P rojeto PERGUNTE E
RESPONDEREMOS ON-LIME
Apostolado Veritatis Spiendor com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb (in memoriam)
APRESEMTAQÁO DA EDigÁO ON-LINE Diz Sao Pedro que devemos estar preparados para dar a razáo da nossa esperanga a todo aquele que no-la pedir (1 Pedro 3,15).
Esta necessidade de darmos conta da nossa esperanga e da nossa fé hoje é mais premente do que outrora, visto que somos bombardeados por numerosas correntes filosóficas e religiosas contrarias á fé católica. Somos assim incitados a procurar consolidar nossa crenga católica mediante um aprofundamento do nosso estudo. Eis o que neste site Pergunte e Responderemos propóe aos seus leitores: aborda questóes da atualidade controvertidas, elucidando-as do ponto de vista cristáo a fim de que as dúvidas se dissipem e a vivencia católica se fortaleca no Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar este trabalho assim como a equipe de Veritatis Splendor que se encarrega do respectivo site. Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003. Pe. Esteváo Bettencourt, OSB
NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR Celebramos
convenio
com
d.
Esteváo
Bettencourt
e
passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual conteúdo da revista teológico • filosófica "Pergunte e Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo. A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral assim demonstrados.
ypr
I 276 Aínda Sobre a Teologia da Libertas
As Disposi^Ses para Comungar
'O Direíto de Amar"
Fidelldade..., mas a quem?
"Em Nome de Deus"
• I]
m
"RevolucSo na Igreja?"
Pode um Crisláo ser Marxisla?"
Setembro-Outubro — 1984
PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
SETEMBRO-OUTUBRO — 1984
PublIcacSo bimestral
N9 276
Diretor-Responsável:
SUMARIO
D. EstévSo Bertencourt OSB Autor e Redator de toda publicada neste periódico
a
materia
Diretor-Admlnistrador D. Hildebrando P. Marlins OSB
Admlnistracáo e distribuicio:
a
(021)291-7122
teología
da
PARA
COMUNGAH
20001 - Rio de Janeiro - RJ
366
Um Itvro candente: "O DIREITO DE AMAR"
Caixa postal 2666
354
problema grave:
AS DISPOSICÓES
Dom Gerardo, 40 - 5? andar. S/501
353
Urna palavra abalizada: aínda sobre libertaqao Um
Edicdes Lumen Christi Te!.:
DESCOBERTA DÉ DEUS
368
Um difícil problema: FIDELIDADE..., MAS A QUEM?
Pagamento etn cheque nominal visado ou Vale Postal (para Agencia Central/Rio), enderecado as:
"EM
Edigoes Lumen Christi
Um artigo questlonador:
Caixa Postal 2666
Escándalo? NOME
DE DEUS"
"REVOLUCAO NA K3REJA?"
20001 • Rio de Janeiro - RJ
387
398
403
Um livro ponderado:
"PODE UM CRISTAO SER MARXISTA?"
418
ASSINATURA ANUAL PARA 1985
NOTAS E COMENTARIOS
427
Sendo paga até 31 de dezembro da 1984 .. (Válida para todo o ano de 1985)
LIVROS EM ESTANTE
437
Sendo paga a partir de 1? de Janeiro de 1985
CrS
12.000.G0
CrS
15.000,00
NO PRÓXIMO NÚMERO RENOVÉ CUANTO ANTES A SUA ASSINATURA
COMUNIQUE-NOS QUALQUER MUDANCA DE ENDERECO
Compottclo e Impressio: "Marques Saraiva" Santos Rodrigues, 240 Rio de Janeiro
277 - Novembro-Dezembro - 1984 Teologia da Libertacio: quatro enfo ques. — "A Dor Salvlfica". — ParticlpacSo da Igreja na atualldade braslleira. — Instrucfio "Inaestlmabile Donwn". — Comungar mais vezes ao dial — "A Volta a Grande Disciplina" (J. B. Libanio» — O sentido da vida. — AparicSes em Medjugorje.
Com aprovacáo eclesiástica
DESCOBERTA DE DEUS Em nossos dias fala-se freqüentemente de solidáo, _T.'. 'I j7
dessa solidáo a respeito da qual o Cardeal Joseph Ratzinger escreveu memorável página: "A solidáo é, sem dúvida, urna das raizes básicas de que surge o encontró do homem com Deus. Onde o homem experi menta a solidáo, verifica, ao mesmo tempo, quanto a sua vida representa um grito pelo tu e quáo pouco o homem é apto a ser um puro eu, encerrado em si mesmo.
A solidáo pode manifestar-se ao homem em profundezas diferentes. Primeiro, ela satisfaz-se com o encontró de um tu humano. Mas desdobra-se um processo paradoxal descrito por Claudel: cada tu que o homem encontra, revela-se finalmente como urna promessa irreal izad a e irrealizável, porque todo tu, no fundo, representa de novo urna desilusáo; há um ponto em que encontró nenhum é capaz de vencer a derradeira solidáo. E exatamente o achar e o ter-achado voltam a ser um retorno á solidáo, um grito pelo tu real e absoluto" (Introducto ao Cristianismo, Sao Paulo 1970, p. 68). Resumidamente, diremos que este texto procede em tres etapas:
1) A solidáo é um fato humano básico e universal, pois ninguém foi feito para encontrar em si mesmo a sua resposta. Algumas pessoas sao mais sensíveis á solidáo: tais os andaos, os marginalizados, os incompreendidos em meio á grande multidáo (cercados de gente, sem ter com quem se desabafar...). 2) Experimentando solidáo, a pessoa procura espontá neamente em outra criatura a sua complementacáo, pois vive entre criaturas. Visto, porém, que toda criatura é limitada, a
pessoa recaí na solidáo. Mesmo no matrimonio, quem procura no consorte a sua resposta exclusiva, corre o risco da decepcáo; esposo e esposa, na perspectiva crista, sao, um para o outro, sacramento do Cristo e da Igreja (cf. Ef 5,32). 3) É esta recaída na solidáo que leva o homem a pro curar transcender todas as criaturas, finitas e limitadas como sao, a fim de descobrir o Ser Absoluto e Infinito que é Deus. «Tu nos fizeste para Ti, Senhor, e inquieto é o nosso coracáo enquanto nao repousa em Ti» (S. Agostinho).
É, pois, do mais fundo do homem que brota o anseio para
Deus. Possa mais este número de PR, percorrendo diversos temas
.de atualidade, contribuir para que muitos leitores sejam.leva-. dos a descobrir novos aspectos da face do Senhor Deus ou do Absoluto que vai imprimindo suas marcas no relativo e temporal da historia dos homens!
— 353 —
E.B.
«PERQUNTE E RESPONDEREMOS» Ano XXV — N° 276 — Setembro-outubro de 1984
Urna palavra abalizada:
Ainda Sobre a Teologia da Libertario 1 £m sintese: O Cardeal Joseph Ratzinger é o Prefeito da S. Congregacáo para a Doutrina da Fé, teólogo eminente e dos mais identificados
com o pensamento da Igreja. Escreveu urna exposicio do que seja a Teologia da Libertacfio em sua forma extremada, partindo das respectivas premissas e realgando os conceitos característicos do sistema. O autor mostra que a Teologia da Libertacao nao trata apenas de desenvolver a ética social crista em vista da situacdo sócio-econdmica da América Latina, mas revolve todas as conceptees do Cristianismo: doutrina da fé, constituicSo da Igreja, Liturgia, catequese, opedes moráis, etc. t de crer que "a gravidade da Teologia da Libertario nio seja avallada de modo suficiente; nao entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente"; é a subversSo radical do Cristianismo, que torna urgente "o problema do que se possa e se deva fazer frente a
é
ela".
importante que o público esteja consciente de que a Teologia
da Libertagfio nao é a extensáo das premissas do Cristianismo aos problemas moráis suscitados petas condicoes socio-económicas da América Latina, mas é urna nova versáo do racionalismo de Rudolf Bultmann e do marxismo, que utiliza a linguagem dogmática e ascética do patrimonio antigo da fé e se reveste de aspectos de mistica crista.
Aos 18/03/84 a imprensa brasileira noticiou que o Pre feito da S. Congregagáo para a Doutrina da Fé em Roma,
Cardeal Joseph Ratzinger, fizera urna explanagáo do que é a Teologia da Libertacáo.
Essa exposigáo ocorreu durante urna
reuniáo de caráter reservado, mas o respectivo texto ultrapassou os limites do seu ámbito originario e se tornou posse comum da imprensa e do público.
Tal documento é de notável de um sabio teólogo encarregado, Congregado que acompanha a fé sos días. O texto nao tem caráter
importancia, pois se deriva em Roma, precisamente da e os desvíos da fé em nosoficial, mas vale como pala-
1 O presente número ]á estava Impresso quando documento da Santa Sé sobre a Teologia da Ubertacfio. Será objeto de estudos no próximo número.
— 354 _
foi
publicado»o
teología da libertacao
vra de um dos teólogos mais identificados cora o pensamento da Igreja em nossos días. Eis por que o publicamos a seguir, cientes de que nao é de fácil leitura; alude ás premissas filo sóficas da Teología da Libertacáo, tocando as raizes e o ámago
do problema; mesmo que nem todos os leitores consigam acompanhar passo a passo a exposicáo feita pelo Cardeal Ratzinger, poderáo perceber que a sua tese vem a ser urna seria alerta a
respeito dos perigos da Teología da Libertagáo, alerta que é claramente expressa na frase final da explanagáo.
EU VOS EXPLICO A TEOLOGÍA DA LIBERTACAO Cardeal Joseph Ratzinger
Para esclarecer a minha iarefa e a minha intencao, com relacáo
ao tema, parecem-me necessárias algumas observacoes preliminares:
1) A teología da libertacao é fenómeno extraordinariamente complexo. E possivel formar-se um conceito da teología da libertacáo segundo o qual ela vai das posicoes mais radicalmente marxistas até aquelas que propoem o lugar apropriado da necessária responsabilidade do cristáo para com os pobres e os oprimidos no contexto de
urna córrela teología eclesial, como fizeram os documentos do CELAM, de Medellín a Puebla.
Neste nosso texto, usaremos o conceito «teología da libertacao»
em sentido mais restríto: sentido que compreende apenas aqueles teó
logos que, de algum modo, fizeram própría a opcáo fundamental
marxísta. Mesmo aquí existem, nos particulares, muitas diferencas que é ¡mpossível aprofundar nesta reflexáo geral. Neste contexto posso apenas tentar por em evidencia algumas linhas fundamentáis que, sem
desconhecer as diversas matrizes, sao multo difundidas e exercem certa influencia mesmo onde nao existe teología da libertacáo em sentido
estrito.
2)
Com a análise do fenómeno da teología da libertacáo tor-
na-se manifestó um
perigo fundamental para a fé da lgre¡a.
Sem
dúvida, é preciso ter presente que um erro nao pode existir se nao contém um núcleo de verdade. De falo, um erro é tanto mais perigoso quanto maíor for a proporcáo do núcleo de verdade assumida. Além disto, o erro nao se poderia apropriar daquela parte de verdade, se — 355 —
4
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
essa verdade fosse suficientemente vivida e testemunhada ali onde é o seu lugar, isto é, na fé da Igreja. Por isso, ao lado da demonstracáo do erro e do perigo da teologia da libertacao, é preciso sempre acrescentar a pergunfa: que
verdade
se esconde
no erro e como
recuperá-la plenamente?
3)
A teologia da libertacao é um fenómeno universal sob tres
pontos de vista: a)
essa teologia nao pretende constituir-se como um novo tra
tado teológico ao lado dos outros ¡á existentes; nao pretende, por exemplo, elaborar novos aspectos da ética social da Igreja. Ela se> concebe, antes, como urna nova hermenéutica da fé crista, quer dizer, como nova forma de compreensao e de realizacáo do cristianismo na sua totalidade. Por ¡sto mesmo muda todas as formas da vida eclesial: a constituicao eclesiástica, a liturgia, a cateqvese, as opcoes moráis;
b) a teologia da libertacao tem certamente o seu centro de gravidade na América Latina, mas nao é, de modo algum, fenómeno exclusivamente latino-americano. Nao se pode pensá-la sem a influen cia determinante de teólogos europeus e também norte-americanos. Além do mais, existe também na India, no Sri Lanka, ñas Filipinas, em Taiwan, na África — embora nesta última esteja em primeiro plano a busca de urna «teologia africana». A uniao dos teólogos do Terceiro Mundo é fortemente caracterizada pela atencáo prestada aos temas da teologia da libertacao;
c) a teologia da libertacao supera os limites confessionais. Um dos mais conhecidos representantes da teologia da libertacao, Hugo Ássman, era sacerdote católico e ensina hoje como protestante em urna Faculdade protestante, mas continua a se opresentar com a pretenscío de estar ácima das fronteiras confessionais. A teologia da libertacao procura criar, ¡á desde as suas premissas, urna nova universalidade em virtude da qual as separacoes clássicas da Igreja devem perder a sua importancia.
I.
O Conceito de Teologia da Libértaselo e os Pressupostos de sua Genese
Essas observacoes preliminares, entretanto, já nos introduziram no
núcleo do tema. Deixam aberra, porém, a questao principal: que é propiamente a teologia da libertacao? Em urna primeira tentativa d# resposta, podemos dizer: a teologia da libertacao pretende dar nova
— 356 —
teología da libertacáo
interpretando global do Cristianismo; explica o Cristianismo como urna praxis de libertacáo e pretende constituir-se, ela mesma, um guia para
tal praxis.
Mas ossim como, segundo essa teologia, toda realidade
é política, também a libertacáo é um conceito político e o guia rumo á libertacáo deve ser um guia para a acao política.
«Nada resta fora do empenho político. Tudo exhte com urna colo ra cao política» (Gutiérrez). Urna teologia que nao seja «prática (o que significa dizer «essencialmente política») é considerada «idealista» e condenada como irreal ou como veículo de conservacáo dos opressores no poder. Para um teólogo que tenha aprendido a sua teología na tradicáo clá'sica e que tenha aceitado a sua vocacáo espiritual, é difícil imaginar que seriamente se possa esvaziar a realidade global do Cristianismo em um esquema de praxis sócio-política de libertacáo. A coisa é, entretanto, mais difícil, ¡á que os teólogo:
da libertacáo
continuam a usar grande parte da linguagem ascética e dogmática da Igreja em chave nova, de tal modo que aqueles que léem e que escutam
partindo de outra visao, podem ter a impressao de reencontrar o patrimonio antigo com o acréscimo apenas de algumas afirmacoes um pouco «stranhas, mas que, unidas a tanta religiosidade, nao poderiam
ser táo perigosas. Exatamente a radicalidade da teologia da libertacáo faz com que a sua gravidade nao seja avallada de modo ruficiente;
nao entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente. A sua colocacao, já de partida, s'tua-se fora daquilo que pode ser colhido pelos tradicionais sistema; de discussáo. Por isto tentare! abordar a orientacáo fundamental da teologia da libertacáo em duas etapas: primeiramente é necessário dizer algo acerca dos pressupostos que a tornaram po:sível; a seguir, desejo aprofundar alguns dos conceitos-base que permitem conhecer algo da estrutura da teologia da liberta
cáo. Como se chegou a esta orientacáo completamente nova do pensamento teológico, que se exprime na teologia da libertacáo? Vejo principalmente tres fatores que a tornaram possível. 1)
Após o Concilio, produziu-se urna situacao teológica nova:
a)
surgiu a opiniáo de que a tradicao teológica existente até
entáo nao era mais aceitável e, por conseguinte, se deviam procurar, a partir da Escritura
e dos sinais dos tempos, orientacáes teológicas
e espirituaís totalmente novas;
b) a idéia de abertura ao mundo e de compromisso no mundo transformou-se freqüentemente em urna fé ingenua ñas ciencias; urna fé que ocolheu as ciencias humanas como um novo evangelho, sem querer reconhecer os seus limites e problemas próprios.
— 357 —
A psicología,
6
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
a sociología e a ¡nterpretacao marxista da historia foram consideradas como científicamente seguras e, a seguir, como instancias nao mais con testóveis do pensamento cristáo;
c) a crítica da tradicao por parte da exegese evangélica mo derna, especialmente a de Bultmann e da sua escola, tornou-se urna instancia teológica inamovível .que barrou a estrada as formas até entao
válidas
da
teología,
encorajando
assim
também
novas
construyes.
2)
A situacao teológica assim transformada coincidiu com vma
sítuacáo da historia espiritual também ela modificada. Ao final da fase de reconstruido após a segunda guerra mundial, fase que coin cidiu pouco mais ou menos com o término do Concilio, produziu-se no mundo ocidental um sensível vazio de significado, ao qual a filosofía existencialísta ainda em voga nao estava em condicoes de dar alguma resposta. Nessa situacao, as diferentes formas do neo-marxismo transformaram-se em um impulso moral e, ao mesmo tempo, em urna promessa de significado que pareció quase irresistível á ¡uventude uni
versitaria. O marxismo, com as acentuacoes religiosas de Bloch e as filosofías dotadas de rigor científico de Adorno, Horkheimer, Habernos
e Marcuse, ofereceram modelos de acáo com os quais alguns pensado res acreditavam poder responder ao desafio da miseria no mundo e, ao mesmo tempo, poder atualizar o sentido correto da mensagem bíblica.
3)
O desafio moral da pobreza e da opressao nao se podía
mais ignorar, no momento em que a Europa e a América do Norte
atingiam urna opulencia até entao desconhecida. Este desafio exigía
evidentemente novas respostas, que nao se podiam encontrar na tra-
dicáo existente até aquele momento. A situacao teológica e filosófica mudada convidava expressamente a buscar a resposta em um Cristia nismo que se deixasse guiar pelos modelos da esperanca, aparente mente fundados científicamente, das filosofías marxistas.
II.
A Estrutura Gnoseológica Fundamental da Teología da L¡berfa;ck>
Esta resposta se apresenta totalmente diversa ñas formas par
ticulares de teología da libertacao, teología da revolucao, teología
política, etc. Nao pode, pois, ser apresentada globalmente. Existem, no entonto, alguns conceítos fundamentáis que se repetem continua mente ñas diferentes variacoes e exprimen» comuns ¡ntencoes de fundo. Antes de passar aos conceitos fundamentáis do conteúdo, é necessário
fazer urna observacáo acerca dos elementos «struturais da teología" da — 358 —
teología da ljbertacao
libertagao. Para tal, podemos retomar o que ¡á afirmamos acerca da
situacao teológica mudada após o Concilio. Como ¡á disse, leu-se a exegese de Bultmann e da sua escola como um enunciado da «ciencia»
sobre Jesús, ciencia que devia obviamente ser considerada como válida. O «Jesús histórico» de Bultmann, entretanto, apresenta-se separado por um abismo (o próprio Bultmann fala de Graben, fosso)
do Cristo da fé. Segundo Bultmann, Jesús pertence aos pressupostos do Novo Testamento, permanecendo. porém, encerrado no mundo do ¡udaísmo. O resultado final dessa exegese consistiu em abalar a credibilídade histórica dos Evangelhos: o Cristo da tradicao eclesial e o Jesús histórico apresenrado pela ciencia pertencem evidentemente a dois mundos diferentes. A figura de Jesús foi erradicada da sua colo-
cacao na tradicao por acáo da ciencia, considerada como instancia
suprema; deste modo, por um lado, a tradicao pairava como algo de irreal no vazio, e, por outro, devia-se procurar para a figura de Jesús uma nova interpretacáo e um novo significado.
Bultmann, portento,
adquiriu. importancia nao tanto pelas suas afirmacoes positivas quanto pelo resultado negativo da sua crítica: o núcleo da fé, a cristologia, permaneceu aberto a novas ¡nterpretacoes porque os seus enunciados origináis tinham desaparecido, na medida em que eram considerados históricamente insustentáveis. Ao mesmo tempo desautorizava-se o
magisterio da Igreja, na medida em que teoría científicamente insustentável e, instancia cognoscitiva sobre Jesús. Os considerados somente como definicoes
científicamente superada.
o consideravam preso a uma portanto, sem valor como
seus enunciados podiam ser frustradas
de uma
posícao
Além disso, Bultmann foi importante para o desenvolvimento pos terior de uma segunda palavra-chave. Ele trouxe á moda o antigo conceito de hermenéutica, conferindo-lhe uma dinámica nova. Na palavra «hermenéutica» encontró expressao a idéia de que uma compreensáo real dos textos históricos nao acontece através de uma mera
interpretacáo histórica; mas toda interpretacao histórica inclui certas
decisoes preliminares. A hermenéutica tem a funcáo de «atualizar», em conexao com a determinacao do dado histórico. Nela, segundo a terminología clássica, se trata de uma «fusáo dos horizontes» entre «entáo» («na.quele tempo») e o «hoje». Por conseguínte, ela suscita a pergunta: o que significa o entao («naquele tempo»), nos dias de
ho¡e? O próprio Bultmann respondeu a esta pergunta servindo-se da
filosofía de Heidegger e ¡nterpretou, deste modo, a Biblia em sentido existen ció lista. Tal resposta, ho¡e, nao aprésenla mais algum ¡nteresse; neste sentido Bultmann foi superado pela exegese atual. Mas perma neceu a separacao entre a figura de Jesús da tradicáo clássica e a
idéia de que se pode e se deve transferir essa figura ao presente, através de uma nova hermenéutica.
— 359 —
8
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
A este ponto, surge o segundo elemento, ¡ó mencionado, da'nossa süuaeao: o novo clima filosófico dos anos sessenta. A análise marxista
da historia e da sociedade foi considerada, nesse ínterim, como a única dotada de caráter «científico». Isto significa que o mundo é interpre tado á luz do esquema da luta de ciasses e que a única escolha possivel é entre capitalismo e marxismo. Significa, além disso, que toda a realidade é politica e que deve ser justificada politicamente. O conceito bíblico do «pobre» oferece o ponto de partida para a confusao
entre a ¡magem bíblica da historia e a dialética marxista; esse conceito
é interpretado com a ¡déia de proletariado em sentido marxista e justifica também o marxismo como hermenéutica legitima para a com
preensao da Biblia.
Ora, segundo essa compreensao, existem, e só
podem existir, duas opcoes; por isso, contradizer essa interpretac'ao da Biblia nao é senfio expressáo do esforco da classe dominante para
conservar o próprio poder. Gutiérrez afirma: «A luta de ciasses é um
dado de faro e a neutralidade acerca desse ponto é absolutamente ¡mpossível». A partir daí, torna-se impossível até a intervengo do magisterio eclesiástico: no caso em que este se opusesse a tal ¡nterpretacao do Cristianismo demonstraría apenas estar ao lado dos ricos e dos dominadores e contra os pobres e os sofredores, isto é, contra o próprio Jesús, e, na dialética da historia, aliar-se-ia á parte negativa.
Essa decisáo, aparentemente «científica» e «hermeneuticamente» indiscutível, determina por si o rumo da ulterior interpretacao do Cristia
nismo, seja .quanto as instancias interpretativas, seja quanto aos conteúdos interpretados. No que diz respeito as instancias interpreta tivas, os conceitos decisivos sao: povo, comunidade, experiencia, historia. Se até entao a Igreja, isto é, a Igreja Católica na sua totalidnde, que, transcendendo tempo e espaco, abrange os leigos (sensus fideí) e a hierarquia (magisterio), fora a instancia hermenéutica fundamental, hoje tornou-se a «comunidade» tal instancia. A vivencia
e as experiencias da comunidade determinam agora a compreensao e a
interpretacao da Escritura. De novo pode-se dizer, aparentemente de maneira multo científica, que a figura de
Jesús,
apresentada nos
Evangelhos, constituí urna síntese de acontecimentos e interpretacoes da experiencia de comunidades particulares, onde no entonto a inter pretacao é muito mais importante do que o acontecimento, que, em si, nao é mais determinável. Essa síntese original de acontecimento e ¡nterpretagao pode ser dissolvida e reconstruida sempre de novo: a comunidade «interpreta» com a sua «experiencia» os acontecimentos e encontró assim a sua «praxis».
Esta ¡déia, podemos encontrá-la em
modo um tanto diverso no conceito de povo, com o cfual se transformou a acentuacao conciliar da idéia de «povo de Deus» em mito marxista. As experiencias do «povo» explicam a Escritura. «Povo» torna-se assim um conceito oposto ao de «hierarquia» e em antítese a todas
— 360 —
teología da libertacao
as instituicoes indicadas como forjas da opressáo.
Afinal, é «povo»
quem participa da «lutq de classes»; a «Igreja popular» acontece em oposicao á Igreja hierárquica. Por fim, o conceito de «historia» torna-se instancia hermenéutica decisiva. A opiniao, considerada científicamente
segura e irrefutável, de que a Biblia raciocine em termos exclusiva mente de historia da salvacño, e portanto de maneira anti-metafísica,
permite a fusao do horizonte bíblico com a idéia marxista da historia que procede dialeticamente como auténtica portadora de salvacáo; a historia é a auténtica revelacao e
portanto a verdadeira instancia
hermenéutica da interpretando bíblica.
mas vezes, pela pneumatologia.
Tal dialética é apoiada, algu-
Em todo caso, também esta última,
no magisterio que insiste em verdades permanentes, vé urna instancia
inimiga do progresso, dado que pensa «metafisicamente» e assim con-
tradiz a «historia».
Pode-se dizer que o conceito de historia absorve
o conceito de Deus e de revelacao.
A «historicídade» da Biblia deve
justificar o seu papel absolutamente predominante e, portanto, deve legitimar, ao mesmo tempo, a passagem para a filosofía materialista-marxista, na qual a historia assumiu a funcao de Deus.
III.
Conceitos Fundamentáis
da Teología da Libertacao Com isto, chegamos oos conceitos fundamentáis do conteúdo da nova interpretacao do Cristianismo.
Urna vez que
os contextos nos
quais aparecer» os diversos conceitos sao diferentes, postaría de citar alguns deles, sem a pretensao de esquematizá-los. Comecemos pela nova interpretacao da fé, da esperanca e da caridade. Com relacao á fé, por exemplo, J. Sobrino afirma: a experiencia que Jesús tem de Deus é radicalmente histórica. «A sua fé converte-se em fidelidades. Por isso Sobrino substituí fundamentalmente a fé pela «fidelidade á
historia» (fidelidad a la historia, 143-144). conviccao de que
Jesús é fiel á profunda
o misterio da vida do homem...
