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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS-LINGÜÍSTICA APLICADA
OS ANARQUISTAS ERÓTICOS: UM ESTUDO COMPARATIVO DO DISCURSO DE ROBERTO DE LAS CARRERAS E ROBERTO FREIRE
Juan Pedro Álvez Suárez
Orientador: Prof. Dr. Uruguay Cortazzo Co-Orientadora: Profª. Dra. Aracy Ernst Pereira
PELOTAS, julho de 1998 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS
2
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS-LINGÜÍSTICA APLICADA
OS ANARQUISTAS ERÓTICOS: UM ESTUDO COMPARATIVO DO DISCURSO DE ROBERTO DE LAS CARRERAS E ROBERTO FREIRE
Juan Pedro Álvez Suárez
Orientador: Prof. Dr. Uruguay Cortazzo Co-Orientadora: Profª. Dra. Aracy Ernst Pereira
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Católica de Pelotas como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras
PELOTAS, julho de 1998. AGRADECIMENTOS
3
Expresso minha gratidão àqueles
que
participaram
da realização deste trabalho.
À Professora Carmem Hernandorena, incansável batalhadora pelo reconhecimento do Mestrado. Com um senso de justiça pouco comum num universo de injustiças, a decisão
certa
e ponderada.
Ao Professor Oscar gênese deste processo, como
Brisolara, que bandeirante
participou
desbravando
da
terras
desconhecidas.
Aos
colegas
de
Mestrado, Matilde, Fátima, Luiz
Gustavo, pelos conselhos, pela amizade, pelos gratos momentos onde o mate ou o vinho tornaram-se inspiradores de tos tão autênticos, honestos e sinceros. Também
meu
sentimencarinho
à Brenda e à Ivete.
À Professora Aracy, co-orientadora, pela paciência e sabedoria com que soube
conduzir-me por caminhos nunca an-
tes explorados por mim. A tarefa universos de
forma
cansativa
coerente, agradável
e
de
juntar
dois
convincente. Meu
respeito, minha admiração e profunda gratidão. Ao
Professor Uruguay, meu
orientador, meu amigo.
4
A ação certa
na hora da incerteza; a voz de coragem na
hora
de desânimo
e desespero; a saída dos becos e armadilhas
in-
telectuais; o leme desta nau
perdida na imensidão do
literário. Profissional competente
oceano
com quem tive o prazer de
dialogar longamente, discutir, aprender a aprender, ter senso crítico e principalmente ser tolerante e “diplomâtico”. Agradeço a confiança em mim depositada.
À Professora Odete Acosta, pela invalorável
cola-
boração na revisão.
A Fernando
e
Marcela, meus
de que a utopia ainda seja possível.
filhos, a
esperança
5
SUMÁRIO RESUMO...............................
VIII
ABSTRACT.............................
X
1
INTRODUÇÃO...........................
1
1.1
Apresentação do tema...................
2
1.2
A importância do tema..................
9
1.3
Os objetivos...........................
11
2
ROBERTO DE LAS CARRERAS.........
15
2.1
Da materialidade de sua história à materialidade de sua obra...............
16
2.2
O cânon zumfeldiano.....................
20
2.2.1
A estética dândi........................
24
2.2.2
O psicologismo do elemento político.....
30
2.2.2.1 O anarquismo e o Modernismo: um relacionamento tenso........................
39
2.3
Crítica ao cânon........................
42
2.4
Reações à crítica.......................
48
6
2.4.1
A necessidade de rever o discurso robertiano.............................
50
3
“AMOR LIBRE”........................
53
3.1
Condições de produção da obra..........
54
3.2
A ruptura e os efeitos de sentido. A subversão do gênero..................
3.3
56
A subversão ideológica. Anarquia e sexualidade............................
66
4
ROBERTO FREIRE.....................
73
4.1
Da materialidade de sua história à materialidade de sua obra..............
74
5
TEORIA DA SOMA.....................
83
5.1
O tesão................................
84
5.2
Os impedimentos do tesão...............
88
5.3
A liberação do tesão...................
90
5.4
O hibridismo no discurso de Freire.....
97
6
AS RESSONÂNCIAS....................
102
6.1
O uso do discurso jornalístico.........
103
7
6.2
A marginalidade, o escândalo: o anarquista em ação...................
105
6.3
As idéias de transformação sexual......
108
6.4
A ficcionalidade da sociedade..........
111
6.5
A concepção do amor. Sua temporalidade e sua finitude.........................
113
6.6
A angústia do amante anarquista........
115
6.7
O erotismo como modelo rítmico.........
116
6.8
A originalidade única..................
118
CONCLUSÃO...................................
120
NOTAS........................................
127
BIBLIOGRAFIA...............................
137
8
RESUMO Esta tese confronta o discurso
anarquista-erótico
de Roberto de las Carreras, escritor uruguaio, com o
discur-
so de Roberto Freire, escritor brasileiro, a partir da
iden-
tificação de ressonâncias interdiscursivas.
Opta-se teoricamente pela Análise do Discurso(AD), e pela Teoria da Literatura. A AD, porque apresenta conceitos importantes que auxiliam no desvelamento da natureza significante do discurso, tais
como: parafrasagem, polissemia, res-
sonâncias interdiscursivas, efeitos de sentido. A Teoria terária, porque ajuda a provar que os autores
conduzem
Li-
propostas dentro de um marco estético, preocupando-se
suas com
o
estilo, o gênero e a construção ficcional.
Primeiramente, são apresentadas as condições
his-
tóricas de produção do discurso de Roberto de las Carreras
e
a crítica sobre sua obra. A seguir, mostra-se que o autor, em Amor Libre, faz uma apaixonada defesa do
feminismo, do anar-
9
quismo e propõe um relacionamento entre homem foge aos padrões morais e sociais
da
e
mulher
que
época. Observam-se
efeitos de sentido que, através da ironia e da
aí
paródia, pro-
vocam uma subversão discursiva. Essa subversão alia-se à mistura de gêneros literários marginais, e à ficção da dade, formando um gênero híbrido.
realida-
A seguir, apresentam-se as condições históricas de produção do discurso de Roberto Freire, onde se constata
sua
insatisfação e ausência de identificação com sua
so-
classe
cial -a burguesia- além de sua opção por ideologias de transformação social. Para analisar seu discurso, toma-se como referência a Teoria do Tesão e seus elementos vitais cos -alegria, beleza e prazer- que se desenvolvem sexualidade. O discurso do escritor não
energétidentro
apresenta
da
traços de
subversão na técnica utilizada. Esta é convencional e delimitada: ensaio, crônica, autobiografia.
A tese conclui que o discurso de
Roberto
Carreras é um antecedente do de Roberto Freire
las
que
ambos
propõem mudanças nos padrões morais e sociais vigentes
atra-
vés da politicidade do
sexo. Finalmente, ao
e
de
constatar-se
o
vínculo entre eles, surgem interrogações. A principal delas é saber se existe ou não uma série discursiva
onde
se
liguem
10
anarquismo, sexualidade e literatura e onde possa ser situado o discurso anarquista-erótico de Roberto de las Carreras e de Roberto Freire.
ABSTRACT This paper compares the uruguaian de
las
Carreras’
anarchistic
erotical
writer
discourse
Roberto to
the
brazilian writer Roberto Freire’s one,with the identification of interdiscursive resonances.
Discursive Analisis (DA), and Literary Theory choosen. The DA, because
presents
help in the discovery of
significant
such
as: paraphrase, polysemy,
effects of sense. Literary
important nature
concepts of
resonances,
helps
that both writers take their proposals to
an
that
discourse,
interdiscursive
Theory, because
are
to
prove
esthetic
way,
worried about style, gender and fictional construction.
First, historical conditions
of
Roberto
de
las
Carreras’ discursive production and the critic about his work
11
are presented. Then, it is showed that Amor Libre, does a pasionate defense of
the
author, in
feminism, anarchism
and
proposes a relationship between man and woman that runs
away
of moral and social patterns of this epoch. Effects of are appreciated that through
irony
and
sense
parody, provoque
a
discoursive subversion. This one joins to literary mixture of marginals genders and the fiction of reality. Then, Roberto Freire’s
historical
conditions
of
discursive production are presented, where his insatisfaction and not identification with
his
social
class -bourgeoisie-
and his option for social transformation ideologies are showed. To analize
Roberto
Freire’s
discourse, the
Theory
of
“Tesão” is used as reference and its vital energetic elements -joy, beauty and pleasure- that develop
into
sexuality. The
writer’s discourse does not present features of subversion in the used technic. It is
conventional
and
delimited: essay,
chronicle, autobiography.
The conclusion emphasizes that Roberto de las Carreras’ discourse is a precedent of Roberto Freire’s both propose changes in moral and social patterns through the politicy of sex. Finally, the
tie
one in
and
between
vigour them
opens questions. The main one is if exist or not a discursive
12
serie where anarchism, sexuality and
literature
and
and
if
Roberto
de
las
Carreras’
Roberto
are
anarchistic erotical discourse can be place there.
joined Freire’s
13
1. Introdução 1.1- Apresentação do tema
O presente
trabalho, "OS
tem como finalidade proceder a
uma
ANARQUISTAS análise
funcionamento do discurso anarquista-erótico
ERÓTICOS",
comparativa
do
de
DE
ROBERTO
LAS CARRERAS, escritor uruguaio e o de ROBERTO FREIRE, escritor brasileiro.
Ambos os discursos configuram-se como propostas de transformação social através da conscientização da
politici-
dade do sexo e projetam-se sobre um horizonte discursivo utó-
14
pico. O utopismo, como se verá, participa, ao mesmo tempo, de uma dimensão literária e
de
outra
política. Assim, opta-se
por um duplo enfoque teórico.
Consideram-se duas abordagens
teóricas: a
literária e a análise do discurso. A primeira, pela
teoria
lidade de provar que esses autores
conduzem
suas
possibipropostas
dentro de um marco estético e compreendem a si próprios
como
escritores, no sentido tradicional do termo, vale
dizer, têm
preocupação com o estilo, o gênero e a construção
ficcional.
No âmbito literário procede-se a uma análise genológica e tematológica do
corpus
escolhido. A
segunda, por
apresentar
conceitos importantes que auxiliam no desvelamento da natureza significante do
discurso
anarquista-erótico
Dentre esses conceitos destacam-se: a)o de parafrasagem -dizer "o mesmo"- e o de
e
utópico.
polissemia –di-
zer "o diferente"- (cf. Orlandi:1987), que são
constitutivos
de todo discurso de todo discurso.1 Eles criam a tensão entre a reiteração de processos cristalizados pelas instituições
e
a reformulação através de sentidos diferentes, múltiplos; b)o de formação discursiva (FD) ”que determina o que deve ser dito a partir de uma posição dada (Pêcheux e Fuchs,1990,p.166). Esse
conceito
numa
pode
e
conjuntura”
serve
operatório para circunscrever os discursos em questão
de
meio dentro
15
de um espaço oposto aos valores cristalizados pela sociedade; c)o de efeito de sentido, que parece pertinente na confrontação do discurso de Roberto de las Carreras com o discurso Roberto Freire. Ambos provocam efeitos de sentido que
de
dessa-
cralizam os padrões morais vigentes na sociedade; d)o de ressonância de significação, tomado de
empréstimo
Serrani. A autora introduz essa noção ao tratar da
de
paráfrase
no âmbito da Análise do Discurso. Diz ela:
"Entendo que há paráfrase quando podemos estabelecer entre as unidades envolvidas uma ressonância -interdiscursiva- de significação, que tende a construir a realidade (imaginária) de um sentido. Ressonância porque para que haja paráfrase a significação é produzida por meio de um efeito de vibração semântica mútua. A meu ver, a noção de ressonância permite incluir, na própria conceituação de paráfrase, o sujeito da linguagem, pois ela sempre ressoa para alguém, tanto na dimensão dos interlocutores empíricos projetados no discurso (projeção para a qual é fundamental o domínio das formações imaginárias), quanto para a dimensão do sujeito, no sentido foucaultiano do termo, ou seja, o do lugar de exercício da função enunciativa em uma formação discursiva. Em se tratando de uma ressonância interdiscursiva, fica compreendido o trabalho como uma concepção heterogênea de linguagem (...) As paráfrases, então, como as estou entendendo aquí, ressoam significativamente na verticalidade do discurso e concretizam-se na horizontalidade da cadeia, através de diferentes realizações lingüísticas." (1993,p.47)
O conceito de
"ressonâncias
interdiscursivas" ou
"ressonâncias de significação", usado para estudar o processo parafrástico, revela-se operatório para este estudo, na medi-
16
da em que possibilita confrontar os discursos em pauta e mostrar até que ponto eles constituem um novo modo de “dizer”.
A importância do emprego desse conceito deve-se ao fato de se referir aos efeitos de sentido produzidos pela repetição, no nível do interdiscurso, o que facilita
estabele-
cer simetrias e/ou assimetrias entre o discurso de Roberto de las Carreras e o discurso
de
Roberto
Freire, que
permitem
circunscrevê-los, ou não, no mesmo espaço discursivo. Ao permitir focalizar os
elementos
do
contrapô-los aos discursos tidos
interdiscurso, possibilita como
sérios, os
legitima-
dos, onde não há espaço para os enunciados referentes
à
li-
berdade sexual.
Entretanto, deve-se ressaltar que esse espaço possivelmente compartilhado por eles não se refere aos
sentidos
sedimentados. Ao contrário, é o "mesmo" mas no espaço do “diferente”. Assim, as "ressonâncias" devem ser aqui
entendidas
como os efeitos de sentido produzidos pela repetição, em nível interdiscursivo, de uma formação discursiva que se contra-põe ao instituído. As ressonâncias permitem demonstrar existência de um certo tipo de discurso utópico comum em berto de las Carreras e Roberto Freire, apesar do mento temporal e espacial de suas obras.
a Ro-
distancia-
17
O discurso utópico dos autores aparece
como
uma
transgressão ou subversão do discurso previsto e aceito
pela
ordem vigente e como uma proposta de um novo modelo de sociedade. É um discurso desmascarador da injustiça e do mal ordenamento político e social. Opõe-se ao discurso que legitima o status quo da sociedade. Vem a dizer, pois, outra de-se afirmar que, ao mesmo tempo, o discurso
coisa. Po-
utópico
é
um
discurso político e um gênero literário.
A definição de utopia tem, em si mesma, uma particular ambigüidade que reclama um duplo enfoque. Por um
lado,
inscreve-se dentro do campo do
mundo
discurso
político: um
futuro que se elabora a partir da crítica e da impugnação
da
ordem social vigente; por outro, pertence ao campo literário. Dentro deste campo, constata-se uma divergência entre os
au-
Tores quanto à definição do gênero. Alguns autores consideram a utopia um sub-gênero literário, um texto
que
descreve
um
mundo possível e futuro.2 Outros, dão mais importância ao aspecto narrativo. A ficção está presente na narração, mas também nos textos onde se descreve uma sociedade inexistente futura. Neste caso, o tratado utópico pode transformar-se novela. Os autores que se filiam a esta a utopia “una rama del
género
corrente
ou em
consideram
novelesco” (cf.Trusson:1079).
18
Do relacionamento utopia-novela obtém-se se “la impresión autenticidad y verosimilitud” (Ibid,p.21). A utopia na novela a melhor forma para realizar seu
de
encontra
propósito. Consi-
derando o aspecto narrativo, Raymond Trousson elaborou a
se-
guinte definição de utopia:
“…proponemos que se hable de utopia cuando, en el marco de un relato (lo que excluye los tratados políticos), figure descrita una comunidad (lo que excluye la robinsonada), organizada según ciertos principios políticos, económicos, morales, que restituyan la complejidad de la vida social (lo que excluye la edad de oro y la arcadia), ya se presente como ideal que realizar (utopia constructiva) o como previsión de un infierno (la antiutopía moderna) y se sitúe en un espacio real o imaginario o también en el tiempo o aparezca, por último, descrita al final de un viaje imaginario, verosímil o no.” (Grifo nosso) (1979,p.54)
Contudo, a obra fundadora Utopia, de Thomas que deu o nome ao gênero, apresenta a predominância
More,
do
ele-
mento descritivo; não há intriga como na novela.
A utopia também é concebida como mentalidade especulativa, como “superación de los límites actuales
del
hom-
bre” (Trousson,p.24). Neste caso, denomina-se
utopismo, isto
é, ”actitud mental que entraña la impugnación
o
incluso
la
negación radical del orden existente en nombre de outro sistema de valores” (Ibid,p.32). Thomas Molnar chega à conclusão de que o utopismo não é apenas uma forma de experimentar
com
19
as possibilidades sociais, mas um sistema de
pensamento, uma
filosofia que estabelece uma concepção global do mundo:
"El utopismo es un sistema de pensamiento, una filosofía con bien establecidos conceptos acerca de Dios, del hombre, de la naturaleza y de la comunidad.” (Grifo nosso) (1970,p.240)
Thomas Molnar sustenta que, em nível discurso utópico surge do cruzamento do
literário, o
conceito
do
começo
imaculado da civilização, Idade de Ouro, com o mito do Paraíso, introduzido pelo Cristianismo. O autor descreve, referindo-se ao mito que, no início as coisas tinham
uma
perfeição
ideal, depois degeneraram:
"...un estado primitivo en el cual las cosas poseían una perfección ideal, luego de lo cual sobrevino la degeneración (...) todo había comenzado por una Edad de Oro (...) la propiedad privada corrompió esas idílicas alquerías: la codicia, la avaricia y la envidia se hicieron universales.” (Grifo nosso) (1970,p.24)
Segundo Molnar, com o Cristianismo, o homem
pas-
sou a acreditar que o bem e o mal coexistem e espera o dia do Juízo Final. O homem não podia aceitar a possibilidade de uma comunidade terrena ideal e imutável antes chegasse. O discurso utópico
de
seria, pois, o
que
esse
instrumento
dia do
20
homem na luta pela recuperação da pureza absoluta.
O discurso dos autores estudados pode ser qualificado de utópico, já que apresenta a idéia
de
uma
sociedade
futura, com outros valores e uma nova concepção do
homem, do
mundo e a natureza. Essa utopia se materializa pela adesão um sistema ideológico
específico. Ambos
a
escritores, aberta-
mente declaram-se anarquistas e propõem a
transformação
so-
cial através do anarquismo.3
Tanto Roberto de las Carreras quanto Roberto Freire dão uma importância central ao
fator
sexual, dentro
das
mudanças que devem operar-se para que se produza o advento da nova sociedade.
O objeto central do estudo constitui-se na articulação da anarquia com a sexualidade, o que denomina-se quismo erótico. Por este termo entende-se, de concepção que, partindo de uma
teoria
modo
anar-
geral, a
anarquista, propõe
a
abolição de todo princípio de autoridade institucional na esfera sexual para que os próprios indivíduos sejam os encarregados de autogestioná-la em plena liberdade.
No trabalho, ver-se-á que
a
corrente
denominada
21
denominada Anarquismo não constitui uma unidade, um bloco homogêneo e pacífico, mas uma corrente diversificada de propostas políticas, econômicas, sexuais, sociais e artísticas. Tem-se, então, o anarcossindicalismo, o anarquismo individualista, o anarquismo
comunista, o
anarquismo
naturalista, o
anarquismo aristocrático, etc.
Também, apreciar-se-á o fenômeno do
dandismo
que
surgiu em fins de século XIX e que está ligado ao anarcoindividualismo. Sua essência está na criatividade, na
originali-
dade como expansão do eu, sem os limites impostos pelas mas sociais. O dandismo pode ser
considerado
uma
nor-
derivação
prática do utopismo na medida em que propõe um mundo
estéti-
co, comportamentos e valores contrários às convenções sociais da época. Ao propor uma sociedade diferente, ideal, o dandismo relaciona-se com a utopia.
1.2- A importância do tema
A importância do tema abordado
fundamenta-se
nos
seguintes pontos: a)existe no marco do Mercosul um grande esforço de integração cultural. No caso específico do Uruguai e do se sempre essa aproximação através da
figura
Brasil, traçoudo
gaúcho, ou
22
“gaucho", no seu habitat natural, o pampa. Contudo, esta tese tem interesse em demonstrar que o relacionamento
convergente
dos dois países na área da teoria literária
corresponde
não
única e exclusivamente ao discurso gauchesco, mas que há outra artéria latente e viva que, no fim do século, apresenta propostas de profundas mudanças
político-sociais. Dentro
comparativismo acadêmico, parece existir o concentrar num regionalismo de evidente
interesse
do se
romântico
ou
traço
de
realista para afirmar uma identidade baseada em características geográficas e folclóricas, ou seja, um tradicionalismo de costumes. Descuida-se, assim, de outros
aspectos
como as projeções utópicas afins com os
vanguardismos
ristas, pouco preocupadas em ressaltar valores
culturais, futu-
autóctones
e
que, ao contrário, apresentam-se como uma crítica a esses valores, como é o caso do objeto de estudo da presente tese; b)não há no Uruguai um reconhecimento da dimensão e da importância do discurso de Roberto de las Carreras, que é considerado de ordem secundária. O universo discursivo crítico dicional, que neste trabalho se refere aos trabalhos
tra-
de
Al-
berto Zum Felde e a Geração do 45, deprecia os valores
lite-
rários do escritor, desviando a atenção para
pecu-
liares de sua vida.4 O investigador
Emir
aspectos
Rodríguez
Monegal
até chega a descobrir um “algo mais” no discurso do escritor, possivelmente a proposta de transformação social
através
da
23
politicidade do sexo, mas não aprofunda
o
exame. Há, então,
uma lacuna que esta tese tenta preencher; c)no Brasil, a obra de Roberto Freire também é desvalorizada, fato constatado pela inexistência de crítica ou de poucos artigos na mídia, reduzidos a entrevistas
sobre
a
sua
vida,
único espaço que lhe é concedido; d)Roberto de las Carreras e Roberto Freire aproximam-se quanto à escolha do gênero
literário, pois
expõem
suas
através de um determinado leito -a prosa-, e, dentro
idéias dele, a
autobiografia tem um fator destacado. Em Roberto de las
Car-
reras e Roberto Freire, a autobiografia mistura-se com a
re-
portagem jornalística, o ensaio e a crônica.5 Nesse os dois escritores situam seus trabalhos em zonas ças, enlaçando gêneros, o que se conhece como autores
sentido, fronteiri-
hibridismo. Os
rompem, subvertem, criam enfim novos efeitos de lei-
tura. Os discursos analisados
invertem
aspectos
culturais,
sociais, políticos e estéticos; e)ao utilizar estratégias discursivas, os autores desnudam
a
hipocrisia vigente na sociedade acerca das questões ligadas à sexualidade, ao mesmo tempo que marcam a sua posição diferenciada de sujeitos numa atitude clara de confronto com os beres legitimados.
