UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS HISTÓRIA DO DIREITO
Resenha não-crítica do livro “Síntese de uma História das Idéias Jurídicas”: da Antigüidade Clássica à Modernidade
Victor Cavallini Florianópolis 2009 RESENHA DO LIVRO “SÍNTESE DE UMA HISTÓRIA DAS IDÉIAS JURÍDICAS”: DA ANTIGÜIDADE CLÁSSICA À MODERNIDADE, DE ANTONIO CARLOS WOLKMER
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- Informações técnicas: WOLKMER, Antonio Carlos. “Síntese de uma História das Idéias Jurídicas”: da Antigüidade Clássica à Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. 232p.
CAPÍTULO I: AS ORIGENS DO PENSAMENTO JURÍDICO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
Introdução: Não se pode definir a existência do pensamento jurídico ático nos tempos homéricos (antes do século VII a.C), observando-se o surgimento de uma cultura grega de viés racional com a formação das cidades-estado. O mundo simbólico passou a ser sucedido por uma consciência humana que busca explicar as coisas por processos de racionalização, com um traço forte pela especulação e pela metafísica, o que diferenciou bastante os gregos dos romanos, que se preocupavam com coisas mais práticas, objetivas e instrumentais. Aí se vê que o mundo helênico não se inclinava à especificidade do mundo jurídico, apesar de se haver uma forte discussão sobre os princípios e os fundamentos de justiça, que tinha uma origem divina. Entre os séculos V e IV, no período clássico, que se começou a conceber um conceito desmistificado, ideal e moral de justiça. 1.1 Concepção de lei justa na dramaturgia ática: A primeira conscientização feita no tocante à resistência humana às leis injustas dentro da cultura helênica evidenciou-se com os pensadores sofistas, que afirmavam que as leis são resultantes da força arbitraria dos que exercem e controlam o poder, que as elaboram segundo seus interesses privados, onde a justiça existe para camuflar o domínio dos detentores do poder. Evidente fica o choque entre justiça por natureza (lei superior dos deuses) e justiça por convenção (lei dos “mais fortes”), onde a primeira seria mais justa, tendo em vista que a segunda geralmente tende a desrespeitar a dignidade humana para garantir privilégios – embate bem ilustrado pela tragédia de Sófocles: Antígona. 1.2 Filosofia jurídica como expressão da natureza cósmica: Além da Antígona, também contribuíram para o processo de transformação do pensamento grego com a inserção dos problemas sociais, políticos e morais relacionados à condição humana, substituindo o naturalismo cósmico, inserção inicialmente feita pelos sofistas, cuja herança é repassada aos pensadores clássicos, como Sócrates, Platão e Aristóteles.
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Sócrates resgatava a idéia de caráter justo da lei, ou seja, por ser válida a lei tornava-se uma forma de justiça que deveria ser respeitada como um imperativo imprescindível, mesmo que fosse uma lei errada ou criminosa. Platão, discípulo de Sócrates, faz uma projeção ideal de um Estado que tem a função ética de realizar a justiça, onde a justiça é identificada à sabedoria e à virtude da alma, ou seja, um homem sábio e virtuoso, e não mais um representante dos deuses na terra, deveria governar e ter a plena responsabilidade pela justiça. A concepção de Platão não está, então, objetivada em termos de direitos e obrigações, situando-se na esfera da moralidade social. As leis, para Platão, seriam úteis, com um valor educativo da lei enquanto instrumento ético. Já Aristóteles rompe com o idealismo ao elaborar um sistema metafísico que viria a influenciar a sistematização da teoria do conhecimento e a construção da lógica dedutiva clássica. Sua ética e filosofia político-jurídica são permeadas por uma idéia de virtuosidade, de equilíbrio. Aristóteles propõe uma ordenação dos critérios de justiça de acordo com a natureza dos diferentes tipos de pessoas presentes no corpo social da polis, criando assim um equilíbrio (virtude) social. Já que a justiça apresenta certa ambigüidade, ele examina a justiça no sentido total ou geral e no sentido particular. A primeira é mais universal, o acatamento da lei no respeito àquilo que vige para o bem de todos, e a segunda refere-se ao outro singularmente no relacionamento direto entre as partes. Seria, então, mais “particular”. Ele também vinculava o princípio de justiça aos homens iguais, com capacidade para a virtude e para as práticas cívicas. Tratamento dos iguais de forma igual. Após sua morte, a filosofia grega entra em declínio, favorecendo o surgimento de algumas correntes menores que repercutiram no mundo antigo pós-clássico, como as escolas cínica, estóica e epicuréia. 