é realmente o
último... (144). Aquí produz-se aquela fusao entre Deus e historia que dá a Sobrino a possibilidade de conservar para Jesús a fórmula de Calcedonia, ainda que com um sentido completamente mudado: pode-se ver como os criterios clássicos da ortodoxia nao sao aplicáveís á análise dessa teología.
Ignacio Ellacuria, na capa do livro sobre
este assunto, afirma: Sobrino «diz de novo... que Jesús é Deus, acrescentando, porém, imediatamente, que o Deus verdadeiro é somente
— 361 —
10
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
aquele que se revela históricamente em Jesús e nos pobres, que continuam a sua presenta.
Somente quem mantém unidas essas duas afir-
macóes, é ortodoxo.. .».
A esperanza é interpretada como «confianca no futuro» e como
trabalho pelo futuro; com isso ela é subordinada novamente ao pre dominio da historia das classes. «Amor» consiste na «opcao pelos pobres», isto é, coincide com a opcao pela luta de classes.
Os teólogos da libertacao sublinham
com forca, diante do «falso universalismo», a parcialidade e o carater partidario da opcáo crista; tomar partido é, segundo eles, requisito
fundamental de urna correta hermenéutica dos testemunhos bíblicos.
Na minha opiniao, aqui se pode reconhecer muito claramente a mistura entre urna verdade fundamental do Cristianismo e urna opcao fundamental nao crista, que torna o conjunto tao sedutor: o sermao
da montanha é, na verdade, a escolha por parte de Deus a favor dos
pobres.
Mas a ¡nterpretacao dos pobres
no sentido
da
dialélica
marxista da historia e a ¡nterpretacao da escolha partidaria no sentido da luta de classes é um salto eis alio genos (grego: para outro género), no qual as coisas contrarias se apresentam como idénticas.
O conceito fundamental da pregacáo de Jesús é o de «reino de Deus». Esse conceito encontra-se também no centro das teologías da
libertacao, lido porém no contexto da hermenéutica marxista. Segundo J. Sobrino, o reino nao deve ser compreendido espiritualmenle, nem umversalmente, no sentido de urna reserva escatologioamente abstraía. Deve ser compreendido em forma partidaria e voltado para a praxis.
Somente a partir da praxis de Jesús, e nao teóricamente, é possível
definir o que seja o reino: trabalhar na realidade histórica que nos circunda para transformó-la no reino (loó).
Aqui ocorre mencionar
também urna idéia fundamental de certa teología pos-conciliar que
¡mpulsionou nessa direcao. Muitos apregoaram que, segundo o Concilio, se devería m superar todas as formas de dualismo: o dualismo de corpo e alma, de natural e sobrenatural, de imanéncia e trans cendencia, de presente e futuro. Após o desmantelamento desses dualismos, resta apenas a possibilidade de trabalhar por um reino que se realize nesta historia e em sua realidade político-económica. Mas justamente dessa forma deixou-se de trabalhar pelo homem de ho¡e e se comecou a destruir o presente, a favor de um futuro hipotético: asiim produziu-se ¡mediatamente o verdadeiro dualismo.
— 362 —
teología da ubertacao
n
Neste contexto gostaria de mencionar também a interpretacao, impressionante e definitivamente espantosa, que Sobrino dá da morte
e da ressurreicao. Antes do mois, ele estabelece, contra as concepcoes universalistas, que a ressurreicao é, em primeiro lugar, urna esperanca para aqueles que sao crucificados; estes constituem a maioria dos homens: todos aqueles milhoes aos quais a injustica estrutural se impoe
como urna lenta crucifíxáo (176 e seguirles). O crente, no entonto, participa também do senhorio de Jesús sobre a historia, através da edificacao do reino, isto é, na luto pela justica e pela libertacao integral, na transformacSo das estruturas injustas em estruturas mais
humanas.
Esse senhorio sobre a historia é exercitado ao se repetir o
gesto de Deus que ressuscita Jesús, isto é, dando novamente vida aos
crucificados da historia (181).
O homem assumiu o gesto de Deus
e aquí a transformacáo total da mensagem bíblica se manifestó de
maneira quase trágica, se se pensa em como essa tentativa de imitacao de Deus se desenvolveu e se desenvolve ainda. Gostaria de citar apenas alguns outros conceitos: o éxodo se transforma em urna imagem central da historia da salvacáo; o misterio
pasca! é entendido como um símbolo revolucionario e, portanto, a Eucaristía é interpretada como urna festa de libertacao no sentido de urna esperanca político-messiánica e da sua praxis. A palavra redenjáo é substituida geralmente por l¡bertac,áo, a qual, por sua vez, é com-
preendida, no contexto da historia e da luta de classes, como processo de libertacao que avanoa. Por fim, é fundamental também a acentua-
cao da praxis: a verdade nao deve ser compreendida em sentido metafísico; tratar-se-ia de «idealismo». A verdade realiza-se na historia e na praxis. A acáo é a verdade. Por conseguinte, também
as ¡déias que se usam para a acáo, em última instancia sao ¡ntercambiáveis. A única coisa decisiva é a praxis. A praxis torna-se, assim, a única « verdadeira ortodoxia. Desta forma justificarse um enorme afastamento dos textos bíblicos: a crítica histórica liberta da interpre
tacao tradicional, que aparece como nao-científica.
Com relacao á tradicáo, atribui-se importancia ao máximo rigor científico na linha de Bultmann. Mas os conteúdos da Biblia, determinados históricamente, nao podem, por sua vez, ser vinculantes de modo absoluto.
O instru
mento para a interpretacao nao é, em última análise, a pesquisa
histórica, mas, sim,
a hermenéutica da
historia, experimentada na
comunídade, isto é, nos grupos políticos, sobretudo dado que a maior
parte dos próprios conteúdos bíblicos deve ser considerada como produto de fal hermenéutica comunitaria. — 363 —
V¿
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Quando se tenta fazer um julgamento geral, deve-se dizer que, quando alguém procura compreender as opcoes fundamentáis da teo logía da Nbertagáo. nao pode negar que o conjunto contém urna lógica quase
incontestável.
hermenéutica fundada
Com
as
premissas
na experiencia,
da
de
um
crítica
bíblica
lado,
e
da
e da análise
marxista da historia, de outro, conseguiu-se criar urna visao de con
junto do
Cristianismo
que
parece
responder
plenamente
tanto as
exigencias da ciencia, quanto aos desafios moráis dos nossos tempos.
E, portanto, ¡mpóe-se aos homens de modo ¡mediato o tarefa de fazer do Cristianismo um instrumento da transformando concreta do mundo, o que parecería uni-lo a todas as forcas progressistas da nossa época.
Pode-se, pois, compreender como esta nova ¡nterpretacao do Cristia nismo atraia sempre mais teólogos, sacerdotes e Religiosos, especial
mente no contexto dos problemas do terceiro mundo.
Subtrair-se a
ela deve necessariamente aparecer aos olhos deles como urna evasáo da realidade, como urna renuncia á razao e á moral. parte, quando se
pensa o quanto seja
radical a
Porém, de outra interpretacño do
Cristianismo que déla deriva, torna-se aínda mais urgente o problema do que se possa e se deva fazer frente a ela.
A guisa de comentario, parece oportuno salientar os seguinguintes pontos:
1)
A Teología da Libertagáo nao é um novo tratado teo
lógico ao lado de outros já existentes, mas é urna nova inter-
pretagáo do Cristianismo, que revira radicalmente as verdades da fé, a constituigáo da Igreja, a Liturgia, a catequética e as opgóes moráis.
2) Todos os valores e toda a realidade sao considerados do ponto de vista político. Urna teología que nao seja essencialmente política, é encarada como fator de conservacáo dos opressores no poder.
3)
A dificuldade de se perceber esse oaráter subversivo
da Teología da Libertacáo está, em grande parte, no fato,, de que os seus arautos continuam a usar a linguagem ascética e — 364 —
teología da libertacao
13
dogmática da Igreja, embora em chave nova. Isto dá aos obser vadores a imprcssáo de que estáo diante do patrimonio da fé acrescido de algumas afirmaeóes religiosas que nao podem ser perigosas.
4) A gravidade da Teología da Libertagáo nao é sufi cientemente avaliada; nao entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente.
5) O cristáo nao pode ser, de forma alguma, insensivel á miseria dos povos do Torceiro Mundo. Todavía, para acudir cristámente a tal situacáo, nao lhe é necessário adotar um sis tema de pensamento que é anticristáo como a Teología da Libertacao; existe a doutrina social da Igreja, desenvolvida pelos Papas desde Leáo XIII até Joáo Paulo II de maneira cada vez mais incisiva e penetrante. Se fosse posta em prática,
eliminaría graves males de que sofrem os homens, sem disse minar o odio e a luta de classes.
(Continuacáo da p. 402)
"E!s os testemunhos de dois sacerdotes que trabalharam de perto com
Joao Paulo I.
Monsenhor Giulio Nicolini, membro da Congregacáo Vaticana para os Bispos e biógrafo de Joáo Paulo I declarou ao "Corriere della Sera" que dois dias após sua eleicao a 26 de agosto de 1978, o novo papa renomeou todos os altos funcionarios pelo prazo de cinco anos. Incluiram-se af o Cardeal Jean Villot como Secretario de Estado e o Arcebispo Paúl Marcinkus, chefe do Banco Vaticano. Estes dois prelados, segundo Yallop, seriam suspeitos do crime de "envenenamento" do Pontífice, porque estariam sob
o cútelo da demissáo. A noticia da confirmacáo nos postos, observa Nicolini, foi publicada no "Osservatore" poucos dias antes da morte do Papa. Nada plauslvel portento houvesse qualquer intencáo de demissSes e conseqüente violencia (...). Por sua vez o Padre Mario Senigaglia, de Veneza, secretario particular durante sete anos, do cardeal Albino Luciianl, Patriarca de Veneza, depoís Joáo Paulo I, classlficou o livro como "romance que falsifica a Historia". Em artigo no semanario diocesano "Gente Véneta" (25/6/84) afirma que o Papa morreu de causas naturais acrescentando: "Nao é verdade que tivesse saúde de ferro; ele vivía cuidadosamente com seus mil problemas". Morreu, dlsse,
"sob o peso do trabalho e da solidao".
"Fol um trabalho pesado demais para seus frágeis ombros", insistiu. E na edic&o do dia 22 do mesmo semanario, Pe. Senigaglia escreve que o
patriarca de Veneza fora hospitalizado em oito dias com um espasmo da
retina logo que chegou de sua visita ao Brasil. Os médicos, na ocasiáo, diagnostlcaram que o espasmo devia estar relacionado com problemas
circulatorios (...)".
— Alice Gérin Isnard Tavora, Rio.
— 365 —
Um problema grave:
As Disposkóes para Comunsar Nos últimos anos, o número de Comunhóes Euoarísticas tem aumentado consideravelmente, ao passo que o de Confissóes sacramentáis decresce. Pessoas que, durante anos, deixaram de praticar a sua fé católica, resolvem comungar, sem mais, em Missa de aniversario, de casamento, de sufragios pelos mortos, etc. Fazem-no, muitas vezes, de boa fé, ignorando que, para urna digna Comunhao Eucarística, se requer o estado
de grafia — estado de grac.a que, após o pecado grave, só pode ser obtido mediante o sacramento da Reconciliacjio; este, por sua vez, implica a acusagáo pessoal ou individual dos pecados graves ao ministro de Cristo.
Em vista dos mal-entendidos ocorrentes a tal propósito, o S. Padre Joáo Paulo II aos 18/04/84 pronunciou oportuna alocugáo, da qual extraímos o seguinte trecho: «A
Eucaristía
que,
como
dizia
na
minha
primeira
Encíclica
(Redemptor hominis, 20), está 'no centro da vida do Povo de Deus',
requer que seja respeitada 'a plena dimensao do misterio divino, o
pleno sentido deste sinal sacramental, em que Cristo, realmente pre
sente, é recebido, a alma é repleta de graca e é dado o penhor da gloria futura'.
Por isso o Concilio de Trento — exceto em casos particularíssimos, em que, de resto, a contr¡cao deve incluir o vofum do sacramento
da Penitencia — requer que aquele que tem na consciencia um pecado grave nflo se aproxime da comunhao eucarística antes de ter recebido de falo o sacramento da Reconciliacao (Decreto De SS. Eucharístia, cap. 7, Denz.-Schóen. nn. 1647; 1661).
Retomando as palavras de Sao Paulo: 'Examine-se cada qual a si mesmo e, entáo, coma desse pao e beba desse cálice' (ICor 11,28), afirmava eu aínda na mesma Encíclica: 'Esta exortacSo do Apostólo indica, pelo menos ¡ndiretamente, o estreíto ligante existente entre a Eucaristía e a Penitencia. Com efeito, se a primeira palavra do enslno de Cristo, a primeira frase do Evangelho-Boa Nova, foi 'fazei peniten cia e acreditai na Boa Nova' (metanoéite) (Me 1,15), o Sacramento da Paixáo, da Cruz e RessurreicSo parece reforear e consolidar, de modo absolutamente especial, um tal convite as nossas almas. A' Eucaristía e a Penitencia tornam-se assim, num certo sentido, unía — 366 —
AS DISPOSICOES PARA COMUNGAR
15
dimensdo dúplice e, a um lempo, intimamente conexa, da auténtica vida segundo o espirito do Evangelho, da vida verdaderamente crista. Cristo, que convida para o banquete eucaristía), é sempre o mesmo Cristo que exorta á penitencia, que repete o 'convertei-vos'. Sem este constante e sempre renovado esforco pela convertño, a participacao
na Eucaristía ficaria privada da sua plena eficacia redentora, falharia ou, de qualquer modo, ficaria enfraquecida nela aquela particular disponibilidade para oferecer a Deus o sacrificio espiritual (cf. lPd 2,5), no qual se exprime de modo essencial e universal a nossa participacao no sacerdocio de Cristo (Redemptor hominis, n? 20). Nao raro se ouve notar com agrado o fato de que hoje os crentes se .aproximan) com maior freqüéncia da Eucaristía, é para se desejar que este fenómeno corresponda a uma auténtica maturacao de fé e de caridade. Permanece contudo a advertencia de Sao Paulo: 'Aquele que come e bebe sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenacao" (ICor 11,29).
'Distinguir o corpo
do Senhor1 significa, para a doutrina da Igreja, predispor-se a receber
a Eucaristía com uma pureza de alma, que, em caso de pecado grave, exige a previa recepcao do sacramento da Penitencia. Só assim a nossa vida crista pode encontrar no sacrificio da cruz a sua plenitude e chegar a sentir aquela 'completa alegría', que Jesús prometeu a quantos estáo em comunháo com Ele (cf. Jo 15,11, etc.)».
Como se vé, ninguém deve comungar se nao está devidamente preparado — o que requer: 1) estado de graca (ou ausencia de pecado grave); 2) jejum de uma hora antes da Comunháo (sendo, porém, permitidos remedios e agua).
CORRESPONDENCIA MIÚDA Ajuda a obras necessitadas: "Publique outros locáis de trabalho que precisan) de ajuda para levarmos o apoio que no momento podemos olerecer" (M. M. F.). Em resposta, podemos lembrar aquí uma obra benemérita que necessita de auxilio e apoio; é o Lar da M9e Soltelra, que possibllita a multas jovens ter o seu fllho em vez de se submeter ao aborto. Enderezo: Rúa do Bispo 159, Rio Comprido, Rio de Janeiro (RJ); fone: 248-4414.
Recensáo de Mvro em PR: "Sobre o llvro do Pe. Jofio Evangelista Martins Térra SJ 'O Negro e a Igreja' (cf. PR 274, pp. 240ss), gostaria de saber se dito llvro cita ou, ao menos, se refere a 1Tm 1,10, que condena os plagtaril, ou seja, os mercadores de escravos. Seja como for, esta passagem mostra, a meu ver, com multo mals forca do que a carta a Filemon, sobre o escravo fugitivo Onéslmo, quanto a Igreja primitiva já se opunha á escravatura, pols, a meu ver, se trata de uma ameaca com o Inferno" (Pe. Edmundo Draher, Curltlba).
— 367 —
Um livro candente:
"0 Direito de Amar" por Benjamim Bossa
Em síntese:
O livro de Benjamim Bossa reivindica para o clero o
direito de amar, identificando entre si amor e relacoes conjugáis. Ora tal ¡dentificac§o é inexata. A Igreja nao reprime o direito de amar ¡nerente a toda criatura humana, mas, ao contrario, fomenta-o. Ela sabe, porém, que há diversos tipos de amor. O conceito de amor é multo mate ampio do que o de vida conjugal. Pode haver amor auténtico e profundo onde nao haja
retacees conjugáis. Quando o Novo Testamento prop6e Deus como amor e incita os cristáos á prática do amor, utiliza a palavra grega ágape, que significa o amor puro de benevolencia, desinteressado de qualquer compensacao; tal foi o amor de Cristo celibatário aos homens; tal seja também o amor dos ministros de Cristo aos seus semelhantes. — De resto, a prática do celibato é atestada pela 1Cor 7,25-35, carta esta datada de 56; a vida una ou indivisa já era entio abracada espontáneamente pela primeira geracfio crista como resposta á mensagem de que os valores definitivos e absolutos deram entrada neste mundo com a vinda do Cristo. O clero foi espontaneamente adotando tal tipo de vida, que somente no secuto IV comecou a se tornar aos poucos obrigatório na Igreja para o clero latino.
O livro de Benjamim Bossa é mais caloroso e emocional do que argumentativo; desde que se queira urgir o seu conteúdo, verifica-se que é fraco em arrazoados, mas rico em apelos.
Benjamim Bossa, sacerdote da Congregagáo de Sao Car los que deixou o ministerio, langou um livro intitulado «O Di reito de Amar» K O verbo «amar» é aqui entendido no sen tido restrito de ter vida conjugal; trata-se, pois, de um cla
mor contra o celibato sacerdotal, escrito em estilo assaz pas-
sional. Visto que o livro impressionou leitores, propondo a temática de maneira muito candente, vamos tecer-lhe alguns comentarios.
1 Edlcáo próprla.
138 x 210 mm, 101 pp.
— 368 —
«O DIREITO DE AMAR»
T.
17
Em perspectiva crista, que significa celibato?
Quem lé o livro de Benjamim Bossa, encontra páginas contrarias -á instituicáo do celibato sacerdotal como hoje é vivido na Igreja, mas nada encontra a respeito do significado
do celibato como tal numa perspectiva crista; o texto de ICor 7,25-35, que seria o mais elucidativo do assunto, é silenciado. Procuremos, pois, antes do mais, averiguar por que o celi bato como tal é estimado pelos cristaos. Depois examinaremos as relagóes que naja entre celibato e ministerio sacerdotal.
1.1.
O texto de ICor 7,25-35
Para entender devidamente o celibato cristáo, faz-se mister recorrer ao texto de ICor 7,25-35: «A propósito das pessoas virgens, nao tenho preceito do Senhor. Dou, porém, um conselho como homem que, pela misericordia do Senhor, é digno de confianca. Julgo que essa condicáo é boa, por causa das angustias presentes; sim, é bom para o homem ficar assim. Estás ligado a urna mulher? Nao procures romper o vínculo. Nao estás ligado a urna mulher? Nao procures mulher. Todavía, se te casares, nao pecarás; e, se a virgem se casar, nao pecará. Mas essas pessoas temo tribulacoes na carne; eu vo-las dese¡aria poupar.
Eis o que vos digo, ¡rmáos: o tempo se fez curto. Resta, pois, que aqueles que tém «sposa sejam como se nao a tivessem; aqueles que choram, como se nao chorassem; aqueles .que se regozijam, como se nao se regozijassem; qqueles que compram, como se nao possuissem; aqueles que usam deste mundo, como se nao usassem
plenamente.
Pois passa a figura deste mundo.
Eu quísera que estivésseís isentos de preocupac.6es.
Quem nao
tem esposa, cuida das coisas do Senhor e do modo de agradar ao
Senhor. Quem tem esposa, cuida das coisas do mundo e do modo de agradar á esposa, e fica dividido.
Da mesma forma, a mulher nao
casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor, a fim de serem santas
de corpo e de espirito.
Mas a mulher casada cuida das coisas do
mundo; procura como agradar ao marido. Digo-vos isto em vosso próprio interesse, nao para vos armar cilada, mas para que fagáis o que é mais nobre e possais permanecer junto ao Senhor sem distracáo».
— 369 —
18
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Nesta passagem, como se vé, o Apostólo recomenda a vida una «por causa das angustias presentes» (v. 26). O vocábulo grego correspondente a «angustias» é anankai, que tem geralmente sentido escatológico ou se refere habitualmente as tribulagóes que os últimos tempos acarretaráo. Alias, a cons-
ciéncia de que estamos no fim domina toda esta passagem. Nao se trata do fim cronológico ou da perspectiva da consumagáo da historia, mas, sim, do fim teológico, como explica o v. 29: «o tempo se fez curto», isto é, encolheu-se, como se encolhem as velas de um navio. Qualquer que seja o intervalo cro
nológico entre o momento presente e a segunda vinda de Cristo, ele perde a sua importancia, visto que, no Cristo ressuscitado, os bens definitivos já estáo presentes; a eternidade entrou dentro dos moldes do tempo de sorte que estes estouram; o tempo cronológico ou as vinte e quatro horas d,° dia já nao sao suficientes para que o cristáo possa atender ao Eterno presente; nao há energías a dispersar; o cristáo se senté espontáneamente chamado a concentrar toda a sua atencáo e toda a sua atividade na resposta ao Eterno presente; em conseqüéncia, ele vive a vida normal de todo homem, cho rando, rindo, comprando, possuindo, casando-se... (w. 29-31); mas guarda sempre urna atítude virginal diante de tudo o que o possa solicitar neste mundo; ele nao se deixa envolver com pletamente por nenhum dos bens ou dos males que se Ihe deparam, porque ele tem sempre um qué da sua mente voltado para a eternidade; ele vé tudo em funcáo desta; por isto relativiza, de certo modo, os bens e males deste mundo. No v. 31, ao dizer «passa a figura deste mundo», o Apos tólo insinúa urna imagem: este mundo com sua historia (de embates, de risos e prantos, de compras e vendas...) é como urna peca de teatro, da qual o cristáo participa rindo e cho rando de acordó com o desenrolar do enredo, mas ele guarda sempre a consciéncia de que cairio as cortinas sobre o palco ftalvez quando menos o esperar), de modo que ele nao se pode deixar assumir totalmente pelo enredo da peca; embora interessado na vida presente, o cristáo conserva a certeza de que, depois da peca terminada, a vida continuará, de sorte que ele deve ter sua atencáo nao só dentro, mas também fora do palco, pronta para prosseguir; algo de virginal no cristáo permanece
em contato ininterrupto com o Eterno enquanto ele se vnlta para os bens temporais.
Foram estas sabias consideracóes do Apostólo que deram origem á prática nao somente da virgindade mental ou espi ritual dos cristáos, mas também á da virgindade física ou cor-
— 370 —
^
«O DIREITO DE AMAR»
19
pórea. Já em 56, quando Sao Paulo escrevia aos corintios, havia naquela comunidade cristáos que levavam a vida una e indivisa para se dedicar totalmente ao Senhor e aos interesses do seu Reino. Tal atitude brota espontáneamente da consciéncia que o cristáo tem, de que está diante da eternidade pre sente no tempo; é a genuína resposta da prímeira hora e de todos os tempos á mensagem do Evangelho. Por isto, desde os inicios da historia da Igreja é praticada a vida celibatária; antes de ser lei no caso dos sacerdotes ministeriais, ela já era vivida espontáneamente por varios membros da Igreja. Passemos agora a
1.2.
O texto de Mt 19,10-12
O próprio Jesús fez o elogio do celibato abrasado por amor
do Reino dos céus. Com efeito; em Mt 19 Jesús rejeita o divor
cio o que leva os discípulos a exclamar: «Se tal é a condigáo do homem com respeito á mulher, é melhor nao se casar» (Mt 19,10). Jesús entáo responde: «Nem todos compreendem esta palavra, mas somente aqueles a quem foi dado. Pois há eunucos que nasceram tais', há eunucos feitos pelos homens, e há eunucos que a si mesmos se fizeram tais por amor do Reino dos céus» (Mt 19,12).
Tais palavras, de colorido acentuadamente semítico, re-
presentam algo de revolucionario no mundo judaico; este só entendía a plena realizacáo do homem e da mulher no matri monio; o Messias só podia vir se houvesse propagacáo da linhagem de Davi e de Abraáo. Para o judeu, era dever de religiáo casar-se e manter urna familia; o celibatário era tido como menos homem.
Note-se ainda: o eunuco era um homem castrado e, por
isto, desprezado.
A Lei de Moisés lhe recusava o direito de
levar ofertas ao Templo (cf. Lv 21,1-20) e o excluia da assem-
bléia de Israel (cf. Dt 23,2). Verdade é que o livro da Sabedoria proclama a felicidade do eunuco cuja máo nao cometeu o mal (cf. Sb 3,14).
Ora Jesús ousou apresentar a condigáo do eunuco como
um estado voluntario: os judeus nao imaginavam que alguém * se pudesse fazer eunuco por espontanea vontade. É evidente — 371 —
20
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
que o Senhor nao entende, no caso, a castragáo física, mas indica a abstencáo de matrimonio como um estado digno de admiragáo. Jesús assim fala nao por desprezo da sexualidade, pois Ele mesmo cita o Génesis, livro que apresenta o homem e a mulher como criaturas complementares entre si (cf. Mt 19,4s; Gn 1,27; 2,24). E qual seria o motivo que valoriza o celibato segundo Jesús? — É expresso ñas palavras «por causa do Reino dos céus». Estes termos nao devem ser entendidos em sentido meramente individualista, como se significassem «... com a
finalidade de entrar no Reino dos céus». O seu significado, certamente mais ampio, é esclarecido pela própria atividade de Jesús, que abragou o celibato precisamente para poder livremente dedicar-se á sua missáo de arauto do Reino; por conseguinte, «por causa do Reino...» nao quer dizer apenas: «para ter acesso ao Reino», mas «para edificá-lo e colaborar na expansáo do mesmo». Donde se vé que o celibato é atitude
particularmente apropriada aqueles que se querem entregar á instauragáo do Reino dos céus.