1.3- Os objetivos
sa-
24
Com o presente trabalho, pretende-se: a)verificar, em seqüências discursivas selecionadas, que dois escritores, uruguaio e brasileiro, vinculados ao
anarquismo,
propõem idéias políticas e estéticas utópicas, através da sexualidade;6 b)determinar, nas seqüências discursivas analisadas, os
pon-
tos de convergência e/ou divergência entre o discurso de Roberto de las Carreras e o de Roberto Freire a partir da identificação de ressonâncias interdiscursivas; c)demonstrar, através de
elementos
interdiscursivos, que
proposta anarquista de Roberto de las Carreras, de uma
a
revo-
lução social através da sexualidade, é um antecedente da proposta de Roberto Freire, na série literária latino-americana. Trata-se de um caso de analogia entre dois autores sem influências diretas. Freire desconhece a obra de Carreras. Não existe a suposição de
uma
Roberto
tradição
de
las
literária
desenvolvida a partir de Roberto de las Carreras no Uruguai.7 A coincidência explica-se em
termos
de
interdiscursividade
que aqui pode ser vista a partir de certas formas de gem que mostram os autores como sujeitos de
lingua-
transgressão
assumirem a posição de luta pela liberação ou
liberdade
xual. Ambos apresentam a sexualidade como elemento de ças da sociedade. Os dois escritores fazem uma
ao se-
mudan-
abordagem
da
25
sexualidade desde o ponto de vista político
e
lhe
atribuem
poderes revolucionários.
Com vistas à consecução desses
objetivos, o
sente trabalho busca articular conceitos do campo da Literatura com conceitos do campo da Análise
da do
preTeoria
Discurso
francesa. Na verdade, vale-se desses últimos pela
possibili-
dade que oferecem de evidenciar, na materialidade
lingüísti-
ca, as propriedades político-ideológicas
presentes
qüências discursivas constitutivas do corpus.
nas
se-
26
27
2. Roberto de las Carreras 2.1- Da materialidade de sua história à materialidade de
sua
obra
Nasceu em 1873, em Montevidéu, fruto do relacionamento extra-conjugal entre
Clara
García
de
Zúñiga, mulher
pertencente a uma família tradicional da aristocracia do da Plata, e Ernesto de las Carreras, homem ligado ao uruguaio, do departamento de Paysandú. Muitas são
as
Rio
governo histó-
rias, versões e anedotas que envolvem a abastada família terna, mas todas convergem em um ponto: foram
tormentosas
mae
acabaram colocando os membros da família uns contra os outros na briga pelos direitos hereditários.
28
A mãe de Roberto, bastante citada
pelos
críticos
do escritor, não viveu ajustada aos padrões sociais e
morais
da época, fato pelo qual foi considerada quase uma
prostitu-
ta, e apenas tolerada pela alcunha e
dilapidou
fortuna –que
rapidamente. Acabou seus dias, após um confuso
e
conturbado
processo judicial, declarada louca e reclusa na fazenda de um de seus genros.8
Vinculou-se Roberto ao ambiente inteletual do
900
montevideano, principalmente ao filósofo Carlos Vaz Ferreira, seu amigo de estudo, com quem partilhou o gosto pela
litera-
tura e a quem dedicou muitas de suas obras. Participava das tertúlias literárias e tinha estabelecido a sua no Café Moka, onde ditava a
seus
secretários
os opúsculos que publicava em jornais anarquistas, e no nal El Día, de outro amigo, Batlle y
Ordóñez, que
jor-
chegou
a
ser eleito presidente do Uruguai.9
Quando recebeu a herança paterna viajou e
estabe-
leceu-se na Europa, de onde enviava crônicas que eram
publi-
cadas em El Día. De volta, apresentou-se à sociedade
defini-
tivamente mudado: tinha assumido o dandismo, defendia o
amor
29
livre, professava o anarquismo
e
começava
a
escandalizar,
provocando as mais variadas reações no meio social. Era admirado euforicamente ou odiado com veemência.
Das pessoas do círculo literário que o Julio Herrera y Reissig foi seu amigo e parceiro
admiraram, em
algumas
Produções. Pode dizer-se que foi seu discípulo no que se
re-
fere ao anarquismo, ao dandismo, ao erotismo, e também ao Modernismo. A amizade acabou anos depois por causa de
uma
po-
lêmica criada sobre uma metáfora, cuja autoria ambos escritotores disputavam.
Em 1901, casou-se
com
Berta
Bandinelli, contra-
riando sua pregação anarquista e do amor livre, mas se justificou em uma carta dirigida a Julio Herrera y Reissig
e
pu-
blicada no jornal anarquista Trabajo, alegando que o fazia para que sua noiva não fosse internada numa instituição para menores e para que não perdesse o direito a uma herança.
Aos poucos foi dilapidando
sua
fortuna, chegando
a passar necessidade. Então, lançou mão de um
pedido
a
seu
amigo, então Presidente, Batlle y Ordóñez, para que o nomeasse cônsul do Uruguai em Paris.10 Possivelmente, com temor
de
que Roberto, com seus escândalos, provocasse um incidente di-
30
plomático, o pedido não
foi
atendido. Contudo, foi
nomeado
para o consulado no porto de Paranaguá, Brasil, o que se pode dizer, foi quase um exílio, um isolamento.
A partir de 1915, afastou-se da atividade lectual atacado pela neurose
que
avançou
inte-
progressivamente.
Internado numa clínica, na mais completa miséria e
esquecido
pela crítica, morreu em 1963. A produção literária de Roberto começa com Poesía(1891),escrita Lector
sob
o
pseudónimo
de
Jorge
Kostai.
Al
(1894) é um elaboradíssimo e original poema no qual a crítica no
poema é uma sátira da instituição literária
com
Uruguay.11 O
vislumbra os primeiros passos do Modernismo
todas
suas
convenções, uma repreensão e um ataque ao leitor burguês pela sua ingenuidade, um poema de
corrosiva.12 No
autoreferência
poema, Roberto manifesta que não tem nada a dizer e que o melhor a fazer é deixar de escrever. Diz que o leitor não tem a capacidade de entender que o poema é uma grande burla e
con-
sidera o leitor um idiota por perder seu tempo lendo-o. A parodia, conforme anota Cortazzo, acompanha suas
obras
poste-
riores. A novela Amigos (1894) está impregnada de dados autobiográficos -outra tônica que acompanhará suas obras. Na
no-
31
vela, nota-se a influência do amigo, o
filósofo
Carlos
Vaz
Ferreira. Sueño de Oriente (1899) é dedicado a uma mulher casada -seu objeto erótico- a quem chama de Lisette, e que provocou forte reação no meio culto e foi considerado como
algo
monstruoso; Amor Libre (1902) é objeto de análise na presente tese porque é a obra do escritor que anarquistas de forma concentrada
e
apresenta com
maior
suas
idéias
intensidade,
conforme apreciar-se-á; Parisianas(1904), um livro de crítica literária; Psalmo a Venus Cavalieri (1905), um desafio galante lançado à belíssima atriz Lina Cavalieri, texto de refinada edição, no qual Roberto alcança o ápice do erotismo voluptuosidade sutil, numa mistura de mitos, símbolos e
e
da tra-
dicionais figuras eróticas universais; En onda azul(1905), um poema em prosa dedicado a uma jovem de família, na época interpretado como abominável e escandaloso. O irmão da
foi moça
entendeu que o poema tinha maculado a honra da família e tentou matar Roberto atingindo-o no peito com dois disparos. Entre outras obras de Diadema (Balma-
militância
fúnebre(1906),
erótico-anarquista
Oración
ceda)(1907). No exílio, no porto La
pagana(1906), de
escreveu Don
Juan
Paranaguá, escreveu
visión del arcángel(1908), no qual a crítica começa a distinguir uma virada para a metafísica. La Venus Celeste(1909), El
32
cáliz(1909), Suspiro de una palmera(1914), são
suas
últimas
produções.
2.2- O cânon
zumfeldiano
Em todos os discursos críticos tradicionais o discurso literário de Roberto de las
sobre
Carreras, precedentes
a esta tese, há uma indissimulada preocupação pela dos aspectos biográficos e não literários. Quando
exaltação a
crítica
emprega o termo biografia, refere-se a anedotas, acontecimentos, escândalos, não enxerga a possibilidade da ficcionalidade do biográfico, de torná-lo discurso literário. Via de
re-
gra, entende o discurso de Roberto de las Carreras apenas como a representação de uma época ou de
uma
personalidade, ou
seja, com mero valor histórico e psicológico.
O discurso crítico tradicional sobre o valor biográfico ao valor literário. A obra é
Roberto opõe lida
objetivo de isolar os fatos biográficos e de levar à
com
são de que a vida do autor
-as
anedotas, os
conclu-
escândalos, os
lances donjuanescos- é mais interessante que as idéias quistas contidas nos panfletos que utilizava
o
para
anar-
atacar
a
ordem familiar e social de seu tempo. Os panfletos são considerados "documentos amorais" (cf.Zum Felde:1921) que não
de-
33
vem nem merecem ser analisados. O talentoso crítico e
pioneiro
uruguaio
Alberto
Zum Felde enuncia os primeiros juízos sobre o Roberto de
las
Carreras. Faz alguns elogios mas chega à conclusão de que Roberto é mais interessante como personagem que como Cria uma oposição entre personagem e literatura
ou
escritor. entre
a
vida a obra. Personagem e vida têm um valor positivo mas literatura e obra têm valor negativo:
“No es su obra literaria lo que le significa com tan singulares relieves ante la crítica, sino su vida. No tanto escribe, cuanto vive su obra.” (Grifo nosso) (1921,p.47)
Este será o parámetro fielmente seguido por alguns críticos posteriores. Mais tarde,o citado crítico volta a manifestar sua opinião sobre o "vate", quando diz que é mais interessante vida do escritor do que sua obra, que aparece assim
a
subordi-
nada ao aspecto biográfico:
“Más que como escritor, Roberto de las Carreras es interesante como personaje(…) Su literatura no fue sino un complemento de su vida; compuesta, en su mayor parte, de opúsculos ocasionales y de panfletos polémicos, tendía a propugnar por sus ideas revolucionarias o a defender sus actitudes inmoralistas; y en el fondo, tras el estilo refinado y metafórico, eran verdaderos alegatos.” (Grifo nosso)
34
(1987,p.321)
O crítico Ángel Rama, apoiando-se, como é óbvio, nas formulações do mestre Zum Felde, comenta que literatura e pessoa eram uma só:
“Dio consumación en tierra americana a sus principios de espectacularidad y agresión contra el medio, a su sistema de incorporarse a la sociedad mediante un negativismo crítico muchas veces superficial, a la subjetivación violenta mediante la cual la literatura se hacía una con la persona y era ésta aun más que aquélla la que se publicitaba y vendía en el mercado. Por esse camino había de practicar la máxima con la cual Oscar Wilde definiera la conducta del decadentismo inglés, poniendo su talento en la vida más que en los libros y haciendo de su própia vida una obra de arte refinada insólita, candorosamente cruel.” (Grifo nosso) (1967,p.8-9)
Emir Rodríguez
Monegal, de
sobre literatura latino-americana, em
conhecidos
trabalhos
convergência, adiciona
que a novidade do escritor uruguaio era sua vida:
“Pero la novedad de Roberto de las Carreras es más vital que literaria.” (Grifo nosso) (1969,p.13)
Arturo Sergio Visca, outro crítico os anteriormente citados, também faz seu
uruguaio, como
aporte, no
sentido
de que o significativo não é a qualidade da obra do escritor, mas sua personalidade:
35
“No por la calidad de su obra sino por la singularidad y lo significativo de su personalidad -paradigmática de lo vitalmente más hondo del novecientos- Roberto de las Carreras merecería que se le dedicara um libro.” (Grifo nosso) (1975,p.XVIII-XIX)
Em resumo, pode-se destacar que o cânon zumfeldiano apresenta as seguintes opiniões sobre a obra de Roberto de las Carreras: a)subordinação da obra à vida, tirando importância
àquela
e
ressaltando apenas os aspectos biográficos; b)apreciação de valores parciais
em
Roberto, considerando-o
precursor do Modernismo Hispano-americano no Uruguai e de boa técnica no uso do verso alexandrino; c)consideração histórica do valor das
propostas
anarquistas
do autor e a negação da vigência das mesmas.
Os aspectos literários, embora positivos, são considerados secundários pelo cânon zumfeldiano, uma vez que críticos utilizam uma estratégia repressiva. Roberto é
os
cata-
logado por eles, pejorativamente, como escritor menor. É procedente questionar quais foram os parâmetros
utilizados
por
eles para chegar a essa qualificação. Como sabem que o escritor é menor se alegam que seu discurso não merece ser estudado, pois a vida dele é mais importante do que a obra?
36
2.2.1- A estética dândi
É impossível compreender o comportamento, a postura de Roberto, sem compreender, primeiro, o fenômeno do dismo e sua essência: a vida como arte, estética pura
dane
vi-
tal. Luis Antonio de Villena, em sua teoria sobre o dandismo, afirma que o dândi vivia esteticamente, sua
vida
era
sua própria obra de arte:
“El Dandy es un ser volcado a la estética, que lleva a sus maneras, a las artes sutiles de su propia persona (...) Su vida es su obra de arte (...) arte que encubre o significa -en armoníauna actitud rebelde. Pero el Dandy es, además, egocéntrico, impasible e impertinente.” (Grifo nosso) (1983,p.19)
Ações próprias de um dândi: imprevisível, impertinente e fantasioso, são suas armas contra o mundo que sofrer. Os ataques amorosos não são por
amor, ele
Embora seja um sedutor natural, o faz de forma provocaçâo. Além de rebelde, o dândi é
o
não
faz ama.
gratuita, por
exibicionista, narci-
sista, individualista.
Como dândi, Roberto é um eterno rebelde
contra
sociedade e seus costumes, sua moral, suas convenções gras. Desta rebeldia, como diz Villena, nasce o
e
a re-
artista, ele
37
próprio como exemplo:
“Del dandysmo como rebeldía parte la idea del artista creador de una actitud, del artista como ejemplo (aunque este ejemplo pueda ser después la bohemia, el vagabundaje, o la droga.” (Grifo nosso) (Ibid,p.18)
O personagem dândi é o rei da cena social, ele representa aquilo que é, porque a vida é sua obra de arte, e o instrumento desta arte é a fantasia. Assim, Villena adiciona:
“El personaje dandy (y son más elementos que comtribuyen a hacer de él um mito) es el rey de una escena social, cultiva la fantasía y se siente insatisfecho y estéril. La escena social es su universo, el círculo de su disidencia, el lugar en el que debe resplandecer su esteticismo(...) Hemos dicho antes que el dandy hace arte con su vida, y el instrumento, el material de esse arte, de ese culto distinguido a la estética es la fantasía...” (Grifo nosso) (Ibid,p.22)
Também Hans Hinterhaüser elabora teoria te, no sentido de que a maior criatividade do dândi
semelhané
fazer
da sua própria pessoa uma obra de arte, um ato de fantasia:
“El logro sublime del gran dandy consiste en hacer de su persona una obra de arte, en convertirse él mismo en una realización de la belleza. Belleza como artificio, belleza como acto de la fantasía, del entendimiento y de la voluntad, como encarnación antinatural y gratuita del principio estético...” (Grifo nosso)
38
(1980,p.77)
Mais adiante, o crítico citado menciona fenômeno do dandismo apresenta
que
este
uma estreita vinculação entre
vida e literatura: “Aún quedaría mucho que decir para completar nuestro inventario de dandies. Tendríamos que hablar, entre otras cosas, de esse fenómeno sin precedentes que fue la estrecha unión entre vida y literatura em el Fin de siglo: los autores de las novelas a las que nos hemos referido ultimamente (Valle-Inclán, D'Annunzio, Wilde) llevaron ellos mismos una existencia de dandies, y junto a éstos, otros muchos como el joven Barrès, el joven Gide y el joven Proust, em cuyo ciclo de novelas pueda quizás verse también la negación del snobismo por parte de un auténtico dandy.” (Grifo nosso) (Ibid,p.87)
No discurso crítico tradicional uruguaio, no cânon zumfeldiano, há uma total incompreensão sobre a estética dândi, o contexto no qual se inscreve
de
las
Carreras. Carlos
Martínez Moreno, em El Aura del 900, além de catalogar o dandismo como ridículo atual, diz que o caso do escritor uruguaio era patológico:
“En la cuota del ridículo incluiríamos hoy los alardes de dandysmo en que incurrieron algunos escritores del 900, entre los cuales uno de los más valiosos; ridículo actual y ridículo en aquel tiempo (…) Hay grados del dandysmo, porque no todo en él es patológico como en el caso de Roberto de las Carreras.” (Grifo nosso) (1968,p.167-169)
39
E a controvérsia fica ainda mais
evidente
diz que o dândi é um provocador e que quer ele
quando
mesmo
ser
o
personagem de sua literatura, de sua aventura vital:
“El dandysmo es un desafío porque el dandy es un retador, un provocador: quiere convertirse él mismo en el personaje de su literatura, en el protagonista de su propia aventura vital.” (Grifo nosso) (Ibid,p.167)
Emir Rodríguez Monegal vê o engajamento do tor no movimento anarquista apenas como
um
au-
atrevimento, uma
falta de vergonha de dândi:
“...por sus lecturas y hasta por algunos desplantes personales, Roberto de las Carreras y Herrera y Reissig pudieron incorporarse a una corriente anarquista em la cual militaban ya Sánchez y Vasseur; de estos los aislaba la posición estética y el ostentoso dandysmo de las actitudes.” (Grifo nosso) (1950,p.46)
Ángel Rama, sobre o poeta dândi escreve que ator de si mesmo, um personagem que
representa
sua vida, e que essa representação -uma ção- acabará alienando o
um
teatralmente
falsidade, uma
homem, convertendo-o
é
num
fic-
fantoche
que vaga pelas ruas de Montevidéu:
“...el poeta debe transformar su vida em um espec-
40
táculo fabuloso, tenazmente original y disonante, para ofrecerlo agresivamente a sus contemporáneos; el poeta será el actor de sí mismo, compondrá cuidadosamente un personaje de teatro y representará en la vida haciendo que su obra literaria no sea sino la sucesión de arias que corresponden a un cómico de la realidad, las que él recita, cada vez más presionado por el personaje ante el público del gran teatro del mundo para quien se ofrece en una apoteosis muchas veces irrisoria (…) el alucinante mundo de una marioneta que deam-bula por el pedestre Montevideo. En esos diez años el hombre habrá sido enajenado por el personaje (...) No es la verdad estricta de los hechos la que nos importa, sino la manera como él los maneja para ir componiendo su personaje, dado que es éste el que prefirió ofrecer al mundo.” (Grifo nosso) (1967,p.9-10)
O curioso é que Ángel Rama
entende
ou
aceita
o
dandismo de Oscar Wilde e de outros poetas, mas não consegue aceitar o dandismo de Roberto, e menos ainda consegue vislumbrar o anarquismo individualista, como nesta passagem se refere ao panfleto lido por Roberto em 1902 na
quando
celebração
de Emílio Zola:
“Si Oscar Wilde pudo escribir El alma del hombre bajo el socialismo, no resulta tan rara esta explosión ácrata de un dandy de uma de las grandes familias uruguayas.” (Grifo nosso) (Ibid,p.36)
O crítico uruguaio diz que não é estranha a explosão do dândi, mas paradoxalmente não é o que sustenta em seus comentários, motivo pelo qual se pode afirmar que seus comentários são controvertidos e incoerentes. O
paradoxo
de
seu
41
discurso é que, por um lado, sustenta que Roberto é
o
dândi
perfeito, mas, por outro lado, não aprecia a fusão da literatura e da vida que é parte da estética dândi. Também não
va-
loriza a ficção vital, a qual considera artificial. Na tentativa de Roberto de "compor uma personagem" vê uma um “ator”, um "traje", uma
"máscara", uma
falsidade,
"dicção
uma “marionete", sem apreciar a ficção deliberada
cênica", irônica
uma
ficção,
que fundamenta esta conduta: toda a sociedade é
e
por isso o dândi deve inventar a melhor criação que puder: “...cuando publique En onda azul(1905)nada quedará del ser humano real que inició la aventura; en su lugar habrá um actor gesticulante, un traje de teatro, una máscara compuesta, una dicción escénica con un staccato insoportable...” (Grifo nosso) (Ibid,p.9-10)
O dândi descobre a ficção das instituições sociais e com isso a possibilidade de reinventar o
mundo
social, ou
seja, viver os sonhos e criar-se a si mesmo. Assim o expressa Cortazzo, em um artículo do 12 de setembro de 1997, no jornal El País Cultural:
“Los dandies, como Roberto, mucho antes que los sociólogos del conocimiento, descubrieron que la sociedad era una creación artificial y por lo tanto decidieron inventarse su propia realidad, antes de vivir la mediocre realidad prefabricada que se les ofrecía.” (Grifo nosso) (1997,p.2)
Pode criar vida, por exemplo, como em Amor
Libre,
42
reinventar outra mulher, que tenha alma, que
vibre, que
não
seja uma montevideana "inerte":
“Cambiemos su sangre, ¡hagamos otra mujer!” (Grifo nosso) (1967,p.77)
cambiemos
Pode aplicar a originalidade da arte à
su
fisiología:
vida, por-
que a arte original é igual ao amor original, segundo
o
se-
guinte trecho:
“-Tienes razón, Roberto. Para quererse se necesita fantasía...La vida en común apesta! Lo que se tiene siempre al lado es forzosamente trivial. ¡Cómo no hemos de cansarnos del Amor, cuando según tú me has explicado, lo mismo ocurre con el sentimiento del Arte! La originalidad, me has dicho, no es otra cosa que un exitante de nuestra sensibilidad, un despertamiento producido por lo nuevo...En Amor se necesita originalidad, como en Arte...” (Grifo nosso) (Ibid,p.114-115)
O dândi tem a deliberada intenção
de
transformar
a vida, a personalidade, em obra de arte, ou seja, uma ficção criativa. Por exemplo, em Poema Sentimental, embora não
seja
analisado no presente trabalho, encontra-se um exemplo procedente, quando o escritor rotula-se "homem fantasia":
“Pero yo no me fijo en tales cosas. Yo me paso soñando noche y día.
43
Vivo en altas regiones Y soy, lector, um hombre (Grifo nosso) (1944,p.81)
luminosas, fantasía.”
2.2.2- O psicologismo do elemento político
Alguns críticos apontam como origem da rebeldia de Roberto de las Carreras o fato de ser filho bastardo. A
par-
tir dessa posição crítica, que consideram definitiva e acabada, estudam este aspecto desde o ponto de vista social e psipsicológico, justificando toda a explosão critor como produto da aceitar e
necessidade
de
literária
do
es-
justificar, assumir,
ser aceito pela sociedade. Ser bastardo é a situa-
ção que, como diz Rama, fundamenta (1967,p.36), seus
"exotismos
seus escândalos amorosos. Sua
suas
"loucuras
sexuais"
transatlânticos" (Ibid,p.21) e revolta
contra
a
sociedade,
afirmam seus críticos, é o fato de ser filho bastardo. O registro é feito por Rodríguez Monegal que considera com traços existencialistas, numa
época
o
pré-freu-
diana e vai levando a explicação dos fundamentos de sua
obra
para o aspecto psicológico e sociológico:
“Antes que Jean Genet, antes que Sartre,Roberto de las Carreras descubre que su única salida es asumir la imagen que los otros le han impuesto: lo han hecho bastardo, y empezará por proclamarlo, transformándose de víctima en victimario. De aquí nace su poesía, de aquí su desafío, de aquí sus desplantes y escándalo.”
