Direito Romano Sucessão

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CAPÍTULO

28

SUCESSÃO ("SUCCESSIO IN UNIVERSUM IUS")

CONCEITO E BREVE HISTÓRICO Os direitos e obrigações patrimoniais geralmente não se extinguem pela morte de seu titular, ao contrário do que acontece com outros direitos e obrigações pessoais e de direito público. Deste último tipo são os direitos decorrentes de relações familiares ou da posição do defunto para com a organização política do Estado. Os romanos chamavam succedere in ius a passagem de todos os direitos e obrigações transmissíveis do defunto a uma outra pessoa, seu sucessor. A palavra hereditas significava tanto o processo desta passagem, como o seu objeto, isto é, o património do defunto, transmitido ao sucessor. Destarte, na mente dos romanos, até a época bizantina, o conceito se restringia ao de sucessão universal, isto é, de toda a herança. Foram os bizantinos, da época de Justiniano, que introduziram o novo conceito da successio in singulas rés, isto é, o da transferência de determinados direitos ou obrigações de um para outro sujeito de direito. Esse novo conceito bizantino se contrapunha ao da successio in universum ius, que para eles se referia a um corpus quod ex dis-tantibus constat, isto é, à coisa coletiva, que era o conjunto dos direitos e obrigações do defunto. Na ordem natural das coisas, a família sobrevivia ao defunto. Os sucessores naturais do pai eram seus filhos, na consciência social de outrora, como o são em nossos tempos. Daí que, originariamente, no direito romano, tal sucessão se restringia exclusivamente aos filhos. 173

existimantur (D. 28.2.11). Pelos romanos da época clássica, conservadora das ideias tradicionais dos tempos passados, a sucessão dos filhos era caracterizada, ainda, como toda especial: não como aquisição da herança, mas, sim, como aquisição da livre administração daquela: itaque post mortem paíris non hereditatem percipere videntur, sed magis liberam bonorum administrationem consequuntur (D. 28.2.11). A sucessão dos sui heredes, isto é, das pessoas livres que passavam de alieni iuris a sui iuris pela morte do paterfamilias, era considerada tão natural na mente dos romanos, que nem a regularam expressamente: a Lei das XII Tábuas continha disposições apenas para o caso de eles não existirem: si intestato moritur, cuius suus heres nec escit... (T. 5.4). Não havendo descendentes, podia a família extinguir-se com a morte do paterfamilias. Em tal caso, o culto dos deuses do lar não subsistiria, e, com isso, deixaria de existir, também, o centro de atividade agrícola que era, nesses tempos primitivos, a família. Para evitar que isso acontecesse, praticava-se ou a adrogatio ou a designação solene do herdeiro, perante o corpo político do Estado, na mesma forma da adrogatio, que se chamava testamentum comitiis calatis: eis a origem da escolha voluntária do sucessor. A esta forma de nomeação de sucessor se juntou, mais tarde, outra, menos complicada e mais prática: por meio do ato per aes et libram. Por outro lado, a Lei das XII Tábuas previa o caso de inexistência de testamento, e determinava a linha dos sucessores, como já mencionamos acima. Em fase ulterior dessa mesma evolução, introduziu-se a liberdade de testar do paterfamilias, dando-se-lhe poderes para dispor, livremente, de seu património, o que a Lei das XII Tábuas já previa. HERANÇA (Hereditas) Como já explicamos, significava, além do processo de sucessão, principalmente o objeto dela: os direitos e obrigações transmissíveis. Não eram consideradas transmissíveis as servidões pessoais, como o usufruto, o uso; a posse; algumas relações obrigacionais, como o man174

Eles eram considerados, conforme atestam as fontes romanas, como quase donos, mesmo em vida de seu pai, na expectativa de receber, futuramente, a herança: etiam vivo patre quodammodo do~ mini

