Epopeia Dos Celenterados Ibéricos

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Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

Epopeia dos Celenterados Ibéricos- Luísa Lopes Nota: (leia-se também apenas a parte vermelha como um poema qualquer)

I AS ARMAS E OS “ASSINALADOS” O que é todo o mundo tem de realmente tão engraçado que cria tantos palhaços amedrontados amestrados encurralados admoestados... O que é que o mundo tem de parir nas garras do destino? Talvez... Terra de outras terras voando num cavalo alado da semi-mitologia que impera na garganta engasgada esganada estrangulada

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

por que semente? Talvez... Fantasias, arlequins despedaçados pela ironia! Nós gostaríamos de ser de ter de viver na... terra de outras terras engolida heroicamente e nunca digerida pelo travo amargo do desespero solitário... ou de ser talvez... corpos sem veias de massa vomitada dos estômagos dos génios dos gigantes adamastores das fadas e duendes ou talvez... do ventre de algum vagabundo!

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

A língua ofegante o corpo desfeito pela peçonha o sonho a dilacerar-nos as vísceras... Assim vivemos neste pedaço de musgo de sabor tão salgado nesta... terra de outras terras corpo de outros corpos sonho de outros sonhos voamos em cascas de noz nadamos sobre balões e vamos à descoberta talvez... da vida de outras vidas feita de terras corpos e sonhos! O que é que o mundo tem que parir nas garras do destino? Algo de amedrontado e amestrado Algo de palhaço de corpo de sonho

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

de naus de noz de musgo salgado de vísceras dilaceradas

ou talvez... Nada mais que corpos paridos do ventre de algum vagabundo! Donde vens tu, vagabundo? Ninguém, duende, ou apenas misterioso? Desaparecido? Neste inverno cantamos o teu nevoeiro cerebral visceral que te impede de nos reconheceres como filhos das tuas entranhas como corpos do teu corpo. De que és feito, vagabundo? Dos olhos lanças fogo as tuas mãos são garras prontas a asfixiar a sufocar... O nosso espírito sonhador de noz de nós só queremos paz!

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

de nós só queremos o sonho! II OCIDENTAL IMPÉRIO LUSITANO Através de campos frondosos e lastimosos deste território inóspito tão apátrida seguiremos a rota do desconhecido e cantaremos os louvores dos novos leprosos de saúde mental precária... Eles aqui estão! Olhem-nos digníssimos irmãos répteis olheirentos desdentados e bolorentos como vós como nós como o nosso desaparecido que se reergue e espreguiça em cada raio de trovoada. Como nascemos assim tão desmembrados aos olhos do mesmo criador de maravilhas!? Nós, os piolhos, as osgas e todos os répteis as tempestades

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

e a casca de noz que fez de nós membros orgulhosos do criador. Como o estômago de um boi lautamente dilatado nos dilatamos na corrente do criador... os dentes saturados de partir nozes os olhos cansados de tantos mundos os pés calejados e orgulhosamente sós! E per omnia secula seculorum assim ficaremos, nos livros de analfabetos que temos que somos, como inventores de um alfabeto que de tão cravejado de hieróglifos não conseguiremos decifrar manuscritos nem por nossa fama e proveito... O ouro foi-se a essência evaporou-se a mirra mirrou a miragem ficou... Nada temos de reis magos mas do presépio glorioso temos a pobreza mental de carpinteiros desempregados...

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

Resta-nos o subsídio glorioso do dia de Portugal em honra de um deficiente físico que comemoramos com fanatismo desprovidos de gloriosos feitos porque temos todos medo de ficarmos deficientes mesmo que gloriosos e mais vale prevenir aos olhos do Altíssimo por mares nunca de antes navegados do que sofrermos novo dilúvio em honra de um povo eleito, Ámen!