Mais ainda: a expressáo «por causa do Reino...» lembra outra palavra de Jesús; «Na ressurreigáo nem os homens teráo mulheres, nem as mulheres teráo maridos, mas seráo como os anjos de Deus no céu» (Mt 22,30; cf. Me 12,25; Le 20,35). A luz destes dizeres, o celibato inaugura um estado de vida que é escatologico ou que transcende as contingencias da vida pre sente. Ora o mundo escatologico ou definitivo comegou a se configurar na historia presente a partir do misterio da Encarnagáo; donde se segué que o celibato nao é somente prefiguracáo de um reino que deve vir; realizando o «celeste» em sua vida pascal, o cristáo celibatário tende a estabelecer atualmente o Reino ou está essencialmente voltado para o desabrochámente da Igreja.
Observemos outrossim: «Reino dos céus» é expressáo de Mateus equivalente a «Reino de Deus». Isto implica que é o amor a Deus que, em última análise, inspira a opeáo daqüele que «se faz a si mesmo eunuco». Nao é o servigo do próximo apenas que justifica tal escolha. O amor a Deus é a raiz dessa atitude; ora tal amor é mais do que um liame pessoal de intimidade; é zelo pelo Reino e pela Igreja. — 372 —
«O DIREITO DE AMAR»
2. 2.1.
21
Celibato e sacerdocio: histórico
Nos pritneiros séculos
Os dois textos atrás analisados (ICor 7,25-35 e Mt 19,10-12) revelam o sentido do celibato em si e em vista do ministerio sacerdotal.
Com efeito. Sao Paulo apresenta o celibato ou a vida una e indivisa como atitude a que todo cristáo deve tender ao me nos interiormente (por sua disponibilidade íntima), se nao também exteriormente ou físicamente. A virgindade éum para digma para todo discípulo de Cristo, paradigma do qual cada um se aproxima de acordó com a vocacáo pessoal que Deus lhe deu. .
O Senhor Jesús, em Mt 19,10-12, considera o celibato em relagáo ao Reino de Deus que se vai implantando na térra e cujo servicp inspira a vida indivisa; é assim evidente que os ministros desse Reino, chamados a se consagrar inteiramente ao servigo do mesmo, se sentem especialmente interpelados pelo convite ao celibato.
Esse convite foi ouvido e vivido, como se eré, desde os primordios da Igreja. O sacerdocio judaico nao exigia o celi bato; o sacerdocio cristáo, apresentando-se como algo de novo (.a «novidade crista»), voltou-se muito conaturalmente para o
celibato em sinal de dedicagáo total ao Reino. O Novo Testa mento nos dá a saber claramente que, além de Jesús, Sao
Paulo era celibatário (cf. ICor 7,7) e insinúa o mesmo com relacáo a Barnabé, Silas, Lucas, Timoteo, Tito, que acompanhavam Sao Paulo em seu ministerio com dedicagáo integral. Deviam ser espontáneamente celibatários. Ñas epístolas pastarais (l/2Tm, Tt) aparece a preocupa
do de se efetivar a hierarquia da Igreja; como as comunida des cristas eram entáo constituidas por adultos convertidos, a escolha dos pastores recairia naturalmente sobre homens casados; todavía note-se a tendencia a exigir dos ministros do Senhor urna certa continencia; com efeito, Sao Paulo diz que
o «epíscopo», o presbítero e o diácono devem ser «marido de
urna só mulher» (lTm 3,2; Tt 1,5; lTm 3,12), isto é, seja casado urna só vez, nao duas vezes sucessivas. — 373 —
22
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
A documentagáo existente sobre a observancia do celibato por parte dos clérigos nos primeiros séculos é escassa. Encontra-se, porém, um ou outro texto significativo, como sao os
seguintes:
Tertuliano (f após 220): «Quantos homens e mulheres, ñas Ordens da Igreja, apelam á continencia! Preferiram esposar-se com Deus, restaurar a honra de sua carne e já se consagram filhos da eternidade, extinguindo em si os desejos da paixáo e tudo aquilo que nao poderia ser admitido no paraíso» (De exhortatione castitatis 13 PL 2, 930 A). Tertuliano cedeu ao rigorismo montañista; por isto queria que os viúvos nao se casassem segunda vez. Todavía ele ex
prime a grandeza da vida una, independentemente de qual-
quer preconceito herético, ao qualificar o celibato como um «esposar-se com Deus».
Bem manifesta
que a
renuncia ao
matrimonio nao é algo de meramente negativo, mas implica a fruigáo de um bem ainda maior.
Eusébio de Cesaréia (f 340) justifica o celibato sacerdo
tal recorrendo a um tema que já Orígenes
(t 250) havia
explorado:
em
«Os doutores e pre.gadores da palavra de Deus devem apressar-se renunciar ao casamento para se dar mais completamente as
obras superiores. Eles criam urna posteridade divina e espiritual, e nao se limitam a educar um ou dois filhos, mas ocupam-se com urna quantidade inumerável» (Demonstracáo Evangélica I 9,14s PG 22,81).
Eis o texto de Orígenes subjacente ao de Eusébio: «Se na
Igreja os padres e os doutores podem gerar filhos, é conforme o modo daquele que diz: 'Filhinhos, que eu gero novamente até que o Cristo esteja formado em vos' (Gl 4,19)» (Sobre o Levítico, hom. 6,6 PG 12,474).
Pode-se crer que, em certos casos, a exclusáo do matri monio, para os clérigos, tenha sido inspirada também pela consideragáo (subjetiva) de que a vida sexual torna a pessoa im pura para o culto divino, em conformidade com o modo de pensar dos israelitas do Antigo Testamento; cf. Ex 19,15; Lv 15,18-24; ISm 21,5. Os costumes sexuais dos judeus antigos eram muito severos. Talvez também alguns autores cristáos, ao falar de vida conjugal, tenham sofrido a influencia de esco— 374 —
«O DIRECTO DE AMAR»
23
las filosóficas gregas (estoicismo, pitagorismo, neoplatonismo) e de correntes gnósticas avessas á sexualidade (encratistas). Todavia nao se pode ignorar que sempre existiu, desde o Senhor Jesús e os escritos paulinos, urna motivagáo genuinamente crista para o celibato; foi esta que prevaleceu no decorrer dos tempos, quando o Cristianismo mais e mais se foi dis tanciando do judaismo e as correntes gnósticas ou dualistas foram perecendo: o celibato é o dom indiviso do cristáo a Deus e ao próximo, possibilitando mais livre servigo á causa do Reino e o exercício de urna paternidade espiritual de grande fecundidade para a Igreja e o género humano.
2.2.
A legislacáo
A primeira lei referente ao celibato dos clérigos na his toria da Igreja provém do Concilio de Elvira (Espanha) por cerca de 300. Reza o canon 33 dessa assembléia: «Aprouve proibir por completo aos bispos, aos presbíteros e aos
diáconos, em suma, a todos os clérigos instituidos para o ministerio, que tenham relagóes com suas esposas e gerem filhos. Quem o tiver feito, será destituido da sua dignidade de clérigo».
Alias, o mesmo Concilio, no seu canon 30, proibia que fossem promovidos ao subdiaconato os candidatos que, na sua juventude, tivessem cometido adulterio, pois mais tarde poderiam ser chamados fraudulentamente a ocupar um lugar supe rior. Quanto aos bispos, presbíteros e diáconos, caso se descobrisse que se tinham tornado réus de adulterio, deviam ser para sempre privados da comunháo, mesmo em artigo de morte, por causa do escándalo ocasionado por tal crime. Em fins do século IV ocorre a Decretal Dominus ínter do Papa S. Dámaso (366-384) aos bispos da Gália. Este documento atesta que a Igreja Romana admitía entáo dois tipos de clérigos: aqueles que, batizados na infancia, haviam permanecido celibatários, e aqueles que, batizados em idade adulta, haviam permanecido castos e se casaram urna só vez;
estes, urna vez promovidos as Ordens sacras, deviam ater-se á continencia perpetua.
O Papa Siricio (384-399) confirmou tal disposicáo. O mesmo se diga dos Papas Inocencio I (401-407), Sao Leáo Magno (440-461), Hilario (461-468), S. Gregorio Magno (590— 375 —
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS!. 276/1984
-604)... Dos respectivos textos se depreende que os homens casados, ao terem acesso as Ordens sacras, ficavam proibidos de usar do casamento após a ordenagáo. Tais determinagóes foram tendo suas conseqüéncias no tipo de vida dos clérigos do Ocidente. No Oriente, a evolugáo foi um tanto diferente: o Concilio Quinissexto ou de Trulos (691/2), reunido em Constantinopla, dispós que
o bispo observe a continencia perpetua, e, no caso de ser casado, se separe da sua esposa;
— o matrimonio é proibido ao sacerdote depois de receber as Ordens sacras. Quanto ao homem casado que seja orde nado sacerdote, pode continuar a viver sua vida conjugal. Tai regra já fora adotada pelo Concilio ecuménico de Nicéia (325).
Nao há dúvida, houve transgressóes numerosas da lei do celibato através dos sáculos — o que obrigou os Concilios a reafirmar freqüentemente a lei do celibato no Ocidente; te-
nham-se em vista de modo especial os Concilios I e II do Latráo, respectivamente em 1123 e 1139: puseram o termo final
á legislagáo vigente, declarando nulo o matrimonio dos clé rigos a partir do subdiaconato.
Apesar das crises, o ideal do celibato nao cessou de se reforgar. No século XVI, a Reforma luterana recolocou a
questáo: mestres católicos eram da opiniáo de que, para faci
litar o retorno dos protestantes á unidade da Igreja, esta poderia derrogar á lei do celibato. Os imperadores Ferdinando I
(1556-64) e Maximiliano n (1564-76) pediram a Santa Sé urna dispensa do celibato sacerdotal ao menos para os países germánicos; o Papa Pió IV (1559-65) pensava em concede-la. Mas morreu antes de
tomar qualquer decisáo; seu sucessor,
Sao Pió V (1566-72), abandonou o projeto e reforgou as leis do Concilio de Trento (1543-1565), que haviam de novo incutido o celibato.
Ulteriores pressóes foram exercidas sobre a Santa Sé nos sáculos XIX e XX em vista de abolir o celibato eclesiástico. Todavía a lei tem sido mantida conscientemente, ou seja, bem ponderados os pros e os contras; a Igreja tem, sim, procurado assegurar melhor observancia do celibato mediante preparagáo mais eficiente dos candidatos ao sacerdocio. O último documento sobre o assunto, de caráter oficial, é a encíclica
Sacerdotalis coelibatus de Paulo VI, datada de 24/06/1967. — 376 —
<0 DIREITO DE AMAR»
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Aos olhos da fé, esta insistencia deliberada da Igreja na praxe vigente tem seu significado; além da assisténcia permanente do Espirito Santo á Igreja, há raz5es profundas para manter a norma do celibato. É o que vamos examinar sob o subtitulo seguinte.
3.
Sacerdocio e celibato: conveniencia
Levaremos em conta especial a encíclica mencionada de Paulo VI, citada como SC. 3.1.
1)
Fundamenfajáo teológica
Identificado com Cristo
O sacerdocio cristáo só pode ser entendido a luz de Cristo, ou seja, como participagáo do sacerdocio do Senhor Jesús. Ora, para executar a sua missáo de Mediador, Jesús Cristo permaneceu toda a vida em estado de celibato, estado que lhe permitiu plena dedicacáo ao servigo de Deus Pai e dos homens
(cf. SC 21). Além disto, o Salvador abriu aos seus discípulos
a perspectiva de urna consagragáo total ao Reino dos Céus mediante renuncia ao matrimonio; deixou-lhes, com efeito, tal convite: «Há eunucos que se fizeram tais por causa do Reino dos Céus. Quem pode compreender, compreenda» (Mt 19,12). Assim interpelado pelo Divino Mestre, é lógico que o sacer dote procure responder-lhe nao somente abragando o ministe rio sacerdotal, mas também compartilhando com o Senhor o estado
de vida
indivisa. Destarte,
ele
dá urna
resposta de
amor ao amor que Cristo manifestou de modo táo elevado (cf. Jo 15,13; 3,16). Conseqüentemente, o celibato vem a ser o sinal de um amor sem reserva e o estímulo de urna caridade aberta a todos os homens (cf. SC 19-25). 2)
Servlco á Igreja
Identificado com Cristo quanto ao seu estado de vida, o sacerdote está em condicóes de amar a Igreja como Cristo a
amou, dedioando-se a Ela com a máxima disponibilidade. A vida do sacerdote celibatário há de ser marcada pelas notas da
— 377 —
26
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
harmonía e da unidade de ideal; todas as suas riquezas natuturais e sobrenaturais estáo livres para se dedicar plenamente á leitura e á assimilacáo da Palavra de Deus, á oracao pública e particular, á celebragáo consciente e férvida da S. Eucaris tía, ao servigo de todos os homens. O celibato deve propor cionar ao padre as melhores disposigóes psicológicas e afetivas para que exerga continuamente a caridade e seja mais solicito pastor de almas, fazendo-se tudo em favor de todos (cf. ICor 9,22; 2Cor 12,15). Em suma, a imagem de Cristo deve trans parecer através dos tragos do sacerdote celibatário, de modo que este ofereca a Igreja e ao mundo um sinal vivo do Senhor presente entre os homens (cf. SC 26-32).
3)
Sinal dos bens celestiais
A vida una consagrada a Deus é urna das primeiras e mais espontáneas expressóes do Cristianismo neste mundo. Com efeito, já em 56, na sua primeira carta aos Corintios, Sao Paulo ensinava que o matrimonio é santo, mas a virgin dade ainda é mais santa (cf. ICor 7,8). Esta afirmagáo sur-
preendia judeus e pagaos, cujas idéias nao os levariam a tal
conclusáo; era característicamente inspirada pela mensagem crista. Em verdade, o cristáo sabe que, com a vinda de Cristo, a vida eterna já comegou neste mundo, os bens celestiais e definitivos já sao dados aos homens mediante o Batismo e a
Eucaristía; por isto interessa sumamente ao discípulo de Cristo viver o mais possível desses valores e para esses valores eter nos numa atitude de virgindade espiritual e (se possivel) cor poral. Na virgindade física (que nao deve ser separada da vir
gindade espiritual, ou seja, da entrega total do amor a Cristo), o cristáo antecipa, na medida do possivel, o estado final ou escatológico:
«Na ressurreigáo, ninguém tomará marido nem
mulher, mas seráo todos como anjos no céu» (Mt 22,30).
É também a este título que o celibato convém ao sacer dote; a vida una é, aos olhos da fé, testemunho de que a eternidade baixou a este mundo e um estimulo para que todos os
homens levantem os coragóes ao alto (cf. Cl 3,1-4 e SC 33-34).
Eis, em resumo, os grandes motivos que recomendam o celibato cristáo em geral e o do clero em particular. Nao se pode, porém, esquecer que contra tal posigáo se levantam — 378 —
«O DIREITO DE AMAR»
3.2.
1)
27
Objegóes
Contrarío á natureza
Afirma-se que o celibato violenta o ser humano, colocando-o em situagáo física e psicológica antinatural. Impede-lhe o equilibrio e a maturidade de personalidade, sujeitando-o á aridez afetiva ou a atitudes desumanas. Em suma, o celibato menospreza valores humanos, que Deus criou e que Cristo Re dentor santificou (cf. SC 10). Que dizer?
— Antinatural é «nao amar». O homem foi feito para amar; é esta a sua necessidade primordial, de tal modo que Bernanos podía dizer que «o inferno consiste em nao amar». O amor, porém, nao se exerce apenas no plano biológico. Ele pode mesmo prescindir de qualquer contato sexual, pois o homem, além de ser carne, é espirito; com o espirito ele adere, em puro amor, a Deus e a todos os filhos de Deus. Ora o sacerdote ama, e ama intensamente, dispensando-se, porém, das manifestacóes carnais do amor. Um ditado popular assevera com razáo: «O padre é o coragáo dos homens junto a Deus, e o coragáo de Deus junto aos homens». O que quer dizer: no coragáo do padre se encontram o amor, ou seja, todas as aspiragóes retas e nobres dos seres humanos e, ao mesmo tempo, o amor ou toda a benevolencia com que Deus ama os homens.
O sacerdote celibatário nao ignora nem despreza a vida
afetiva (o que poderia redundar em desequilibrio fisico e psí
quico de sua personalidade), mas disciplina-a e eleva-a a um plano superior; é em Deus e por Deus que ele concebe os seus afetos. Em conseqüéncia, o padre deve amar com um cora
gáo dilatado, exercendo uma patemidade mais elevada do que a patemidade natural, patemidade que prolonga, de maneira particular, a patemidade de Deus em relacáo aos homens (cf. SC 53-56). Nao se deve, pois, dizer que a Igreja priva o sacerdote do direito de amar. Ao contrario, é para garantir a abertura e a universalidade do amor de seus ministros que a Igreja lhes pede o celibato.
— 379 —
28
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Se um cristáo quer casar-se legítimamente, tem em seu favor o sacramento do matrimonio, que santificará a sua vida conjugal. Nao há necessidade de que seja sacerdote na Igreja Latina, se deseja casar-se. Em suma, amar nao quer dizer
apenas «ter vida sexual»; a vida sexual nao é senáo urna das express5es do amor de duas pessoas que Deus uniu pelo sacra mento do matrimonio.
2)
Homem solitario
«Pelo celibato o sacerdote se condena a viver em solidáo, que se Ihe torna fonte de amargura e aviltamento» (SC 10). — Em resposta, podem-se lembrar as palavras do Santo Cura d'Ars: «O sacerdote é um homem devorado pelos homens». Em virtude do seu ministerio, está constantemente em contato com seus semelhantes. que ele procura ou que o procuram; Deus o chamou em favor de todos os homens, dele fazendo fermento na massa e luz para o mundo. E, quando, ñas horas noturnas, o sacerdote se recolhe, deve sentir a necessidade de se encontrar a sos com o Senhor Deus a fim de orar e meditar; é nesses momentos que ele se revigora e «reabastece» para poder continuar a dar aos homens a palavra e a vida do próprio Deus.
Naturalmente, pode haver na vida do sacerdote momentos em que sinta a falta de reconforto humano. Lembrar-se-á entáo de Cristo, que em grau máximo quis experimentar tais situacóes, mas pode declarar: «Nao estou só, porque o Pai está comigo» (Jo 16,32). É na intimidade com Deus que o padre encontra a forca de alma necessária para dissipar melancolias e depressóes; o Divino Amigo, dando-lhe parte mais intensa ñas suas dores, dá-lhe também a consciéncia de estar mais identificado com o misterio da morte que é vida para o mundo.
Ñas circunstancias normáis, nao háo de faltar ao sacer
dote abalado a solicitude de seu pai espiritual, o Bispo dioce
sano, o apoio de seus irmáos no sacerdocio e o reconforto do povo de Deus; a S. Igreja deseja que todos os seus filhos se
auxiliem mutuamente nos setores que lhes estejam ao alcance, conscientes de que formam todos um só corpo em Cristo (SC 58-59).
— 380 —
«O DIREITO DE AMAR»
3)
29
Escassez de clero
«Se o matrimonio fosse permitido aos padres, haveria maipr número de vooagóes; muítos jovens parecem desistir do sacerdocio por sentirem atrativo para o casamento. Este urna vez concedido, a carencia de sacerdotes deixaria de ser o pro blema que ora tanto preocupa a Igreja» (cf. SC 8).
— A experiencia das comunidades orientáis que admitem o casamento de seus ministros, demonstra que tal suposigáo é infundada; nem por isso tem mais clero do que os cnstáos do Ocidente.
A raiz da escassez de clero está na atenuagáo do senso de Deus e das coisas sagradas que se verifica tanto nos indivi duos como ñas familias. Também se deve recensear a perda da estima pela Igreja, instituigáo que salva
mediante a fé e
os sacramentos. Em suma, a descristianizagáo dos lares e das escolas, o esvaecimento do senso religioso ñas diversas camadas da sociedade tornam assaz difícil o surto e o desabrochar das vocagóes sacerdotais na juventude contemporánea.
A solugáo de muitos dos problemas que afligem os cristáos em nossos dias, depende da recristianizagáo da familia; nos lares onde a fé é conservada, o apelo do Senhor para o ministerio sagrado nao somente se faz ouvir com freqüéncia, mas encontra a devida correspondencia por parte dos jovens e o estímulo por parte dos mais velhos. É notorio que muitas familias contemporáneas acolhem com tristeza e repulsa a noticia de que um de seus filhos se deseja consagrar a Deus. De resto, é preciso nao esquecer que o Senhor Jesús quis confiar a evangelizagáo do mundo a um punhado humana mente insignificante de discípulos, os quais, nao obstante, realizaram maravilhas com a graga de Deus. Em toda a historia da Igreja, a messe sempre foi grande e exiguo o número de
operarios — razáo pela qual aínda hoje no Evangelho Cristo exorta seus fiéis a recorrerem á oragáo, a fim de que o Pai suscite novas e novas vocagóes na S. Igreja (cf. SC 47 e 49). 4)
Dais dons distintos
.«A Igreja faz coincidir o dom da vocagáo sacerdotal com
o da perfeita castidade. Ora pode acontecer que alguém receba o chamado para o ministerio sagrado sem receber ao mesmo
tempo o dom da vida celibatária» (cf. SC 71). — 381 —
30
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Por certo, o dom divino do ministerio sacerdotal é dis tinto do da perfeita continencia. Note-se, porém, que a voca-
gáo sacerdotal, embora provenha de Deus, nao se torna defini tiva, concreta e atuante senáo na Igreja. Esta é o Corpo vivo e prolongado de Cristo; é por Ela que Cristo fala, confirmando ou nao nos seus jovens fiéis o chamamento para o sacerdocio.
Ora á Igreja o Senhor confiou a faculdade de estabelecer os requisitos necessários para que os homens possam exercer o ministerio sacerdotal. Por conseguinte, nao é lícito opor entre si «chamado de Deus para o sacerdocio» e «exigencia da Igreja», pois, na verdade, o chamado divino só vem dentro do quadro de condigóes estipuladas pela Igreja. «Quando no
Ocidente Deus dá o dom da vocagáo sacerdotal, também dá o da continencia perfeita», é o que se deve dizer numa visáo de fé coerente (cf. SC 15 e 62).
Isto quer dizer que, quando alguém senté inclinagáo para o sacerdocio ministerial, mas, ao mesmo tempo, experimenta forte necessidade de se casar, talvez nao esteja sendo por Deus
chamado ao sacerdocio; é para desejar que tal pessoa se exa
mine bem a fim de averiguar se Deus nao Ihe concede a grasa
de transferir sua necessidade de amor para o plano espiritual,
de modo que possa dignamente tender ao sacerdocio e exercer o ministerio sagrado. Caso nao consiga prescindir do amor conjugal, esteja certo de que Deus nao o está chamando para o sacerdocio ministerial. 5)
As dolorosos deserjóes
«Se os padres se casassem, nao se verificariam as infide lidades e desercóes que, no atual regime, entristecem a Igreja. Os ministros de Cristo dariam o testemunho de vida crista no setor da familia»
(cf. SC 9).
As desergóes, que nos últimos tempos se tém registrado em maior número, nao depóem contra os valores positivos do celibato na vida sacerdotal, mas chamam a atengáo para outro problema: faz-se mister proporcionar um preparo mais adequado e prudente aos jovens que se candidatam á vida sacer dotal. Deste assunto trará o título n» 6 desta serie de objecóes.
Deve-se também notar que as desistencias de sacerdotes se devem nao raras vezes a um afrouxamento geral dos mes-
mos em sua vida de ascese e piedade. — 382 —
Quem negligencia a
«O DIREITO DE AMAR»
31
oragáo, vai aos poucos perdendo o sabor das coisas de Deus, comega a experimentar o vazio em seu íntimo, e finalmente senté necessidade de se satisfazer em bens criados, aos quais livremente renunciou. As defecgóes de sacerdotes geralmente nao sao o resultado de urna crise momentánea, mas, sim, a conseqüéncia de um progressivo afastamento dos valores sobrenaturais. A vida moderna, com suas imperiosas exigencias de trabalho, tende muitas vezes a quebrar o ritmo de oragáo e disciplina do padre; insensivelmente distancia-o de maior vigi lancia sobre si mesmo, vigilancia indispensável para que nao
se deixe arrastar pela onda dos afazeres e pelos numerosos atrativos sensíveis a que está sujeito. Ora é esse zelo intenso
para com a vida espiritual que a S. Sé preconiza, a fim de que os ministros do Senhor nao sejam dolorosamente surpreendidos pelas tentacóes.
«A castidade nao se adquire urna vez por todas, mas é o resultado de laboriosa conquista e de cotidiana afirmacao. . .» (SC 74).
«A piedade sacerdotal, alimentada pelas puríssimas fontes da Palavra de Deus e da S. Eucaristía, vivida no drama da Sagrada
Liturgia, animada por terna devocao á Virgem Mae do Sumo e Eterno Sacerdote e Rainha dos Apostólos, pora o sacerdote em contato com as fontes de auténtica vida espiritual; somente esta dá solidíssimo fundamento á obrervñncia da virgindade consagrada» (SC 75). ó)
Formac.no ¡nadequada
«Os candidatos ao sacerdocio nao sao
devidamente pre
parados para assumir os encargos do celibato; obrigam-se a
renunciar ao matrimonio sem ter a maturidade psico-fisica necessária para superar as dificuldades da continencia perfeita» (cf. SC 11).
Inegavelmente, faz-se mister que os métodos de forma-
gáo dos seminaristas se beneficiem dos recursos que as cien cias modernas (pedagogía, psicología, medicina...) oferecem para a formagáo da personalidade. A Santa Sé, após o Con
cilio, pediu que, sem demora, se elaborassem, com o concurso de peritos, normas precisas e atualizadas para prover ao pre
paro dos futuros ministros do Senhor.
O sacerdocio supóe urna vocagáo divina, gratuita, sobre
natural, que se insere em determinado tipo humano dotado de suas características biológicas e psicológicas. Em conseqüéncia, — 383 —
32
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
nao somente os teólogos e os mestres da vida espiritual, mas
também, em certos casos, os médicos e psicólogos podem ser úteis para examinar a autenticidade de urna vocagáo e levar a bom termo a obra que a graga divina inicia nos jovens can didatos ao presbiterato.
