, Absoluto, e o finito, relativo; o Absoluto nSo é o relativo aperfeicoado, mas distingue-se radicalmente de tudo que é contingente e limitado; — a capacidade da razio humana frente á verdade. As condusSes seguras do raciocinio tém valor perene, tanto aos olhos dos homens

— 407 —

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/19TO, qu. 4

quanto sob a luz de Deus. Pecado nao pode ser a mesma colsa que santidade, pols, do contrario, o Slm seria Nao, e já nao restarla ao homem a possibilidade de raciocinar. Mesrao o cético pretende ser célico usando da sua razSo para destruir a conílanca na razáo. Há,

pois, categorías de lógica e de ética que obrigam todo ser humano. A escola ou a atencjfo aos antepassados é o meló normal pelo qual o homem adquire sabedoria.

Besposta: Já em «P.R.» 128/1970, pp. 364-368 apresentamos o romance «O Lobo da Estepe» de Hermann tíesse. Esta

obra traz as marcas da fantasía fortemente exuberante do

autor; todavía sugere teses (intencionalmente?) ambiguas. O «Lobo» é o espelho do homem inquieto de nossos dias, que procura respostas para seus problemas no estudo e na misantropia (fuga dos homens), mas se deixa vencer pela sodedade prazenteira e atraente, sociedade, porém, de baixo nivel moral.

Um «qué» de espiritualidade, muito tímido e mal formulado,

tenta transparecer através das páginas de «O Lobo da Estepe».

O público tem-se interessado por outro romance de Her mann Hesse; pelo que comentaremos abaixo «Sidarta». Já que

éste livro pretende ser como que um retrato biográfico e psico

lógico do autor, faz-se mister comegar o comentario por um esbogo biográfico do escritor. Hermann Hesse nasceu em 1877, época da literatura ro mántica, na Alemanha, em urna pequeña cidade de aspecto medieval: Calw (Württemberg). Seus país foram missionários

protestantes na India. Destinado pelos genitores ao estudo da teología na Alemanha, Hermann fugiu do Seminario por nao poder sustentar a rígida disciplina do estabelecimento. No Ginásio revoltou-se contra o ensino nacionalista ministrado pelo Govérno imperial alemáo. Fugiu para a Suíca, onde se empre-

gou numa livraria e comecou a publicar romances. Casou-se

com a filha de ricos burgueses suigos. Parecía assim ter a felicidade assegurada, Fugiu, porém, do conforto para levar vida solitaria. O comégo da primeira Guerra Mundial abalou-o; de-

sistíu da cidadanía alema, vivendo. na Suíga perseguido pela contra-espionagem alema; tinha-se declarado contra o naciona lismo belicoso do «Kaiser» e da Alemanha. Estéve na India, em busca de urna filosofía diversa das que lhe oferecia o Ocidente; foi entáo que se imbuiu de idéias budistas, das quais o romance «Sidarta» é um reflexo muito claro. Tem-se dito que toda a vida de Hesse tem sido urna serie de fugas, provocadas pela revolta: revolta contra a casa pa-

— 408 —

«SIDARTA» DE HERMANN HESSE

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terna, contra o Cristianismo, contra a escola, contra a vida; burguesa, contra a guerra e contra o nacionalismo. Hesse foi sempre um rebelde contra os poderes déste mundo — temporais e espirituais.

A vida de Sidarta (apelativo de Buda) descrita no ro mance do mesmo nome milito se parece com a de Buda e também com a do próprio Hermann Hesse; consta de urna

serie de fugas em demanda de experiencias e realidades novas.

Abaixo examinaremos rápidamente o conteúdo de «Sidar ta», a fim de proferir um comentario sobre éste romance.

1.

