Contos

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  • Words: 19,146
  • Pages: 54
2ª Edição Eletrônica TITO OLÍVIO Autor

Edição Eletrônica: L P Baçan Novembro de 2009 Direitos exclusivos para língua portuguesa: Copyright © 2009 do Autor Distribuição exclusiva através de BIBLIOTECA VIRTUAL DA AVLLB e PDFCOKE Autorizadas a reprodução e distribuição gratuita desde que sejam preservadas as características originais da obra. http://www.avllb.org

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SUMÁRIO

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O AUTOR A DESCONFIANÇA A ÍNDIA NANAÍ O ACIDENTE O NOVO LÁZARO AS BRUXAS A LENDA DO MOLICEIRO O EMPURRÃO O VALE ENCANTADO O SINISTRADO O ADIAMENTO

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TITO OLÍVIO

IDENTIFICAÇÃO Nome Idade Estado Nascimento Naturalidade

Tito Olívio Henriques 78 anos casado 23 – 03 - 1931 Freguesia de Vila Cova do Covelo concelho de Penalva do Castelo distrito de Viseu Morada Av. 5 de Outubro, 90 - 4º Dtº - 8000-076 FARO - PORTUGAL Home Page http://usuarios.tripod.es/titolivio

HABILITAÇÕES LITERÁRIAS Licenciatura em engenharia civil (1958) Licenciatura em sociologia (1981) CARREIRA PROFISSIONAL COMO ENGENHEIRO CIVIL Sector Privado Construções Técnicas, Ldª Júlio Cismeiro, Ldª Empresa de Cimentos Tejo, SARL ENGIL, Ldª CODAL, SA (Administrador) Profissão Liberal Sector Público Câmara Municipal de Portimão Câmara Municipal de Silves Serviços Municipalizados de Silves Escola Industrial e Comercial de Silves Escola Industrial e Comercial de Faro Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos (Director

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de

Serviços) Liceu Nacional de Faro ACTIVIDADES SOCIAIS ANTES DA REFORMA Boa-Esperança Atlético Club Portimonense Instituto D. Francisco Gomes (Casa dos Rapazes) Vicepresidente da Assembleia Geral do Cine-Clube de Faro Presidente do Sporting Club Farense Secretário da Comissão Distrital de Árbitros de Faro Presidiu à Comissão Administrativa do Sport Faro e Benfica Presidente da Assembleia Geral do Sport Faro e Benfica Presidente da Associação de Xadrez de Faro Secretário da Delegação de Faro da Cruz Vermelha Portuguesa Técnico-voluntário responsável pelas obras de restauro do Teatro Lethes Presidente do Rotary Club de Faro Presidente da Comissão Distrital dos Serviços à Comunidade do Distrito Rotário 196 Presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Faro Mesário da Santa Casa da Misericórdia de Faro Vereador da Câmara Municipal de Faro Presidente da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia da C.M.F. Presidente da Comissão das Festas da Cidade de Faro (1973) Autor do Regulamento de Distinções Honoríficas da Câmara Municipal de Faro Autor do Regulamento de Distinções Honoríficas dos Bombeiros Voluntários de Faro Autor do Regulamento de Distinções Honoríficas dos Bombeiros Municipais de Faro Autor das medalhas da Câmara Municipal de Faro Autor das medalhas dos Bombeiros Voluntários de Faro Secretário-Geral do Conservatório Regional do Algarve - Maria Campina. Técnico-voluntário do Refúgio Aboim Ascensão Colaborador de jornais diários e regionais ACTIVIDADES SOCIAIS DEPOIS DA REFORMA Técnico-Voluntário do Refúgio Aboim Ascensão Membro da Direcção do Instituto D. Francisco Gomes (Casa dos Rapazes) Fundador e Editor do jornal "Poetas de Faro" (1997-99) Chefe de redacção do jornal "Distrito de Faro" (1995-98) Presidente da Assembleia Geral da Associação dos Jornalistas e Escritores do 5