Nao se trata de utilizar a psicanálise como meio para dis cernir as vocacóes religiosas ou sacerdotais, pois a psicanálise nao é tratamento universal, aplicável a todo e qualquer indi viduo; cf. PR 93/1967, qu. 1. A S. Igreja tem em vista, para o curriculo habitual dos Seminarios, outros recursos (exercicios, técnicas e testes das ciencias modernas).
Requer-se igualmente que o seminarista pratique desde os
seus pnmeiros tempos
de íormayáo sacerdotal «urna ascese
severa, nao, porém, sufocadora, ascese que seja o exercicio consciente e assiauo das virtudes que de ura homem fazem um sacerdote: renuncia a si mesmo no grau mais elevado — condicao essencial para seguir a Cristo (ti. Mt 16,24; Jo 12,25) —; humildade e ODediencia como expressóes de veracidade inte
rior e de liberdade ordenada; prudencia e justica, fortaleza e
temperanga, virtudes sem as quais nao pode existir vida reli
giosa verdadeira e profunda; senso de responsabilidade, de tidendade e de lealdade no cumprimento do oever; harmonía entre contempiacáo e agáo; desprendimento e espirito de pobreza, que dáo tom e vigor á lioerdade evangélica; castidade como conquista perseverante, harmonizada com todas as outras vir tudes naturais e sobrenaturais; contato sereno e seguro com o
mundo, ao servico do qual o candidato se dedicará em prol de Cristo e do seu reino» (SC 70).
Para que naja maior maturidade e, por conseguinte, maior garantía de perseveranca nos jovens sacerdotes, a Santa Sé estípula que, antes da ordenagáo sacerdotal, os clérigos se submetam a períodos de tirocinio e experiencia na cura de almas, auxiliando em algum setor do ministerio sagrado.
7)
O sacerdote e a vida conjugal
«O sacerdote nao dá ao mundo o testemunho da vida con
jugal, que Cristo santificou com tanta énfase. Como poderá
o padre entender os casáis e auxiliá-los ñas dificuldadesf,de sua vida matrimonial?» (cf. SC 10). — 384 —
«O DIREITO DE AMAR»
33
— É certo que o povo de Deus deve prolongar em si a grandeza do misterio de Cristo e da Igreja mediante o sacra mento do matrimonio. Todavía este dever nao se impóe a todo e qualquer dos cristáos. É aos leigos que ele compete. Aos
sacerdotes cabe outro tipo de realizacáo do misterio de Cristo,
táo necessário quanto o anterior: o da vida una, totalmente dedicada as tarefas do Reino de Deus como tal. — Mesmo a vida matrimonial requer continencia e certa virgindade; é con veniente, pois, que os sacerdotes apresentem aos cónjuges o paradigma da vida continente e casta, segundo a qual, de certo modo, há de se pautar a vida conjugal.
O padre celibatário, embora carega de experiencia direta
do convivio matrimonial, nao carece por isto de profundo conhecimento do coragáo humano, conhecimento necessário para poder servir aos esposos cristáos. Com efeito, os estudos e a formagáo sacerdotais, além da graga que Deus concede para o bom desempenho dos deveres de estado, possibilitam
ao presbítero orientar fielmente as familias no desempenho de
seus deveres. Seja lícito recordar a clássica comparagáo: o mé dico, para atender eficazmente a seus pacientes, nao precisa de experimentar as molestias dos mesmos; bastam-lhe, para
tanto, os seus estudos profissionais e a sua boa formagáo hu mana (cf. SC 57). 8)
"
Sacerdotes ordenados após o casamento
«Nos últimos anos, ministros protestantes casados, tendo
abragado a fé católica, foram ordenados presbíteros da Igreja.
Nao seria isto indicio de próxima mudanga de disciplina em geral?» (cf. SC 42). O Santo Padre Paulo VI lembra explícitamente tais
casos; recorda também que o Vaticano n permitiu seja a
ordem do diaconato conferida a homens casados. Acrescenta, porém, que tais fatos e dispositivos nao signifioam derrogagáo
á lei do sagrado celibato sacerdotal; «nao devem ser interpre tados como preludios de aboligáo da mesma». Em vez de ceder a esta hipótese, procurem os cristáos compenetrar-se mais a mais da genuina nogáo e do valor sobrenatural da virgindade e do celibato (cf. SC 42s).
Em l'/04/1981, a Santa Sé divulgou a noticia de que va rios sacerdotes anglicanos casados haviam sido acolhidos na Igreja Católica e estavam para ser ordenados presbíteros, em— 385 —
34
PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
bora casados. Tal fato suscitou na imprensa a suspeita de que estava para ser abolida a lei do celibato sacerdotal na Igreja Católica. Em vista disto, a Sagrada Congregagáo para a Doutrina da Fé declarou que se tratava de urna excegáo á regra
do celibato concedida a pessoas determinadas em circunstancias muito especiáis; nem se deveria crer que a excecjio se reproduziria necessariamente em casos semelhantes que ocorressem no futuro. A Igreja excluía assim a hipótese de próxima alteracáo da lei do celibato. Cf. PR 259/1981, pp. 387-389.
4.
Conclusfio
Sao estas algumas reflexóes que a leitura do livro de Benjamim Bossa sugere. O livro é mais caloroso e emocional do que argumentativo; desde que se queira urgir o seu conteúdo, vé-se que é fraco em arrazoados, mas rico em apelos. Básica mente B. Bossa firma-se no direito de amar, próprio a todo homem, para justificar o direito dos
padres ao casamento.
Nesta sua reivindicagáo, o autor identifica amar e «ter vida conjugal» o que é inexato; o conceito de amor é muito mais ampio do que o da vida conjugal. Pode haver amor auténtico e profundo onde nao naja relaces conjugáis. Quando o Novo Testamento propóe Deus como amor e incita os cristáos a prática do amor, utiliza a palavra grega agápe, que significa o amor puro de benevolencia, desinteressado de qualquer compensagáo; tal foi o amor de Cristo celibatário aos homens; tal seja também o amor dos ministros de Cristo aos seus seme
lhantes. O amor interessado em compensagáo ou resposta é
designado em grego pelo vocábulo eros; este termo nao designa algo de mau, mas sim algo de legitimo; supóe urna vocagáo especial do Senhor, como também a supóe a vida una. Desde que se tenham estas verdades em vista, o pronunciamento fundamental de B. Bossa perde o seu vigor. As pp. 63s, o autor defende a legitimidade de mudanca de opgáo de vida no decorrer dos anos; em conseqüéncia, nao deveria haver compromissos perpetuos na existencia dos cris táos; nem o do celibato sacerdotal nem o dos votos religiosos teriam duragáo para o resto da vida! Qualquer obrigac.áo a ser assumida por toda a vida seria antinatural... Visto que tais afirmagdes tém seu peso próprio, seráo abordadas np artigo seguinte deste fascículo, que trata da fidelidade. — 386 —
Um difícil problema:
Fidelidade..., mas a quem? Efn síntese: A fidelidade é valor em crise nos nossos dias por tres motivos principáis: a fé religiosa é substituida pelo racionalismo e o hedo nismo; o existencialismo e a filosofía freudiana solapam o ideal da adesáo firme a valores que custem renuncia e sacrificio. Nao obstante, verifica-se que o hornera foi feito para ultrapassar infinitamente a si mesmo; é saindo de si para atingir nobres ideáis que ele se realiza plenamente; ora este
sair-de-si será sempre doloroso por causa do egoísmo e do egocentrismo existentes em todo homem; compreende-se entBo que a fidelidade a algo maior seja difícil, mas nem por isto se torna dispensável na vida de
alguém. Mais: a fidelidade do homem é apenas resposta á fidelidade de Deus, que se dignou travar allanca com a humanidades como Deus é infallvelmente fiel, Ele convida o homem a urna fidelidade magnánima e perseverante até o extremo.
De resto, o mundo de hoje, táo su|elto a casos de infldelldade, con
serva o respeito e a admlracSo pelos Ideáis da generosidade tenaz e firme até as últimas conseqüéncias. Todas as instllulcfies que proponham tarefas
arduas em vista de metas elevadas e dignas sSo pontos de atracio para o' homem contemporáneo,- que deseja descobrir modelos de fidelidade.
Nao há quem nao sinta como se tem tornado difícil a fide lidade em nossos tempos: fidelidade ao casamento, fidelidade
aos votos religiosos, fidelidade á vocacáo sacerdotal ou, sim-
plesmente, á palavra empenhada... Numerosos sao os casos que surpreendem: o compromisso solenemente assumido, pouco tempo depois, é retratado; há quem procure «racionalizar» ou justificar sua atitude, ao passo que outros nao se preocupam
com isto, afetando mesmo um certo desdém. A crise merece atencáo.
Um valor que outrora era um
versalmente reconhecido, hoje em dia é discutido ou até mesmo menosprezado. Por qué? Quais as correntes de pensamento que motivam tal conduta? Como julgar a situagáo? Comecemos por investigar
— 387 —
36
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
1.
As causas do problema
Enunciaremos tres razóes.
1.1.
O declínio da fé
A palavra fídelidade vem, em última instancia, de fides, fé (em latim).
Fé, no sentido religioso, é a adesáo a Deus que se mani-
festa ao homem, propondo-lhe a sua palavra e a sua vida. Fidelidade é a atitude decorrente de tal adesáo; é a firmeza e a perseveranga na adesáo á fé.
Em sentido profano e ampio, fé pode ser entendida como adesáo a algum valor que nao seja Deus diretamente: o valor da palavra dada, da doagáo prometida, da dedicacáo a urna causa nobre... Em tais casos, a fidelidade é a atitude tenaz de quem mantém seus propósitos. Supóe um certo nivel ético e os ditames da consciéncia moral.
Ora em nossos dias a fé de muitas pessoas está em crise
ou meismo apagada, o que nao pode déixar de abalar os fun damentos moráis da sociedade. Certo racionalismo tem suplan tado as atitudes de fé, que é sempre um salto do homem para
dentro do Infinito ou do Absoluto; mesmo as pessoas religiosas sao propensas, as vezes, a enquadrar as proposigóes da fé den tro de categorías naturalistas («Deus nao pode exigir sacrifi cios, renuncias..., os instintos naturais sao criterio de comportamento...»). Em conseqüéncia, sempre que as exigencias da fé ultrapassam as do mero «bom senso», surge a crise da fidelidade.
O naturalismo é hoje aeompanhado de forte tendencia hedonista, que faz do prazer o criterio do comportamento hu mano; em tal perspectiva, a renuncia e a autodisciplina se tornam incompreensíveis. Como a fídelidade requer sempre alguma renuncia, é solapada por tal atitude hedonista.
De modo particular, duas escolas filosóficas contribue(m
para dificultar o exercicio da fidelidade. — 388 —
FIDELIDADE ... MASA QUEM? 1.2.
37
O existencialismo
O existencialismo é a atitude de pensamento que rejeita a metafísica, com seus principios e valores perenes, para privi legiar o homem na sua situacáo momentánea transitoria; tal
mentalidade é, como se compreende, avessa a compromissos definitivos. Mais: dentro do existencialismo mais recente, Jean-
-Paul Sartre define o homem pela sua liberdade, liberdade para a qual nao há modelo preexistente ou meta prefixada a atingir. A liberdade de cada um está habilitada a optar pelo Sim ou pelo Nao
no contexto das circunstancias em que se
ache. Cada qual, de acordó com as conveniencias da sua situagáo, define para si o bem e o mal moral, sem que o homem se julgue devedor a alguma norma ou instancia superior que o obrigue a seguir valores perenes.
A juventude européia (e, por repercussáo, a brasileira)
sofreu especial influencia da parte de Herbert Marcuse, «o filó sofo dos hippies». Este autor apresenta um existencialiismo marxista, de inspiracáo freudiana — o que quer dizer: con juga em si correntes de pensamento fortemente antitradicio nalistas e anticristás; segundo Marcuse, o principio que deve
reger o comportamento humano, há de ser o eros ou a espon-
taneidade liberada, em lugar do logos ou do dominio metódico
da razáo sobre os instintos; é preciso por de lado todas as normas, para entregar-se aos impulsos do pronto para a criatividade.
instinto sempre
Por isto nao raro se ouve dizer, da parte de quem rompe algum eompromiisso: «Tenho que ser fiel a mim mesmo» ou
aínda: «Se quero continuar a permanecer fiel ao espirito de minha promessa (isto é, á fidelidade a mim mesmo), tenho
que romper com a letra do que prometí...» «O sujeito — eo sujeito situado em tais ou tais circunstancias volúyeis — tor-
na-se o criterio do novo concertó de fidelidade; realiza-se assim o sonho axeu de Ludwig Feuerbach (t 1872), contemporáneo e mentor de Kart Marx, o homem é, sem mais, a sua própria finalidade e o seu próprio legislador.
A mentalidade existencialista dificulta também aos jovens assumir compromissos definitivos. Estas parecem desproposi tados, visto que muitos p5em a pergunta: «Como posso com-
prometer-me para sempre se nao sei que tipo de homem ou de mulher serei daqui a vinte anos?»
Seria masmo erróneo, na
base destas premissas, querer ser fiel a um ideal preestabele— 389 —
_38
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
cido. Há quem diga: «Tornei-me ura outro homem, funda mentalmente diverso daquele que outrora prometeu fidelidade ao casamento ou ao celibato... Se quero ser realmente leal
comigo mesmo, tenho que por fim á situagáo ambigua em que me acho». Esse «por fim» nunca é entendido como urna transformacáo ou uma conversáo do sujeito, mas, sim, como um abandono do compromisso.
Alguns cristáos tomam a mesma atitude usando linguagem aparentemente mais teológica, quando afirmam: «Tenho que ser fiel ao meu carisma...
instituicáo...
Este é sufocado pela lei e a
Gozo da liberdade dos filhos de Deus». Tais
dizeres podem corresponder á verdade, como também podem ser ilusorios.
1.3.
A filosofía de Freud
Para Sigmund Freud, o homem consta de um Ego, que é premido por seus instintos (Es ou Id) e controlado pelo Super-Ego ou a sociedade. O eu vive entre a pressáo de baixo (dos afetos cegos) e a de cima (a censura do ambiente social). A tendencia daí decorrente é a de violar o controle ou censura, a fim de dar largas aos instintos. Muitas pessoas casadas, ao passar por uma crise emocional, recebem de profissionais da psicología o conselho de procurar «sexo» fora de casa; aos jovens recomendam certos terapeutas que pratiquem o sexo
antes do matrimonio; a solugáo dos problemas psíquicos estaría no dizer Sim a todos os instintos eróticos.
Neste contexto a fidelidade aparece associada é. odiosa censura da sociedade; nao há por que dar satisfagáo á socie dade, que é sufocadora do verdadeiro «a do sujeito. Está assim legitimada a ruptura de qualquer compromisso. Procuremos refletir sobre táo serio problema.
2.
Ponderando...
Dois seráo os nossos títulos de consideragáo. 2.1.
1.
Feito para se ultrapassar
O filósofo francés cristáo Blaise Pascal
(t 1662)
afirma: «O homem foi feito para ultrapassar infinitamente) a si mesmo». Estranha e sabia proposicáo: nao é no fechamento — 390 —
FIDELIDADE . ■. MAS A QUEM?
39
sobre si mesmo que o homem atinge a sua grandeza, mas é precisamente quando sai de si... Com efeito; o homem nao é o seu próprio fim; ele tem um Autor, que o criou segundo um modelo exemplar e que o chama a realizar plenamente esse modelo. Há, pois, urna vocagáo para cada homem, vocagáo á qual ele tem que responder. Verdade é que o Senhor Deus deixa certa margem de criatividade aqueles que O procuram; Ele nao dita a resposta, mas espera fidelidade á vocagáo.
Quem quisesse fazer do homem o seu próprio fim, em vez de dignificar, rebaixaria a criatura. Esta traz em si aspiracóes grandes demais para poder bastar a si mesma. A plena realizagáo do homem consiste precisamente em tender ao Absoluto.
Ora esta tendencia, por mais nobre que seja, custa sacri ficios. Por isto ela encontra resistencia no mais fundo de nos mesmos, que somos marcados pelo egoísmo e o egocen
trismo.
O homem ó espontáneamente propenso a se autoafir-
mar até em detrimento dos outros numa atitude de permanente
competitividade. O pecado original configura todo ser humano, levando-o ao narcisismo espontáneo. Assim se explicam, de um lado, a lógica da fidelidade e, de outro lado, a dificuldade de a praticar.
2.
Eis, porém, que se levantam dúvidas a respeito:
a)
E a Iiberdade... Iiberdade táo apregoada pela cor-
rente existencialista? — Responderemos que a Iiberdade é um predicado precioso do ser humano, mas nao é um fim nem um absoluto; é um meio para que o homem atinja seu fim nao como um autómato, impelido cegamente, mas como um ser espontáneo.
Fulton Sheen ilustra o sentido da Iiberdade recorrendo as seguintes figuras: imaginemos um abridor de latas e urna gilete; cada qual desses instrumentos foi concebido e fabricado em vista de urna finalidade bem precisa. Ora, talvez alguém diga em nome da sua Iiberdade: «Vou deixar de fazer como todos fazem, e aplicarei a gilete á superficie da lata para tentar abri-la, e o abridor de lata á pele do rosto para tentar barbear-me». Poderá fazé-lo; mostrar-se-á independente da rotina comum, mas na verdade nada lucrará; ao contrario, só per— 391 —
40
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
derá tempo e esforcos; donde se v§ que o uso da liberdade nao é uma meta em si, mas apenas um recunso para atingimos
mais dignamente as metas que a natureza nos assinala e das quais nao nos podemos afastar Be nos queremos realizar ple
namente.
b) «Oomo posso assumir um compromisso para o resto da vida?» — Nao há dúvida, na década dos vinte aos trinta anos de idade, nenhum jovem pode prever as chances e pers
pectivas que lhe seráo oferecidas no decorrer dos decenios pos teriores; nem pode avaliar a direqáo que seus impulsos tenderao a assumir com o passar do tempo. Todavia eremos que isto nao é motivo para que o jovem, na década dos vinte aos trinta anos, nao assuma compromissos ... e compromissos de vida definitivos. Com efeito. Viver comprometido, longe de ser diminuigáo
da personalidade, é fator de engrandecimento. Para realizar-se plenamente, o ser humano tem que saber que nao pertence a si, mas vive para uma grande causa na qual, perdendo-se a si mesmo, ele encontra de novo a si mesmo. É muito oportuno que o sujeito nao seja sua própria regra de conduta, mas pro cure pautar sua vida pelos ditames de uma nobre meta a atin
gir mediante doacáo ou dedicacáo (no casamento ou no celi bato consagrado a Deus e ao
próximo). — Está claro que
essa meta e as normas que ela impóe, tém de ser bem ponde
radas e escomidas com seriedade; por isto há sempre um pe ríodo de preparagáo e de amadurecimento antes do contrato matrimonial ou da profissáo religiosa; há o namoro e o noivado num caso, o noviciado ou os anos de formagáo sacerdotal no outro caso1. Depois dessa preparacáo, é bom que o jovem se decida e assuma o seu ideal de maneira plena ou sem reser vas, deixando-se sacudir e despertar constantemente pelas exi gencias da meta proposta. A caminhada decorrente dessa decisáo poderá ser ardua; poderá ter suas surpresas, e sofrer tentaches. .. É sadio, porém, correr um certo risco; alias, nao há grandeza sem risco; quem nao aceita riscos, nao pode crescer. — Ademáis note-se que quem assume um ideal por amor a i Sabemos que há muitas pessoas altamente dignas e respeltávels que Deus nao chama nem para o casamento nem para um tipo de vida explícita mente consagrada por um sacramento ou um sacramental. Tais pessoas, vivendo a vocablo que Deus Ihes deu, procurando construir algo de graode
e nobre dentro do seu campo de irradlacSo própria, estío justificadas; nao vlvem egoistamente ou fechadas em si.
— 392 —
FIDELIDADE ... MAS A QUEM?
41
Deus, pode contar com a graca do Senhor, que nao lhe há de faltar; o risco e os desafios aceitos pelo jovem para poder crescer em sua personalidade nao sao os de um estoico pagáo,
mas os de um filho de Deus, que jamáis é abandonado pelo Pai. c)
A fidelidade nao sufoca a personalidade? — Refuta
mos ... Antes de assumir um compromisso (tanto o do casa mento como o de especial consagragáo a Deus), o individuo deve deliberar maduramente sobre o que está para fazer; exa
mine bem a proposta e compare-a com as suas aptidóes. Nao se comprometa precipitadamente nem para atender a injun-
cóes de familiares ou de estranhos. Por conseguinte, quando o jovem devidamente preparado se compromete, está afir
mando- a sua personalidade livre e rica de aspiragóes. Pois
bem; o exercício da fidelidade é a reafirmac.áo dessa persona lidade; é precisamente o sinal de personalidade forte («renun
cio a meus caprichos e veleidades porque o quis e o quero; sei manter intrépidamente a decisáo consciente e livre que tomei, apesar dos sacrificios que isto exige»). Ao contrario, aquele que viola seus compromissos nao se submetendo a eles, dá pro-
vas de personalidade fraca ou incapaz de se sustentar (embora, a primeira vista, pareca ser um tipo forte ou inquebrantável). 3.
Observemos, de resto,
que o sacrificio exigido pela
fidelidade gera a paz interior,... nao a paz que o mundo dá,
mas a paz que o Senhor Jesús prometeu aos discípulos fiéis K É também penhor de profunda alegría,... alegría que o Se
nhor compara nao á do mundo embriagado pelo prazer, mas á da mulher que, após haver sofrido as dores do parto, se rego-
zija por ter dado um homem á luz (cf. Jo 16,21s) 2. Ao contrario, a infidelidade gera a angustia, pois ela pro voca o esvaziamento e a autodestruigáo da personalidade. i "Delxo-vos a paz, a minha paz vos dou; nao vo-la dou como o mundo a dá" (Jo 14,27).
a «vos estaréis na tristeza, mas a vossa tristeza se converterá em
alegría. Quando a mulher está para dar a luz, flca triste, porque está chegando a sua hora; mas, nascida a crianca, nao se lembra mals das
dores, pela alegría de ter vlndo um homem ao mundo. Também vos estáis tristes agora, mas eu vos tomare) a ver e vosso coracao se alegrará, e nlnguém poderá tirar vossa alegría" (Jo 16,20-22).
— 393 —
42
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
2.2.
Alianza com Deus
1. A fidelidade da criatura deve ser considerada também á luz da Alianza de Deus com os homens. Ele é fiel á sua palavra. Alias, o nome IAHWEH com que Deus se revelou a Moisés, quer dizer propriamente que Deus é sempre presente
ao seu povo; Ele chama para urna ardua caminhada através do deserto, mas nao deixará de acompanhar a sua gente. Na
verdade, Ele amou o homem em primeiro lugar (cf. Uo 4,19) e o seu amor é irreversível (cf. Os ll,8s).
Freqüentemente os profetas do Antigo Testamento comen-
tam a infidelidade da Filha de Sion ao Senhor Deus, seu Es poso (cf. Jr 3,9s; Os 1-3; Ez 16...); a criatura é, por vezes, leviana e fútil; esquece os bens principáis para aderir a pro postas de valor ilusorio; cava cisternas incapazes de conter agua... O Senhor conhece sobejamente a fraqueza da nossa
argila. Mas constantemente Ele convida ao retorno; se Israel foi infiel, o Senhor nao é, nem se pode tornar infiel; é-lhe impossível dizer-nos Nao depois de haver dito Sim; «Se lhe somos infiéis, Ele permanece fiel, pois, negar-se a si mesmo, Ele nao o pode» (2Tm 2,13). 2.
Há, porém, quem diga: a fidelidade
a um compro-
misso suprime a liberdade do dom; torna meramente formal o
comportamento da criatura. Melhor seria dar a Deus sem
compromissos. — Em resposta, lembraremos que foi precisa mente assim que pensaram os Reformadores protestantes do sáculo XVI com relacáo aos votos religiosos. Por isto aboliram a vida monástica. Todavía aos poucos o protestantismo está voltando atrás; tenha-se em vista o que ocorre em Taizé-Cluny, na Franga: ai precisamente alguns protestantes bem intencionados redescobriram a vida monástica com seus votos; a principio os irmáos de Taizé queriam assegurar plena liber dade ao seu comportamento monástico; aos poucos, porém, foram percebendo que promessas perpetuas tornam mais forte e desimpedido o amor a Deus. É Roger Schutz, o Prior rde Taizé,
quem escreve: — 394 —
FIDELJDADE ... MAS A QUEM?
43
«Muitas vezes puseram-nos a pergunta: nao será que adotastes os tres votos
tradicionais copiando o cenobitismo
clássico?
E-nos
forcoso responder sem demora que tentamos sinceramente nao nos
deixar impressionar pela experiencia do passado.
Quisemos fazer
tábua rasa para recomecar tudo a partir da estaca zero. Nao obstante, vimo-nos um dia diante da evidencia seguinte: nao poderíamos per manecer em nossa vocacao sem que nos comprometéssemos totalmente
na comunhao de bens, na aceitacao de urna autoridade e no celibato» («Naissance
de
communautés
dans
l'Eglise
de
la
Reforme»,
em
Verbum Caro 1955, p. 20).
Vé-se assim que o valor da consagragáo ao Senhor e da conseqüente fidelidade se impóem ao cristáo a partir de urna leitura sincera e serena do Evangelho.
Alias,
a propósito S.
Anselmo de
Cantuária sugere
a
seguinte imagem:
Um homem tinha urna macieira, e todos os anos entregava a um amigo os frutos produzidos por tal árvore. Um belo dia, porém, resolveu chegar-se ao amigo e dizer-lhe: «Eis que te oferego nao só os frutos, mas também a árvore com toda a potencialidade de produzir magas para o futuro».
Certamente
o ato final do doador foi mais generoso do que os anteriores. Com efeito, ñas ocasióes anteriores, o doador nao guardava magas para si, mas guardava a faculdade de nao oferecer a
colheita seguinte, caso esta lhe parecesse mais saborosa ou caso precisasse déla. Entregando de urna vez só as frutas e a própria árvore, o doador correu um risco: o de nao poder usufruir dos frutos futuros da macieira. Por isto o seu gesto foi especialmente magnánimo e nao pode ter deixado de agradar mais vivamente ao homenageado. — Algo de semelhante se dá com quem entrega ao Senhor Deus nao apenas cada um de seus dias á medida que ocorrem, mas de antemáo oferece toda
a sua vida, com tudo que ela tenha de incerto e surpreendente. A profissáo religiosa é precisamente essa entrega feita ao Pai de antemáo, em confianga filial, de toda a vida do (a) Reli gioso (a). Essa entrega assume o valor nao de um ato espo rádico, mas de um ato global e totalizante. — 395 —
jA
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS* 276/1984
3.