44
(Grifo nosso) (1969,p.16)
Do mesmo crítico, citado anteriormente, a
convic-
ção de que o motivo do escrever era o ressentimento contra
a
sociedade por ser filho bastardo:
“Tal vez no supo entonces ni haya llegado a saber nunca que su título para la gloria literaria no fue la publicación de esos numerosos folletos en prosa y verso, en que ventiló su horrible resentimiento de bastardo...” (Grifo nosso) (Ibid,p.34)
A
tese que sustenta o crítico uruguaio sobre
Amor Libre, de fundamentos sociológicos e
psicoanalíticos, apenas
repete que Roberto de las Carreras deve sua criação literária a sua rebeldia existencialista, por querer assumir a sua condição de bastardo perante a sociedade a qual tudo, afirma ainda mais a tese de
outros
pertencia. Con-
críticos
que
diz
querer superar: “Se ha querido explicar la leyenda(desmitificarla) por un análisis de la sociedad que produjo estas dos flores exóticas(...)se ha intentado explicar por la presión del medio las estampas de estos poetas malditos. Pero la explicación que sólo busque por este lado estará fatalmente condenada a la superficialidad.” (Grifo nosso) (Ibid,p.9)
Mais adiante, como para reafirmar sua própria con-
45
tradição, coloca o seguinte:
“Reducir a sus elementos sociológicos el caso de Roberto de las Carreras o el de Delmira Agustini, como han pretendido algunos críticos, es olvidarse que en el mismo ambiente y en la misma época María Eugenia Vaz Ferreira paseaba su bohemia magnífica, escribía versos apasionados con destinatarios muy conocidos...” (Grifo nosso) (Ibid,p.66)
A estratégia utilizada por Rodríguez Monegal denominar-se de redução psicológica. Toda a obra
de
pode
Roberto
explica-se pelo traumatismo psíquico provocado pela bastardia e, com isso, evita-se fazer uma análise da projeção ideológica, estética ou política da obra. Vê-se o problema co, mas não a solução estética que encontra
biográfi-
Roberto, articu-
lando uma literatura de liberação sexual, o que é demonstrado neste trabalho quando se analisa Amor Libre.
Não se duvida que o fato de ser bastardo
influen-
ciou sua produção literária de ataque contra o que ele considerava uma sociedade agropecuária com alarde europeu, impregnada de costumes genealógicos. Não obstante, são poucas as vezes em que o escritor menciona isto nas suas
obras
um motivo muito especial: forçar a que lhe dessem
sua
e
com parte
na herança do pai, como pode se observar em Al Lector, e tectado por Rodríguez Monegal:
de-
46
“Si bien el poema continúa subrayando su lamentable condición de bastardo, su redacción y hasta publicación en un diario importante obedecen a la necesidad de presionar a su familia para que le reconozca su parte en la herencia paterna. La actitud es doblemente bufonesca, ya que se presenta como destituído pero lo hace com terrible insolencia; pide alimentos y ropa, y al mismo tiempo se burla de las convenciones burguesas...” (Grifo nosso) (1969,p.15)
Registro mais ou menos semelhante é feito por gel Rama, que justifica a razão de ser de Roberto
pelo
Án-
plexo edípico. Esta seria a explicação do constante
jogo
comde
sedução que praticava o escritor com todo tipo de mulheres, e não somente as casadas:
“...decide asumir por entero la historia de su madre y ser un "bastardo" no en forma solapada sino pública.” (Grifo nosso) (1967,p.12)
A crítica de Ángel Rama é outro tipo
de
psicolo-
gismo. Conseqüentemente, há novamente uma estratégia de redução dos valores literários, já que entende que Roberto escreve sem seriedade e tem um grande apetite pelo escândalo. A sinceridade, a autenticidade, o fundamental é o "apetite pelo escândalo” como diz Rama (1967,p.24) que está disfarçado uma ideologia anarquista, que além
disso, considera
por
“confu-
47
sa”.
Os críticos zumfeldianos não negativa perante a teoria do
amor
explicam
livre, nem
a
atitude
demonstram
a
confusão de Roberto nem avaliam a consistência ou a coerência das idéias do escritor. Este trabalho demonstra que não existe confusão sobre a teoria do amor livre e que as
idéias
escritor, embora não aceitas e combatidas na época, são
do coe-
rentes. Os críticos não querem discutir o erotismo na obra de Roberto alegando que não vale a pena e que suas teorias anarquistas
são confusas. Trata-se de estratégias repressivas.
A estratégia de Rama é semelhante à
de
Monegal: desconsidera o valor do anarquismo erótico que Roberto utiliza uma teoria confusa para dar
Rodríguez alegando
seriedade
a
algo que não é sério:
“... haciéndose el porta-estandarte del “amor libre" según una confusa teoría de los libertarios del siglo XIX que este dandy del 900 utilizó para conferir seriedad a su apetencia de escándalo.” (Grifo nosso) (1967,p.24)
Assim, pode-se afirmar que as conclusões dos
crí-
ticos zumfeldianos não são procedente porque: a)em nenhum momento demonstram que o anarquismo de Roberto
é
48
uma antigüidade porque sequer fazem referência às fontes inspiradoras de sua conduta anarquista, eles
mesmos
dizem
que
não vale a pena aprofundar o estudo sobre o escritor; b)também não demonstram porque a teoria do amor livre é fusa, nenhum deles faz uma análise desta teoria. Como
conjusti-
ficar essa opinião, em que se fundamenta?
A crítica de Angel Rama não apresenta provas documentais nem discute as idéias de Roberto para escritor não conhecia
bem
os
autores
provar
anarquistas
que e
o
suas
idéias. Assim, assumindo esta frágil posição pode-se concluir que Rama nega a originalidade do anarquismo de Roberto.13
Quanto à antigüidade das teorias anarquistas é argumento que não convence. Nenhum autor
pode
ser
pela atualidade de suas fontes, mas pelo uso que
avaliado
faz
delas.
Também não interessa a proximidade do autor à fonte. Não teressa o conhecimento direto ou indireto, mas
um
a
in-
ou seja, o horizonte de recriação. Roberto se sente
releitura, discípu-
lo, missioneiro de Kropotkin:
“-¿Me tomas por un burgués? Yo soy el misionero del Amor Libre...el discípulo de Kropokin [sic]...” (Grifo nosso) (1967,p.98)
49
Além disso, Piotr Kropotkin não tem um
século
de
antigüidade, senão que é contemporâneo de Roberto, publicando suas obras desde 1885.
Pode-se dizer que Roberto, com sua teoria do livre, não é kropotkiniano, pois ele quer a se pudesse teria todas contra a instituição do
as
mulheres
do
matrimônio –a
aventura
amor total:
mundo. Kropotkin considera
um
é
acordo
comercial burguês-, a união que propõe é livre, isso não significa que não haja fidelidade
na
relação. Isto
levantaria
uma discussão muito profunda sobre quais são as fontes de Roberto, que ainda é um tema obscuro pela total falta de crítica adequada sobre seus livros.
Carlos Real De Azúa, quando estuda o vínculo entre anarquismo e literatura no 900 montevideano, formula uma
sé-
rie de observações que se acredita possam ser úteis para
de-
monstrar em que grau relaciona anarquismo e literatura.
Segundo ele, todos os determinado instante, olharam não, às idéias anarquistas:
com
escritores simpatia
modernistas, em e
aderiram, ou
50
“Cual más, cual menos, casi todos los modernistas miraron en algún momento de su formación con simpatía tibia o firme las corrientes de protesta y reivindicación social, de inspiración socialista-marxista anarquista que iban tomando cuerpo en las ciudades latinoamericanas.” (Grifo nosso) (1986,p.XIV)
Mais adiante, tenta dissociar e mostrar o discurso como sendo aparente e superficial. O crítico
observa
que
anarquismo não era de índole kropotkiniana e reduz esta
o
pos-
tura a um individualismo exibicionista:
“Del famoso anarquismo de algunos modernistas ya se ha señalado más de uma vez que -muy lejos de la linea kropotkiniana- fue en substancia un soberbio yoismo exhibicionista...” (Grifo nosso) (Ibid,p.XXVI)
O artigo de Real De Azúa demonstra
uma
tendência
na crítica tradicional uruguaia: o vínculo entre anarquismo e literatura modernista é apenas uma
demostração
Igual que Rama, opina que exibicionismo causa psicológica e ignora a
corrente
e
de
egoísmo.
egolatria
são
a
e suas implicações ideológicas. Pode
anarco-individualista deduzir-se
que
aquele
crítico também condena esta ideologia. As opiniões de Real De Azúa merecem reções:
algumas
cor-
51
a)o egoísmo ou "yoismo", como
é
denominado, é
uma
atitude
claramente política, de repúdio ao tecnicismo e à
massifica-
ção, de afirmação do indivíduo, e não um problema
psicológi-
co; b)adota uma atitude negativa perante o discurso anarquista modernista uruguaio, pois se considera o anarquismo apenas exibicionismo, a atitude política dos
modernistas
uma bricadeira. A História prova o contrário, os
é
apenas
modernistas
foram fortes militantes políticos.
O psicologismo, na explicação do anarquismo
indi-
vidualista, é uma estratégia elaborada pelo críticos da
cha-
mada “Geração do 45”, pois eles não aceitam as idéias sexuais e políticas revolucionárias defendidas por Roberto. Para
Ro-
dríguez Monegal, o escritor é um bastardo ressentido; segundo Rama, tem apetite de escândalo; Real de Azúa
diz
que
é
um
anarquismo
os
egoísta.14
Esse enquadramento psicológico leva a ver a articulação entre anarquismo e
do
literatura
como
pouco consistente -ou um mascaramento ou um egoísmo. Os
três
não percebem: a)o conflito histórico que se estabeleceu entre as
correntes
anarquistas, delineando uma dicotomia: individualismo
versus
52
coletivismo; b)que o vínculo entre literatura e anarquismo não é
uma
es-
tratégia superficial de Roberto, mas que é própria da articulação do Modernismo com o anarco-individualismo latino-americano, como sustentava o poeta Ruben Darío. Este vínculo bém se aprecia em amplas zonas da
literatura
tam-
européia, como
sustenta Rezler.15 Roberto de las Carreras não foi somente um ressentido social, senão que partindo de
seu
ressentimento
truiu uma utopia, idealizou um mundo no qual esse
cons-
sentimento
não tem lugar.
2.2.2.1- O anarquismo e o Modernismo: um relacionamento tenso
Parece ter surgido
uma
interpretação
das divergências entre a vanguarda artística
e
equivocada a
política do anarquismo, haja vista a exaltação do lismo pela
vanguarda individua-
primeira. Oscar Wilde, cujo dandismo é valorizado
por Ángel Rama, que ilogicamente não valoriza Roberto, considerava a arte a manifestação
suprema
do
individualismo. Na
sua obra A Alma do Homem Sob o Socialismo (The Man
Soul
of
under Socialism), aprecia-se a incompatibilidade entre o
in-
dividualismo anarquista do artista e o coletivismo anarquista militante.16
53
De fato, anarquismo individualista é uma das rentes do anarquismo, que parece ser confundido com
cor-
anarcos-
sindicalismo, ou anarquismo coletivista ou até comunista. Horowitz, considera que a corrente individualista do anarquismo teve grande desenvolvimento exatamente na América.17
A
arte
livre, anarquista, individualista, é
arma contra a tirania. Reszler, diz que nasce
do
uma
sentimento
de responsabilidade social do artista no fim de século XIX da convicção de um ideal que
concede
a
máxima
e
importância
aos direitos do indivíduo. Segundo este autor, há
pontos
de
contato entre o esteticismo e anarquismo individualista
e
coletivista: ambos se opõem à sociedade materialista, à
mas-
sificação tipo ianque, ao comércio da cultura, à ção do pensamento, ao submetimento da arte a
o
uniformiza-
uma
autoridade
que não seja a própria; nem se conformam, nem se submetem.
A relação entre Modernismo
e
Anarquia
pois enquanto muitos escritores modernistas se
é
sentem
tensa, anar-
quistas ou definem a arte modernista como ácrata -o não reconhecimento de modelos, obrigação de encontrar o próprio estilo, a arte livre-, os anarquistas operários, sindicalistas ou coletivistas defenderam uma literatura militante ideológica e
54
não aceitaram o sensualismo formal do Modernismo e a estética elitista.18 Lily Litvak supõe um entendimento provisório e depois uma crise em 1905-1910, conforme comenta: “Posiblemente la crisis de esta colaboración intelectual llega durante los años 1905-1910, cuando se da materialmente por disuelto el anarquismo literario. Hasta estas fechas, sin embargo, la estrecha unión del proyecto regeneracionalista educativo, del proyecto estético modernista y del proyecto sociológico resulta evidente. Aun cuando los intelectuales y el anarquismo se separan luego en direcciones contrarias, su punto de encuentro en esos años pudo haber estado basado en una visión crítica del presente.” (Grifo nosso) (1981,p.270)
Obviamente o anarquismo
modernista
fundamenta-se
na defesa do indivíduo e suas bases filosóficas são Stirner e Nieztsche. Isto provocaria um conflito com o anarquismo comunista e o anarcossindicalismo cujos fundamentos são coletivos e solidários. Não há documentos que provem tem sido estudada no Uruguai ou no
esta
tensão
continente. Portanto, po-
de-se dizer que Roberto filia-se
a
uma
quismo aristocrático, enquanto outros como por exemplo Angel
que
Falco, evoluem
corrente
escritores para
uma
de
anar-
uruguaios, literatura
modernista de anarquismo operário.
No âmbito da literatura, os escritores podiam
se-
guir a corrente modernista, mas na política eram anarquistas.
55
Segundo Reszler(1973), muitos poetas e escritores simbolistas e parnasianistas franceses estavam à jornais anárquicos e até advogavam
cabeça pelos
de
revistas
camaradas
e
presos,
cumprindo o que pregava Kropotkin:a participação ativa do artista e do inteletual como camarada de luta, não
como
elite
dirigente.
2.3- Crítica ao cânon
Questiona-se por que até hoje ninguém criticou literariamente as vigências éticas, estéticas e sociais que assumiu com autenticidade o referido escritor. Os
críticos
aspecto biográfico
do
desarticulam, isolam, dicotomizam literário. Resulta
o
paradoxal, porque
lêem o elemento biográfico como se fosse um discurso
literá-
rio autônomo do discurso estético e vêem no autor um personagem narrativo, ou seja, estetizam a vida para desestetizar
a
obra. O procedimento crítico é inverso àquilo
o
que
propõe
autor: fundir o aspecto biográfico e o estético de forma
tal
que o vital seja obra de arte e a arte uma forma de vida. Algo que pode-se chamar de estética dandista. Os críticos dicionais, a propósito, não fazem esta fusão de vida e pelo contrário acentuam a separação dos elementos.
traobra,
56
A importância que a crítica tradicional outorga
a
Roberto de las Carreras é considerá-lo: a)introdutor do Modernismo no Uruguai. Ángel
Rama, refere-se
à obra Al Lector,onde encontra traços estéticos do
Modernis-
mo:
“En Al Lector en cambio domina el escepticismo, el subjetivismo frenético y la inestabilidad, dentro de las coordenadas de una estética que todavía Montevideo no sabe que se llama "modernista".” (Grifo nosso) (1967,p.19)
b)representativo de sua época. Arturo Sergio Visca, até
acha
interessante um livro sobre Roberto, mas que evidencie a
sua
representatividade histórica: “Un libro que sin dejar de atender a lo anecdótico y lo pintoresco, no descuidara lo realmente importante del personaje: su representatividad histórica, ya que asumió con autenticidad innegable las vigencias éticas, estéticas, sociales de ciertos grupos de la intelectualidad uruguaya de comienzos de este siglo, sincrónicas, por lo demás, con las producidas por la sensibilidad fin de siglo en todo el ámbito de la cultura occidental.” (Grifo nosso) (1975,p.XVIII-XIX)
O já citado Visca, considerando a obra do escritor uruguaio como testemunho da época, no aspecto social, literário e intelectual, anota:
57
“Todos los textos de Roberto de las Carreras importan, desde luego, más que por sus valores intrínsecos por su carácter testimonial en triple sentido: muestran aspectos interesantes de la sociedad montevideana de principios del siglo XX, dibujan ciertos perfiles de la literatura y del clima intelectual del mismo período y aportan datos de la vida de uno de sus representantes más significativos, ya que no por su obra sí por su vida. Es en función de este valor testimonial que deben ser leídos. Sólo así tendrá sentido su lectura.” (Grifo nosso) (Ibid,p.XXII)
c)influidor de Julio Herrera y Reissig
no
anarquismo
e
no
erotismo. Rodríguez Monegal considera que essa é a maior glória literária de Roberto:
“Pero la mayor gloria literaria de Roberto de las Carreras no radica en lo que há creado, sino en lo que supo despertar en otro.” (Grifo nosso) (1969,p.26)
d)medíocre na sua produção literária. Todos os críticos
tra-
dicionais coincidem em que o escritor uruguaio consegue
ape-
nas alguns momentos de realização, segundo eles não há continuidade de acertos que sustentem a
obra. Zum
Felde
faz
os
primeiros comentários:
“Lo que ha escrito -aun cuando tenga páginas de apreciable mérito literario- es sólo un reflejo de su acción...” (Grifo nosso) (1821,p.47)
58
Rodríguez Monegal diz o seguinte:
“Una mirada crítica salvará tal vez muy poco de la copiosa y caótica producción en prosa y verso que lleva la firma de Roberto de las Carreras. Es la suya uma curiosidad de la literatura uruguaya. Aunque tiene algunos méritos. (...)Pero como prosista (...)registra aciertos.” (Grifo nosso) (1969,p.26)
Roberto é considerado um grande versificador, correto tecnicamente, mas não um poeta. Rama escreve o
seguinte
sobre o brilhante domínio da técnica do alexandrino:
“...el modernismo ha entrado al país proporcionándole las condiciones para fundar una lírica autónoma. La consignia fue la lucha contra el filiteismo burgués, su falsa moral, su falsa cultura, su falsa política (...) Manejando esgrimísticamente el verso alejandrino, Roberto de las Carreras (1873-1964) alternó el desdeñoso “spleen” con la provocación, y en una prosa poética de recargada pedrería proclamó el amor libre.” (Grifo nosso) (1968,p.XXXII)
Também Visca, refere-se à técnica do escritor: “Roberto de las Carreras se manifiesta como versificador diestro -y con rara maestría en el manejo del alejandrino-…” (Grifo nosso) (1975,p.XX)
A crítica tradicional evita ou torce as idéias sosobre política sexual contidas no discurso dos escritores mo-
59
dernistas uruguaios, quando característica da
subversão
se-
xual é praticamente uma norma, conforme coloca Cortazzo:
“Por mi lado, estoy llegando, cada vez com más firmeza, a la convicción de que la "norma modernista" en Uruguay,incluye precisamente la subversión sexual, como lo deja ver un relevo de este aspecto en ciertos textos de Reyles, otros de Quiroga, Sanchez y su tesis libertaria del amor, repudios a convenciones femeninas en Maria Eugenia, Herrera y Reissig, cuyo insólito El Pudor y La Cachondez acaba de ser publicado, pero -y, por sobre todos- el gran teórico de la “revolución sensual” Roberto de las Carreras, sin contar con escritores desatentidos y menores.” (Grifo nosso) (1996,p.7)
Há, por parte de Zum Felde, uma tendência siva na apreciação, na valoração da literatura sexual
repres-
nista. Esta estratégia
é
seguida, copiada
e
moder-
ampliada
oposições, conforme afirma Cortazzo, quando analisa a pretação antierótica de Delmira
Agustini
proposta
sem
interpor
Zum
Felde:
“Por otro lado, no deja de sorprender el hecho de que esta interpretación haya hecho escuela y gozado de tanto predicamento en el medio uruguayo. Las oposiciones muy escasas que se le han hecho, parten de um concepto tan pobre y elemental de la sexualidad, que poca mella han producido en la visión idealista. Esta deficiencia arranca seguramente de la concepción espiritualista y represiva de la cultura que se consolida en los años 20. Una crítica sexual pondría seguramente al descubierto la validez de esta hipótesis que, por lo pronto, la trayectoria de Zum Felde ilustra paradigmática. Pero antes, creo más urgente colaborar a desbloquear la interpretación represiva del modernismo uruguayo que nos ayudaría a comprobar la existen-
60
cia de una auténtica propuesta de revolución sexual entre muchos de los artistas de la época. Propuesta que nos ha sido ocultada sistematicamente por la crítica.” (Grifo nosso) (1996,p.67-68)
Barrán(1990) sustenta que houve um
disciplinamen-
to, uma série de proibições e culpas, de contenção sões, de vigilância das mulheres, das
crianças, dos
das
pul-
adoles-
centes e das classes populares em favor do trabalho e do
pu-
dor, que fixaram as bases do conservadorismo uruguaio no
900
e gerações posteriores. Os críticos da chamada Geração do respiraram a esta atmosfera de repressão, logo se e passaram a refletir nas suas críticas o
45
assujeitaramconservadorismo
imposto por seus antecessores. À luz da AD, os indivíduos recebem como evidente o sentido daquilo que ouvem, dizem, ou escrevem, ou seja, repetem como coisa sua noções são
inculcadas, ou como dizem Pêcheux e
que
lêem lhe
Fuchs (1975) “...de
al modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e
tem-
do a impressão de estar exercendo sua livre
ocu-
vontade, a
par o seu lugar em uma ou outra das duas classes sociais
an-
tagonistas do modo de produção (ou naquelas categoria, camada ou fração de classe ligada a uma delas).”19
2.4- Reações à crítica
61
Nem todos os críticos uruguaios compartem do ponto de vista legado por Zum Felde. Críticas recentes propõem resgatar o discurso de Roberto de las Carreras e revisar
o
seu
conteúdo político-sexual revolucionário, a subversão do gênero literário, a formação discursiva e ideológica a que se filia.