«Sidarta»

Sidarta foi um dos nomes de Gautama ou Buda, fundador do budismo nos séculos VI/V antes de Cristo. Hermann Hesse apresenta-nos a figura de um jovem cha

mado Sidarta, contemporáneo de Buda, o qual, juntamente com seu amigo Govinda, se póe á procura da verdade e da vida perfeita. Os dois companheiros tornam-se Saman^, ou seja, monges brámanes, que vivem como pobres peregrinos. Após tres anos de ascese ou vida mortificada, os dois jovens sao tentados pela doutrina sublime de Buda, que prega a renuncia a tudo, até aos mais espontáneos desejos do próprio eu. Toda vía, depois de ouvir Buda, Sidarta resolve separar-se de qualquer escola ou mestre, para se realizar a sos de maneira mais

auténtica. Acontece, porém, que se depara com urna jovem cortesa, Kamala, que o seduz, de tal sorte que Sidarta aban

dona a penitencia e muda por completo seu tipo de vida: corta,

a barba e a cabeleira, perfuma-se, veste-se ricamente e en-

trega-se a todo tipo de prazer. Sidarta passa a gozar do luxo

e da luxúria; pratica o jógo em companhia de jogadores vi ciados; dedicarse ao comercio sob a directo de famoso comer-

danta Contudo aos poucos enfastia-se de todos ésses gozos, e resolve abandonar a companhia de Kamala; deixa-a, porém, grávida em conseqüéncia de relacóes extraconjugais com Si darta.

O jovem póe-se entáo a vaguear, até que vai fazer com panhia a um velho balseiro, que transportava passageiros de urna margem para outra de um rio. Ésse homem era simples e alheio a qualquer mestre ou escola; aprendía a filosofía observando o fluxo do rio junto ao qual morava. Sidarta de-

cidiu-se a fazer a mesma aprendizagem; compartilhava o gé— 409 —

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 129/1970, qu. 4

ñero de vida do balseiro, e contemplava a natureza (rio, pedras, pássaros, flores...), quando um belo dia lhe apareceram Kamala e seu filho, que desejavam atravessar o rio. Sidarta e a antiga consorte reconheceram-se mutuamente; em conse-

qüenda, Kamala, enferma, e o menino ficaram com os dois ascetas; a mulher faleceu pouco depois na cabana do balseiro, ao passo que o menino, rebelde as instrucóes do pal, fugiu para a cidade, onde quena levar vida prazenteira.

Doutra feita, Govinda, o antigo companheiro de Sidarta, apresentou-se como candidato a atravessar o rio. Os dois ami gos também se reconheceram mutuamente. Entáo Sidarta convenceu Govinda de que nao devia procurar a verdade em escola alguma nem junto aos mestres, mas, sim, na meditacáo sobre as coisas e a Natureza: «Esta pedra é pedra, mas é também

animal, é também Deus, é Buda» (p. 116).-Sidarta afirmou-

-lhe outrossim que «a morte é igual á vida; o pecado, igual á santidade; a inteligencia, igual k tolice> (p. 115).

Govinda finalmente aceitou as idéias de Sidarta e verificou, em última análise, que elas coincidiam com as de Buda! — Assim se encerra o romance.

Em suma, o autor do livro tenta insinuar o aspecto rela tivo de todos os valores intelectuais e moráis conhecidos pelos homens e ensinados pelas escolas de sabedoria: inteligencia e

tolice, pecado e santidade seriam a mesma coisa (eis a tese culminante do romance). Quem procura a verdade e o bem em grau perfeito, pode e deve tornar-se cético em relacáo as categorías de pensamento e de moral clássicamente apregoadas. O sabio auténtico foge de toda escola e todo mestre, para ouvir a Natureza, que é a Divindade mesma.

2.

Refletindo um pouco. . .

1. O livro «Sidarta» pode, a um primeiro contato, ser sedutor, porque parece mostrar o caminho por excelencia para que o homem chegue a verdade, caminho emancipado das es colas dos homens. Dá a entender que todo mestre e toda escola sao deficientes e limitados. Em conseqüéncia, é preciso nos libertemos do infantilismo que nos leva a procurar aprender junto aos sabios e na leitura de livros; é preciso também que ponhamos de lado as categorías comuns do raciocinio e da ética, ou seja, os conceitos de sabedoria e tolice, de pecado e santidade, de vida e morte. Estes conceitos sao exiguos demais — 410 —

«SIDARTA> DE HERMANN HESSE

43

para corresponder á realidade: «O oposto de cada verdade é igualmente verdade» (p. 114). O balseiro Vasudeva cera o próprio rio, era Deus mesmo, era a Eternidades (p. 107).