Ganclusño
Verificamos que nao poucas correntes filosóficas lendem
a solapar o ideal da fidelidade, aprefcsentando-a até como traigáo do sujeito a si mesmo. Acontece, porém, que na realidade concreta o homem de hoje se mostra profundamente sensivel
aos valores da fidelidade, por vezes heroica, á palavra dada. a juventude procura modelos de magnanimi-
Principalmente
dade e fidelidade.
Iludem-se aqueles que julgam poder atrair a juventude com «agua de rosas» ou «agua com agúcar», isto
é, com urna perspectiva de vida crista sem renuncia e cheia de compensagóes. Será útil lembrar aqui urna experiencia feita pelo autor destas linhas cm maio de 1983: em visita á Polonia pode observar que a juventude aflui em multidáo para a Igreja e se desinteressa pelos programas do Partido Comunista, em-
bora a prática crista seja perigosa e arriscada porque perse guida pelo Governo, ao passo que a filiagáo ao Partido é cheia de vantagens temporais. Ao contrario, na Holanda, que o autor
destas linhas também pode observar, a juventude abandonou a Igreja, embora esta nos Países-Baixos procure apagar todo sinal de austeridade e dureza nos seus programas de vida. Nao seria de esperar que a comodidade e a vida «macia» atraiissem mais gente do que a vida arriscada e disputada? A explicagáo do fenómeno está precisamente no fato de que ainda existe bom senso na juventude e na humanidade de hoje: ainda há o reconhecimento de que renunciar a si e correr ris
cos em prol de...uma causa nobre é muito mais belo e dignifi cante do que fugir dos' riscos e manipular a verdade para que ela náo_incomode o sujeito.;.. Qualquer instituicáo que;, julgue poder viver melhor em nossos dias a troco de ambigüidáde, está fadada a perecer. Ao contrario, as instituigóes que cometam a «loucura» de propor
programas de vida arduos, mas coerentes, em vista da conse-
cugáo" de ñpbre "mfeta, tém a perspectiva de atrair adeptos.
Precisamente o que falta aos homens de nofssos dias, sao mo delos de eoeréncia fiel e heroica até as conseqüéncias extremas. Muito a propósito vém as palavras do S.
Padre Joáo
Paulo II proferidas no Rio de Janeiro (Maracaná) aos~2 de julho de 1980: — 396 —
FIDELIDADE ... MAS A QUEM?
45
«Também a ¡uventude do nosso tempo senté poderosamente a atracáo para as alturas, para as coisas arduas, para os grandes ideáis.
Nao vos iludáis que a perspectiva de um sacerdocio menos austero ñas suas exigencias de sacrificio e de renuncia — como, por exemplo. na disciplina do celibato eclesiástico — possa aumentar o número daqueles que pretenden! comprometer-se no seguimento de Cristo.
Pelo contrario. É antes urna mentaltdade de fé vigorosa e consciente que falta e se faz necessário criar em nossas comunidades. Ali onde o sacrificio cotidiano mantém despertó o ideal evangélico e eleva a alto nivel o amor de Deus, as vocacoes continuam a ser numerosas. Confirma-o a situacáo religiosa do mundo. Os países onde a Igreja é perseguida sao paradoxalmente aqueles em que as vocacoes florescem mais, algumas vezes até em abundancia».
Fale-nos, pois, o Evangelho maís urna vez nesta hora difí cil e nos corrobore na certeza de que «aqueles que dáo fruto céntuplo, dáo-no na paciencia (= perseveranga, fidelidade)» (Le 8,15).
— 397 —
Escándalo?
"Em Nome de Deus" "Investigado sobre o assassínio de Joáo Paulo I" por David Yallop
Em sínlese: Vai, a seguir, transcrita urna crónica da revista TIME (edicio para a América Latina) de 18/6/84, p. 20, a respeito do livro de
David Yallop Intitulado "Em Nome de Deus". O cronista mostra que o autor nao tem fundamentos para provar a tese de que Joáo Paulo I foi envenenado por próximos colaboradores. As raz6es aduzidas por Yallop para explicar este gesto brutal da parte de prelados e banqueiros sao desfeitas urna por urna. O mesmo cronista termina lembrando que, de vez em quando, a
¡maginacSo dos escritores tende a forjar estórias como esta, sendo que a de Joáo Paulo I tem um qué de artificial (farfletched) em nossos días.
O livro «Em Nome de Deus» de David Yallop causou grande sensagáo no mundo inteiro, inclusive no Brasil. O
autor propóe a tese de que o S. Padre Joáo Paulo I, que morreu repentinamente de noite, foi envenenado por próximos colaboradores. Ora a opiniáo pública tem reagido ao que há de ficticio e sensacionalista nessa teoría. Entre outros documen tos, apareceu na revista TIME (ed. latino-americana) de 18 de junho de 1984, p. 20, urna crónica intitulada «Poison Gossip»
(Mexerico de Veneno), que p5e em evidencia as falhas e os
preconceitos da hipótese de Yallop. Trata-se, sem dúvida, de urna apreciagáo abalizada e imparcial, como costumam íser as noticias de TIME em materia religiosa. Eis por que abaixo transcrevemos tal crónica em traducáo portuguesa, acrescentando-lhe breves noticias complementares. MEXERICO DE VENENO
Acusocoes de assassínio descabidas ao extremo Na noite de 28/9/1978, o Papa Joao Paulo I fez suas oracoes na cápela privada do Palacio Apostólico; a seguir, retirou-se para ''
o seu quarto, que ficava a poucas ¡ardas de distancia. — 398 —
Essa devería
«EM NOME DE DEUS»
47
ser a sua última noite era vida: na manha seguinte, o Pontifice seria encontrado morto em seu leito. A causa oficial da morte foi um ataque
cardíaco. O qve tornou especialmente pungente a partida de Joao Paulo I, foi o fato de que fora eleilo apenas 33 días antes.
Um livro a ser publicado nos Estados Unidos durante esta semana propóe urna sentenca chocante: Joao Paulo I foi assassinado. Em sua obra, intitulada «Em Nome de Deus: urna investigacáo sobre o assassínio
de Joao Paulo I» (Bantam, $ 16,95), o autor inglés David Yailop
assegura que o Pontífice foi assassinado por ordem de urna ou mais de seis pessoas suspeitas, todas elas «muito sujeitas a temer graves incómodos se o governo de Joao Paulo I continuasse».
Segundo Yailop, o assassínio foi provocado pela decisao, do Papa, de expurgar o perturbado Banco do Vaticano e purificar a Igreja de supostos vínculos com urna Lo¡a Macó nica clandestina da Italia chamada «Propaganda Due» ou P-2. Em prosa cerrada, o autor examina a serie dos personagens suspeitos e os seus motivos para agir. Estes personagens terao sido: o falecido Cardeal Jean Villot, Secretario de Estado do Vaticano, que, segundo Yailop, fora informado pelo Papa de que seria substituido e estova também preocupado pelo rumor de que Joao Paulo I tencionava abrandar a proibicao da lgre¡a referente ao controle da natalidade; o arcebispo Paúl Marcinkus, Diretor do Banco do Vaticano, que. conforme dizem, estava para ser ¡mediatamente removido do cargo; Roberto Calvi, Presidente do Banco Ambrosiano, que seria afastada se as suas negociatas com dinheiro do Vaticano fossem descobertas; Michele Sindona, o banqueiro siciliano, que estava a par de um pretenso comprometimento do Banco do Vaticano com dinheiro da Mafia; Licio Gelli, Grao-Mestre da Loja P-2, que, segundo dizem,
se gloriava de ter inscrito em sua Loja cem membros pertencentes ao Vaticano; e, por último, mas nao menos importante, o falecido Cardeal John Cody, de Chicago, que fora avisado de que Ihe pediriam renunciasse ao cargo. Tendo apresentado pessoas e motivos tao diferentes, Yailop nao consegue provar a culpa de nenhum dos suspeitos. Com efeito, ele consagra quatro páginas ao último encontró do Cardeal Villot com Jofio Paulo I aos 28/9 e lenta reconstituir o diálogo no qual o
Pontífice teria expressado a sua intencáo de trocar o Secretario de Estado.
Segundo Yailop, Villot «informou, discutiu, protestou, mas sem
resultado». Yailop imagina que o Papa foi envenenado talvez mediante um falsificado frasco de remedio para baixa pressáo chamado Effortil, que Jofio Paulo I teria tomado ao lado de sua cama. Yailop também insiste em que as íncoeréncias no relato do Vaticano a respeito da morte do Papa e a recusa de autopsia demonstran) manobra secreta.
— 399 —
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Yailop tem 47 anos de ¡dade. Escreveu diversos livros de investigacao, inclusive urna biografía de «Fatty Arbuckle», na qual ele absolve o comediante de envolvimento na morte de urna atriz. Levou tres anos ñas pesquisas preparatorias de «Em Nome de Deus». A sua teoría nao é algo de inédito. Urna historia aínda mais surpreendente circulou em torno do Vaticano ¡mediatamente após a morte de Jodo Paulo I, a saber: a primeira tentativa de passar ao Papa urna xícara de cha envenenado errov o alvo e matou um hospede.
Mais: nada
havia de insólito na recusa de autopsia após a morte de Jodo Paulo I; nunca algum Papa foi submetido a autopsia. Yailop nao aprésenla argumentos evidentes para provar a sua conjetura de envenenamento. Os motivos atribuidos a alguns dos «suspeitos» de Yailop parecem ilógicos ou mesmo inacreditáveis. Com efeito; após a sua eleicao, Joao Paulo I confirmou todos os oficiáis do Vaticano por cinco anos, inclusive Villot e Marcínkus. Sindona, que está cumprindo pena de 25 anos numa prisáo de Nova lorque por
motivo de fraude, e Calvi, que foi encontrado enforcado debaixo de urna ponte em Londres no ano de 1982, tinham terríveis problemas financeiros; nenhum destes, porém, podia ser aliviado pelo morticinio do Papa. As noticias acerca da lo¡a P-2 de Gelli contribuirán! para
derrabar o governo italiano do Primeiro-Ministro Arnaldo Forlani em 1981, mas tfio somente porque muitos membros do governo pertenciam a urna sociedade ilegal; nunca se provou que algum prelado do Vaticano pertencesse a toja. Embora o envenenamento de um Papa possa parecer urna estaría
artificial em nossos dias, a lenda refere que ao menos um Papa — Alexandre VI — morreu envenenado, em conseqüéncia de urna pocao fatal que estova destinada a alguns Cerdeáis. Isto terá ocorrido em 1503, e os rumores a respeito nao cessaram até ho¡e. Antigos observadores do Vaticano lembram estórias segundo as quais o Papa Pió X terá morrido envenenado em 1914. Houve também sussurros conforme os quais foram envenenados Leao XIII em 1903, Pió VIII em 1830 e...
COMENTARIO
1. Como se vé, em tom assaz jocoso, mas com firmeza, o cronista verifica que a tese proposta por David Yailop carece de fundamentos em dados históricos; pertence ao género dos livros sensacionalistas, que exploram crimes e misterios para dar celebridade e dinheiro aos seus autores.
— 400 —
«EM NOME DE DEUS»
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De certo modo, a imprensa carioca insinúa tratar-se de obra sensacionalista, publicando a seguinte noticia aos 22 de junho de 1984:
Capa e Espada. «Para o editor Sergio Machado, Vice-Presidente da Record, a mais fascinante experiencia de sua carreira foi a compra dos direitos autorais do livro 'Em Nome de Deus', de David Yallop, que chega as livrarias brasileiras na próxima semana.
Machado recebeu um telefonema de Londres, em marco. Era Tom Maschller, da Jonathan Cape (urna das mais tradicionais casas editoríais inglesas). Maschller o convocava para urna reuniao, a fim de examinar a compra dos direitos de traducao de um livro. Só que o brasileiro feria que ir até a Inglaterra, pois nao poderío ser mandado o manuscrito, nem revelado o título da obra e o seu tema.
Em Londres, numa reuniao nao menos misteriosa. Machado e mais cinco colegas de outros países foram trancados numa sala, onde entao souberam que se tratava de um livro sobre um possivel assassinato do
Popa Joao Paulo I. Todos fecharan) o negocio na hora e, no Rio, só cinco pessoas souberam da existencia do 'Projeto X', como foi chamado 'Em
Nome
de
Deus'
até ser
publicado
com
grande estardalhaco»
(O GLOBO, 22/Ó/84, p. 8).
Leve-se em conta também a revista VEJA de 18/7/84,
p. 148, onde o cronista, após ter enumerado as pessoas suspeitas de morticinio, observa sabiamente: «Todos eles estariam receosos com os rumos que o Papa preten dería dar á Igreja Católica, principalmente quanto á gestáo das finanzas do Vaticano. Logo, conclui o apressado Yallop, todos teriam motivos para querer a morte de Joao Paulo I. Sem qualquer prova, o escritor se apressa em afirmar que urna dessas pessoas malou o Papa, mas nao
chega a definir qual délas feria arquitetado o críme. Com esse racioci nio fantasioso, seria lícito incluir o próprío Yallop na lista de suspeitos do crime. Afinal, ele lucrou bastante com a morte do Papa. — Em nome de Deus ¡á foi publicado em quase vinte países e em muitos deles figura na lista dos livros mais vendidos. M.S.C.» 2.
O sensacionalismo tem em mira preferentemente as
pessoas postas em relevo na historia da humanidade; assim, por exemplo, os Papas. É por isto que o cronista do TIME — 401 —
JjO
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
indica os falsos rumores, já langados ao público, a respeito de
envenamento de Pontífices: sao evidentemente descabidos os boatos relativos a Sao Pió X (f 1914), Leáo Xm (t 1903) e Pió Vm (t 1830). Nenhum historiador serio refere tais estórias, porque nao pertencem ao género da ciencia, mas ao da ficcáo.
Quanto a Alexandre VI (t 1503), sabe-se que foi um Pon tífice de vida acidentada. O mais famoso e abalizado historia dor, no caso, Ludwig von Pastor, escreve em sua monumental obra Geschichte der Pápste (III Band, 1. Abteilung, Freiburg im Breisgau, 1924):
«Alexandre VI certamente nao foi envenenado, mas sucumbiu a
febre romana1» (p. XXIV).
«Em conseqüéncia da rápida deterioracao do cadáver (de Alexandre VI), a qual se explicava muito bem pelo grande calor da
época 2, logo se falou, em Roma, de envenenamento. Todavía o legado
de Mantua escrevia já aos 19/8 que tal suposicao era ¡nviável. O mesmo depoimenlo foi dado por outras testemunhas da época, que
estavam muito bem informadas; nem o Embaixador de Veneza, Antonio
Giustiniani, nem Johannes Burchard falam de veneno. Estes homens se achavam em Roma por ocasiao da morte do Papa — o que nao aconteceu a Guicciardini, Bembo, Giovio, Sanuto e Pedro Mártir; além
do mais, os relatos destes últimos, que falam de envenenamento, nao se coadunam entre si e, sem dúvida, pertencem ao mundo da fantasía. A doenca fatal de Alexandre VI foi, muito provavelmente, a perigosa febre romana, que abalou o organismo do Papa anciao e disposto a apoplexia. A ¡mediata causa da morte foi, segundo o parecer de um dos médicos, a apoplexia» (pp. 591 s). Eis como se pronuncia um historiador profissional serio, que, na obra em pauta, para justificar as suas afirmagóes,
cita a mais completa colegáo de fontes e documentos que se possam obter para escrever a historia dos Papas.
Tal estilo é bem diferente da arte redacional dos sensacionalistas contemporáneos. (Continua na p. 365)
iSupoe-se que seja a malaria (Nota do tradutor).
2 0 faleclmento deu-se á noUinha de 18/8/1503 — o que é pleno verSo no hemisferio Norte (Nota do tradutor).
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Um artigo questionador:
" Revolucao na Isreja?" por Luciano Martins
Em síntese: O artigo "RevolucSo na Igreja?" supóe que o atual ¡nteresse da Igreja pelas questoes sociais se deva ao desmoronamento da fé da Igreja ñas grandes verdades do Credo; tal desmoronamento teria sido provocado pelos estudos científicos e críticos da Biblia empreendldos nos últimos decenios; ter-se-ia chegado k conclusSo de que Jesús nao é Deus feito homem nem ressuscitou nem fundou a Igreja.
Diante desla tese, o presente artigo repassa sumariamente os funda
mentos da fé nos artigos citados.
Os estudos biblicos recentes, movidos
especialmente segundo o método da historia das formas, nao abalaram o Credo, mas, ao contrario, melhor puseram em evidencia o sentido das ver dades da fé. Verdade é que estudiosos liberáis e racionalistas propuseram hlpóteses e conjeturas como se fossem teses ou sentencas definitivas. — Ora o jornalista que nSo conhece teología nem exegese bíblica, mas possui superficial noció dessas conjeturas, é capaz de propo-las ao grande público como se fossem a última palavra da ciencia; daí tira conclusdes desproposita das. Tal é o caso do artigo da "Folha de Sao Paulo" que vai anallsado nestas páginas de PR.
De vez em quando em nassa imprensa destinada ao grande público, aparecem artigos de teología — e alta teología! redigidos por autores que nao sao teólogos, mas se interessam pelos assuntos religiosos, especialmente pelo Cristianismo. As-
sim sao levadas aos leitores de nossos jomáis questóes espe cializadas por pessoas nao especializadas — o que nao pode deixar de suscitar equívocos e problemas na mente do público
ledor.
Ora entre tais artigos acha-se o da «Folha de Sao Paulo» de 18/06/84, p. 3, intitulado «Revolucao na Igreja?» Deve-se ao Prof. Luciano Martins, sociólogo, que lecionou ñas Univer sidades de París (Franga), Columbia (EUA) e Brasilia. O autor mesmo confessa ter «falta de competencia e de vivencia no mundo católico («minha experiencia no campo nao sobre— 403 —
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
viveu á minha passagem pelo Colegio Santo Inácio, séculos atrás)». Como quer que seja, entra em assuntos de alta teo
logía, guiado principalmente pelo artigo «Revolution in the Church» do filósofo e teólogo Thomas Scheeran (anglicano?) publicado em «New York Review of Books de 16/06/84. É através deste autor que o Prof. Luciano Martins cita outros autores de teología.
A seguir, apresentaremos uma síntese do artigo de L. Mar
tins e uma análise dos principáis pontos por ele abordados como fatores de revolugáo na Igreja.
1.
O artigo de Luciano Martins
O autor comega por observar que as recentes mudangas na Igreja, que com interesse inédito se vem dedicando aos assuntos sociais e políticos, sempre o surpreenderam. Julga, porém, ter encontrado uma explicaeáo para as mesmas: den tro da Igreja deu-se uma «revisáo histórica» sobre a vida, os feitoe, os ditos de Jesús Cristo. Tendo aplicado métodos cien tíficos aos textos sagrados (o que é «aparente contradigáo em termos», diz o autor), os estudiosos teráo descoberto que Jebus nao se considerava a segunda Pessoa da SS. Trindade ou o Filho de Deus feito homem; nem terá sido filho de máe vir ginal, pois os Evangelhos da infancia (Mt 1-2 e Le 1-2) foram escritos «sem rigor histórico». Jesús nao tencionou fundar uma Igreja «nem fazer de Sao Pedro seu primeiro Papa»;
também nao pensava em romper com o judaismo, mas pre
tendía ser táo somente «um profeta judeu que Eimplesmente anunciava o advento do Reino de Deus» e «a chegada ¡mí nente de uma figura mítica denominada Filho do Homem, com a qual Jesús jamáis se teria identificado».
Quanto á ressurreicáo de Jesús dentre os mortos, nao foi
fato histórico; os Evangelistas apenas quiseram expressar em linguagem «imaginativa e simbólica sua crenga de que Jesús estava de alguma forma vivo, com Deus, e que algum día rea parecería». De resto, a crenga na ressurreigáo dos mortos «só terá surgido no judaismo cerca de cento e sessenta anos depois de Cristo». — 404 —
«REVOLUCAO NA IGREJA?»
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Sao estas as principáis idéias propostas por Luciano Martins; embora o autor nao as queira endossar de maneira peremptória (pois reconhece que nao tem cabedal para tanto), o seu artigo é suficiente para levantar no grande público dúvidas que mereceráo nossa consideracáo.*
Passamos a examinar os principáis pontos formulados
pelo escritor.
2.
A «Revolujóo Cultural» na lgre¡a
Distinguiremos cinco tópicos importantes:
2.1.
Métodos científicos e textos sagrados
O autor julga ser «urna aparente contradigáo em termos» a aplicagáo de métodos científicos aos textos sagrados da
Biblia.
A propósito observamos: os fiéis católicos professam que a Biblia é a Palavra de Deus e, por conseguinte, tem valor transcendental. Nao obstante, reconhecem com igual vigor que é Palavra de Deus «encarnada» na palavra dos homens; o
Senhor quis exprimir-Be por meio dos géneros literarios e dos particularismos de linguagem de orientáis antigos num período que vai do sáculo XHI a.C. (Moisés) ao séc. I d.C. (geracáo dos Apostólos). A «encarnagáo» da Palavra de Deus já era
reconhecida pelos antigos escritores da Igreja, mas tornou-se
muito mais evidente desde o século XIX, quando vieram á
tona os documentos das antigás civilizacóes do próximo Oriente e do Egito; foram entáo descobertos textos e monumentos que
ilustravam o expressionitsmo dos autores bíblicos. Todo esse material contribuiu para melhor entendimento do texto sa grado; os exegetas tomaram consciéncia de diversos géneros literarios existentes na S. Escritura. O Papa Pió XII, em sua encíclica Divino Afilante Spiritu de 1943, promulgou o recurso as ciencias lingüisticas, históricas e arqueológicas para se po der interpretar auténticamente o texto sagrado. Verdade é que o estudo científico da Biblia nao basta; deve seguir-se-lhe o aprofundamento teológico, realizado segundo os ditames da fé.
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Ora este aprofundamento científico das Escrituras sem dúvida, legítimo — trouxe grandes beneficios para a exegese católica, pois permitiu mais lúcida compreensáo da mensagem sagrada. Todavía deu ocasiáo a abusos: houve autores que se limitaram a explanar a face humana da Biblia, enquanto outros esbogaram interpretagóes racionalistas ou destoantes da fé. Todavía a Igreja, através do seu magisterio, conserva
nítida consciéncia dos limites existentes entre a auténtica inter pretado da Biblia e as contrafagóes ou os desvíos exegéticos. 2.2.
Historicidade dos Evangelhos
As pesquisas científicas aplicadas aos Evangelhos levaram ao chamado «Método da Historia das Formas». Este examina a «pré-história» do texto escrito dos Evangelhos ou as influen
cias exercidas sobre a Palavra de Jesús desde que ela foi pre gada pelo Senhor (anos de 27 a 30) até ser redigida de forma definitiva pelos evangelistas (Mateus, em 80 aproximada
mente; Marcos em cerca de 65; Lucas em 70/75; Joáo, em
100). Como se compreende, o estudo dos fatos ocorridos nes-
ses decenios é difícil e dá margem a numerosas conjeturas
inspiradas pelas premissas filosóficas (cristas ou liberáis) de quem as profere. Se o pesquisador é racionalista, apresentará
talvez como sentengas seguras as hipóteses forjadas por seu racionalismo; dará assim a entender que as narragóes dos evangelistas nao sao fidedignas ou nao tém valor histórico. Especialmente os capítulos sobre a infancia de Jesús foram vítimas da agáo depredatória dos críticos liberáis. Sao as con jeturas dos racionalistas, as vezes tendenciosamente transmi tidas por artigos de vulgarizagáo, que levam pessoas nao cris tas a falar de «revolugáo cultural» na Igreja. O público deve estar interessado em saber que se trata de hipóteses nao raro
fundadas em preconceitos, em generalizacóes e simplificagóes inescrupulosas (pouco dignas do adjetivo «científicas»), que sao disseminadas como se fossem a última palavra dos estudos científicos dos Evangelhos.
A Igreja aceita o Método da Historia das Formas ou a pesquisa das influencias que se exerceram sobre a mensagem de Jesús antes que fosse definitivamente redigida pelos evangelistas: Todavía os exegetas católicos demonstram, mediante a citagáo de textos do Novo Testamento, que houve especial cuidado, da parte dos Apostólos, para que nao se deteriorasse a realídade histórica de Jesús e se conservasse com plena fide— 406 —
«REVOLUCAO NA IGREJA?»
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lidade a mensagem do Mestre; cf. PR 91/1967, pp. 282-290-
97/1968, pp. 18-28; 108/1968, pp. 503-515. A Igreja nascenté
sabia que a Revelagáo de Deus aos hometts se fez por tramites (fatos e pessoas) históricos, de tal modo que nao é lícito ao cristáo perder o contato com a historia real de Jesús; nao é lícito esquecer a historia e concentrar-se apenas numa pre
tensa «filosofía religiosa» do Cristianismo. A Constituicáo Dei Verbum do Concilio do Vaticano II (1965) lembrou que Deus se manifestou aos homens através de fatos históricos: «por palavras e obras, sinais e milagres e especialmente pela morte e gloriosa ressurreicáo de Jesús dentre os mortos» (m 4). Mais: «o plano de revelagáo se concretizou através de acontecimentos e palavras intimamente conexos entre si, de modo que as obras realizadas por Deus na historia da salvagáo ma-
nifestam e corroboram os ensinamentos e as realidades signi ficadas pelas palavras. Estas, por sua vez, proclamam as obras e elucidam o misterio nelas contido» (n9 2). Mais: os exegetas católicos tém-se aplicado a construir a criteriologia dos Evangelhos, isto é, tém procurado estabelecer os criterios para averiguar a autenticidade das narragóes do Evangelho. A propósito merecem particular mencáo as
obras de
F. LAMBIASI, Autenticidade histórica dos Evangelhos. Estudos de criteriologia, Ed. Paulinas, Sao Paulo 1978. CERFAUX, L., Jesús ñas origens da Tradicáo. Ed. Pau
linas, Sao Paulo 1972.