Algarve Subdirector do mensário "Jornal Escrito" Colaborador de jornais regionais LIVROS PUBLICADOS ANTES DA REFORMA O Romance do Homem Solitário – contos (1963) Sonetos Proibidos e Outros Poemas – poemas (1983) Roteiro do Algarve – ensaio (1983) Divisão Administrativa do Algarve – ensaio (1983) Algures... Alguém – sonetos (1987) A Democracia Que Temos – ensaio (1988) Algures... Alguém - 2ª Edição – sonetos (1989) Contradições da Democracia – ensaio (1989) A Democracia Que Temos - 2ª Edição – ensaio (1989) Cantata Para Um Corpo – sonetos (1989) LIVROS PUBLICADOS DEPOIS DA REFORMA Formas de Fumo – sonetos (1990) A Gota de Água – poema infantil (1993) Flor de Luz – sonetos (1993) Ode a Penha Garcia – poema (1994) A Democracia Que Temos - 3ª Edição – ensaio (1995) Ode a Penha Garcia - 2ª Edição – poema (1995) Justiça Social – ensaio (1995) Sombra Desfeita – sonetos (1996) A Cauda do Cometa – poemas (1997) A Lenda do Moliceiro – contos (1997) Sombra Desfeita - 2ª Edição – sonetos (1997) A Cauda do Cometa - 2ª Edição – poemas (1998) A Lenda do Moliceiro - 2ª Edição - contos (1998) Guia Prático do Poeta – didático (1999) E Agora?... – poemas (2000) OBRAS DO AUTOR O ROMANCE DO HOMEM SOLITÁRIO - Contos (Esgotado) Livrolândia, Lisboa, 1963 SONETOS PROIBIDOS e Outros Poemas Rotary Club de Faro, Faro, 1983

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ROTEIRO DO ALGARVE Comissão de Coordenação da Região do Algarve, Faro, 1983 DIVISÃO ADMINISTRATIVA DO ALGARVE (Esgotado) Comissão de Coordenação da Região do Algarve, Faro, 1983 ALGURES... ALGUÉM (2ª Edição) - Poemas (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1987, 89 A DEMOCRACIA QUE TEMOS (3ª Edição) - Ensaio (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1988,89, 95 CONTRADIÇÕES DA DEMOCRACIA - Ensaio (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1989 CANTATA PARA UM CORPO - Poemas (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1989 FORMAS DE FUMO - Poemas (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1990 A GOTA DE ÁGUA - Poema infantil (Esgotado) Parque Natural da Ria Formosa, Olhão, 1993 FLOR DE LUZ - Poemas (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1993 ODE A PENHA GARCIA (2ª Edição) - Poema (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1994, 95 JUSTIÇA SOCIAL - Ensaio Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1995 SOMBRA DESFEITA (2ª Edição) - Poemas (Esgotado) Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1996, 97 A CAUDA DO COMETA (2ª Edição) - Poemas Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1997, 98 LENDA DO MOLICEIRO (2ª Edição) - Contos 7

Cadernos SANTA MARIA, Faro, 1997, 98 GUIA PRÁTICO DO POETA – Manual (Esgotado) AJEA Edições, Faro, 1999 E AGORA?... (2ª Edição) - Poemas AJEA Edições, Faro, 2000 OS ANOS DOURADOS DO VOLFRÂMIO - Contos AJEA Edições, Faro, 2001 EXPOSIÇÕES DE PINTURA ANTES DA REFORMA Salão dos Novíssimos - Colectiva (1968) - (Escola Industrial e Comercial de Faro) EXPOSIÇÕES DE PINTURA DEPOIS DA REFORMA Poetas & Pintores da AJEA - Colectiva (1999) - (Arquivo Distrital de Faro) Poetas & Pintores da AJEA - Colectiva (1999): (Galeria Municipal da Câmara Municipal de Tavira) (Galeria Municipal da Câmara Municipal de Aljezur) (Galeria Municipal da Câmara Municipal de Olhão) RECOMPENSAS Mais de 90 prémios literários, entre os quais, Prémio Cidade de OlhãoProsa, Menção Honrosa no Prémio Eça de Queiroz (Lisboa), referência especial no Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes (Portimão) Sócio Honorário do Boa Esperança Atlético Clube Portimonense (1960) Medalha de Mérito da Cruz Vermelha Portuguesa (1973)