III OS MARES NAVEGADOS De longe, ao norte, ao longo dos mares, navegam solitários na esperança de encontrarem mares nunca de antes navegados e com armas na ocidental praia aguardam o desembarque fatal! Barcos estrangeiros de muitos lugares aguardam no cais de esperança torneada ao sabor das vagas as ligeiras embarcações

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

que clamam vingança.... Então sob uma gigantesca tempestade desenrola-se o pergaminho acabado... E num discurso algo breve e suspeito o general fala às tropas em parada do alto do seu varandim de damasco: “Vós, ó povo bem-amado deveis saber antes do mais que se aqui estou é por vós para vós, aqui estou e estarei para a glória do meu povo para a glória do rei! Vós, ó povo bem-amado e povo eleito Vós construístes vosso leito vosso curso de glória e de vingança... Agora que o vento o permite em minha honra gritai: Queremos o general para a glória de Portugal!”

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

Caindo alternadamente os dentes com o peso do escorbuto gengival todos se entreolhavam... O Velho do Restelo e muitos mais resolveram deixar de ser sombras e entre dentes gritar: “Não queremos o General estamos fartos de deficientes! Só queremos saber nadar para salvar a pele ressequida por tanto sol salgado por tantas lágrimas ardentes e amargas que nos provoca este mostrengo que está no fundo do mar e que numa noite de luar se erguerá a gritar: És tu ditosa Pátria Rainha dos mares do sul que serás engolida pelo Gigante Adamastor... És tu, ditosa Pátria que todos queremos salvar...” IV ORAÇÃO AO ALTÍSSIMO

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

Duendes de ninguém naus naufragadas de que apenas salvámos a madeira Fadas seduzidas por gigantes com o corpo amortalhado a pele já ressequida o corpo tão doente... GLÓRIA AO ALTÍSSIMO! Mares nunca dantes navegados pelo Cabo das Tormentas... Velhos sós e doentes analfabetos e putrefactos! Cavalo alado noutras terras o povo espreita no alto desespero solitário orgulhosamente sós! GLÓRIA AO ALTÍSSIMO! À beira-mar plantados neste pedaço de musgo salgado que não conseguimos digerir mas que engolimos heroicamente... Travo amargo de massa vomitada a língua ofegante vamos à descoberta!

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

GLÓRIA AO ALTÍSSIMO! Amedrontados dilacerados, Vagabundos viscerais nosso espírito sonhador répteis olheirentos... criados desmembrados na corrente do criador com armas na ocidental praia desprovidos de gloriosos séculos... GLÓRIA AO ALTÍSSIMO PER OMNIA SECULA SECULORUM... ficaremos.... V MAIS DO QUE PROMETIA A FORÇA HUMANA Fraqueza de espírito copo desumano desequilíbrio mental luta da Pátria cancerosos famigerados tumulto progressivo Ásia ou África

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

mas todos descolonizados reduzidos a uma assembleia corpo pobre de rica gente de exploração básica populacho na lama... as janelas continuam fechadas às rajadas de civilização! País de pobres coitados de desgraçados pelos tristes fados ...ai Mouraria... e os celenterados não teriam epopeia se houvesse agentes modificadores do destino! Em botes, em choças e palhotas abrigados do vento tumultuoso em grutas pré-históricas talvez nos montes hermínios todos eles acusam esta ditosa Pátria que eu canto que por generais, assembleias e canudeiros do pretenso direito internacional tanto fizeram chorar Portugal!

VI ENTRE GENTE REMOTA DESTRUIRAM... Cavámos a nossa própria sepultura

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

entregámos a Pátria a apátridas, agnósticos e hereges Cultivámos a mensagem divina porque as nossas terras eram áridas e descendemos de agricultores! Destruímos os nossos barcos entregámo-los a piratas salteadores e vagabundos! Ensinamos-lhes a rota porque temos um dever a cumprir e descendemos de marinheiros! Incendiámos as casas porque somos povos bárbaros celtas, iberos, celtiberos e saltimbancos passámos a viver em palhotas, chafurdas, capoeiras porque somos impotentemente descendentes de carpinteiros! A nossa impotência visceral anunciou de imediato a queda! Continuámos no entanto a seguir exemplos leis, ordens, resoluções semelhantes dos visceralmente potentes porque descendemos de cobardes! “Glória ao Altíssimo

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

que assim nos fez hereges impotentes, agricultores, carpinteiros, marinheiros e... oficialmente cobardes”...