2. Tais idéias, que parecem propor a maioridade ou a emancipacáo ao homem intelectual, bajulam o orgulho humano, pois apregoam a überdade em relagáo aos mestres. Na ver

dade, porém, sao falazes. E isto, por dois motivos principáis:

1) É utópico pretender que o homem se identifique com Deus ou com a natureza que o cerca. Em outros termos: o panteísmo («Tudo é Deus») disseminado por Sidarta é ilusorio.

Deus é, por definicáo, o Absoluto, o infinitamente Perfeito, o Eterno, ao passo que o homem é relativo, finito e contingente.

Ora nao há transicáo entre o Absoluto e o relativo ou entre o Infinito e o finito. O Infinito nao resulta da multiplicacáo de seres finitos, nem o Absoluto é um ser relativo aperfeicoado; por isto Deus, o homem e as coisas volúveis que nos cercam, nao podem constituir urna substancia ou urna realidade única. Deus é, por sua natureza, radicalmente diverso das cria turas; em Deus nao há mudanga, nao há volubilidade (pois tdda mudanga significa ou perda de perfeicáo ou aquisicáo de

perfeigáo).. Deus é simultáneamente aquilo que. Ele é; nao está

sujeito a passado nem futuro; nao admite esfacelamento, por.que nao tem partes. — Ora a criatura é inevitavelmente sujeita ¿s leis do tempo; ela se estende e se retalha; é, pois, de urna natureza radicalmente diversa da de Deus. Donde se vé que o homem nao pode nem deve pretender encontrar Deus e o Absoluto abstraindo de todo raciocinio e de toda escola; a contemplacáo de um rio, de urna pedra ou da natureza nao é a contemplacáo de Deus, mas, sim, de urna obra de Deus, distinta de Deus (embora traga a marca da sabedoria do Criador).

2) O homem penetra a verdade usando da inteligencia e do raciocinio. As conclusóes seguras a que chega o raciocinio póem-nos realmente em contato com a verdade; sao inabaláveis. «Dois e dois sao quatro»; «a soma dos ángulos de um triángulo perfaz 180»»; «um circulo nao pode ser um quadrado»; «duas quantidades iguais a urna terceira sao iguais entre si» sao proposicóes que em hipótese alguma podem ser inva

lidadas; elas se reduzem ao principio de contradigáo: «o ser nao é o náo-ser». Quem queira recusar alguma das verdades ácima, recusa as leis do pensamento lógico e do bom senso. Nao obstante, para recusá-las, usa dessas leis e confía nelas, — 411 —

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970. qu. 4

porque é após haver radodnsdo e em conseqüéncia de um ra ciocinio que professa o seu ceticismo.

A inteligencia com a sua capaddade de raciocinio é urna das mais belas e preciosas facuidades que o homem possui; ela é habilitada a atingir o Eterno e o Absoluto, embora nao possa

penetrar todo o infinito océano da vida divina.

Ora, se é pelo raciocinio que o homem penetra a verdade, vé-se que é oportuno, se nao necessário, recorrer as escolas e

aos mestres idóneos que ajudem e estímulem o discípulo na conquista da auténtica sabedoria. Todo homem — mesmo os mais capacitados — é aprendiz na escola de seus semelhantes; tem que ouvir e ler para poder formar seus juizos e tomar posicóes. Por consegrante, a sá filosofía confía na capacidade da razáo e se apoia sobre ela para se desenvolver. Alias, note-se bem: quem queira negar a capaddade da razáo, só o pode fazer servindo-se da própria razáo, ou seja, supondo que a razáo é

capaz de ditar condusóes válidas e certas. Embora a inteli

gencia humana seja limitada e nao possa ir até o fundo da realidade (esta supóe urna inteligénda infinitamente sabia), a inteligénda coloca o homem no caminho da verdade, porque o que ela apreende de seguro é verdade indiscutível; quando radodna, a razáo nao lida com um mundo de fantoches ou conceitos falsos, mas, sim, com a verdade mesma; «dois e dois

