Roberto Freire E Roberto De Las Carreras

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1

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS-LINGÜÍSTICA APLICADA

OS ANARQUISTAS ERÓTICOS: UM ESTUDO COMPARATIVO DO DISCURSO DE ROBERTO DE LAS CARRERAS E ROBERTO FREIRE

Juan Pedro Álvez Suárez

Orientador: Prof. Dr. Uruguay Cortazzo Co-Orientadora: Profª. Dra. Aracy Ernst Pereira

PELOTAS, julho de 1998 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

2

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS-LINGÜÍSTICA APLICADA

OS ANARQUISTAS ERÓTICOS: UM ESTUDO COMPARATIVO DO DISCURSO DE ROBERTO DE LAS CARRERAS E ROBERTO FREIRE

Juan Pedro Álvez Suárez

Orientador: Prof. Dr. Uruguay Cortazzo Co-Orientadora: Profª. Dra. Aracy Ernst Pereira

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Católica de Pelotas como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras

PELOTAS, julho de 1998. AGRADECIMENTOS

3

Expresso minha gratidão àqueles

que

participaram

da realização deste trabalho.

À Professora Carmem Hernandorena, incansável batalhadora pelo reconhecimento do Mestrado. Com um senso de justiça pouco comum num universo de injustiças, a decisão

certa

e ponderada.

Ao Professor Oscar gênese deste processo, como

Brisolara, que bandeirante

participou

desbravando

da

terras

desconhecidas.

Aos

colegas

de

Mestrado, Matilde, Fátima, Luiz

Gustavo, pelos conselhos, pela amizade, pelos gratos momentos onde o mate ou o vinho tornaram-se inspiradores de tos tão autênticos, honestos e sinceros. Também

meu

sentimencarinho

à Brenda e à Ivete.

À Professora Aracy, co-orientadora, pela paciência e sabedoria com que soube

conduzir-me por caminhos nunca an-

tes explorados por mim. A tarefa universos de

forma

cansativa

coerente, agradável

e

de

juntar

dois

convincente. Meu

respeito, minha admiração e profunda gratidão. Ao

Professor Uruguay, meu

orientador, meu amigo.

4

A ação certa

na hora da incerteza; a voz de coragem na

hora

de desânimo

e desespero; a saída dos becos e armadilhas

in-

telectuais; o leme desta nau

perdida na imensidão do

literário. Profissional competente

oceano

com quem tive o prazer de

dialogar longamente, discutir, aprender a aprender, ter senso crítico e principalmente ser tolerante e “diplomâtico”. Agradeço a confiança em mim depositada.

À Professora Odete Acosta, pela invalorável

cola-

boração na revisão.

A Fernando

e

Marcela, meus

de que a utopia ainda seja possível.

filhos, a

esperança

5

SUMÁRIO RESUMO...............................

VIII

ABSTRACT.............................

X

1

INTRODUÇÃO...........................

1

1.1

Apresentação do tema...................

2

1.2

A importância do tema..................

9

1.3

Os objetivos...........................

11

2

ROBERTO DE LAS CARRERAS.........

15

2.1

Da materialidade de sua história à materialidade de sua obra...............

16

2.2

O cânon zumfeldiano.....................

20

2.2.1

A estética dândi........................

24

2.2.2

O psicologismo do elemento político.....

30

2.2.2.1 O anarquismo e o Modernismo: um relacionamento tenso........................

39

2.3

Crítica ao cânon........................

42

2.4

Reações à crítica.......................

48

6

2.4.1

A necessidade de rever o discurso robertiano.............................

50

3

“AMOR LIBRE”........................

53

3.1

Condições de produção da obra..........

54

3.2

A ruptura e os efeitos de sentido. A subversão do gênero..................

3.3

56

A subversão ideológica. Anarquia e sexualidade............................

66

4

ROBERTO FREIRE.....................

73

4.1

Da materialidade de sua história à materialidade de sua obra..............

74

5

TEORIA DA SOMA.....................

83

5.1

O tesão................................

84

5.2

Os impedimentos do tesão...............

88

5.3

A liberação do tesão...................

90

5.4

O hibridismo no discurso de Freire.....

97

6

AS RESSONÂNCIAS....................

102

6.1

O uso do discurso jornalístico.........

103

7

6.2

A marginalidade, o escândalo: o anarquista em ação...................

105

6.3

As idéias de transformação sexual......

108

6.4

A ficcionalidade da sociedade..........

111

6.5

A concepção do amor. Sua temporalidade e sua finitude.........................

113

6.6

A angústia do amante anarquista........

115

6.7

O erotismo como modelo rítmico.........

116

6.8

A originalidade única..................

118

CONCLUSÃO...................................

120

NOTAS........................................

127

BIBLIOGRAFIA...............................

137

8

RESUMO Esta tese confronta o discurso

anarquista-erótico

de Roberto de las Carreras, escritor uruguaio, com o

discur-

so de Roberto Freire, escritor brasileiro, a partir da

iden-

tificação de ressonâncias interdiscursivas.

Opta-se teoricamente pela Análise do Discurso(AD), e pela Teoria da Literatura. A AD, porque apresenta conceitos importantes que auxiliam no desvelamento da natureza significante do discurso, tais

como: parafrasagem, polissemia, res-

sonâncias interdiscursivas, efeitos de sentido. A Teoria terária, porque ajuda a provar que os autores

conduzem

Li-

propostas dentro de um marco estético, preocupando-se

suas com

o

estilo, o gênero e a construção ficcional.

Primeiramente, são apresentadas as condições

his-

tóricas de produção do discurso de Roberto de las Carreras

e

a crítica sobre sua obra. A seguir, mostra-se que o autor, em Amor Libre, faz uma apaixonada defesa do

feminismo, do anar-

9

quismo e propõe um relacionamento entre homem foge aos padrões morais e sociais

da

e

mulher

que

época. Observam-se

efeitos de sentido que, através da ironia e da



paródia, pro-

vocam uma subversão discursiva. Essa subversão alia-se à mistura de gêneros literários marginais, e à ficção da dade, formando um gênero híbrido.

realida-

A seguir, apresentam-se as condições históricas de produção do discurso de Roberto Freire, onde se constata

sua

insatisfação e ausência de identificação com sua

so-

classe

cial -a burguesia- além de sua opção por ideologias de transformação social. Para analisar seu discurso, toma-se como referência a Teoria do Tesão e seus elementos vitais cos -alegria, beleza e prazer- que se desenvolvem sexualidade. O discurso do escritor não

energétidentro

apresenta

da

traços de

subversão na técnica utilizada. Esta é convencional e delimitada: ensaio, crônica, autobiografia.

A tese conclui que o discurso de

Roberto

Carreras é um antecedente do de Roberto Freire

las

que

ambos

propõem mudanças nos padrões morais e sociais vigentes

atra-

vés da politicidade do

sexo. Finalmente, ao

e

de

constatar-se

o

vínculo entre eles, surgem interrogações. A principal delas é saber se existe ou não uma série discursiva

onde

se

liguem

10

anarquismo, sexualidade e literatura e onde possa ser situado o discurso anarquista-erótico de Roberto de las Carreras e de Roberto Freire.

ABSTRACT This paper compares the uruguaian de

las

Carreras’

anarchistic

erotical

writer

discourse

Roberto to

the

brazilian writer Roberto Freire’s one,with the identification of interdiscursive resonances.

Discursive Analisis (DA), and Literary Theory choosen. The DA, because

presents

help in the discovery of

significant

such

as: paraphrase, polysemy,

effects of sense. Literary

important nature

concepts of

resonances,

helps

that both writers take their proposals to

an

that

discourse,

interdiscursive

Theory, because

are

to

prove

esthetic

way,

worried about style, gender and fictional construction.

First, historical conditions

of

Roberto

de

las

Carreras’ discursive production and the critic about his work

11

are presented. Then, it is showed that Amor Libre, does a pasionate defense of

the

author, in

feminism, anarchism

and

proposes a relationship between man and woman that runs

away

of moral and social patterns of this epoch. Effects of are appreciated that through

irony

and

sense

parody, provoque

a

discoursive subversion. This one joins to literary mixture of marginals genders and the fiction of reality. Then, Roberto Freire’s

historical

conditions

of

discursive production are presented, where his insatisfaction and not identification with

his

social

class -bourgeoisie-

and his option for social transformation ideologies are showed. To analize

Roberto

Freire’s

discourse, the

Theory

of

“Tesão” is used as reference and its vital energetic elements -joy, beauty and pleasure- that develop

into

sexuality. The

writer’s discourse does not present features of subversion in the used technic. It is

conventional

and

delimited: essay,

chronicle, autobiography.

The conclusion emphasizes that Roberto de las Carreras’ discourse is a precedent of Roberto Freire’s both propose changes in moral and social patterns through the politicy of sex. Finally, the

tie

one in

and

between

vigour them

opens questions. The main one is if exist or not a discursive

12

serie where anarchism, sexuality and

literature

and

and

if

Roberto

de

las

Carreras’

Roberto

are

anarchistic erotical discourse can be place there.

joined Freire’s

13

1. Introdução 1.1- Apresentação do tema

O presente

trabalho, "OS

tem como finalidade proceder a

uma

ANARQUISTAS análise

funcionamento do discurso anarquista-erótico

ERÓTICOS",

comparativa

do

de

DE

ROBERTO

LAS CARRERAS, escritor uruguaio e o de ROBERTO FREIRE, escritor brasileiro.

Ambos os discursos configuram-se como propostas de transformação social através da conscientização da

politici-

dade do sexo e projetam-se sobre um horizonte discursivo utó-

14

pico. O utopismo, como se verá, participa, ao mesmo tempo, de uma dimensão literária e

de

outra

política. Assim, opta-se

por um duplo enfoque teórico.

Consideram-se duas abordagens

teóricas: a

literária e a análise do discurso. A primeira, pela

teoria

lidade de provar que esses autores

conduzem

suas

possibipropostas

dentro de um marco estético e compreendem a si próprios

como

escritores, no sentido tradicional do termo, vale

dizer, têm

preocupação com o estilo, o gênero e a construção

ficcional.

No âmbito literário procede-se a uma análise genológica e tematológica do

corpus

escolhido. A

segunda, por

apresentar

conceitos importantes que auxiliam no desvelamento da natureza significante do

discurso

anarquista-erótico

Dentre esses conceitos destacam-se: a)o de parafrasagem -dizer "o mesmo"- e o de

e

utópico.

polissemia –di-

zer "o diferente"- (cf. Orlandi:1987), que são

constitutivos

de todo discurso de todo discurso.1 Eles criam a tensão entre a reiteração de processos cristalizados pelas instituições

e

a reformulação através de sentidos diferentes, múltiplos; b)o de formação discursiva (FD) ”que determina o que deve ser dito a partir de uma posição dada (Pêcheux e Fuchs,1990,p.166). Esse

conceito

numa

pode

e

conjuntura”

serve

operatório para circunscrever os discursos em questão

de

meio dentro

15

de um espaço oposto aos valores cristalizados pela sociedade; c)o de efeito de sentido, que parece pertinente na confrontação do discurso de Roberto de las Carreras com o discurso Roberto Freire. Ambos provocam efeitos de sentido que

de

dessa-

cralizam os padrões morais vigentes na sociedade; d)o de ressonância de significação, tomado de

empréstimo

Serrani. A autora introduz essa noção ao tratar da

de

paráfrase

no âmbito da Análise do Discurso. Diz ela:

"Entendo que há paráfrase quando podemos estabelecer entre as unidades envolvidas uma ressonância -interdiscursiva- de significação, que tende a construir a realidade (imaginária) de um sentido. Ressonância porque para que haja paráfrase a significação é produzida por meio de um efeito de vibração semântica mútua. A meu ver, a noção de ressonância permite incluir, na própria conceituação de paráfrase, o sujeito da linguagem, pois ela sempre ressoa para alguém, tanto na dimensão dos interlocutores empíricos projetados no discurso (projeção para a qual é fundamental o domínio das formações imaginárias), quanto para a dimensão do sujeito, no sentido foucaultiano do termo, ou seja, o do lugar de exercício da função enunciativa em uma formação discursiva. Em se tratando de uma ressonância interdiscursiva, fica compreendido o trabalho como uma concepção heterogênea de linguagem (...) As paráfrases, então, como as estou entendendo aquí, ressoam significativamente na verticalidade do discurso e concretizam-se na horizontalidade da cadeia, através de diferentes realizações lingüísticas." (1993,p.47)

O conceito de

"ressonâncias

interdiscursivas" ou

"ressonâncias de significação", usado para estudar o processo parafrástico, revela-se operatório para este estudo, na medi-

16

da em que possibilita confrontar os discursos em pauta e mostrar até que ponto eles constituem um novo modo de “dizer”.

A importância do emprego desse conceito deve-se ao fato de se referir aos efeitos de sentido produzidos pela repetição, no nível do interdiscurso, o que facilita

estabele-

cer simetrias e/ou assimetrias entre o discurso de Roberto de las Carreras e o discurso

de

Roberto

Freire, que

permitem

circunscrevê-los, ou não, no mesmo espaço discursivo. Ao permitir focalizar os

elementos

do

contrapô-los aos discursos tidos

interdiscurso, possibilita como

sérios, os

legitima-

dos, onde não há espaço para os enunciados referentes

à

li-

berdade sexual.

Entretanto, deve-se ressaltar que esse espaço possivelmente compartilhado por eles não se refere aos

sentidos

sedimentados. Ao contrário, é o "mesmo" mas no espaço do “diferente”. Assim, as "ressonâncias" devem ser aqui

entendidas

como os efeitos de sentido produzidos pela repetição, em nível interdiscursivo, de uma formação discursiva que se contra-põe ao instituído. As ressonâncias permitem demonstrar existência de um certo tipo de discurso utópico comum em berto de las Carreras e Roberto Freire, apesar do mento temporal e espacial de suas obras.

a Ro-

distancia-

17

O discurso utópico dos autores aparece

como

uma

transgressão ou subversão do discurso previsto e aceito

pela

ordem vigente e como uma proposta de um novo modelo de sociedade. É um discurso desmascarador da injustiça e do mal ordenamento político e social. Opõe-se ao discurso que legitima o status quo da sociedade. Vem a dizer, pois, outra de-se afirmar que, ao mesmo tempo, o discurso

coisa. Po-

utópico

é

um

discurso político e um gênero literário.

A definição de utopia tem, em si mesma, uma particular ambigüidade que reclama um duplo enfoque. Por um

lado,

inscreve-se dentro do campo do

mundo

discurso

político: um

futuro que se elabora a partir da crítica e da impugnação

da

ordem social vigente; por outro, pertence ao campo literário. Dentro deste campo, constata-se uma divergência entre os

au-

Tores quanto à definição do gênero. Alguns autores consideram a utopia um sub-gênero literário, um texto

que

descreve

um

mundo possível e futuro.2 Outros, dão mais importância ao aspecto narrativo. A ficção está presente na narração, mas também nos textos onde se descreve uma sociedade inexistente futura. Neste caso, o tratado utópico pode transformar-se novela. Os autores que se filiam a esta a utopia “una rama del

género

corrente

ou em

consideram

novelesco” (cf.Trusson:1079).

18

Do relacionamento utopia-novela obtém-se se “la impresión autenticidad y verosimilitud” (Ibid,p.21). A utopia na novela a melhor forma para realizar seu

de

encontra

propósito. Consi-

derando o aspecto narrativo, Raymond Trousson elaborou a

se-

guinte definição de utopia:

“…proponemos que se hable de utopia cuando, en el marco de un relato (lo que excluye los tratados políticos), figure descrita una comunidad (lo que excluye la robinsonada), organizada según ciertos principios políticos, económicos, morales, que restituyan la complejidad de la vida social (lo que excluye la edad de oro y la arcadia), ya se presente como ideal que realizar (utopia constructiva) o como previsión de un infierno (la antiutopía moderna) y se sitúe en un espacio real o imaginario o también en el tiempo o aparezca, por último, descrita al final de un viaje imaginario, verosímil o no.” (Grifo nosso) (1979,p.54)

Contudo, a obra fundadora Utopia, de Thomas que deu o nome ao gênero, apresenta a predominância

More,

do

ele-

mento descritivo; não há intriga como na novela.

A utopia também é concebida como mentalidade especulativa, como “superación de los límites actuales

del

hom-

bre” (Trousson,p.24). Neste caso, denomina-se

utopismo, isto

é, ”actitud mental que entraña la impugnación

o

incluso

la

negación radical del orden existente en nombre de outro sistema de valores” (Ibid,p.32). Thomas Molnar chega à conclusão de que o utopismo não é apenas uma forma de experimentar

com

19

as possibilidades sociais, mas um sistema de

pensamento, uma

filosofia que estabelece uma concepção global do mundo:

"El utopismo es un sistema de pensamiento, una filosofía con bien establecidos conceptos acerca de Dios, del hombre, de la naturaleza y de la comunidad.” (Grifo nosso) (1970,p.240)

Thomas Molnar sustenta que, em nível discurso utópico surge do cruzamento do

literário, o

conceito

do

começo

imaculado da civilização, Idade de Ouro, com o mito do Paraíso, introduzido pelo Cristianismo. O autor descreve, referindo-se ao mito que, no início as coisas tinham

uma

perfeição

ideal, depois degeneraram:

"...un estado primitivo en el cual las cosas poseían una perfección ideal, luego de lo cual sobrevino la degeneración (...) todo había comenzado por una Edad de Oro (...) la propiedad privada corrompió esas idílicas alquerías: la codicia, la avaricia y la envidia se hicieron universales.” (Grifo nosso) (1970,p.24)

Segundo Molnar, com o Cristianismo, o homem

pas-

sou a acreditar que o bem e o mal coexistem e espera o dia do Juízo Final. O homem não podia aceitar a possibilidade de uma comunidade terrena ideal e imutável antes chegasse. O discurso utópico

de

seria, pois, o

que

esse

instrumento

dia do

20

homem na luta pela recuperação da pureza absoluta.

O discurso dos autores estudados pode ser qualificado de utópico, já que apresenta a idéia

de

uma

sociedade

futura, com outros valores e uma nova concepção do

homem, do

mundo e a natureza. Essa utopia se materializa pela adesão um sistema ideológico

específico. Ambos

a

escritores, aberta-

mente declaram-se anarquistas e propõem a

transformação

so-

cial através do anarquismo.3

Tanto Roberto de las Carreras quanto Roberto Freire dão uma importância central ao

fator

sexual, dentro

das

mudanças que devem operar-se para que se produza o advento da nova sociedade.

O objeto central do estudo constitui-se na articulação da anarquia com a sexualidade, o que denomina-se quismo erótico. Por este termo entende-se, de concepção que, partindo de uma

teoria

modo

anar-

geral, a

anarquista, propõe

a

abolição de todo princípio de autoridade institucional na esfera sexual para que os próprios indivíduos sejam os encarregados de autogestioná-la em plena liberdade.

No trabalho, ver-se-á que

a

corrente

denominada

21

denominada Anarquismo não constitui uma unidade, um bloco homogêneo e pacífico, mas uma corrente diversificada de propostas políticas, econômicas, sexuais, sociais e artísticas. Tem-se, então, o anarcossindicalismo, o anarquismo individualista, o anarquismo

comunista, o

anarquismo

naturalista, o

anarquismo aristocrático, etc.

Também, apreciar-se-á o fenômeno do

dandismo

que

surgiu em fins de século XIX e que está ligado ao anarcoindividualismo. Sua essência está na criatividade, na

originali-

dade como expansão do eu, sem os limites impostos pelas mas sociais. O dandismo pode ser

considerado

uma

nor-

derivação

prática do utopismo na medida em que propõe um mundo

estéti-

co, comportamentos e valores contrários às convenções sociais da época. Ao propor uma sociedade diferente, ideal, o dandismo relaciona-se com a utopia.

1.2- A importância do tema

A importância do tema abordado

fundamenta-se

nos

seguintes pontos: a)existe no marco do Mercosul um grande esforço de integração cultural. No caso específico do Uruguai e do se sempre essa aproximação através da

figura

Brasil, traçoudo

gaúcho, ou

22

“gaucho", no seu habitat natural, o pampa. Contudo, esta tese tem interesse em demonstrar que o relacionamento

convergente

dos dois países na área da teoria literária

corresponde

não

única e exclusivamente ao discurso gauchesco, mas que há outra artéria latente e viva que, no fim do século, apresenta propostas de profundas mudanças

político-sociais. Dentro

comparativismo acadêmico, parece existir o concentrar num regionalismo de evidente

interesse

do se

romântico

ou

traço

de

realista para afirmar uma identidade baseada em características geográficas e folclóricas, ou seja, um tradicionalismo de costumes. Descuida-se, assim, de outros

aspectos

como as projeções utópicas afins com os

vanguardismos

ristas, pouco preocupadas em ressaltar valores

culturais, futu-

autóctones

e

que, ao contrário, apresentam-se como uma crítica a esses valores, como é o caso do objeto de estudo da presente tese; b)não há no Uruguai um reconhecimento da dimensão e da importância do discurso de Roberto de las Carreras, que é considerado de ordem secundária. O universo discursivo crítico dicional, que neste trabalho se refere aos trabalhos

tra-

de

Al-

berto Zum Felde e a Geração do 45, deprecia os valores

lite-

rários do escritor, desviando a atenção para

pecu-

liares de sua vida.4 O investigador

Emir

aspectos

Rodríguez

Monegal

até chega a descobrir um “algo mais” no discurso do escritor, possivelmente a proposta de transformação social

através

da

23

politicidade do sexo, mas não aprofunda

o

exame. Há, então,

uma lacuna que esta tese tenta preencher; c)no Brasil, a obra de Roberto Freire também é desvalorizada, fato constatado pela inexistência de crítica ou de poucos artigos na mídia, reduzidos a entrevistas

sobre

a

sua

vida,

único espaço que lhe é concedido; d)Roberto de las Carreras e Roberto Freire aproximam-se quanto à escolha do gênero

literário, pois

expõem

suas

através de um determinado leito -a prosa-, e, dentro

idéias dele, a

autobiografia tem um fator destacado. Em Roberto de las

Car-

reras e Roberto Freire, a autobiografia mistura-se com a

re-

portagem jornalística, o ensaio e a crônica.5 Nesse os dois escritores situam seus trabalhos em zonas ças, enlaçando gêneros, o que se conhece como autores

sentido, fronteiri-

hibridismo. Os

rompem, subvertem, criam enfim novos efeitos de lei-

tura. Os discursos analisados

invertem

aspectos

culturais,

sociais, políticos e estéticos; e)ao utilizar estratégias discursivas, os autores desnudam

a

hipocrisia vigente na sociedade acerca das questões ligadas à sexualidade, ao mesmo tempo que marcam a sua posição diferenciada de sujeitos numa atitude clara de confronto com os beres legitimados.