1.3 Fundamentos estóicos do direito natural em Roma: Os romanos, por sua natureza prática e pouco voltada a especulações profundas, souberam absorver diversas fontes e compuseram um apreciável modo de vida pluralista. Essa vocação pela vida prática combinada com essa grande absorção de culturas exteriores fez com que os romanos legassem à posteridade a sua maior e mais duradoura contribuição, um eficiente sistema normativo, um Direito que desempenhava um papel de força agregadora do império. Cícero foi um autor que soube sistematizar o ideário grego do Direito natural superior e universal, vindo de Platão, Aristóteles e do estoicismo, adequando de acordo com o ideal de uma legalidade material, um espírito prático e à natureza operacional dos romanos. “[...] suas preocupações éticas e culturais com a formação do homem na prática da virtude, da equidade e da justiça contribuíram pra desenvolver as humanidades em Roma.” (p. 36) As idéias ciceronianas sobre justiça e sobre o Direito Natural fluíram dos gregos para os antigos cristãos, e depois para os grandes escolásticos medievais.
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CAPÍTULO II: TRAJETÓRIA DO PENSAMENTO JURÍDICO NA IDADE MÉDIA Introdução: Os eventos históricos mais importantes que ocorreram no início da Europa Medieval são o declínio do mundo antigo, ilustrado pela desintegração do Império Romano Escravista no século V e o advento e consolidação do cristianismo como doutrina hegemônica. O período da Idade Média reproduziu a adequação cristã de uma cultura que herdou o pensamento grego e a tradição jurídica romana. Os homens passarem a ser valorizados não mais por suas posses, qualidades e feitos heróicos, mas sim reconhecidos como homens, unidade composta por matéria e espírito, o que permitiu a construção de uma concepção transcendental da dignidade humana, preparando o terreno para o surgimento das declarações de direitos do período moderno. 2.1 Formação e desenvolvimento do Cristianismo na Alta Idade Média: Mesmo vivendo em um mundo onde as formas de saber e verdade estavam expostas no Novo Testamento, nas Escrituras Sagradas e nos ensinamentos dos Padres da Igreja, não houve uma total ruptura dos cristãos com a herança clássica. Fez-se presente a interpretação dos grandes pensadores cristãos das obras de Platão, Aristóteles, etc., de acordo com a teologia cristã. A Alta Idade Média foi a fase mais representativa de seus fundamentos filosóficos, no período que ficou conhecido como patrística, momento em que se desenvolveu uma doutrina apologética para servir de fundamento à teologia. O cristianismo foi muito mais uma elaboração que objetiva a salvação dos homens e redenção dos oprimidos do que uma filosofia política, tanto que, mesmo com determinadas idéias sobre governo presentes em passagens do novo testamento, a igreja passou a não ser um acessório do Estado, e institui-se, assim, o cristianismo: a Igreja ao lado do Estado. Nesse contexto, a Igreja Romana ficou como a instituição legítima dos ensinamentos cristãos. A igreja que dá legitimidade aos governos, e o poder religioso, através de doutrinas que emergiram a partir de embates entre imperadores e papas, ficou sobre o poder civil. Sintetizando, o pensamento medieval se encontrará impregnado e reproduzirá concepções marcadamente teológicas, “sendo que os substratos teóricos do poder político e do Direito reinante entre os homens respondem a uma ordem e hierarquia de representação religiosa.” (p. 44) 2.2 A herança jurídica romana e o Digesto de Justiniano:
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Três momentos revelam a produção significativa de temas que constituem uma filosófica jurídica para a idade média. Primeiramente, o legado e a presença da cultura jurídica de Roma através do Digesto, feito no século VI e parte do código de Justiniano, que representava um cenário de ascensão do poder espiritual da Igreja Cristã. Mais tarde viria o desenvolvimento maior da filosofia jurídica medieval com as contribuições de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, e por último as primeiras manifestações de um pensamento secularizador, expressos nos argumentos de Marcílio de Pádua. O Digesto de Justiniano, efetivado durante o governo do Imperador Justiniano (527-565), serviu para formalizar o conteúdo jurídico originado das obras dos antigos jurisconsultos clássicos. Foi um projeto grandioso, formado por uma comissão de 16 membros, onde foram consultados mais de dois mil volumes, e essa obra ficou dividida em 50 livros, que regulavam assuntos como princípios gerais do Direito, da jurisdição, dos bens, da penhora, do testamento e da posse. Esse digesto tinha como objetivo não só a sistematização, mas a praticidade, a confiabilidade e a autoridade das fontes antigas. Os livros de número I a VI (excetuando-se o IV) da primeira parte do Digesto são os que mais diretamente expõem substratos que podem compor uma filosofia jurídica acerca dos interesses e das necessidades do homem, enquanto o livro IV refere-se à autoridade das constituições dos príncipes como fonte de positivação legal, o livro VII discorre sobre matérias de adoção, o VIII sobre a divisão e qualidade das coisas, o IX dos senadores e o X sobre o ofício e as atividades dos administradores. 2.3 O Jusnaturalismo Teocêntrico em Santo Agostinho: A Idade Média apresenta uma primeira fase conhecida como patrística, tendo em Santo Agostinho seu mais destacado pensador cristão. A reflexão proposta por ele na sua mais importante obra é a de que a história humana tem percorrido um eterno dualismo entre a cidade de Deus (lugar mais próximo do divino) e a cidade terrena (marcada pelo pecado; comunhão com valores e exigências do mundo pagão). Assim está presente o dualismo maniqueísta da cidade celestial que, corporificada pela Igreja, se ocupará dos interesses do espírito, reinando sobre os indivíduos, enquanto o Estado temporal se encarregará das coisas materiais. As duas cidades existem lado a lado, e continuarão até o final dos tempos, quando a cidade de Deus subsistirá para construir a eternidade. “Ainda que Agostinho não tenha sido um teórico político ou um filósofo do Direito, sua obra oferece ricos subsídios para a interpretação sobre as relações entre Estado e Igreja, os fundamentos da lei natural e da lei positiva, a questão da legitimidade do poder dos governantes, a formulação cristã da idéia de justiça e a discussão do significado da guerra justa.” (p. 56) A concepção agostiniana de justiça verdadeira só se efetivaria no âmbito do cristianismo, vivenciado pelas práticas do amor, da caridade e da fé cristã.
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2.4 Escolástica e Filosofia Jurídica em Santo Tomás de Aquino: Entre os séculos XI e XIV, emerge um segundo ciclo na produção cultural filosófica da Idade Média na Europa Ocidental, em decorrência dos indícios de crise e declínio do feudalismo que se apresentam no século XI. A escolástica representou o ápice da produção intelectual, filosófica e teológica da Europa cristã desse período. O principal objetivo dessa corrente era demonstrar, por um raciocínio lógico formal, a autenticidade dos dogmas cristãos. Para eles, a filosofia estaria a serviço da teologia nesse processo, colocando um fundamento filosófico sob todo o edifício da fé. O nome mais expressivo da escolástica foi Santo Tomás de Aquino que, influenciado por concepções de Aristóteles e Santo Agostinho, desenvolve uma notável doutrina jurídica sobre a natureza das leis e uma distinção geral destas em lei eterna, lei natural, lei humana e lei divina. Santo Tomás de Aquino estabelece uma justiça geral (onde é atribuído a cada um o seu) e uma justiça particular (onde cada um tem a sua medida de atribuições), além de adotar também, como Aristóteles, a distinção clássica de justiça: distributiva e comutativa. “[...] ao retomar e aprofundar as idéias da justiça aristotélica, Santo Tomás de Aquino realça a finalidade da justiça, que é edificar ‘uma igualdade fundamental nas relações entre os homens, e exigir que essa igualdade seja restabelecida, quando violada’.” (p. 67) Fica clara a contribuição de Tomás de Aquino não só para o pensamento medieval, mas para a constituição de um Jusnaturalismo que influenciará a moderna filosofia do Direito. 