sao quatro» é verdade nao sómente aos olhos dos homens e

neste mundo, mas também & luz da sabedoria de Deus e na eternidade. Em conseqüénda, nao se pode dizer que o contrarío de urna verdade também é verdade; só existe urna verdade a

respeito de cada coisa. Pode-se, porém, reconhecer que algo

é e nao é ao mesmo tempo, sob aspectos diferentes. Por exetnplo, o género humano, com seus dois milhóes de anos sobre a

térra, é muito antigo, caso se leve em conta a duragáo da vida de um individuo, mas é jovem se se considera a idade do nosso planeta (bilhóes de anos). O que acaba de ser ponderado, leva-nos a ver também que

o auténtico sabio é humilde, file nao recusa aprender de seus

semelhantes, plena luz.

nem

se julga

auto-suficiente

na

conquista

da

3. De modo espedal, convém salientar a diferenga ou mesmo a antitese existente entre pecado e santidade. A santídade é a ünitacáo (na medida do possivel) do comportamento

de Deus; ora Deus é Amor. Por conseguínte, amar a Deus e — 412 —

«SIDARTA> DE HERMANN HESSE

46

amar ao próximo é santidade. O contrario do amor — o odio

é pecado, e nao se identifica com o amor. Por exemplo, diante deum irmáo necesitado só há urna atitude santa: interessar-se por ele na medida do possivel. Desinteressar-se por motivo de desdém ou comodismo nao é santidade. O comportamento

humano, por conseguinte, é norteado por normas objetivas, incutidas pelo próprio Criador; ao homem compete auscultá-las com humildade e docilidade.

Eis as principáis ponderaoóes que o «Sidarta» de Hermann Hesse sugere. O livro é sedutor, como, alias, toda a espiritualidade oriental é sedutora. A grande razáo déste fascinio con siste em que o pensamento oriental é místico: fala profunda

mente ao senso do misterio que todo homem (também o oddehtal) traz em si; promete ao estudioso o contato mais cons

ciente com o Infinito e a emancipagáo frente as categorías

obvias de pensamento e conduta, as quais sao por muitos mestres orientáis tidas como infantis ou como aptas apenas aos

principiantes na vida espiritual. — Naturalmente, tais pers

pectivas sao capazes de exercer grande poder de atracad, pois todo homem é feito para Deus ou para o Infinito; todo homem também é feito para um «qué» de contemplacáo (nao há vida humana auténtica sem um pouco de contemplacáo, contemplacao que os orientáis cultivam com tanto heroísmo). Todavía lamenta-se que a tentativa de ascensáo para o Infinito, entre os orientáis, perca o contato com a lógica e o raciocinio, deixando-se guiar por exuberancia religiosa, fantasista e aber rante.

Fagamos votos para que «Sidarta» desperté em muitos homens o senso do misterio que trazemos latente em nos e que encontra sua resposta auténtica nao no panteísmo, mas no

monoteísmo (há um Deus só, pessoal e distinto do mundo). Estéváo Rettencourt O.SJ3.

— 413 —

46

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 129/1970

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RESENHA DE UVROS O tormento de Deus, por Frei Mateus Rocha O.P. Vozes, Petrópolis 1970, 135 x 205 mm, 138 pp.



Editora

Frei Mateus Rocha é o autor de «Quem é éste homem?», já apre-

sentado em 126/1970, p. 273. O ndvo llvro désse escritor encerra quatro ensaios: Os tres primelros sobre Dostoievski, o último sobre alguns aspectos do ateísmo contemporáneo.