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A DESCONFIANÇA

"Era tão bom que voltasse o tempo do volfrâmio!...", pensava Augusto, enquanto batia a sola, em golpes sucessivos de martelo, como se não sentisse o impacto das marteladas nas coxas, onde tinha a tripeça de ferro entalada, apesar da ligeira protecção do velho avental de carneira. O patrão Francisco queria a sola bem batida, porque adquiria maior resistência ao desgaste, quando aplicada nas botas — o que agradava aos fregueses e a ele próprio, pois a sola batida estende e, por isso, rende mais. Absorto nos seus pensamentos, nem dava conta dos carros de bois que passavam no empedrado da rua estreita, chiando uma cantilena sempre repetida, mas agradável aos ouvidos. Era como se a rija madeira de castanho gemesse as dores do permanente raspar do eixo mal torneado nos toscos apoios do berço do carro. Havia quem lhe pusesse azeite, mas era ainda o sabão azul e branco que mais atenuava o esforço do atrito. "Era bom que voltasse o tempo do volfrâmio!...", pensava Augusto, relembrando as meninas da casa amarela, escondidas dos olhos da comunidade por detrás de portadas de janela permanentemente fechadas, cuidadosamente relegadas para um beco do limite da cidade, mas bem abertas à gula dos fregueses, quando o dinheiro do volfrâmio era fácil e corria como água na satisfação dos desejos fúteis dos homens. A guerra, porém, tinha acabado e o minério negro perdera todo o valor, obrigando-o a retomar o emprego de sapateiro e a limitar-se ao magro salário. Para mais, tinha casado há dois anos e acabara-se a rambóia. A curiosidade não o deixava, qual mosca que volita sobre nós e volta sempre que a enxotamos, porque o Narciso dissera que estava lá agora uma rapariga nova, que era de se tirar o chapéu, boa como milho e sabida que dava gosto. Que saudades de variar a rotina das relações conjugais! Augusto dava tratos à imaginação para encontrar um pretexto para sair por um bocado, até que um dia teve uma ideia luminosa. — Patrão, tenho andado muito ralado... — Que temos agora? — Ando desconfiado com a minha Maria. — Hom’essa! O que é que ela fez?

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— Não sei se fez ou se anda a fazer... É cá só uma desconfiança e eu não descanso sem a ir espreitar. Se o patrão me dispensasse por uma horita... — Pois tu desconfias que ela... — É isso. Desconfio - abanava a cabeça, sem desviar os olhos da bota que estava a coser, armando-se de um ar sério e preocupado. — Não! Não pode ser! Não acredito numa coisa dessas! — Eu também não disse que acredito... É só uma desconfiança... Não demoro mais de uma hora. — Vai lá, homem, para ver se assentas essa cabeça! Toma tento no que estás a fazer! A tua Maria é de uma família séria. Vais ver que não tens razão nenhuma para desconfianças! Sabes que mais? Isso são tentações do Demónio! O senhor Francisco era homem de grande devoção e pertencia à Irmandade de Santo António, pagando anualmente uma boa maquia para ter o privilégio de pegar no pendão com a imagem do santo, na procissão, ia para uns trinta anos. A religiosidade, porém, não lhe tirava o desmesurado gosto pelo dinheiro e foi com certo custo que concedeu aquela hora ao rapaz, ficando à espera que o seu gesto fosse tido em conta na remissão dos seus pecados. Augusto quase voou para a casa amarela e subiu a dois e dois os gastos degraus de madeira da escada para o primeiro andar. Já não se lembrava daquele ranger da madeira e de como os degraus pareciam que iam ceder com o peso do corpo, de tão velhos e usados que estavam. Lá dentro cheirava a bafio, porque só eram abertas as janelas das traseiras, que davam para o campo, mas os fregueses nunca se queixaram. Regressou à oficina sem poder esconder a satisfação que sentia. A tal rapariga nova era bem melhor do que contara o Narciso. Não tinha buço como a Maria, nem pelos debaixo dos braços e a pele das suas mãos parecia seda fina. — Então, viste alguma coisa? — Perguntou o patrão, sem qualquer curiosidade, ciente de que tudo não passava de pura imaginação. — Nada. — Nada? — Nada. — Ora ainda bem! A partir daquele dia, o aguilhão do desejo nunca mais o largou, como se fosse um cilício apertado em redor da sua cintura, mas não tinha a coragem de pedir ao patrão para sair. A severidade dos costumes condenava estes devaneios aos homens casados, pelo que só era livre de comentar as suas fantasias na roda dos amigos da mesma idade, na grande maioria ainda 10