2.5 Concepções Jusfilosóficas em Fins da Idade Média: “[...] entre o século XIV e início do XV, a Europa Ocidental é sacudida pelos conflitos entre o papado e o império [...] pelo declínio da Escolástica [...] e pelo gradual processo de secularização do poder político.” (p. 68) Nesse contexto surgem idéias políticas de alguns autores reformistas e antipapistas, como os italianos Dante Alighieri e Marsílio de Pádua. Dante foi autor da consagrada obra “Divina Comédia”, no entanto, suas idéias políticas aparecem em sua obra intitulada “De Monarchia”, que tem seu mérito em apresentar um certo “secularismo” apresentado pela incisiva diferenciação entre o temporal e o espiritual. Marsílio de Pádua foi não só o expoente maior do espírito secularizador para o pensamento político-jurídico, mas sobretudo quem levantou as críticas mais radicais ao Papado e à Igreja Romana. Ele constrói uma teoria do poder derivada do povo, bem como a origem do Estado e da própria lei, assumindo assim uma orientação voluntarista, cética e laicizadora. Marsílio se mostrou profundamente oposicionista com relação do poder da Igreja, e buscou romper bruscamente com a cultura oficial dominante, despertando assim novas perspectivas.
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Marsílio de Pádua sistematizou, possivelmente, a primeira formulação da doutrina chamada de positivismo jurídico, reduzindo o direito ao mandato coativo do Estado, bem como a afirmação da origem e do fim absolutamente humanos (não mais divinos) do poder estatal e do Direito. Aí se vê o nascedouro do humanismo antropocêntrico, que marcará a sociedade moderna. Na mesma época de Marsílio, outros pensadores de relevância também surgem, como o mestre inglês Guilherme de Occam, que defendia concepções menos rigorosas e menos radicais que as de Marsílio, mas que abriu novas perspectivas para a teologia e filosofia. Occam denunciava as práticas contraditórias da igreja, bem como a pobreza, atribuía restrições ao poder papal, etc.
CAPÍTULO III: ESBOÇO DA TRADIÇÃO JURÍDICA NA AMÉRICA LUSO-HISPÂNICA
Introdução: A produção jurídica que foi transposta para a América luso-hispânica a partir do século dezesseis advém de fontes romano-germânicas e da adequação de normas institucionais da colonização ibérica. O rompimento com Espanha e Portugal criou condições para a emergência de uma elite local, que incorporou de difundiu os princípios de uma tradição jurídica marcada pelo idealismo abstrato jusnaturalista, pelo formalismo dogmático-positivista e pela retórica liberal-individualista, onde se situou uma realidade excludente, sócio-político excludente. Inexistiu uma filosofia jurídica autenticamente americana e emancipadora do humanismo retórico e erudito dissociado da vida humana com dignidade, liberdade e justiça. 3.1 Horizontes Jurídicos no Tempo da Conquista e da Colonização: Na Península Ibérica o ideário humanista renascentista não se fazia chegar, o que ocasionou o desenvolvimento de uma regulamentação jurídica que não levava em conta os ideais de igualdade e respeito, e que mais legitimava o processo de exploração e colonização, legislação essa montada a partir do velho direito espanhol. Na época da conquista, como não havia um Direito específico, buscou-se a legislação já consagrada (Código das Siete Partidas e a Lei de Toro), com grande guia do processo judiciário no primeiro momento da colonização, mais tarde vindo o Novo Direito, que foi resultado da luta e perseverança de alguns teólogos-juristas imbuídos do ideário humanista. As normas criadas por estes (Leyes de Índias) levavam em conta a diversidade geográfica, a distinção de indivíduos e grupos sociais, e buscava atender aos interesses econômicos e políticos da coroa, a política