Ricardo Goldaracena, em evidente alusão aos críticos Zumfeldianos, chama-os "los
guardianes
de
(1979 p.15). Ele comenta que os críticos seguiram
la
leyenda” os
juízos
deixados por Zum Felde:
“La leyenda es muy hermosa, y las cosas hermosas no deben ser destruídas. La dejó fijada hace ya unos cuantos años em páginas magistrales, don Alberto Zum Felde, y desde entonces hasta el día de hoy há ido rodando de autor en autor, de comentario en comentario, de prólogo en prólogo, acrecentada día a día con una anécdota más con una historia más.” (Grifo nosso) (1979,p.17)
Goldaracena também divide a opinião de que trodução da corrente literária denominada
a
in-
Modernismo, no am-
biente literário uruguaio, deve-se a Roberto:
“...el descubrimiento del modernismo -del cual de las Carreras es aquí el pionero- esa sensibilidad estética finisecular, tan a la francesa, que vino a conjugar los hallazgos del perfeccionismo parnasiano de raíz baudeleriana con los deslumbramientos de la corriente simbolista influida por Ver-
62
laine y Mallarmé.” (Grifo nosso) (Ibid,p.28)
Mais adiante, o mesmo crítico adiciona:
“Y efectivamente, a Roberto de las Carreras le cabe la gloria de haber sido el introductor de esta corriente en el Uruguay.” (Grifo nosso) (Ibid,p.30)
Porém, o citado crítico uruguaio apenas reivindica o aspecto poético de Roberto, o que já é
meritório, mas
resgata e não aprofunda o aspecto ideológico. Somente
vê
condições de produção do discurso de Amor Libre como uma nifestação das idéias da época no contexto da discussão aprovação da lei do divórcio
pelo
Parlamento
não as mapela
uruguaio, mas
não analisa o amor livre e o anarquismo e se teriam atualidade suas idéias. Reduz, então, o valor do discurso
robertiano
a um momento histórico.
Recentemente, Uruguay Cortazzo, em duas
conferên-
cias (1994 e 1995) responde a esse questionamento
e
levanta
uma série de observações sobre o aspecto político
e
erótico
da obra de Roberto, com uma proposta de vincular
o
ao movimento neomasculinista.20 2.4.1- A necessidade de rever o discurso robertiano
escritor
63
Um juízo que realmente chama a atenção é o
formu-
lado por Rodríguez Monegal, que em várias
oportunidades
ver algo mais na obra de Roberto
Carreras. Contudo,
de
chega-se ao fim da obra sem se ter a
las
resposta
do
que
diz
seja
esse algo mais:
“Había en los casos de Roberto y Delmira mucho más que una rebeldia contra las valoraciones sexuales y poéticas del medio burgués.” (Grifo nosso) (1969,p.9)
Da mesma forma, mais adiante diz: “Es algo más que un documento aunque sea sobretodo documental.” (Grifo nosso) (Ibid,p.26)
Esse "algo mais" são as
implicações
político-se-
xuais e a postura estética contidas na obra do escritor
uru-
guaio.
Acredita-se que a obra de Roberto de las
Carreras
não é superada, nem simplesmente representativa de uma
época
passada, pelo contrário, é uma obra inovadora, original e que propõe ao homem e à sociedade novos
rumos
de
através de uma sexualidade politizada. Propõe
comportamento uma
igualdade
64
de relacionamento entre homem e mulher, sem necessidade humilhação nem de superioridade, seja ela qual for. Como visionário, um profeta, adianta-se à sua época e
renuncia
de um
sua condição de "macho", ao poder do falo, para abrir um minho, uma corrente atualíssima, que hoje, no fim
do
à ca-
século
XX, denomina-se "nova masculinidade".
Cortazzo, durante uma tenta que Roberto de las Carreras
conferência, em não é apenas um
1994, susrepresen-
tante de tendências mortas do chamado 900 montevideano, senão o criador de uma estética de idéias libertárias e que questiona a
identidade
masculina. Na
feministas
oportunidade, ele
diz:
“En efecto, de las Carreras no es um simple tipo representativo de tendencias cultura- les ya muertas, ni un divertido y extravagante personaje que decora el novecientos montevideano. Es el creador de un esteticismo beligerante que lo llevó, al asumir ideologías libertarias y feministas a cuestionar la propia identidad masculina.(...)El enfoque sexo-político de nuestro modernismo, no comfirmaría la presunción feminista (que he venido escuchando en algunas conversaciones sostenidas con distintas investigadoras) de que el modernismo es un movimiento machista. Habría que háblar con más propiedad de campos machistas, áreas feministas e incluso -y esto me resulta lo más novedoso -de territorios neo-masculinistas, como lo evidencia la obra de Roberto de las Carreras.” (Grifo nosso)
65
66
67
3. Amor Libre 3.1- As condições de produção da obra
Amor Libre, publicado em
1902, narra
insólito do autor que aceita o adultério da sua
o
processo
mulher, Ber-
ta, com o objetivo final de se transformar em amante. Imbuído das idéias anarquistas, apresenta um novo protótipo de
homem
e propõe uma forma diferente de relacionamento cuja
condição
essencial é a liberação da
surgiria
mulher. Como
resultado
uma nova sociedade, mais humana, sincera e livre.
O escritor reconhece que para
se
livre das opressões, da relação de poder
e
tornar
amante,
propriedade
que
sustentam o marido, deve "matar" o macho interior:
“Nosotros, los feministas, debemos monstruo interior, al Mâle Originel!” (Grifo nosso) (1967,P.74)
A obra é uma auto-entrevista em Carreras, personagem, é pedante anarquista, um
que
apresentado, por elegante
apuñalar
Roberto
de
momentos, como
aristocrata, um
dândi
al
las um que
68
discursa espalhafatosamente sobre anarquia
e
um
jornalista
anarquista, ingênuo, admirador do escritor. A obra está composta por três
entrevistas, que
escritor pomposamente denominou: Interviews
o
Voluptuosos. Ne-
les, o aristocrata anarquista, profeta do amor livre, narra o choque que provocou na sociedade montevideana o fato de ter encontrado sua esposa, Berta Bandinelli, em flagrante com outro homem e a posterior reconciliação.
No Primer Interview, Roberto parabeniza Berta
por
ter aprendido e praticado seus ensinamentos anarquistas e não ter reprimido seus impulsos sexuais.
No Segundo Interview, o escritor faz uma sobre a liberação da mulher, as teorias anarquistas
palestra sobre
a
sociedade burguesa e as relações matrimoniais.
No Tercer Interview, Roberto narra a reconciliação com Berta; sua guerra interior para renunciar ao tropóide", assumir o novo homem, o amante, e
"macho
an-
então, liberado
dos preconceitos, viver sua aventura anarquista.
Interessante é o fato que os Interviews foram
pu-
blicados como panfletos, num periódico, e o primeiro foi dis-
69
tribuído no dia 25 de
agosto -independência
do
Uruguai- no
Teatro Solís -ponto de encontro da alta sociedade montevideana. Foi uma estratégia política refinada: um ato de terrorismo literário, um texto de um exibicionismo sexual intolerável para a sociedade da época, divulgado o dia da
declaração
da
independência do país -como se fosse a declaração da independência do autor, do indivíduo, contra a sociedade burguesa, que relacionada ao exibicionismo sexual biográfico transgride as normas. A personagem do jornalista anarquista qualifica
o
fato de "sarcasmo premeditado"(1967,p.71)
3.2- A ruptura e os efeitos de sentido. A subversão do gênero
Rama diz que a obra de Roberto de las Carreras está penetrada de material autobiográfico e dados da vida
real
que o autor integrou à literatura:
“...está penetrada de materiales autobio-gráficos -apelando a datos y referencias de su vida corriente y trasladándolos casi sin retoque a la literatura.” (Grifo nosso) (1967,p.17)
Goldaracena diz que homem, obra e lenda são visíveis no escritor uruguaio:
indi-
70
“El homem, la obra y la leyenda serán siempre los tres aspectos indisociables de Roberto de las Carreras.” (Grifo nosso) (1979,p.73)
Não interessa se é autobiográfico pois não há cessidade da verdade ou realidade. Aliás, este
é
mérito de Roberto de las Carreras, a paródia e a
um
textos provocam uma crise com a verdade e
grande
ironia
com
a
ne-
dos
realidade,
tal como a sociedade entende esses conceitos. Chamam a atenção as diversas análises que
os
Interviews sofrem. Rama os considera hilariantes, uma
vez
que
não há possibilidade de interpretar fielmente os acontecimentos. O autor modificou-os, ou melhor, ficcionou-os
completa-
mente:
“...nadie sabrá nunca lo que realmente ocurrió ni importa, dado que Roberto de las Carreras sustitituyó toda posible interpretación fiel de los sucesos con un hilarante relato que hizo aceptar a la ciudad.” (Grifo nosso) (1967,p.33)
Goldaracena considera
os
devido ao fato de não serem nenhuma
Interviews brincadeira
agressivos,
tor, apesar de utilizar a ironia. Esclareça-se que
do
escria
ironia
fere mais que a verdade dita em tom de brincadeira. Tanto não
71
é brincadeira, que coloca em xeque a instituição
matrimonial
e participa de um dos grandes debates sociais da época: o divórcio, que acabou sendo aprovado pelos legisladores:
“Yo no diría "hilarante"; diría en todo caso “agresivo", "chocante", porque esto no iba en broma, iba muy en serio, no obstante la sin par ironía de la presentación y estaba destinado a terciar en una polémica nacional, contexto histórico ineludible para quien analice los hechos acaecidos en el Uruguay en 1902.” (Grifo nosso) (1990,p.42)
Pode afirmar-se que por ser hilariante
não
deixa
de ser agressivo. Neste ponto os dois têm razão. A ironia aparece como elemento, não de brincadeira, mas de política. O autor, de forma irônica, expõe seus defeitos com um toque
de
de exibicionismo.21
Amor Libre é apresentado como uma entrevista nalística. Mas é
uma
pseudo-entrevista, ou
uma
jor-
entrevista
fictícia, porque o escritor cria o personagem jornalista. Este fato produz um efeito paródico
do
gênero, porque
falsa entrevista relativa, no entanto, a
um
isso, questiona um dos fundamentos do gênero
fato
um fato público ou de
um
acontecimento
uma
real. Por
jornalístico: a
autenticidade, o caráter testemunhal próprio da tro efeito paródico é produzido pela própria
é
crônica. Ou-
notícia. Não
notório, não
é
é um
72
acontecimento político, nem policial, nem portivo. É apenas um
acontecimento
cultural, nem
es-
estritamente
particular
que se veste de sensacionalismo, como se fosse um
importante
acontecimento de interesse nacional. Trata-se da luta
defla-
grada por um indivíduo contra a burguesia uruguaia.
Estas entrevistas desenvolvem-se em
tempos
rentes e acabam constituindo uma narração como se
dife-
fosse
uma
novela folhetim. O tema é o desespero de um anarquista, quando vê suas teorias transformarem-se em realidade e a luta para continuar fiel a seu ideal. É
a
assunção
pragmática
da
doutrina sexual anarquista. A história tem vários momentos: o engano, a
sepa-
ração, a crise ideológica, a aproximação, a reconciliação. Ao mesmo tempo, há uma transformação psíquica
dos
personagens,
os esposos que se transformam em amantes.
Na última entrevista, o escritor narra o e a transformação de esposos em amantes. Nesta última
encontro parte,
há como uma dissolução da entrevista, cujo fecho não está dado pelo jornalista, mas pela voz de
Roberto, personagem
sustenta quase todo o discurso -como um monólogo teatral.
que
73
Dentro do gênero “entrevista”, constatam-se
algu-
mas rupturas. Apresentam-se no discurso robertiano
perfeita-
mente
narrativa
encaixadas: a)o
diálogo
jornalístico; b)a
epistolar; c)o relato monologado.
Das classificações feitas dos Interviews
–panfle-
to, folhetim, reportagem jornalística- nenhuma delas o conceito de autobiografia
como
gênero
envolve
literário. Pode-se
considerar que a entrevista deve ser classificada também como autobiografia, pois o escritor conta suas próprias
experiên-
cias e coloca-se como exemplo de suas pregações.
A autobiografia encontra-se em estreito relacionamento com as narrações, os diálogos, as cartas e com a crônica como no jornalismo moderno. E tem sucesso; acontece um processo de assimilação ou naturalização por parte do leitor. Os procedimentos
empregados -descrições, diálogos, retratos,
cartas, reportagem, crônica, narrações
alternadas-
aparecem
homogeneizados.
A apologia autobiográfica é misturada
pelo
autor
com outros gêneros para conseguir o efeito
defesa-ataque. Há
uma consciência plena e dirigida em tudo o
que
faz. Podemos
encontrar estes traços de forma consciente, intencional. Tra-
74
ta-se de um grito abafado pela mediocridade
do
ambiente, um
grito sofisticado, ultraculto. Resulta curioso
e
simo este mecanismo de defesa-ataque na
e, por
época
avançadísisso,
talvez, difícil de ser entendido pela crítica tradicional.
A autobiografia, desde o momento que passa uma obra literária, traz com ela certa infidelidade
a
ser
outros fatores deformadores. O problema da verdade
além na
de
auto-
biografia resume-se a que ela não é verídica justamente
por-
que é autobiografia. Quanto à sinceridade, apresenta o
mesmo
problema da verdade. Não há como saber até que ponto o
autor
chega a ser sincero, assim como não há como saber os que podem ter levado o escritor à devassa de
tais
motivos aconteci-
mentos íntimos, a menos que se analisasse o discurso
ideolo-
gicamente.
O cruzamento de biografia e literatura pertence à estética dândi do escritor uruguaio. Ele faz da vida uma ficção, reinventa-se como ser humano. Faz
da
biografia
uma
ficção e da literatura um documento vital.
A exibição nua e crua de sua condição de bastardo, como se um título nobilístico
fosse, o
até o risco físico, a condição de marido
escândalo traído
inclusive que
aceita
75
com total naturalidade e humor, colocando-se inversamente como amante é resultado de um hábil jogo de
subversões
–geno-
lógica e ideológica.
O dândi Roberto convida o leitor a que foram causa de
embaraço, aborrecimento
encontra Berta com o amante -para ele
o
rir e
de
fatos
raiva. Quando
verdadeiro
marido,
por que faz uma inversão de papéis na relação- reage como era de se
esperar: com violência. Comete o que chama de “atroci-
dade”: lhe dá uma bofetada e depois se arrepende:
“Al hallarlo in fraganti con mi Favorita, cedí a un arranque heredero de mis antepasados de las cavernas, y del qual me arrepiento: le di una bofetada.” (Grifo nosso) (1967,p.69)
Essa agressão é inóqua, uma
paródia. Debochar
uma situação aparentemente trágica dá um toque de humor tico, de ironia, não compreendido pela crítica, a
tal
de crí-
ponto
que o gesto é qualificado por Rama de "vaidade pueril” (1967,p.35). Com graça e argumentos desopilantes, o autor ironiza a violência dos maridos
burgueses
contra
a
mulher
adúltera.22
A ironia destrói toda afirmação
certa
e
tira
o
76
dogmatismo do panfleto. Há um distanciamento entre o narrador Roberto e o personagem, criando um perspectiva de
espaço
que
encerra
uma
burla -pedante, retórico, espalhafatoso-
que
impede que o discurso funcione como asseverativo e dogmático. A ironia funciona, quando esse efeito
ambíguo
de
seriedade
burlesca e de burla séria impede uma leitura ingênua e
auto-
ritária e obriga o leitor a uma atitude crítica. Até a
apre-
sentação do jornalista
entrevistador, admirador
do
Roberto
personagem, é parodística.
A genialidade dos Interviews Voluptuosos
está
na
perspectiva irônica que adota o narrador perante o anarquismo do personagem, deixando a veracidade biográfica e
ideológica
enquadrada num campo sutilmente humorístico. Cortazzo, durante uma conferencia, em 1994, comenta:
“Su anarquismo se manifiesta, así, en este efecto estético de recular humorísticamente cada vez que las actitudes y las ideas se vuelven demasiado graves y trascendentes y se corre el peligro de quedar aprisionados en una rigidez pétrea. La sonrisa irónica siempre está ahí para desarticular la pretensión abusiva de verdades que pueden pretenderse absolutas.” (Grifo nosso)
Há uma leitura libertária afastada da
ingenuidade
e da candura da literatura anarquista daquela época.
Não é procurado o efeito persuasivo
imediato, nem
77
O documental e informativo do
jornalismo, nem
a
veracidade
realista ou naturalista.
Roberto, como os modernistas, é crítico, humorista corrosivo. A ironia e a paródia utilizadas por ele convertemse nas suas armas contra a burguesia Vive marginalizado do
capitalista
sistema, ostentando
uma
aristocracia
espiritual. A sua arte deixa de ser o veículo às oligarquias, para passar a
ser
emergente.
instrumento
de
servilismo de
protesto
contra qualquer intenção utilitarista.
Contra o positivismo pragmático e a realidade, que que consideram deturpada e deformante, os modernistas opõem o onirismo fantasioso, o esoterismo, a
lenda e o exótico. Saúl
Yurkevich formula o seguinte comentário:
“Los modernistas son los maestros de la parodia y del pastiche(...)El arte, desgravado de función trascendental (sagrada, cívica, mágica, profética, gnómica), de objetivos ajenos al deleite estético, se vuelve sobre sí mismo para acrescentar la conciencia de su especificidad, de su tecnicidad,de su autonomia. Se vuelve autosuficiente, formalista, suntuario, superfluo con respecto a toda valoración utilitarista.” (Grifo nosso) (1976,p.12-13)
A veracidade exigida pela crítica está questionada pela evidente ficção irônica da entrevista. A ironia “é a fi-
78
gura de retórica que supõe uma certa posição do sujeito diante da verdade, forma invertida”(cf.Brait:1994,p.45). O Roberto personagem coincide com o Roberto autor na sua totalidade, mas está apresentado através dos olhos de um jornalista ingênuo e militante. E ambos são apresentados por Roberto tor com um afastamento humorístico. Há
uma
dupla
escri-
distância
narrativa. A intenção do escritor é destruir a seguridade ingênua do realismo -própria da narrativa
burguesa- para
trar os aparelhos ficcionais nos
a
aparece, e, dessa forma, ao
mesmo
quais
possibilidade: as probabilidades Amor
realidade
tempo, abre-se realistas
Libre mostra assim que a utopia não é um
mossempre
uma
da
nova
ficção.
não-lugar, mas
uma
evidência jornalística.
No gênero jornalístico, pode-se dizer que o
fator
ficção está severamente sob controle ou requer idealmente grau zero de ficção. Na
autobiografia, acontece
lhante. O efeito da veracidade também se
vê
algo
um
seme-
reforçado
pela
consistência ideológica da teoria que se expõe.
Amor Libre também pode-se considerar um ensaio sobre a teoria do anarquismo sexual -sem chegar a configurar um dogma. Roberto escreve para ilustrar suas teorias. Ele
é
um
79
exemplo de trangressão de códigos e, ao da nova conduta sexual que prega.
Os
mesmo
tempo, modelo
motivos que podem ter levado a essa crônica ou
reportagem autobiográfica são vários. Talvez a necessidade de reconstruir uma vida, para compreendê-la, para chegar à
con-
clusão de que a identidade do eu e as convicções político-morais continuam intocáveis. Quiçá a necessidade de
justifica-
tificaçâo, de corrigir, de apresentar sua verdade, por alegações caluniosas, muitas vezes com intenções de burla.
Pelo anteriormente exposto, entende-se que Roberto tinha motivos chave para: a)politizar sua vida cotidiana; b)apresentar-se como paradigma, como exemplo revolucionário; c)apresentar-se, ele mesmo, como prova de seu heroísmo
anar-
quista.
Roberto cruza os
gêneros -elementos
entrevista, ensaio, manifesto,panfleto- que
biográficos,
reclamam, tradi-
cionalmente, o mais elevado grau de veracidade, de autenticidade, de contato direto com o real, de contemporaneidade e de atualidade -conceito importantíssimo para o gênero tico. E adiciona uma forte dose de ficção
jornalís-
e, principalmente,
80
de corrosiva ironia, ou seja, utiliza a ironia ”como forma de cortar a ilusão criada pela própria obra de arte(…) contestar o domínio do racional” (Brait,1994,p.33), criando "um efeito de sentido humorístico e que poderá ser interpretado via imaginário político e sexual"(Ibid,p.38).
Através do cruzamento de gêneros, de um gênero híbrido, o escritor faz que sua vida particular adquira uma espectacularidade estética que culmina com
a
politização
dos
fatos cotidianos.
A
subversão está nesse gênero híbrido. Mas também
está na fusão de gêneros que são considerados marginais.
3.3- A subversão ideológica. Anarquia e sexualidade
Roberto sustenta em Amor Libre a teoria de que não existe anarquia
sem
revolução
sexual. Mas, para
que
isso
aconteça é necessário uma mudança de atitudes, há que se xer no arcabouço da
sociedade
e
do
relacionamento
me-
homem-
mulher: a)combatendo a monogamia, o matrimônio. Esta é uma
forma
de
repressão da mulher, sobre a qual o homem -o marido- tem
ex-
clusivos direitos sexuais. A mulher não pode usufruir de
seu
81
corpo e satisfazer sua vontade sexual e, quando se entrega ao amante, ao adultério, justifica-se a morte pelas mãos do “dono", ou seja, do marido:
“-Se niega a la mujer la propiedad de su cuerpo. No puede hacer uso de él más que parael Marido. Si dispone, por un derecho elemental, de su don de vida en beneficio del amante, arrastrada irresistiblemente por la Afinidad Electiva, soberana dispensadora del bien de Amor, único criminal al que no se escuchan atenuantes, su dueño la deguella!...” (Grifo nosso) (1967,p.74-75)
A filiação do escritor uruguaio à corrente
divor-
cista é notória, não somente pela publicação de sua obra Don Amaro y el divorcio23, mas também em
Amor
Libre, quando
no
Segundo Interview Voluptuoso, considera o divórcio um escape, mas não a solução:
“-Que utilidad concede usted al divorcio en los conflictos de la Afinidad Electiva? -Es una puerta de escape al Amor libre. Pero no basta. Hay que destruir el vínculo!” (Grifo nosso) (Ibid,p.76)
b)defendendo o direito inalienável da mulher de dispor de seu corpo. Ninguém pode atribuir-se o direito de propriedade bre ele. Seguindo as idéias anarquistas
so-
individualistas, le-
vanta-se contra a opressão da pessoa, principalmente da
mu-
82
lher, que considera sob o jugo do homem, neste caso do
mari-
do. Incita a quebrar este relacionamento de propriedade:
“Expropiemos la mujer!!!” (Grifo nosso) (Ibid,p.74)
No Terceiro Interview, Roberto
de
las
Carreras,
personagem, quando tece um diálogo com Berta, sua amada, dizlhe que é completamente livre para fazer o que quiser com seu corpo, desejo e sensações:
“-...La propiedad de tu cuerpo nadie puede disputártela. Eres dueña de tus placeres, libre de amar, de gozar a tu antojo…” (Grifo nosso) (Ibid,p.98)
E mais adiante, consolida a posição:
“...Eres libre por el mágico poder de la Anarquía. Yo arrojo los pedazos de tus cadenas rotas a la faz de los legisladores! ¡Yo pisoteo la Ley! Si no puedo con el solo vínculo del sexo aprisionar en mis redes de amorosos el colibrí tornadizo de tu fantasía, te entrego al espacio. A vivir, dichosa libertada!” (Grifo nosso) (Ibid,p.117)
c)incitando e instigando a mulher à liberação sexual: “-Esclava del hombre, libérate. La hora ha llegado. Los eslabones de tu cadena han sido entrea-
83
biertos por la Idea, nuestra sublime aliada. Un esfuerzo y eres libre. No creas en la Virtud, no creas al Deber,no creas al Honor. El Tirano te engaña para oprimirte. Rebélate!” (Grifo nosso) (Ibid,p.86)
d)dando à mulher, no caso Berta, um papel ativo passivo na relação, como podia esperar-se
das
e
não
mais
montevideanas
na época. Ela escreve, ela procura, ela vai ao encontro
dele
e o "ataca" sensual e sexualmente. Não é o homem(Roberto) que toma a iniciativa:
“Se abalanzó a mi boca, poseyéndola, abarcándola con un gran mordisco clavado fijo. Sentí su lengua...carnosa, dura, húmeda de licor viscoso. La agitó, trémula, en mi boca; impaciente, con prisa; febril por evocar al macho, segura de que mi sensualidaddespierta sería su Victoria. Me ablandó … me reconquistó hasta el fondo de los sentidos!” (Grifo nosso) (Ibid,p.95)
Fora todo o simbolismo
que
possa
extrair-se
narração/descrição do ato sexual propriamente dito
é
da
impor-
tante assinalar, mais uma vez, o papel ativo que Roberto dá à mulher. Esse papel, inclusive, mais adiante no texto, está em evidência, quando, no ato de amor, Berta está
sobre
ele, ou
seja, a mulher não desempenha o papel passivo, não está dominada nem submetida:
"Su
cara
se
desencajó
retratando
uma
vehemente
84
súplica muda... Febricitante: -Tú, sobre mí...” (Grifo nosso) (Ibid,p.97)
E para que não fique nenhuma dúvida:
"Ella estaba sobre mí..." (Grifo nosso) (Ibid,p.98)
Chama a atenção esta evidência porque
propõe
uma
transformação do papel masculino, abre a possibilidade da liberação da mulher, reconhece a igualdade -ou seja, lhe dá
um
papel ativo na relação- e admite também a entrega do homem às arremetidas da mulher. Uma novidade a
respeito
do
conceito
tradicional de masculinidade. Mais do que isso: uma verdadeira revolução dos conceitos.