VII TAPROBANA Taprobana passaram indo além... Mas que terra é esta? Que gente é esta? Que glória é esta? A do fruto sem caroço a do povo sem almoço a das senhas e tickets e cartões de Multibanco a do crédito prolongado a causar um grande espanto... Os celenterados escorregam

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

navegam decidem morrem nos caminhos do desconhecido fantasia arlequins despedaçados... Desespero solitário a dilacerar-nos o sonho... Vamos à descoberta deste país vagabundo. Nossos olhos lançam fogo... maravilhas desaparecidas maravilhas esquecidas pobreza mental a dos fanáticos mas todos todos lunáticos por mares nunca d’antes navegados e pergaminhos acabados pelos escrivães bem-amados! Criados desmembrados nas correntes do criador com forças desconhecidas cavámos a nossa sepultura! GLÓRIA AO ALTÍSSIMO que assim nos fez hereges! Oficialmente cobardes

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

desequilibrados mentais cancerosos famigerados abrigados do vento tumultuoso... Os celenterados não teriam epopeia se houvesse modificadores do destino... Esta ditosa Pátria que eu canto Eu um Ocidental Eu um sentimental!

VIII SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL... Sentimento de um Ocidental È estar deitado na praia e ver passar um petroleiro que suja, prolifera, contamina o ar puro, o mar azul O céu distante! Sentimento de um Ocidental é passar nas nossas ruas ao anoitecer e ver chineses e japoneses de blue jeans, ténis, blusões e na loja da esquina podermos ler “Loja de Macau - vende produtos orientais”

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

Sentimento de um Ocidental È ouvir em todas as discotecas o matraquear de rocks e jazzs distantemente londrinos e americanos e ouvir a chula do Douro em rock o corridinho em rock e o fadinho! Sentimento de um Ocidental É atravessar o País e ver em cada lado uma matrícula de Madrid, de los Angeles, de Marrocos de Andorra, do C.D. ou da Nato cruzando-se com carros e carroças de bois! Sentimento de um Ocidental é este ar distante de encruzilhada na península bombardeada por impérios culturais! por cinemas culturais! por agendas culturais! Sentimento de um Ocidental é também sobreviver ao espanto... E a Grécia tão distante! E Roma tão distante! E os cavaleiros tão distantes!

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

E J.S. Bach, as searas ondulantes, as flautas dos pastores, a poesia, a estética Tudo isso é o Sentimento de um Ocidental!

IX UM NOVO REINO Nações Parque das Nações multidões disformes conformes a um passo do novo século... a um passo da nova cultura! o culto das multidões... Chorámos a nossa festa... Não houve desordens nas multidões!

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

O musgo verde e salgado tornou-se multicolor

X TUDO O QUE SUBLIMARAM Que nos resta afinal? Que memória nos resta de Portugal? Que temos ainda de país ocidental? Estádios de Futebol Campeonatos e awards e muitos grandes teatros Que desconhecem Racine, Corneille, Molière, Brecht ou Shakspeare Mas cantam a grande Amália E a canção de Lisboa E recebem prémios Têm publicidade gratuita!! É preciso distrair o povo! É preciso calar o povo!!! É preciso esquecer... Que não há hospitais

Luisa Lopes / Epopeia dos Celenterados Ibéricos/1980

Nem escolas reconstruídas Nem cultura que se veja É preciso esquecer os milhares de desempregados E as fábricas na falência! Reorganizem a função pública Criem quadros de excelência Tudo para os excedentes, já!!! Um povo sem estudos e sem educação Não merece sequer o pão!!! E o abandono escolar? E as rendas de casa a aumentar? E as consultas que não!?? E os remédios que não se podem comprar??? Que interessa isso afinal? Somos um país europeu, civilizado e tudo E que ninguém diga mais Que somos do Terceiro Mundo!!!

Lisboa, 1980

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