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de lucro e riqueza dos conquistadores e evangelização e bom trato aos índios, por isso sendo marcado pela freqüente mudança de regras. Com a grande dizimação dos indígenas, o Estado viu a necessidade de se criar um freio ao ímpeto devastador do colonizador, produzindo assim uma nova legislação, configurada nas Leis de Burgos, que apesar de não lograr com todos seus objetivos abriu caminho para as Leis Novas, que representavam a mais autentica vitoria do humanismo cristão da época. Mas estas, mesmo sendo inovadoras e tendo contribuído para moderar a violência, não erradicaram a violência e a escravidão das populações indígenas. 3.2 Filosofia Jurídica Humanista e Bartolomé de Las Casas: “Em fins da Idade Média surge uma filosofia jurídica humanista, questionadora da tradição escolástica (que dá substrato à legitimação ordenadora dos colonizadores ibéricos) e defensora da legislação em defesa dos inocentes aborígenes do novo mundo.” (p. 82) Entretanto, esses defensores humanistas dos índios, dentre os quais se destaca Bartolomé de Las Casas, não conseguiram mudar completamente a realidade de violência e exploração. Esse pensamento estimulou também, nessa época, o pensamento político e o pensamento religioso, estreitamente ligados. “Diante do espírito da época e dos argumentos consagrados em instrumentos legais como o Requerimento, marcados pela arbitrariedade e irracionalidade, emerge o repúdio e forte ação humanista de religiosos dominicanos” que “imbuídos filosófica e moralmente no humanismo de tradição crista e calcados, juridicamente, ma doutrina do Direito natural, não só admitiam dignidade e liberdade humana aos gentios, como sobretudo não reconheciam o poder total do papa e a pretensão universal de jurisdição dos monarcas sobre os nativos.” (p. 85) Nesse contexto Bartolomé se destaca como o precursor do conceito moderno de pluralismo racial, cultural, político, religioso e jurídico. Houve também uma renovação Espanhola no campo das artes, das letras, da teologia, da filosofia, da política e no campo jurídico, o que propiciou um debate muito profundo e de grande repercussão no centro cultural e filosófico da Escola de Salamarca, acerca do tratamento humanitário dos seres vivos, bem como da necessidade de uma legislação mais justa e solidária, e do direto à liberdade das populações conquistadas do Novo Mundo. 3.3 Aspectos Históricos da Cultura Jurídica Latino-Americana: A utilização e aplicação retórica dos princípios do humanismo secularizado na América luso-hispânica colonizada não representaram manifestações autenticas de transformação e emancipação, mas revelaram-se abstratas, portadoras de efeitos contraditórios. Os três séculos de colonização espanhola e portuguesa na América foram marcados por invasão, massacre e diversas praticas anti-humanistas, o que, junto
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com outros fatores internos contribuíram para as lutas de independência que não deixaram de manifestar posturas plenamente humanistas, de um humanismo já concreto, nascido da prática histórica de exaltação do nativo. A independência das nações latino-americanas não representou uma ruptura total e definitiva com Espanha e Portugal, mas muito mais a reformulação da tradição ibero-latina clássica, sem mudança expressiva na ordem social e política. Buscava-se compatibilizar as doutrinas emergentes e novas forças sociais com a manutenção das antigas estruturas de caráter corporativo e patrimonialista. O individualismo liberal penetrou na América numa sociedade predominantemente agrária, logo a juridicidade moderna de corte liberal vai repercutir diretamente sobre a propriedade da terra. Os códigos positivos e as constituições políticas proclamam “neutralidade cientifica”, independência de poderes, garantia liberal de direitos e a condição imperante do “Estado de Direito”, o que não é de todo feito, já que na pratica as instituições jurídicas são marcadas pelo controle centralizado, burocrático e pouco democrático do poder oficializado. “Torna-se correto reconhecer a cotidianidade de uma tradição jurídica que convive com uma cultura política, marcada por democracia excludente, por sistema representativo clientelista, por formas de participação elitista e por experiências de pluralismo limitado” (p. 96), que vai totalmente contra os propósitos dos ideais liberais com o qual se “compromete”.
