Autor Roberto Freire (PPS - Partido Popular Socialista / PE) Data 10/08/1999 Casa Senado Federal Tipo Discurso Resumo CRITICAS AO PROJETO DE COMBATE A POBREZA, APRESENTADO, NA ULTIMA QUINTA-FEIRA, PELO SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES. Publicação no DSF de 11/08/1999 - página 19930 O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS-PE. Pronuncia o seguinte discurso.) Sr. Presidente, Srs. Senadores, o Senador Antonio Carlos Magalhães, em discurso sobre nossa miséria, na semana passada, recorreu - creio, sem ironia - a Voltaire, como intermediário de Deus, e à liberdade poética de Raul Seixas, a fim de justificar sua iniciativa de criação de um Fundo para erradicar a pobreza em nosso País. Não sou daqueles que acreditam no determinismo histórico e nunca me perfilei à tese da imutabilidade do ser humano e de sua consciência. Acredito na vida, na sua dinâmica, na cultura, na razão, na emoção, no desenvolvimento do senso crítico e, portanto, na mudança das consciências. O ser humano vive porque muda. Nós, do PPS, também mudamos, deixando para trás velhas concepções e formas de organização social e de governo que foram derrotadas pela história, buscando outros caminhos para a continuidade e afirmação de nossas utopias e valores na construção de uma sociedade justa e democrática. É irrelevante, por isso mesmo, a discussão acerca das intenções, altruístas ou não, do autor da proposta. Não nos interessa analisar os seus posicionamentos políticos passados e se sua postura atual representa uma autocrítica. Como já disse, isso é irrelevante. Para melhor situar o debate e a minha intervenção, que fique claro outro aspecto: não reclamo para as Esquerdas o privilégio da virtude e da generosidade. Não acredito que haja alguém, em nosso País ou nesta Casa, que defenda a miséria e a fome como primados. Salvo os que usam a pobreza para reproduzir seu poder econômico ou político, tenho a convicção de que, por trilhas ou soluções diferentes, todos querem o desenvolvimento do Brasil. Com base nesses pressupostos, venho à tribuna para exercer a liberdade de discordar daquilo que considero um grave equívoco na concepção e na presumível execução da proposta de erradicação da pobreza ora em debate. O art. 1º da Emenda Constitucional que cria o Fundo nos dá a exata dimensão da iniciativa ao vincular a erradicação da pobreza a "ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para a melhoria da qualidade de vida". Ou seja, é clara a inversão. Ao fim e ao cabo, o Fundo proposto se destina a atacar efeitos e não pretende, nem de longe, arranhar as verdadeiras causas da pobreza. Nenhum país do mundo considerado desenvolvido erigiu sociedades justas e de melhores oportunidades por meio de políticas compensatórias. E muito menos com ações suplementares. Não seremos nós que iremos reinventar a roda. Erradicam-se pobreza e exclusão com desenvolvimento e com políticas transformadoras de distribuição de renda e riqueza, reformulando ampla e
profundamente as relações entre o Estado, o mercado e a sociedade civil. Sem isso, as políticas sociais correm o risco de não passarem de um embuste. As elites brasileiras no poder, a rigor, ao longo da História, nunca tiveram muita vocação para aceitar as mudanças em profundidade e não costumam lançar âncoras para os milhares de deserdados e excluídos do processo econômico e social. O povo não suporta mais as fórmulas caridosas que oferecem aos excluídos as migalhas caídas das mesas dos abastados. Políticas transformadoras de estruturas que concentram renda e fazem da nossa sociedade uma das mais desiguais e injustas, e até perversas, existentes no mundo nunca constaram da agenda dominante. Sempre foram bandeiras consideradas subversivas e reprimidas. Enganam-se aqueles que imaginam ser possível, em qualquer regime, e particularmente nos democráticos, combater o fenômeno da pobreza com canetada. Somente um pacto reformista, negociado, envolvendo todos os atores da política nacional, poderia alcançar sucesso nesse sentido. Fora desse enquadramento, toda iniciativa, se tem o papel pálido