Dostoievski (1821-1881) foi um cristáo russo ortodoxo (cismático), que aderiu profundamente a Cristo. Quería, porém, excluir do Cris tianismo todo aspecto autoritario e jurídico; por isto criticou acerba

mente a Igreja Católica — que ele, alias, nao soube entender — por haver tomado parte táo influente na direcfio da vida civil e política dos povos; a obra «Os Irmaos Karamazovir, com o seu capitulo sobre «O Grande Inquisidor», é urna expressáo típica da censura dirigida por Dostoievski ao Catolicismo. Freí Mateus, ao apresentar esta faceta da obra do escritor russo, dá a ver que a Igreja nao se podia desinteressar da sorte temporal ou política dos povos; íol a Providencia que quls Í6sse a civilizac&o latina salva das ruinas pela missao apostólica dos bispos e dos monges,

osquais desde o sécalo V procuraran* aliviar a sorte das populantes

flageladas pelas invasOes bárbaras: «A posicáo de Dostoievski, nao há dúvida, tem sua dose de verdade. Todavía desconhece ou minimiza elementos que também sao essendais ao Cristianismo. Efetivamente, o Cristianismo nao podia escapar á grande aventura do tempo. Tendo surgido dentro do imperio romano, durante multos anos particlpou de sua historia. E teve seu periodo de maior progresso quando ele co-

mecou a se desagregar. Proeurou até mesmo retardar-lhe a queda inevitável... Poderiamos ter sonhado com urna religiao indiferente aos acontecimentos históricos, escondida na historia, e sem acao sobre ela. A religiao católica poderla ter-se alojado ñas entranhas do imperio romano, como o foi no tempo de Trajano, nem condenada, nem garan tida, ¡mas tolerada. Havia porém nela um desejo irresistível de atingir tudo no homem. E já no sáculo III era claro que, se o paganismo oficial cedesse, a religiao do Cristo tomarla s«u lugar» (pp. 78s).

Frei Mateus pfie em realce a sede ou a procura de Deus que caracteriza varios personagens da obra de Dostoievski. Essas figuras

literarias exprimen) auténticamente o que val na alma de multos dos nossos contemporáneos, por mais incrédulos que estes se professem.

Dostoievski afirma com veeméncia e calor a existencia de Deus; sao dignos de nota os numerosos textos do autor russo que o nosso ensaista transcreve e comenta; tem-se assím verdadeira antología dostoievskiana.

O quarto capitulo da obra versa dlretamente sobre o ateísmo contemporáneo e suas manifestacOes. O autor procura fixar a respon-

sabilidade dos cristaos perante o fenómeno; a melhor resposta ao ateísmo é realmente o testemunho da vida dos discípulos de Cristo: tenham urna fé encarnada em todas as dimensfies da vida, especial mente na profana. «Nao há perigo algum de que se demonstre a nac-existéncia de Deus, mas há urna grande chance de que amanha vecé e eu mesmo o esquecamos. Porque Deus é um Deus ativo que nos provoca e nos incomoda... O ateu que devemos temer é aquéle que vive em nosso coracáo» (p. 137).

— 414 —

RESENHA DE LJVROS

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Frei Mateus é talyez severo demais aoapontar a responsabllidade

dos cristfios no surto ou na propagacáo do ateísmo. Éste tem múltiplas causas: o cientificismo, o hedonismo e o babeo nivel moral da sotíledade sao seminarios de deíormacáo da mentalidade e de ateísmo. £ necessário nao criticar além da justa medida. Em suma, pódese dlzer que o novo livro de Frei Mateus Rocha é altamente valioso, nao somente por abordar um tema de grande atualidade, mas também por conduzir a sua exposigáo com seriedade

e riqueza de documentos. Sao estas algumas de suas palavras fináis: «De urna coisa estou certo: Deus nunca fica para tras, entre os de tritos da historia. Seja qual fór a direcáo a que nos conduzam os nossos passos de peregrinos do Absoluto, file surge setnpre adlante de nos e nos aguarda cheio de amor. E, se realmente tivermos cresddo, nos o encontraremos também maior» (p. 138).

O homem e a grasa, por Karl Rahner; traducao do alemao pelo Pe. Hugo Assmann. Colecao «Revelacáo e Teología» 11. — EdicSes

Paulinas, S5o Paulo 1970, 145 x 210 mm, 255 pp.