CAPÍTULO IV: EVOLUÇÃO DAS IDÉIAS JUSFILOSÓFICAS NA MODERNIDADE DO OCIDENTE Introdução: “Na forma das idéias modernas acerca do Estado do Direito, não deve ser desconsiderado o legado clássico do pensamento greco-romano. Igualmente, não se pode desconhecer as teses de intérpretes de que as origens do mundo moderno prendem-se às transformações trazidas pela Igreja Romana Ocidental (unidade e independência desencadeadas por Gregório VII, perante imperadores, reis e senhores feudais) entre fins do século XI e no inicio do século XII. Entretanto, o direcionamento que aqui se assume é pelo discurso analítico, levando-se em conta as raízes históricas dos valores político-jurídico e das instituições modernas irão constituir-se num período compreendido entre o século XIV e o XVI. Em tal cenário, instauraram-se a dissolução das instituições ate então hegemônicas (Igreja Romana), o aumento do poder real com o surgimento das monarquias nacionais (França, Inglaterra), o enfraquecimento do papado, a emergência do reformismo filosófico, o aparecimento cultural do humanismo renascentista e a secularização da política.” 4.1 Pressupostos do Pensamento Jurídico nos Primórdios da Sociedade Moderna Européia.
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“Preliminarmente importa registrar, no âmbito do sistema produtivo, a formação de um capitalismo mercantil como novo modelo de desenvolvimento das forças materiais em que o capital é o instrumento essencial das atividades reais. Trata-se da passagem da economia agrário-senhorial para a implementação da atividade econômica de mercado livre, pela sistematização do comercio por meio das trocas monetárias e pela força de trabalho assalariado. Em fins da Baixa Idade Media, inaugura-se um processo de crise e de ruptura do Feudalismo que irá desencadear profundas transformações na vida produtiva, substituindo a economia agrícola de servidão e de subsistência pela atividade mercantil, financeira e lucrativa. Particularmente, é nas repúblicas mercantis do norte da Itália que se desenvolve, desde o século XIII, o espírito capitalista. Entretanto, o Capitalismo irá constituir-se gradualmente, consolidando-se e alcançando quase toda a Europa depois do século XVI e XVII. Nas suas origens a mentalidade capitalista esta identificada as práticas comerciais, ao empreendimento individualista e competitivo, bem como ao afã de lucro ilimitado, ao cálculo previsível e ao procedimento administrativo racionalizado.” 4.2 Renascimento, Reforma Protestante e Humanismo Jurídico. “Certamente que os albores do mundo moderno gestados por um processo crescente de secularização e racionalização proveniente de fenômenos culturais como o Humanismo do Renascimento e a Reforma Protestante. A crise e a derrocada do universo medieval na Europa central no âmbito da religião, da filosofia, da economia e da política desencadearam os ingredientes para uma nova mentalidade um novo pensamento e novos procedimentos científicos. As emergentes formas culturais marcadas pelo espírito de ruptura, naturalismo e individualidade estão impregnadas por uma visão clássica do mundo, expressa no que se convencionou designar Renascimento.” 4.3 Origens e Desenvolvimento das Escolas Jusracionalistas do Século XVI ao XVIII “A sociedade moderna européia dos séculos XVI e XVII que influenciaria a cultura Jurídica da época contem, no sei bojo todo um processo crescente de secularização, racionalização, individualização e progresso cientifico. Por trás de tais características, devem ser consideradas as mudanças engendradas por uma estrutura social moderna já constituída pelo impulso econômico capitalista, pelo aparecimento de burguesia, do humanismo e do Estado como centralização maior do poder.” 4.4 Iluminismo, Racionalismo e Pensamento Jurídico Pós-revolução “O século XVIII é inaugurado por um cenário político que consolida a legitimação do Estado Absolutista, quer pela origem divina do poder, quer por fundamentos jusfilosóficos, assentados em teses contratualistas e em modelos teóricos racionalistas.[...] Em que pesem a predominância e o reflexo da cultura