Roberto aceita Berta sob as condições que escolheu como modelo de vida. Ela volta
vitoriosa, embora
ele
adote
uma postura de sedutor. Ele não tem o orgulho do macho
feri-
do, não não se considera um marido traído. A vitória final do Interview não está na
volta
da
esposa
aceitação irrestrita e sem condições por
adúltera, senão parte
de
na
Roberto,
que reconhece os mais sublimes valores anárquicos. É o triunfo consolidado do discurso anarquista e a abertura de uma no-
85
va trilha de política sexual à procura de uma nova masculinidade.
Roberto de las Carreras empreendeu
o
caminho
da
mudança do papel masculino, fundamentando-se no movimento que tinha à mão naquela época: o feminismo. Ele combate o tipo de homem que qualifica de "Antropóide", "macho rano secular", "macho legal". O
novo
homem
dominador”, “tisurgirá
quando
morram aqueles: “El enemigo de la mujer es el Antropoide. Nossotros, los feministas, debemos apuñalar al monstruo interior, al Mâle Originel!” (Grifo nosso) (1967,p.74)
No Montevidéu de início de século XX, como comenta Goldaracena, tanto para a direita burguesa quanto para a querda proletária estas idéias ecoavam a
loucuras
Carlos Maria Domínguez explica que os burgueses e
es-
eróticas. comercian-
tes montevideanos tinham suas normas de conduta bem definidas e diferenciadas, e Roberto misturava os valores e
burlava-se
deles, propositadamente:
“Desde fines de siglo pasado, para burgueses y comerciantes la ficción debía estar de un lado y la realidade del otro, sin que se confundiera el trabajo con el ocio, la belleza con la verdad, la honestidad del esfuerzo con los placeres del en-
86
tretenimiento. Y Roberto mezclaba los planos deliberadamente.” (Grifo nosso) (1997,p.80)
Roberto de las Carreras apresentou uma transformação do ser humano e da sociedade
através
da
sexualidade. O
processo de transformação e a concepção dessa sociedade
utó-
pica implica, em primeiro lugar, o reconhecimento de que
ho-
mens e mulheres têm os mesmos direitos e que não deve existir nenhum tipo de submissão entre eles. Em existir um relacionamento livre e
segundo
aberto, onde
lugar, deve instituições
sociais, como o matrimônio, não têm lugar. O indivíduo é
li-
vre para escolher o papel que deseja desempenhar e pode vivêlo com total intensidade, tanto quanto lhe permita sua imaginação criadora. A compreensão destas propostas levará
a
uma
melhor avaliação de seu discurso e espera-se o reconhecimento como visionário e revolucionário, antecedente anarquistas que sobreviveram na América Latina.
das
correntes
87
88
89
4. Roberto Freire
90
4.1- Da materialidade de sua história à materialidade de
sua
obra
Roberto Freire nasceu em São Paulo em gado a seguir a tradição familiar formou-se em
1927. ObriMedicina, es-
pecializou-se em Psiquiatria e posteriormente em Psicanálise. A sua verdadeira paixão era a arte conforme alega
em
entre-
vista concedida à jornalista Dóris Fialcoff:
"Eu fui obrigado a ser médico pela minha família. O meu avô era médico, meus tios eram médicos e meus pais achavam que eu tinha de ser médico. Mas eu não queria nada com a Medicina.A minha vocação era a arte, a cultura,a ciência, mas não a ciência médica." (Grifo nosso) (1995,p.6)
O passado de Roberto Freire, assim como o berto de las Carreras, deixou marcas e ele de suas crônicas ou como nesta entrevista
desabafa à
de
Ro-
através
jornalista
Ma-
riana Kalil:
“Quando quis defender minha liberdade, veio o golpe de 64. E aí recebi a violência física, ameaças de morte, torturas, prisões. Assisti à morte de companheiros na minha frente(...)Tenho um orgulho enorme de ter sobrevivido a essa violência toda. Grande parte dos meus amigos morreram assassinados, desapareceram.(...) Quando era menino, tinha um complexo de inferioridade muito grande. Tão grande que era completamente gago. Me achava feio, troncho, incapaz." (Grifo nosso) (1996,p.4)
91
Por volta dos anos sessenta abandona o que poderia denominar-se etapa burguesa. Com Cleo e Daniel, o escritor se liberta de uma imagem social que abominava, conforme
diz
em
Sem Tesão Não Há Solução:
"Vinha de uma família burguesa, e no livro resolvi me libertar de tudo aquilo publicamente. Aquela imagem de bonzinho, do médico, do bem-educado, do conselheiro, resolvi avacalhar com tudo isso através de Rudolf Flügel que é RF, e tudo o que ele, Rudolf, diz do Roberto Freire, são trechos de críticas às minhas peças de teatro e de quem escreveu contra e a favor de mim desde muito tempo, em jornais, e opiniões de pessoas que me criticavam de longe. O vomitório de Rudolf é o que as pessoas pensavam de mim, pessoas mais abertas, mais corajosas e ele, Rudolf, era mais ou menos o que eu queria ser na sociedade burguesa -aquele cara mesmo, um filho da puta." (Grifo nosso) (1987,p.110)
Freire tem consciência de classe, sente-se e identifica-se como um burguês que
reaciona
contra
sua
classe social, vale dizer, coloca-se como burguês
própria
revolucio-
nário tal como cita relevante passagem a respeito, no Soma 1: "...nós, privilegiados burgueses(...) temos melhores condições para não suportar as violações de nossa originalidade e autoregulação espontânea." (Grifo nosso) (1988,p.48)
Participou de movimentos
teatrais, foi
convidado
92
para dirigir o Serviço Nacional de Teatro. Dessa
experiência
surge a peça Quarto de empregada (1958) que em 1993
junta
outras, Quarto de estudante e Quarto de hotel, e publica
a sob
o título 3/4. Na primeira, o escritor enfoca os problemas das domésticas no Brasil; na segunda, critica a
incompetência
e
impotência dos neuróticos jovens pequenos-burgueses, os quais considera tão infelizes e prostituídos quanto
as
empregadas
domésticas; e na terceira, apresenta a possibilidade bertar-se da violência castrativa, colocando como
de
li-
exemplo
personagem de um jovem anarquista que se liberta dos
o
princí-
pios da vida burguesa, do capitalismo e desperta para o
pra-
zer livre e sadio, o sexo natural, a luta social e o amor libertários.
Desde sua juventude teve simpatia pela de esquerda, de origem comunista, marxista e
militância
leninista, fato
interessante devido ao antagonismo histórico entre
anarquis-
tas e marxistas. Esta poderia ser chamada de etapa militante, conforme conta em Tesudos de Todo o Mundo, Uni-vos!:
"Vivi esse período importante da vida e da ação do Partido Comunista no país e tive amigos muito próximos que militaram nesse partido toda a sua vida, com os quais acabei militando junto na mocidade, durante 15 anos, contra a ditadura Vargas e, já mais adulto, depois de 1964, também 15 anos, contra a ditadura militar. Enfrentei, assim, com eles, numa militância semelhante, apesar de ser anarquista e eles marxistas, as vio-
93
lências militares, como prisões, torturas e seqüestros durante 30 anos de minha vida(...)Assim, não se poderá nunca esquecer esse aspecto positivo e belo da militância do tipo marxista (...) Eu o valorizei sempre e, sobretudo, o admirei muito." (Grifo nosso) (1995,p.120)
Em 1964, após o golpe militar, participou da
Ação
Popular, organização clandestina, fato que o levou a ser preso e torturado, no que poderia denominar-se etapa da clandestinidade. Para sobreviver escrevia, sob pseudônimos, para Ultima Hora e Realidade, de São Paulo. Amigo do sociólogo Betinho, irmão do cartunista Henfil, militara junto a ele em Ação Popular, como conta em Tesudos:
"...ele teria escolhido como eles o caminho marxista-leninista para o exercício de sua vida revolucionária. Eu não me tornara marxista nem leninista, mas trabalhava com eles (...)Depois que Betinho viajou, liguei-me a outro líder da AP.(…) Papi, tentou, de todo jeito, fazer que eu o acompanhasse na conversão marxista-leninista." (Grifo nosso) (1995,p.182)
Embora partilhando da
luta
revolucionária
junto
aos marxistas, e manifestando nutrida admiração pela forma de lutarem contra a ditadura, o autor não se define
ideologica-
mente marxista. A crítica ao marxismo é, embora sem cia no movimento libertário, de origem anarquista:
militân-
94
"Na verdade, minha crítica ao marxismo era de origem anarquista, mas naquela época eu tinha pouca militância no movimento libertário, restringindo-me às leituras de Proudhon, de Bakunin, de Stirner e de Malatesta, sobretudo. Nem conhecia os líderes anarquistas daquela época, como José Oiticica e Edgard Laurenroth Rodrigues." (Grifo nosso) (1995,p.193)
Após essa militância revolucionária quase marxista, em época da ditadura, afirma-se definitivamente sua militância libertária, inclusive sua que
pode-se
denominar
a
etapa
adesão
à
antipsiquiatria,
totalmente
anarquista, da
antipsiquiatria e da ecologia.
Ex-psicanalista, depois de oito anos de ter
aban-
donado a prática terapeutica tradicional, em 1971, começa
um
trabalho terapêutico diferente, com conteúdo e objetivo político-anarquistas. Dedicou-se, por muitos anos, ao obra de Wilhelm Reich, mas também
Herbert
estudo
Marcuse
e
da
David
Cooper. Dos estudos extraiu os fundamentos para a criação
de
uma terapia -a Soma- de liberação das repressões
da
através
politização da sexualidade, com profundo sustento anarquista. Esta terapia encontra-se em Soma, uma terapia anarquista, série composta de três livros: A alma é o o
corpo, A
arma
é
corpo, Corpo a corpo. Em Ame e dê vexame, pode encontrar-se o conceito de Soma:
95
"O anarquismo somático é mais próximo da natureza genética, corporal e existencial do homem, impondo-lhe a realização da vida na busca permanente da liberdade e na realização plena de seus potenciais de prazer. A palavra Soma, para este tipo de anarquistas, signififica o ser corporal ou a totalidade do ser humano. É muito mais do que existe no lado de dentro da pele de uma pessoa. Mas também do que sua capacidade cognitiva e sensitiva, pois são também soma as suas extensões corporais físicas, afetivas, sensuais e sexuais. O anarquista somático busca mais contato com a totalidade do seu ser do que as pessoas ainda não libertárias. Soma ou Somaterapia é uma prática terapéutica corporal e em grupo, baseada na obra de Wilhelm Reich, visando a prevenção e a recuperação de pessoas sumetidas a repressão autoritária(...)A Soma é a única terapia de conteúdo e objetivos políticos explícito: o socialismo libertário ou anarquismo." (Grifo nosso) (1990,p.16-17)
Como terapeuta ligado à corrente
da
antipsiquia-
tria, considera a psicanálise uma falsa ciência, além de elitista e reacionária.
Ao abandonar a linha de psicanalista tradicional e aferrar-se à Soma, logo foi rotulado, conforme conta a Mariana Kalil, em entrevista:
"Uma vez perguntaram meu nome e respondi. Então, devolveram: ”O comuna ou o louco?” Essa é a impressão que as pessoas têm de mim. Que sou louco, tarado.” (Grifo nosso) (1996,p.4)
96
Seu pensamento
político
anarquista
se
expressa
através de suas novelas Cleo e Daniel(1965), Coiote(1986), Os Cúmplices(1995), onde coloca em xeque as convenções e dações da sociedade burguesa, envolvendo
os
violentas paixões. Narra as aventuras de sua como o poder das mutações genéticas dos
quista. Denuncia a asfixia
imposta
personagens
pela
o
revolucionásonho
anar-
estrutura
social.
Deixa uma mensagem aos jovens anarquistas de todo o
mundo: a
possibilidade do prazer e da beleza na realidade cotidiana o surgimento do amor dos mutantes somáticos, um do futuro", que deixa perplexo seu
em
geração. Mostra
homens
rios pode conduzir à liberdade e ao amor sob
acomo-
amor
e
"vindo
alter-ego, o psicanalista
Dr. Rudolf Flügel.
Histórias Curtas e Grossas I e II(1991) resgatam o prazer sensual, o qual o autor opõe à obscenidade afetiva
do
cotidiano das pessoas. O escritor adverte que cada leitor sabe onde acaba o erótico e começa o pornográfico já que
“todo
amor libertário, felizmente, tende a ser um tanto libertino”.
A Farsa Ecológica(1992) é um ensaio que
mostra
a
posição dos anarquistas em relação à ecologia e um radicalis-
97
mo que atende, segundo o autor, à situação
de
emergência
e
calamidade do planeta que "pede socorro".
Em ensaios psicossociológicos e políticos autobiográficos, a investigação científica, a nova técnica tica e a criação literária fundem-se sob a prática
terapêu-
ta do autor. Utopia & Paixão(1984) escreve
em
anarquis-
parceria
Fausto Brito, companheiro de luta. Obra de reflexões e tes sobre a vivência do autor que acredita do cotidiano do homem como uma
utopia
na
com
deba-
transformação
possível. Reflexionam
sobre a militância política; o poder totalitário
que
regula
até as mínimas regras de comportamento social; o sistema
po-
lítico que sustenta o Estado e também as relações cotidianas, como escola, família, sexo, lazer e valores morais. Esta obra é revisada e relançada em 1991, devido às profundas políticas havidas no mundo -a queda
do
muro
de
mudanças
"apartheit", a dissolução da União Soviética. Sem não
Berlim, do tesão
há solução(1987) traz uma reflexão filosófica sobre
o
da Política e da Psicologia. A liberdade
está
no
cruzamento
de
do
homem
prazer, na alegria e na beleza. Há no livro o três
discursos
–ensaio, biografia, jornalismo: na
parte, ensaios sobre a semântica da palabra
campo
primeira
tesão, as
muta-
ções da juventude brasileira, a violência e repressão da qual foi vítima nos últimos vinte anos; na
segunda
parte, entre-
98
vistas publicadas na imprensa alternativa
a
grande
mídia, segundo ele, o combate através da omissão e do
silên-
cio, não publicando seus
trabalhos; na
já
que
terceira
parte, uma
conferência ecológica, que tem, para o próprio autor, caráter de manifesto e de testamento político. Em vexame
Ame
e
dê
(1990), o escritor combate a ideologia do sacrifício, que é a renúncia do homem à liberdade e a perda da capacidade de amar de verdade, ocasionada pelo autoritarismo e oposição, apresenta a teoria
do
a
repressão. Em
prazer -natural, ecológica-
onde o homem deve brincar, jogar, criar e amar em
total
berdade. A arma contra o sacrifício é o vexame, não ter o
limedo
ao ridículo, ser espontâneo. Tesudos de uni-
todo
mundo,
vos!(1995) contém ensaios confissionais
do
autor, biográfi-
os, uma espécie de convocação ao estilo Comu-
do
Manifesto
nista, onde complementa a teoria do prazer, abordada anteriormente, e se levanta contra toda forma de opressão e castração dos jovens que necessitam expandir
sua
originalidade
única. Escreve sobre futebol, política, poesia, psiquatria psicanálise, religião, sexo, marxismo, e amor em liberdade.
principalmente
e do
99
100
101
102
5. Teoria do Soma 5.1- O tesão
Roberto Freire desenvolve seus trabalhos de
soma-
terapia dirigidos à recuperação do tesão, termo que significa para o autor viver com prazer, beleza
e
vital Solu-
em
da
pessoa,
tal
como
expressa
alegria, a Sem
energia
Tesão
Não
Há
ção:
“Assim, tesão, muito simples e resumidamente, quer significar hoje o que sentimos sensualizando juntos a beleza e a alegria em cada coisa com a qual entramos em contato e com a qual nos comunicamos. Tesão seria, pois, a palavra que reforçaria e melhor qualificaria o amor nas relações afetivas dos jovens neo-românticos de hoje. O tesão, num sentido tão fisiológico quanto poético, seria a semente do orgasmo e a raiz das paixões.” (Grifo nosso) (1987,p.21-22)
A carga semântica que o autor
introduz
no
termo
vai além do aspecto puramente sexual-fisiológico e vincula-se aos seguintes elementos que conformam a energia vital: a alegria, o prazer e a beleza.
A alegria a que se refere o escritor não significa felicidade -que ele considera um estado- mas uma
sensação. A
alegria é fugaz, instável, é um viver aqui e agora:
103
“...buscamos simples e naturalmente alegria. Alegria, coisa tão incerta como o vento, que tem dia que vem, dia que não vem.” (Grifo nosso) (1987,p.58)
Alegria que o escritor define como:
“…a expressão gostosa, saborosa, orgástica e encantada do funcionamento satisfatório e equilíbrio de nossa energia vital no plano físico, emocional, psicológico, afetivo, sensual, ético, ideológico e espiritual.” (Grifo nosso) (1987,p.59)
A alegria pressupõe prazer, do qual se origina toda a teoria do tesão. Prazer é o que dá significado à sua
vida" -diz
o
"sentido, direção
autor- "A
aquí, tem um significado primário, mas
palavra
e
prazer,
essencial: satisfação
pelo exercício puro e direto da vida em si mesma", e
através
do prazer e da dor, o ser humano "exerce, orienta
expande
e
seu potencial energético"(1987,p.59).
A beleza, o outro conceito relacionado ao tesão, é a "percepção e sensação estéticas", o "produto de um processo de desenvolvimento dinâmico, dialético e
ecológico" (1987,p.
66-67). São o prazer e a dor que produzem maior ou menor
be-
leza:
“Assim, pois, beleza seria a expressão e a comuni-
104
cação do estado atual do equilíbrio entre as sensações de dor e de prazer que se vai vivendo na forma e no conteúdo de maior ou menor vivência da alegria.” (Grifo nosso) (1987,p.67)
Prazer é viver ludicamente. Ludicidade significa “a capacidade de brincar e de jogar" (1990,p.74). Para amar é necessário saber jogar e brincar. E para que isto seja possível o ser humano deve utilizar o máximo de
seu
potencial:
sua criatividade, sua originalidade única. A forma de dir a originalidade única e garantir
o
máximo
de
expanalegria,
prazer e beleza é sentir tesão pela vida.
A originalidade única tem três
fundamentos: a)ge-
nético; b)ecológico -conforme desenvolve em Tesudos:
“O pensamento e a ação anarquistas, para nós da Soma, começa na compreensão do que significa a 'originalidade única' das pessoas(...)a genética e a ecologia descobriram e provaram: em cada ecossistema, para que ele sobreviva em condições biológicas satisfatórias, cada um de seus membros necessita viver de modo a serem respeitadas as suas individualidades originais e únicas. Quer dizer, a ciência confirma a filosofia anarquista: nunca existiu, não existe e não existirá um ser igual ao outro(...)a originalidade única garante à Natureza infinitas possibilidades de experiências na verificação da adaptabilidade dos seres de cada espécie em seu meio ambiente.” (Grifo nosso) (1995,p.90-91)
Esta posição aparece, também, no Soma 1:
105
“Está provado geneticamente ser impossível a existência de dois seres absolutamente iguais na mesma espécie. Devido às infinitas possibilidades e combinações dos genes, no momento da formação do ovo humano, a Natureza mostra querer a produção da mais completa diversidade entre os membros da espécie humana, como ocorre com as demais espécies vivas também.” (Grifo nosso) (1988,p.46)
c)ideológico. O autor desenvolve uma utopia que
apresenta
a
possibilidade de desenvolver a energia vital, sem obstáculos, dentro de uma sociedade futura, de uma sociedade Freire neste caso apóia-se em Stirner, conforme
libertária. expressa
no
Soma 1:
“Stirner reabilitou o indivíduo numa época em que, no plano filosófico, dominava o antiindividualismo. Os danos causados pelo egoísmo burguês conduziam a maior parte dos reformadores a realçar o seu contrário: não é verdade que a palabra socialismo nasceu como antônimo de individualismo? Stirner exalta o valor intrínseco do indivíduo,do 'único',ou seja, não semelhante a qualquer outro, criado pela Natureza em um só exemplar (noção que confirma as mais recentes descobertas da biologia).” (Grifo nosso) (1988,p.200)
O tesão manifesta-se
em
três
níveis: indivíduo,
sociedade e natureza. Individualmente há necessidade
de
pandir esta energia original. O anarquismo, para Freire, é
ex-
único meio que permite e libera essa expansão, que dá berdade necessária para o pleno desenvolvimento. Mas o não é só individual, ele pode ser social -o
tesão
a
o li-
tesão
entre
os
106
indivíduos, e da coletividade que alcança-se com a erotização do cotidiano:
“Se o tesão depende da alegria e não há o que fazer na vida cotidiana com a nossa alegria se não pudermos repartí-la,o tesão fica assim como algo essencial que nos liga, identifica e comunica com os outros. Pelo tesão ficamos assim como que imantados, atraindo e desejando uns aos outros. A alegria, portanto, é uma sensação de natureza individual, que os outros podem despertar ou potencializar em nós, adquirindo assim também uma função social.” (Grifo nosso) (1987,p.63)
O escritor preocupa-se em como chegar ao tesão coletivo, que significa, primeiro, derrotar o autoritarismo, de acordo com o que expressa em Utopia e Paixão:
“Mas como conseguir transformar essas estratégias individuais de liberação do autoritarismo em movimentos coletivos?” (Grifo nosso) (1991,p.71)
Freire sustenta, também, que a energia vital
está
estreitamente ligada à ecologia: “Estamos, assim, concluindo pela existência também de um tesão antropológico e ecológico que mantém a ludicidade impregnada na natureza e na essência do homem. Este tesão o faz ligar-se, forte e apaixonadamente, sem necessitar nenhuma explicação consciente, a tudo o que lhe proporciona beleza, alegria e prazer.” (Grifo nosso) (1987,p.30-31)
107
5.2- Os impedimentos do tesão
Há situações que impedem o prazer
e
acontecimentos históricos, culturais, sociais
que e
vêm
econômicos.