1.3- Os objetivos

sa-

24

Com o presente trabalho, pretende-se: a)verificar, em seqüências discursivas selecionadas, que dois escritores, uruguaio e brasileiro, vinculados ao

anarquismo,

propõem idéias políticas e estéticas utópicas, através da sexualidade;6 b)determinar, nas seqüências discursivas analisadas, os

pon-

tos de convergência e/ou divergência entre o discurso de Roberto de las Carreras e o de Roberto Freire a partir da identificação de ressonâncias interdiscursivas; c)demonstrar, através de

elementos

interdiscursivos, que

proposta anarquista de Roberto de las Carreras, de uma

a

revo-

lução social através da sexualidade, é um antecedente da proposta de Roberto Freire, na série literária latino-americana. Trata-se de um caso de analogia entre dois autores sem influências diretas. Freire desconhece a obra de Carreras. Não existe a suposição de

uma

Roberto

tradição

de

las

literária

desenvolvida a partir de Roberto de las Carreras no Uruguai.7 A coincidência explica-se em

termos

de

interdiscursividade

que aqui pode ser vista a partir de certas formas de gem que mostram os autores como sujeitos de

lingua-

transgressão

assumirem a posição de luta pela liberação ou

liberdade

xual. Ambos apresentam a sexualidade como elemento de ças da sociedade. Os dois escritores fazem uma

ao se-

mudan-

abordagem

da

25

sexualidade desde o ponto de vista político

e

lhe

atribuem

poderes revolucionários.

Com vistas à consecução desses

objetivos, o

sente trabalho busca articular conceitos do campo da Literatura com conceitos do campo da Análise

da do

preTeoria

Discurso

francesa. Na verdade, vale-se desses últimos pela

possibili-

dade que oferecem de evidenciar, na materialidade

lingüísti-

ca, as propriedades político-ideológicas

presentes

qüências discursivas constitutivas do corpus.

nas

se-

26

27

2. Roberto de las Carreras 2.1- Da materialidade de sua história à materialidade de

sua

obra

Nasceu em 1873, em Montevidéu, fruto do relacionamento extra-conjugal entre

Clara

García

de

Zúñiga, mulher

pertencente a uma família tradicional da aristocracia do da Plata, e Ernesto de las Carreras, homem ligado ao uruguaio, do departamento de Paysandú. Muitas são

as

Rio

governo histó-

rias, versões e anedotas que envolvem a abastada família terna, mas todas convergem em um ponto: foram

tormentosas

mae

acabaram colocando os membros da família uns contra os outros na briga pelos direitos hereditários.

28

A mãe de Roberto, bastante citada

pelos

críticos

do escritor, não viveu ajustada aos padrões sociais e

morais

da época, fato pelo qual foi considerada quase uma

prostitu-

ta, e apenas tolerada pela alcunha e

dilapidou

fortuna –que

rapidamente. Acabou seus dias, após um confuso

e

conturbado

processo judicial, declarada louca e reclusa na fazenda de um de seus genros.8

Vinculou-se Roberto ao ambiente inteletual do

900

montevideano, principalmente ao filósofo Carlos Vaz Ferreira, seu amigo de estudo, com quem partilhou o gosto pela

litera-

tura e a quem dedicou muitas de suas obras. Participava das tertúlias literárias e tinha estabelecido a sua no Café Moka, onde ditava a

seus

secretários

os opúsculos que publicava em jornais anarquistas, e no nal El Día, de outro amigo, Batlle y

Ordóñez, que

jor-

chegou

a

ser eleito presidente do Uruguai.9

Quando recebeu a herança paterna viajou e

estabe-

leceu-se na Europa, de onde enviava crônicas que eram

publi-

cadas em El Día. De volta, apresentou-se à sociedade

defini-

tivamente mudado: tinha assumido o dandismo, defendia o

amor

29

livre, professava o anarquismo

e

começava

a

escandalizar,

provocando as mais variadas reações no meio social. Era admirado euforicamente ou odiado com veemência.

Das pessoas do círculo literário que o Julio Herrera y Reissig foi seu amigo e parceiro

admiraram, em

algumas

Produções. Pode dizer-se que foi seu discípulo no que se

re-

fere ao anarquismo, ao dandismo, ao erotismo, e também ao Modernismo. A amizade acabou anos depois por causa de

uma

po-

lêmica criada sobre uma metáfora, cuja autoria ambos escritotores disputavam.

Em 1901, casou-se

com

Berta

Bandinelli, contra-

riando sua pregação anarquista e do amor livre, mas se justificou em uma carta dirigida a Julio Herrera y Reissig

e

pu-

blicada no jornal anarquista Trabajo, alegando que o fazia para que sua noiva não fosse internada numa instituição para menores e para que não perdesse o direito a uma herança.

Aos poucos foi dilapidando

sua

fortuna, chegando

a passar necessidade. Então, lançou mão de um

pedido

a

seu

amigo, então Presidente, Batlle y Ordóñez, para que o nomeasse cônsul do Uruguai em Paris.10 Possivelmente, com temor

de

que Roberto, com seus escândalos, provocasse um incidente di-

30

plomático, o pedido não

foi

atendido. Contudo, foi

nomeado

para o consulado no porto de Paranaguá, Brasil, o que se pode dizer, foi quase um exílio, um isolamento.

A partir de 1915, afastou-se da atividade lectual atacado pela neurose

que

avançou

inte-

progressivamente.

Internado numa clínica, na mais completa miséria e

esquecido

pela crítica, morreu em 1963. A produção literária de Roberto começa com Poesía(1891),escrita Lector

sob

o

pseudónimo

de

Jorge

Kostai.

Al

(1894) é um elaboradíssimo e original poema no qual a crítica no

poema é uma sátira da instituição literária

com

Uruguay.11 O

vislumbra os primeiros passos do Modernismo

todas

suas

convenções, uma repreensão e um ataque ao leitor burguês pela sua ingenuidade, um poema de

corrosiva.12 No

autoreferência

poema, Roberto manifesta que não tem nada a dizer e que o melhor a fazer é deixar de escrever. Diz que o leitor não tem a capacidade de entender que o poema é uma grande burla e

con-

sidera o leitor um idiota por perder seu tempo lendo-o. A parodia, conforme anota Cortazzo, acompanha suas

obras

poste-

riores. A novela Amigos (1894) está impregnada de dados autobiográficos -outra tônica que acompanhará suas obras. Na

no-

31

vela, nota-se a influência do amigo, o

filósofo

Carlos

Vaz

Ferreira. Sueño de Oriente (1899) é dedicado a uma mulher casada -seu objeto erótico- a quem chama de Lisette, e que provocou forte reação no meio culto e foi considerado como

algo

monstruoso; Amor Libre (1902) é objeto de análise na presente tese porque é a obra do escritor que anarquistas de forma concentrada

e

apresenta com

maior

suas

idéias

intensidade,

conforme apreciar-se-á; Parisianas(1904), um livro de crítica literária; Psalmo a Venus Cavalieri (1905), um desafio galante lançado à belíssima atriz Lina Cavalieri, texto de refinada edição, no qual Roberto alcança o ápice do erotismo voluptuosidade sutil, numa mistura de mitos, símbolos e

e

da tra-

dicionais figuras eróticas universais; En onda azul(1905), um poema em prosa dedicado a uma jovem de família, na época interpretado como abominável e escandaloso. O irmão da

foi moça

entendeu que o poema tinha maculado a honra da família e tentou matar Roberto atingindo-o no peito com dois disparos. Entre outras obras de Diadema (Balma-

militância

fúnebre(1906),

erótico-anarquista

Oración

ceda)(1907). No exílio, no porto La

pagana(1906), de

escreveu Don

Juan

Paranaguá, escreveu

visión del arcángel(1908), no qual a crítica começa a distinguir uma virada para a metafísica. La Venus Celeste(1909), El

32

cáliz(1909), Suspiro de una palmera(1914), são

suas

últimas

produções.

2.2- O cânon

zumfeldiano

Em todos os discursos críticos tradicionais o discurso literário de Roberto de las

sobre

Carreras, precedentes

a esta tese, há uma indissimulada preocupação pela dos aspectos biográficos e não literários. Quando

exaltação a

crítica

emprega o termo biografia, refere-se a anedotas, acontecimentos, escândalos, não enxerga a possibilidade da ficcionalidade do biográfico, de torná-lo discurso literário. Via de

re-

gra, entende o discurso de Roberto de las Carreras apenas como a representação de uma época ou de

uma

personalidade, ou

seja, com mero valor histórico e psicológico.

O discurso crítico tradicional sobre o valor biográfico ao valor literário. A obra é

Roberto opõe lida

objetivo de isolar os fatos biográficos e de levar à

com

são de que a vida do autor

-as

anedotas, os

conclu-

escândalos, os

lances donjuanescos- é mais interessante que as idéias quistas contidas nos panfletos que utilizava

o

para

anar-

atacar

a

ordem familiar e social de seu tempo. Os panfletos são considerados "documentos amorais" (cf.Zum Felde:1921) que não

de-

33

vem nem merecem ser analisados. O talentoso crítico e

pioneiro

uruguaio

Alberto

Zum Felde enuncia os primeiros juízos sobre o Roberto de

las

Carreras. Faz alguns elogios mas chega à conclusão de que Roberto é mais interessante como personagem que como Cria uma oposição entre personagem e literatura

ou

escritor. entre

a

vida a obra. Personagem e vida têm um valor positivo mas literatura e obra têm valor negativo:

“No es su obra literaria lo que le significa com tan singulares relieves ante la crítica, sino su vida. No tanto escribe, cuanto vive su obra.” (Grifo nosso) (1921,p.47)

Este será o parámetro fielmente seguido por alguns críticos posteriores. Mais tarde,o citado crítico volta a manifestar sua opinião sobre o "vate", quando diz que é mais interessante vida do escritor do que sua obra, que aparece assim

a

subordi-

nada ao aspecto biográfico:

“Más que como escritor, Roberto de las Carreras es interesante como personaje(…) Su literatura no fue sino un complemento de su vida; compuesta, en su mayor parte, de opúsculos ocasionales y de panfletos polémicos, tendía a propugnar por sus ideas revolucionarias o a defender sus actitudes inmoralistas; y en el fondo, tras el estilo refinado y metafórico, eran verdaderos alegatos.” (Grifo nosso)

34

(1987,p.321)

O crítico Ángel Rama, apoiando-se, como é óbvio, nas formulações do mestre Zum Felde, comenta que literatura e pessoa eram uma só:

“Dio consumación en tierra americana a sus principios de espectacularidad y agresión contra el medio, a su sistema de incorporarse a la sociedad mediante un negativismo crítico muchas veces superficial, a la subjetivación violenta mediante la cual la literatura se hacía una con la persona y era ésta aun más que aquélla la que se publicitaba y vendía en el mercado. Por esse camino había de practicar la máxima con la cual Oscar Wilde definiera la conducta del decadentismo inglés, poniendo su talento en la vida más que en los libros y haciendo de su própia vida una obra de arte refinada insólita, candorosamente cruel.” (Grifo nosso) (1967,p.8-9)

Emir Rodríguez

Monegal, de

sobre literatura latino-americana, em

conhecidos

trabalhos

convergência, adiciona

que a novidade do escritor uruguaio era sua vida:

“Pero la novedad de Roberto de las Carreras es más vital que literaria.” (Grifo nosso) (1969,p.13)

Arturo Sergio Visca, outro crítico os anteriormente citados, também faz seu

uruguaio, como

aporte, no

sentido

de que o significativo não é a qualidade da obra do escritor, mas sua personalidade:

35

“No por la calidad de su obra sino por la singularidad y lo significativo de su personalidad -paradigmática de lo vitalmente más hondo del novecientos- Roberto de las Carreras merecería que se le dedicara um libro.” (Grifo nosso) (1975,p.XVIII-XIX)

Em resumo, pode-se destacar que o cânon zumfeldiano apresenta as seguintes opiniões sobre a obra de Roberto de las Carreras: a)subordinação da obra à vida, tirando importância

àquela

e

ressaltando apenas os aspectos biográficos; b)apreciação de valores parciais

em

Roberto, considerando-o

precursor do Modernismo Hispano-americano no Uruguai e de boa técnica no uso do verso alexandrino; c)consideração histórica do valor das

propostas

anarquistas

do autor e a negação da vigência das mesmas.

Os aspectos literários, embora positivos, são considerados secundários pelo cânon zumfeldiano, uma vez que críticos utilizam uma estratégia repressiva. Roberto é

os

cata-

logado por eles, pejorativamente, como escritor menor. É procedente questionar quais foram os parâmetros

utilizados

por

eles para chegar a essa qualificação. Como sabem que o escritor é menor se alegam que seu discurso não merece ser estudado, pois a vida dele é mais importante do que a obra?

36

2.2.1- A estética dândi

É impossível compreender o comportamento, a postura de Roberto, sem compreender, primeiro, o fenômeno do dismo e sua essência: a vida como arte, estética pura

dane

vi-

tal. Luis Antonio de Villena, em sua teoria sobre o dandismo, afirma que o dândi vivia esteticamente, sua

vida

era

sua própria obra de arte:

“El Dandy es un ser volcado a la estética, que lleva a sus maneras, a las artes sutiles de su propia persona (...) Su vida es su obra de arte (...) arte que encubre o significa -en armoníauna actitud rebelde. Pero el Dandy es, además, egocéntrico, impasible e impertinente.” (Grifo nosso) (1983,p.19)

Ações próprias de um dândi: imprevisível, impertinente e fantasioso, são suas armas contra o mundo que sofrer. Os ataques amorosos não são por

amor, ele

Embora seja um sedutor natural, o faz de forma provocaçâo. Além de rebelde, o dândi é

o

não

faz ama.

gratuita, por

exibicionista, narci-

sista, individualista.

Como dândi, Roberto é um eterno rebelde

contra

sociedade e seus costumes, sua moral, suas convenções gras. Desta rebeldia, como diz Villena, nasce o

e

a re-

artista, ele

37

próprio como exemplo:

“Del dandysmo como rebeldía parte la idea del artista creador de una actitud, del artista como ejemplo (aunque este ejemplo pueda ser después la bohemia, el vagabundaje, o la droga.” (Grifo nosso) (Ibid,p.18)

O personagem dândi é o rei da cena social, ele representa aquilo que é, porque a vida é sua obra de arte, e o instrumento desta arte é a fantasia. Assim, Villena adiciona:

“El personaje dandy (y son más elementos que comtribuyen a hacer de él um mito) es el rey de una escena social, cultiva la fantasía y se siente insatisfecho y estéril. La escena social es su universo, el círculo de su disidencia, el lugar en el que debe resplandecer su esteticismo(...) Hemos dicho antes que el dandy hace arte con su vida, y el instrumento, el material de esse arte, de ese culto distinguido a la estética es la fantasía...” (Grifo nosso) (Ibid,p.22)

Também Hans Hinterhaüser elabora teoria te, no sentido de que a maior criatividade do dândi

semelhané

fazer

da sua própria pessoa uma obra de arte, um ato de fantasia:

“El logro sublime del gran dandy consiste en hacer de su persona una obra de arte, en convertirse él mismo en una realización de la belleza. Belleza como artificio, belleza como acto de la fantasía, del entendimiento y de la voluntad, como encarnación antinatural y gratuita del principio estético...” (Grifo nosso)

38

(1980,p.77)

Mais adiante, o crítico citado menciona fenômeno do dandismo apresenta

que

este

uma estreita vinculação entre

vida e literatura: “Aún quedaría mucho que decir para completar nuestro inventario de dandies. Tendríamos que hablar, entre otras cosas, de esse fenómeno sin precedentes que fue la estrecha unión entre vida y literatura em el Fin de siglo: los autores de las novelas a las que nos hemos referido ultimamente (Valle-Inclán, D'Annunzio, Wilde) llevaron ellos mismos una existencia de dandies, y junto a éstos, otros muchos como el joven Barrès, el joven Gide y el joven Proust, em cuyo ciclo de novelas pueda quizás verse también la negación del snobismo por parte de un auténtico dandy.” (Grifo nosso) (Ibid,p.87)

No discurso crítico tradicional uruguaio, no cânon zumfeldiano, há uma total incompreensão sobre a estética dândi, o contexto no qual se inscreve

de

las

Carreras. Carlos

Martínez Moreno, em El Aura del 900, além de catalogar o dandismo como ridículo atual, diz que o caso do escritor uruguaio era patológico:

“En la cuota del ridículo incluiríamos hoy los alardes de dandysmo en que incurrieron algunos escritores del 900, entre los cuales uno de los más valiosos; ridículo actual y ridículo en aquel tiempo (…) Hay grados del dandysmo, porque no todo en él es patológico como en el caso de Roberto de las Carreras.” (Grifo nosso) (1968,p.167-169)

39

E a controvérsia fica ainda mais

evidente

diz que o dândi é um provocador e que quer ele

quando

mesmo

ser

o

personagem de sua literatura, de sua aventura vital:

“El dandysmo es un desafío porque el dandy es un retador, un provocador: quiere convertirse él mismo en el personaje de su literatura, en el protagonista de su propia aventura vital.” (Grifo nosso) (Ibid,p.167)

Emir Rodríguez Monegal vê o engajamento do tor no movimento anarquista apenas como

um

au-

atrevimento, uma

falta de vergonha de dândi:

“...por sus lecturas y hasta por algunos desplantes personales, Roberto de las Carreras y Herrera y Reissig pudieron incorporarse a una corriente anarquista em la cual militaban ya Sánchez y Vasseur; de estos los aislaba la posición estética y el ostentoso dandysmo de las actitudes.” (Grifo nosso) (1950,p.46)

Ángel Rama, sobre o poeta dândi escreve que ator de si mesmo, um personagem que

representa

sua vida, e que essa representação -uma ção- acabará alienando o

um

teatralmente

falsidade, uma

homem, convertendo-o

é

num

fic-

fantoche

que vaga pelas ruas de Montevidéu:

“...el poeta debe transformar su vida em um espec-

40

táculo fabuloso, tenazmente original y disonante, para ofrecerlo agresivamente a sus contemporáneos; el poeta será el actor de sí mismo, compondrá cuidadosamente un personaje de teatro y representará en la vida haciendo que su obra literaria no sea sino la sucesión de arias que corresponden a un cómico de la realidad, las que él recita, cada vez más presionado por el personaje ante el público del gran teatro del mundo para quien se ofrece en una apoteosis muchas veces irrisoria (…) el alucinante mundo de una marioneta que deam-bula por el pedestre Montevideo. En esos diez años el hombre habrá sido enajenado por el personaje (...) No es la verdad estricta de los hechos la que nos importa, sino la manera como él los maneja para ir componiendo su personaje, dado que es éste el que prefirió ofrecer al mundo.” (Grifo nosso) (1967,p.9-10)

O curioso é que Ángel Rama

entende

ou

aceita

o

dandismo de Oscar Wilde e de outros poetas, mas não consegue aceitar o dandismo de Roberto, e menos ainda consegue vislumbrar o anarquismo individualista, como nesta passagem se refere ao panfleto lido por Roberto em 1902 na

quando

celebração

de Emílio Zola:

“Si Oscar Wilde pudo escribir El alma del hombre bajo el socialismo, no resulta tan rara esta explosión ácrata de un dandy de uma de las grandes familias uruguayas.” (Grifo nosso) (Ibid,p.36)

O crítico uruguaio diz que não é estranha a explosão do dândi, mas paradoxalmente não é o que sustenta em seus comentários, motivo pelo qual se pode afirmar que seus comentários são controvertidos e incoerentes. O

paradoxo

de

seu

41

discurso é que, por um lado, sustenta que Roberto é

o

dândi

perfeito, mas, por outro lado, não aprecia a fusão da literatura e da vida que é parte da estética dândi. Também não

va-

loriza a ficção vital, a qual considera artificial. Na tentativa de Roberto de "compor uma personagem" vê uma um “ator”, um "traje", uma

"máscara", uma

falsidade,

"dicção

uma “marionete", sem apreciar a ficção deliberada

cênica", irônica

uma

ficção,

que fundamenta esta conduta: toda a sociedade é

e

por isso o dândi deve inventar a melhor criação que puder: “...cuando publique En onda azul(1905)nada quedará del ser humano real que inició la aventura; en su lugar habrá um actor gesticulante, un traje de teatro, una máscara compuesta, una dicción escénica con un staccato insoportable...” (Grifo nosso) (Ibid,p.9-10)

O dândi descobre a ficção das instituições sociais e com isso a possibilidade de reinventar o

mundo

social, ou

seja, viver os sonhos e criar-se a si mesmo. Assim o expressa Cortazzo, em um artículo do 12 de setembro de 1997, no jornal El País Cultural:

“Los dandies, como Roberto, mucho antes que los sociólogos del conocimiento, descubrieron que la sociedad era una creación artificial y por lo tanto decidieron inventarse su propia realidad, antes de vivir la mediocre realidad prefabricada que se les ofrecía.” (Grifo nosso) (1997,p.2)

Pode criar vida, por exemplo, como em Amor

Libre,

42

reinventar outra mulher, que tenha alma, que

vibre, que

não

seja uma montevideana "inerte":

“Cambiemos su sangre, ¡hagamos otra mujer!” (Grifo nosso) (1967,p.77)

cambiemos

Pode aplicar a originalidade da arte à

su

fisiología:

vida, por-

que a arte original é igual ao amor original, segundo

o

se-

guinte trecho:

“-Tienes razón, Roberto. Para quererse se necesita fantasía...La vida en común apesta! Lo que se tiene siempre al lado es forzosamente trivial. ¡Cómo no hemos de cansarnos del Amor, cuando según tú me has explicado, lo mismo ocurre con el sentimiento del Arte! La originalidad, me has dicho, no es otra cosa que un exitante de nuestra sensibilidad, un despertamiento producido por lo nuevo...En Amor se necesita originalidad, como en Arte...” (Grifo nosso) (Ibid,p.114-115)

O dândi tem a deliberada intenção

de

transformar

a vida, a personalidade, em obra de arte, ou seja, uma ficção criativa. Por exemplo, em Poema Sentimental, embora não

seja

analisado no presente trabalho, encontra-se um exemplo procedente, quando o escritor rotula-se "homem fantasia":

“Pero yo no me fijo en tales cosas. Yo me paso soñando noche y día.

43

Vivo en altas regiones Y soy, lector, um hombre (Grifo nosso) (1944,p.81)

luminosas, fantasía.”

2.2.2- O psicologismo do elemento político

Alguns críticos apontam como origem da rebeldia de Roberto de las Carreras o fato de ser filho bastardo. A

par-

tir dessa posição crítica, que consideram definitiva e acabada, estudam este aspecto desde o ponto de vista social e psipsicológico, justificando toda a explosão critor como produto da aceitar e

necessidade

de

literária

do

es-

justificar, assumir,

ser aceito pela sociedade. Ser bastardo é a situa-

ção que, como diz Rama, fundamenta (1967,p.36), seus

"exotismos

seus escândalos amorosos. Sua

suas

"loucuras

sexuais"

transatlânticos" (Ibid,p.21) e revolta

contra

a

sociedade,

afirmam seus críticos, é o fato de ser filho bastardo. O registro é feito por Rodríguez Monegal que considera com traços existencialistas, numa

época

o

pré-freu-

diana e vai levando a explicação dos fundamentos de sua

obra

para o aspecto psicológico e sociológico:

“Antes que Jean Genet, antes que Sartre,Roberto de las Carreras descubre que su única salida es asumir la imagen que los otros le han impuesto: lo han hecho bastardo, y empezará por proclamarlo, transformándose de víctima en victimario. De aquí nace su poesía, de aquí su desafío, de aquí sus desplantes y escándalo.”