Esta obra apresenta oito conferencias, reelaboradas após haver sido proferidas pelo autor ém ocasiOes diversas. Guardam algo das características de seu estilo e auditorio próprios. O autor aborda temas como «natureza e graca», «relacfto entre natureza e graga», «conceito teológico de concupiscencia», «pecado e remissáo do pecado no donlnio•íronteira da teología e da psicoterapia»...; termina com um diálogo, multo lnteressante, entre um médico e um sacerdote «sobre o sonó, a oracao e outras coisas». — Os assuntos abordados por Rahner supSem

profundo conhecimento nao sómente dos dados da fé e da teología, mas também da psicología e da antropología. O autor possul tais noefies com ampia erudic&o; sabe desenvolver o seu pensamento cóm seguí-anca, mas n&o é de fácil leítura; o vocabulario e a profundidade

do estilo de Rahner só podem ser devldamente entendidos por quem tenha tido iniciacao teológica. Rahner procura reformular as nocOes teológicas da escolástica de acordó com as categorías da filosofía mo

derna, conservando integro o depósito da fé.

A juventude da Igreja ou a grande tentacSo moderna, por Francote Boucahrd; traducao das Monjas beneditinas de Belo Horizonte. Colec&o «Mysterium Fidei» 7. — EdicSes Paulinas, S&o Paulo 1970, 130x200 mm, 215 pp.

Éste livro tem em mira todos aqueles que hoje em día se véem perplexos diante do fenómeno da Igreja; muitos a julgam ultrapassada ou envelhedda, enquanto outros a tem na conta de traidora dos principios da sa Tradicáo. o autor tenta mostrar como perenidade e renovacao se conciliam na única Igreja de Cristo. Pelo seu aspecto divino, a Igreja é intocável, enquanto pela sua face humana está sujeita a trocar de expressfies no decorrer dos tempos. Bouchard consi dera, de modo especial, o papel da Igreja no .mundo de hoje, mundo da técnica e do consumo. Rejelta tanto a desconíianga sistemática como a confianca simplória ou exagerada, a fim de apregoar urna esperanca lúcida e corajosa no futuro da Igreja. É justamente conser vando sua íidelidade a Cristo e aos valdres sobrenaturais que a Igreja poderá ser útil ao homens e sobrevlver através dos séculos; á pág. 191 do livro recenseado lé-se interessante obervacáo de Toynbee, famoso sociólogo c historiador inglés: «O cristianismo jamáis foi um mono-

— 415 —

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

polio dos cristfios ocidentais; creio pódennos predlzer com confianca que ¿le continuará a ser urna ídrca espiritual viva no mundo por milhOes de anos, mesmo quando nossa civilizacao ocldental já tlver passado completamente». Bouchard, portante, professa genuino otimismo cristSo, que ele ilustra lembrando fatos contemporáneos e ci tando numerosos testemunhos de pensadores dos nossos dias, os quals atestam a vitalidade do Evangelho e da Igreja em meio ás viclssitudes da historia. A obra, alias, comeca pelo estudo do pensamento de Georges Bemanos, Paúl Claudel, Charles Péguy e Slmone Weil, que expressaram com ardor sua confianca na juvcntude imortal da Igreja: «Veja, eu vou definir um povo cristño pelo seu contrario. O contrario ' de um povo cristao é um povo triste, um povo de velhos» (Bernanos). O livro se recomenda vivamente a quem se interesse pela posicáo da Igreja frente ao mundo contemporáneo. É sadlamente esperancoso, como também erudito, sem perder clareza e encanto. «O que muito nobremente se propñe o Concilio ecuménico... é fazer um periodo de pausa em torno déla (a Igreja), para, num estudo aíetuoso, investigar os traeos de sua juventude mais ardente e recompo-los de maneira a revelar a sua fórca conquistadora sobre os

«spiritos modernos» assinalado).

(Joao XXIII, 13/XI/1960, citado á p. 53 do livro

A Carta do Apostólo Tiago, comentada por Otto Knoch e traduzida com seu comentario por Frei Edmundo Binder G.F.M. ColecSo «Novo

Testamento — Comentario e Mensagem» n» 19. — Editora Vozes, Petrópolis 1970, 125 x 180 mm, 127 pp.