Estes acontecimentos têm culminado na "ideologia do cio, de índole cultural,que está a serviço do
de
sacrifí-
autoritarismo,
e que é diametralmente oposta à "ideologia do prazer", de índole biológica, conforme diz em Tesudos:
“Mas, repito, a verdade é que, desfeitos os equívocos, chego à conclusão de ser o único conflito político de fato existente em nosso tempo o que produz em nós reações tão diferentes e quase sempre opostas entre duas ideologias, uma biológica e outra cultural, em ação permanente e há muito tempo, uma contra outra: "ideologia do prazer" versus “ideologia do sacrifício”.” (Grifo nosso) (1995,p.78)
A "ideologia do sacrifício" é imposta
das
mais sutis até escancaradamente coercitivas, seja pelo taismo, pelo ensino, pelas ditaduras especificamente Utopia
o
catolicismo,
ou
pelo
conforme
o
formas capi-
cristianismo, expressa
em
e Paixão:
"A idéia de utopias distantes, paraíso amanhã, tem um conteúdo bastante autoritário, paternalista. É como falamos às crianças: se ficar bonzinho agora, depois vai ao cinema. Ou, como em qualquer pedago-
108
gia autoritária, pede-se a cada um de nós: se você obedecer, se se deixar reprimir, se servir bem, mais tarde você terá suas recompensas (dinheiro, propriedade, poder). A religião faz a mêsma coisa. Se nos sacrificarmos, nos martizarmos, seremos santos e receberemos como graça o reino dos céus. Em muitas concepções políticas também encontramos essas idéias: hoje precisamos de sacrifícios e reeducação, uma ditadura nos ajudará. A compensação, o paraíso, será amanhã, quando estivermos preparados, reeducados." (Grifo nosso) (1991,p.30)
A racterística Te-
neurose provocada pelo autoritarismo é uma da
sociedade
burguesa
capitalista,
afirma
caem
sudos:
"O capitalismo é o principal instrumento a levar o homem à "ideologia do sacrifício" e renunciar à "ideologia do prazer" natural. Em verdade, essas pessoas movidas por seu egoísmo e pela ânsia de poder, acabam aceitando a necessidade do sacrifício de seus prazeres animais e humanos, os prazeres de hoje e agora, os prazeres da saúde e da juventude, na esperança, possível e até real de compensações na vida adulta e, sobretudo, na velhice." (Grifo nosso) (1995,p.81)
Também a psicanálise representa a ideologia do sacrifício, conforme Sem Tesão:
"Nascida do pensamento de um homem genial, mas profundamente pessimista, triste, amargo e ressentido, a Psicanálise reflete as características da história da religião e da raça judaica no mundo. Sigmund Freud era um homem que, segundo seu discípulo Wilhelm Reich, permitia-se pouca convivência
109
com o prazer, com a beleza e com a alegria lúdicos da existência comum, que provam suas obras principais(...)Estou querendo concluir que a religião judaica e a cristã, bem como tudo aquilo que a elas está ligado, direta ou indiretamente, como a Psicanálise, por exemplo, representam o antitesão." (Grifo nosso) (1987,p.32-33)
5.3- A liberação do tesão
O Princípio do Prazer é a expansão da originalidade do indivíduo que se manifesta através da sexualidade e criatividade, Paixão:
segundo
sustenta
o
escritor
em
da
Utopia
e
"Então, ser livre é poder viver ampla e irrestritamente as nossas próprias originalidades únicas, as nossas diferenças. Como? Fundamentalmente, no jeito de amar e criar. E é exatamente sobre o jeito de amar e de criar de cada um que se exerce a repressão autoritária, o controle social, a favor das semelhanças e pela massificação da média (sinônimo ao mesmo tempo de ninguém e de todos).” (Grifo nosso) (1991,p.37)
Como deve organizar-se a sexualidade de acordo com o princípio do prazer? Surgem novas formas de
relacionamento
amoroso e são propostos diferentes modelos: a)a organização comunitária, abolindo assim a organização familiar. Desta forma o casal perderia "o
sentimento
priedade de um sobre o outro e sobre os filhos"
de
pro-
e
venceriam
“o egoísmo fechado da vida familiar que favorece o
autorita-
110
rismo" (1995,p.96). Freire aponta saída contra o autoritarismo da
a
vida
família
comunitária
como
institucionalizada,
conforme expressa em Ame e dê vexame:
"...a única saída é marginalizar-se e criar novos tipos de relacionamento e acasalamento, bem como descobrir outras formas de vida comunitária em substituição à do lar e à da família tradicionais." (Grifo nosso) (1990,p.47)
b)o relacionamento suplementar, como acasalamento, destruindo as normas que regem o matrimônio tradicional, tal o que
pro-
põe em Sem Tesão: "Dentro da minha visão, acho o casamento um absurdo. Eu gostaria de falar sobre acasalamento, porque quanto ao casamento eu só quero que acabe, que não exista mais, porque o casamento é uma das grandes fontes de destruição do amor. Mas o acasalamento é indispensável. Acho que as novas formas de acasalamento que hoje estão sendo pesquisadas pela juventude no mundo são a medida das transformações atuais na história do homem." (Grifo nosso) (1987,p.133)
Este acasalamento pode apresentar-se de forma
mo-
nogâmica "por tesão não de posse e de exclusividade" (1987,p. 134) com ou sem coabitação, já que a coabitação "não faz parte do amor e nem determina a qualidade, a intensidade do amor" (1987,p.134). Ou o
durabilidade acasalamento
e
a
ocorre
111
através de relações abertas, onde o
casal
tem
experiências
paralelas:
"As relações que mais me fascinam hoje são as relações abertas, sem sentimento de propriedade (...)O que acho mais bonito e vejo no amor dos casais revolucionários é como eles o vivem de forma lúdica, brincando e jogando sempre. A ludicidade é a mãe do tesão e, ao mesmo tempo, o pai da criatividade." (Grifo nosso) (1987,p.136)
Esse relacionamento
amoroso
suplementar, aberto,
libertário, segundo Freire, que "vem substituindo, sem
hipo-
crisias e sem mentiras, o casamento tradicional" (1995,p.98), é praticado pelos protomutantes, e anuncia a "Era da
Utopia"
e uma sociedade futura.
A sociedade futura seria formada por protomutantes e dirigida por aqueles que, de forma natural, tivessem o da liderança. O conceito de
protomutante, tomado
de
dom
Thomas
Hanna, precisamente de Corpos em revolta, "os mutantes culturais que vão criar a
sociedade
do
futuro", segundo
Freire
(1995,p.71), define adequadamente o anarquista somático, conforme diz em Sem Tesão:
“Os protomutantes culturais desprezam o poder autoritário, passando a proclamar e a viver o tesão como a terceira dimensão fundamental da vida no Universo. E, estou seguro, serão eles os autores
112
da Revolução Ecológica, que virá do futuro para o presente e desprezará totalmente a influência do passado, porque se trata de um fenômeno anti-histórico e anti-dialético, no sentido marxista clássico dessas duas expressões.” (Grifo nosso) (1987,p.40)
Através das experiências marginais e minoritárias realizadas pelos protomutantes, a sociedade
começaria
transtransformar, orientando-se para
totalmente
que restabeleceria o
equilíbrio
outra
antropológico
e
a
se nova
ecológico
perturbado pelo desenvolvimento cultural e social.
Formar-se-iam associações nas quais os protomutantes exerceriam a liderança através de um processo de natural. Freire descarta o autoritarismo porque "é rança, pois, que consiste o poder natural dos
seleção de
lide-
protomutantes”
(1987,p.42). Como não há um poder autoritário, os protomutantes relacionar-se-iam de forma anarquista, para viver e duzir, é o que propõe em Sem Tesão:
pro-
"Isto quer dizer que a sua produção é projetada, organizada, financiada, gerida, controlada e utilizada por quem produz, recaindo seus benefícios e seus lucros de modo proporcional à qualidade e à quantidade de trabalho criativo realizado por cada produtor." (Grifo nosso) (1987,p.43)
Nesta sociedade anarquista, sem relações de poder,
113
"com a ética da solidariedade e através do trabalho e do amor em tesudas formas de autogestão"(1995,p.53), o amor entre protomutantes "não se oficializa, não se sacraliza esse
os amor
que se identifica com a liberdade a dois" (1995,p.63). Assim, Freire Te-
acredita
nessa
sociedade
futura,
como
expressa
em
sudos:
"Não se pode prever como será essa sociedade, mas uma coisa é certa: ela será mais justa e terá mais força que o Estado. Este, ou desaparecerá ou será apenas um órgão administrativo a serviço do povo. Na vida anarquista, ninguém substituirá o prazer pelo poder, porque não haverá poder a não ser como verbo: poder amar, poder ser livre, poder ser original e poder ser único". (Grifo nosso) (1995,p.102)
As atitudes dos protomutantes aparecem como escandalosas na sociedade
atual, escandalosas
e
irresponsáveis,
como diz em Sem Tesão: "...é papel dos protomutantes atuarem irresponsavelmente na sociedade capitalista autoritária. Por exemplo, eles devem se comportar de modo irritante e irresponsável no combate ao desenvolvimento tecnológico que fere e envenena o meio ambiente. Eles devem amar e gozar irresponsavelmente e, irresponsavelmente, viver segundo o seu tesão e a sua ludicidade." (Grifo nosso) (1987,p.47)
O escândalo, o mau exemplo é a saída contra a
pa-
ralização, o marasmo político produzido pela neurose. O vexa-
114
me é a expansão do prazer, a paixão e o amor de Freire opõe ao vexame libertário, o vexame
alto
risco.
autoritário
que,
por medo ao ridículo, à vergonha, castra e oprime, como enuncia em Ame e dê vexame:
"...o vexame libertário, o que nos livra do autoritarismo para podermos fruir o amor em liberdade; e o vexame autoritário, o que escraviza e nos obriga a optar pelo amor ou pela liberdade." (Grifo nosso) (1990,p.103)
O anarquista é, por
natureza, escandaloso, espe-
cialmente em questões de amor:
"Os anarquistas são os socialistas não autoritários, pessoas que sabem e gostam de dar vexames em todos os campos especialmente no amor." (Grifo nosso) (1990,p.16)
O escandaloso anarquista assume publicamente tas situações, que são embaraçosas em uma sociedade
não
cerli-
bertária. O anarquista confessa que gosta de ser o que é, sem falsidades, sem hipocresia, como em Sem Tesão:
“Por isso facilito o trabalho dos inquisidores oficiais sobre as heresias deste livro, repetindo: eu me drogo, gosto de me drogar, sei me drogar convenientemente sempre que possível, de álcool e de marijuana. Primeiro porque não quero perder todos os outros prazeres que a vida pode me dar, além dos fisológicos, culturais e ideológicos; se-
115
gundo, porque também estou "doente" da miséria humana a que a juventude do mundo vem sendo submetida pelo autoritarismo fascista de nosso tempo." (Grifo nosso) (1987,p.102)
E o vexame leva a viver um
amor
de
alto
instável e dinâmico, que se opõe à segurança pretendida
risco, pela
sociedade não libertária, mas que proporciona o prazer da liberdade, como expressa em Ame e dê vexame:
"...é impossível sentir o prazer da liberdade como nos instantes dos vexames no amor, sem assumir riscos na realização de nossos desejos animal e humano. (...)O equilíbrio instável e dinâmico emtre vivermos mais riscos que segurança caracteriza e garante nossa liberdade.(...)O medo do risco é que nos permite dar os indispensáveis e belos vexames libertários." (Grifo nosso) (1990,p.107)
O ridículo, o vexame, a alegria são condutas
uti-
lizadas para desbloquear a neurose criada pelo autoritarismo:
"Sem vexame não há tesão. Sem tesão não há solução." (Grifo nosso) (1990,p.107)
5.4- O hibridismo no discurso de Freire
Freire mantém os gêneros bastante claros e cionais: a)ensaio científico; b)ensaio
tradi-
político; c)narrativa
116
ficcional.
O discurso está direcionado para o ensaio, a
crô-
nica jornalística, enlaçada com dados autobiográficos onde
o
escritor reflexiona sobre o presente, o passado e trata de se projetar no futuro analisando o momento atual.
Contudo, o ensaio também tem a mesma carga de subjetivação da autobiografia, visto que o autor coloca suas reflexões sobre o mundo circundante e suas reações
perante
os
acontecimentos. A subjetivação dá a intimidade necessária para que se crie uma atmosfera de cumplicidade com o leitor.24
Por exemplo, há elementos de auto-retrato, conforme esta passagem em Sem tesão não há solução:
"...Intuição e experiência, porque convivi com suicidas bem e mal sucedidos e eu mêsmo já tentei me matar algumas vezes. Mas apesar disso não posso provar e garantir nada sobre o significado verdadeiro do que quer que seja, dentro ou fora de mim. Procuro apenas ser sincero na compreensão do que constato no durante das coisas. Sinto-me uma honesta e franca testemunha do enquanto em meu viver." (Grifo nosso) (1987,p.24)
Na Introdução de Ame e dê
vexame, Roberto
manifesta que o livro é dividido em duas partes. Na
Freire
segunda,
117
estão as próprias vivências do autor, como ele mesmo relata:
"Todos os episódios narrados na segunda parte tratam de vexames amorosos, sinceros e verídicos." (Grifo nosso) (1990,p.15)
Embora não declare diretamente a possibilidade introduzir ficção na sua obra, pode-se deduzir que ela
de
exis-
te.
Em entrevista a Mariana Kalil, o escritor declara:
"ZH -Em Os Cúmplices, o senhor escreve a biografia da sua geração e se coloca como um personagem diluído entre todos. Por que o senhor não é o personagem principal? Freire -Não me acho uma figura que mereça ser personagem de livro. Procurei inventar personagens com a vida mais intensa, mais rica, mais bonita. Tomei a liberdade de fazer o que quisesse com eles, sem precisar mentir. Acho as autobiografias mentirosas, os autores se valorizam demais. Os fatos que narro são todos reais. Algumas pessoas mais íntimas me reconhecem na mistura do Vítor e do Bruno." (Grifo nosso) (1996,p.4)
Na Introdução de Tesudos de Todo o Mundo, Univos! justifica os ensaios que escreveu:
"Ando querendo fechar as portas de minha vida. Assim realizei este livro, descrevendo e analisando coisas especiais que vivi e conheci (...) Estes
118
artigos são os saldos dessa experiência amorosa e política. Posso considerá-los uma espécie de diário de campanha. Neles guardei as reflexões, o estudo e os frutos das discussões com os meus clientes e ouvintes das conferências que fiz nos últimos anos." (Grifo nosso) (1995,p.7)
Na novela Cleo e Daniel, que tem biográficos, o escritor faz
a
sua
elementos
autocrítica
auto-
através
da
personagem Rudolf Flügel, seu alter-ego, ou conforme manifesta em Ame e dê vexame:
"...eu fazia uma velada autocrítica à minha origem e formação burguesa e à minha impotência revolucionária..." (Grifo nosso) (1990,p.33)
Em outro momento os elementos autobiográficos servem como testemunho de uma época crítica para
o
autor, como
diz em Sem Tesão:
“Resolvi que esse livro (Cléo e Daniel) sera uma espécie assim de testemunho de tudo aquilo que tinha sentido da vida até aquela época, 1964, quando comecei a escrever(...)No fundo, quando acabei de ler tudo aquilo vi que tinha feito um livro de memórias sublimadas ou racionalizadas, mas o que eu queria era mostrar a impossibilidade da existência do amor na sociedade burguesa." (Grifo nosso) (1987,p.109)
O ensaio político de Freire aspira a utilizar
uma
119
linguagem direta e cotidiana que se define afastamento do "meio
científico
e
por
acadêmico
oposição
ou
brasileiros”,
conforme o autor manifesta no Soma 1(p.15) devido a
que
seu
principal interesse é a divulgação de suas idéias e uma comunicação imediata com o leitor. Freire define seu discurso como “simples e cotidiana" (ibid,p.16).
Este discurso, cujo valor fundamental é a
imedia-
tez e a clareza, opõe-se deliberadamente ao discurso
literá-
rio, à procura estética, à estilização, à beleza. Quando fala de Cleo e Daniel, em Sem tesão não
tem
solução (p.117-118),
refere-se a antiliteratura e define a forma que ele usa
como
“suja”. Estas idéias fundamentam a proximidade com o discurso jornalístico, imediato, espontâneo, popular, etc.
A função da autobiografia, derradeiramente, é dar, além de testemunho do autor e veracidade aos fatos
narrados,
provas de que ele é aquílo mesmo que prega: o aqui e agora da utopia.
Assim, pode-se adiantar que tanto Freire quanto escritor uruguaio De Las Carreras aproximam aspectos
o
biográ-
ficos a utópicos. Também é interessante para a teoria dos gê-
120
neros literários, já que a utopia define-se como uma das formas da ficção ensaística e/ou narrativa.
Quando contaminado com o biográfico, o gênero move num âmbito fronteiriço: há uma parte da ficção que aproxima da realidade e ao mesmo tempo parte dela -a própria vida do autor-, se mundo fictício -não existente.
projeta
da e
se se
compreensão ingressa
num
121
122
123
6. As ressonâncias
124
6.1- O uso do discurso jornalístico
Ambos os autores escolheram a crônica como gênero, mas Freire aproxima-se do ensaio. Optaram por um gênero
cuja
temporalidade opõe-se à permanência aspirada por qualquer escritor -o desejo de perdurar no panteão literário. A
crônica
jornalística é o gênero do cotidiano. Enquadrando essa temporalidade dentro da problemática
estética
maior, os
grandes
temas do homem, pode-se apreciar o enfrentamento do cotidiano (os problemas do hoje, a rotina, o banal) com (os problemas
metafísicos, como
o
excepcional
Deus, morte). Por
Roberto Freire não está interessado nesses grandes
exemplo,
metafísicos; ele quer "erotizar o cotidiano"; é
problemas
mais
tante viver intensamente o hoje, aqui e agora. A
impor-
oposição
presente versus eternidade. Os “grandes temas” são parte
é das
obras dos autores: a organização social, a liberdade, o amor, a natureza humana. A diferença está em que -o Paraíso é aqui e agora. Nesse presente
são se
presentistas manifestam
os
temas metafísicos: o efêmero do desejo, a mudança da natureza das coisas. Ambos aceitam a morte, uma concepção do tempo diferente da cristã pois querem submergir-se no tempo –porque a energia se manifesta aí- e não afastar-se aspirar ao eterno. Não acreditam na
do
eternidade
temporal das
para
coisas,
mas na energia da Natureza ou em transformações permanentes.
125
Os autores escolhem gêneros apropriados para expor assuntos polêmicos e democratizantes e publicam suas obras em jornais e revistas. Contudo, desejam que sua produção inteletual fique para a posteridade pois, posteriormente, reúnem
o
material em livros. O fato de recolher Amor Libre em um livro prova que Roberto de las Carreras queria perpetuar dução. O mesmo fez Freire com suas entrevistas e jornalísticas, por exemplo em rabo
sua
pro-
publicações
Viva eu, viva tu, viva o
do tatú!
Roberto Freire é convencional quanto à divisão gênero e à estruturação do texto. Segue o curso
normal, pro-
põe um estilo transparente, simples, acessível, não co, que o vincula a certa vulgarização
acadêmi-
jornalística
querda. Não tem novidades nem rupturas formais
de
de
es-
notórias. Não
questiona a autoridade a outro nível que não seja o ideológico. É um escritor anarquista, mas não tem uma possa se vincular ao experimentalismo do
escritura
“happening”
música aleatória. Pelo contrário, ele transforma-se em
que
ou
auto-
ridade indiscutível. O único elemento anarquista em Freire o rechaço do estilo cuidado e a defesa de um
“estilo
da
é
sujo”,
vinculado à espontaneidade e que tem seu fundamento no tesão.
126
Em Roberto de las Carreras há mais elementos, como um efeito anarquista, por exemplo, na paródia do gênero nalístico, o que foi visto na análise de Amor
jor-
Libre. Também,
na auto-ironia: isso sim desautoriza o sujeito e remete novamente a uma liberdade do leitor. Beth Brait, referindo-se à ironia, diz que é necessário um trio: o locutor(A1), o receptor(A2) e um terceiro que é o alvo(A3). "No caso de um lóquio irônico há a coincidência entre A1 e
A2; no
soli-
caso
de
uma auto-ironia há a coincidência entre A1 e A3. Há
ainda
possibilidade de o receptor ser tomado como alvo, o
que
im-
plica a coincidência entre A2 e A3 ou, ainda, um caso de
so-
lilóquio auto-irônico em que coincidem
A1/A2/A3."(1995,p.62)
Pode considerar-se, quanto ao enfoque fico, que nenhum dos
dois
escreve
uma
elementos autobiográficos para ilustrar
autobiográ-
autobiografia. Usam suas
teses
políti-
cas, suas crônicas, seus ensaios e provar que eles são plos concretos da
sociedade
a
anarquista
que
exem-
pregam. Assim,
querem convencer o leitor de que a utopia é possível.
6.2- A marginalidade, o escândalo: o anarquista em ação
Fica constatado o fato de que os próprios escrito-
127
res são exemplos vivos daquilo que pregam: são
mutantes. En-
quanto Roberto de las Carreras diz-se missioneiro de
Kropot-
kin e profeta do amor livre, Roberto Freire, em entrevista
a
Dóris Fialcoff, declara sua prática anarquista:
"...Eu acreditei na utopia anarquista e passei a viver de forma anarquista. Embora a sociedade seja uma sociedade autoritária, minha vida, a relação com minha mulher, com meus filhos, com as pessoas, é de uma forma anarquista. Minha utopia está na prática." (Grifo nosso) (1996,p.6)
Freire afirma a necessidade de utopia do seu
pro-
jeto de sociedade libertária quando se mostra a si mesmo como prova de seu mundo futuro ou a existência
atual
de
“mutan-
tes”.