MARTINS TÉRRA, J. E., O Jesús histórico e o Cristo quarigmático. Ed. Loyola, Sao Paulo 1977.
BEA, A., A historicidade dos Evangelhos.
Sao Paulo.
Ed. Paulinas,
LÉON-DUFOUR, X., Os Evangelhos e a historia de Jesús.
Ed. Paulinas, Sao Paulo 1972.
GUTTTON, J., Jesús. Ed. Itatiaia, Belo Horizonte 1958. MESSORI, V., Hipóteses sobre Jesús. Ed. Paulinas, Sao
Paulo 1978.
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A citagáo destas obras serve, entre outras coisas, para mostrar que a exegesse católica nao é simplória em relagáo
á crítica; nao a ignora, mas, ao contrario, pratica-a. Nem por isto se vé obrigada a negar a historicidade dos Evangelhos; muito ao contrario, esta aflora significativamente aos olhos de quem estuda sem preconceitos as questóes levantadas pelos críticos.
É de notar ainda que o estudo objetivo dos Evangelhos leva a ver que os evangelistas nao quiseram ser cronistas no sentido moderno da palavra, mas procuraram fazer eco á pregagáo dos Apostólos, que era, antes do mais, catequese. Isto quer dizer: a historia nos Evangelhos nao é preterida nem
desfigurada, mas posta a servigo da fé; é narrada para evi
denciar a realizagSo do plano salvífico de Deus ou de modo a mostrar a correlacáo entre o Antigo e o Novo Testamento. Por isto os Evangelhos sinóticos (Mt, Me, Le) nao fazem questáo de transmitir a topografía e a cronología precisas da vida de Jesús, mas narram os sucessivos episodios da missáo pú
blica de Cristo dentro do cenário único da Galiléia; nesse esquema Jesús empreende urna só viagem 'á Judéia — a viagem da sua Páscoa final; em conseqüéncia, a vida pública de Cristo teria apenas um ano de duracáo. Todavía esse sistema há de tser completado pelo de Sao Joáo, que apresenta Jesús em viagens constantes da Judéia para a Galiléia e vice-versa, dentro de um esquema que dura cerca de tres anos (pois Joáo refere tres Páscoas: 2,13; 6,4; 13,1). O fiel católico nao se surpreende com esta averiguaqáo. Ela nao afeta a fé, nem causa revolugáo na maneira de con siderar Jesús Cristo. O leitor poderá encontrar mais pormenores sobre Jesús Cristo e a crítica dos Evangelhos em PR 90/1967, pp. 247ss;
91/1967, pp. 282ss; 108/1968, pp. 511ss; 210/1977, p. 264. 2.3.
Jesús, a segunda Pessoa da SS. Trindade
Muitos exegetas modernos, especialmente críticos liberáis, tém praticado o reducionismo, isto é, tém reduzido Jesús á figura de mero profeta, que, posteriormente, as comunidades cristas ornamentaram com os títulos de «Filho de Deus, Messias, Senhor, Salvador, etc.». Todavía as assergóes desses estudiosos tsáo a expressáo do racionalismo que, de antemáo ou dogmáticamente, afirma que só é verdade aquilo que a razáo humana é capaz de apreender. — 408 —
«REVOLUCAO NA IGREJA?»
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1. Um estudo atento e sereno dos Evangelhos aponta diversas passagens através das quais transparece a consciéncia que Jesús tinha, de ser o próprio Deus feito homem ou o Fi-
lho (a segunda Pessoa da SS. Trindade) consubstancial ao Pai. Tenham-se em vista os seguintes textos: Me 2,1-12:
Jesús perdoa os pecados do paralítico — o que
suscita nos fariseus a exclamando: «Ele blasfema!.. . Quem pode perdoar pecados a nao ser Deus?» Jesús entao, para demonstrar que,
como verdadeiro Deus, podía perdoar os pecados, curou instantánea mente o paralítico.
Me 2,28: Disse Jesús: «O Filho do homem é Senhor do sábado». Note-se que o sábado era o dia de Javé, de modo que Javé era o Senhor do sábado. Eis, porém, que Jesús diz ser o Senhor do sábado — o que manifestó a sua consciéncia de ser igual a Javé.
Mt 5,21-48: aos antigos...
Seis vezes Jesús afirma:
Eu, porém, vos digo...»
«Ouvistes o que foi dito
Nesses seis casos Jesús cita
um preceito da Leí de Deus transmitida por Moisés
(«Nao matarás.
Nao cometerás adulterio, Nao perjurarás...») e logo depois contrapóe a sua própria auíoridade: «Eu, porém, vos digo...» Isto mais urna vez evidencia que Jesús sabia ser igual a Javé.
Mt 25,31-46: Jesús se faz criterio de salvacáo dos homens. A vida e a morte destes dependem da atitude por eles tomada diante de Jesús. Ora tal auioafirmacao só pode ser a do próprío Deus. Mt 5,1 ls; 16,25s: Jesús proclama bem-aventurados aqueles que sofrem por causa dele; quem perde a sua vida por causa dele, encontra-la-á. Ora só Deus pode fazer afirmacoes aparentemente tao paradoxais.
Mt 11,27: «Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senao o Pai, e ninguém conhece o Pai senao o Filho e aquel* a quem o Filho o .quiser revelar». Destes dizeres se depreende que o ser e a vida do Filho sao de tal densidade que só o próprio Deus (Pai) os pode conceber; por seu lado, o Filho tem urna tal capacidade de apreensao que só Ele abrange o ser e a vida do próprio Deus (Pai).
Além disto, no Evangelho segundo Sao Joáo, encontram-se varias passagens em que Jesús afirma explícitamente a sua igualdade com o Pai: — 409 —
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Jo 14,9s:
«Quem me viu, viu o Pai. . .
Eu estou no Pai e o Pai
está em mim».
Jo 8,28: Disse Jesús: «Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, enlao sabereis que Eu Sou». Eu Sou é a traducao do nome Javé, com que Deus se reveloo a Moisés (Ex 3,14). Jo 8,24: «Se nao crerdes que Eu Sou, morrereis em vossos peca dos». Volta aquí a alusáo ao nome Javé.
Jo 10,33:
«Os judeus disseram:
'Nao te lapidamos por causa
de unía boa obra, mas por blasfemia, porque, sendo apenas homem, tu te fazes Deus' ».
Jo 10,38:
«O Pai está em mim, e eu no Pai».
2. Observe-se também que Jesús se designou como Filho do Homem. Este titulo, nos escritos do Novo Testamento, ocorre somente nos labios de Jesús e urna vez numa afirmagáo de Santo Estéváo: «Vejo os céus abertos e o Filho do Homem de pé á direita de Deus» (At 8,56). Donde se v§ que o título «Filho do Homem» nao era usual entre os Apostólos: ele procedeu diretamente dos labios de Cristo como o apelativo que Jesús escolheu com énfase especial para se identificar.
Ora «Filho do Homem» é um título messiánico.
o próprio Messías em Dn 7,14:
Designa
«Eu contemplava ñas vísoes noturnas. Eis que, com as nuvens do céu, veio alguém como um Filho de Homem. Chegou até o Anciao, ao qual foi apresentado. Foi-lhe dado imperio, honra e realeza, e todos os povos, nacoes e línguas O serviram. Seu imperio é um imperio eterno, que ¡amáis passará, e o seu reino nao será destruido».
Jesús quis prevalentemente designar-se como Filho do Homem, porque tal título estava isento de conotagóes políticas ou nacionalistas entre os judeus. Indicava assim a sua messianidade sem sugerir que vinha restaurar o trono e a realeza de Davi; Jesús mandava, antes, que se desse a Deus o que. é de Deus e a César o que é de César (cf. Mt 22,21). Jesús finalmente encerra sua missáo condenado á morte por haver «blasfemado», professando ser o Filho de Deus e o Messias (= Filho do Homem): — 410 —
«REVOLUCAO NA IGREJA?>
59
Mt 26,63-65: «O Sumo Sacerdote Ihe disse: 'Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos declares fe tu és o Mess!as, o Filho de Deus'. Jesús responden: 'Tu o disseste. Alias, eu vos digo que de ora em diante veréis o Filho do Homem sentado a direita do Poderoso e vindo robre as nuvens do céu'. O Sumo Sacerdote entáo rasgou as vestes dizendo: 'Blasfemou!... Que pensáis?' Eles responderán): 'É réu de morte' ».
Mais: diante das teorías reducionistas recentes, a Igreja, mediante a S. Congregagáo para a Doutrina da Fé, publicou
aos 21/02/1972, a Declaragáo «O misterio do Filho de Deus», que comega com as seguintes palavras:
«É necessário que o misterio do Filho de Deus feito homem e o
misterio da Santíssima Trindade, que fazem parte das verdades princi páis da Revelacáo, iluminem com a pureza da sua verdade a vida dos cristáos. Mas, como estes misterios foram impugnados por alguns erros recentes, a Sagrada Congregacao para a Doutrina da Fé tomou a decisao de recordar e salvaguardar a fé transmitida sobre estes mesmos misterios». Donde se vé que a apregoada «revolucáo cultural» nao conseguiu contagiar a fé oficial da Igreja Católica.
2.4.
Jesús, o judaismo e a Igreja
1. Jesús nao quis romper com o judaismo no sentido de que nao veio abolir a Lei e os Profetas, mas levá-los á plenitude; cf. Mt 5,17.' Isto quer dizer; Jesús veio cumprir as pro fecías e preencher as expectativas do povo judaico, pois Ele era o Messias prometido. Toda a mensagem do Novo Testa mento foi preparada pela do Antigo; e esta encontra o seu sen
tido consumado no Evangelho de Jesús Cristo. Dizia S. Agostinho: «O Novo Testamento está latente no Antigo; e o An tigo está patente no Novo».
2. Todavía é certo que Jesús veio fundar urna instituicáo correspondente á mensagem do Evangelho, diferente da instituigáo judaica da Sinagoga. Tal é a Igreja. Segundo alguns críticos modernos, Jesús nao teve a intengáo de instituir a Igreja, porque esperava a consumagáo dos tempos para breve.
Eis, porém, que o estudo acurado do Evangelho leva as
seguintes conclusdes:
1)
Os textos em que Jesús manifesta a expectativa de
próximo fim do mundo, háo de ser entendidos no sentido de que anunciam a próxima queda de Jerusalém; cf. Me 9,1; 13,30; — 411 —
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14,62. Esta, sendo um juizo de Deus sobre o seu povo, é urna antecipagao e figura do juízo de Deus sobre a humanidáde- por Kto, um e outro julgamento sao vistos pelos profetas bíblicos (e, no caso, Jesús e profeta) numa só intuifiáo profética;
!„♦ 2)i VáíÍOs textos evidenciam que Jesús admitía longo
intervalo entre a sua vmda e a consumacio dos tempos- assim a parábola do jojo e do trigo (Mt 13,24-30.36-43) insinúa que
e necessano esperar com paciencia a eliminagáo do joto A
£S Sr?° gr!P 5f mostarda toP^a outrossim crescimento
lento do Remo de Deus; cf. Mt 13,31s.
3) Jesús exortou os discípulos á vigilancia, pois ninguém sabe quando ocorrerá o fim dos tempos (Me 13Í35) O pro pno Jesús negou-se a revelar a hora (Me 13,32; At 1,7).
Estes textos sao suficientes para dissipar a hipótese de que Jesús aguardava e anunciava o fim do mundo como imi-
nente. Dito isto, pode-se agora afirmar que Jesús quis fundar
?n£Sf°chamada «Igreja»'como se *^ ?¿S£ . Mt 18,17:
«Caso o teu irmao nao de ouvido a duas ou
res testemunhas, d.ze-o á lgre¡a. Se nem mesmo á Igreja der ouvido
trata-o como gentío ou publicano».
Mt 10,1-14; Me 3,13-19; Le 6,12-16:
Jesús chamou os doze
Apostólos para que apascentassem o seu rebanho e d.fundissem a mensagem do Evangelho pelo mundo inteiro; cf. Mt 28,16-20-
Me 16,15-18; Le 24.47; At 1,8. Os Apostólos eram doze, porque dozé eram as tnbos de Israel — o que insinúa que o povo de Deus do Novo Testamento é um povo duradouro e organizado como ero o do
Antigo Testamento.
3.
De modo especial, o primado de Pedro resulta de tres
classicos textos:
Mt 16,16-19:
Jesús faz de Pedro a pedra fundamental da sua
Igreía e promete ao Apostólo as chaves do Reino dos céus — Este texto é tao cheio de aramaísmos que parece transmitir as próprias — 412 —
«REVOLUCAO NA IGREJA?»
61
palavras de Jesús; cf. «Bar-Jona», «carne e sangue», «K«pha», «por tas do inferno», «ligar e desligar»... Embora só se encontré em Mateus, a crítica nao ousa impugnar a autenticidade desia passagem.
Le 22,31 s: Jesús ora especialmente por Pedro e manda que este confirme os seus irmaos na fé. A nenhunt oufro Apostólo Jesús dirigiu semelhantes palavras.
Jo 21,15-17: Jesús entrega a Pedro o oficio de apascentar as suas ovelhas. Pedro é o pastor por excelencia entre os Apostólos — o que implica especial jurisdicao.
Ademáis o Apostólo Pedro aparece 114 vezes nos quatro Evangelhos e 57 vezes nos Atos dos Apostólos. Joáo, o segundo Apostólo mais em foco, é lembrado 38 vezes nos Evangelhos e oito vezes nos Atos. Para significar a missáo fundamental de Pedro, Jesús quis mudar o nome do Apostólo, conforme Jo 1,42: Simáo passou a chamar-se Pedro. Ora toda mudanga de nome significava, para os antigos, mudanca de tarefa ou missáo.
Quanto á altercacáo de Paulo com Pedro, ocorreu a pro
pósito de questáo disciplinar (observar os alimentos puros e
impuros da Lei de Moisés), nao no tocante á fé. Pedro cedeu a um costume judaico que fora ultrapassado pela Igreja. Isto, de um Jado, mostra a fraqueza de Pedro (Jesús quis escolher um homem igual aos outros, porque é Jesús quem santifica mediante os homens escolhidos). De outro lado, o incidente
revela a autoridade de Pedro; o exemplo deste era táo signifi cativo que podia induzir os discípulos á mesma prática.
Estas consideracóes revelam a ineficiéncia das hipóteses citadas pelo Prof. Luciano Martins no artigo em foco. 2.5.
Jesús e a ressurreicáo
O inciso relativo á ressurreigáo, no trabalho que estamos analisando, é assaz falho em suas afirmacóes. 1. Quem assevera que «a crenca na ressurreigáo dos mortos isó surgiu no judaismo cerca de cento e sessenta anos depois de Cristo», ignora por completo as Escrituras judaicas. Com efeito; estas apregoavam com clareza nos séculos II e I antes de Cristo a ressurreicáo dos defuntos. Tenham-ee em vista: — 413 —
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Dn 12,2s: «Mullos dos que dormem no país do pó acordaráo, uns para a vida eterna, e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os sabios resplandecerao como o esplendor do firmamento; e os que
tornoram justos a muitos, brilharáo como as estrelas por toda a eternidade».
2Mc 7,9: «Estando prestes a dar o último suspiro, disse (o mártir macabeu): 'Tu, execrável como és, nos tiras a vida presente,
mas o Rei do universo nos ressuscitará para a vida eterna, pois morreremos por fidelidade as suas leis».
2Me 7,14: «Quase a expirar, disse outro dos irmáos macabeus: 'Felizes os que morrem pela máo dos homens, conservando em Deus a esperanca de serem ressuscitados por Ele. Quanto a ti, nao terás a ressurreícáo para a vida' ».
Donde se vé que já no sáculo II a.C. a crenga no cheol
(regiáo subterránea, em que os mortos se encontrariam incons
cientes depois da morte) tinha cedido a crenga na ressurreicáo dos mortos.
2. Quanto a ressurreigáo de Jesús, o testemunho mais eloqüente é o que dá Sao Paulo em ICor 15,1-8. Eis a passagem em tradugáo literal: 1 «Faeo-vos conhecer, irmáos, o Evangelho que vos preguei, o
mesmo que vos recebestes e no qual permanecéis firmes.
2 Por ele
também seréis salvos, se o conservardes tal como vo-lo preguei... a
menos que nao tenha fundamento a vossa fé. 3 Transmiti-vos, antes de tudo, aquilo que eu mesmo recebi, a saber: que Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras, 4 e que foi sepultado
e que ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras
5 e que apareceu a Cefas, depois aos doze. 6 Posteriormente apareceu, de urna vez, a mais de quinhentos
irmáos, dos quais o maior parte vive até ho¡e, alguns, porém, .¡á morreram.
7 Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os Apostólo». • Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a un»,, abortivo».
— 414 —
«REVOLUQAO NA IGREJA?»
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Estes dizeres sao de época muito antiga ou do sexto dece nio do século I (56/57); pouco mais de vinte anos apenas os separam da Ascensáo de Jesús (o que Rudolf Bultmann, o pro tagonista da «desmitizagáo», nao póe em dúvida). Referem-se á pregagáo que Sao Paulo realizou em Corinto entre os anos
de 50 e 52; nessa época, o Apostólo entregou aos fiéis as ensinamentos que lhe haviam sido anteriormente entregues. E quando recebeu Paulo tais ensinamentos?
— Ou por ocasiáo da sua conversáo, que se deu aproxi madamente no ano de 35, ou no ensejo de sua visita a Jerusalém, que teve lugar em 38, ou, ao mais tardar, por volta do ano de 40.
Observe-se agora o estilo do texto de ICor 15,3-8: as fra ses sao curtas, incisivas, dispostas segundo um paralelismo que lhes comunica um ritmo notável. Abstragáo feita dos w. 6 e 8, dir-se-ia que se trata de fórmulas estereotípicas, forjadas pelo ensinamento oral e destinadas a ser freqüentemente repetidas. Nesses versículos encontram-se varias expressóes que nao ocorrem em outras cartas de Sao Paulo: assim «conforme as Es crituras», «no terceiro dia», «aos doze», «apareceu» (expressáo que só ocorre sob a pena de Sao Paulo num hiño citado pelo Apostólo em lTm 3,16).
Estas indicagóes dáo a ver que Sao Paulo em ICor 15,3-8 reproduz urna fórmula de fé que ele mesmo recebeu já defini tivamente redigida poucos anos (dois, cinco, oito anos?) após a Ascensáo do Senhor Jesús. O v. 6, quebrando o ritmo do conjunto, talvez tenha sido introduzido posteriormente; quanto ao v. 8, é por certo urna noticia pessoal que Sao Paulo acrescenta ao bloco.
Vé-se, pois, que, desde os primeiros anos de pregagáo do Evangelho, já existia entre os fiéis urna profissáo de fé na ressurreigáo de Cristo formulada em frases breves e pregnan-
tes; tais frases eram transmitidas como expressóes exatas da mensagem dos Apostólos.
Ora essa fórmula de fé antiqüissima professa a ressurrei
gáo corpórea de Cristo como realidade histórica.
Para a com-
provar, havia testemunhas oculares, das quais, diz Sao Paulo, multas ainda viviam vinte e poucos anos após a ressurreigáo do Senhor. — 415 —
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
Tal depoimento de primeira hora, concebido e transmitido pelos discípulos ¡mediatos do Senhor, já seria argumento sufi ciente para remover qualquer teoría tendente a desvirtuar a fé na ressurreigáo corporal de Cristo. Esta fé nao surgiu tar díamente na historia das primeiras comunidades cristas, mas é o eco direto da missáo de Cristo acompanhada dia a dia pelos Apostólos.
Bultmann mesmo conhece a forga demonstrativa de ICor 15,3-8; julga, porém, que Sao Paulo, ao redigir tal passagem, foi incoerente consigo mesmo: «Só posso compreender o texto (ICor 15,3-8) como tentativa de
apresentar a ressurreicáo como um fato objetivo, merecedor de fé. Apenas posso dizer que Paulo, levado por sua apologética, caiu em cofitradicao consigo mesmo»
(Glauben
und Verstehen
I.
TObingen
1964, 54sJ.
A explicagáo de Bultmann é gratuita e inspirada por preconceitos.
Notemos também que os Apostólos e discípulos, após a Paixáo e morte de Jesús, nao tinham condigóes psicológicas para imaginar a resBurreicáo do Senhor; ao contrario, haviam caído no desánimo e estavam prestes a capitular por completo; chegaram mesmo a resistir as prímeiras noticias de que Jesús havia ressuscitado. Esta realidade bem evidencia quáo inverossimil, ou mesmo falsa, é a hipótese de que hajam conce
bido visóes subjetivas do Ressuscitado e forjado narracóes
fantasistas de suas aparigóes.
A tradigáo do sepulcro vazio é muito importante, como realidade histórica, nao só porque póe em relevo a vitória do ser humano corpóreo sobre a morte, mas também porque sig nifica que Jesús abriu as portas da prisáo da morte e deu inicio a nova fase da historia. Nao há motivos exegéticos ou científicos para negar tal tradigáo, que é aceita por bons crí ticos. O Evangelho segundo Mateus revela como os judeus, perplexos perante o fato do sepulcro vazio, procuraram dar•lhe urna explicagáo mentirosa; cf. Mt 28,11-15.
— 416 —
«REVOLUCÁO NA IGREJA?»
3.
65
CONCLUSÁO
Os dados até aqui propostos podem ajudar o leitor a compreender que fundamento tenha a apregoada «revolugáo cultu ral da Igreja». Vé-se que se trata de expressáo forjada por quem pouco conhece a Igreja. Esta continua a professar a fé em Jesús Cristo, Deus feito homem; Ele, por sua morte e res-
Burreicáo, nos abriu as portas da vida eterna, que os homens recebem desde já na Igreja instituida pelo mesmo Cristo.
O fato de que a Igreja hoje muito se interessa pela justa ordem social, nao é algo de revolucionario, mas decorre simplesmente dos principios éticos do Evangelho. O Reino de Deus, embora seja escatológico, nao é algo de meramente futuro, mas já comeca na presente ordem de coisas, que por
isto deve ser a traducáo concreta dos ditames do Evangelho.
Por conseguirte, a participacáo da Igreja na construcáo de urna sociedade justa tem em vista únicamente salvaguardar e promover os valores éticos, sem interferencia em questóes
técnicas de economía, administracáo, política, etc. Nao há dúvida, a agáo da Igreja no setor social intensificou-se nos últi mos decenios; isto nao se deve a pretensa reviravolta interior, mas únicamente ao recrudescimento dos problemas humanos em nossos tempos.
A Igreja sente-se obrigada a interessar-se
por tais questóes, sem, porém, esquecer a sua tarefa primaria de anunciar aos homens o Evangelho em toda a sua amplidáo. Ver a propósito as pp. 427-434 deste fascículo.
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDENCIA Vocé pode comegar quando quiser. Receberá sucessivamente as ligóes com um questionário. As suas respostas seráo corrigidas e devolvidas. No fim do Curso, receberá um certi ficado da Escola de Fé e Catequese «Mater Ecclesiae». Primeira etapa (doze licóes): Cr$ 2.000,00 (em cheque, se possível, para «Curso Bíblico»). Faga sua inscrigáo enviando nome e enderego para CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDENCIA, Caixa postal 1362, 20001 — Rio de Janeiro (RJ). — 417 —
Um livro ponderado:
" Pode um Cristao ser Marxista ?" por Urbano Zilles
Em súrtese: O Pe. Urbano Zilles, professor da PUC-RS, considera nove pontos em que Cristianismo e marxismo se delrontam, mostrando a total incompatibilidade entre um e outro. O marxismo seduz porque propóc um cedo humanismo, visando a libertar o homem da exploracáo e da escravidáo. Todavia, por seus principios filosóficos materialistas e ateus, o marxismo é inepto para realizar esse programa. So leva o homem a nova forma de exploragáo e escravidao por parte do Estado absolutista e capita lista. Por Isto o Cristianismo censura o marxismo por nao ser suficiente mente humanista ou por nao reconhecer o segredo da plena realizacáo do homem: "Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coracáo enquanto nao repousa em Ti". O imanentismo materialista do comunismo
é a mals forte bofetada na face do homem Infinito!
*
feito para
o Absoluto e
o
*
O Prof. Pe. Urbano Zilles, da PUC-RS, acaba de publi car um livro sobre Cristianismo e marxismo', que merece atengáo. Estuda de maneira sistemática os pontos em que cris-
táos e marxistas se defrontam entre si (religiáo, trabalho, humanismo, salvagáo, verdade...) e concluí nao haver conciliacáo entre as duas cosmovisóes. Esta tese nao é nova; ao
contrario, tem ¡sido freqüentemente afirmada pelo magisterio da Igreja e por abalizados pensadores cristáos; todavia ouvem-se, de vez em quando, vozes de cristáos que se dizem marxistas e fazem a apología da sua posigáo.
Eis por que nos voltaremos com especial interesse para o livro em foco, do qual destacaremos alguns tópicos mais rele vantes.
i ZILLES, U., Pode um cristao ser marxista? — Livraria Editora Acadé mica, Porto Alegre 1984.
— 418 —
«PODE UM CRISTAO SER MARXISTA?»
<J7
CRISTÁO E MARXISTA? Sao varias as frentes de divergencia entre cristáos e marxistas. A mais fundamental é a que ocorre entre
1.
Materialismo ateu e visao crista
1. Marx professa o monismo materialista: «o real é iden tificado com a materia, e o espiritual torna-se sinónimo de ficQáo» (p. 17). «O que existe, é a materia eterna, incriada, indestrutivel, sempre em movimento. Tudo se explica pela dialética da materia. Torna-se absurdo recorrer a hipóteses inverificáveis, como, por exemplo, Deus» (p. 17).
Pergunta Zules: «Nao é o materialismo dialético urna especie de metafísica de tipo panteísta? Nao se trata de urna laicizacáo teológica, que atribuí
O ateísmo está implícito em tais proposigóes do marxismo. A religiáo encarna urna ilusáo; ela enriquece a Deus para em pobrecer o homem. Por isto o marxismo ortodoxo propóe a luta contra a religiáo até aniquilá-la; em conseqüéncia, nao se pode falar de «marxista cristáo». 2. Ao contrario, o Cristianismo professa que o mundo material foi criado por Deus (nao necessariamente em seis dias de vinte e quatro horas) e é chamado a regressar a Deus. «Neste universo material, o homem é urna unidade composta de materia e espirito. Pelo seu corpo, faz parte do mundo, e
o mundo material faz parte dele. Pelo espirito é capaz de erguer-se a Deus. No homem encontram-se Deus e mundo, tempo e eternidade, materia e espirito...» (p. 22).