solteiros, quando se juntavam à roda de um canjirão de vinho na venda do Policarpo, depois da ceia, naquele canto do fundo, afastado do bulício confuso dos habituais jogadores de sueca, que batiam as cartas na mesa de tampo de madeira e onde os perdedores discutiam sempre no final de cada jogo as asneiras do parceiro. Os poucos que já conheciam a rapariga nova da casa amarela concordavam que valia a pena fazer-lhe uma visita, ainda que a novidade se fizesse pagar bem e ela tivesse um preço mais caro do que as outras. No mês seguinte ao da sua escapadela, Augusto atreveu-se a abordar o patrão, aproveitando uma ocasião propícia, pois um freguês fora pagar um par de botas e ele estava visivelmente satisfeito. Olhando de soslaio, esperou que o senhor Francisco terminasse o giro da afiada faca em torno do molde de papel de jornal — que reproduzia um dos pés do freguês — estendido sobre a peça de sola batida. —- Ai, patrão, esta desconfiança continua a afligir-me!... —- Que desconfiança? — inquiriu o outro, apanhado de surpresa. De pé, com a faca no ar, segura na mão como se fosse um modo de punhal, olhava o empregado como se não percebesse de que estava ele a falar. — Aquela desconfiança... — titubeou Augusto, desconcertado com o alheamento total do senhor Francisco. — É sobre a minha Maria...aquela desconfiança... — Valha-te Deus, homem! Então essa cisma não te passou? Não foste espreitar a tua mulher? Não é verdade que não viste nada? — É, sim, patrão, mas que quer? — Readquirira a calma e já estava em condições de representar o papel que ensaiara mentalmente. — É uma desconfiança cá dentro de mim... Não está na minha mão... Tenho de a ir espreitar para ver se sossego... — Olha que isso são coisas do Demónio, que passa a vida a atentar a gente para ver se nos leva para o Inferno! Vai mas é confessar-te ao senhor Prior e passa-te logo essa estupidez! —Vou, sim, patrão — concordou, vestindo o fato da humildade, que faz sempre bom efeito sobre as pessoas beatas. — Vou no domingo, antes da missa. Agora... para sossegar a cabeça, precisava duma horita só... Obtida a permissão do senhor Francisco, fez a segunda escapadela, com a mesma satisfação do garoto a quem a mãe autorizou a ir ao pote do mel tirar só um bocadinho para pôr na fatia de pão de centeio. No mês seguinte, depois de outra magistral representação, que logrou vencer a renitência patronal, conseguiu nova saída. Antes, porém, já de pé e no limiar da porta, com o chapéu na mão, teve de escutar o sermão do senhor Francisco: 11

— Trata de assentar a cabeça, porque é a última vez que te deixo sair! Vai! Vai lá espreitar a tua mulher e acaba com isso de uma vez! Não foi a última. O desejo juntou-se ao prazer da aventura de mentir, de representar o dramático papel de marido ciumento, de lutar para vencer a resistência do patrão, enfim, de ganhar uma batalha, em que o pequeno vencia o grande ou o pobre enganava o rico. As risadas dos amigos nos serões da venda do Policarpo, onde cada episódio era jocosamente comentado com o canjirão do vinho a passar de boca em boca, animavam-no a prosseguir no embuste. De todos, o Alípio, o mais mulherengo, era quem mais o animava a prosseguir. — O que faz um homem mostrar que é homem são estas coisas! Mas é bom que a tua Maria não saiba de nada!... Olha que ela não é para graças! — Deus me livre! — Exclamou o sapateiro e todos se riram com gosto. Em breve passou a pedir para sair de três em três semanas, para o que foi necessário simular maior ansiedade, mais nervosismo. O jogo agradava-lhe e era copiosamente compensado. Como criança que vai furando as regras da autoridade paterna, em tentativas progressivas, para descobrir quais são realmente os seus limites, ele quis encurtar ainda mais os períodos das saídas. — Mas tu voltaste a sair ainda não faz quinze dias! — Respondeu o senhor Francisco a novo pedido, enfadado com o caso que lhe batera à porta. — Deixa-te mas é estar sossegado e trabalha, que é um bom remédio para todos os males! Presta mais atenção ao que fazes e vais ver que deixas de pensar nessas asneiras! Sabes uma coisa? Isso só te faz é mal. Às vezes é melhor a gente não saber... Ficar assim na dúvida... — Ai, patrão, juro-lhe que é a última vez! Se não me deixa ir lá ver o que se passa, mato-me. Isto não é viver, é um Inferno que trago no peito. — Não digas isso, homem, que é um grande pecado! A nossa vida pertence a Deus e só Ele pode dispor dela. Nem me fales em matares-te!... Tu estás mas é doido!... — Mato-me, sim, que já não aguento mais!... Na sua boa fé, o senhor Francisco apiedou-se do desgraçado, sem se aperceber do fingimento daquela atitude dramática, mal copiada do teatro de feira. Deixou cair as duas agulhas, penduradas por linhas enceradas, com que estava a coser a sola à virola de uma bota, que tinha no colo, e puxou para trás o banquinho de madeira, de modo a poder apoiar as costas na parede. Com um lenço bastante encardido, tirado da algibeira das calças, enxugou o suor da testa, ainda que não fizesse calor. Pigarreou para limpar a garganta e consultou as horas no relógio de bolso que uma corrente de ouro prendia ao colete, a ganhar coragem.