O que define uma utopia como tal é sua
inexistên-
cia, mas inexistência não quer dizer impossibilidade. A pia, tal como é entendida por Roberto de las Carreras
utoe
Ro-
berto Freire, é um futuro possível, do qual eles mesmos são a prova.
As idéias utópicas que, no decorrer do século XIX, dão sustento ao anarquismo, contêm as bases do
erotismo, bem
como o acirrado combate contra a sociedade patriarcal
e
seu
128
fundamento: a família e o matrimônio, a propriedade e a religião. São as mesmos propriedades discursivas que nas obras de Roberto de las
Carreras
e
encontramos
Roberto
Freire. No
primeiro, quase de forma imediata e crua; no segundo, já mais elaborados, lapidados.
Roberto Freire mostra qual é o caminho a
ser
guido pelos anarquistas somáticos: a marginalidade. A
se-
margi-
nalidade de Freire é uma estratégia voluntária e uma atitude política de resistência. Em entrevista a Mariana Kalil, o escritor brasileiro faz o seguinte depoimento:
"ZH -O senhor diz que as pessoas devem ser marginais, não entrar na engrenagem do sistema capitalista. Existe alguma outra maneira de dizer isso sem ser através de um livro vendido em livrarias? Freire -Vivendo. Conheço muitos marginais ao sistema, marginais criativos. A impressão que a gente tem vivendo na repressão familiar e escolar é a de que temos pouca criatividade, somos incapazes. Então, acabamos concordando com qualquer emprego. Se você fica na marginalidade, começa a produzir coisas das quais se sustenta. Eu, por exemplo, vivo dos meus direitos autorais. Sinto um prazer extraordinário de poder escrever e conseguir pagar minha comida, meu teto, ajudar meus filhos com aquilo que faço com amor." (Grifo nosso) (1996,p.4)
Semelhante caminho foi o seguido
por
Roberto
de
las Carreras. Sua postura de dândi exigia-lhe essa atitude. O dandismo é marginal. De uma forma ou outra, ambos estão marginalizados no sistema. Roberto de
las
escritores Carreras
é
129
“reduzido" por uma crítica que tira completamente o valor suas obras, as quais contêm as principais idéias que sustenta. Para a crítica, sua obra não vale
de
anarquistas nada
o consideram um bastardo ressentido, um fantoche
porque
escandaloso
sem seriedade, um alienado, um imoral.
Roberto Freire é simplesmente ignorado. Para a mídia, sua obra é inexistente. Não se encontra uma
só
sobre ela. Esporadicamente
entrevistas
aparecem
publicadas
crítica
repetitivas, que contam sua sofrida infância, a atividade na clandestinidade, sua decisão de combater a psicanálise, a descoberta da Soma através dos fundamentos de Reich e do
mo-
vimento da antipsiquiatria de Cooper. Praticamente é mostrado como um espécimen curioso, dando-se ênfase, também neste
ca-
so, à vida do escritor e esquecendo-se a obra
que
realmente interessa. Este
trabalho
aborda
que quatro
é
o de
suas
obras, nelas o escritor desenvolve suas idéias anarquistas.
A marginalidade pode também ser o
escândalo
praxis revolucionária, já que a marginalidade é
como
conseqüência
de atitudes que se chocam com o sistema vigente. O escândalo, o ridículo, em nível discursivo, é dizer aquilo
que
não
deve ou não se pode dizer. Foi visto que as instituições
se so-
ciais não aceitam a discusão de temas sexuais ou que questio-
130
nem a vigência, por exemplo, do matrimônio, da
monogamia
de outra forma de relacionamento, como o fazem
os
ou
anarquis-
tas. Quando surge a polêmica, de forma aberta, os autores são considerados impertinentes e inadequados, ou como diz
Freire
“comuna e tarado”.
6.3- As idéias de tranformação sexual
As idéias metaforizadas em Roberto de
las
Carre-
ras, por exemplo “...en el laboratorio de Proteo...” (1967,p. 85), encontram-se expostas
em
Roberto
Freire, por
exemplo
“...na Natureza...” (1987,p.45). Ambos elaboram propostas de transformação sexual através da conscientização da politicidade do sexo. A anarquia é aplicada por Roberto de las Carreras na transformação do marido em amante. Dá-se pela morte, o suicídio, do macho para o renascimento purificado –o
amante.
A anarquia é aplicada por Roberto Freire através
terapia
da
da Soma, para a tomada de consciência e a liberação da afetividade, do amor, contra a neurose
provocada
autoritárias. A Soma transforma o homem em
pelas
relações
mutante. Os
pro-
dutos dos dois escritores são iguais, com diferente denominação: o amante e o mutante.
Freire não apresenta com
a
mesma
intensidade
e
131
profundidade o tema da mutação do macho como de las Carreras. Para Freire, o tema em questão é tratado como se fosse a beração do autoritarismo -a posse, os ciúmes- que
li-
é
imposto
ao indivíduo pelo sistema do capitalismo burguês. Em
Roberto
de las Carreras, o
processo
é
visceral, somático, agônico,
muito mais intenso. Ele vê a masculinidade articulada profundamente com o autoritarismo. O macho original é o símbolo
de
uma força ancestral, primitiva e
um
básica
fundamento psico-biológico, mas não
uma
ao
varão. Como
formação
histórica
determinada economicamente, uma aderência que pode ser arrancada por uma terapia anarquista. Para o rancar o autoritarismo do macho
é
autor
uruguaio, ar-
assassiná-lo, suicidá-lo.
Justamente, o fato de ter que "matar o
macho
interior”
faz
com que o discurso de Roberto de las Carreras destrua-se, desestruture-se. O leitor nunca sabe quando fala sério ou quando é brincadeira. Roberto Freire, pelo
contrário, sempre
até nos vexames. Seu discurso é estruturador do
é
dogma
sério, anar-
quista, construidor de uma sociedade libertária utópica e ele acredita que essa é a verdade, embora diga que não há
verda-
des absolutas.
Há elementos suficientes, de acordo com os antece-
132
dentes, para afirmar que o discurso de Roberto de las
Carre-
ras pode ser enquadrado na novíssima corrente da neo-masculinidade. Uruguay Cortazzo, em trabalho inédito, de logo a Sueño de oriente e
Psalmo
a
Venus
1996, Pró-
Cavalieri, sobre
Amor Libre diz que:
“no creo que pueda demostrarse fácilmente que esta es una simple obra representativa de una época ya superada. Creo más bien que estamos frente a un producto bastante atípico y original: una auténtica creación literaria que se adelantó, en mucho, a planteos que recién han empezado a surgir en los años 80 en Estados Unidos y que se conoce como el movimiento de la nueva masculinidad.” (Grifo nosso)
Roberto Freire não é neomasculino. Fixa-se na etapa dos anos setenta, do questionamento da virilidade ta, do machão, do durão, do reconhecimento
dos
machis-
direitos
da
mulher, mas não procura novos fundamentos para a masculinidade, apenas trata o assunto como uma mutação ou uma cultural:
aderência
"...Os valores viris de Ocidente despencaram (...) os homens jovens não estavam interessados nos valores tradicionais do macho. Aos poucos passaram não apenas a rejeitar a guerra, mas o gosto pela posse, pelo consumismo, pela desvastação da Natureza(...)os jovens voltavam as costas para os estereótipos da virilidade e adotavam valores mais femininos, as próprias mulheres abandonavam uma parte de suas atitudes milenares e se apossavam de setores que outrora eram privilégio dos homens (...) Superada essa contradição, os estereótipos do homem viril e da mulher feminina foram pulverizados. Não há mais modelo obrigatório, mas uma infinidade de modelos possíveis. Cada um segue sua
133
particularidade e realiza a própria dosagem de masculinidade e feminilidade. A semelhança entre os sexos é uma inovação tal que podemos, legitimamente, encarála em termos de mutação." (Grifo nosso) (1995,p.61-62)
6.4- A ficcionalidade da sociedade
Ambos têm consciência da possibilidade de que cada pessoa invente seu papel. Roberto Freire concebe as
relações
humanas como um "faz de contas", uma brincadeira de
adultos,
ou seja, uma convenção, como propõe em Sem tesão:
"E sou também como as crianças que não entendem o mundo dos adultos e brincam de ser adultos nos faz-de-contas dos seus jogos infantis. Eu não emtendo nem explico a vida, mas brinco de vivê-la nos faz-de-contas dos meus jogos adultos que não visam decifrar esfinge alguma, mas sim curtir o mais possível com as caras delas.” (Grifo nosso) (1987,p.24)
Ou como no seguinte comentário de Ame e dê vexame, quando se refere à ludicidade da natureza do homem: "Ludicidade significa a capacidade de brincar e de jogar. Quem ama precisa saber brincar e jogar, para não cair nos jogos e brinquedos autoritários das pessoas que não são lúdicas e devem ganhar sempre, nem que para isso tenham de mudar as regras do jogo, roubar o jogo, destruir o jogo ou os próprios parceiros." (Grifo nosso) (1990,p.74)
134
Agindo assim, o amante libertário poderia derrotar a neurose provocada pelo autoritarismo da sociedade
burguesa
cujo jogo é:
"...um jogo medíocre, doente, neurótico, nivelando as pessoas por baixo e boicotando a dinâmica e a liberdade no amor." (Grifo nosso) (Ibid,p.106)
Roberto de las Carreras declarava-se "homem fantasia", no Poema Sentimental. Ele e Roberto Freire concebem sua interação social como um exercício de imaginação, de
sentido
sobre uma realidade, o que é no fundo incompreensível. Freire assim explica:
"Vivo emaranhado deliciosamente nas relatividades absolutas, intensas, apaixonadas e vãs de sonhos, delírios, alucinações e deslumbramentos, que confundo com os aspectos surreais, fantásticos, mágicos e encantados da realidade." (Grifo nosso) (1987,p.24)
Para Roberto de las Carreras a realidade era medíocre e prosaica, e implica um afastamento das doutrinas deterministas. Isto, ao mesmo tempo, é o fundamento do conceito de mutação. A possibilidade de escolher a melhor ficção nós mesmos.
para
135
6.5- A concepção do amor. Sua temporalidade e sua finitude
Os dois denunciam a ideologia
do
"amor
eterno",
fundamento do matrimônio indissolúvel, e defendem a idéia
de
que o amor deve ser vivido com a consciência plena da finitude. O
amor
não
pode
ser
controlado, legalizado, nem
ser
transformado em um bem eterno.
Da obra de Roberto de las Carreras podem
extrair-
se a seguinte porção de texto:
"El Amor muere joven.(...) Dicen los griegos, esos maestros reconocidos en Belleza, en Filosofía, en Arte, y en Amor, que pretender ser amado exclusivamente es uma locura de mortales. Sería curioso que el Amor(...) se encontrara prisionero en los hogares montevideanos junto a la cocina y el retrete!" (Grifo nosso) (1967,p.67-68)
Mais adiante, encontra-se o seguinte:
"¿Dónde está esa Naturaleza disciplinada, matemática, que distribuye a los seres por parejas eternas, y cuyas potencias sordas de atracción se detienen una vez que los ha juntado? La Naturaleza es variable, caprichosa, mujer! El amor vive de deseos y muere de saciedad, dice la gran sentencia.(...) Arrancados de la educación cristiana nos acostumbraremos a mirar en el amor una cosa fugaz, como todo lo que vive." (Grifo nosso) (Ibid,p.77-78)
136
Roberto Freire, em Sem tesão não há solução, diz:
“A grande decepção dos amantes que buscam a felicidade (estado de prazer permanente, institucionalizado) através do amor é produzida pela sua incapacidade em aceitar que, como todas as coisas vivas, o amor também tem um começo, um meio e um fim. Nem seu tempo, nem seu espaço e nem seu tesão podem ser determinados e controlados por razão da vontade e pela força de poder." (Grifo nosso) (1987,p.56)
E em Ame e dê vexame, afirma:
"O amor não pode ser uma condenação perpétua, embora eu não descarte a possibilidade e o direito de que algumas pessoas o vivam assim, não como condenação, mas sendo esse tipo de amor um fato ecológico possível. O que não consigo entender é o amor exclusivo e perpétuo ser uma vantagem em relação às outras formas possíveis de amor." (Grifo nosso) (1990,p.73)
Numa entrevista, o escritor brasileiro, declara:
"Preciso de pessoas que não me cobrem fidelidade, nem continuidade, nem exclusividade. Gosto do namoro, do encontro, que propicia sexualidade original, lúdica, alegre, descartável. Assim, a gente vive em permanente estado de descoberta, surpresa e encantamento." (Grifo nosso) (Ibid,p.91)
6.6- A angústia do amante anarquista
Do item anterior, extrai-se que as
utopias
apre-
137
sentadas pelos autores têm um forte conteúdo anti-eudemônico. Há uma renúncia ao mito da felicidade.
Em Roberto de las Carreras, há uma angústia:
"Optemos: la mujer inerte, la montevideana sin alma, sin cuerpo, sin virtud siquiera dentro del mismo punto de vista convencional; sin abnegación, que nada hace vibrar, que presencia, impasible, instalada en um palco, los más grandes sollozos que atraviesan la historia afectiva de la humanidad y que revientan en la música; que mira sin comprender todos los torcedores, todas las angustias dramáticas del corazón estrujado (...) Nossotros, los que hemos sido cien veces crucificados, martirizados, destrozados, no vacilamos. No damos nuestra quemante angustia por la plétora de satisfacción de los burgueses..." (Grifo nosso) (1967,p.78)
O conceito de angústia está politizado opõe a “satisfacción
burguesa”. É, portanto, a
porque
se
angústia
do
amante anarquista. Adianta-se a Freire no sentido de rejeitar a idéia de felicidade eterna e considerar que apenas
há
mo-
mentos de intensa alegria.
Em Roberto Freire o conceito está
mais
elaborado
visto que a idéia de "felicidade" também é uma ideologia. Então propõe sua substituição pela alegria, que é, como o amor, um estado instável e cíclico. Em Sem tesão, o escritor afirma o seguinte:
138
"Creio já ter conseguido expor todas as razões que me levam a concluir ser a felicidade algo impossível de se atingir (...) não se trata de prazer saudável e libertário(...) a felicidade é uma coisa impossível de ser alcançada (...) Penso mesmo que sua ideologia debe ser fortemente combatida tanto como estratégia política ou como delírio religioso e patológico(...) Afirmo que o sonho capitalista burguês da felicidade deve ser combatido de forma constante e efetiva..." (Grifo nosso) (1987,p.56-57)
Então, o escritor oferece sua fórmula
substituti-
va:
"...buscamos simples e naturalmente alegria. Alegria, coisa tão incerta como o vento, que tem dia que vem, dia que não vem(...)alegria entendida como a expressão gostosa, saborosa, orgástica e emcantada do funcionamento satisfatório e equilibrado de nossa energia vital no plano físico, emocional, psicológico, afetivo, sensual, ético, ideológico e espiritual." (Grifo nosso) (Ibid,p.58-59)
6.7- O erotismo como modelo rítmico
Os dois defendem a euforia e atacam as
filosofias
pessimistas. Concebem o erotismo segundo o modelo rítmico, um processo dinâmico igual aos ciclos da natureza, a
permanente
dinâmica do desejo. Roberto de las Carreras fala sobre:
"¿La veleidad inquieta del deseo no esconde, tal
139
vez, la ley de renovación de la Naturaleza? Nada se detiene. Todo bulle y se transforma en el laboratorio de Proteo de sus laberínticas elaboraciones(...)Nuevos moldes, nuevas armonías, nuevos emtrelazamientos, nuevas formas, busca con turbulento afán el genio afiebrado de la Naturaleza..." (Grifo nosso) (1967,p.85)
Roberto Freire, em Sem Tesão, refere-se a: "Isto quer dizer que na Natureza, fazendo uma comparação com a criação musical, a vida se organiza num modelo rítmico mais ou menos rígido de tempo e de espaço, mas é todo livre o seu tesão, que varia segundo as circunstâncias produzidas por variáveis para nós imperceptíveis e que geram sempre novas e originais melodias e harmonias." (Grifo nosso) (1987,p.45)
Em Utopia e Paixão, o escritor brasileiro sustenta que as novas experiências são sinônimo de
liberdade, e
isto
implica segurança, risco, aventura. Comprendendo a temporalidade cíclica da Natureza há possibilidade de realizar a
uto-
pia e viver com prazer:
"Experimentar situações novas de vida ou viver experiências socialmente inovadoras envolve risco e conseqüentemente traz incertezas,inseguranças(...) Risco é liberdade. É na busca da segurança que se estabelece o poder. Quem gosta do risco e se aventura, aceita a insegurança, porque tem sua própria utopia, vive de satisfazer, a qualquer preço, sua necessidade de prazer." (Grifo nosso) (1991,p.78-79)
140
6.8- A originalidade única
Os dois escritores têm uma visão estética da existência e essa coincidência é surprendente. Eles
perseguem
o
mesmo objetivo: o desenvolvimento da originalidade específica do ser humano. Roberto de las Carreras traça um paralelo
en-
tre originalidade erótica e originalidade artística:
"La originalidad, me has dicho, no es outra cosa que un exitante de nuestra sensibilidad, un despertamiento producido por lo nuevo... En Amor se necesita originalidad, como en Arte." (Grifo nosso) (1967,p.114-115)
Roberto Freire expõe que cada um tem
um
referen-
cial e que esse parâmetro lhe permite,
"...saber se uma coisa que sinto ou observo está viva no limite máximo possível de seus potenciais, se ela aplica a totalidade da energia vital disponível naquilo que sabe ser sua originalidade única." (Grifo nosso) (1987,p.66)
Ou mais adiante quando diz:
"Se o conceito de beleza não estiver forte e diretamente ligado à necessidade biológica e ecológica do homem para viver a sua originalidade única, corre-se sempre risco de a beleza passar a ser um valor produzido por um processo de massificação
141
autoritária sobre o que deva ser a alegria humana." (Grifo nosso) (Ibid,p.69)
Também em Ame e dê vexame, encontra-se algo
seme-
lhante:
“Mas o que é a criatividade no mente poder dispor de todos os humanos liberados, estar o mais de nossa originalidade única e gulados, quer dizer,livres." (Grifo nosso) (1990,p.74)
amor? É simplesnossos potenciais próximo possível vivermos autore-
A originalidade, para Roberto Freire, é a diferença, é a liberdade:
"Cada um de nós é um ser original e único. Nunca houve e nem haverá jamais um ser igual a outro (...) Mas o que importa é a diferença que resta: o original e único em cada um (...) Então, ser livre, é poder viver ampla e irrestritamente as próprias originalidades únicas, as nossas diferenças." (Grifo nosso) (1991,p.37)
142
143
144
7. Conclusão
145
O presente trabalho, procurou analisar o anarquista-erótico e utópico dos escritores Carreras e Roberto
Freire, utilizando
discurso
Roberto
alguns
de
las
conceitos
da
Análise do Discurso francesa, combinados com outros da Teoria da Literatura. No caso de Roberto de las Carreras, o dandismo e o Modernismo Hispano-americano necessariamente foram
abor-
dados, para uma melhor compreensão de suas propostas e de sua postura estética.
Um grupo de críticos e jornalistas resgatado obras inéditas de Roberto de las
uruguaios
têm
Carreras, demons-
trando grande interesse e colocando o escritor como figura de destaque da chamada Geração do 900. Opõem-se, desta
forma, à
crítica tradicional, ou ao cânon zumfeldiano –como se intitulou no presente trabalho.
O estudo das porções maiores
de
texto, extraidas
do corpus, possibilitou constatar simetrias e assimetrias (ou ressonâncias) nos discursos de Roberto de las Carreras e berto Freire. De maneira geral, pode-se dizer que, ao nar as porções para ver as propriedades
do
Ro-
exami-
discurso, enqua-
drando-as num discurso anarquista, erótico, utópico e
dândi,
acessou-se elementos interdiscursivos que normalmente em tras formações discursivas, situam-se no âmbito do
ou-
não-dito,
146
ou seja, daquilo que não pode nem deve ser
dito. Eles
estão
explicitamente declarados, numa atitude extremamente polêmica e contestadora dos valores vigentes na sociedade.
O balanço das convergências e divergências leva
a
algumas conclusões: a)Roberto de las Carreras é um antecedente de Roberto Freire. Porém, as condições históricas de produção são diferentes
em
ambos os autores conforme foi exposto. Trata-se de um caso de analogia entre dois autores sem influência direta, pois Freire desconhece o trabalho de Roberto de las Carreras.
Conforme foi visto anteriormente, há entre o discurso de um e de outro. Os
escritores
sexualidade desde o ponto de vista político poderes revolucionários –a
ressonâncias
liberação
ou
Eles propõem mudanças nos padrões morais e
e
enfocam
lhe
a
atribuem
liberdade
social.
sociais
vigentes
através da politicidade do sexo.
Os autores estudados propõem uma estética que rompe com o conceito institucionalizado de sexualidade e erotismo e o vinculam ao cotidiano. Em ambos autores, o Eros vincula-se ao conceito de beleza e à procura da expressão artística e da criatividade individual; sai do
âmbito
sexual
como
147
atividade psico-física necessária à preservação da espécie ou do arcabouço social e transforma-se em criação artística.
Roberto de las Carreras combina paródia, ironia e humor para desestruturar o discurso cristalizado pelas instituições. Freire serve-se do discurso para estruturar o
dogma
anarquista. O vexame, o ridículo, no fundo é um elemento
sé-
rio que permite a liberação das repressões impostas pelo
au-
toritarismo. Vem a ser uma arma de luta contra as
repressões
e a neurose provocados pelo autoritarismo da sociedade
capi-
talista e burguesa.
De las Carreras propõe um mundo novo sob a estética do dandismo, que vai desde a forma de vestir, atuar, até a forma de escrever. Um mundo onde a beleza, o
bonito, a
per-
feição literária está presente. Freire também propõe um mundo novo, ecológico e estético, onde tesão e beleza articulam-se. A beleza do mundo percebe-se como a expansão livre do O anti-estético é a repressão do tesão. Mas, não se
tesão. preocupa
com a perfeição literária, pelo contrário, ele manifesta
que
quer um estilo "sujo",espontâneo,imediato e vulgarizante; b)o discurso dos escritores estudados situa-se no âmbito
da-
quilo que não deveria ser dito, não estão assujeitados, e esta possibilidade de interpretação fundamenta-se na observação
148
do ato da criação artística: eles são o produto de seus pismos. Roberto de las Carreras denomina-se constrói e vive a utopia de
sua
homem
uto-
fantasia,
personagem. Roberto
Freire
afirma a necessidade da utopia quando se mostra ele mesmo como prova de seu mundo ou a existência
atual
de
“mutantes”.