A materia nao tem sentido em si. Aceña para Deus, que nela e através déla atua. Na ressurreigáo de Jesús a materia participa da transfiguragáo; nos sacramentos ela se torna canal
da grasa para o homem.
Cabe ao homem orientar o mundo
— 419 —
68
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 276/1984
material criado por Deus e transformá-lo através do trabalho pessoal e comunitario. O Evangelho ensina que o homem só se realiza plenamente transcendendo a si mesmo para perder-se em Deus. Dá-se a Deus dando-se ao próximo. Donde se vé que crer em Deus nao é renegar o homem; antes, liberta-o do efémero, orientando-o para o Infinito. Vé-se também que o homem nao se realiza plenamente senáo em
Deus.
2
A Religíáo
1. Hoje em dia fala-se de «cristáos marxistas», nao, porém, de «marxistas cristáos». O marxismo rejeitou a religiáo como sendo «opio do povo» ou «consolagáo procurada pelo
povo porque nao ousa a revolta e desconhece o caminho vitória» (p. 25).
da
«O juízo sobre a religiáo é que caracteriza a ortodoxia marxista. Quem se converteu ao ateísmo marxista, converteu-se realmente ao marxismo. No momento em que algo mu-
dasse quanto á concepcáo de religiáo, mudaría profundamente
o marxismo»
(p. 27).
Todavía o marxismo assume um caráter messiánico prometendo urna nova sociedade e urna humanidade regenerada mediante o sacrificio do proletariado, que se imola em prol do bem comum; Marx transfere para o proletariado os predicados do Messias. Assim o marxismo torna-se um substituto da reli giáo. «Enquanto a religiáo pede a obediencia a homens que representam Deus, o marxismo exige a obediencia a homens que representam o homem» (p. 56).
2.
Para o Cristianismo, a religiáo é o relacionamento do
homem com Deus, que só tende a dignificar o homem e torna-lo mais eficiente construtor do mundo visível. Negar Deus significa expor o homem ao dominio do próprio homem. «Provavelmente nao se teria chegado á formulagáo de direitos hu manos sem o Cristianismo» (p. 46).
É também a crenga em Deus que dá sentido á vida do homem na térra. Este sabe que luta e sofre com esperanga de colher em outra vida os frutos que ele nao colhe na vida — 420 —
-PODE UM CRISTAO SER MARXISTA?*
69
presente. «O homem sabe que vive para a morte. Por isto esta vida so adqmre sentido se a morte tiver sentido E quaí
o sentido da morte numa concepgáo marxista?» (p 51) O marxismo «deixa insatisfeitas as esperangas mais íntimas' da alma humana, para considerar a pessoa apenas sob o aspecto de sua fungáo de agente de forgas sociais» (p. 57).
Ademáis: «se a religiáo é urna ideología que sempre tem servido as classes dominantes, como se explica que o Cristia nismo tenha permanecido apesar das mudangas das condicóes económicas ñas quais nasceu?»
(p. 30).
«O marxismo prometeu tornar supérflua a religiáo Esta
promessa talvez Ihe seja de mais difícil execucao do que subs
tituir a ordem económica e social do capitalismo por outra meIhor. Nos países em que o regime comunista já se estabeleceu a religiáo talvez seja a única grandeza do 'espirito objetivo' que aínda existe, ou seja, que ele nao conseguiu eliminar nem assimilar até hoje. Tudo isto pode indicar que o tempo da reli
giáo aínda nao passou» (p. 31). 3.
Humanismo
1.
O marxismo propóe «um humanismo fechado- o ho
mem e a sua própria luz, o seu fim único e último, o único
artífice da sua felicidade e do seu destino; em resumo é a norma absoluta do seu pensar, da sua vontade e do seu' agir
e a medida de todos os valores» (p. 23).
Propóe também um humanismo militante e revolucionario chamado a travar a luta entre explorados e exploradores nó campo económico; a luta entre o bem e o mal coincide com
aluta entre as duas classes. As revolugóes, mesmo violentas, sao urna legitima defesa dos escravos contra a violencia dos
senhores (cf. pp. 49s).
«No marxismo os homens devem consolar-se com um futuro melhor (= a sociedade regenerada), que eles jamáis alcanga-
rao. É esta realmente urna perspectiva humana. O homem individual e totalmente sem importancia» (p. 58).
2. O Cristianismo reconhece a dignidade da pessoa hu mana índependentemente das condigóes de raga, classe, cultura ou fortuna. A pessoa humana tem valor incomparável em si — 421 —
12
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
mesmo que seja derrotada pela vida, pobre e ignorante
Vale, porque sua vida vem de Deus, do qual é imagem e seme'manga. Esta dignidade, o Estado nao lha pode tirar (cf p 52) «Uma vida fracassada aos olhos deste mundo pode ter valor pessoal, alegría e paz. No malogro e no fracasso humanos de cristo fomos salvos para uma vida nova; nasceu o homem
SSeSSSS ?etda dormita em nós na espera de sua O humanismo cristáo nao é alienante. «Cultiva as virtu des da coragem e da audacia. Os santos cristáos nao foram
nem sao, burgueses tranquilos e acomodados. Alias, o Evangelno de Cristo é apelo á grandeza e ao heroísmo. Por isto o cristao auténtico tem repugnancia á mediocridade.. Nao pactua com o pecado, nem na ordem individual nem na social Reconhecer a Deus como Pai exige reconhecer o semelhan'te como irmao. O cristáo nao se fecha em si mesmo» (p. 52). 4.
A salvacáo
1.
Como forma de humanismo ocidental, o marxismo é
uma doutrina de salvagáo.
A salvagáo que o marxismo oferece, é a progressiva felicidade material numa sociedade sem classes, na qual seráo realizados os ideáis da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Apresenta-se, em outras palavras, como uma forma de «religiáo» perfeita da humanidade e da felicidade. A fim de atingir este objetivo, programa o método da revolugáo vio lenta, para a qual o operariado tem que ser atigado (cf pp. 55s). No fim do processo revolucionario aparecerá o ho
mem novo, comunista, numa sociedade em que nao mais haverá Estado, nem parüdos, nem classes sociais. Por ora «o mal radical, o pecado original é a alienagáo económica» (p. 56) A
salvagáo consiste em libertar o homem da servidáo económica.
2. Quanto ao Cristianismo, ele nao eré que, «mesmo realizando-se a utopia de uma sociedade sem classes, se resolvam todos os problemas humanos. Há formas de alienagáo que independem de melhoras sociais, como é o caso da incoeréncia entre nossos propósitos mais nobres e a fragilidade de nossa conduta moral. Mais: «que importancia teria um moribundo no conjunto da futura humanidade, segundo a concepgáo marxista? Que humanismo é este que nao consegue explicar nem dar sentido á situagáo-limite da doenga e da morte?» (p. 57)7 — 422
«PODE UM CRISTAO SER MARXISTA?»
71
O Cristianismo também ensina que o homem tem seu des tino, em grande parte, ñas próprias máos: o destino eterno
como o temporal. Entretanto também reconhece que nao nos
podemos salvar só com nossas próprias forgas. Afirma que somos salvos pela morte e ressurreicáo de Cristo.
A salvagáo crista pode implicar a capacidade de coexistir com o mal, a doenga e a morte. Ela se realiza mediante a cruz em situacóes difíceis, muitas vezes através do amor aos próprios inimigos. O cristáo sabe que no decorrer da historia deste mundo ele já usufrui do penhor e de elementos da salvacáo definitiva, mas tem consciéncia clara de que a plenitude das respostas aos seus anseios só lhe será dada no fim dos tempos e no encontró face-a-face com o Senhor Deus. 5.
A verdade
1. «Embora o marxismo admita verdades definitivas na matemática, na física e na biología, a verdade nao tem caráter absoluto para um comunista. E isto porque as idéias e as categorías mentáis do homem apenas exprimem as relacóes sociais, contingentes por natureza. As idéias dominantes de urna época sao as da classe dominante. Conclui-se disto que aquilo que hoje se apresenta como verdade universal, segundo o marxismo, nao passa de urna representagáo que a ideología burguesa faz da realidade. Seria inútil querer dialogar com filósofos e cientistas burgueses, porque há um abismo intrans-
ponível entre burgueses e proletarios por haver dois tipos de
consciéncia diferentes. Entre eles nao há principios comuns. Por isto nao há verdade universal, mas só há verdade de classe. Por conclusáo, só há a verdade do Partido» (p. 66). 2. O Cristianismo ensina que existe a verdade objetiva, absoluta, válida para todos os homens, independentemente da respectiva condigno sócio-económica. Para chegar a apreendé-la, o homem tem que se libertar de preconceitos, paixóes, erros de percepcáo ... — o que pode e deve ser feito pro-
gressivamente mediante a colaboracáo de todos os interéssados no conhecimento da verdade.
No plano da. fé, o cristáo sabe que Jesús Cristo é a Ver dade e a Vida (cf. Jo 14,6). Ele incita os seus discípulos a praticar a verdade, convertendo-se do pecado para a ñdelidade a Deus a fim de se tornarem colaboradores de Deus na construcáo do mundo.
— 423 —
72
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
O materialismo histórico teria que ser provado pela prática. Nao pode ser aceito simplesmente como um dogma. Com efeito; observemos o seguinte: confiando na teoría científica de Marx, Engels previu a revolucáo sócio-económica na Ingla terra para breve. Ora esta nao ocorreu até hoje. Através de
toda urna serie de mudangas, perdurou na Inglaterra a con-
tinuidade.
6.
Conclusao
O fecho do livro de Urbano Zilles considera concreta
mente a tese de varios cristáos latino-americanos que desejam conciliar entre si marxismo e Cristianismo.
Comeca, pois, por citar o Documento de Puebla: «Alguns créem possível separar diversos aspectos do marxismo, em particular sua análise. Recordamos com o magisterio pontificio que seria ilusorio e perigoso chegar a esquecer o nexo íntimo que os une radicalmente; aceitar os elementos da análise marxista sem se conhecer suas relacoes com a ideología; entrar na prática da luta de classes e de sua interpretacáo marxista, deixando de perceber o tipo de sociedade totalitaria e violenta a que conduz tal processo» {n* 544).
Na verdade, alguns cristáos, cientes de que o marxismo é visceralmente ateu, em oposigáo ao Cristianismo, pretendem distinguir aspectos do marxismo, a fim de abracar ao menos aqueles que nao impliquem ateísmo; entre estes aspectos, esta ría a análise marxista da sociedade (dividida em opressores e oprimidos, que se digladiam por razóes económicas). Em conseqüéncia, há cristáos que, embora nao aceitem o marxismo na íntegra, adotam o tipo de análise da sociedade proposto pelo marxismo. Ora a tais irmáos quiseram os Bispos em
Puebla, fazendo eco ao S. Padre, dizer que tal distingáo nao é possível; a própria análise marxista da sociedade está im pregnada de ateísmo materialista e leva cada vez mais a este.
«6 curioso nao encontrarmos marxistes cristáos, mas apenas cris
táos que se dizem marxistas. Do ponto de vista do marxismo ortodoxo, é ¡mpossível ser marxista crislao. Primeiro, porque o marxismo é um todo, do qual nao cabe aceitar, por exemplo, a análise sem aceitar o materialismo histórico, o ateísmo, a teoría e a estrategia da luta de classes. Em segundo lugar, porque os marxistas devem ser levados a serio; eles mesmos rejeitam a separacao entre análise, de um lado, e, por outro, a visáo do mundo e os principios de acáo. Por ¡sto*> devemos... reconhecer que nao se pode ser cristáo marxista. Ou
— 424 —
«POPEKUM CRISTAO SER MARXISTA?»
73
al,guém é cristño ou é marxista, pois a»é é ridículo chamar-se marxista
quando na verdade tal pessoa nao pode ser reconhecida como tal pelos próprios marxistas» (pp. 69s).
A seguir, com muita pertinencia, observa o Pe. Zilles: «O que o Cristianismo objeta ao marxismo, nao é ser ele humanista, mas nao o ser suficientemente». O Cristianismo
nao recusa o combate as alienacóes, mas julga que o marxismo nao as combate radicalmente e, por isto, gera novas alienaQóes. O Cristianismo nao se opóe á dialética do senhor e do
escravo, mas julga que o marxismo permanece vítima da mesma. O que o Cristianismo espera do marxismo, é urna
fidelidade mais decidida ao homem todo e a todos os homens Cf. p. 71.
«Alienacáo» neste contexto é a condigáo do homem que sofre exploracáo económica, política, social... e nao se revolta. Ora é claro que o Cristianismo nao aceita tal estado de coisas. Ele prega o respeito ao homem ou o humanismo. — O marxismo também prega seu humanismo; todavía nao consegue
libertar o homem da exploragáo e da escravidáo, pois subor dina os cidadáos aos ditames do Estado capitalista, absolutista e escravizador; o marxismo nao sai da esfera do meramente
humano; por isto nao consegue propor ao homem a resposta cabal; esta só se encontra na transcendencia ou em Deus. Em conseqüéncia, os cristáos podem reconhecer as boas intengóes dos marxistas, mas verificam que sao de todo ineficientes, pois ignoram o segredo do homem sabiamente formulado por S. Agostinho: «Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coragáo enquanto nao repousa em Ti» (Conf. I, 1).
Se o marxismo reconhecesse que o homem nao foi feito para se realizar apenas na materia, teria possibilidade de responder ao homem,... mas já nao seria marxismo! «Caberia analisar mais criticamente as hipóteses e teorías mar
xistas em vez de pressupo-las de maneira dogmatista e como definitiva
mente válidas. Assim, embora seja verdade que os fatores económicos, em qualquer realidade social, sao decisivos, nao sao os únicos. Nunca
foi demonstrado que toda a historia humana, passada e presente,
possa ser reduzida á luta e, muito menos, á luta de classes, no sentido
estrito da palavra. É ingenuo e ridiculo querer compreender toda a realidade social por meio da dialética do senhor e do escravo. Há outras foreas profundas que inspiram e movem a historia. Mesmo que reconhecamos a realidade de que existe a luta de classes, disso nao podemos concluir que a única maneira de superá-la seja a própria luta: a classe operaría contra a classe burguesa» (p. 71).
— 425 —
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Por último, o Pe. Urbano Zilles apregoa urna alternativa crista entre o capitalismo liberal e o marxismo totalitario: «Certamente, o maior desafío do marxismo ao Cristianismo hoje é que os cristáos traduiam, em obras políticas, sua fé e mostr«m que a fé é capaz de produzir o novo e que, vivida, torna-se urna forca libertadora e transformadora nao só das pessoas individuáis, mas também das estruturas sociais e económicas injustas. O caminho é urna conversáo radical dos cristáos na prática. Numa concepcao crista de sociedade, todos deverao ser para cada um (capitalismo) e cada um para todos (socialismo)» (p. 72).
Eis, em síntese, o conteúdo de valioso livro, que merece difusáo, pois certamente contribuirá para levar luzes as men tes e dissipar daninhos equívocos. As intengóes humanistas do marxismo seduzem nao poucos, mas os principios filosóficos que o marxismo adota sao ineptos para satisfazer a tais intenCóes: o imanentismo materialista do comunismo é a mais forte bofetada na face do homem, feito para o Absoluto e o Infinito! Esteváo Betteneourt O.S.B.
ASSINATURA ANUAL PARA 1985
Sendo paga até 31 de dezembro de 1984
Cr$
12.000,00
Cr$
15.000,00
(Válida para todo o ano de 1985)
aendo paga a partir de 1? de Janeiro de 1985
— 426 —
Notas e Comentarios
A seguir, passaremos em revista alguns documentos e fatos de importancia na vida da Igreja de nossos dias.
I.
DOIS PRONUNCIAMENTOS EPISCOPAIS
Na dificii situagáo que a Igreja do Brasil atravessa, é com prazer que registramos os pronunciamentos de dois bispos do Nordeste, regiáo candente, a respeiflb da atuagáo da Igreja
em nosso país. Trata-se de tomadas de posigáo equilibradas e sabias, que passamos a reproduzir.
A primeira se deve ao Sr. Bispo D. Edvaldo Goncalves Amaral, de Parnaíba (Piauí).
1.
QUATRO PONTOS SOBRE CERTA LINHA DE PASTORAL
Hó urna certa linha de pastoral na Igreja, infelizmente hoje muito difundida no Brasil, que exibe características inaceitáveis sob o ponto de vista da auténtica doutrina crista e da reta praxis pastoral. Sao elas: 1) um exagerado horizontalismo — esquecendo a dimensao sobrenatural do homem e omitrndo sistemática e propositadamente toda e qualquer referencia ao destino eterno e aos valores escatológicos da pessoa humana; 2) um pronunciado classismo — fomentando a luta de classes, a viva oposicao entre ricos e pobres, urna exacerbada ¡ustificacáo do pobre (que, segundo alguns, seria bom só pelo fato de ser pobre) com urna conseqüente exclusáo e condenacao do rico (que seria mau só pelo fato de ser rico), chegando a urna verdadeira guerra aos ricos; daí, imqginam urna dicotomía irreconciliável dentro da própria Igreja,
dividindo-a entre Igreja hierárquica e opressores versus Igreja dos oprimidos;
— 427 —
Igreja
Popular,
Igreja
dos
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
3) um reducionismo na interpretacao da Palavra de Deus — selecionando só o que convém á sua ideología e aceitando no ensinamento do Papa Joao Paulo II tSo somente o que corrobora seus
pontos de vista, quando nao chegam ao extremo de acusar o Papa de colaborador do imperialismo americano e atívista contra o socia lismo soviético;
4) um envolvimenro cada vez mais ativo em politica partida ria — com urna indisfarcável aspiracáo á lideranca politica e ao exercício do poder, camuflado, as vezes, em defesa dos direítos da Igreja ou protecao aos pobres e marginalizados. Como conseqüéncia disso. urna crítica irrazoável e sistemática a todos os atos do governo
civil, empenhando-se em manifestacoes de oposicño ao
regime
e
combate aos atuais governantes.
Encontró Diocesano das CEBs. Pornaíba, 15 de ¡ulho de 1984-
Dom Edvaldo Gonealves Amoral Bispo de Parnaíba
2.
O DOCUMENTO DA CNBB SOBRE O NORDESTE
Em maio de 1984, aos Srs. Bispos do Brasil reunidos em Itaici (SP) foi proposto para exame e votagáo um documento referente ao Nordeste, regiáo considerada como desafio á agáo pastoral da Igreja no Brasil. Tal documento apregoa, entre outras coisas, ampia reforma agraria e faz severas criticas as
autoridades civis. O Sr. Bispo de Jequié (BA), D. Cristiano Krapf, em maio de 1984, houve por bem pronunciar-se em carta sobre tal documento. Deste pronunciamento extraímos os seguintes tópicos:
«O documento propóe urna reforma agraria que vise 'qualquer
térra mesmo titulada, seja ociosa, se¡a aproveitada'. Qualquer térra? Será que pretendem fazer reforma agraria até ñas propriedades pequeñas?...
Nao reconhecer a importancia de cada um poder ter algo como
seu, com a possibilidade de progredir com o próprio esforco, seria desconhecer por demais a natureza humana. Será que o fracasso da
coletivizacao forcada na Rússia revolucionaria nao serve de l¡cao?> Mesmo aquela experiencia dos primeiros cristaós que é apresentada — 428 —
NOTAS E COMENTARIOS
77
como vivencia do ideal evangélico de comunhao e participacao (n9 90), nao deu muito certo, a ¡ulgar pelas coletas que Paulo precisou de fazer para eles. Ter tudo em comum funciona muito bem quando todos sao santos. Acontece que o sistema capitalista também funcionario muito bem, se todos fosem santos, se todos colocassem o bem comum ácima de interesses pessoais. Se conseguíssemos que todos os católicos vives:em o ideal evangélico do amor, nenhuma estrutura
injusta resistiría. Por outro lado, sem amor nao haverá ¡ustica social. Poderá haver, no máximo- un certo nivelamento igualitario imposto por um regime totalitario a partir de urna revolucao violenta.
Para que servem as queixas contra um 'capitalismo selvagem', que seria a última raiz de todos os males, através da política do governo? O problema fundamental nao está no sistema. O problema
está no homem. É o homem que faz o sistema.
É ai que está a nossa
tarefa: formar cristaos auténticos que amem ao próximo mais que ao
dinheiro. As estruturas e as leis de urna comunídade democrática serao
justas e seráo observadas na medida em que nela viverem e atuarem pessoas justas e dedicadas ao bem comum.
Suponho que a desapropriacáo seja proposta apenas a partir de certo tamanho: dividir as propriedades grandes em propiedades menores. Com o tempo, os mais esforeados iriam comprar térras de vizinhos que nao tivessem capacidade suficiente para superar as dificuldades ou simplesmente preferissem o dinheiro da venda e a vida na cidade. Mais tarde, seria preciso fazer outra reforma agraria.. . O documento sobre o Nordeste enxerga somente aspectos nega tivos em tudo o que o governo faz: barragens, eletrificacáo, industria-
lízacao, política agraria, programas de emergencia. Procura convencer que o problema da seca em si nao seria muito grave, que um pouco de boa vontade do governo seria o suficiente para resolver tudo. Minimiza as dificuldades climáticas para aumentar a culpa do governo e de todos os que tém alguma coisa-
'Técnicos nos ajudaram na leitura e compreensao da historia vivida e experimentada pelo povo nordestino. ..' (n° 7). Acho que
devemos ter cuidado com a 'ojuda' de 'técnicos'. Especialmente quando estes, além de serem técnicos, tém urna opcao política muito definida. Será que a maneira de encaminhar o assunto foi a mais adequada para crue os Bispos que nao ccnhecem o Nordeste por experiencia direta tivessem urna ¡nformacao objetiva? Foi convidado um técnico do IBASE, formado em sociología e ciencia política. Corrípreendo que, para ele, o problema do Nordeste fique reduzido a um problema político. Além
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
de ouvir este 'técnico'' recebemos um texto preparado pelo mesmo I BASE que tem o propósito declarado de oferecer uma critica da informacáo oficial.
Acho que devemos conhecer estas criticas, mas ouvir também a
defesa do criticado, para uma informacáo mais objetiva. A primeira parte do documento, mesmo com as modificacoes que recebeu, me parece a defesa de uma tese. Numa formulacao extrema, mas dentro da Hnha geral do texto, a tese seria esta: o governo brasileiro quer aproveitar-se da seca para acabar com a raca dos nordestinos. A palavra genocidio talvez possa caber numa polémica de oposigáo sistemática que é feita numa linguagem de contestacáo política, mas nao num documento da CNBB sobre o Nordeste.
Audiatur et altera pars!
Se queremos atribuir-nos a funcáo de
¡uízes sobre as acoes e até sobre as intencoes de alguém, nao podemos ouvir apenas as acusacóes. Antes de pronunciar a sentenca, devíamos ouvir a defesa do acusado. A acusacao é gravíssima: genocidio. O acusado principal, no contexto do documento, é a autoridade civil, á
sua maneira tao legítimamente constituida como a autoridade eclesiás tica... Proponho que deixemos a tarefa de fiscalizar a atuacao do governo aos partidos de oposicao, ao poder ¡udiciário, aos sindicatos
e as instituicóes que financiam os projetos e querem ver o seu dinheiro bem aplicado. A situa;áo do Nordeste é grave demais para polémicas e provocacoes da nossa parte.
... Em vez de combater os projetos do governo, por .que nao os apoiar nos seus aspectos positivos, e oferecer entao a nossa colabo rado crítica para superar os aspectos negativos, dentro de uma preocupando maior com a ¡ustica social e com a participacáo de todos?
Está na hora de convocar todo o povo brasileiro, e especialmente todo o povo nordestino a unir-se num esforco maior para superar a adversidade do clima e aprender a conviver com a seca.
O governo tem uma missáo a cumprir, e a Igreja também. A missao do governo se refere mais diretamente as estruturas da sociedade; a missáo da Igreja se refere mais diretamente as pessoas... Haverá estruturas justas sem homens justos?
Está ai o projeto Nordeste. Vamos ficar numa atitude negativa, com tnanifestacoes de desconfianza, ceticismo, desvalorizacao, para depois jogar pedras, se for mais um 'fracasso'? Nao estaría na hora
de somar e multiplicar, em vez de diminuir e dividir? O entrosamento*>
entre a forca material dos bilhóes de dólares e a forca espiritual da fé
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NOTAS E COMENTARIOS
e das organizacóes comunitarias seria muito importante para o éxito do projeto. Se o povo nordestino nao assumir este projeto como seu, será apenas mais uma esmola, uma esmola maior do que as outras. .. Nao quero impor a minha maneira de ver as coisas.
Mas nao
posso aceitar que uma análise da realidade que explica tudo a partir de determinados principios de interpretacáo seja apresentada como se fosse doutrina da Igreja. Nao aceito, por exemplo, o preconceito que nao admite a possibilidade de boa vontade em pessoas que tém algum dinheiro ou algum poder, preconceito que leva a encarar tudo numa perspectiva de luta de classes. Já me parece demais que uma análise da realidade baseada em pressupostos ideológicos tenha a pretensáo de apresentar-se como científica. Ainda querem dar-lhe a qualificacao de teológica. Dentro dos mesmos principios, qualquer um que tiver a ousadia de manifestar alguma opiniao diferente, é chamado de 'com prometido com o sistema', 'conservador', 'reacionário' ou, pelo menos, 'sem coragem para falar'; mas nem por isto vou deíxar de dizer o que pensó.. .
Nossa diocese fica nos limites do polígono da seca. Meus conhesao poucos, mas sao suficientes para nao assinar um documento que considera todos os propietarios como opressores e exploradores, aproveitadores da seca. Conheco proprietários que estáo passando fome. Reconheco que outros bispos conhccem melhor o Nordeste. Mas poucos tém a experiencia direta de cuidar pessoalmente de um pedaco de térra. Talvez se¡a por isto que enxergam dificuldades apenas do lado dos trabalhadores sem térra. cimentos
Temos um pedaco de térra.