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Augusto, aguardando com expectativa a desejada autorização, estranhou aquele prolongado silêncio, que lhe lembrava a misteriosa acalmia que antecede as tempestades, e teve um mau agoiro. — Eu queria dizer... — começou o patrão, saindo-lhe as palavras a custo. — O Diabo tenta as almas... e leva-as a fazer coisas... que não deviam fazer. Nosso Senhor expulsou-o da corte dos anjos por ele ser tão ruim. Tu tens andado num desassossego... e isso é mau para o trabalho. Não é bom para ti e para mim também não. Pouco a pouco, foi adquirindo confiança em si próprio e o discurso ia saindo mais fluente. — Há meses e meses que andas a espreitar a tua mulher e nunca viste nada do que desconfiavas. Mesmo assim, não sossegaste essa cabeça. Nessas coisas, o marido tem sempre dificuldade em descobrir que é enganado. Até se costuma dizer que o marido é sempre o último a saber. Talvez não acredites, mas o teu caso tem-me trazido preocupado e, por isso, fiz eu mesmo também as minhas investigações... Augusto não entendia onde o patrão queria chegar com todo aquele sermão, mas pressentia que a época das escapadelas para a casa amarela estava a chegar ao fim. — Falei com algumas vizinhas... — continuou, após um breve intervalo para limpar de novo o suor da testa com o lenço que conservara na mão. — Falei com a minha prima Matilde, que mora lá ao pé de ti... Essa sabe tudo o que se passa... Afinal, eu acho que tenho obrigação de te dizer... Fez outra pausa e prosseguiu: — Afinal sempre é verdade que a tua mulher tem um amante... É o teu amigo Alípio... aquele que trabalha nas Finanças...

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A ÍNDIA NANAÍ

— Siô Mánoel! Siô Mánoel! O pequeno mulato entrou afogueado na quitanda do amo, com os olhitos negros muito abertos, como se tivesse visto onça. A loja era tão acanhada de dimensões, que ninguém diria que lá coubesse tanta mercadoria para vender e, por isso, Manoel, que estava de costas a compor os artigos de uma das prateleiras, voltou-se devagar. — Que foi? Pra que estás a gritar? — Vem um branco preso! — Que estás pra aí a dizer? Quem é que vem preso? — Venha ver! O homem encaminhou-se para a porta, atrás do rapazito, que já se encontrava na rua a apontar para os homens de armas que passavam, cheios de poeira e com ar cansado, mais arrastando as solas das botas altas, com aba revirada acima do joelho, que propriamente marchando. Portugueses com espada ou arma de fogo e mamalucos, que eram índios mansos, com arcos e flechas indígenas constituíam a tropa que se dirigia para o Largo da Igreja, onde parara já a frente da marcha, certamente à espera do Governador. Como era costume, traziam prisioneiros índios, amarrados uns aos outros, completamente nus, e os homens aproveitavam a ocasião para encher o olho com a beleza das mais jovens, que ostentavam ainda os seios erectos. À frente dos presos vinha um moço português com as mãos amarradas atrás das costas e o tronco enchouriçado com outra corda, em várias voltas, apertando-lhe os braços. Um prisioneiro branco não era, infelizmente, caso único, mas era raríssimo e, talvez por isso, aquela figura destacada dos demais para servir de exemplo despertava a curiosidade geral. Homens, as raras mulheres brancas e as índias cristianizadas da Vila de São Paulo iam deixando as suas tarefas e acompanhavam o cortejo, que assim ia engrossando ao longo da rua principal, porque os espectáculos era raros e a vida demasiado monótona. A criançada, na sua grande maioria composta de índios e de mestiços, estava eufórica e corria para chegar mais depressa ao Largo, que era a zona nobre da Vila, onde se situavam as casas de sobrado da gente importante, o palácio do Governador e o Colégio dos Jesuítas com a