44

(Grifo nosso) (1969,p.16)

Do mesmo crítico, citado anteriormente, a

convic-

ção de que o motivo do escrever era o ressentimento contra

a

sociedade por ser filho bastardo:

“Tal vez no supo entonces ni haya llegado a saber nunca que su título para la gloria literaria no fue la publicación de esos numerosos folletos en prosa y verso, en que ventiló su horrible resentimiento de bastardo...” (Grifo nosso) (Ibid,p.34)

A

tese que sustenta o crítico uruguaio sobre

Amor Libre, de fundamentos sociológicos e

psicoanalíticos, apenas

repete que Roberto de las Carreras deve sua criação literária a sua rebeldia existencialista, por querer assumir a sua condição de bastardo perante a sociedade a qual tudo, afirma ainda mais a tese de

outros

pertencia. Con-

críticos

que

diz

querer superar: “Se ha querido explicar la leyenda(desmitificarla) por un análisis de la sociedad que produjo estas dos flores exóticas(...)se ha intentado explicar por la presión del medio las estampas de estos poetas malditos. Pero la explicación que sólo busque por este lado estará fatalmente condenada a la superficialidad.” (Grifo nosso) (Ibid,p.9)

Mais adiante, como para reafirmar sua própria con-

45

tradição, coloca o seguinte:

“Reducir a sus elementos sociológicos el caso de Roberto de las Carreras o el de Delmira Agustini, como han pretendido algunos críticos, es olvidarse que en el mismo ambiente y en la misma época María Eugenia Vaz Ferreira paseaba su bohemia magnífica, escribía versos apasionados con destinatarios muy conocidos...” (Grifo nosso) (Ibid,p.66)

A estratégia utilizada por Rodríguez Monegal denominar-se de redução psicológica. Toda a obra

de

pode

Roberto

explica-se pelo traumatismo psíquico provocado pela bastardia e, com isso, evita-se fazer uma análise da projeção ideológica, estética ou política da obra. Vê-se o problema co, mas não a solução estética que encontra

biográfi-

Roberto, articu-

lando uma literatura de liberação sexual, o que é demonstrado neste trabalho quando se analisa Amor Libre.

Não se duvida que o fato de ser bastardo

influen-

ciou sua produção literária de ataque contra o que ele considerava uma sociedade agropecuária com alarde europeu, impregnada de costumes genealógicos. Não obstante, são poucas as vezes em que o escritor menciona isto nas suas

obras

um motivo muito especial: forçar a que lhe dessem

sua

e

com parte

na herança do pai, como pode se observar em Al Lector, e tectado por Rodríguez Monegal:

de-

46

“Si bien el poema continúa subrayando su lamentable condición de bastardo, su redacción y hasta publicación en un diario importante obedecen a la necesidad de presionar a su familia para que le reconozca su parte en la herencia paterna. La actitud es doblemente bufonesca, ya que se presenta como destituído pero lo hace com terrible insolencia; pide alimentos y ropa, y al mismo tiempo se burla de las convenciones burguesas...” (Grifo nosso) (1969,p.15)

Registro mais ou menos semelhante é feito por gel Rama, que justifica a razão de ser de Roberto

pelo

Án-

plexo edípico. Esta seria a explicação do constante

jogo

comde

sedução que praticava o escritor com todo tipo de mulheres, e não somente as casadas:

“...decide asumir por entero la historia de su madre y ser un "bastardo" no en forma solapada sino pública.” (Grifo nosso) (1967,p.12)

A crítica de Ángel Rama é outro tipo

de

psicolo-

gismo. Conseqüentemente, há novamente uma estratégia de redução dos valores literários, já que entende que Roberto escreve sem seriedade e tem um grande apetite pelo escândalo. A sinceridade, a autenticidade, o fundamental é o "apetite pelo escândalo” como diz Rama (1967,p.24) que está disfarçado uma ideologia anarquista, que além

disso, considera

por

“confu-

47

sa”.

Os críticos zumfeldianos não negativa perante a teoria do

amor

explicam

livre, nem

a

atitude

demonstram

a

confusão de Roberto nem avaliam a consistência ou a coerência das idéias do escritor. Este trabalho demonstra que não existe confusão sobre a teoria do amor livre e que as

idéias

escritor, embora não aceitas e combatidas na época, são

do coe-

rentes. Os críticos não querem discutir o erotismo na obra de Roberto alegando que não vale a pena e que suas teorias anarquistas

são confusas. Trata-se de estratégias repressivas.

A estratégia de Rama é semelhante à

de

Monegal: desconsidera o valor do anarquismo erótico que Roberto utiliza uma teoria confusa para dar

Rodríguez alegando

seriedade

a

algo que não é sério:

“... haciéndose el porta-estandarte del “amor libre" según una confusa teoría de los libertarios del siglo XIX que este dandy del 900 utilizó para conferir seriedad a su apetencia de escándalo.” (Grifo nosso) (1967,p.24)

Assim, pode-se afirmar que as conclusões dos

crí-

ticos zumfeldianos não são procedente porque: a)em nenhum momento demonstram que o anarquismo de Roberto

é

48

uma antigüidade porque sequer fazem referência às fontes inspiradoras de sua conduta anarquista, eles

mesmos

dizem

que

não vale a pena aprofundar o estudo sobre o escritor; b)também não demonstram porque a teoria do amor livre é fusa, nenhum deles faz uma análise desta teoria. Como

conjusti-

ficar essa opinião, em que se fundamenta?

A crítica de Angel Rama não apresenta provas documentais nem discute as idéias de Roberto para escritor não conhecia

bem

os

autores

provar

anarquistas

que e

o

suas

idéias. Assim, assumindo esta frágil posição pode-se concluir que Rama nega a originalidade do anarquismo de Roberto.13

Quanto à antigüidade das teorias anarquistas é argumento que não convence. Nenhum autor

pode

ser

pela atualidade de suas fontes, mas pelo uso que

avaliado

faz

delas.

Também não interessa a proximidade do autor à fonte. Não teressa o conhecimento direto ou indireto, mas

um

a

in-

ou seja, o horizonte de recriação. Roberto se sente

releitura, discípu-

lo, missioneiro de Kropotkin:

“-¿Me tomas por un burgués? Yo soy el misionero del Amor Libre...el discípulo de Kropokin [sic]...” (Grifo nosso) (1967,p.98)

49

Além disso, Piotr Kropotkin não tem um

século

de

antigüidade, senão que é contemporâneo de Roberto, publicando suas obras desde 1885.

Pode-se dizer que Roberto, com sua teoria do livre, não é kropotkiniano, pois ele quer a se pudesse teria todas contra a instituição do

as

mulheres

do

matrimônio –a

aventura

amor total:

mundo. Kropotkin considera

um

é

acordo

comercial burguês-, a união que propõe é livre, isso não significa que não haja fidelidade

na

relação. Isto

levantaria

uma discussão muito profunda sobre quais são as fontes de Roberto, que ainda é um tema obscuro pela total falta de crítica adequada sobre seus livros.

Carlos Real De Azúa, quando estuda o vínculo entre anarquismo e literatura no 900 montevideano, formula uma

sé-

rie de observações que se acredita possam ser úteis para

de-

monstrar em que grau relaciona anarquismo e literatura.

Segundo ele, todos os determinado instante, olharam não, às idéias anarquistas:

com

escritores simpatia

modernistas, em e

aderiram, ou

50

“Cual más, cual menos, casi todos los modernistas miraron en algún momento de su formación con simpatía tibia o firme las corrientes de protesta y reivindicación social, de inspiración socialista-marxista anarquista que iban tomando cuerpo en las ciudades latinoamericanas.” (Grifo nosso) (1986,p.XIV)

Mais adiante, tenta dissociar e mostrar o discurso como sendo aparente e superficial. O crítico

observa

que

anarquismo não era de índole kropotkiniana e reduz esta

o

pos-

tura a um individualismo exibicionista:

“Del famoso anarquismo de algunos modernistas ya se ha señalado más de uma vez que -muy lejos de la linea kropotkiniana- fue en substancia un soberbio yoismo exhibicionista...” (Grifo nosso) (Ibid,p.XXVI)

O artigo de Real De Azúa demonstra

uma

tendência

na crítica tradicional uruguaia: o vínculo entre anarquismo e literatura modernista é apenas uma

demostração

Igual que Rama, opina que exibicionismo causa psicológica e ignora a

corrente

e

de

egoísmo.

egolatria

são

a

e suas implicações ideológicas. Pode

anarco-individualista deduzir-se

que

aquele

crítico também condena esta ideologia. As opiniões de Real De Azúa merecem reções:

algumas

cor-

51

a)o egoísmo ou "yoismo", como

é

denominado, é

uma

atitude

claramente política, de repúdio ao tecnicismo e à

massifica-

ção, de afirmação do indivíduo, e não um problema

psicológi-

co; b)adota uma atitude negativa perante o discurso anarquista modernista uruguaio, pois se considera o anarquismo apenas exibicionismo, a atitude política dos

modernistas

uma bricadeira. A História prova o contrário, os

é

apenas

modernistas

foram fortes militantes políticos.

O psicologismo, na explicação do anarquismo

indi-

vidualista, é uma estratégia elaborada pelo críticos da

cha-

mada “Geração do 45”, pois eles não aceitam as idéias sexuais e políticas revolucionárias defendidas por Roberto. Para

Ro-

dríguez Monegal, o escritor é um bastardo ressentido; segundo Rama, tem apetite de escândalo; Real de Azúa

diz

que

é

um

anarquismo

os

egoísta.14

Esse enquadramento psicológico leva a ver a articulação entre anarquismo e

do

literatura

como

pouco consistente -ou um mascaramento ou um egoísmo. Os

três

não percebem: a)o conflito histórico que se estabeleceu entre as

correntes

anarquistas, delineando uma dicotomia: individualismo

versus

52

coletivismo; b)que o vínculo entre literatura e anarquismo não é

uma

es-

tratégia superficial de Roberto, mas que é própria da articulação do Modernismo com o anarco-individualismo latino-americano, como sustentava o poeta Ruben Darío. Este vínculo bém se aprecia em amplas zonas da

literatura

tam-

européia, como

sustenta Rezler.15 Roberto de las Carreras não foi somente um ressentido social, senão que partindo de

seu

ressentimento

truiu uma utopia, idealizou um mundo no qual esse

cons-

sentimento

não tem lugar.

2.2.2.1- O anarquismo e o Modernismo: um relacionamento tenso

Parece ter surgido

uma

interpretação

das divergências entre a vanguarda artística

e

equivocada a

política do anarquismo, haja vista a exaltação do lismo pela

vanguarda individua-

primeira. Oscar Wilde, cujo dandismo é valorizado

por Ángel Rama, que ilogicamente não valoriza Roberto, considerava a arte a manifestação

suprema

do

individualismo. Na

sua obra A Alma do Homem Sob o Socialismo (The Man

Soul

of

under Socialism), aprecia-se a incompatibilidade entre o

in-

dividualismo anarquista do artista e o coletivismo anarquista militante.16

53

De fato, anarquismo individualista é uma das rentes do anarquismo, que parece ser confundido com

cor-

anarcos-

sindicalismo, ou anarquismo coletivista ou até comunista. Horowitz, considera que a corrente individualista do anarquismo teve grande desenvolvimento exatamente na América.17

A

arte

livre, anarquista, individualista, é

arma contra a tirania. Reszler, diz que nasce

do

uma

sentimento

de responsabilidade social do artista no fim de século XIX da convicção de um ideal que

concede

a

máxima

e

importância

aos direitos do indivíduo. Segundo este autor, há

pontos

de

contato entre o esteticismo e anarquismo individualista

e

coletivista: ambos se opõem à sociedade materialista, à

mas-

sificação tipo ianque, ao comércio da cultura, à ção do pensamento, ao submetimento da arte a

o

uniformiza-

uma

autoridade

que não seja a própria; nem se conformam, nem se submetem.

A relação entre Modernismo

e

Anarquia

pois enquanto muitos escritores modernistas se

é

sentem

tensa, anar-

quistas ou definem a arte modernista como ácrata -o não reconhecimento de modelos, obrigação de encontrar o próprio estilo, a arte livre-, os anarquistas operários, sindicalistas ou coletivistas defenderam uma literatura militante ideológica e

54

não aceitaram o sensualismo formal do Modernismo e a estética elitista.18 Lily Litvak supõe um entendimento provisório e depois uma crise em 1905-1910, conforme comenta: “Posiblemente la crisis de esta colaboración intelectual llega durante los años 1905-1910, cuando se da materialmente por disuelto el anarquismo literario. Hasta estas fechas, sin embargo, la estrecha unión del proyecto regeneracionalista educativo, del proyecto estético modernista y del proyecto sociológico resulta evidente. Aun cuando los intelectuales y el anarquismo se separan luego en direcciones contrarias, su punto de encuentro en esos años pudo haber estado basado en una visión crítica del presente.” (Grifo nosso) (1981,p.270)

Obviamente o anarquismo

modernista

fundamenta-se

na defesa do indivíduo e suas bases filosóficas são Stirner e Nieztsche. Isto provocaria um conflito com o anarquismo comunista e o anarcossindicalismo cujos fundamentos são coletivos e solidários. Não há documentos que provem tem sido estudada no Uruguai ou no

esta

tensão

continente. Portanto, po-

de-se dizer que Roberto filia-se

a

uma

quismo aristocrático, enquanto outros como por exemplo Angel

que

Falco, evoluem

corrente

escritores para

uma

de

anar-

uruguaios, literatura

modernista de anarquismo operário.

No âmbito da literatura, os escritores podiam

se-

guir a corrente modernista, mas na política eram anarquistas.

55

Segundo Reszler(1973), muitos poetas e escritores simbolistas e parnasianistas franceses estavam à jornais anárquicos e até advogavam

cabeça pelos

de

revistas

camaradas

e

presos,

cumprindo o que pregava Kropotkin:a participação ativa do artista e do inteletual como camarada de luta, não

como

elite

dirigente.

2.3- Crítica ao cânon

Questiona-se por que até hoje ninguém criticou literariamente as vigências éticas, estéticas e sociais que assumiu com autenticidade o referido escritor. Os

críticos

aspecto biográfico

do

desarticulam, isolam, dicotomizam literário. Resulta

o

paradoxal, porque

lêem o elemento biográfico como se fosse um discurso

literá-

rio autônomo do discurso estético e vêem no autor um personagem narrativo, ou seja, estetizam a vida para desestetizar

a

obra. O procedimento crítico é inverso àquilo

o

que

propõe

autor: fundir o aspecto biográfico e o estético de forma

tal

que o vital seja obra de arte e a arte uma forma de vida. Algo que pode-se chamar de estética dandista. Os críticos dicionais, a propósito, não fazem esta fusão de vida e pelo contrário acentuam a separação dos elementos.

traobra,

56

A importância que a crítica tradicional outorga

a

Roberto de las Carreras é considerá-lo: a)introdutor do Modernismo no Uruguai. Ángel

Rama, refere-se

à obra Al Lector,onde encontra traços estéticos do

Modernis-

mo:

“En Al Lector en cambio domina el escepticismo, el subjetivismo frenético y la inestabilidad, dentro de las coordenadas de una estética que todavía Montevideo no sabe que se llama "modernista".” (Grifo nosso) (1967,p.19)

b)representativo de sua época. Arturo Sergio Visca, até

acha

interessante um livro sobre Roberto, mas que evidencie a

sua

representatividade histórica: “Un libro que sin dejar de atender a lo anecdótico y lo pintoresco, no descuidara lo realmente importante del personaje: su representatividad histórica, ya que asumió con autenticidad innegable las vigencias éticas, estéticas, sociales de ciertos grupos de la intelectualidad uruguaya de comienzos de este siglo, sincrónicas, por lo demás, con las producidas por la sensibilidad fin de siglo en todo el ámbito de la cultura occidental.” (Grifo nosso) (1975,p.XVIII-XIX)

O já citado Visca, considerando a obra do escritor uruguaio como testemunho da época, no aspecto social, literário e intelectual, anota:

57

“Todos los textos de Roberto de las Carreras importan, desde luego, más que por sus valores intrínsecos por su carácter testimonial en triple sentido: muestran aspectos interesantes de la sociedad montevideana de principios del siglo XX, dibujan ciertos perfiles de la literatura y del clima intelectual del mismo período y aportan datos de la vida de uno de sus representantes más significativos, ya que no por su obra sí por su vida. Es en función de este valor testimonial que deben ser leídos. Sólo así tendrá sentido su lectura.” (Grifo nosso) (Ibid,p.XXII)

c)influidor de Julio Herrera y Reissig

no

anarquismo

e

no

erotismo. Rodríguez Monegal considera que essa é a maior glória literária de Roberto:

“Pero la mayor gloria literaria de Roberto de las Carreras no radica en lo que há creado, sino en lo que supo despertar en otro.” (Grifo nosso) (1969,p.26)

d)medíocre na sua produção literária. Todos os críticos

tra-

dicionais coincidem em que o escritor uruguaio consegue

ape-

nas alguns momentos de realização, segundo eles não há continuidade de acertos que sustentem a

obra. Zum

Felde

faz

os

primeiros comentários:

“Lo que ha escrito -aun cuando tenga páginas de apreciable mérito literario- es sólo un reflejo de su acción...” (Grifo nosso) (1821,p.47)

58

Rodríguez Monegal diz o seguinte:

“Una mirada crítica salvará tal vez muy poco de la copiosa y caótica producción en prosa y verso que lleva la firma de Roberto de las Carreras. Es la suya uma curiosidad de la literatura uruguaya. Aunque tiene algunos méritos. (...)Pero como prosista (...)registra aciertos.” (Grifo nosso) (1969,p.26)

Roberto é considerado um grande versificador, correto tecnicamente, mas não um poeta. Rama escreve o

seguinte

sobre o brilhante domínio da técnica do alexandrino:

“...el modernismo ha entrado al país proporcionándole las condiciones para fundar una lírica autónoma. La consignia fue la lucha contra el filiteismo burgués, su falsa moral, su falsa cultura, su falsa política (...) Manejando esgrimísticamente el verso alejandrino, Roberto de las Carreras (1873-1964) alternó el desdeñoso “spleen” con la provocación, y en una prosa poética de recargada pedrería proclamó el amor libre.” (Grifo nosso) (1968,p.XXXII)

Também Visca, refere-se à técnica do escritor: “Roberto de las Carreras se manifiesta como versificador diestro -y con rara maestría en el manejo del alejandrino-…” (Grifo nosso) (1975,p.XX)

A crítica tradicional evita ou torce as idéias sosobre política sexual contidas no discurso dos escritores mo-

59

dernistas uruguaios, quando característica da

subversão

se-

xual é praticamente uma norma, conforme coloca Cortazzo:

“Por mi lado, estoy llegando, cada vez com más firmeza, a la convicción de que la "norma modernista" en Uruguay,incluye precisamente la subversión sexual, como lo deja ver un relevo de este aspecto en ciertos textos de Reyles, otros de Quiroga, Sanchez y su tesis libertaria del amor, repudios a convenciones femeninas en Maria Eugenia, Herrera y Reissig, cuyo insólito El Pudor y La Cachondez acaba de ser publicado, pero -y, por sobre todos- el gran teórico de la “revolución sensual” Roberto de las Carreras, sin contar con escritores desatentidos y menores.” (Grifo nosso) (1996,p.7)

Há, por parte de Zum Felde, uma tendência siva na apreciação, na valoração da literatura sexual

repres-

nista. Esta estratégia

é

seguida, copiada

e

moder-

ampliada

oposições, conforme afirma Cortazzo, quando analisa a pretação antierótica de Delmira

Agustini

proposta

sem

interpor

Zum

Felde:

“Por otro lado, no deja de sorprender el hecho de que esta interpretación haya hecho escuela y gozado de tanto predicamento en el medio uruguayo. Las oposiciones muy escasas que se le han hecho, parten de um concepto tan pobre y elemental de la sexualidad, que poca mella han producido en la visión idealista. Esta deficiencia arranca seguramente de la concepción espiritualista y represiva de la cultura que se consolida en los años 20. Una crítica sexual pondría seguramente al descubierto la validez de esta hipótesis que, por lo pronto, la trayectoria de Zum Felde ilustra paradigmática. Pero antes, creo más urgente colaborar a desbloquear la interpretación represiva del modernismo uruguayo que nos ayudaría a comprobar la existen-

60

cia de una auténtica propuesta de revolución sexual entre muchos de los artistas de la época. Propuesta que nos ha sido ocultada sistematicamente por la crítica.” (Grifo nosso) (1996,p.67-68)

Barrán(1990) sustenta que houve um

disciplinamen-

to, uma série de proibições e culpas, de contenção sões, de vigilância das mulheres, das

crianças, dos

das

pul-

adoles-

centes e das classes populares em favor do trabalho e do

pu-

dor, que fixaram as bases do conservadorismo uruguaio no

900

e gerações posteriores. Os críticos da chamada Geração do respiraram a esta atmosfera de repressão, logo se e passaram a refletir nas suas críticas o

45

assujeitaramconservadorismo

imposto por seus antecessores. À luz da AD, os indivíduos recebem como evidente o sentido daquilo que ouvem, dizem, ou escrevem, ou seja, repetem como coisa sua noções são

inculcadas, ou como dizem Pêcheux e

que

lêem lhe

Fuchs (1975) “...de

al modo que cada um seja conduzido, sem se dar conta, e

tem-

do a impressão de estar exercendo sua livre

ocu-

vontade, a

par o seu lugar em uma ou outra das duas classes sociais

an-

tagonistas do modo de produção (ou naquelas categoria, camada ou fração de classe ligada a uma delas).”19

2.4- Reações à crítica

61

Nem todos os críticos uruguaios compartem do ponto de vista legado por Zum Felde. Críticas recentes propõem resgatar o discurso de Roberto de las Carreras e revisar

o

seu

conteúdo político-sexual revolucionário, a subversão do gênero literário, a formação discursiva e ideológica a que se filia.