Acoslumado a criticar os fazendeiros
que nao plantam e nao oferecem trabalho, nao podía deixar de dar
um exemplo de uso intensivo da térra, oferecendo trabalho a alguns dos trabalhadores desempregados. Mas o exemplo ainda nao convenceu ninguém.
Mesmo pagando apenas o salario mínimo, estamos trabalhando com prejuízo. Se dependéssemos apenas da producao da roca, teríamos que parar e passar fome, ¡unto com os trabalhadores, nao pelas causas apontadas no documento, mas simplesmente por causa da ¡rregularidade das chuvas, e porque ainda nao aprendemos a conviver com este clima. Estamos fazendo a nossa parte, um trabalho pioneiro, uma contribuicao muito maior que a simples distribuicao de térra. Entre outros, demos trabalho a um fazendeiro que tem uma área maior do que a nossa, para que pudesse aaüentar sem precisar de vender a sua propriedade. Com a chuva que caiu em dezembro,
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ele fo¡ plantar feijao e milho na térra dele- Com mais tres meses sem chuva, outra vez nao colheu nada. Veio pedir mais uns dias de trabalho, mas a partir do Carnaval procurou refugio na cachaca, plorando ainda mais a sitoacao.
Como é que vou as'inar um documento que diz «... o Nordeste e a seca sao urna producao política»
(n° 29)?
Se a culpa for da
política nacional, tenho uma pergunta: será que, para as outras regioes do Brasil, a política é melhor? Se for a política regional, o problema está no homem nordestino. . . Existe a térra a distribuir, dirao. Se o problema fundamental fosse a distribuicáo da térra, a térra nao seria vendida a preco de banana. Por aquí a térra custa menos que o trabalho de desmatamento. O problema menor é tornar económicamente viável a pequeña propriedade no sertao. no sentido de que o pequeño proprietário possa conseguir com seu esforco um nivel de vida razoável. . .
Em tempos difíceis existe a tendencia de atribuir a culpa toda ao governo. Será que é necessário empenhar o peso da autoridade
eclesiástica para reforcar ainda mais esta tendencia? Estamos na iminéncia de agitacao social e política, com oposicao sistemática ao governo, crítica radical do sistema, contestacao do regime. Extremistas de varias orientacóes procuraráo tirar proveito do descontentamente popular para criar confusáo.
Tudo isto faz parte da democracia, mas
será que faz parte da nossa missao episcopal botar mais lenha na fogueira?
Documentos como este sobre o Nordeste me parecem um fator de divisao, dificultando a nossa missao específica de formadores de
pessoas na fé.
Em vez de criar boa vontade, provocam reaedes de
defesa tíos que se sentem atingidos por acusacoes injustas, e reacoes de odio nos outros, impedindo a procura de solucoes construtivas, que
só podem ser conseguidas com a colaboracao de todos que tém alguma
boa vontade.
Pronunciamentos que fomentan) a luta de classes e
atrapalham o entendimento entre todos os brasileiros, já os temos de
sobra. O que falta, é um projeto económico-político-social capaz de despertar o entusiasmo de todo o povo para a tarefa comum de construir uma sociedade mais justa, mais humana, mais participada,
mais fraterna.
Falta motivacáo religiosa auténtica. Muitos entendem a religiáo como meio para conseguir vantagens para esta vida, procurando nela. apenas milagres para remediar seus males ou argumentos para a luta
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NOTAS E COMENTARIOS
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ideológica, seja para continuar a dominar, seja para comecar por derrubar. Os extremistas, tanto da direita como da esquerda, querem instrumentalizar a religiao, em favor ou contra o sistema e as estruturas. Apresentam um falso dilema entre revolucao e apoio á: injusticas. Nossa tarefa no plano social é convocar a todos ao trabalho pela justica social, pelo bem comum. Todos precisam de entender que estamos lodos no mesmo barco, uns precisando dos outros. Somente com a cooperando lolidária de todas as classes, o Brasil poderá dar ao mundo o exemplo de urna transformacáo das estruturas sem a violencia de urna guerra civil, o exemplo de urna verdadeira reforma social sem os horrores de urna revolucao sangrenta.
Sonho? Utopia? Imposdvel? Depende da capacidade da Igreja na formacáo da fé como fonte de amor. Se a pregagao que anuncia o Evangelho do amor nao consegue levar os homens a viver como irmaos, o que vai conseguir urna pregacao que denuncia e acusa numa linguagem de odio? Transformar o mundo, sim, mas pelo caminho do amor, pelo caminho apontado e seguido pelo nosso Mestre. Jequié, maio de 1984.
Cristiano Krapf»
3.
A PALAVRA DO PAPA
Os pronunciamentos dos Srs. Bispos atrás citados nao sao mais do que o eco fiel da palavra do Santo Padre Joáo Paulo n. Este tem lembrado a todos o genuino caráter da missáo da Igreja em meio as condicóes socio-económicas que afetam as populagóes latino-americanos. Apraz-nos citar aqui trechos da famosa carta de S. Santidade dirigida aos Srs. Bispos do Brasil em 10 de dezembro de 1980, depois da visita do Pontífice ao nosso país:
«É certo .que a missao da lareja nao se confina ñas atividades de culto e no interior dos templos. Desde os tempos apostólicos, e
certamente inspirada na acño do próprio Jesús, ela sempre procurou inserir-se na comunidade humana, sempre se debrugou sobre a humani-
dade< á imagem do bom samaritano, para conhecer suas necessidades, curar suas feridas, encorajar seus esforcos e apoiar suas iniciativas.
Cada vez que, em q-ualquer nivel, um setor de humanidade se empenhou por crescer em qualidade e valor humano, por melhorar suas condicóes, por promover-se, a lgre¡a ¡ulgou seu dever estar próxima e colaborar:
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
esta dimensao é hoje mais sentida do que nunca.
E no continente
latino-americano e no nosso Brasil talvez mais do que em qualquer autro quadrante no mundo, por causa das situacoes inegavelmente graves em que vivem vossos povos e por causa do papel histórico que a Igreja desempenha em vossos países.
Mas nao é menos certo que a Igreja perdería sua identidade mais profunda — e, com a identidade, a sua credibilidade e a sua'eficacia verdadeira em todos os campos —, se sua legítima atencao as questóes sociais a disrraisse daquela missáo cssencialmente religiosa que nao é primordialmente a construcao de um mundo material perfeito, mas a edificacáo do Reino que comeca aquí para manifestar-se plenamente na Parusia. Muitas ourras instancias tém o objetivo, o dever, e a capa»
cidade de velar pelo bem-estar das pessoas, pelo equilibrio social, pela promocáo da ¡ustfca; a Igreja nao se esquiva á sua participagáo nessa tarefa e assume com freqüéncia mesmo atividades de suplencia. Nao o pode fazer. porém, em detrimento da missáo que é sua e que nenhuma outra instancia realizará se ela nao o fizer: transmitir como depositaría auténtica a Palavra revelada, anunciar o Absoluto de Deus, pregar o nome, o misterio, a pessoa de Jesús Cristo; proclamar as bem-aventurancas e os valores evangélicos e convidar á conversáo, comunicar aos homens o misterio da Grata de Deus nos sacramentos da fé e consolidar esta fé — em urna palavra, evangelizar e, evangeli zando, construir o Reino de Deus.
A Igreja cometería urna traicao ao
horneen, se, com as melhores intencoes, Ihe oferecesse bem-estar social, mas Ihe sonegasse ou Ihe desse escassamente aquilo a que mais aspira (por vezes até sem o perceber), aquilo a que tem direito, que espera
da Igreja e que só ela Ihe pode dar.
Mais grave seria a perda da identidade se a pretexto de atuar na sociedade, a Igreja se deixasse dominar por contingencias políticas. se tornasse instrumento de grupos ou pusesse seus programas pastorais, seus movimentos e suas comunidades á disposicáo ou ao servico de organizacoes partidarias» (n9 1).
Palavras táo nítidas como as de tais pastores dispensam comentarios.
II.
O CASAMENTO DA PRINCESA CAROLINA DE MONACO
A imprensa langou repetidamente no mes de julho pp. a noticia de que a Princesa Carolina de Monaco obteve a declaragáo de nulidade do seu matrimonio com Philippe Junot A — 434 _
NOTAS E COMENTARIOS
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propósito já foi publicado documentado artigo em PR 270/1983, pp. 386-394, onde se esclarecía a situagáo até a data em pauta. Diante dos rumores lancados recentemente pela imprensa mun dial, a Santa Sé interveio com um desmentido, cujo teor vai aqui transmitido a partir de uma nota do Boletim SNOP publi cado pelos Bispos da Franca na data de 18/07/84, p. 5Desmentido do porta-voz do Vaticano á noticia da declarado
de nulidade do primeiro casamento de Carolina de Monaco (12/07/84) O porta-voz do Vaticano, Padre Romeo Panciroli, desmentiu categóricamente, quinta-feira 12/07 p.p., a noticia difundida por um periódico francés segundo o qual o Papa teria recebido um relatarlo do Tribunal da Rota favorável á declaracáo de nulidade do primeiro casamento de Carolina de Monaco com Philippe Junot-
O Padre Pan
ciroli declarou que esta noticia é falsa e destituida de qualquer funda mento- A Princesa Carolina apresentou, há tres anos, um pedido de nulidade do seu primeiro casamento ao Tribunal da Sagrada Rota. Com a aquiescencia do Papa, este Tribunal confiou o caso em 1982 a uma comissáo especial de tres magistrados: Mons. José Miguel Pinto Gómez, Mons. Francesco Bruno e Mons. Bemard de Lanversin. O processo nao está terminado e a publicacao dos resultados nao está, de modo nenhum, próxima».
Esta noticia, de fonte auténtica, é apta a dissipar equí vocos.
III.
RELACÓES MATRIMONIÁIS E PRAZER
Noticiando a visita do S. Padre Joáo Paulo II á Suica em junho pp., a imprensa brasileira publicou, entre outras, a seguinte mánchete: «Pontífice condena sexo por prazer, mesmo no casamento» — o que suscitou numerosas interrogacóes ao
público ledor. Na verdade, o Papa nada de novo quis dizer em relacáo á clássica doutrina da Igreja. Com efeito, apenas lembrou que o amor humano é, por si, unitivo e fecundo, con forme afirmara Paulo VI na encíclica «Humanae Vitae» n« 12. Em conseqüéncia, dissociar da fecundidade o prazer é antina tural. Eis as palavras de Paulo VI:
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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS^ 27G/1984
«Quem refletir bem, deverá reconhecer que um aro de amor recí
proco que pre¡ud¡que a disponibilidade para transmitir a vida que
Deus Criador nele ¡nseriu, está em contradicho com o designio consti
tutivo do casamento e com a vontade do Autor da vida. Usar deste dom divino destruindo o seu significado e a sua finalidade. ainda que só parcialmente, é estar em contradicao com a natureza do homem bem como com a da mulher e a da sua relacao mais íntima; e, por
conseguinte, é estar em contradicao com o plano de Deus e com a sua
vontade».
Nada se opoe, porém, a que um casal tenha relagóes con jugáis esteréis (se as deseja), nos días em que a própria natu reza é infecunda. Em tais casos, os esposos nao contradizem a ordem instituida por Deus, mas usufruem da possibilidade de um relacionamento tal como a natureza mesma ou o Cria dor o propiciam.
IV.
PREMIO NOBEL DE TEOLOGÍA: DECLARARES
O Prof. Hans Urs von Balthasar recebeu das máos do S. Padre Joáo Paulo II aos 23/06/84 um premio da Fundacáo Paulo VI, que é tido como equivalente, na Igreja, ao Premio Nobel Mundial. Ora, segundo a imprensa, o Prof. Pe. von Balthasar fez declaracóes que se prestaram a mal-entendidos. Dai o necessário esclarecimento ñas linhas que se seguem.
IV.
O PREMIO NOBEL DE TEOLOGÍA:
DECLARARES
Segundo o jornal O GLOBO, edicáo de 26/06/84, o Pe. Hans Urs von Balthasar declarou que «nunca existiu urna razáo teológica para o celibato dos Religiosos. Acrescentou, porém,
que, em sua opiniáo, o Vaticano nao deverá alterar as normas
sobre o celibato porque a mente de um padre católico está completamente ligada á acto pastoral sobre o seu rebanho». Estas palavras nao significam que o Prof. von Balthasar
seja contrario ao celibato sacerdotal. Apenas lembram que o
celibato nao está ligado ao sacramento da Ordem por razóes dogmáticas; há mesmo padres católicos de rito oriental que sao casados; há outras excegóes apontadas á p. 385s deste fas cículo. O celibato se deve ao desejo de mais íntima configu», ragao do sacerdote a Cristo, que nao constituiu familia; essa — 436 —
LIVROS E ESTANTE
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maior configuracáo implica grandes vantagens para a vida espiritual do padre, ao mesmo tempo que lhe assegura a liberdade para o desempenhp de sua missáo sacerdotal. — O Prof. Pe. Hans Urs von Balthasar reconhece precisamente que o celi bato tem sua plena razáo de ser e nao será abolido na Igreja latina, porque o padre está inteiramente voltado para as suas tarefas pastorais e, por conseguinte, necessita da liberdade que
o celibato lhe propicia.
2.
Inferno
O mesmo Prof. von Balthasar terá declarado que o inferno está vazio... Notamos que, com isto, o mestre nao negou a existencia do inferno, fundamentada no testemunho da S. Es
critura; cf. Mt 13,24-30.47-50; 25,33-46; Le 16,19-31... Mas Hans Urs von Balthasar quis externar uma opiniáo pessoal a respeito da sorte postuma dos homens, julgando que ninguém perece definitivamente. Tal ponto de vista é estritamente pes soal; a Igreja nao tem doutrina explícita e definida a tal respeito.
livros em estante Teología e Prática, Teología do Político e suas mediacSes, por Clodovis Boff. Publicagóes CID, Teologia/15. — Ed. Vo-
zes, Petrópolis 1978, 137 x 210 mm, 407 pp.
Esta obra foi traduzida para o castelhano e publicada pela Editora Sigúeme de Salamanca em 1980, com 429 pp., tendo o título Teología de lo Político: sus mediaciones. Esta edigáo castelhana foi recenseada pelo teólogo Prof. Dario Composta na revista Doctor Communis, da Pontificia Accademia di S. Tommaso (Roma), ano XXXVH n« 2, maio-agosto 1984, pp. 179s.
A seguir, publicamos a traducáo portuguesa feita a par tir do original italiano dessa recensáo (as páginas sao citadas segundo a edigáo castelhana):
«Sería arduo fazer uma exposicáo deste denso ensato, nao jómente por causa da amplilude, mas também, e muito mais, por causa do conleúdo do mesmo.
Na verdade, o autor teve em vista fornecer
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86
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
os fundamentos e o estatuto epistemológico da teologia da libertacao, sem descer aos temas «specíficos que esta compreende.
Com outras
palavras: a énfase do título do volume é colocada sobre 'teología'
e nao sobre 'político' ou sobre a realidade política da América Latina. Esta tarefa é difícil, como reconhece o próprio autor. 'Nao fazemos a teologia que queremos, mas aquela que podemos1, afirma ele á
p. 397. Daí as freqüentes observacoes: 'segundo me parece', 'a meu modo de ver', 'como quer que se¡a' (pp. 40-43, 91, 97, 110. ..), como que para indicar que o autor propde mais urna tentativa do que urna solucáo definitiva; nao obstante, a modestia é superada pela erudicao, pela imponente bibliografía, pela competencia ñas diversas frentes do saber histórico, gnoseológico, teórico.
Segundo o autor, o estatuto de urna teologia sócio-políiica deve utilizar todas as ciencias humanas para depois proceder a urna con veniente ¡nterpretacao do processo histórico. .. Daí as tres partes segundo as qvais se articula o ensaio: 1) mediacóo sócio-analitíca (pp. 35-147), 2) mediacao hermenéutica (pp. 149-293), 3) dialétíca teoría-praxis (pp. 295-397).
No fien da leitura do ensaio, o leitor pergunta a sí mesmo se está diante de urna teología católica, visto que o autor é católico e religioso. A convíccao de quem redige esta recensao, é que nos encontramos nao diante de urna teologia católica, mas crista em termos gerais, por duas razoes: a) antes do mais, porque o autor nao recorre ao magisterio da
Igreja; ao contrario, este é agredido com expressóes pesadas e pouco habituáis; o clericalismo se teria exercido furiosamente desde LeSo XIII até Pío XII (p. 269, nota 36; ver o ataque na p. 78), a ponto de ter suscitado reacóes negativas como as de Marx, Freud, Nietzsche, etc. A referencia elogiosa a Pío XI (que teria sugerido a 'caridade política',
p. 310, nota 19) serve para encobrir a índole 'anti-magistério' do ensaio; b) o autor recorre ao marxismo nao somente para diagnosticar as estruturas sociais, mas também como sistema político fundado sobre
o materialismo histórico dialético.
A p. 389 lemos que a inspiracao
para proceder assim é inevilável: 'nao poderla ser de outro modo!' As
conseqüéncias desta posicáo sao admitidas sem rubor pelo autor, quando afirma que a consciincia individual é superada pela historia: 'o sentido da historia é sempre maior do que a própria consciéncia' (p. 390); pouco depois, o autor cita a conhecida afirmacao de Marx: 'Sao os homens que fazem a historia (praxis), mas muitas vezes- sem saber .que sao eles que a fazem» (p. 390, nota 23).
O autor se compraz em afirmar que Althusser é o melhor intér prete (I) de Marx, tanto que a referencia áquele é freqüentíssima;..© motivo é obvio: trata-se de rejeitar urna teologia contemplativa, — 438 —
LIVROS EM ESTANTE
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a-histórica, estática (obviamente, segundo C. Boff, a teología clássica!)
para substituí-la por orna nova teología 'classista' {p. 410), que se constrói apropriando-se da fé da comunidade (p. 394), mas fé que
é praxis (ib). Estes dados sao suficientes para que nos perguntemos onde terminará urna tal teología praxológica. Certamente nao é cató lica. Será talvez urna sociologia de muito escasso valor.
Aquí, porém, surge urna segunda pergunta: trata-se realmente
de urna 'teología do Político"? Nao! O autor ¡amáis quis explicar o que é 'o político' (como se le no título): os poucos traeos elucidativos na p--38 impressionam pelo contraste que existe entre as objetivas doutrinas de Hegel e Marx sobre este ponto capital (como recentemente mostraram Klaus Held, Ludwig Landgrebe, etc.) e o silencio do
autor. N5o obstante, Hegel e Marx sao os paladinos deste!
Entao que é que fica dessa grande montagem? Como algo de positivo, notamos a forte polémica contra a teología da libertacáo (pp. 3Ó5-369, 384, etc.), o dese¡o de emancipar-se da 'teología política' de Joáo Batista Metz e de construir 'urna teología crista' (pp. 141. 405). Mas como é possível sustentar tal propósito com as carencias atrás denunciadas? Lembro que o teólogo católico está vinculado pelo magisterio e, em segundo lugar, recordó que nem todas as filosofías se prestam para ser assumidas como instrumental da teología, principalmente aquetas que, como o marxismo, sao materia listas e atéias. Nem há como fazer comparando entre a recuperacao de Aristóteles por parte de S. Tomás de Aquino e a cristianizacáo que a nova teología quer realizar em favor do marxismo. A analogía nao se sustenta (p.. 120, nota 13) pela simples razáo de que Aristóteles nao era nem materialista nem ateul
Haveria aínda outras coisas a observar, mas o que dissemos, ¡á pode ser suficiente!» Darío Composta
Pequeño Vocabulario da Biblia, por W. Gruen.
Paulo 1984, 130 X 183 mm, 75 pp.
— Ed. Paulinas, Sao
Eis um llvro destinado á dlvulgacáo das Escrituras, redigido em Hngua-
gem simples; tenciona oferecer ¡nformacóes, esclarecimentos, corrigir dislorefies e sugerir pistas para aprofundamento do estudo. Apreciamos a intencSo do .autor; todavía nfio podemos deixar de observar que, em seu estilo conciso, omite esclarecimentos indispensávels para o bom entendimenlo das verdades da fé; quem lé certos verbetes do Vocabulario, pode conceber noc6es erradas a respeito de importantes pontos doutrinários.
Eis
alguns exemplos: á p. 41, Jesús é dito simplesmente "o filho de María e de José"; ora, no mínimo, seria preciso notar que Jesús nao é filho de José como o é de María; temos, de um lado, maternidade física virginal e, de
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«PERGUXTE E RESPONDEREMOS» 276/1984
outro lado, paternidade adotiva ou jurídica apenas. A p. 9 diz o autor que "as narrativas sobre Adáo sao reflexoes sobre a natureza, o jeito de ser
humano em geral"; isto insinúa que Gn 1-3 tem conteúdo vago, "naturista,
antropológico" apenas, quando na verdade se trata da historia religiosa da humanldade primitiva narrada segundo género literario próprio, para apre-
sentar as ver dades básicas ou o paño de fundo de toda a historia da
salvagao (criagüo do homem, elevagao á ordem sobrenatural, queda original, promessa
do
Redentor...).
ObservacSo
semelhante
merece
o
verbete
"Origens" as pp. 52s: é confuso. As pp. 61. 10, o conceito de sacerdocio é vago; quem lé, poderia depreender que no Novo Testamento o povo inteiro é sacerdotal e os presbíteros sao simplesmente coordenadores de igrejas locáis... A p. 58, Querubim é tido como figura imaginaria de animal dotado de asas sem referencia á categoría angélica da Tradigáo e da teología...
Lamentamos tais lacunas do Vocabulario, que, assim concebido, nao exprime devidamente a doutrína da Igreja. Praxis Crista, vol. I: Moral Fundamental, por R. Ricon Orduña, G. Mora Bartres, E. Lopes Azpitarde. Traducáo de Alvaro Cunha. — Ed. Paulinas, Sao Paulo 1983, 160 x 230 mm, 435 pp.
Tres moralistas espanhóis estáo publicando um novo manual de Teología
Moral em tres volumes: I Moral Fundamental; II Opgao pela vida e pelo amor; III Opgao pela justiga e liberdade. Em seu prólogo, os autores professam a sua concepgáo de Teología Moral: "Para nos, n3o cabe ao discurso teológico-moral — nem de forma principal nem de forma predominante —
a identlficagfio e justificagáo das normas do comportamento humano, mas sim a reflexao critica sobre os fundamentos, o significado e a finalldade da conduta crista em sua totalidade" (p. 11).
Em conseqüéncia, este volume I da obra se aprésenla mais como urna reflexSo teórica do que como um compendio de normas. Nessa reflexfio é negado o conceito de leí natural, como conjunto de imperativos decorrentes da natureza psicossomática do homem (p. 275). O único preceito da lei natural seria "Pratica o bem, evita o mal" (p. 276); "a lei que dirige o homem, encontra sua justificagáo nele mesmo" (p. 278), ou seja, em sua natureza racional e livre. Tal é "a ética que se requer em urna socledade adulta, autónoma, responsável, secular" (p. 278). Esta posicSo implica certo subjetivismo, que de resto está presente em diversos capítulos da obra, especialmente quando os autores estudam a nogio de pecado: o criterio de pecado grave seria a mudanga da opgao fundamental (p. 396). — Ora
a S. Congregagio para a Doutrina da Fé, na Declaragfio "Persona Humana" de 29/12/1975, rejeitou a adocio de tal criterio para distinguir pecado leve e pecado grave. Este pode existir mesmo quando nao haja mudanga de opgao fundamental: alguém que comete adulterio, nao deseja necessariamente em seu coragSo mudar a opgáo por Deus; o ladrao e o assassino
contlnuam freqüentemente a se dizer cristSos. Os autores em pauta querem salvaguardar a observagSo proveniente da S. Congregagfio, mas nao sao suficientemente claros na sua tentativa de conciliar a sua afirmagSo com os dlzeres da Santa Sé (p. 397s).
NSo há dúvlda, o livro aprésenla páginas multo valiosas dedicadas a
Etica do Antlgo Testamento, á do Evangelho e dos Apostólos, á historia da
Teología Moral... subjetlvlsta, além explanagoes.
(pp. 31-206). Mas ressente-se de orlentacño demasiado do que nem sempre prima pela -clareza de suas E.B.
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Sábado ou Domingo? 15.
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Reveja seus conhecimentos litúrgicos, lendo a
CONSTITUICAO
"SACROSANCTUM
CONCILIUM"
sobre q Sagrada Liturgia (Edigáo bilingüe) O
primeiro
Documento
aprovado
no
Concilio
Vaticano
É o 6? votume da Colecáo "A PALAVRA DO PAPA"
II
(4/12/1963)
(a salr em
breve):
Vol. 1 —Joáo Paulo Meo espirito beneditino
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Vol. 2 — O Corpo humano e a Vida
Cr$
1.000,00
Vol. 3 — Vida e missáo dos Religiosos
Cr$
1.200,00
Vol. 4 — Joáo Paulo II aos jovens
Cr$
1.200,00
Vol. 5 — InstrucBo Geral sobre a Liturgia das Horas
Cr$
1.500,00
A MISSA SEGUNDO O CONCiUO — (Documentado, Normas pastarais) na
Arquidiocese do Rio de Janeiro. Contém a Instrucao Geral sobre o Missal Romano, com Notas inseridas pela ComissSo de Liturgia do Rio de Janeiro — Cr$ 1.200,00.
LITURGIA PARA O POVO DE D£US. Cario Fiori (3? ed.). Breve Manual de Liturgia, contendo a mesma ConstituicBo explicada ao povo em todos os seus Itens, o rito de cada Sacramento e no final dos Capítulos um questionário para estudo em circuios — Cr$ 3.000,00.
GRANDE ENCONTRÓ D. Hildebrando P. Martins, OSB (2? ed ). Contém urna Semana de Missa e urna sobre os Sacramentos. Fundamento bíblico,
doutrina, audio-visual e metas a atingir na renovacao da pártlcipacSo do. povo na Missa. Publicado em 1974 — Cr$ 1.400,00.
QUADROS MURÁIS:
1.
Estnrtura Geral da Missa. 2.
O Ano Litúrgico
(Presenca de Cristo no tempo). Formato 72 X 54. Para salas de aula em colegios, noviciados, Curr.os bíblicos, etc. — Cr$ 1.200,00 (cada).
A1ENDE-SE PELO REEMBOLSO POSTAL