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Igreja do Senhor do Calvário anexa, cujo enorme sino de bronze começara, entretanto, a tocar. Manoel ficou durante algum tempo a ver passar a tropa, antes de abalar atrás dos outros, limpando o suor do rosto com um lenço encardido, pois o ar da manhã já estava quente e húmido. O vizinho Diogo, que deixara as cabras dentro da cerca de madeira e tinha ido falar com um dos soldados, voltou com a novidade. — É a tropa do Domingos Velho, que vem de Pernambuco — e encaminharam-se também para o Largo, já apinhado. A chegada do Governador foi anunciada com o rufar de tambores. Depois de ter ido ver os presos na companhia do Cabo da Tropa e do AlferesMor, que o informaram de que o português prisioneiro tinha desertado, subiu ao degrau mais alto da escadaria da Igreja e fez um discurso que só foi escutado pelos que lhe estavam próximos, devido à vozearia do povo. Quando Sua Senhoria regressou a casa, o que foi também anunciado com os tambores, deu-se a debandada e os presos foram metidos na "masmorra", nome que pomposamente era dado a uma espécie de armazém com buracos gradeados a servirem de janelas e uma larga porta dupla que uma grossa tranca fechava por fora, onde dois guardas armados com arma de fogo ficaram de sentinela, abrigados da canícula apenas pelos chapéus de abas largas, ornados com uma grande pena colorida.

*** Só no domingo seguinte o preso português foi julgado, depois da missa que sempre tinha lugar às sete horas. Naquela latitude, os dias são praticamente iguais durante todo o ano, nascendo o sol às seis e pondo-se às dezoito. Como acontecia todos os domingos e dias santos de guarda, o templo de paredes de pedra e tecto de madeira com pinturas estava repleto, decorrendo a missa em latim e num ambiente de certa obscuridade, cortada pela luz que entrava pelos vitrais coloridos, cujos vidros tinham ido de Portugal, cuidadosamente numerados para serem montados no seu devido lugar. A frente da nave, junto ao altar-mor, era reservada para os brancos, com as mulheres atrás dos homens, e a parte do fundo aos índios cristianizados pelos jesuítas, ficando igualmente os homens na frente e as mulheres atrás, as quais tinham de tomar conta das crianças, das suas e das dos amos. A cerca de um terço, um gradeamento de madeira com balaústres torneados fazia a separação entre as duas raças, todos separados por um gradeamento de madeira