Ricardo Goldaracena, em evidente alusão aos críticos Zumfeldianos, chama-os "los

guardianes

de

(1979 p.15). Ele comenta que os críticos seguiram

la

leyenda” os

juízos

deixados por Zum Felde:

“La leyenda es muy hermosa, y las cosas hermosas no deben ser destruídas. La dejó fijada hace ya unos cuantos años em páginas magistrales, don Alberto Zum Felde, y desde entonces hasta el día de hoy há ido rodando de autor en autor, de comentario en comentario, de prólogo en prólogo, acrecentada día a día con una anécdota más con una historia más.” (Grifo nosso) (1979,p.17)

Goldaracena também divide a opinião de que trodução da corrente literária denominada

a

in-

Modernismo, no am-

biente literário uruguaio, deve-se a Roberto:

“...el descubrimiento del modernismo -del cual de las Carreras es aquí el pionero- esa sensibilidad estética finisecular, tan a la francesa, que vino a conjugar los hallazgos del perfeccionismo parnasiano de raíz baudeleriana con los deslumbramientos de la corriente simbolista influida por Ver-

62

laine y Mallarmé.” (Grifo nosso) (Ibid,p.28)

Mais adiante, o mesmo crítico adiciona:

“Y efectivamente, a Roberto de las Carreras le cabe la gloria de haber sido el introductor de esta corriente en el Uruguay.” (Grifo nosso) (Ibid,p.30)

Porém, o citado crítico uruguaio apenas reivindica o aspecto poético de Roberto, o que já é

meritório, mas

resgata e não aprofunda o aspecto ideológico. Somente



condições de produção do discurso de Amor Libre como uma nifestação das idéias da época no contexto da discussão aprovação da lei do divórcio

pelo

Parlamento

não as mapela

uruguaio, mas

não analisa o amor livre e o anarquismo e se teriam atualidade suas idéias. Reduz, então, o valor do discurso

robertiano

a um momento histórico.

Recentemente, Uruguay Cortazzo, em duas

conferên-

cias (1994 e 1995) responde a esse questionamento

e

levanta

uma série de observações sobre o aspecto político

e

erótico

da obra de Roberto, com uma proposta de vincular

o

ao movimento neomasculinista.20 2.4.1- A necessidade de rever o discurso robertiano

escritor

63

Um juízo que realmente chama a atenção é o

formu-

lado por Rodríguez Monegal, que em várias

oportunidades

ver algo mais na obra de Roberto

Carreras. Contudo,

de

chega-se ao fim da obra sem se ter a

las

resposta

do

que

diz

seja

esse algo mais:

“Había en los casos de Roberto y Delmira mucho más que una rebeldia contra las valoraciones sexuales y poéticas del medio burgués.” (Grifo nosso) (1969,p.9)

Da mesma forma, mais adiante diz: “Es algo más que un documento aunque sea sobretodo documental.” (Grifo nosso) (Ibid,p.26)

Esse "algo mais" são as

implicações

político-se-

xuais e a postura estética contidas na obra do escritor

uru-

guaio.

Acredita-se que a obra de Roberto de las

Carreras

não é superada, nem simplesmente representativa de uma

época

passada, pelo contrário, é uma obra inovadora, original e que propõe ao homem e à sociedade novos

rumos

de

através de uma sexualidade politizada. Propõe

comportamento uma

igualdade

64

de relacionamento entre homem e mulher, sem necessidade humilhação nem de superioridade, seja ela qual for. Como visionário, um profeta, adianta-se à sua época e

renuncia

de um

sua condição de "macho", ao poder do falo, para abrir um minho, uma corrente atualíssima, que hoje, no fim

do

à ca-

século

XX, denomina-se "nova masculinidade".

Cortazzo, durante uma tenta que Roberto de las Carreras

conferência, em não é apenas um

1994, susrepresen-

tante de tendências mortas do chamado 900 montevideano, senão o criador de uma estética de idéias libertárias e que questiona a

identidade

masculina. Na

feministas

oportunidade, ele

diz:

“En efecto, de las Carreras no es um simple tipo representativo de tendencias cultura- les ya muertas, ni un divertido y extravagante personaje que decora el novecientos montevideano. Es el creador de un esteticismo beligerante que lo llevó, al asumir ideologías libertarias y feministas a cuestionar la propia identidad masculina.(...)El enfoque sexo-político de nuestro modernismo, no comfirmaría la presunción feminista (que he venido escuchando en algunas conversaciones sostenidas con distintas investigadoras) de que el modernismo es un movimiento machista. Habría que háblar con más propiedad de campos machistas, áreas feministas e incluso -y esto me resulta lo más novedoso -de territorios neo-masculinistas, como lo evidencia la obra de Roberto de las Carreras.” (Grifo nosso)

65

66

67

3. Amor Libre 3.1- As condições de produção da obra

Amor Libre, publicado em

1902, narra

insólito do autor que aceita o adultério da sua

o

processo

mulher, Ber-

ta, com o objetivo final de se transformar em amante. Imbuído das idéias anarquistas, apresenta um novo protótipo de

homem

e propõe uma forma diferente de relacionamento cuja

condição

essencial é a liberação da

surgiria

mulher. Como

resultado

uma nova sociedade, mais humana, sincera e livre.

O escritor reconhece que para

se

livre das opressões, da relação de poder

e

tornar

amante,

propriedade

que

sustentam o marido, deve "matar" o macho interior:

“Nosotros, los feministas, debemos monstruo interior, al Mâle Originel!” (Grifo nosso) (1967,P.74)

A obra é uma auto-entrevista em Carreras, personagem, é pedante anarquista, um

que

apresentado, por elegante

apuñalar

Roberto

de

momentos, como

aristocrata, um

dândi

al

las um que

68

discursa espalhafatosamente sobre anarquia

e

um

jornalista

anarquista, ingênuo, admirador do escritor. A obra está composta por três

entrevistas, que

escritor pomposamente denominou: Interviews

o

Voluptuosos. Ne-

les, o aristocrata anarquista, profeta do amor livre, narra o choque que provocou na sociedade montevideana o fato de ter encontrado sua esposa, Berta Bandinelli, em flagrante com outro homem e a posterior reconciliação.

No Primer Interview, Roberto parabeniza Berta

por

ter aprendido e praticado seus ensinamentos anarquistas e não ter reprimido seus impulsos sexuais.

No Segundo Interview, o escritor faz uma sobre a liberação da mulher, as teorias anarquistas

palestra sobre

a

sociedade burguesa e as relações matrimoniais.

No Tercer Interview, Roberto narra a reconciliação com Berta; sua guerra interior para renunciar ao tropóide", assumir o novo homem, o amante, e

"macho

an-

então, liberado

dos preconceitos, viver sua aventura anarquista.

Interessante é o fato que os Interviews foram

pu-

blicados como panfletos, num periódico, e o primeiro foi dis-

69

tribuído no dia 25 de

agosto -independência

do

Uruguai- no

Teatro Solís -ponto de encontro da alta sociedade montevideana. Foi uma estratégia política refinada: um ato de terrorismo literário, um texto de um exibicionismo sexual intolerável para a sociedade da época, divulgado o dia da

declaração

da

independência do país -como se fosse a declaração da independência do autor, do indivíduo, contra a sociedade burguesa, que relacionada ao exibicionismo sexual biográfico transgride as normas. A personagem do jornalista anarquista qualifica

o

fato de "sarcasmo premeditado"(1967,p.71)

3.2- A ruptura e os efeitos de sentido. A subversão do gênero

Rama diz que a obra de Roberto de las Carreras está penetrada de material autobiográfico e dados da vida

real

que o autor integrou à literatura:

“...está penetrada de materiales autobio-gráficos -apelando a datos y referencias de su vida corriente y trasladándolos casi sin retoque a la literatura.” (Grifo nosso) (1967,p.17)

Goldaracena diz que homem, obra e lenda são visíveis no escritor uruguaio:

indi-

70

“El homem, la obra y la leyenda serán siempre los tres aspectos indisociables de Roberto de las Carreras.” (Grifo nosso) (1979,p.73)

Não interessa se é autobiográfico pois não há cessidade da verdade ou realidade. Aliás, este

é

mérito de Roberto de las Carreras, a paródia e a

um

textos provocam uma crise com a verdade e

grande

ironia

com

a

ne-

dos

realidade,

tal como a sociedade entende esses conceitos. Chamam a atenção as diversas análises que

os

Interviews sofrem. Rama os considera hilariantes, uma

vez

que

não há possibilidade de interpretar fielmente os acontecimentos. O autor modificou-os, ou melhor, ficcionou-os

completa-

mente:

“...nadie sabrá nunca lo que realmente ocurrió ni importa, dado que Roberto de las Carreras sustitituyó toda posible interpretación fiel de los sucesos con un hilarante relato que hizo aceptar a la ciudad.” (Grifo nosso) (1967,p.33)

Goldaracena considera

os

devido ao fato de não serem nenhuma

Interviews brincadeira

agressivos,

tor, apesar de utilizar a ironia. Esclareça-se que

do

escria

ironia

fere mais que a verdade dita em tom de brincadeira. Tanto não

71

é brincadeira, que coloca em xeque a instituição

matrimonial

e participa de um dos grandes debates sociais da época: o divórcio, que acabou sendo aprovado pelos legisladores:

“Yo no diría "hilarante"; diría en todo caso “agresivo", "chocante", porque esto no iba en broma, iba muy en serio, no obstante la sin par ironía de la presentación y estaba destinado a terciar en una polémica nacional, contexto histórico ineludible para quien analice los hechos acaecidos en el Uruguay en 1902.” (Grifo nosso) (1990,p.42)

Pode afirmar-se que por ser hilariante

não

deixa

de ser agressivo. Neste ponto os dois têm razão. A ironia aparece como elemento, não de brincadeira, mas de política. O autor, de forma irônica, expõe seus defeitos com um toque

de

de exibicionismo.21

Amor Libre é apresentado como uma entrevista nalística. Mas é

uma

pseudo-entrevista, ou

uma

jor-

entrevista

fictícia, porque o escritor cria o personagem jornalista. Este fato produz um efeito paródico

do

gênero, porque

falsa entrevista relativa, no entanto, a

um

isso, questiona um dos fundamentos do gênero

fato

um fato público ou de

um

acontecimento

uma

real. Por

jornalístico: a

autenticidade, o caráter testemunhal próprio da tro efeito paródico é produzido pela própria

é

crônica. Ou-

notícia. Não

notório, não

é

é um

72

acontecimento político, nem policial, nem portivo. É apenas um

acontecimento

cultural, nem

es-

estritamente

particular

que se veste de sensacionalismo, como se fosse um

importante

acontecimento de interesse nacional. Trata-se da luta

defla-

grada por um indivíduo contra a burguesia uruguaia.

Estas entrevistas desenvolvem-se em

tempos

rentes e acabam constituindo uma narração como se

dife-

fosse

uma

novela folhetim. O tema é o desespero de um anarquista, quando vê suas teorias transformarem-se em realidade e a luta para continuar fiel a seu ideal. É

a

assunção

pragmática

da

doutrina sexual anarquista. A história tem vários momentos: o engano, a

sepa-

ração, a crise ideológica, a aproximação, a reconciliação. Ao mesmo tempo, há uma transformação psíquica

dos

personagens,

os esposos que se transformam em amantes.

Na última entrevista, o escritor narra o e a transformação de esposos em amantes. Nesta última

encontro parte,

há como uma dissolução da entrevista, cujo fecho não está dado pelo jornalista, mas pela voz de

Roberto, personagem

sustenta quase todo o discurso -como um monólogo teatral.

que

73

Dentro do gênero “entrevista”, constatam-se

algu-

mas rupturas. Apresentam-se no discurso robertiano

perfeita-

mente

narrativa

encaixadas: a)o

diálogo

jornalístico; b)a

epistolar; c)o relato monologado.

Das classificações feitas dos Interviews

–panfle-

to, folhetim, reportagem jornalística- nenhuma delas o conceito de autobiografia

como

gênero

envolve

literário. Pode-se

considerar que a entrevista deve ser classificada também como autobiografia, pois o escritor conta suas próprias

experiên-

cias e coloca-se como exemplo de suas pregações.

A autobiografia encontra-se em estreito relacionamento com as narrações, os diálogos, as cartas e com a crônica como no jornalismo moderno. E tem sucesso; acontece um processo de assimilação ou naturalização por parte do leitor. Os procedimentos

empregados -descrições, diálogos, retratos,

cartas, reportagem, crônica, narrações

alternadas-

aparecem

homogeneizados.

A apologia autobiográfica é misturada

pelo

autor

com outros gêneros para conseguir o efeito

defesa-ataque. Há

uma consciência plena e dirigida em tudo o

que

faz. Podemos

encontrar estes traços de forma consciente, intencional. Tra-

74

ta-se de um grito abafado pela mediocridade

do

ambiente, um

grito sofisticado, ultraculto. Resulta curioso

e

simo este mecanismo de defesa-ataque na

e, por

época

avançadísisso,

talvez, difícil de ser entendido pela crítica tradicional.

A autobiografia, desde o momento que passa uma obra literária, traz com ela certa infidelidade

a

ser

outros fatores deformadores. O problema da verdade

além na

de

auto-

biografia resume-se a que ela não é verídica justamente

por-

que é autobiografia. Quanto à sinceridade, apresenta o

mesmo

problema da verdade. Não há como saber até que ponto o

autor

chega a ser sincero, assim como não há como saber os que podem ter levado o escritor à devassa de

tais

motivos aconteci-

mentos íntimos, a menos que se analisasse o discurso

ideolo-

gicamente.

O cruzamento de biografia e literatura pertence à estética dândi do escritor uruguaio. Ele faz da vida uma ficção, reinventa-se como ser humano. Faz

da

biografia

uma

ficção e da literatura um documento vital.

A exibição nua e crua de sua condição de bastardo, como se um título nobilístico

fosse, o

até o risco físico, a condição de marido

escândalo traído

inclusive que

aceita

75

com total naturalidade e humor, colocando-se inversamente como amante é resultado de um hábil jogo de

subversões

–geno-

lógica e ideológica.

O dândi Roberto convida o leitor a que foram causa de

embaraço, aborrecimento

encontra Berta com o amante -para ele

o

rir e

de

fatos

raiva. Quando

verdadeiro

marido,

por que faz uma inversão de papéis na relação- reage como era de se

esperar: com violência. Comete o que chama de “atroci-

dade”: lhe dá uma bofetada e depois se arrepende:

“Al hallarlo in fraganti con mi Favorita, cedí a un arranque heredero de mis antepasados de las cavernas, y del qual me arrepiento: le di una bofetada.” (Grifo nosso) (1967,p.69)

Essa agressão é inóqua, uma

paródia. Debochar

uma situação aparentemente trágica dá um toque de humor tico, de ironia, não compreendido pela crítica, a

tal

de crí-

ponto

que o gesto é qualificado por Rama de "vaidade pueril” (1967,p.35). Com graça e argumentos desopilantes, o autor ironiza a violência dos maridos

burgueses

contra

a

mulher

adúltera.22

A ironia destrói toda afirmação

certa

e

tira

o

76

dogmatismo do panfleto. Há um distanciamento entre o narrador Roberto e o personagem, criando um perspectiva de

espaço

que

encerra

uma

burla -pedante, retórico, espalhafatoso-

que

impede que o discurso funcione como asseverativo e dogmático. A ironia funciona, quando esse efeito

ambíguo

de

seriedade

burlesca e de burla séria impede uma leitura ingênua e

auto-

ritária e obriga o leitor a uma atitude crítica. Até a

apre-

sentação do jornalista

entrevistador, admirador

do

Roberto

personagem, é parodística.

A genialidade dos Interviews Voluptuosos

está

na

perspectiva irônica que adota o narrador perante o anarquismo do personagem, deixando a veracidade biográfica e

ideológica

enquadrada num campo sutilmente humorístico. Cortazzo, durante uma conferencia, em 1994, comenta:

“Su anarquismo se manifiesta, así, en este efecto estético de recular humorísticamente cada vez que las actitudes y las ideas se vuelven demasiado graves y trascendentes y se corre el peligro de quedar aprisionados en una rigidez pétrea. La sonrisa irónica siempre está ahí para desarticular la pretensión abusiva de verdades que pueden pretenderse absolutas.” (Grifo nosso)

Há uma leitura libertária afastada da

ingenuidade

e da candura da literatura anarquista daquela época.

Não é procurado o efeito persuasivo

imediato, nem

77

O documental e informativo do

jornalismo, nem

a

veracidade

realista ou naturalista.

Roberto, como os modernistas, é crítico, humorista corrosivo. A ironia e a paródia utilizadas por ele convertemse nas suas armas contra a burguesia Vive marginalizado do

capitalista

sistema, ostentando

uma

aristocracia

espiritual. A sua arte deixa de ser o veículo às oligarquias, para passar a

ser

emergente.

instrumento

de

servilismo de

protesto

contra qualquer intenção utilitarista.

Contra o positivismo pragmático e a realidade, que que consideram deturpada e deformante, os modernistas opõem o onirismo fantasioso, o esoterismo, a

lenda e o exótico. Saúl

Yurkevich formula o seguinte comentário:

“Los modernistas son los maestros de la parodia y del pastiche(...)El arte, desgravado de función trascendental (sagrada, cívica, mágica, profética, gnómica), de objetivos ajenos al deleite estético, se vuelve sobre sí mismo para acrescentar la conciencia de su especificidad, de su tecnicidad,de su autonomia. Se vuelve autosuficiente, formalista, suntuario, superfluo con respecto a toda valoración utilitarista.” (Grifo nosso) (1976,p.12-13)

A veracidade exigida pela crítica está questionada pela evidente ficção irônica da entrevista. A ironia “é a fi-

78

gura de retórica que supõe uma certa posição do sujeito diante da verdade, forma invertida”(cf.Brait:1994,p.45). O Roberto personagem coincide com o Roberto autor na sua totalidade, mas está apresentado através dos olhos de um jornalista ingênuo e militante. E ambos são apresentados por Roberto tor com um afastamento humorístico. Há

uma

dupla

escri-

distância

narrativa. A intenção do escritor é destruir a seguridade ingênua do realismo -própria da narrativa

burguesa- para

trar os aparelhos ficcionais nos

a

aparece, e, dessa forma, ao

mesmo

quais

possibilidade: as probabilidades Amor

realidade

tempo, abre-se realistas

Libre mostra assim que a utopia não é um

mossempre

uma

da

nova

ficção.

não-lugar, mas

uma

evidência jornalística.

No gênero jornalístico, pode-se dizer que o

fator

ficção está severamente sob controle ou requer idealmente grau zero de ficção. Na

autobiografia, acontece

lhante. O efeito da veracidade também se



algo

um

seme-

reforçado

pela

consistência ideológica da teoria que se expõe.

Amor Libre também pode-se considerar um ensaio sobre a teoria do anarquismo sexual -sem chegar a configurar um dogma. Roberto escreve para ilustrar suas teorias. Ele

é

um

79

exemplo de trangressão de códigos e, ao da nova conduta sexual que prega.

Os

mesmo

tempo, modelo

motivos que podem ter levado a essa crônica ou

reportagem autobiográfica são vários. Talvez a necessidade de reconstruir uma vida, para compreendê-la, para chegar à

con-

clusão de que a identidade do eu e as convicções político-morais continuam intocáveis. Quiçá a necessidade de

justifica-

tificaçâo, de corrigir, de apresentar sua verdade, por alegações caluniosas, muitas vezes com intenções de burla.

Pelo anteriormente exposto, entende-se que Roberto tinha motivos chave para: a)politizar sua vida cotidiana; b)apresentar-se como paradigma, como exemplo revolucionário; c)apresentar-se, ele mesmo, como prova de seu heroísmo

anar-

quista.

Roberto cruza os

gêneros -elementos

entrevista, ensaio, manifesto,panfleto- que

biográficos,

reclamam, tradi-

cionalmente, o mais elevado grau de veracidade, de autenticidade, de contato direto com o real, de contemporaneidade e de atualidade -conceito importantíssimo para o gênero tico. E adiciona uma forte dose de ficção

jornalís-

e, principalmente,

80

de corrosiva ironia, ou seja, utiliza a ironia ”como forma de cortar a ilusão criada pela própria obra de arte(…) contestar o domínio do racional” (Brait,1994,p.33), criando "um efeito de sentido humorístico e que poderá ser interpretado via imaginário político e sexual"(Ibid,p.38).

Através do cruzamento de gêneros, de um gênero híbrido, o escritor faz que sua vida particular adquira uma espectacularidade estética que culmina com

a

politização

dos

fatos cotidianos.

A

subversão está nesse gênero híbrido. Mas também

está na fusão de gêneros que são considerados marginais.

3.3- A subversão ideológica. Anarquia e sexualidade

Roberto sustenta em Amor Libre a teoria de que não existe anarquia

sem

revolução

sexual. Mas, para

que

isso

aconteça é necessário uma mudança de atitudes, há que se xer no arcabouço da

sociedade

e

do

relacionamento

me-

homem-

mulher: a)combatendo a monogamia, o matrimônio. Esta é uma

forma

de

repressão da mulher, sobre a qual o homem -o marido- tem

ex-

clusivos direitos sexuais. A mulher não pode usufruir de

seu

81

corpo e satisfazer sua vontade sexual e, quando se entrega ao amante, ao adultério, justifica-se a morte pelas mãos do “dono", ou seja, do marido:

“-Se niega a la mujer la propiedad de su cuerpo. No puede hacer uso de él más que parael Marido. Si dispone, por un derecho elemental, de su don de vida en beneficio del amante, arrastrada irresistiblemente por la Afinidad Electiva, soberana dispensadora del bien de Amor, único criminal al que no se escuchan atenuantes, su dueño la deguella!...” (Grifo nosso) (1967,p.74-75)

A filiação do escritor uruguaio à corrente

divor-

cista é notória, não somente pela publicação de sua obra Don Amaro y el divorcio23, mas também em

Amor

Libre, quando

no

Segundo Interview Voluptuoso, considera o divórcio um escape, mas não a solução:

“-Que utilidad concede usted al divorcio en los conflictos de la Afinidad Electiva? -Es una puerta de escape al Amor libre. Pero no basta. Hay que destruir el vínculo!” (Grifo nosso) (Ibid,p.76)

b)defendendo o direito inalienável da mulher de dispor de seu corpo. Ninguém pode atribuir-se o direito de propriedade bre ele. Seguindo as idéias anarquistas

so-

individualistas, le-

vanta-se contra a opressão da pessoa, principalmente da

mu-

82

lher, que considera sob o jugo do homem, neste caso do

mari-

do. Incita a quebrar este relacionamento de propriedade:

“Expropiemos la mujer!!!” (Grifo nosso) (Ibid,p.74)

No Terceiro Interview, Roberto

de

las

Carreras,

personagem, quando tece um diálogo com Berta, sua amada, dizlhe que é completamente livre para fazer o que quiser com seu corpo, desejo e sensações:

“-...La propiedad de tu cuerpo nadie puede disputártela. Eres dueña de tus placeres, libre de amar, de gozar a tu antojo…” (Grifo nosso) (Ibid,p.98)

E mais adiante, consolida a posição:

“...Eres libre por el mágico poder de la Anarquía. Yo arrojo los pedazos de tus cadenas rotas a la faz de los legisladores! ¡Yo pisoteo la Ley! Si no puedo con el solo vínculo del sexo aprisionar en mis redes de amorosos el colibrí tornadizo de tu fantasía, te entrego al espacio. A vivir, dichosa libertada!” (Grifo nosso) (Ibid,p.117)

c)incitando e instigando a mulher à liberação sexual: “-Esclava del hombre, libérate. La hora ha llegado. Los eslabones de tu cadena han sido entrea-

83

biertos por la Idea, nuestra sublime aliada. Un esfuerzo y eres libre. No creas en la Virtud, no creas al Deber,no creas al Honor. El Tirano te engaña para oprimirte. Rebélate!” (Grifo nosso) (Ibid,p.86)

d)dando à mulher, no caso Berta, um papel ativo passivo na relação, como podia esperar-se

das

e

não

mais

montevideanas

na época. Ela escreve, ela procura, ela vai ao encontro

dele

e o "ataca" sensual e sexualmente. Não é o homem(Roberto) que toma a iniciativa:

“Se abalanzó a mi boca, poseyéndola, abarcándola con un gran mordisco clavado fijo. Sentí su lengua...carnosa, dura, húmeda de licor viscoso. La agitó, trémula, en mi boca; impaciente, con prisa; febril por evocar al macho, segura de que mi sensualidaddespierta sería su Victoria. Me ablandó … me reconquistó hasta el fondo de los sentidos!” (Grifo nosso) (Ibid,p.95)

Fora todo o simbolismo

que

possa

extrair-se

narração/descrição do ato sexual propriamente dito

é

da

impor-

tante assinalar, mais uma vez, o papel ativo que Roberto dá à mulher. Esse papel, inclusive, mais adiante no texto, está em evidência, quando, no ato de amor, Berta está

sobre

ele, ou

seja, a mulher não desempenha o papel passivo, não está dominada nem submetida:

"Su

cara

se

desencajó

retratando

uma

vehemente

84

súplica muda... Febricitante: -Tú, sobre mí...” (Grifo nosso) (Ibid,p.97)

E para que não fique nenhuma dúvida:

"Ella estaba sobre mí..." (Grifo nosso) (Ibid,p.98)

Chama a atenção esta evidência porque

propõe

uma

transformação do papel masculino, abre a possibilidade da liberação da mulher, reconhece a igualdade -ou seja, lhe dá

um

papel ativo na relação- e admite também a entrega do homem às arremetidas da mulher. Uma novidade a

respeito

do

conceito

tradicional de masculinidade. Mais do que isso: uma verdadeira revolução dos conceitos.

