Fiv

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  • Words: 1,369
  • Pages: 7
FIV (Fertilização in Vitro)

Todas as manhãs

repetiam os mesmos gestos sem

saber por que o faziam. Simples intuição de que teria que ser assim...

Encontravam-se em grupos. Como se fossem uma espécie de rebanho... Um dia toda a sociedade marchará por grupos, cada um a caminho da sua função. Um dia toda a sociedade receberá ordem para viver, para sorrir, para se alimentar... A função era relativamente comum : a busca da felicidade. Para alguns talvez não. Não sei, as pessoas quando falam nunca são sinceras...

Partamos do princípio que sim... Em busca de uma qualquer felicidade... Homens e mulheres juntos... nem sempre... Os homens eram necessários apenas na parte final da linha de produção... uns percorriam todo o caminho, outros iam apenas quando os chamavam... uns eram mais machistas que outros, uns escondiam-se, outros tinham gestos ternos e doces com as mulheres...

A primeira vez que aí cheguei sentia-me estranha, mal, deslocada.

Apeteceu-me

imenso

fugir.

Comecei

a

ter

dúvidas, medo... A vida para mim não tinha que passar por ali, como se para mim o destino fosse mais forte e eu não tivesse que andar a moldá-lo aos meus desejos. Foi uma luta feroz. Queria fugir mas sabia simultaneamente que era a minha última hipótese de ser feliz. Ou pelo menos de ter o que desejava. Não sabia já o que desejava... Por momentos esquecia-me de mim e ouvia apenas aquelas mulheres que ainda eram capazes de falar. Falavam, falavam, mas de facto ninguém dizia nada. Algumas diziam mal de tudo. Quem

as

ouvisse

com

atenção

perceberia

todas

as

contradições e veria que todo o discurso tinha apenas a função de as colocar já no nível das veteranas. Nestes casos as veteranas já sabem imenso e ajudam as novatas... Quanto a mim preferia as mulheres silenciosas que se limitavam a sorrir, ou que diziam timidamente :"sim, é a primeira vez"... ou que nem sequer diziam nada...

O nosso comando geral era conhecido por UNIDADE PLURIDISCIPLINAR DE REPRODUÇÃO HUMANA, situava-se num corredor escuro e tenebroso. A nós tratavam-nos por FIVS. Mal chegávamos faziam-nos uma série de testes para verem se éramos saudáveis. Se não fossemos tratavam-nos. A partir de determinado momento comandavam toda a nossa existência, impediam-nos de tomar quaisquer drogas e

determinavam

as

nossas

actividades

dia

a

dia.

Entregavam-nos um papel que dizia: "Ciclo Terapêutico FIV", que continha todas as informações necessárias para o processo, pensavam eles... mas que na realidade não dizia

nada que não soubessemos já...

O primeiro grande momento, o primeiro em que percebíamos que tudo estava a começar, era o momento do cateterismo, ou seja, uma avaliação das características do canal do colo do útero. Não era difícil de fazer, sentia-se uma espécie de picada , respirava-se fundo e pronto, tudo tinha já passado. Neste mesmo momento aproximadamente, começava o ciclo regular e traumatizante de duas injecções diárias que eram dadas por nós próprias. As primeiras foram terríveis de dar. Eu costumava isolar-me, concentrar-me e depois tentava picar a prega da barriga. ÀS vezes picava cinco e seis vezes até conseguir. Passados dez dias já fazia aquilo num abrir e fechar de olhos. Tudo na vida é de facto uma questão de hábito... mesmo o sofrimento se pode tornar um hábito...

A partir de determinada altura, todas as 5ªs feiras ia à unidade. Já não sentia nem dizia nada. Fazia apenas o que tinha a fazer. Um dia deram-me finalmente a pasta azul e passei a ir todos os dias. O ritmo era sempre o mesmo. Chegávamos e dirigiamo-nos ao laboratório, no piso 3

de

um determinado bloco. Aí era-nos extraído sangue, para análise do estradiol. Quem o fazia era uma senhora que só refilava e que nunca vi sorrir. De seguida descíamos ao piso 1, percorríamos um imenso corredor e voltávamos a subir ao piso 3 de outro bloco. Dirigiamo-nos a um gabinete onde pediamos a pasta azul e onde nunca ouvimos nenhuma palavra em troca , mesmo que simpaticamente dissessemos