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Os colonos não eram marinheiros com viagem de ida e volta e a sua decisão de partir implicava a aceitação de uma viagem sem regresso, que o espírito de aventura, a vida cheia de necessidades ou a esperança da riqueza justificava. Não havia muitas brancas que se atrevessem a cruzar o oceano, receosas da distância, das doenças, dos piratas, da vastidão do mar, e, por isso, a maior parte dos brancos casava com índias. Mesmo sendo mulheres de brancos, essas assistiam à missa no lugar reservado às da sua raça. No fim da missa, toda a gente ficou cá fora, no Largo, a fim de assistir ao julgamento, tentando as mulheres manter as crianças quietas e atentas, porque aquele acto fazia parte da sua educação. Trouxeram uma mesa e cadeiras para o patim lajeado ao cimo da escadaria da Igreja, onde se sentaram o Governador, que era o juiz principal, o Superior do Colégio e um jesuíta para servir de escrivão, em lugar elevado para que todos pudessem vê-los. Uma armação de paus havia sido trazida para suporte de um grande pano que os protegia do ardor directo dos raios solares. Por detrás deles, à laia de pano de fundo, estava a fachada monumental do templo, em pedra calcária bujardada, com o magnífico portal renascentista e as duas torres, numa dos quais se encontrava pendurado o grande sino de bronze, trazido de Lisboa numa nau. Nos degraus apenas estavam os homens dos tambores, cujo rufar deu início ao cerimonial, ao mesmo tempo que o sineiro tocava três badaladas repenicadas. Trouxeram o preso, que ficou de pé diante da mesa, de costas voltadas para o povo, lá no alto da escadaria, enquanto os dois soldados que o tinham acompanhado desde a "masmorra", situada do outro lado do Largo, se afastavam alguns passos, um para cada lado, mantendo-se vigilantes e de armas prontas a disparar. Manoel, que conseguira um dos lugares da frente, verificou que se tratava de um moço dos seus dezasseis anos, ainda imberbe, de compridos cabelos pretos caídos sobre as costas nuas, descalço, vestindo apenas o calção amarelo, de onde ainda não saíra a poeira da longa jornada desde Pernambuco, e olhando para o chão, com a cabeça ligeiramente descaída, esperando simplesmente. Depois, atentou no Governador, D. Fernão Vasques, representante real naquele território, que tinha o ar imponente das pessoas importantes, com um grosso colar de ouro de que pendia um enorme medalhão, uma impecável camisa branca de folhos, calção castanho, botas amarelas e o largo chapéu de pluma vermelha, e nos jesuítas que o ladeavam, todos de branco, mas distinguindo-se o Superior do Colégio pelos botões vermelhos e pelo chapéu preto de abas largas sem a pluma que fazia parte do uniforme dos soldados.

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O Governador, depois de ter feito um gesto para que os tambores rufassem com o fim de calar a assistência, dirigiu-se ao escrivão e foi ditando, pausadamente: — No ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e noventa e sete, quando são doze dias do mês de Maio, nesta Capitania de São Paulo de Piratininga, eu, D. Fernão Vasques, fidalgo da corte por mercê de Sua Alteza real D. Pedro II, e por seu privilégio Governador-Geral das terras do Brasil, ouvi em julgamento a... — dirigindo-se ao preso — como te chamas? — Martim Ribeiro — murmurou o desgraçado. — Fala mais alto, que não te escuto! — ordenou o Governador. — Martim Ribeiro — repetiu o moço com mais força. — ... a Martim Ribeiro, homem de armas do Cabo da Tropa Domingos Jorge Velho, acusado de ter desertado para o mato, quando estava em campanha de guerra, de acordo com os preceitos.... etc., etc. Quando o escrivão acabou de escrever o laudo comum a todos os processos daquele tipo, D. Fernão Vasques mandou subir a depor a testemunha Domingos Velho, que estava na primeira fila da assistência. Era um homem de trinta e poucos anos, já com cabelos grisalhos caindo sobre as costas da camisa atada na frente e nos pulsos por atilhos, que se colocou no alto da escadaria, virado para a mesa, com o chapéu na mão, em sinal de respeito. — Diga o seu nome e o que sabe a respeito deste caso! — ordenou o Governador. — Fale devagar, para que o escrivão possa tomar assento! — Chamo-me Domingos Jorge Velho e sou Cabo da Tropa. Por ordem de Vossa Senhoria, estava na terceira campanha de guerra contra os índios "cararis" do "quilombo" de Palmares, em terras de Pernambuco, próximo da praia de S. Sebastião, aonde desembarcam os homens, as armas e os mantimentos vindos de Portugal, cujo chefe, Ulalu, que havia sido convertido e baptizado pelos reverendos padres jesuítas deste Colégio, bem como as suas gentes, se revoltou contra a autoridade régia e a de Vossa Senhoria, abjurando da fé da nossa Santa Madre Igreja e retomando os antigos maus hábitos do canibalismo e de andarem nus. Passados que são quatro anos que já dura esta campanha de guerra, consegui vencê-los e fazer prisioneiros aqueles que restaram, os quais mantive amarrados à volta de árvores até ao nosso regresso. Entre eles estavam o chefe Ulalu e sua filha Nanaí, que, pela sua mocidade e grande beleza, eu havia destinado ao serviço de Vossa Senhoria. Uma noite, estando o soldado Pero de guarda aos presos, este terá desamarrado Nanaí e fugido com ela para o mato, aonde foi encontrado com ela três dias depois