Roberto aceita Berta sob as condições que escolheu como modelo de vida. Ela volta

vitoriosa, embora

ele

adote

uma postura de sedutor. Ele não tem o orgulho do macho

feri-

do, não não se considera um marido traído. A vitória final do Interview não está na

volta

da

esposa

aceitação irrestrita e sem condições por

adúltera, senão parte

de

na

Roberto,

que reconhece os mais sublimes valores anárquicos. É o triunfo consolidado do discurso anarquista e a abertura de uma no-

85

va trilha de política sexual à procura de uma nova masculinidade.

Roberto de las Carreras empreendeu

o

caminho

da

mudança do papel masculino, fundamentando-se no movimento que tinha à mão naquela época: o feminismo. Ele combate o tipo de homem que qualifica de "Antropóide", "macho rano secular", "macho legal". O

novo

homem

dominador”, “tisurgirá

quando

morram aqueles: “El enemigo de la mujer es el Antropoide. Nossotros, los feministas, debemos apuñalar al monstruo interior, al Mâle Originel!” (Grifo nosso) (1967,p.74)

No Montevidéu de início de século XX, como comenta Goldaracena, tanto para a direita burguesa quanto para a querda proletária estas idéias ecoavam a

loucuras

Carlos Maria Domínguez explica que os burgueses e

es-

eróticas. comercian-

tes montevideanos tinham suas normas de conduta bem definidas e diferenciadas, e Roberto misturava os valores e

burlava-se

deles, propositadamente:

“Desde fines de siglo pasado, para burgueses y comerciantes la ficción debía estar de un lado y la realidade del otro, sin que se confundiera el trabajo con el ocio, la belleza con la verdad, la honestidad del esfuerzo con los placeres del en-

86

tretenimiento. Y Roberto mezclaba los planos deliberadamente.” (Grifo nosso) (1997,p.80)

Roberto de las Carreras apresentou uma transformação do ser humano e da sociedade

através

da

sexualidade. O

processo de transformação e a concepção dessa sociedade

utó-

pica implica, em primeiro lugar, o reconhecimento de que

ho-

mens e mulheres têm os mesmos direitos e que não deve existir nenhum tipo de submissão entre eles. Em existir um relacionamento livre e

segundo

aberto, onde

lugar, deve instituições

sociais, como o matrimônio, não têm lugar. O indivíduo é

li-

vre para escolher o papel que deseja desempenhar e pode vivêlo com total intensidade, tanto quanto lhe permita sua imaginação criadora. A compreensão destas propostas levará

a

uma

melhor avaliação de seu discurso e espera-se o reconhecimento como visionário e revolucionário, antecedente anarquistas que sobreviveram na América Latina.

das

correntes

87

88

89

4. Roberto Freire

90

4.1- Da materialidade de sua história à materialidade de

sua

obra

Roberto Freire nasceu em São Paulo em gado a seguir a tradição familiar formou-se em

1927. ObriMedicina, es-

pecializou-se em Psiquiatria e posteriormente em Psicanálise. A sua verdadeira paixão era a arte conforme alega

em

entre-

vista concedida à jornalista Dóris Fialcoff:

"Eu fui obrigado a ser médico pela minha família. O meu avô era médico, meus tios eram médicos e meus pais achavam que eu tinha de ser médico. Mas eu não queria nada com a Medicina.A minha vocação era a arte, a cultura,a ciência, mas não a ciência médica." (Grifo nosso) (1995,p.6)

O passado de Roberto Freire, assim como o berto de las Carreras, deixou marcas e ele de suas crônicas ou como nesta entrevista

desabafa à

de

Ro-

através

jornalista

Ma-

riana Kalil:

“Quando quis defender minha liberdade, veio o golpe de 64. E aí recebi a violência física, ameaças de morte, torturas, prisões. Assisti à morte de companheiros na minha frente(...)Tenho um orgulho enorme de ter sobrevivido a essa violência toda. Grande parte dos meus amigos morreram assassinados, desapareceram.(...) Quando era menino, tinha um complexo de inferioridade muito grande. Tão grande que era completamente gago. Me achava feio, troncho, incapaz." (Grifo nosso) (1996,p.4)

91

Por volta dos anos sessenta abandona o que poderia denominar-se etapa burguesa. Com Cleo e Daniel, o escritor se liberta de uma imagem social que abominava, conforme

diz

em

Sem Tesão Não Há Solução:

"Vinha de uma família burguesa, e no livro resolvi me libertar de tudo aquilo publicamente. Aquela imagem de bonzinho, do médico, do bem-educado, do conselheiro, resolvi avacalhar com tudo isso através de Rudolf Flügel que é RF, e tudo o que ele, Rudolf, diz do Roberto Freire, são trechos de críticas às minhas peças de teatro e de quem escreveu contra e a favor de mim desde muito tempo, em jornais, e opiniões de pessoas que me criticavam de longe. O vomitório de Rudolf é o que as pessoas pensavam de mim, pessoas mais abertas, mais corajosas e ele, Rudolf, era mais ou menos o que eu queria ser na sociedade burguesa -aquele cara mesmo, um filho da puta." (Grifo nosso) (1987,p.110)

Freire tem consciência de classe, sente-se e identifica-se como um burguês que

reaciona

contra

sua

classe social, vale dizer, coloca-se como burguês

própria

revolucio-

nário tal como cita relevante passagem a respeito, no Soma 1: "...nós, privilegiados burgueses(...) temos melhores condições para não suportar as violações de nossa originalidade e autoregulação espontânea." (Grifo nosso) (1988,p.48)

Participou de movimentos

teatrais, foi

convidado

92

para dirigir o Serviço Nacional de Teatro. Dessa

experiência

surge a peça Quarto de empregada (1958) que em 1993

junta

outras, Quarto de estudante e Quarto de hotel, e publica

a sob

o título 3/4. Na primeira, o escritor enfoca os problemas das domésticas no Brasil; na segunda, critica a

incompetência

e

impotência dos neuróticos jovens pequenos-burgueses, os quais considera tão infelizes e prostituídos quanto

as

empregadas

domésticas; e na terceira, apresenta a possibilidade bertar-se da violência castrativa, colocando como

de

li-

exemplo

personagem de um jovem anarquista que se liberta dos

o

princí-

pios da vida burguesa, do capitalismo e desperta para o

pra-

zer livre e sadio, o sexo natural, a luta social e o amor libertários.

Desde sua juventude teve simpatia pela de esquerda, de origem comunista, marxista e

militância

leninista, fato

interessante devido ao antagonismo histórico entre

anarquis-

tas e marxistas. Esta poderia ser chamada de etapa militante, conforme conta em Tesudos de Todo o Mundo, Uni-vos!:

"Vivi esse período importante da vida e da ação do Partido Comunista no país e tive amigos muito próximos que militaram nesse partido toda a sua vida, com os quais acabei militando junto na mocidade, durante 15 anos, contra a ditadura Vargas e, já mais adulto, depois de 1964, também 15 anos, contra a ditadura militar. Enfrentei, assim, com eles, numa militância semelhante, apesar de ser anarquista e eles marxistas, as vio-

93

lências militares, como prisões, torturas e seqüestros durante 30 anos de minha vida(...)Assim, não se poderá nunca esquecer esse aspecto positivo e belo da militância do tipo marxista (...) Eu o valorizei sempre e, sobretudo, o admirei muito." (Grifo nosso) (1995,p.120)

Em 1964, após o golpe militar, participou da

Ação

Popular, organização clandestina, fato que o levou a ser preso e torturado, no que poderia denominar-se etapa da clandestinidade. Para sobreviver escrevia, sob pseudônimos, para Ultima Hora e Realidade, de São Paulo. Amigo do sociólogo Betinho, irmão do cartunista Henfil, militara junto a ele em Ação Popular, como conta em Tesudos:

"...ele teria escolhido como eles o caminho marxista-leninista para o exercício de sua vida revolucionária. Eu não me tornara marxista nem leninista, mas trabalhava com eles (...)Depois que Betinho viajou, liguei-me a outro líder da AP.(…) Papi, tentou, de todo jeito, fazer que eu o acompanhasse na conversão marxista-leninista." (Grifo nosso) (1995,p.182)

Embora partilhando da

luta

revolucionária

junto

aos marxistas, e manifestando nutrida admiração pela forma de lutarem contra a ditadura, o autor não se define

ideologica-

mente marxista. A crítica ao marxismo é, embora sem cia no movimento libertário, de origem anarquista:

militân-

94

"Na verdade, minha crítica ao marxismo era de origem anarquista, mas naquela época eu tinha pouca militância no movimento libertário, restringindo-me às leituras de Proudhon, de Bakunin, de Stirner e de Malatesta, sobretudo. Nem conhecia os líderes anarquistas daquela época, como José Oiticica e Edgard Laurenroth Rodrigues." (Grifo nosso) (1995,p.193)

Após essa militância revolucionária quase marxista, em época da ditadura, afirma-se definitivamente sua militância libertária, inclusive sua que

pode-se

denominar

a

etapa

adesão

à

antipsiquiatria,

totalmente

anarquista, da

antipsiquiatria e da ecologia.

Ex-psicanalista, depois de oito anos de ter

aban-

donado a prática terapeutica tradicional, em 1971, começa

um

trabalho terapêutico diferente, com conteúdo e objetivo político-anarquistas. Dedicou-se, por muitos anos, ao obra de Wilhelm Reich, mas também

Herbert

estudo

Marcuse

e

da

David

Cooper. Dos estudos extraiu os fundamentos para a criação

de

uma terapia -a Soma- de liberação das repressões

da

através

politização da sexualidade, com profundo sustento anarquista. Esta terapia encontra-se em Soma, uma terapia anarquista, série composta de três livros: A alma é o o

corpo, A

arma

é

corpo, Corpo a corpo. Em Ame e dê vexame, pode encontrar-se o conceito de Soma:

95

"O anarquismo somático é mais próximo da natureza genética, corporal e existencial do homem, impondo-lhe a realização da vida na busca permanente da liberdade e na realização plena de seus potenciais de prazer. A palavra Soma, para este tipo de anarquistas, signififica o ser corporal ou a totalidade do ser humano. É muito mais do que existe no lado de dentro da pele de uma pessoa. Mas também do que sua capacidade cognitiva e sensitiva, pois são também soma as suas extensões corporais físicas, afetivas, sensuais e sexuais. O anarquista somático busca mais contato com a totalidade do seu ser do que as pessoas ainda não libertárias. Soma ou Somaterapia é uma prática terapéutica corporal e em grupo, baseada na obra de Wilhelm Reich, visando a prevenção e a recuperação de pessoas sumetidas a repressão autoritária(...)A Soma é a única terapia de conteúdo e objetivos políticos explícito: o socialismo libertário ou anarquismo." (Grifo nosso) (1990,p.16-17)

Como terapeuta ligado à corrente

da

antipsiquia-

tria, considera a psicanálise uma falsa ciência, além de elitista e reacionária.

Ao abandonar a linha de psicanalista tradicional e aferrar-se à Soma, logo foi rotulado, conforme conta a Mariana Kalil, em entrevista:

"Uma vez perguntaram meu nome e respondi. Então, devolveram: ”O comuna ou o louco?” Essa é a impressão que as pessoas têm de mim. Que sou louco, tarado.” (Grifo nosso) (1996,p.4)

96

Seu pensamento

político

anarquista

se

expressa

através de suas novelas Cleo e Daniel(1965), Coiote(1986), Os Cúmplices(1995), onde coloca em xeque as convenções e dações da sociedade burguesa, envolvendo

os

violentas paixões. Narra as aventuras de sua como o poder das mutações genéticas dos

quista. Denuncia a asfixia

imposta

personagens

pela

o

revolucionásonho

anar-

estrutura

social.

Deixa uma mensagem aos jovens anarquistas de todo o

mundo: a

possibilidade do prazer e da beleza na realidade cotidiana o surgimento do amor dos mutantes somáticos, um do futuro", que deixa perplexo seu

em

geração. Mostra

homens

rios pode conduzir à liberdade e ao amor sob

acomo-

amor

e

"vindo

alter-ego, o psicanalista

Dr. Rudolf Flügel.

Histórias Curtas e Grossas I e II(1991) resgatam o prazer sensual, o qual o autor opõe à obscenidade afetiva

do

cotidiano das pessoas. O escritor adverte que cada leitor sabe onde acaba o erótico e começa o pornográfico já que

“todo

amor libertário, felizmente, tende a ser um tanto libertino”.

A Farsa Ecológica(1992) é um ensaio que

mostra

a

posição dos anarquistas em relação à ecologia e um radicalis-

97

mo que atende, segundo o autor, à situação

de

emergência

e

calamidade do planeta que "pede socorro".

Em ensaios psicossociológicos e políticos autobiográficos, a investigação científica, a nova técnica tica e a criação literária fundem-se sob a prática

terapêu-

ta do autor. Utopia & Paixão(1984) escreve

em

anarquis-

parceria

Fausto Brito, companheiro de luta. Obra de reflexões e tes sobre a vivência do autor que acredita do cotidiano do homem como uma

utopia

na

com

deba-

transformação

possível. Reflexionam

sobre a militância política; o poder totalitário

que

regula

até as mínimas regras de comportamento social; o sistema

po-

lítico que sustenta o Estado e também as relações cotidianas, como escola, família, sexo, lazer e valores morais. Esta obra é revisada e relançada em 1991, devido às profundas políticas havidas no mundo -a queda

do

muro

de

mudanças

"apartheit", a dissolução da União Soviética. Sem não

Berlim, do tesão

há solução(1987) traz uma reflexão filosófica sobre

o

da Política e da Psicologia. A liberdade

está

no

cruzamento

de

do

homem

prazer, na alegria e na beleza. Há no livro o três

discursos

–ensaio, biografia, jornalismo: na

parte, ensaios sobre a semântica da palabra

campo

primeira

tesão, as

muta-

ções da juventude brasileira, a violência e repressão da qual foi vítima nos últimos vinte anos; na

segunda

parte, entre-

98

vistas publicadas na imprensa alternativa

a

grande

mídia, segundo ele, o combate através da omissão e do

silên-

cio, não publicando seus

trabalhos; na



que

terceira

parte, uma

conferência ecológica, que tem, para o próprio autor, caráter de manifesto e de testamento político. Em vexame

Ame

e



(1990), o escritor combate a ideologia do sacrifício, que é a renúncia do homem à liberdade e a perda da capacidade de amar de verdade, ocasionada pelo autoritarismo e oposição, apresenta a teoria

do

a

repressão. Em

prazer -natural, ecológica-

onde o homem deve brincar, jogar, criar e amar em

total

berdade. A arma contra o sacrifício é o vexame, não ter o

limedo

ao ridículo, ser espontâneo. Tesudos de uni-

todo

mundo,

vos!(1995) contém ensaios confissionais

do

autor, biográfi-

os, uma espécie de convocação ao estilo Comu-

do

Manifesto

nista, onde complementa a teoria do prazer, abordada anteriormente, e se levanta contra toda forma de opressão e castração dos jovens que necessitam expandir

sua

originalidade

única. Escreve sobre futebol, política, poesia, psiquatria psicanálise, religião, sexo, marxismo, e amor em liberdade.

principalmente

e do

99

100

101

102

5. Teoria do Soma 5.1- O tesão

Roberto Freire desenvolve seus trabalhos de

soma-

terapia dirigidos à recuperação do tesão, termo que significa para o autor viver com prazer, beleza

e

vital Solu-

em

da

pessoa,

tal

como

expressa

alegria, a Sem

energia

Tesão

Não



ção:

“Assim, tesão, muito simples e resumidamente, quer significar hoje o que sentimos sensualizando juntos a beleza e a alegria em cada coisa com a qual entramos em contato e com a qual nos comunicamos. Tesão seria, pois, a palavra que reforçaria e melhor qualificaria o amor nas relações afetivas dos jovens neo-românticos de hoje. O tesão, num sentido tão fisiológico quanto poético, seria a semente do orgasmo e a raiz das paixões.” (Grifo nosso) (1987,p.21-22)

A carga semântica que o autor

introduz

no

termo

vai além do aspecto puramente sexual-fisiológico e vincula-se aos seguintes elementos que conformam a energia vital: a alegria, o prazer e a beleza.

A alegria a que se refere o escritor não significa felicidade -que ele considera um estado- mas uma

sensação. A

alegria é fugaz, instável, é um viver aqui e agora:

103

“...buscamos simples e naturalmente alegria. Alegria, coisa tão incerta como o vento, que tem dia que vem, dia que não vem.” (Grifo nosso) (1987,p.58)

Alegria que o escritor define como:

“…a expressão gostosa, saborosa, orgástica e encantada do funcionamento satisfatório e equilíbrio de nossa energia vital no plano físico, emocional, psicológico, afetivo, sensual, ético, ideológico e espiritual.” (Grifo nosso) (1987,p.59)

A alegria pressupõe prazer, do qual se origina toda a teoria do tesão. Prazer é o que dá significado à sua

vida" -diz

o

"sentido, direção

autor- "A

aquí, tem um significado primário, mas

palavra

e

prazer,

essencial: satisfação

pelo exercício puro e direto da vida em si mesma", e

através

do prazer e da dor, o ser humano "exerce, orienta

expande

e

seu potencial energético"(1987,p.59).

A beleza, o outro conceito relacionado ao tesão, é a "percepção e sensação estéticas", o "produto de um processo de desenvolvimento dinâmico, dialético e

ecológico" (1987,p.

66-67). São o prazer e a dor que produzem maior ou menor

be-

leza:

“Assim, pois, beleza seria a expressão e a comuni-

104

cação do estado atual do equilíbrio entre as sensações de dor e de prazer que se vai vivendo na forma e no conteúdo de maior ou menor vivência da alegria.” (Grifo nosso) (1987,p.67)

Prazer é viver ludicamente. Ludicidade significa “a capacidade de brincar e de jogar" (1990,p.74). Para amar é necessário saber jogar e brincar. E para que isto seja possível o ser humano deve utilizar o máximo de

seu

potencial:

sua criatividade, sua originalidade única. A forma de dir a originalidade única e garantir

o

máximo

de

expanalegria,

prazer e beleza é sentir tesão pela vida.

A originalidade única tem três

fundamentos: a)ge-

nético; b)ecológico -conforme desenvolve em Tesudos:

“O pensamento e a ação anarquistas, para nós da Soma, começa na compreensão do que significa a 'originalidade única' das pessoas(...)a genética e a ecologia descobriram e provaram: em cada ecossistema, para que ele sobreviva em condições biológicas satisfatórias, cada um de seus membros necessita viver de modo a serem respeitadas as suas individualidades originais e únicas. Quer dizer, a ciência confirma a filosofia anarquista: nunca existiu, não existe e não existirá um ser igual ao outro(...)a originalidade única garante à Natureza infinitas possibilidades de experiências na verificação da adaptabilidade dos seres de cada espécie em seu meio ambiente.” (Grifo nosso) (1995,p.90-91)

Esta posição aparece, também, no Soma 1:

105

“Está provado geneticamente ser impossível a existência de dois seres absolutamente iguais na mesma espécie. Devido às infinitas possibilidades e combinações dos genes, no momento da formação do ovo humano, a Natureza mostra querer a produção da mais completa diversidade entre os membros da espécie humana, como ocorre com as demais espécies vivas também.” (Grifo nosso) (1988,p.46)

c)ideológico. O autor desenvolve uma utopia que

apresenta

a

possibilidade de desenvolver a energia vital, sem obstáculos, dentro de uma sociedade futura, de uma sociedade Freire neste caso apóia-se em Stirner, conforme

libertária. expressa

no

Soma 1:

“Stirner reabilitou o indivíduo numa época em que, no plano filosófico, dominava o antiindividualismo. Os danos causados pelo egoísmo burguês conduziam a maior parte dos reformadores a realçar o seu contrário: não é verdade que a palabra socialismo nasceu como antônimo de individualismo? Stirner exalta o valor intrínseco do indivíduo,do 'único',ou seja, não semelhante a qualquer outro, criado pela Natureza em um só exemplar (noção que confirma as mais recentes descobertas da biologia).” (Grifo nosso) (1988,p.200)

O tesão manifesta-se

em

três

níveis: indivíduo,

sociedade e natureza. Individualmente há necessidade

de

pandir esta energia original. O anarquismo, para Freire, é

ex-

único meio que permite e libera essa expansão, que dá berdade necessária para o pleno desenvolvimento. Mas o não é só individual, ele pode ser social -o

tesão

a

o li-

tesão

entre

os

106

indivíduos, e da coletividade que alcança-se com a erotização do cotidiano:

“Se o tesão depende da alegria e não há o que fazer na vida cotidiana com a nossa alegria se não pudermos repartí-la,o tesão fica assim como algo essencial que nos liga, identifica e comunica com os outros. Pelo tesão ficamos assim como que imantados, atraindo e desejando uns aos outros. A alegria, portanto, é uma sensação de natureza individual, que os outros podem despertar ou potencializar em nós, adquirindo assim também uma função social.” (Grifo nosso) (1987,p.63)

O escritor preocupa-se em como chegar ao tesão coletivo, que significa, primeiro, derrotar o autoritarismo, de acordo com o que expressa em Utopia e Paixão:

“Mas como conseguir transformar essas estratégias individuais de liberação do autoritarismo em movimentos coletivos?” (Grifo nosso) (1991,p.71)

Freire sustenta, também, que a energia vital

está

estreitamente ligada à ecologia: “Estamos, assim, concluindo pela existência também de um tesão antropológico e ecológico que mantém a ludicidade impregnada na natureza e na essência do homem. Este tesão o faz ligar-se, forte e apaixonadamente, sem necessitar nenhuma explicação consciente, a tudo o que lhe proporciona beleza, alegria e prazer.” (Grifo nosso) (1987,p.30-31)

107

5.2- Os impedimentos do tesão

Há situações que impedem o prazer

e

acontecimentos históricos, culturais, sociais

que e

vêm

econômicos.