de jogar luz sobre um drama nacional, correrá o risco de resvalar para a demagogia e, pior, contribuir para frustrar, no futuro, a já tão esgarçada esperança do povo brasileiro. Acertemos o conceito. Uma coisa é pobreza estrutural, que advém da injusta distribuição de renda, envolvendo todos os aspectos a ela relacionados habitação, saneamento básico, saúde, educação, violência, questão fundiária e emprego, abrangendo mais de 50 milhões de brasileiros. Outra, é a fome e a miséria, fenômenos que nos envergonham mais que os próprios índices de pobreza e que precisam ser atacados com políticas emergenciais, até mesmo por questão de humanismo. A proposta do Senador Antonio Carlos Magalhães parece desconhecer a fronteira desses dois campos que, obviamente, estão interligados. Combater a fome e a miséria - e que fique claro isso - não implica erradicar a pobreza. Herbert de Souza, o nosso saudoso Betinho, nos ensinou essa obviedade ao lançar o movimento "Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida", um dos momentos em que a solidariedade falou mais alto em nosso País. Ele não cansava de alertar: essas ações não poderiam se transformar em rotina; não se deveriam perpetuar; não resolveriam o problema da fome e da miséria definitivamente. Clamava por reformas estruturais, estas, sim, capazes de incluir todos em um verdadeiro processo de desenvolvimento econômico e social. Para o bem da democracia e para a boa pedagogia da prática cidadã, evitemos insistir em tentativas de enganar pessoas. Pobre de quem acredita em outro caminho. Essa seria a essência do pensamento da esquerda democrática no Brasil. Embarcar em outras concepções e formulações, não se sabe em nome de quê, é tomar um atalho que não levará a lugar algum, nem mesmo a presumíveis bons dividendos eleitorais. E não adianta defender iniciativas intempestivas, sempre em nome de uma agenda que, aliás, não é nova. Mesmo que o foco da mídia abra-se sobre o tema de forma espetacular, como estamos a assistir neste momento, não podemos cair no oportunismo e ressaltá-lo como se se
tratasse de algo inédito. Seria desconhecer e obscurecer o fato de que, historicamente, outras entidades, personalidades, movimentos e forças políticas permanentemente agendaram o assunto, inclusive com mais propriedade e compromisso. A esquerda democrática é reformista e quer justiça social o mais brevemente possível; e não em um futuro remoto, no advento do Messias, antes apelidado de revolução. Se o objetivo é construir um Brasil justo, contem conosco. É isso que a minha intervenção, aqui e agora, pretende explicitar. Fixemo-nos um pouco mais no tema. Não há brasileiro que não se indigne com a pobreza e a miséria presentes nas ruas, nas cidades, no campo, por todo o território nacional. Aliás, a indignação é uma unanimidade. Ninguém no Brasil moderno as quer e todos se manifestam por sua erradicação. Criação de um fundo de combate à pobreza nos faz pensar um pouco sobre o conceito de justiça. A proposta apresentada reproduz a noção antiga de justiça, não a moderna. No antigo regime, nas sociedade ocidentais pré-modernas, o rei "justo" era aquele que distribuía caridade para os pobres e premiava os nobres corajosos pelos seus feitos, normalmente com terras. Justiça não tinha nada a ver com igualdade. Ao contrário, guardava relação com hierarquias rígidas: os pobres eram os pobres, existiriam sempre, mereciam esmolas; os ricos, por serem nobres, deveriam ser tratados com o respeito equivalente. O rei não governava para todos, nem no sentido de intervir para mudar a ordem estabelecida, mas exatamente para manter a ordem dada estável. Esse era o rei justo. Há mudança de valores. O justo, hoje, é muito diferente daquela visão medieval. Atualmente, para serem justos, os governos têm que intervir na realidade, modificando-a em consonância com os princípios da liberdade e da igualdade, visando, com racionalidade, a materializar sonhos. Portanto, políticas assistencialistas, emergenciais e até compensatórias, embora importantes, até fundamentais em determinados momentos e conjunturas, não podem