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iluminista ao longo do século XVIII, há de se considerar o romantismo como movimento mais significativo de reação à ‘filosofia do esclarecimento’.” “Foi na França do absolutismo monárquico que o movimento iluminista alcançou seu maior florescimento e radicalismo. Os philosophes acreditavam na supremacia da razão, mas desde que utilizada para fins práticos, objetivando critica às superstições, à intolerância e às injustiças sociais. Os principais pensadores franceses da época, que instituíram e aderiram ao ‘enciclopedismo’, expressão mais autentica do espírito da ilustração francesa, criaram o ‘seu ideal de explicação e compreensão segundo o modelo das ciências naturais’. Não se inspiraram em Descartes, mas buscaram elementos advindos do empirismo de Newton, ‘cujo método não era a dedução pura, mas a análise’ rigorosamente cientifica”. “Inegavelmente, umas das construções mais vigorosas e influentes do pensamento filosófico moderno encontra-se em Immanuel Kant (1724-1804), responsável por uma admirável síntese das grandes tradições epistemológicas que chegaram até o século XVIII, ou seja, de um lado o racionalismo de matriz germânica proveniente de Leibniz, que foi difundido por Christian Wolff; de outro, o empirismo inglês de Lock e Hume, mas sem deixar de absorver certos traços do sentimentalismo rousseaniano. [...] Finalmente, a conclusão a que se pode chegar com referencia ao século XVIII é o inegável desenvolvimento de seu Direito, marcado pela consolidação histórica de um processo de racionalização, da afirmação de uma cultura individualista e liberal, da distinção entre o Direito e a moral, e da progressiva secularização do Direito rumo à unicidade e à positivação.” 4.5 Fundamentos e Desenvolvimento Histórico do Positivismo Jurídico “O cenário filosófico europeu, que cobre grande parte do século XIX, seria dominado por tendências que se filiam, ora ao idealismo, ora ao materialismo, em seus matizes positivistas ou dialéticos. Na trajetória marcada pela Revolução Industrial, pela consolidação do capitalismo e pelas lutas sociais que refletem a consolidação burguesa e a marginalidade das camadas populares, a dinâmica sóciopolítico ocidental se caracterizaria, em grande parte, “[...] pela tensão entre o liberalismo econômico[...] da revolução vitoriosa e as tendências socialistas, que procuram encarnar as exigências de prosseguimento, no caminho da revolução.” 4.6 Tendências Jurídicas Antiformalistas e Materialistas em Fins do Século XIX “É mister, uma vez mais, lembrar que a teoria jurídica no século XIX é marcada, principalmente,ora pelo exegetismo francês, ora pelo pandectismo germânico, sem desconsiderar igualmente as inclusões analíticas dos ingleses. A influencia francesa engendrada pelo caráter sagrado do Código Napoleônico favorece o espírito para um rigoroso positivismo, enquanto na Alemanha, a reação à codificação de tipo francês volta-se para a sistematicidade das construções conceituais romanísticas. Não é de se estranhar que, num cenário dominado pelo positivismo jurídico formalista, diversas reações sociais e políticas provenientes da sociedade começam a afetar o discurso e a prática do jurista.[..] Mesmo
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distanciando-se do formalismo essencialista de tradição panddectista, Jhering jamais rompeu com certos vínculos estatistas e positivistas na forma de conceber o Direito.[...] Ora, a reação às diversas nuanças do formalismo positivista não ocorre apenas por meio de orientação sociológicas, culturalistas e jusnaturalistas, mas decorre de posturas identificadas ao materialismo histórico, fortemente devedor do legado filosófico proveniente de Georg Wilhlm F. Hegel (1770 – 1831)”
CONCLUSÃO “Em suma, a obra “Síntese de uma História das idéias Jurídicas. Da antiguidade clássica a modernidade” revela que, além de ocupar-se em fazer uma releitura crítica da historicidade das idéias jurídicas, seu conteúdo permite avançar na direção de conceber o Direito ora lugar de luta, resistência e combate, ora como instrumento de viabilidade da justiça, do bem comum e da dignidade humana. É o Direito projetado como instrumental, comprometido com a gestação do conhecimento democrático, pluralista e participativo que sirva a práticas sociais e políticas emancipadoras.