Estes acontecimentos têm culminado na "ideologia do cio, de índole cultural,que está a serviço do

de

sacrifí-

autoritarismo,

e que é diametralmente oposta à "ideologia do prazer", de índole biológica, conforme diz em Tesudos:

“Mas, repito, a verdade é que, desfeitos os equívocos, chego à conclusão de ser o único conflito político de fato existente em nosso tempo o que produz em nós reações tão diferentes e quase sempre opostas entre duas ideologias, uma biológica e outra cultural, em ação permanente e há muito tempo, uma contra outra: "ideologia do prazer" versus “ideologia do sacrifício”.” (Grifo nosso) (1995,p.78)

A "ideologia do sacrifício" é imposta

das

mais sutis até escancaradamente coercitivas, seja pelo taismo, pelo ensino, pelas ditaduras especificamente Utopia

o

catolicismo,

ou

pelo

conforme

o

formas capi-

cristianismo, expressa

em

e Paixão:

"A idéia de utopias distantes, paraíso amanhã, tem um conteúdo bastante autoritário, paternalista. É como falamos às crianças: se ficar bonzinho agora, depois vai ao cinema. Ou, como em qualquer pedago-

108

gia autoritária, pede-se a cada um de nós: se você obedecer, se se deixar reprimir, se servir bem, mais tarde você terá suas recompensas (dinheiro, propriedade, poder). A religião faz a mêsma coisa. Se nos sacrificarmos, nos martizarmos, seremos santos e receberemos como graça o reino dos céus. Em muitas concepções políticas também encontramos essas idéias: hoje precisamos de sacrifícios e reeducação, uma ditadura nos ajudará. A compensação, o paraíso, será amanhã, quando estivermos preparados, reeducados." (Grifo nosso) (1991,p.30)

A racterística Te-

neurose provocada pelo autoritarismo é uma da

sociedade

burguesa

capitalista,

afirma

caem

sudos:

"O capitalismo é o principal instrumento a levar o homem à "ideologia do sacrifício" e renunciar à "ideologia do prazer" natural. Em verdade, essas pessoas movidas por seu egoísmo e pela ânsia de poder, acabam aceitando a necessidade do sacrifício de seus prazeres animais e humanos, os prazeres de hoje e agora, os prazeres da saúde e da juventude, na esperança, possível e até real de compensações na vida adulta e, sobretudo, na velhice." (Grifo nosso) (1995,p.81)

Também a psicanálise representa a ideologia do sacrifício, conforme Sem Tesão:

"Nascida do pensamento de um homem genial, mas profundamente pessimista, triste, amargo e ressentido, a Psicanálise reflete as características da história da religião e da raça judaica no mundo. Sigmund Freud era um homem que, segundo seu discípulo Wilhelm Reich, permitia-se pouca convivência

109

com o prazer, com a beleza e com a alegria lúdicos da existência comum, que provam suas obras principais(...)Estou querendo concluir que a religião judaica e a cristã, bem como tudo aquilo que a elas está ligado, direta ou indiretamente, como a Psicanálise, por exemplo, representam o antitesão." (Grifo nosso) (1987,p.32-33)

5.3- A liberação do tesão

O Princípio do Prazer é a expansão da originalidade do indivíduo que se manifesta através da sexualidade e criatividade, Paixão:

segundo

sustenta

o

escritor

em

da

Utopia

e

"Então, ser livre é poder viver ampla e irrestritamente as nossas próprias originalidades únicas, as nossas diferenças. Como? Fundamentalmente, no jeito de amar e criar. E é exatamente sobre o jeito de amar e de criar de cada um que se exerce a repressão autoritária, o controle social, a favor das semelhanças e pela massificação da média (sinônimo ao mesmo tempo de ninguém e de todos).” (Grifo nosso) (1991,p.37)

Como deve organizar-se a sexualidade de acordo com o princípio do prazer? Surgem novas formas de

relacionamento

amoroso e são propostos diferentes modelos: a)a organização comunitária, abolindo assim a organização familiar. Desta forma o casal perderia "o

sentimento

priedade de um sobre o outro e sobre os filhos"

de

pro-

e

venceriam

“o egoísmo fechado da vida familiar que favorece o

autorita-

110

rismo" (1995,p.96). Freire aponta saída contra o autoritarismo da

a

vida

família

comunitária

como

institucionalizada,

conforme expressa em Ame e dê vexame:

"...a única saída é marginalizar-se e criar novos tipos de relacionamento e acasalamento, bem como descobrir outras formas de vida comunitária em substituição à do lar e à da família tradicionais." (Grifo nosso) (1990,p.47)

b)o relacionamento suplementar, como acasalamento, destruindo as normas que regem o matrimônio tradicional, tal o que

pro-

põe em Sem Tesão: "Dentro da minha visão, acho o casamento um absurdo. Eu gostaria de falar sobre acasalamento, porque quanto ao casamento eu só quero que acabe, que não exista mais, porque o casamento é uma das grandes fontes de destruição do amor. Mas o acasalamento é indispensável. Acho que as novas formas de acasalamento que hoje estão sendo pesquisadas pela juventude no mundo são a medida das transformações atuais na história do homem." (Grifo nosso) (1987,p.133)

Este acasalamento pode apresentar-se de forma

mo-

nogâmica "por tesão não de posse e de exclusividade" (1987,p. 134) com ou sem coabitação, já que a coabitação "não faz parte do amor e nem determina a qualidade, a intensidade do amor" (1987,p.134). Ou o

durabilidade acasalamento

e

a

ocorre

111

através de relações abertas, onde o

casal

tem

experiências

paralelas:

"As relações que mais me fascinam hoje são as relações abertas, sem sentimento de propriedade (...)O que acho mais bonito e vejo no amor dos casais revolucionários é como eles o vivem de forma lúdica, brincando e jogando sempre. A ludicidade é a mãe do tesão e, ao mesmo tempo, o pai da criatividade." (Grifo nosso) (1987,p.136)

Esse relacionamento

amoroso

suplementar, aberto,

libertário, segundo Freire, que "vem substituindo, sem

hipo-

crisias e sem mentiras, o casamento tradicional" (1995,p.98), é praticado pelos protomutantes, e anuncia a "Era da

Utopia"

e uma sociedade futura.

A sociedade futura seria formada por protomutantes e dirigida por aqueles que, de forma natural, tivessem o da liderança. O conceito de

protomutante, tomado

de

dom

Thomas

Hanna, precisamente de Corpos em revolta, "os mutantes culturais que vão criar a

sociedade

do

futuro", segundo

Freire

(1995,p.71), define adequadamente o anarquista somático, conforme diz em Sem Tesão:

“Os protomutantes culturais desprezam o poder autoritário, passando a proclamar e a viver o tesão como a terceira dimensão fundamental da vida no Universo. E, estou seguro, serão eles os autores

112

da Revolução Ecológica, que virá do futuro para o presente e desprezará totalmente a influência do passado, porque se trata de um fenômeno anti-histórico e anti-dialético, no sentido marxista clássico dessas duas expressões.” (Grifo nosso) (1987,p.40)

Através das experiências marginais e minoritárias realizadas pelos protomutantes, a sociedade

começaria

transtransformar, orientando-se para

totalmente

que restabeleceria o

equilíbrio

outra

antropológico

e

a

se nova

ecológico

perturbado pelo desenvolvimento cultural e social.

Formar-se-iam associações nas quais os protomutantes exerceriam a liderança através de um processo de natural. Freire descarta o autoritarismo porque "é rança, pois, que consiste o poder natural dos

seleção de

lide-

protomutantes”

(1987,p.42). Como não há um poder autoritário, os protomutantes relacionar-se-iam de forma anarquista, para viver e duzir, é o que propõe em Sem Tesão:

pro-

"Isto quer dizer que a sua produção é projetada, organizada, financiada, gerida, controlada e utilizada por quem produz, recaindo seus benefícios e seus lucros de modo proporcional à qualidade e à quantidade de trabalho criativo realizado por cada produtor." (Grifo nosso) (1987,p.43)

Nesta sociedade anarquista, sem relações de poder,

113

"com a ética da solidariedade e através do trabalho e do amor em tesudas formas de autogestão"(1995,p.53), o amor entre protomutantes "não se oficializa, não se sacraliza esse

os amor

que se identifica com a liberdade a dois" (1995,p.63). Assim, Freire Te-

acredita

nessa

sociedade

futura,

como

expressa

em

sudos:

"Não se pode prever como será essa sociedade, mas uma coisa é certa: ela será mais justa e terá mais força que o Estado. Este, ou desaparecerá ou será apenas um órgão administrativo a serviço do povo. Na vida anarquista, ninguém substituirá o prazer pelo poder, porque não haverá poder a não ser como verbo: poder amar, poder ser livre, poder ser original e poder ser único". (Grifo nosso) (1995,p.102)

As atitudes dos protomutantes aparecem como escandalosas na sociedade

atual, escandalosas

e

irresponsáveis,

como diz em Sem Tesão: "...é papel dos protomutantes atuarem irresponsavelmente na sociedade capitalista autoritária. Por exemplo, eles devem se comportar de modo irritante e irresponsável no combate ao desenvolvimento tecnológico que fere e envenena o meio ambiente. Eles devem amar e gozar irresponsavelmente e, irresponsavelmente, viver segundo o seu tesão e a sua ludicidade." (Grifo nosso) (1987,p.47)

O escândalo, o mau exemplo é a saída contra a

pa-

ralização, o marasmo político produzido pela neurose. O vexa-

114

me é a expansão do prazer, a paixão e o amor de Freire opõe ao vexame libertário, o vexame

alto

risco.

autoritário

que,

por medo ao ridículo, à vergonha, castra e oprime, como enuncia em Ame e dê vexame:

"...o vexame libertário, o que nos livra do autoritarismo para podermos fruir o amor em liberdade; e o vexame autoritário, o que escraviza e nos obriga a optar pelo amor ou pela liberdade." (Grifo nosso) (1990,p.103)

O anarquista é, por

natureza, escandaloso, espe-

cialmente em questões de amor:

"Os anarquistas são os socialistas não autoritários, pessoas que sabem e gostam de dar vexames em todos os campos especialmente no amor." (Grifo nosso) (1990,p.16)

O escandaloso anarquista assume publicamente tas situações, que são embaraçosas em uma sociedade

não

cerli-

bertária. O anarquista confessa que gosta de ser o que é, sem falsidades, sem hipocresia, como em Sem Tesão:

“Por isso facilito o trabalho dos inquisidores oficiais sobre as heresias deste livro, repetindo: eu me drogo, gosto de me drogar, sei me drogar convenientemente sempre que possível, de álcool e de marijuana. Primeiro porque não quero perder todos os outros prazeres que a vida pode me dar, além dos fisológicos, culturais e ideológicos; se-

115

gundo, porque também estou "doente" da miséria humana a que a juventude do mundo vem sendo submetida pelo autoritarismo fascista de nosso tempo." (Grifo nosso) (1987,p.102)

E o vexame leva a viver um

amor

de

alto

instável e dinâmico, que se opõe à segurança pretendida

risco, pela

sociedade não libertária, mas que proporciona o prazer da liberdade, como expressa em Ame e dê vexame:

"...é impossível sentir o prazer da liberdade como nos instantes dos vexames no amor, sem assumir riscos na realização de nossos desejos animal e humano. (...)O equilíbrio instável e dinâmico emtre vivermos mais riscos que segurança caracteriza e garante nossa liberdade.(...)O medo do risco é que nos permite dar os indispensáveis e belos vexames libertários." (Grifo nosso) (1990,p.107)

O ridículo, o vexame, a alegria são condutas

uti-

lizadas para desbloquear a neurose criada pelo autoritarismo:

"Sem vexame não há tesão. Sem tesão não há solução." (Grifo nosso) (1990,p.107)

5.4- O hibridismo no discurso de Freire

Freire mantém os gêneros bastante claros e cionais: a)ensaio científico; b)ensaio

tradi-

político; c)narrativa

116

ficcional.

O discurso está direcionado para o ensaio, a

crô-

nica jornalística, enlaçada com dados autobiográficos onde

o

escritor reflexiona sobre o presente, o passado e trata de se projetar no futuro analisando o momento atual.

Contudo, o ensaio também tem a mesma carga de subjetivação da autobiografia, visto que o autor coloca suas reflexões sobre o mundo circundante e suas reações

perante

os

acontecimentos. A subjetivação dá a intimidade necessária para que se crie uma atmosfera de cumplicidade com o leitor.24

Por exemplo, há elementos de auto-retrato, conforme esta passagem em Sem tesão não há solução:

"...Intuição e experiência, porque convivi com suicidas bem e mal sucedidos e eu mêsmo já tentei me matar algumas vezes. Mas apesar disso não posso provar e garantir nada sobre o significado verdadeiro do que quer que seja, dentro ou fora de mim. Procuro apenas ser sincero na compreensão do que constato no durante das coisas. Sinto-me uma honesta e franca testemunha do enquanto em meu viver." (Grifo nosso) (1987,p.24)

Na Introdução de Ame e dê

vexame, Roberto

manifesta que o livro é dividido em duas partes. Na

Freire

segunda,

117

estão as próprias vivências do autor, como ele mesmo relata:

"Todos os episódios narrados na segunda parte tratam de vexames amorosos, sinceros e verídicos." (Grifo nosso) (1990,p.15)

Embora não declare diretamente a possibilidade introduzir ficção na sua obra, pode-se deduzir que ela

de

exis-

te.

Em entrevista a Mariana Kalil, o escritor declara:

"ZH -Em Os Cúmplices, o senhor escreve a biografia da sua geração e se coloca como um personagem diluído entre todos. Por que o senhor não é o personagem principal? Freire -Não me acho uma figura que mereça ser personagem de livro. Procurei inventar personagens com a vida mais intensa, mais rica, mais bonita. Tomei a liberdade de fazer o que quisesse com eles, sem precisar mentir. Acho as autobiografias mentirosas, os autores se valorizam demais. Os fatos que narro são todos reais. Algumas pessoas mais íntimas me reconhecem na mistura do Vítor e do Bruno." (Grifo nosso) (1996,p.4)

Na Introdução de Tesudos de Todo o Mundo, Univos! justifica os ensaios que escreveu:

"Ando querendo fechar as portas de minha vida. Assim realizei este livro, descrevendo e analisando coisas especiais que vivi e conheci (...) Estes

118

artigos são os saldos dessa experiência amorosa e política. Posso considerá-los uma espécie de diário de campanha. Neles guardei as reflexões, o estudo e os frutos das discussões com os meus clientes e ouvintes das conferências que fiz nos últimos anos." (Grifo nosso) (1995,p.7)

Na novela Cleo e Daniel, que tem biográficos, o escritor faz

a

sua

elementos

autocrítica

auto-

através

da

personagem Rudolf Flügel, seu alter-ego, ou conforme manifesta em Ame e dê vexame:

"...eu fazia uma velada autocrítica à minha origem e formação burguesa e à minha impotência revolucionária..." (Grifo nosso) (1990,p.33)

Em outro momento os elementos autobiográficos servem como testemunho de uma época crítica para

o

autor, como

diz em Sem Tesão:

“Resolvi que esse livro (Cléo e Daniel) sera uma espécie assim de testemunho de tudo aquilo que tinha sentido da vida até aquela época, 1964, quando comecei a escrever(...)No fundo, quando acabei de ler tudo aquilo vi que tinha feito um livro de memórias sublimadas ou racionalizadas, mas o que eu queria era mostrar a impossibilidade da existência do amor na sociedade burguesa." (Grifo nosso) (1987,p.109)

O ensaio político de Freire aspira a utilizar

uma

119

linguagem direta e cotidiana que se define afastamento do "meio

científico

e

por

acadêmico

oposição

ou

brasileiros”,

conforme o autor manifesta no Soma 1(p.15) devido a

que

seu

principal interesse é a divulgação de suas idéias e uma comunicação imediata com o leitor. Freire define seu discurso como “simples e cotidiana" (ibid,p.16).

Este discurso, cujo valor fundamental é a

imedia-

tez e a clareza, opõe-se deliberadamente ao discurso

literá-

rio, à procura estética, à estilização, à beleza. Quando fala de Cleo e Daniel, em Sem tesão não

tem

solução (p.117-118),

refere-se a antiliteratura e define a forma que ele usa

como

“suja”. Estas idéias fundamentam a proximidade com o discurso jornalístico, imediato, espontâneo, popular, etc.

A função da autobiografia, derradeiramente, é dar, além de testemunho do autor e veracidade aos fatos

narrados,

provas de que ele é aquílo mesmo que prega: o aqui e agora da utopia.

Assim, pode-se adiantar que tanto Freire quanto escritor uruguaio De Las Carreras aproximam aspectos

o

biográ-

ficos a utópicos. Também é interessante para a teoria dos gê-

120

neros literários, já que a utopia define-se como uma das formas da ficção ensaística e/ou narrativa.

Quando contaminado com o biográfico, o gênero move num âmbito fronteiriço: há uma parte da ficção que aproxima da realidade e ao mesmo tempo parte dela -a própria vida do autor-, se mundo fictício -não existente.

projeta

da e

se se

compreensão ingressa

num

121

122

123

6. As ressonâncias

124

6.1- O uso do discurso jornalístico

Ambos os autores escolheram a crônica como gênero, mas Freire aproxima-se do ensaio. Optaram por um gênero

cuja

temporalidade opõe-se à permanência aspirada por qualquer escritor -o desejo de perdurar no panteão literário. A

crônica

jornalística é o gênero do cotidiano. Enquadrando essa temporalidade dentro da problemática

estética

maior, os

grandes

temas do homem, pode-se apreciar o enfrentamento do cotidiano (os problemas do hoje, a rotina, o banal) com (os problemas

metafísicos, como

o

excepcional

Deus, morte). Por

Roberto Freire não está interessado nesses grandes

exemplo,

metafísicos; ele quer "erotizar o cotidiano"; é

problemas

mais

tante viver intensamente o hoje, aqui e agora. A

impor-

oposição

presente versus eternidade. Os “grandes temas” são parte

é das

obras dos autores: a organização social, a liberdade, o amor, a natureza humana. A diferença está em que -o Paraíso é aqui e agora. Nesse presente

são se

presentistas manifestam

os

temas metafísicos: o efêmero do desejo, a mudança da natureza das coisas. Ambos aceitam a morte, uma concepção do tempo diferente da cristã pois querem submergir-se no tempo –porque a energia se manifesta aí- e não afastar-se aspirar ao eterno. Não acreditam na

do

eternidade

temporal das

para

coisas,

mas na energia da Natureza ou em transformações permanentes.

125

Os autores escolhem gêneros apropriados para expor assuntos polêmicos e democratizantes e publicam suas obras em jornais e revistas. Contudo, desejam que sua produção inteletual fique para a posteridade pois, posteriormente, reúnem

o

material em livros. O fato de recolher Amor Libre em um livro prova que Roberto de las Carreras queria perpetuar dução. O mesmo fez Freire com suas entrevistas e jornalísticas, por exemplo em rabo

sua

pro-

publicações

Viva eu, viva tu, viva o

do tatú!

Roberto Freire é convencional quanto à divisão gênero e à estruturação do texto. Segue o curso

normal, pro-

põe um estilo transparente, simples, acessível, não co, que o vincula a certa vulgarização

acadêmi-

jornalística

querda. Não tem novidades nem rupturas formais

de

de

es-

notórias. Não

questiona a autoridade a outro nível que não seja o ideológico. É um escritor anarquista, mas não tem uma possa se vincular ao experimentalismo do

escritura

“happening”

música aleatória. Pelo contrário, ele transforma-se em

que

ou

auto-

ridade indiscutível. O único elemento anarquista em Freire o rechaço do estilo cuidado e a defesa de um

“estilo

da

é

sujo”,

vinculado à espontaneidade e que tem seu fundamento no tesão.

126

Em Roberto de las Carreras há mais elementos, como um efeito anarquista, por exemplo, na paródia do gênero nalístico, o que foi visto na análise de Amor

jor-

Libre. Também,

na auto-ironia: isso sim desautoriza o sujeito e remete novamente a uma liberdade do leitor. Beth Brait, referindo-se à ironia, diz que é necessário um trio: o locutor(A1), o receptor(A2) e um terceiro que é o alvo(A3). "No caso de um lóquio irônico há a coincidência entre A1 e

A2; no

soli-

caso

de

uma auto-ironia há a coincidência entre A1 e A3. Há

ainda

possibilidade de o receptor ser tomado como alvo, o

que

im-

plica a coincidência entre A2 e A3 ou, ainda, um caso de

so-

lilóquio auto-irônico em que coincidem

A1/A2/A3."(1995,p.62)

Pode considerar-se, quanto ao enfoque fico, que nenhum dos

dois

escreve

uma

elementos autobiográficos para ilustrar

autobiográ-

autobiografia. Usam suas

teses

políti-

cas, suas crônicas, seus ensaios e provar que eles são plos concretos da

sociedade

a

anarquista

que

exem-

pregam. Assim,

querem convencer o leitor de que a utopia é possível.

6.2- A marginalidade, o escândalo: o anarquista em ação

Fica constatado o fato de que os próprios escrito-

127

res são exemplos vivos daquilo que pregam: são

mutantes. En-

quanto Roberto de las Carreras diz-se missioneiro de

Kropot-

kin e profeta do amor livre, Roberto Freire, em entrevista

a

Dóris Fialcoff, declara sua prática anarquista:

"...Eu acreditei na utopia anarquista e passei a viver de forma anarquista. Embora a sociedade seja uma sociedade autoritária, minha vida, a relação com minha mulher, com meus filhos, com as pessoas, é de uma forma anarquista. Minha utopia está na prática." (Grifo nosso) (1996,p.6)

Freire afirma a necessidade de utopia do seu

pro-

jeto de sociedade libertária quando se mostra a si mesmo como prova de seu mundo futuro ou a existência

atual

de

“mutan-

tes”.