"bom dia". Voltavamos a descer ,desta vez ao piso O1, para apanhar um elevador para o piso 5 de outro bloco, onde teríamos que fazer uma Ecografia. Chegávamos aí o mais tardar às 9 horas da manhã e só começavam a chamar depois das 10. No primeiro dia ainda aí fiquei à espera, depois comecei a perceber como tudo funcionava e baldava-me. Às vezes ia até à rua apanhar ar e sol, outras vezes passeava por

aqueles

imensos

corredores,

imaginava-me

num

labirinto e tentava sair. Frequentemente via gente em sofrimento

o

que

colocava

imensas

dúvidas

à

minha

existência. Mal sabemos o que cá andamos a fazer no meio de toda esta confusão, teremos o direito de ousar sequer desejar a propagação da espécie que será sempre uma forma

de

propagar

o

sofrimento?

Filosofar

sobre

a

existência é terrível... É como ouvir a Igreja censurar a reprodução por processos científicos, vêm com aquela velha história da reprodução como consequência de um acto de amor... Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos", mas e se o acto de amor não gera nada não será um erro do Criador? Não teremos o direito de pedir à ciência que cumpra essa função divina? E a quantidade de crianças que nascem de actos de amor e depois morrem de fome... Nada disso tem lógica. Se imaginarmos que a inteligência humana provem de Deus, e que a ciência é a conclusão lógica da inteligência humana, então reprodução "IN VITRO" provem da mão de Deus... a mim o que me incomoda mais é aquela ideia do acto de amor... e quantas crianças nascem de actos de amor

que são estrafegadas à nascença... quantas nascem de actos de amor para serem desprezadas toda a vida...

Finalmente obrigam-nos a sofrer de solidão. Misturamnos com gente que sofre, para podermos dar mais valor à vida e às desilusões, isolam-nos durante uma noite e obrigam-nos a dormir com fome.

A noite é longa, o sono difícil de conciliar, e depois de muito pensar caimos de exaustão e quando nos lembramos de novo que existimos, que estamos prontas a entrar na linha final de produção, está já junto a nós uma mulher fardada a dar-nos algo de incómodo que nos limpará as vísceras. É então chegado o momento da toilette quotidiana. Durante o duche lavo-me cuidadosamente como quem prepara um lar para um recém-nascido. O nervosismo aumenta. Não me lembro de mais nada até entrar para a sala do aparatoso processo onde está muita gente que nunca vi. Sinto que me mexem em todas as profundezas e que de mim retiram algo para juntar a todas as sementes de esperança. Terminado o processo mandam-nos embora com a sensação de que ali ficará algo de nós para sempre. Temos quarenta e oito horas de incerteza, sem sequer saber se lá voltaremos para concluir todo o processo. Enquanto fazemos de conta que a nossa vida é normal, seres especializados constroem o nosso futuro. Já nada depende de nós, nada está nas nossas mãos. Quarenta e oito horas de angústia...

Regressamos. O regresso só por si traz-nos, de novo, alento...

pode

ser

que

sim,

que

seja

desta...

as

probabilidades são poucas mas nunca se sabe. Regressar só por si já é uma hipótese... mais uma etapa vencida...

Mandam-nos para casa e pedem-nos descanso, nada de esforços e nova medicação. Cumprimos tudo na incerteza, privamos

a

vida

do

quotidiano

real

alimentados

de

esperanças. O pensamento não pára mas reina apenas a incerteza. Quase quinze dias de desespero e novo teste. Horas de espera que se revestem de angústia. Que somos nós

afinal?

Queremos

que

saibam

que

esperamos

o

resultado final mas o mundo continua a girar como se não existissemos.

Temos enfim a certeza que nem Deus, nem a ciência farão nada por nós e que a FIV que julgámos um caminho para a vida se tornou afinal a morte de sonhos e ideias. Mas a vida faz-se e desfaz-se, é uma luta constante.

Por

mais

que

nos

preparemos

nunca

estamos

preparados para a desilusão e o sofrimento... por mais que imaginemos a dor nunca perceberemos como é que ela nos sufoca... Caí

em

sofrimento

mas

consegui

levantar-me

e

continuarei a lutar pela vida que desejo... todos os dias, todos os anos, até conseguir um caminho para a vida...

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