Freire quer a utopia anarquista já, a erotização do cotidiano. O que define uma utopia como tal é sua inexistência, mas inexistência não quer
dizer
impossibilidade. A
utopia, tal
como é entendida por Roberto de las Carreras e Roberto re, é um futuro possível, do qual eles mesmos
são
Daqui pode extrair-se uma segunda afirmação: a
Frei-
a
prova.
utopia
anar-
quista está também no âmbito daquilo que não pode ser dito; c)a relação entre os escritores pode estar apoiada numa
tra-
dição latino-americana, do contrário são dois escritores exóticos que se fundamentam em fontes exclusivamente internacionais. Daqui deriva uma segunda formulação: deve seqüência literária em América Latina
vinculada
existir à
uma
corrente
anarquista, deve haver outros autores nesta linha e esse campo ainda não foi adequadamente explorado; d)se esta tradição não tem sido de estudar o vínculo
entre
considerada, há
necessidade
sexo-anarquismo-literatura, pois
existe a possibilidade da existência de uma seqüência discursiva literária que não tem sido bem atendida pela crítica, já que o discurso crítico latino-americano é fortemente
conser-
149
vador no que se refere à sexualidade e
o
pode apreciar no caso de Roberto de las
erotismo, como Carreras
e
se
Roberto
Freire: o primeiro, deslocado pelo panteão literário, e o segundo silenciado e ignorado pela mídia e a crítica.
Os vínculos entre erotismo e política são dos por outros autores como Otávio Paz
e
Fernando
abordaGabeira,
por citar dois exemplos imediatos; e)indiretamente, o trabalho prova que existe uma vínculo tre a corrente do Modernismo Hispano-americano e o
en-
Anarquis-
mo, o que obriga a revisar e ver de forma diferente este lacionamento e a redimir o Modernismo como
um
movimento
rede
zonas ou grupos altamente politizados. O Modernismo traduz ao plano da Teoria Literária o princípio anarquista da arte vre, tal como afirma o poeta
Ruben
Darío, quando
refuta
lia
idéia de escrever um manifesto:
"Porque proclamando, como proclamo, una estética acrática, la imposición de un modelo o de um código implicaría una contradición." (Grifo nosso) (1989,p.48)
f)há uma necessidade urgente de estudo comparativo com as outras literaturas nacionais, principalmente latino-americanas, para comprovar se existe um vínculo e, se existe, como se si-
150
tua perante as tradições mais visíveis e dominantes como, por exemplo, a procura da identidade e de uma nova civilização: o americanismo.
Através da análise e das conclusões procura-se uma compreensão
maior
da
apresentadas,
natureza
anarquista-erótico de Roberto de las Carreras
do
Freire, como a possibilidade
de
escapar
e
das
discurso
de
Roberto
determinações
ideológicas de sua época, criando ficções de contúdo político que se transformam em modelos que regem suas condutas e práticas cotidianas. Ambos os discursos separam-se da realidade, projetando-se no futuro e voltam a ela para interceptá-la com a própria experiência dos autores. A ficção
utópica
distan-
cia-se da realidade presente para, depois, encontrá-la e produzir transformações. Isto demonstra que a ser oposição à realidade, está
numa
ficção, longe
relação
dialética
de com
ela: permite uma oposição para depois reinserir-se como uma nova força configuradora.
Graças à capacidade de imaginação possível a harmonia consigo mesmo e com
do
seus
homem
será
semelhantes. O
olhar fictício e utópico da realidade desvela um mundo dentro do mundo no qual o homem habita, a presença dentro do homem que é.
de
outro
homem
151
152
8. Notas 1. ORLANDI (1988,p.19-20), sobre parafrasagem e polissemia diz:“Da observação da linguagem em seu contexto, e em termos bastante gerais, podemos dizer que a produção do discurso se faz na articulação de dois grandes processos, que seriam o fundamento da linguagem: o processo parafrástico e o processo polissêmico. O processo parafrástico é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas (matriz da linguagem). O processo polissêmico é o responsável pelo fato de que são sempre possíveis sentidos diferentes, múltiplos (fonte da linguagem).”(Grifo nosso) No mesmo sentido, no artigo Para quem é o Discurso Pedagó-gico (1987,p.27), estabelece que: ”...a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes processos: o pa-rafrás-tico e o polissêmico.Isto é, de um lado, há um retorno cons-tante a um mesmo dizer sedimentado -a paráfrasee, de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento(...) Há um conflito entre o que é garantido e o que tem de se garan-tir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o mesmo, o garantido, o sedimentado. Essa é a tensão básica do discurso, tensão entre o texto e o
153
contexto histórico-social: o conflito entre o "mesmo" e o “diferente"(Orlandi 1978), entre a paráfrase e a polissemia.”(Grifo nosso) 2. Antonio GARCÍA BERRO e Javier HUERTA CALVO (1992,p.222), sobre os gêneros literários, o sistema e história, manifestam: “Como es evidente, estamos en las fronteras que borrosamente separan la especulación racional de la ficción imaginativa. En este punto ocupan también un lugar singular las utopías o tratados utópicos, gênero que nace en el siglo XVI con la genial creación creación de Tomás Moro y que después ha tenido una singular fortuna en casi todas las literaturas.”(Grifo nosso) 3. Marx e Engels, a partir do Manifesto Comunista, desatam uma polêmica ao aplicar o termo utópico ao socialismo que, conforme BUBER (1995), em Caminos de utopía, “apela a la razón, a la justicia y a la voluntad del hombre para volver a su lugar a la sociedad humana desquiciada”, em oposição ao socialismo científico que eles pregam. O termo utopia sofre evidente depreciação. BUBER (Ibid,p.20) assinala que o termo utópico somente se aplica ao socialismo voluntarista que se opõe ao socialismo científico: “Si considera utópico todo socialismo voluntarista. Lo cual no significa en modo alguno que esté exento de utopía el socialismo que con él se enfrenta y que podría calificarse de necesarista porque declara que lo único que pide es que se ejecute lo necesario para la evolución. Evidentemente, los elementos utópicos que contiene son de otra índole y afectan a otro orden de ideas”.(Grifo nosso) Embora o anarquismo é considerado utópico, há autores, como Daniel GUÉRIN (1967,p.49), que se opõem a esta afirmação. Em El Anarquismo, sob o título de El Anarquismo no es utópico, manifesta: “Por proclamarse constructivo, el anarquismo rechaza ante todo la acusación de utópico.Recurre al método histórico para tratar de probar que la sociedad futura no es invención suya, sino, simplemente, producto del trabajo subterráneo del pasado.”(Grifo nosso) Freire, embora anarquista, não rechaça o termo utopia, pelo contrário, o aceita como positivo e se inclui como utopista. 4.Os críticos da denominada “Geração de 45”, posteriores a Zum Felde, e para este trabalho foram considerados os textos de Emir Rodriguez Monegal, Angel Rama, Arturo Sergio Visca, que se dedicaram a repetir e complementar a crítica de
154
Alberto Zum Felde sobre Roberto de las Carreras. Também são considerados os textos de Carlos Real de Azúa, onde critica o movimento modernista uruguaio e latino-americano. 5.MASSAUD MOISES(1995,p.175-77) considera o ensaio “um espécime literário de contorno indefinível.” Ele diz que é “impossível estabelecer com rigorosa precisão os limites do ensaio(...) pertence ao gênero da prosa, na vertente didática(...)contém a discussão livre, pessoal, de um assunto qualquer(...)o ensaio oferece antes de tudo uma sensação de beleza, posto que beleza da forma: o ensaísta é por definição o bom escritor.” ANGÉLICA SOARES(1993,p.65-66) manifesta que “o ensaio se coloca como forma fronteiriça, sendo improdutivo, do ponto de vista teórico-crítico, querer marcar os seus limites(...)Para o ensaio, não há um tema predominante: vai desde a impressão causada no artista por sua própria personalidade ou pela de outrem, até a apreciação ou o julgamento de diferentes realizações humanas, e pode também se limitar à descrição de fatos.” Quanto à crônica, MASSAUD MOISÉS(1995,p.131-133) comenta que o vocábulo “mudou de sentido ao longo dos séculos”. No início referia-se a uma série de acontecimentos, conforme uma seqüência linear de tempo, mas não analisava as causas e não havia qualquer tipo de interpretação. Modernamente, o vocábulo se vincula a textos que “ostentam, agora, estrita personalidade literária(...) A crônica de feição moderna, via de regra publicada em jornal ou revista e muitas vezes reunida em volume, concentra-se num acontecimento diário que tenha chamado a atenção do escritor(...) Na verdade, classifica-se como expressão literária híbrida, ou múltipla, de vez que pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista, invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo, em torno de personagens reais e/ou imaginárias(...)Modalidade literária sujeita ao transitório e à leveza do jornalismo, a crônica sobrevive quando logra desentranhar o perene da sucessão anódina de acontecimentos diários, e graças ao recursos da linguagem do prosador.” JORGE DE SÁ(1992,p.10-11) fala de “um gênero jornalístico” referindo-se à crônica, aponta “a sua precariedade, esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes de que acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal(...) Nesse con-
155
texto, a crônica também assume essa transitoriedade(...) Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse intante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura também.” 6. Há vários autores, entre eles André RESZLER (1973), que discutem as diferentes idéias e tendências dos anarquistas sobre a arte, desde as teorias do anarquismo clássico até as formas artísticas contemporâneas. Algumas destas formas podem ser catalogadas como anarquistas, por exemplo os “happenings", o "Living Theatre” de Nova Iorque, a música aleatória e as manifestações da chamada "arte efêmera”. Happening é uma forma de experiência coletiva, de participação efetiva do espectador. Há um plano de ação inicial, um esquema, como na música aleatória, que metamorfoseia de uma apresentação para outra. O Living Theatre, ou teatro aleatório, também é uma forma de criação coletiva, onde atores e espectadores são os coautores do drama. Procura-se a revolução pela arte, a ação política direta e o anarquismo como experiência vivida. O fim que persegue é destruir o princípio da autoridade, seja do Estado ou da família. RESZLER (Ibid,p.115) considera que: "mediante sus creaciones colectivas, los animadores del Living tratan de recrear la unidad orgánica del cuerpo social, romper el armazón del individualismo burgués, despertando en el hombre sentimientos de amor y fraternidad”. Manifesta (Ibid,p.132) que: “el arte sustituye a la política. Y el hombre mismo se convierte en obra de arte(...)La vida es teatro(...)El teatro -y la política- no es sino energía pura, instinto, anarquismo.”(Grifo nosso) Com a técnica aleatória a obra musical não tem uma partitura acabada. Há apenas um projeto que permitirá um diálogo entre o compositor e o músico -que neste caso é qualquer um do povo. O intérprete determina sua estrutura e sua execução e a obra acaba tendo um número infinito de execuções. O crítico sustenta que a estética anarquista atual é uma estética puramente artística cuja base está na ideologia anarquista do século XIX. RESZLER (Ibid,p.136) conclui que a estética anarquista "es el guardián del espíritu de ruptu-
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ra. Y puesto que tiene la mirada fija en el porvenir -la utopia- interpreta tal vez mejor la aspiración del artista de hoy a la libre expresión de su fe de herético”(Grifo nosso) 7. Em 1968, Fernando AINSA, publica um artigo na revista Capítulo Oriental, número 19, "La narración y el teatro en los años veinte", sobre o escritor Magariños Solsona. Este, em várias novelas apresenta casos de poligamia entre os personagens como forma de rebeldia contra os valores sociais. Em Las hermanas Flammari (1893), Valmar (1896) e Pasar (1920), critica, de forma burlesca e feroz a sociedade montevideana de fim de século XIX. A novela de 1920, retoma o tema do amor livre. Este raro dado sobre o tema das transformações sexuais, não é vinculado por Ainsa com Roberto de las Carreras. 8. Recentemente, em junho de 1997, Carlos Maria DOMÍNGUEZ, lançou El Bastardo, onde conta a polêmica história de Clara García de Zúñiga -mãe de Roberto de las Carreras. Aprofunda e documenta essa história, de forma minuciosa. Este romance biográfico tem a biografia integral do escritor uruguaio e a descrição de sua época.Para a reconstrução do ambiente do 900 montevideano, utilizou os textos sobre este período dos chamados "críticos del 45". O questionamento que Domínguez faz à visão destes críticos confirma a crítica adiantada por Uruguay CORTAZZO em conferências -Roberto de las Carreras: los futuros del macho (1994), Suicidio y trasmutación del falo (1995). 9. Referindo-se a Roberto, ZUM FELDE (1921,p.49) anota: "Detiénense los transeuntes a observarle, y la vidriera del "Café Moka", donde suele dictar sus páginas a un secretario, parece la vitrina donde se exhibe algún objeto curioso." 10. O texto encontra-se no Interview Político con Roberto de las Carreras, possivelmente publicado em 1903. Também pode consultar-se Rama, no Prólogo de Psalmo a Venus Cavalieri y otras prosas. 11. No presente trabalho, quando se fala de Modernismo, deve ser entendido como o Modernismo Hispano-americano. Homero CASTILLO, em Estudios críticos sobre el Modernismo, faz um apanhado da maioria dos autores que se ocuparam de caracterizar a essência do movimento, os escritores desta corrente. Extrai-se da citada obra conceitos como que o Modernismo não foi uma escola, senão a reunião de várias delas (Zum Felde);
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uma revolução literária e um conjunto de tendências de ordem formal e espiritual (Max Henriquez Ureña); a literatura dos sentidos, de atrativos sensuais, deslumbrante e cromática (Pedro Salinas); uma crise espiritual de múltiplas formas individuais e nacionais, contraditória, que conseguiu expressão universal no mundo hispânico(Federico de Onís). 12. CORTAZZO, numa conferência, Los futuros del macho (1994), comenta que: “…toda la poética de De Las Carreras se enmarca en una elaboradísima óptica paródica que aparece tempranamente constituida en un poema de 1894: ”Al Lector”. Allí confiesa en doce interminables instancias que no tiene nada original para decir y que el lector es un idiota por leerlo y doblemente idiota porque no comprenderá su ingeniosa burla de escribir un poema que concluye demostrando que la idea más genial que se le ocurre es que deje de escribir. Esta burla al lector, a sí mismo y a la institución literaria será su principal herramienta de crítica para atacar otras instituciones y es, además, una forma de situar su literatura en una zona fronteriza donde la ficción literaria se vuelve sobre sí misma autodestruyéndose en su pretensión de verosimilitud. Su anarquismo se manifiesta, así, en este efecto estético de recular humorísticamente cada vez que las actitudes y las ideas se vuelven demasiado graves y trascendentes y se corre el peligro de quedar aprisionados en una rigidez pétrea. La sonrisa irónica siempre está ahí, para desarticular la pretensión abusiva de verdades que pueden pretenderse absolutas.”(Grifo nosso) Em outro trabalho não publicado, Prólogo a Sueño de Orien-te e Psalmo a Venus Cavalieri (1996), sobre o poema de Ro-berto de las Carreras Al Lector, manifesta que: “…es una pa-rodia radical y cínica de la institución literaria que le va a permitir declararse, en otro poema, un “hombre fanta-sía”. Se contraponía obviamente al hombre realista, común, vulgar, burgués y uruguayo: el que vive el libreto seriado y anodino que le escribe la sociedad: el hombre ripio.”(Grifo nosso) 13. Os pensadores anarquistas foram traduzidos pela editora espanhola Sempere e circularam abundantemente em Uruguai. Carlos M. RAMA (1968,p.29) conta que em Montevidéu se editava uma grande variedade de obras operárias, e principalmente anarquistas: “Junto a las figuras de las letras, los propagandistas, los polemistas y los promotores de una frondosa prensa subversiva. Es sorprendente el número y variedad de las publicaciones obreristas, y especialmente anárquicas, que
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se han publicado en el Uruguay. Estos intelectuales, obreros politizados, militantes revolucionarios, son formidables lectores de impresos locales y extrangeros, porque no faltan en Montevideo los productos de las prensas ácratas de Barcelona, de Bologna o Ancona, de Buenos Aires,especialmente.” (Grifo nosso) 14. Alberto Zum Felde não participa da estratégia. Pelo contrário, na crítica de 1921, vê, claramente, a questão do anarquismo individualista e do dandismo, que está avaliada e entendida corretamente. Mister é lembrar que Zum Felde pertenceu ao círculo de Roberto e também foi um modernista. 15. RESZLER (1974,p.93) aborda o tema em questão afirmando que a arte anarquista estava vinculada às vanguardas simbolistas e pósimpressionistas, que traduziam esteticamente o anarquismo individualista de Godwin e Stirner e as leituras das teorias de Kropotkin, Malatesta e Grave, de caráter coletivista ou comunista. Lembra Jean Maitron que diz: "Se era simbolista en literatura y anarquista en política" 16. RESZLER (1974,p.101) comenta que: “este ensayo provocativo resume bastante bien el sentido del anarquismo de los medios artísticos de fin de siglo, y los límites de su compromiso. Saca también a la luz la incompatibilidad fundamental entre el anarquismo individualista del poeta y el anarquismo colectivista del militante”(Grifo nosso) 17. Inspirada em Max Stirner, e bem menos em Bakunin ou Kropotkin, a corrente individualista do Anarquismo, considera a pessoa, o indivíduo, como representante de tudo aquilo que é humano e autodeterminante, e o Estado um ente de opressão. HOROWITZ (1982,p. 53-54) encontra uma linha comum na disparidade de pensadores do anarquismo individualista, da qual extraem-se os seguintes comentários: “...adhirieron al comcepto de la propiedad privada, en la medida en que este comcepto sólo abarcaba el producto total del trabajo individual (...) La finalidad de la sociedad consiste en preservar la soberanía de todo indivíduo, sin excepción(…) El princípio de la individualidad requiere, para tener éxito, la igualdad absoluta de los sexos, la igualdad absoluta de las razas y la igualdad absoluta del trabajo(…) Toda invasión de los derechos naturales de la persona es injusta y constituye un símbolo de la tiranía de la mayoría(...) Toda definición de la libertad comienza y concluye con la libertad de la parte más débil de una nación.”
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18. Comenta LITVAK (1981,p.273), referindo-se ao anarquismo espanhol: “Los anarquistas declaran la necesidad de la libertad para la creación literaria, libertad tanto en el sentido ideológico como creativo(...) Sin embargo, a pesar de esta postura abierta, la estética literaria de los anarquistas es normativa, y en general, a pesar de la aproximación que hubo con los modernistas, hay una condena general del modernismo y de toda manifestación literaria que deje de lado la cuestión social y se dedique exclusiva o principalmente a un fin puramente estético(...) Adoptan los anarquistas la idea, común por entonces, de que la decadencia de la literatura se manifestaba por un predominio de la forma sobre el contenido de la obra.”(Grifo nosso) 19. BRANDÃO (1994,p.38) diz que assujeitamento ideológico ou interpelação ideológica "consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social" 20. Robert MOORE e Douglas GILLETTE (1993) sustentam que no fim do século vinte existe uma crise de identidade masculina sem precedentes. Apontam como uma das causas o desaparecimento do ritual que ajudaria o adolescente a efetuar a transição para a masculinidade adulta. Como conseqüência, a psicologia dominante é a do adolescente, de comportamentos prepotentes e violentos. Outra causa é a organização social e cultural do patriarcado que se traduz através de uma dominação opressora e abusiva com as mulheres. A corrente denominada "nova masculinidade" ou "neomasculinismo", onde se situam os autores, considera que o patriarcado não é a verdadeira expressão da masculinidade, porque esta não é prepotente. A masculinidade imatura, expressão da psicologia adolescente, procuraria não somente dominar as mulheres mas também os homens. Propõem, então, uma redefinição do que seria o poder masculino, uma adequada conexão com "as energias masculinas profundas e instintivas, com os potenciais da masculinidade matura"(1993,p.18). Segundo os autores, o homem necessita "mais poder masculino maturo”(Ibid,p.19). 21. Mas Georges MAY (1979,p.95) considera que isto é excepcional. Observa que há na autobiografia um tipo de deformação decorrente da ironia e do humor, como se o autor debochasse de sí mesmo e das situações embaraçosas as quais atravessou: “Pero en algunas ocasiones se llega, sin que sea fácil juzgar si se debe o no a su propia voluntad, a introducir en la pro-
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pia retórica de la narración otra clase de deformación que no forma parte de las condiciones genéricas de la autobiografía dado que no aparece sino en ciertos textos: se trata de la ironía o del humor, con los cuales el autobiógrafo se enfrenta a ciertas acciones, dichos y pensamientos del personaje que fue alguna vez.”(Grifo nosso) Roberto de las Carreras e Roberto Freire coincidem numa visão bastante irônica de si mesmos. Os dois são, então, exceções. 22. A ironia do dândi nunca é grosseria, mas um ato de ousadia e provocação. Critica a sociedade decrépita, burla das normas sociais e vinga-se através da ironia e da impertinência. Assim é a observação de HINTERHAÜSER (1980,p.74): “La ironía del dandy culmina, a su vez en impertinencia, pero ésta no llega nunca a degenerar en grosería, sino que sigue siendo un acto temerario y provocador de índole social-intelectual(...) tal reacción se produce dentro de los límites impuestos por la convención, ya que el dandy no puede prescindir de la sociedad: su vanidad (legítima) necesita el aplauso de aquélla; pues, hijo al fin de esa sociedad decrépita, carece de fuerzas para romper radicalmente con ella. Es cierto que se burla de las normas sociales, pero, al mismo tiempo las respeta. Atormentado por esta discrepancia, trata de vengarse mediante la ironía y la impertinencia.”(Grifo nosso) BRAIT (1994,p.15) afirma que a ironia pode provocar efeitos de sentidos, quebrando ou desmascarando o discurso tido como oficial: “...a ironia é supreendida como procedimento intertextual, interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um processo meta-referencialização, de estruturação do fragmentário e que, como organização de recursos significantes,pode provocar efeitos de sentido como a dessacralização do discurso oficial ou o desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros. Em outras palavras, a ironia será considerada como estratégia de linguagem que, participando da constituição do discurso como fato histórico e social, mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia, ainda que esta polifonia não signifique, necessariamente, a democratização dos valores veiculados ou criados.” (Grifo nosso) A autora (Ibid,p.16) considera que o riso, o humor, decorrentes da ironia, desnudam aspectos culturais, sociais e estéticos: “Como elemento estruturador de um texto cuja força reside na sua capacidade de fazer do riso uma conseqüência, o
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interdiscurso irônico posssibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem menos críticos.”(Grifo noso) 23. Não foi possível consultar esta obra, por não ter sido encontrada na Biblioteca Nacional de Montevidéu, nem em poder dos familiares de Roberto. 24. Conforme enuncia GÓMEZ-MARTÍNEZ (1981,p.48): “El subjetivismo es, según lo indicado, parte esencial del ensayo. Es esta motivación interior la que elige el tema y su aproximación a él; y como el ensayista expresa no sólo sus sentimentos, sino también el mismo proceso de adquirirlos, sus escritos poseen siempre un carácter de íntima autobiografía. El "yo" del autor se destaca en todas las páginas, como estandarte que anuncia una fuerte personalidad. Dentro de la individualidad peculiar de cada ensayista, las notas autobiográficas son frecuentes en todos los ensayos, con independencia del tema de estos.”(Grifo nosso)
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