ser compreendidas como se consubstanciassem o justo moderno, simplesmente porque, no concreto, não eliminam a pobreza. Talvez diminua um pouco a sua dimensão dramática, mas com riscos de torná-la permanente. Aqui cabe um parêntese. E é de crítica a quase todos os governos que se sucederam no País, responsáveis pela construção dessa sociedade concentradora de renda e excludente. Talvez a crítica maior possa ser feita ao governo atual de Fernando Henrique Cardoso, que, na prática, se distanciou da socialdemocracia, movimento político gerador do conceito de Estado do Bem-Estar Social e que modelou manchas igualitárias no Planeta. Nós, da esquerda, reivindicamos esse êxito da socialdemocracia e, apesar dos erros e da sua derrota histórica, também a experiência do socialismo real na construção de sociedades mais justas. Com essa autoridade, podemos afirmar que nenhum dos êxitos aqui referidos foram alcançados com políticas compensatórias ou resultantes da criação de fundos. Chegamos ao cerne do nosso argumento e seremos repetitivos. Somente se combate e elimina a pobreza com políticas econômicas que promovam o desenvolvimento e políticas sociais que distribuam renda. A máxima delfiniana da época do milagre, de "esperar o bolo crescer para dividir" - aliás, tempo também do choro do General Garrastazu Medici, ao
declarar que, apesar de a economia ir bem, o povo ia mal - citada numa respeitável crítica do Senador Antonio Carlos Magalhães, não nos serve. Precisamos, isto sim, de uma efetiva intervenção e apropriação no processo de preparação desse mesmo bolo e, principalmente, da inclusão de todos no banquete. O problema do Brasil não é ser pobre - todos sabem que não o é. Mas o fato de ser desigual e injusto - inclusive tema de discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A concordância com esse diagnóstico é geral. Vai da esquerda à direita, de democratas a recalcitrantes e saudosistas adeptos de ditaduras. O próprio Senador Antonio Carlos Magalhães cita, em seu discurso, números sobre a perversa distribuição de renda no Brasil. Temos índices de concentração indignos. São indicadores piores que os dos países africanos e asiáticos, dos países pobres latino-americanos, dos países do leste europeu mergulhados em crise. Somente aqui, infelizmente, se tem essa capacidade de favorecer os ricos fingindo proteção aos pobres. A Comissão criada com o intuito de estudar as causas estruturais da pobreza no Brasil merece o nosso respeito, porque acredito que as pessoas ali atuarão sinceramente, devotadas ao assunto, que é sério e digno. Porém, da proposta se esperar a mudança do nosso "modelo conservador de distribuição de renda", como proclamou o Senador Antonio Carlos Magalhães, é ir muito além do trabalho da Comissão, do próprio Congresso, pois somente será eficaz a partir de um movimento real e articulado de toda a sociedade, e de um Governo comprometido com mudanças. E todo esse processo exigiria uma relação dinâmica e de interação entre o Estado e o mercado, mediada por uma aberta e clara participação da cidadania. Somente assim definiremos processos que poderão apontar para suécias ou para brasis tal como conhecemos. Como vemos o combate à pobreza? Em primeiro lugar, reforçando e ampliando programas urgentes para evitar que brasileiros morram de fome, de frio ou doentes. Aí, cabem políticas compensatórias e até ações suplementares, como o programa do leite, bolsa escola e outras iniciativas de renda mínima, todas nascidas do receituário liberal e que são importantes e urgentes para se evitar o agravamento da miséria. Nesse sentido, aliás, já contamos com alguns projetos interessantes como os implementados pelo Comunidade Solidária, e notadamente as incontáveis iniciativas da sociedade civil, do terceiro setor e de organizações não-governamentais. Em segundo lugar, e principalmente para atacar as suas causas, formulando um projeto de desenvolvimento econômico e social, que, saneando o Estado brasileiro hoje, às voltas com um persistente déficit público, refém do endividamento interno que consome apenas no serviço da dívida mais de 40% de tudo que arrecada -, o capacite como indutor do crescimento, reformador de estruturas e gestor de políticas sociais e de distribuição de renda. Outro pequeno parêntese, e agora para desnudar aquilo que nem o Governo e muito menos os seus líderes e sustentáculos políticos admitem existir ou até a ela se referir, é a relação promíscua com a banca financeira privada, permanentemente beneficiada e engordada nos seus lucros. É necessário atacar de frente o endividamento interno, acoplando a sua solução à capacidade real