dato, a sociedade; as obrigações delituais; as actiones vindictam spirantes, que visavam obter uma satisfação pessoal pelo próprio ofendido, como em caso de injúria etc. Os demais direitos e obrigações constituíam o património transmissível. Conforme o balanço entre o ativo e o passivo patrimonial, a herança podia ser, também, ativa ou passiva (neste último caso se' chamava damnosa hereditas), pois o herdeiro, substituindo a pessoa do defunto também nas suas obrigações, arcava com as dívidas deste. Todo o património passava universalmente (per universitatem) ao herdeiro ou aos herdeiros, que sucediam em todos os seus direitos e obrigações ao defunto: is de cujas hereditate agitur (aquele de cuia herança se trata). Daí a denominação moderna do defunto: de cuius. No caso de pluralidade de herdeiros, cada um sucedia ao de cuius no património todo, sendo os direitos e obrigações de cada herdeiro limitados apenas pelo concurso dos demais, cabendo a todos alíquotas ideais, sem divisão real: concursu partes fiunt. As dívidas eram transmitidas totalmente aos herdeiros nessa hipótese. Quanto às obrigações divisíveis, eram divididas entre eles-em caso contrário ficavam os herdeiros devendo em comum. A responsabilidade do herdeiro, no direito romano clássico era pessoal e ia além do ativo da herança. Respondia com seu próprio património, como se tivesse ele próprio contraído o débito. ABERTURA DA SUCESSÃO (Delatio hereditatis) Distinguiam-se, no direito romano, a fase da abertura da sucessão, em que ela era deferida, oferecida ao sucessor, e a fase da aquisição daquela. Abria-se a sucessão pela morte do de cufus. Oferecia-se, então a possibilidade ao sucessor de adquirir a herança: delata hereditas intelligitur, quam quis possit adeundo consequi (D. 50.16.151). Duas eram, e ainda hoje são, as formas de sucessão: sucessão legítima e testamentária, segundo se baseasse na lei ou na última vontade do de cujus. Como já mencionamos, a sucessão legítima era a originária e a sucessão testamentária se juntou a ela posteriormente. Entretanto no direito clássico, o costume fez grandemente prevalecer esta última forma, como nos provam os textos e as informações epigráficas. A liberdade de testar, princípio básico da sucessão testamentária, que, porém, podia prejudicar os descendentes (considerado 175 tionis aos necessarii, isto é, aos escravos. Pela primeira, o herdeiro que se abstinha de comportar-se como herdeiro era considerado pelo pretor como estranho para os efeitos

o seu direito à herança como decorrente da ordem natural das relações familiares), foi-se restringindo no direito romano mais evoluído. Primeiro exigia-se que o testador incluísse seus parentes mais próximos no testamento. A inclusão era, inicialmente, uma exigência formal, porque significava que o testador tinha que mencioná-los no testamento, nomeando-os herdeiros ou deserdando-os. Só depois, numa segunda fase, foram introduzidas regras com a finalidade de assegurar, a esses parentes próximos, uma participação real na sucessão, que o testador não podia desrespeitar. Daí uma terceira forma de sucessão: contra o testamento (suc-cessio contra tabulas). Característica típica da sucessão romana era que a legítima e a testamentária se excluíam uma à outra: nemo pró parte testatus pró parte intestatus decedere potest (cf. Inst. 2.14.5). Nomeado herdeiro, embora o fosse para uma parte da herança ou para determinados bens, a sucessão se abria com base no testamento: consequentemente era ele o único herdeiro e seu direito se estendia a todo o património do de cujiís; os herdeiros legítimos não podiam concorrer com ele, a não ser em obediência às regras da successío contra tabulas. A mesma exclusividade se aplicava, também, aos testamentos entre si: valia só o último. Testamento posterior derrogava o anterior, mesmo quando dispunha apenas sobre parte da herança, AQUISIÇÃO DA HERANÇA (Âcquisitio hereditatis) A aquisição da herança se fazia ipso iure ou por expressa manifestação da vontade, dependendo da qualidade do herdeiro, que poderia ser ou suus heres ou heres extraneus. Os st ti heredes, íncluindo-se nesta categoria, além das pessoas livres que ficavam sui iuris pelo falecimento do paterjamilias, também os escravos alforriados em testamento e nomeados herdeiros, adquiriam a herança automaticamente. Eram, pois, herdeiros necessários: o filho, o heres suus et necessarius e o escravo, o heres necessarius. Significa isto que eles adquiriam a herança sem a manifestação da vontade de aceitá-la e, ainda, contra a eventual manifestação de não querer aceitá-la. Eram, pois, forçados a responder pelas dívidas do espólio, mesmo além das vantagens reais que a herança lhes oferecia: ultra vires hereditatis (cf. D. 29.2.8 pr). Somente o pretor amenizou a situação de tais herdeiros necessários de herança passiva, concedendo a facultas abstinendi aos sui, isto é, aos filhos e o beneficium separa176 patrimoniais da herança. Pelo segundo, o escravo que não praticava atos de gestão relativos à herança podia conservar separados os bens adquiridos após a sua alforria,