O que define uma utopia como tal é sua

inexistên-

cia, mas inexistência não quer dizer impossibilidade. A pia, tal como é entendida por Roberto de las Carreras

utoe

Ro-

berto Freire, é um futuro possível, do qual eles mesmos são a prova.

As idéias utópicas que, no decorrer do século XIX, dão sustento ao anarquismo, contêm as bases do

erotismo, bem

como o acirrado combate contra a sociedade patriarcal

e

seu

128

fundamento: a família e o matrimônio, a propriedade e a religião. São as mesmos propriedades discursivas que nas obras de Roberto de las

Carreras

e

encontramos

Roberto

Freire. No

primeiro, quase de forma imediata e crua; no segundo, já mais elaborados, lapidados.

Roberto Freire mostra qual é o caminho a

ser

guido pelos anarquistas somáticos: a marginalidade. A

se-

margi-

nalidade de Freire é uma estratégia voluntária e uma atitude política de resistência. Em entrevista a Mariana Kalil, o escritor brasileiro faz o seguinte depoimento:

"ZH -O senhor diz que as pessoas devem ser marginais, não entrar na engrenagem do sistema capitalista. Existe alguma outra maneira de dizer isso sem ser através de um livro vendido em livrarias? Freire -Vivendo. Conheço muitos marginais ao sistema, marginais criativos. A impressão que a gente tem vivendo na repressão familiar e escolar é a de que temos pouca criatividade, somos incapazes. Então, acabamos concordando com qualquer emprego. Se você fica na marginalidade, começa a produzir coisas das quais se sustenta. Eu, por exemplo, vivo dos meus direitos autorais. Sinto um prazer extraordinário de poder escrever e conseguir pagar minha comida, meu teto, ajudar meus filhos com aquilo que faço com amor." (Grifo nosso) (1996,p.4)

Semelhante caminho foi o seguido

por

Roberto

de

las Carreras. Sua postura de dândi exigia-lhe essa atitude. O dandismo é marginal. De uma forma ou outra, ambos estão marginalizados no sistema. Roberto de

las

escritores Carreras

é

129

“reduzido" por uma crítica que tira completamente o valor suas obras, as quais contêm as principais idéias que sustenta. Para a crítica, sua obra não vale

de

anarquistas nada

o consideram um bastardo ressentido, um fantoche

porque

escandaloso

sem seriedade, um alienado, um imoral.

Roberto Freire é simplesmente ignorado. Para a mídia, sua obra é inexistente. Não se encontra uma



sobre ela. Esporadicamente

entrevistas

aparecem

publicadas

crítica

repetitivas, que contam sua sofrida infância, a atividade na clandestinidade, sua decisão de combater a psicanálise, a descoberta da Soma através dos fundamentos de Reich e do

mo-

vimento da antipsiquiatria de Cooper. Praticamente é mostrado como um espécimen curioso, dando-se ênfase, também neste

ca-

so, à vida do escritor e esquecendo-se a obra

que

realmente interessa. Este

trabalho

aborda

que quatro

é

o de

suas

obras, nelas o escritor desenvolve suas idéias anarquistas.

A marginalidade pode também ser o

escândalo

praxis revolucionária, já que a marginalidade é

como

conseqüência

de atitudes que se chocam com o sistema vigente. O escândalo, o ridículo, em nível discursivo, é dizer aquilo

que

não

deve ou não se pode dizer. Foi visto que as instituições

se so-

ciais não aceitam a discusão de temas sexuais ou que questio-

130

nem a vigência, por exemplo, do matrimônio, da

monogamia

de outra forma de relacionamento, como o fazem

os

ou

anarquis-

tas. Quando surge a polêmica, de forma aberta, os autores são considerados impertinentes e inadequados, ou como diz

Freire

“comuna e tarado”.

6.3- As idéias de tranformação sexual

As idéias metaforizadas em Roberto de

las

Carre-

ras, por exemplo “...en el laboratorio de Proteo...” (1967,p. 85), encontram-se expostas

em

Roberto

Freire, por

exemplo

“...na Natureza...” (1987,p.45). Ambos elaboram propostas de transformação sexual através da conscientização da politicidade do sexo. A anarquia é aplicada por Roberto de las Carreras na transformação do marido em amante. Dá-se pela morte, o suicídio, do macho para o renascimento purificado –o

amante.

A anarquia é aplicada por Roberto Freire através

terapia

da

da Soma, para a tomada de consciência e a liberação da afetividade, do amor, contra a neurose

provocada

autoritárias. A Soma transforma o homem em

pelas

relações

mutante. Os

pro-

dutos dos dois escritores são iguais, com diferente denominação: o amante e o mutante.

Freire não apresenta com

a

mesma

intensidade

e

131

profundidade o tema da mutação do macho como de las Carreras. Para Freire, o tema em questão é tratado como se fosse a beração do autoritarismo -a posse, os ciúmes- que

li-

é

imposto

ao indivíduo pelo sistema do capitalismo burguês. Em

Roberto

de las Carreras, o

processo

é

visceral, somático, agônico,

muito mais intenso. Ele vê a masculinidade articulada profundamente com o autoritarismo. O macho original é o símbolo

de

uma força ancestral, primitiva e

um

básica

fundamento psico-biológico, mas não

uma

ao

varão. Como

formação

histórica

determinada economicamente, uma aderência que pode ser arrancada por uma terapia anarquista. Para o rancar o autoritarismo do macho

é

autor

uruguaio, ar-

assassiná-lo, suicidá-lo.

Justamente, o fato de ter que "matar o

macho

interior”

faz

com que o discurso de Roberto de las Carreras destrua-se, desestruture-se. O leitor nunca sabe quando fala sério ou quando é brincadeira. Roberto Freire, pelo

contrário, sempre

até nos vexames. Seu discurso é estruturador do

é

dogma

sério, anar-

quista, construidor de uma sociedade libertária utópica e ele acredita que essa é a verdade, embora diga que não há

verda-

des absolutas.

Há elementos suficientes, de acordo com os antece-

132

dentes, para afirmar que o discurso de Roberto de las

Carre-

ras pode ser enquadrado na novíssima corrente da neo-masculinidade. Uruguay Cortazzo, em trabalho inédito, de logo a Sueño de oriente e

Psalmo

a

Venus

1996, Pró-

Cavalieri, sobre

Amor Libre diz que:

“no creo que pueda demostrarse fácilmente que esta es una simple obra representativa de una época ya superada. Creo más bien que estamos frente a un producto bastante atípico y original: una auténtica creación literaria que se adelantó, en mucho, a planteos que recién han empezado a surgir en los años 80 en Estados Unidos y que se conoce como el movimiento de la nueva masculinidad.” (Grifo nosso)

Roberto Freire não é neomasculino. Fixa-se na etapa dos anos setenta, do questionamento da virilidade ta, do machão, do durão, do reconhecimento

dos

machis-

direitos

da

mulher, mas não procura novos fundamentos para a masculinidade, apenas trata o assunto como uma mutação ou uma cultural:

aderência

"...Os valores viris de Ocidente despencaram (...) os homens jovens não estavam interessados nos valores tradicionais do macho. Aos poucos passaram não apenas a rejeitar a guerra, mas o gosto pela posse, pelo consumismo, pela desvastação da Natureza(...)os jovens voltavam as costas para os estereótipos da virilidade e adotavam valores mais femininos, as próprias mulheres abandonavam uma parte de suas atitudes milenares e se apossavam de setores que outrora eram privilégio dos homens (...) Superada essa contradição, os estereótipos do homem viril e da mulher feminina foram pulverizados. Não há mais modelo obrigatório, mas uma infinidade de modelos possíveis. Cada um segue sua

133

particularidade e realiza a própria dosagem de masculinidade e feminilidade. A semelhança entre os sexos é uma inovação tal que podemos, legitimamente, encarála em termos de mutação." (Grifo nosso) (1995,p.61-62)

6.4- A ficcionalidade da sociedade

Ambos têm consciência da possibilidade de que cada pessoa invente seu papel. Roberto Freire concebe as

relações

humanas como um "faz de contas", uma brincadeira de

adultos,

ou seja, uma convenção, como propõe em Sem tesão:

"E sou também como as crianças que não entendem o mundo dos adultos e brincam de ser adultos nos faz-de-contas dos seus jogos infantis. Eu não emtendo nem explico a vida, mas brinco de vivê-la nos faz-de-contas dos meus jogos adultos que não visam decifrar esfinge alguma, mas sim curtir o mais possível com as caras delas.” (Grifo nosso) (1987,p.24)

Ou como no seguinte comentário de Ame e dê vexame, quando se refere à ludicidade da natureza do homem: "Ludicidade significa a capacidade de brincar e de jogar. Quem ama precisa saber brincar e jogar, para não cair nos jogos e brinquedos autoritários das pessoas que não são lúdicas e devem ganhar sempre, nem que para isso tenham de mudar as regras do jogo, roubar o jogo, destruir o jogo ou os próprios parceiros." (Grifo nosso) (1990,p.74)

134

Agindo assim, o amante libertário poderia derrotar a neurose provocada pelo autoritarismo da sociedade

burguesa

cujo jogo é:

"...um jogo medíocre, doente, neurótico, nivelando as pessoas por baixo e boicotando a dinâmica e a liberdade no amor." (Grifo nosso) (Ibid,p.106)

Roberto de las Carreras declarava-se "homem fantasia", no Poema Sentimental. Ele e Roberto Freire concebem sua interação social como um exercício de imaginação, de

sentido

sobre uma realidade, o que é no fundo incompreensível. Freire assim explica:

"Vivo emaranhado deliciosamente nas relatividades absolutas, intensas, apaixonadas e vãs de sonhos, delírios, alucinações e deslumbramentos, que confundo com os aspectos surreais, fantásticos, mágicos e encantados da realidade." (Grifo nosso) (1987,p.24)

Para Roberto de las Carreras a realidade era medíocre e prosaica, e implica um afastamento das doutrinas deterministas. Isto, ao mesmo tempo, é o fundamento do conceito de mutação. A possibilidade de escolher a melhor ficção nós mesmos.

para

135

6.5- A concepção do amor. Sua temporalidade e sua finitude

Os dois denunciam a ideologia

do

"amor

eterno",

fundamento do matrimônio indissolúvel, e defendem a idéia

de

que o amor deve ser vivido com a consciência plena da finitude. O

amor

não

pode

ser

controlado, legalizado, nem

ser

transformado em um bem eterno.

Da obra de Roberto de las Carreras podem

extrair-

se a seguinte porção de texto:

"El Amor muere joven.(...) Dicen los griegos, esos maestros reconocidos en Belleza, en Filosofía, en Arte, y en Amor, que pretender ser amado exclusivamente es uma locura de mortales. Sería curioso que el Amor(...) se encontrara prisionero en los hogares montevideanos junto a la cocina y el retrete!" (Grifo nosso) (1967,p.67-68)

Mais adiante, encontra-se o seguinte:

"¿Dónde está esa Naturaleza disciplinada, matemática, que distribuye a los seres por parejas eternas, y cuyas potencias sordas de atracción se detienen una vez que los ha juntado? La Naturaleza es variable, caprichosa, mujer! El amor vive de deseos y muere de saciedad, dice la gran sentencia.(...) Arrancados de la educación cristiana nos acostumbraremos a mirar en el amor una cosa fugaz, como todo lo que vive." (Grifo nosso) (Ibid,p.77-78)

136

Roberto Freire, em Sem tesão não há solução, diz:

“A grande decepção dos amantes que buscam a felicidade (estado de prazer permanente, institucionalizado) através do amor é produzida pela sua incapacidade em aceitar que, como todas as coisas vivas, o amor também tem um começo, um meio e um fim. Nem seu tempo, nem seu espaço e nem seu tesão podem ser determinados e controlados por razão da vontade e pela força de poder." (Grifo nosso) (1987,p.56)

E em Ame e dê vexame, afirma:

"O amor não pode ser uma condenação perpétua, embora eu não descarte a possibilidade e o direito de que algumas pessoas o vivam assim, não como condenação, mas sendo esse tipo de amor um fato ecológico possível. O que não consigo entender é o amor exclusivo e perpétuo ser uma vantagem em relação às outras formas possíveis de amor." (Grifo nosso) (1990,p.73)

Numa entrevista, o escritor brasileiro, declara:

"Preciso de pessoas que não me cobrem fidelidade, nem continuidade, nem exclusividade. Gosto do namoro, do encontro, que propicia sexualidade original, lúdica, alegre, descartável. Assim, a gente vive em permanente estado de descoberta, surpresa e encantamento." (Grifo nosso) (Ibid,p.91)

6.6- A angústia do amante anarquista

Do item anterior, extrai-se que as

utopias

apre-

137

sentadas pelos autores têm um forte conteúdo anti-eudemônico. Há uma renúncia ao mito da felicidade.

Em Roberto de las Carreras, há uma angústia:

"Optemos: la mujer inerte, la montevideana sin alma, sin cuerpo, sin virtud siquiera dentro del mismo punto de vista convencional; sin abnegación, que nada hace vibrar, que presencia, impasible, instalada en um palco, los más grandes sollozos que atraviesan la historia afectiva de la humanidad y que revientan en la música; que mira sin comprender todos los torcedores, todas las angustias dramáticas del corazón estrujado (...) Nossotros, los que hemos sido cien veces crucificados, martirizados, destrozados, no vacilamos. No damos nuestra quemante angustia por la plétora de satisfacción de los burgueses..." (Grifo nosso) (1967,p.78)

O conceito de angústia está politizado opõe a “satisfacción

burguesa”. É, portanto, a

porque

se

angústia

do

amante anarquista. Adianta-se a Freire no sentido de rejeitar a idéia de felicidade eterna e considerar que apenas



mo-

mentos de intensa alegria.

Em Roberto Freire o conceito está

mais

elaborado

visto que a idéia de "felicidade" também é uma ideologia. Então propõe sua substituição pela alegria, que é, como o amor, um estado instável e cíclico. Em Sem tesão, o escritor afirma o seguinte:

138

"Creio já ter conseguido expor todas as razões que me levam a concluir ser a felicidade algo impossível de se atingir (...) não se trata de prazer saudável e libertário(...) a felicidade é uma coisa impossível de ser alcançada (...) Penso mesmo que sua ideologia debe ser fortemente combatida tanto como estratégia política ou como delírio religioso e patológico(...) Afirmo que o sonho capitalista burguês da felicidade deve ser combatido de forma constante e efetiva..." (Grifo nosso) (1987,p.56-57)

Então, o escritor oferece sua fórmula

substituti-

va:

"...buscamos simples e naturalmente alegria. Alegria, coisa tão incerta como o vento, que tem dia que vem, dia que não vem(...)alegria entendida como a expressão gostosa, saborosa, orgástica e emcantada do funcionamento satisfatório e equilibrado de nossa energia vital no plano físico, emocional, psicológico, afetivo, sensual, ético, ideológico e espiritual." (Grifo nosso) (Ibid,p.58-59)

6.7- O erotismo como modelo rítmico

Os dois defendem a euforia e atacam as

filosofias

pessimistas. Concebem o erotismo segundo o modelo rítmico, um processo dinâmico igual aos ciclos da natureza, a

permanente

dinâmica do desejo. Roberto de las Carreras fala sobre:

"¿La veleidad inquieta del deseo no esconde, tal

139

vez, la ley de renovación de la Naturaleza? Nada se detiene. Todo bulle y se transforma en el laboratorio de Proteo de sus laberínticas elaboraciones(...)Nuevos moldes, nuevas armonías, nuevos emtrelazamientos, nuevas formas, busca con turbulento afán el genio afiebrado de la Naturaleza..." (Grifo nosso) (1967,p.85)

Roberto Freire, em Sem Tesão, refere-se a: "Isto quer dizer que na Natureza, fazendo uma comparação com a criação musical, a vida se organiza num modelo rítmico mais ou menos rígido de tempo e de espaço, mas é todo livre o seu tesão, que varia segundo as circunstâncias produzidas por variáveis para nós imperceptíveis e que geram sempre novas e originais melodias e harmonias." (Grifo nosso) (1987,p.45)

Em Utopia e Paixão, o escritor brasileiro sustenta que as novas experiências são sinônimo de

liberdade, e

isto

implica segurança, risco, aventura. Comprendendo a temporalidade cíclica da Natureza há possibilidade de realizar a

uto-

pia e viver com prazer:

"Experimentar situações novas de vida ou viver experiências socialmente inovadoras envolve risco e conseqüentemente traz incertezas,inseguranças(...) Risco é liberdade. É na busca da segurança que se estabelece o poder. Quem gosta do risco e se aventura, aceita a insegurança, porque tem sua própria utopia, vive de satisfazer, a qualquer preço, sua necessidade de prazer." (Grifo nosso) (1991,p.78-79)

140

6.8- A originalidade única

Os dois escritores têm uma visão estética da existência e essa coincidência é surprendente. Eles

perseguem

o

mesmo objetivo: o desenvolvimento da originalidade específica do ser humano. Roberto de las Carreras traça um paralelo

en-

tre originalidade erótica e originalidade artística:

"La originalidad, me has dicho, no es outra cosa que un exitante de nuestra sensibilidad, un despertamiento producido por lo nuevo... En Amor se necesita originalidad, como en Arte." (Grifo nosso) (1967,p.114-115)

Roberto Freire expõe que cada um tem

um

referen-

cial e que esse parâmetro lhe permite,

"...saber se uma coisa que sinto ou observo está viva no limite máximo possível de seus potenciais, se ela aplica a totalidade da energia vital disponível naquilo que sabe ser sua originalidade única." (Grifo nosso) (1987,p.66)

Ou mais adiante quando diz:

"Se o conceito de beleza não estiver forte e diretamente ligado à necessidade biológica e ecológica do homem para viver a sua originalidade única, corre-se sempre risco de a beleza passar a ser um valor produzido por um processo de massificação

141

autoritária sobre o que deva ser a alegria humana." (Grifo nosso) (Ibid,p.69)

Também em Ame e dê vexame, encontra-se algo

seme-

lhante:

“Mas o que é a criatividade no mente poder dispor de todos os humanos liberados, estar o mais de nossa originalidade única e gulados, quer dizer,livres." (Grifo nosso) (1990,p.74)

amor? É simplesnossos potenciais próximo possível vivermos autore-

A originalidade, para Roberto Freire, é a diferença, é a liberdade:

"Cada um de nós é um ser original e único. Nunca houve e nem haverá jamais um ser igual a outro (...) Mas o que importa é a diferença que resta: o original e único em cada um (...) Então, ser livre, é poder viver ampla e irrestritamente as próprias originalidades únicas, as nossas diferenças." (Grifo nosso) (1991,p.37)

142

143

144

7. Conclusão

145

O presente trabalho, procurou analisar o anarquista-erótico e utópico dos escritores Carreras e Roberto

Freire, utilizando

discurso

Roberto

alguns

de

las

conceitos

da

Análise do Discurso francesa, combinados com outros da Teoria da Literatura. No caso de Roberto de las Carreras, o dandismo e o Modernismo Hispano-americano necessariamente foram

abor-

dados, para uma melhor compreensão de suas propostas e de sua postura estética.

Um grupo de críticos e jornalistas resgatado obras inéditas de Roberto de las

uruguaios

têm

Carreras, demons-

trando grande interesse e colocando o escritor como figura de destaque da chamada Geração do 900. Opõem-se, desta

forma, à

crítica tradicional, ou ao cânon zumfeldiano –como se intitulou no presente trabalho.

O estudo das porções maiores

de

texto, extraidas

do corpus, possibilitou constatar simetrias e assimetrias (ou ressonâncias) nos discursos de Roberto de las Carreras e berto Freire. De maneira geral, pode-se dizer que, ao nar as porções para ver as propriedades

do

Ro-

exami-

discurso, enqua-

drando-as num discurso anarquista, erótico, utópico e

dândi,

acessou-se elementos interdiscursivos que normalmente em tras formações discursivas, situam-se no âmbito do

ou-

não-dito,

146

ou seja, daquilo que não pode nem deve ser

dito. Eles

estão

explicitamente declarados, numa atitude extremamente polêmica e contestadora dos valores vigentes na sociedade.

O balanço das convergências e divergências leva

a

algumas conclusões: a)Roberto de las Carreras é um antecedente de Roberto Freire. Porém, as condições históricas de produção são diferentes

em

ambos os autores conforme foi exposto. Trata-se de um caso de analogia entre dois autores sem influência direta, pois Freire desconhece o trabalho de Roberto de las Carreras.

Conforme foi visto anteriormente, há entre o discurso de um e de outro. Os

escritores

sexualidade desde o ponto de vista político poderes revolucionários –a

ressonâncias

liberação

ou

Eles propõem mudanças nos padrões morais e

e

enfocam

lhe

a

atribuem

liberdade

social.

sociais

vigentes

através da politicidade do sexo.

Os autores estudados propõem uma estética que rompe com o conceito institucionalizado de sexualidade e erotismo e o vinculam ao cotidiano. Em ambos autores, o Eros vincula-se ao conceito de beleza e à procura da expressão artística e da criatividade individual; sai do

âmbito

sexual

como

147

atividade psico-física necessária à preservação da espécie ou do arcabouço social e transforma-se em criação artística.

Roberto de las Carreras combina paródia, ironia e humor para desestruturar o discurso cristalizado pelas instituições. Freire serve-se do discurso para estruturar o

dogma

anarquista. O vexame, o ridículo, no fundo é um elemento

sé-

rio que permite a liberação das repressões impostas pelo

au-

toritarismo. Vem a ser uma arma de luta contra as

repressões

e a neurose provocados pelo autoritarismo da sociedade

capi-

talista e burguesa.

De las Carreras propõe um mundo novo sob a estética do dandismo, que vai desde a forma de vestir, atuar, até a forma de escrever. Um mundo onde a beleza, o

bonito, a

per-

feição literária está presente. Freire também propõe um mundo novo, ecológico e estético, onde tesão e beleza articulam-se. A beleza do mundo percebe-se como a expansão livre do O anti-estético é a repressão do tesão. Mas, não se

tesão. preocupa

com a perfeição literária, pelo contrário, ele manifesta

que

quer um estilo "sujo",espontâneo,imediato e vulgarizante; b)o discurso dos escritores estudados situa-se no âmbito

da-

quilo que não deveria ser dito, não estão assujeitados, e esta possibilidade de interpretação fundamenta-se na observação

148

do ato da criação artística: eles são o produto de seus pismos. Roberto de las Carreras denomina-se constrói e vive a utopia de

sua

homem

uto-

fantasia,

personagem. Roberto

Freire

afirma a necessidade da utopia quando se mostra ele mesmo como prova de seu mundo ou a existência

atual

de

“mutantes”.

