O homem dos comboios Luísa Lopes
Era uma vez o homem dos comboios. Puseram-lhe esse nome quando era guarda de estação dos caminhos-de-ferro num velho apeadeiro. No povoado mais próximo todos lhe chamavam o homem dos comboios. Quase ninguém conversava com ele. Tinha uns horários estranhos. Levantava-se de madrugada para receber a velha automotora de onde ninguém descia. Voltava ao povoado e regressava para o comboio das três. Fazia o mesmo para o das nove e o da meia-noite. Como o apeadeiro ficava a cerca de dois quilómetros de sua casa, passava grande parte do tempo da sua vida, de cá para lá e de lá para cá. Sempre sem falar com ninguém... O caminho era bonito, por entre árvores e algumas giestas, no tempo delas. De Inverno havia sempre nevoeiro. Avistava-se o comboio a três léguas de distância por causa da luz da máquina. Fascinante. O clarão difundia-se e formava uma mancha disforme que se prolongava e assumia contornos fantasmagóricos. No Outono era melhor ainda. No chão havia sempre folhas mortas que formavam um tapete húmido e putrefacto e que impediam o nosso homem de tropeçar nas pedras e troncos. As botas ficavam húmidas e acastanhadas. Sabia de cor toda a natureza e todos os recantos. O homem dos comboios gostava daquela vida. Aprendera a andar sozinho, taciturno, sem ver viv’alma. Entregava-se às suas maquinações. No povoado havia barulho e ele afastava-se das gentes. Gostava do silvo do comboio e da lufa-lufa de quem descia, uma vez, de cem em cem anos. Nascera pobre e assim se conservara muitos anos. No povoado havia uma única casa de gente rica, mas eram todas de gente honrada e trabalhadora. Em miúdo costumava entrar na
O homem dos comboios Luísa Lopes casa rica para fazer recados à senhora que, já então, era viúva. Costumava estar sentada numa poltrona de riscas verdes e douradas, toda vestida de negro. Usava um lenço, sempre, mesmo dentro de casa. Aquele rosto miúdo e enrugado, envolto em negro, impressionava-o. Quando entrava na sala nunca olhava para a viúva. Por cima do sofá verde e dourado havia um retrato oval, daqueles grandes, muito antigos. Nele, um homem de farto bigode, vestido com uma farda. Era sempre para ali que ele olhava. O rosto do grande senhor fascinava-o, parecia dar-lhe conselhos. Às vezes mal ouvia o recado tal era o estado de meditação e transcendência em que se encontrava. Apesar disso acabava por fazer tudo como lhe mandavam. Desde aí alimentou esperanças de que um dia a sua vida mudaria. Também ele usaria farda. Também ele seria um homem de respeito. Entretanto construíram o apeadeiro. A primeira vez que o comboio aí parou foi uma festa e ele sentiu-se orgulhoso. Era um homem feliz. Recordava agora as viagens que fizera de comboio quando foi cumprir o serviço militar. Nessa altura deixara crescer o bigode e usava farda. Era o seu grande sonho. Mas a tropa cedo se revelou uma grande chatice. Às vezes pensava de outra forma porque sempre trazia uma farda. Andava aprumado e de botas bem engraxadas. Apesar disso lá o mandaram embora. Foi quando, sem ter que fazer, resolveu ir guardar comboios, resolveu ir guardar o apeadeiro. Andou muito tempo numa vida solitária e sem farda. Os guardas de apeadeiro não tinham farda, nem habilitações e muitas vezes nem tinham nada para fazer a não ser acenar com uma bandeirinha. No entanto nunca se cansou porque gostava muito de ver passar os comboios. Reconhecia até passageiros a quem mal via o rosto. Uns espreitavam pela janela. Em noites de frio limpavam os vidros com as luvas para poderem ver alguma coisa. Outros iam cabisbaixos, via-se-lhes apenas a parte de cima da cabeça. Às vezes as crianças acenavam-lhe. Outros mundos que ele via passar... outras vidas... histórias que ele podia construir...