Toda obra que comente sabiamente as Escrituras Sagradas é par ticularmente oportuna nesta hora de renovacao bíblica. Aconselha-se calorosamente aos fiéis a leitura da Biblia, mas íreqUentemente acon tece faltarem livros que introduzam e expliquem o texto sagrado. Em tais casos, süo prejudlcados o estimulo e a perseveranca dos leitores. — A colecSo ácima assinalada veio, em boa hora, suprir a lacuna. Apresenta em fascículos de fácil manuseio comentarios sólidos, profundos « claros ao Novo Testamento. Seria para desejar que os cristaos, na medida do possivel, trouxessem sempre em sua pasta de viagem algum fascículo désses, a fim de nutrir o espirito durante um trajeto ou numa sala de espera (consultorio médico, estac&o rodoviária, ferro viaria...). A comunhSo com a palavra de Deus é a preparacáo e a continuagáo da comunháo eucaristica. O fascículo ácima registrado é acompanhado de urna fólha que fornece oracBes e instrug&es em vista de mais frutuosa leitura da Biblia. O comentario elaborado por O. Knoch é nutrido de teología e de espirito de oracao.

Voca$3o e proflssSo, por Paulo Rosas. — Editora Vozes, Petrópolis 1970, 140x210 mm, 207 pp. Paulo da Silvelra Rosas estudou Psicología em Madrid (Espanha) em 1954. Em 1964/65 fez estágio no Instituto de Psicología da Uni-

versidade de Paris. Fundou e dirige o Instituto de Psicología do Trabalho no Recife. É professor da Universidade Federal de Pernambuco, onde atualmente chefia o Departamento de Psicología.

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O autor dirige-se principalmente a jovens, a quem deseja ajudar a descobrir a sua vocagao ni" vida, usando de linguagem coloquial e penetrante. Por «vocacao» entende Pedro Rosas «a imperiosa atracáo que as pessoas sentem para se dedicarem a urna atividade proíissional determinada... Nada de alimentar sonhos irrealistas, alimentar nivel de aspiragdes profissionais desproporcional ás possibilidades i.itelectuais e ás características biotipológicas individuáis» (p. 191).

Para auxiliar o jovem a se descobrir, Paulo Rosas íornece-lhe dados e tabelas de medicina e psicología, indispensáveis para que o rapaz e a moga possam avahar a sua evolugüo psicossomática. Realga

o que todos os jovens tém de comum entre si, incutindo, porém, a necessidade de cada um cultivar as notas tipicas de sua personalidade. Por último, o psicólogo propóe ao leitor urna serie de perguntas que o devem impelir a reíletir sobre si mesmo: «A profissao que vocé escolheu está em consonancia com sua vocagáo? Ou vocé prefere ser

'mais prático", e escolher a mais rendosa, apenas por ser mais rendosa? Ou a de 'vestibular mais fácil', apenas por julgar que assim nao pre cisará estudar muito? Ou escolheu a profissao de seu pai, táo-sómente por 'ter meio-caminho andado', por ter 'clientela feita'? Ou vocé se acovarda face ás dificuldades durante o período de formacao e treina-

mentó, preferindo pensar que vocacao é luxo e profissao se escolhe conforme a oportunidade de emprégo acaso encontrada? Vocé já pensou que trabalho é mais do que um 'meio de vida' e mesmo mais do que realizagáo num plano exclusivamente individual? Que por seu trabalho vocé dá á sociedade a contribuigáo que ela tem o direito de exigir de vocé?» (p. 191s).

P. Rosas assim deseja evitar as receitas feitas e as fórmulas-padrSes, que podem favorecer a passividade do jovem e nao sempre resolvem a problemática pessoal do mesmo. O autor prefere provocar certa «incómoda análise» ou certa angustia sadia, que há de levar o

jovem á reflexáo e á maioridade intelectual. O livro foi escrito segundo os métodos mais modernos da educagao, baseando-se em ampia biblio grafía devidamentc citada. Talvez choque á primeira vista, por fugir do estilo clássico do escritor-professor; nao obstante, pode ser alta mente construtivo e útil. E.B.

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