Freire quer a utopia anarquista já, a erotização do cotidiano. O que define uma utopia como tal é sua inexistência, mas inexistência não quer

dizer

impossibilidade. A

utopia, tal

como é entendida por Roberto de las Carreras e Roberto re, é um futuro possível, do qual eles mesmos

são

Daqui pode extrair-se uma segunda afirmação: a

Frei-

a

prova.

utopia

anar-

quista está também no âmbito daquilo que não pode ser dito; c)a relação entre os escritores pode estar apoiada numa

tra-

dição latino-americana, do contrário são dois escritores exóticos que se fundamentam em fontes exclusivamente internacionais. Daqui deriva uma segunda formulação: deve seqüência literária em América Latina

vinculada

existir à

uma

corrente

anarquista, deve haver outros autores nesta linha e esse campo ainda não foi adequadamente explorado; d)se esta tradição não tem sido de estudar o vínculo

entre

considerada, há

necessidade

sexo-anarquismo-literatura, pois

existe a possibilidade da existência de uma seqüência discursiva literária que não tem sido bem atendida pela crítica, já que o discurso crítico latino-americano é fortemente

conser-

149

vador no que se refere à sexualidade e

o

pode apreciar no caso de Roberto de las

erotismo, como Carreras

e

se

Roberto

Freire: o primeiro, deslocado pelo panteão literário, e o segundo silenciado e ignorado pela mídia e a crítica.

Os vínculos entre erotismo e política são dos por outros autores como Otávio Paz

e

Fernando

abordaGabeira,

por citar dois exemplos imediatos; e)indiretamente, o trabalho prova que existe uma vínculo tre a corrente do Modernismo Hispano-americano e o

en-

Anarquis-

mo, o que obriga a revisar e ver de forma diferente este lacionamento e a redimir o Modernismo como

um

movimento

rede

zonas ou grupos altamente politizados. O Modernismo traduz ao plano da Teoria Literária o princípio anarquista da arte vre, tal como afirma o poeta

Ruben

Darío, quando

refuta

lia

idéia de escrever um manifesto:

"Porque proclamando, como proclamo, una estética acrática, la imposición de un modelo o de um código implicaría una contradición." (Grifo nosso) (1989,p.48)

f)há uma necessidade urgente de estudo comparativo com as outras literaturas nacionais, principalmente latino-americanas, para comprovar se existe um vínculo e, se existe, como se si-

150

tua perante as tradições mais visíveis e dominantes como, por exemplo, a procura da identidade e de uma nova civilização: o americanismo.

Através da análise e das conclusões procura-se uma compreensão

maior

da

apresentadas,

natureza

anarquista-erótico de Roberto de las Carreras

do

Freire, como a possibilidade

de

escapar

e

das

discurso

de

Roberto

determinações

ideológicas de sua época, criando ficções de contúdo político que se transformam em modelos que regem suas condutas e práticas cotidianas. Ambos os discursos separam-se da realidade, projetando-se no futuro e voltam a ela para interceptá-la com a própria experiência dos autores. A ficção

utópica

distan-

cia-se da realidade presente para, depois, encontrá-la e produzir transformações. Isto demonstra que a ser oposição à realidade, está

numa

ficção, longe

relação

dialética

de com

ela: permite uma oposição para depois reinserir-se como uma nova força configuradora.

Graças à capacidade de imaginação possível a harmonia consigo mesmo e com

do

seus

homem

será

semelhantes. O

olhar fictício e utópico da realidade desvela um mundo dentro do mundo no qual o homem habita, a presença dentro do homem que é.

de

outro

homem

151

152

8. Notas 1. ORLANDI (1988,p.19-20), sobre parafrasagem e polissemia diz:“Da observação da linguagem em seu contexto, e em termos bastante gerais, podemos dizer que a produção do discurso se faz na articulação de dois grandes processos, que seriam o fundamento da linguagem: o processo parafrástico e o processo polissêmico. O processo parafrástico é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas (matriz da linguagem). O processo polissêmico é o responsável pelo fato de que são sempre possíveis sentidos diferentes, múltiplos (fonte da linguagem).”(Grifo nosso) No mesmo sentido, no artigo Para quem é o Discurso Pedagó-gico (1987,p.27), estabelece que: ”...a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes processos: o pa-rafrás-tico e o polissêmico.Isto é, de um lado, há um retorno cons-tante a um mesmo dizer sedimentado -a paráfrasee, de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento(...) Há um conflito entre o que é garantido e o que tem de se garan-tir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o mesmo, o garantido, o sedimentado. Essa é a tensão básica do discurso, tensão entre o texto e o

153

contexto histórico-social: o conflito entre o "mesmo" e o “diferente"(Orlandi 1978), entre a paráfrase e a polissemia.”(Grifo nosso) 2. Antonio GARCÍA BERRO e Javier HUERTA CALVO (1992,p.222), sobre os gêneros literários, o sistema e história, manifestam: “Como es evidente, estamos en las fronteras que borrosamente separan la especulación racional de la ficción imaginativa. En este punto ocupan también un lugar singular las utopías o tratados utópicos, gênero que nace en el siglo XVI con la genial creación creación de Tomás Moro y que después ha tenido una singular fortuna en casi todas las literaturas.”(Grifo nosso) 3. Marx e Engels, a partir do Manifesto Comunista, desatam uma polêmica ao aplicar o termo utópico ao socialismo que, conforme BUBER (1995), em Caminos de utopía, “apela a la razón, a la justicia y a la voluntad del hombre para volver a su lugar a la sociedad humana desquiciada”, em oposição ao socialismo científico que eles pregam. O termo utopia sofre evidente depreciação. BUBER (Ibid,p.20) assinala que o termo utópico somente se aplica ao socialismo voluntarista que se opõe ao socialismo científico: “Si considera utópico todo socialismo voluntarista. Lo cual no significa en modo alguno que esté exento de utopía el socialismo que con él se enfrenta y que podría calificarse de necesarista porque declara que lo único que pide es que se ejecute lo necesario para la evolución. Evidentemente, los elementos utópicos que contiene son de otra índole y afectan a otro orden de ideas”.(Grifo nosso) Embora o anarquismo é considerado utópico, há autores, como Daniel GUÉRIN (1967,p.49), que se opõem a esta afirmação. Em El Anarquismo, sob o título de El Anarquismo no es utópico, manifesta: “Por proclamarse constructivo, el anarquismo rechaza ante todo la acusación de utópico.Recurre al método histórico para tratar de probar que la sociedad futura no es invención suya, sino, simplemente, producto del trabajo subterráneo del pasado.”(Grifo nosso) Freire, embora anarquista, não rechaça o termo utopia, pelo contrário, o aceita como positivo e se inclui como utopista. 4.Os críticos da denominada “Geração de 45”, posteriores a Zum Felde, e para este trabalho foram considerados os textos de Emir Rodriguez Monegal, Angel Rama, Arturo Sergio Visca, que se dedicaram a repetir e complementar a crítica de

154

Alberto Zum Felde sobre Roberto de las Carreras. Também são considerados os textos de Carlos Real de Azúa, onde critica o movimento modernista uruguaio e latino-americano. 5.MASSAUD MOISES(1995,p.175-77) considera o ensaio “um espécime literário de contorno indefinível.” Ele diz que é “impossível estabelecer com rigorosa precisão os limites do ensaio(...) pertence ao gênero da prosa, na vertente didática(...)contém a discussão livre, pessoal, de um assunto qualquer(...)o ensaio oferece antes de tudo uma sensação de beleza, posto que beleza da forma: o ensaísta é por definição o bom escritor.” ANGÉLICA SOARES(1993,p.65-66) manifesta que “o ensaio se coloca como forma fronteiriça, sendo improdutivo, do ponto de vista teórico-crítico, querer marcar os seus limites(...)Para o ensaio, não há um tema predominante: vai desde a impressão causada no artista por sua própria personalidade ou pela de outrem, até a apreciação ou o julgamento de diferentes realizações humanas, e pode também se limitar à descrição de fatos.” Quanto à crônica, MASSAUD MOISÉS(1995,p.131-133) comenta que o vocábulo “mudou de sentido ao longo dos séculos”. No início referia-se a uma série de acontecimentos, conforme uma seqüência linear de tempo, mas não analisava as causas e não havia qualquer tipo de interpretação. Modernamente, o vocábulo se vincula a textos que “ostentam, agora, estrita personalidade literária(...) A crônica de feição moderna, via de regra publicada em jornal ou revista e muitas vezes reunida em volume, concentra-se num acontecimento diário que tenha chamado a atenção do escritor(...) Na verdade, classifica-se como expressão literária híbrida, ou múltipla, de vez que pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista, invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo, em torno de personagens reais e/ou imaginárias(...)Modalidade literária sujeita ao transitório e à leveza do jornalismo, a crônica sobrevive quando logra desentranhar o perene da sucessão anódina de acontecimentos diários, e graças ao recursos da linguagem do prosador.” JORGE DE SÁ(1992,p.10-11) fala de “um gênero jornalístico” referindo-se à crônica, aponta “a sua precariedade, esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes de que acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal(...) Nesse con-

155

texto, a crônica também assume essa transitoriedade(...) Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse intante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura também.” 6. Há vários autores, entre eles André RESZLER (1973), que discutem as diferentes idéias e tendências dos anarquistas sobre a arte, desde as teorias do anarquismo clássico até as formas artísticas contemporâneas. Algumas destas formas podem ser catalogadas como anarquistas, por exemplo os “happenings", o "Living Theatre” de Nova Iorque, a música aleatória e as manifestações da chamada "arte efêmera”. Happening é uma forma de experiência coletiva, de participação efetiva do espectador. Há um plano de ação inicial, um esquema, como na música aleatória, que metamorfoseia de uma apresentação para outra. O Living Theatre, ou teatro aleatório, também é uma forma de criação coletiva, onde atores e espectadores são os coautores do drama. Procura-se a revolução pela arte, a ação política direta e o anarquismo como experiência vivida. O fim que persegue é destruir o princípio da autoridade, seja do Estado ou da família. RESZLER (Ibid,p.115) considera que: "mediante sus creaciones colectivas, los animadores del Living tratan de recrear la unidad orgánica del cuerpo social, romper el armazón del individualismo burgués, despertando en el hombre sentimientos de amor y fraternidad”. Manifesta (Ibid,p.132) que: “el arte sustituye a la política. Y el hombre mismo se convierte en obra de arte(...)La vida es teatro(...)El teatro -y la política- no es sino energía pura, instinto, anarquismo.”(Grifo nosso) Com a técnica aleatória a obra musical não tem uma partitura acabada. Há apenas um projeto que permitirá um diálogo entre o compositor e o músico -que neste caso é qualquer um do povo. O intérprete determina sua estrutura e sua execução e a obra acaba tendo um número infinito de execuções. O crítico sustenta que a estética anarquista atual é uma estética puramente artística cuja base está na ideologia anarquista do século XIX. RESZLER (Ibid,p.136) conclui que a estética anarquista "es el guardián del espíritu de ruptu-

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ra. Y puesto que tiene la mirada fija en el porvenir -la utopia- interpreta tal vez mejor la aspiración del artista de hoy a la libre expresión de su fe de herético”(Grifo nosso) 7. Em 1968, Fernando AINSA, publica um artigo na revista Capítulo Oriental, número 19, "La narración y el teatro en los años veinte", sobre o escritor Magariños Solsona. Este, em várias novelas apresenta casos de poligamia entre os personagens como forma de rebeldia contra os valores sociais. Em Las hermanas Flammari (1893), Valmar (1896) e Pasar (1920), critica, de forma burlesca e feroz a sociedade montevideana de fim de século XIX. A novela de 1920, retoma o tema do amor livre. Este raro dado sobre o tema das transformações sexuais, não é vinculado por Ainsa com Roberto de las Carreras. 8. Recentemente, em junho de 1997, Carlos Maria DOMÍNGUEZ, lançou El Bastardo, onde conta a polêmica história de Clara García de Zúñiga -mãe de Roberto de las Carreras. Aprofunda e documenta essa história, de forma minuciosa. Este romance biográfico tem a biografia integral do escritor uruguaio e a descrição de sua época.Para a reconstrução do ambiente do 900 montevideano, utilizou os textos sobre este período dos chamados "críticos del 45". O questionamento que Domínguez faz à visão destes críticos confirma a crítica adiantada por Uruguay CORTAZZO em conferências -Roberto de las Carreras: los futuros del macho (1994), Suicidio y trasmutación del falo (1995). 9. Referindo-se a Roberto, ZUM FELDE (1921,p.49) anota: "Detiénense los transeuntes a observarle, y la vidriera del "Café Moka", donde suele dictar sus páginas a un secretario, parece la vitrina donde se exhibe algún objeto curioso." 10. O texto encontra-se no Interview Político con Roberto de las Carreras, possivelmente publicado em 1903. Também pode consultar-se Rama, no Prólogo de Psalmo a Venus Cavalieri y otras prosas. 11. No presente trabalho, quando se fala de Modernismo, deve ser entendido como o Modernismo Hispano-americano. Homero CASTILLO, em Estudios críticos sobre el Modernismo, faz um apanhado da maioria dos autores que se ocuparam de caracterizar a essência do movimento, os escritores desta corrente. Extrai-se da citada obra conceitos como que o Modernismo não foi uma escola, senão a reunião de várias delas (Zum Felde);

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uma revolução literária e um conjunto de tendências de ordem formal e espiritual (Max Henriquez Ureña); a literatura dos sentidos, de atrativos sensuais, deslumbrante e cromática (Pedro Salinas); uma crise espiritual de múltiplas formas individuais e nacionais, contraditória, que conseguiu expressão universal no mundo hispânico(Federico de Onís). 12. CORTAZZO, numa conferência, Los futuros del macho (1994), comenta que: “…toda la poética de De Las Carreras se enmarca en una elaboradísima óptica paródica que aparece tempranamente constituida en un poema de 1894: ”Al Lector”. Allí confiesa en doce interminables instancias que no tiene nada original para decir y que el lector es un idiota por leerlo y doblemente idiota porque no comprenderá su ingeniosa burla de escribir un poema que concluye demostrando que la idea más genial que se le ocurre es que deje de escribir. Esta burla al lector, a sí mismo y a la institución literaria será su principal herramienta de crítica para atacar otras instituciones y es, además, una forma de situar su literatura en una zona fronteriza donde la ficción literaria se vuelve sobre sí misma autodestruyéndose en su pretensión de verosimilitud. Su anarquismo se manifiesta, así, en este efecto estético de recular humorísticamente cada vez que las actitudes y las ideas se vuelven demasiado graves y trascendentes y se corre el peligro de quedar aprisionados en una rigidez pétrea. La sonrisa irónica siempre está ahí, para desarticular la pretensión abusiva de verdades que pueden pretenderse absolutas.”(Grifo nosso) Em outro trabalho não publicado, Prólogo a Sueño de Orien-te e Psalmo a Venus Cavalieri (1996), sobre o poema de Ro-berto de las Carreras Al Lector, manifesta que: “…es una pa-rodia radical y cínica de la institución literaria que le va a permitir declararse, en otro poema, un “hombre fanta-sía”. Se contraponía obviamente al hombre realista, común, vulgar, burgués y uruguayo: el que vive el libreto seriado y anodino que le escribe la sociedad: el hombre ripio.”(Grifo nosso) 13. Os pensadores anarquistas foram traduzidos pela editora espanhola Sempere e circularam abundantemente em Uruguai. Carlos M. RAMA (1968,p.29) conta que em Montevidéu se editava uma grande variedade de obras operárias, e principalmente anarquistas: “Junto a las figuras de las letras, los propagandistas, los polemistas y los promotores de una frondosa prensa subversiva. Es sorprendente el número y variedad de las publicaciones obreristas, y especialmente anárquicas, que

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se han publicado en el Uruguay. Estos intelectuales, obreros politizados, militantes revolucionarios, son formidables lectores de impresos locales y extrangeros, porque no faltan en Montevideo los productos de las prensas ácratas de Barcelona, de Bologna o Ancona, de Buenos Aires,especialmente.” (Grifo nosso) 14. Alberto Zum Felde não participa da estratégia. Pelo contrário, na crítica de 1921, vê, claramente, a questão do anarquismo individualista e do dandismo, que está avaliada e entendida corretamente. Mister é lembrar que Zum Felde pertenceu ao círculo de Roberto e também foi um modernista. 15. RESZLER (1974,p.93) aborda o tema em questão afirmando que a arte anarquista estava vinculada às vanguardas simbolistas e pósimpressionistas, que traduziam esteticamente o anarquismo individualista de Godwin e Stirner e as leituras das teorias de Kropotkin, Malatesta e Grave, de caráter coletivista ou comunista. Lembra Jean Maitron que diz: "Se era simbolista en literatura y anarquista en política" 16. RESZLER (1974,p.101) comenta que: “este ensayo provocativo resume bastante bien el sentido del anarquismo de los medios artísticos de fin de siglo, y los límites de su compromiso. Saca también a la luz la incompatibilidad fundamental entre el anarquismo individualista del poeta y el anarquismo colectivista del militante”(Grifo nosso) 17. Inspirada em Max Stirner, e bem menos em Bakunin ou Kropotkin, a corrente individualista do Anarquismo, considera a pessoa, o indivíduo, como representante de tudo aquilo que é humano e autodeterminante, e o Estado um ente de opressão. HOROWITZ (1982,p. 53-54) encontra uma linha comum na disparidade de pensadores do anarquismo individualista, da qual extraem-se os seguintes comentários: “...adhirieron al comcepto de la propiedad privada, en la medida en que este comcepto sólo abarcaba el producto total del trabajo individual (...) La finalidad de la sociedad consiste en preservar la soberanía de todo indivíduo, sin excepción(…) El princípio de la individualidad requiere, para tener éxito, la igualdad absoluta de los sexos, la igualdad absoluta de las razas y la igualdad absoluta del trabajo(…) Toda invasión de los derechos naturales de la persona es injusta y constituye un símbolo de la tiranía de la mayoría(...) Toda definición de la libertad comienza y concluye con la libertad de la parte más débil de una nación.”

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18. Comenta LITVAK (1981,p.273), referindo-se ao anarquismo espanhol: “Los anarquistas declaran la necesidad de la libertad para la creación literaria, libertad tanto en el sentido ideológico como creativo(...) Sin embargo, a pesar de esta postura abierta, la estética literaria de los anarquistas es normativa, y en general, a pesar de la aproximación que hubo con los modernistas, hay una condena general del modernismo y de toda manifestación literaria que deje de lado la cuestión social y se dedique exclusiva o principalmente a un fin puramente estético(...) Adoptan los anarquistas la idea, común por entonces, de que la decadencia de la literatura se manifestaba por un predominio de la forma sobre el contenido de la obra.”(Grifo nosso) 19. BRANDÃO (1994,p.38) diz que assujeitamento ideológico ou interpelação ideológica "consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social" 20. Robert MOORE e Douglas GILLETTE (1993) sustentam que no fim do século vinte existe uma crise de identidade masculina sem precedentes. Apontam como uma das causas o desaparecimento do ritual que ajudaria o adolescente a efetuar a transição para a masculinidade adulta. Como conseqüência, a psicologia dominante é a do adolescente, de comportamentos prepotentes e violentos. Outra causa é a organização social e cultural do patriarcado que se traduz através de uma dominação opressora e abusiva com as mulheres. A corrente denominada "nova masculinidade" ou "neomasculinismo", onde se situam os autores, considera que o patriarcado não é a verdadeira expressão da masculinidade, porque esta não é prepotente. A masculinidade imatura, expressão da psicologia adolescente, procuraria não somente dominar as mulheres mas também os homens. Propõem, então, uma redefinição do que seria o poder masculino, uma adequada conexão com "as energias masculinas profundas e instintivas, com os potenciais da masculinidade matura"(1993,p.18). Segundo os autores, o homem necessita "mais poder masculino maturo”(Ibid,p.19). 21. Mas Georges MAY (1979,p.95) considera que isto é excepcional. Observa que há na autobiografia um tipo de deformação decorrente da ironia e do humor, como se o autor debochasse de sí mesmo e das situações embaraçosas as quais atravessou: “Pero en algunas ocasiones se llega, sin que sea fácil juzgar si se debe o no a su propia voluntad, a introducir en la pro-

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pia retórica de la narración otra clase de deformación que no forma parte de las condiciones genéricas de la autobiografía dado que no aparece sino en ciertos textos: se trata de la ironía o del humor, con los cuales el autobiógrafo se enfrenta a ciertas acciones, dichos y pensamientos del personaje que fue alguna vez.”(Grifo nosso) Roberto de las Carreras e Roberto Freire coincidem numa visão bastante irônica de si mesmos. Os dois são, então, exceções. 22. A ironia do dândi nunca é grosseria, mas um ato de ousadia e provocação. Critica a sociedade decrépita, burla das normas sociais e vinga-se através da ironia e da impertinência. Assim é a observação de HINTERHAÜSER (1980,p.74): “La ironía del dandy culmina, a su vez en impertinencia, pero ésta no llega nunca a degenerar en grosería, sino que sigue siendo un acto temerario y provocador de índole social-intelectual(...) tal reacción se produce dentro de los límites impuestos por la convención, ya que el dandy no puede prescindir de la sociedad: su vanidad (legítima) necesita el aplauso de aquélla; pues, hijo al fin de esa sociedad decrépita, carece de fuerzas para romper radicalmente con ella. Es cierto que se burla de las normas sociales, pero, al mismo tiempo las respeta. Atormentado por esta discrepancia, trata de vengarse mediante la ironía y la impertinencia.”(Grifo nosso) BRAIT (1994,p.15) afirma que a ironia pode provocar efeitos de sentidos, quebrando ou desmascarando o discurso tido como oficial: “...a ironia é supreendida como procedimento intertextual, interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um processo meta-referencialização, de estruturação do fragmentário e que, como organização de recursos significantes,pode provocar efeitos de sentido como a dessacralização do discurso oficial ou o desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros. Em outras palavras, a ironia será considerada como estratégia de linguagem que, participando da constituição do discurso como fato histórico e social, mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia, ainda que esta polifonia não signifique, necessariamente, a democratização dos valores veiculados ou criados.” (Grifo nosso) A autora (Ibid,p.16) considera que o riso, o humor, decorrentes da ironia, desnudam aspectos culturais, sociais e estéticos: “Como elemento estruturador de um texto cuja força reside na sua capacidade de fazer do riso uma conseqüência, o

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interdiscurso irônico posssibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem menos críticos.”(Grifo noso) 23. Não foi possível consultar esta obra, por não ter sido encontrada na Biblioteca Nacional de Montevidéu, nem em poder dos familiares de Roberto. 24. Conforme enuncia GÓMEZ-MARTÍNEZ (1981,p.48): “El subjetivismo es, según lo indicado, parte esencial del ensayo. Es esta motivación interior la que elige el tema y su aproximación a él; y como el ensayista expresa no sólo sus sentimentos, sino también el mismo proceso de adquirirlos, sus escritos poseen siempre un carácter de íntima autobiografía. El "yo" del autor se destaca en todas las páginas, como estandarte que anuncia una fuerte personalidad. Dentro de la individualidad peculiar de cada ensayista, las notas autobiográficas son frecuentes en todos los ensayos, con independencia del tema de estos.”(Grifo nosso)

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