O homem dos comboios Luísa Lopes Um dia, porém, na missa de Domingo, o padre anunciou que o apeadeiro iria deixar de funcionar. Não se justificava com o movimento que tinha. O homem dos comboios ficou para morrer. E o padre lá foi falando, falando, até que, em determinada altura disse que, em contrapartida, estava já construída a nova estação a uns cinco quilómetros e que esta iria servir cerca de dez povoações. Falou da sua utilidade e disse ainda que estavam a pedir homens para lá trabalharem... Aí o homem prestou mais atenção e abriu bem os ouvidos. Depois tratou de tirar à pressa o exame da quarta classe e de ler uma série de livros e lá foi ele. A princípio custou-lhe. Passou a ter horários para cumprir e a caminhada era mais longa. Também não era tão bonita. O caminho não era fácil de se fazer. Não podia esperar o comboio e regressar a casa. Tinha que passar horas na estação mesmo quando não havia comboios. Havia também pessoas que tinham a mania de lhe dizer bom-dia e boa-tarde. Mas uma coisa compensava tudo: usava uma bonita farda azul escura com botões dourados e tinha até um chapéu de pala com uma chapinha metálica em cima. Parecia um homem rico e de respeito, apesar das suas bochechas coradas e das mãos grossas e sapudas. Por baixo do braço trazia umas bandeiras enroladas e pendurado ao pescoço um apito. De vez em quando alguns passageiros fartos de esperar adormeciam nos bancos. Quando se aproximava a hora do comboio o homem acordava-os com uma pancadinha leve e não dizia palavra. Certa manhã, enquanto passeava pelo cais da estação, começou a perceber que no mundo as pessoas também falavam entre si. Ouviu duas velhas que diziam: “pois, e além disso a gente a conversar aprende muito, dá para conhecer meio mundo...” Ele ficou tão abismado que se ia esquecendo de apitar quando passou o último comboio... Nesse dia, quando regressava a casa pôs-se a cismar e teve um pensamento de cinco quilómetros. No dia seguinte regressou à estação com mais cinco quilómetros de pensamento. Ao chegar decidiu-se. Havia um comboio dali a duas horas. Pois bem. Pôs-se à porta e não deixou ninguém entrar. Depois deu nova ordem: “Senhores, façam fila...”
O homem dos comboios Luísa Lopes Virou-se então para o primeiro, um moço desgovernado e com cara de fome e disse-lhe: -A partir de hoje ninguém apanha o comboio sem cumprir uma formalidade. Ao passarem por mim têm que me contar uma história. O moço, irreverente, respondeu: - Vai chatear outro! E ele deixou-o passar. No fundo, o problema é que ele nem sabia o que era uma história... Veio o segundo passageiro. Era um homem calvo, de cinquenta e tal anos, que lhe disse: -Oh, meu amigo, não me diga que essa lei é nova... alguém lhe paga para nos fazer perder o comboio? O homem dos comboios achou que esse discurso era já um pouco melhor e mais satisfeito ficou. Todos lhe deram respostas semelhantes até ao fim da fila. Não sei o que acharam os passageiros de tão extraordinário. A notícia pareceu correr o mundo. Nunca mais ninguém passou por ele sem dizer qualquer coisa. Ele tinha sempre qualquer coisa para lhes responder. E foi assim enquanto viveu o homem dos comboios. Quando morreu tinha fama de grande sabedoria. O comboio que passou na hora do seu funeral apitou três vezes... No povoado diziam que era a segunda vez que ele vivia e que, da primeira vez tinha sido sábio... caíram em grande tristeza e mandaram fazer uma pedra tumular com o desenho de um comboio. Ainda hoje quem precisa de pensar ou de tomar grandes decisões se dirige ao povoado para respirar aqueles ares...