de pagamento e à questão das necessidades estruturais do País. Enquanto não houver uma negociação séria, sem quebra de contratos mas com novos termos, viabilizando o alongamento do seu perfil, continuaremos submetidos a um brutal estrangulamento orçamentário, que redunda em recorrentes cortes de gastos na educação, saúde, nos investimentos de infra-estrutura - estes também geradores de renda - como saneamento, abastecimento d'água, habitação e transporte, entre outros. E ao se falar em orçamento, não podemos desconhecer o grande, atrasado e sempre polêmico debate da reforma tributária. A proposta do Fundo soa como uma espécie de golpe anunciado ao projeto de reforma em marcha na Câmara, pois, pontualmente, embaralha uma discussão sistemática ao criar impostos, contribuições e adicionais, além de vincular receitas sem nenhuma coerência ou lógica com o projeto ora analisado pelos Deputados. Mais diretamente, transforma-se em mais um obstáculo a uma das matérias mais importantes que tramitam no Congresso Nacional. Se fôssemos levados por alguns pensamentos de Maquiavel, poderíamos até entender que o Fundo talvez visasse mais complicar a reforma tributária do que resolver o drama da pobreza. Nunca devemos nos esquecer: a carga tributária nominal do Brasil é uma das mais altas do mundo (44%), enquanto a arrecadação real já ultrapassa a 30% do PIB, e lembremo-nos, acima de tudo, que esse sistema é discriminatório e injusto nas suas imposições. O Fundo, tomando por base essa realidade orçamentária e fiscal, é, portanto, uma insensatez. Temos escassez de recursos e, assim, a sua constituição implicará cortes adicionais da União, dos Estados e Municípios em áreas sociais onde já atuam precariamente. A demonstração disso é simples: ao analisarmos a origem dos recursos para a formação do Fundo, fica evidenciada a diminuição das receitas e transferências constitucionais para Estados e Municípios, direta e indiretamente. Pior: propõe retirar recursos do BNDES, instrumento importantíssimo de desenvolvimento econômico e social, criticável nas suas definições de prioridade de investimentos e financiamentos, mas que pode ser esvaziado. O Fundo, conforme definido, tende a agravar ainda mais o quadro de pobreza, tornando efêmero e inócuo todo e qualquer projeto para sua erradicação. Se queremos enfrentar a pobreza estrutural não podemos fazer jogo de cena. Se há seriedade na iniciativa - e quero aqui crer que há - que culminou com a criação de uma comissão de parlamentares, envolvendo Senadores e Deputados, sigamos além: independentemente do conceito que temos do Governo, dos partidos e das mais diversificadas instituições da sociedade civil, aproveitemos toda a onda de generosidade para celebrar um grande pacto nacional de retomada do desenvolvimento e geração de emprego e renda . Um pacto com todos em que todos coloquem posições e se busquem consensos. O primeiro passo pode e deve ser dado pelo Governo Federal - e não se faz uma política de transformação sem a presença ativa e interventora do Estado -, convocando a própria Comissão, os partidos políticos e a sociedade civil
para um grande fórum de debates sobre a erradicação da pobreza, sem exclusões. Um detalhe - para muitos que têm receio e, particularmente, inclusive, no campo da Oposição e da Esquerda, parte dessa Esquerda: pacto não é traição e nem sucumbência de posicionamentos políticos ou ideológicos. É maturidade de quem quer mudar o Brasil, dotando-lhe de condições adequadas para conformar uma nação livre, justa, próspera e moderna no século XXI.