não respondendo com eles pelas dívidas da herança. Ê de se notar que no direito moderno os herdeiros necessários são os descendentes ou ascendentes sucessíveis, aos quais pertence de pleno direito a metade dos bens do testador, consoante o artigo 1.721 do Código Civil brasileiro. No direito romano os demais herdeiros extranei, que se chamavam heredes voluntarii, só adquiriam a herança com a expressa manifestação da vontade de aceitá-la, denominada aditio hereditatis. Três eram as formas da aceitação da herança pelos extranei: á) A forma antiga, formalística e solene, a cretio, mediante pronunciamento de formulário verbal: utilizando as palavras adeo cer-noque (Gai. 2.166). b)A aceitação tácita pela prática de atos relativos à herança: pró herede gestio, da qual se deduz, implicitamente, a vontade de aceitar.A aceitação sem formalidades, expressa por modo diverso dos acima referidos: aditio nuda voluntate. Naturalmente, o heres extraneus podia renunciar expressamente à sucessão, o que se fazia sem qualquer formalidades; bastava que a manifestação de vontade fosse evidente e clara. Não podia ser retra-tada, a não ser que se tratasse de menor de 25 anos, que podia pleitear a in integrum resíituíio propter minorem aetatem. «HEREDITAS JACENS" E "USUCAPIO PRÓ HEREDE" Das regras referentes à abertura da sucessão e aquisição da herança segue-se que podia facilmente decorrer algum tempo entre as duas. Nesse ínterim, aberta a sucessão, mas ainda não aceita a herança, o que, naturalmente, só podia ocorrer no caso de heres extraneus, o património do de cujus ficava sem dono, porque já não era deste (embora representasse a sua pessoa: hereditas personam de-functi susíínet) e ainda não era do herdeiro. Chamava-se herança jacente: hereditas jacens. Tratava-se de um património em situação toda especial: a de pendência, de transição. 177

Com relação à herança jacente há que mencionar um instituto curioso, controvertido e bastante antigo, a usucapio pró herede. A posse, durante um ano, de uma coisa pertencente à herança, gerava propriedade (embora houvesse imóveis na herança, pois esta era uma das ceterae rés, na linguagem da Lei das XII Tábuas). Por ela, ad-quiria-se, também, a posição de herdeiro e, em consequência, toda a herança. Esse usucapião não exigia nem iusfus titulus nem bona fides.

O direito mais evoluído condenou esse instituto. Os jurisconsultos clássicos o apelidaram de ímproba usucapio. Por fim, Marco Aurélio aboliu-o, sendo por ele a ocupação de coisas hereditárias considerada um crimen expilatae hereditatis. «HEREDITAS — BONORUM POSSESSIO" O dualismo dos institutos do ius civile e do ius honorarium se repete no direito das sucessões também. A hereditas era um instituto tipicamente quiritário; por conseguinte regulado, exclusivamente, pelo antigo costume. A bonorum possessio era, como o nome indicava, a posse dos bens hereditários, deferida pelo pretor. Sua instituição se deve à mesma necessidade prática que orientava o pretor na introdução desse instituto como preliminar da rei vindicaíio. No campo da sucessão, a questão referente ao título de herdeiro decidia-se mediante uma adio in rem, chamada hereditatis pciitio, semelhante à rei vindicatio. Nela, também, a iniciativa cabia ao não-possuidor, contra o possuidor. Por conseguinte, nas situações incertas intervinha o pretor para qualificar um dos contendores como possuidor. Para esse fim, o pretor examinava, sumariamente, as circunstâncias e decidia pelo seu bom senso. Por isso, quando as regras rígidas do direito quiritário lhe pareciam contrárias à justiça e à equidade, que norteavam a atividade pretoriana, o pretor conferia a posse a quem julgasse merecedor dela. Um interdictum quorum bonorum, concedido pelo pretor, possibilitava ao herdeiro, como tal considerado por esse magistrado, entrar na posse dos bens hereditários de quem os retivesse indevidamente (eis mais um interdito para adquirir a posse nunca tida, incluído na categoria dos interdicta adipiscendae possessionis causa). Naturalmente, tal posse, concedida pelo pretor, não era definitiva. Só pelo usucapião assim se tornava. Antes de decorrer o respectivo prazo, o herdeiro quiritário podia exigir a herança e ganhava 178

a causa. Nessa fase, então, a bonorum possessio era sine ré, isto é, sem efeito contra o ius cívíle. Mais tarde, ao completar, suprir e corrigir o direito quiritário (adjuvandi, supplendi vel corrigendi iuris civilis grafia — D. 1.1. 7.1), estabelecia o pretor novas regras referentes à vocação hereditária, que prevaleciam sobre as regras do ius civile. Passou, então, o instituto da bonorum possessio a ser cum ré, isto é, ter força contra o direito quiritário. Por esse meio, o pretor introduziu, na sucessão romana, profundas modificações, que serão estudadas nos devidos lugares. 179

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