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pelo Alferes-Mor e mais dez homens. Ao que consta, o Pero ter-se-á enfeitiçado pela beleza da índia, o que o levou a desertar. Chamado a depor a seguir, o Alferes-Mor, Francisco Lobo de Sousa, relatou como tinham seguido o rasto dos fugitivos com a ajuda de um mamaluco experiente nessas coisas, como tinham vencido muitas dificuldades através do mato denso e como tinham achado os dois, abraçados, exaustos, sentados sobre um rochedo, olhando para o vasto oceano. O soldado não oferecera resistência à prisão. Depuseram ainda, como testemunhas, o repartidor, João Aires, o capelão, Frei Aleixo, e o escrivão, Bartolomeu Martins, que integravam a tropa, mas nada de importante acrescentaram ao que fora dito sobre o caso. — Quereis fazer perguntas ao julgado? — inquiriu D. Fernão Vasques, virando-se para o Superior. — Esconjuro-te a dizer a verdade para salvação da tua alma! — advertiu o frade. — Diz juro dizer a verdade pela salvação da minha alma! — Juro... dizer a verdade... pela salvação... da minha alma! — repetiu o preso. — Tiveste contacto carnal com a ímpia? — perguntou o Superior. O infeliz abanou a cabeça afirmativamente. — Responde com a boca! — ordenou o inquiridor. — Tocaste-lhe? — Sim... Ao ouvir aquela confissão, feita com uma voz rouca, misto de grito e de soluço, o Superior fez com as mãos sinal de que não tinha nada mais a perguntar. Então, tendo terminado o julgamento, o Governador trocou com o Superior algumas palavras em surdina, ambos com o cotovelo sobre a mesa e inclinados um para o outro, com as caras muito próximas. Depois, levantou-se e disse, na voz alta de quem está habituado a comandar homens, audível no Largo, dado que toda gente se calou, consciente de que chegara a parte crucial do processo e curiosa por conhecer o seu desfecho. — Ficou provado neste julgamento que o acusado, com o seu tresloucado acto, quebrou os laços de lealdade e de fidelidade que todo o soldado deve ao nosso bem amado Rei e Senhor, cujo crime é punível com a morte por enforcamento; mas provado foi também que ele, acusado, cometeu heresia contra a nossa Santa Madre Igreja, por concupiscência na pessoa de uma ímpia, de uma pagã, crime esse que deve ser punido com a morte na fogueira depuradora da alma. Assim o condeno e que Deus tenha piedade da sua alma! Um vozear da multidão cortou o silêncio que se tinha feito sentir, com toda a gente a trocar impressões sobre o assunto. O Governador, que se

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sentara de novo, fez sinal aos tamborileiros para rufarem os tambores e, obtido o desejado silêncio, tornou a levantar-se para informar: — O índio herege, de nome pagão Ulalu, não será julgado, porque deixou de ser cristão por sua decidida vontade. Só os seres cristãos têm direito a ser julgados no seio e no amor de Nosso Senhor Jesus Cristo. — E o moço português foi julgado? — pensou Manoel para com os seus botões. — Os outros hereges índios não sofrerão a mesma sorte, porque o grande culpado é sempre o chefe; por isso, ficarão em cativeiro até que os irmãos do Colégio lhes dêem de novo a preparação para a nossa fé e os considerem dignos de viver entre nós, como baptizados que já foram. Este é o parecer do nosso Superior e é também certamente a vontade de Deus. Assim, Ulalu morrerá na mesma fogueira que o condenado Pero Ribeiro! A execução terá lugar neste mesmo Largo, daqui a três dias, uma hora antes do anoitecer, ou seja, às cinco da tarde!

*** A meio da manhã do terceiro dia acabaram os preparativos para a execução da sentença. Haviam colocado no meio do Largo um tronco de árvore, a pino, enterrado no chão, e feito à sua roda uns degraus de madeira, de modo que os condenados ficassem a uma altura suficiente para serem vistos por todos. O espaço interior dos degraus estava cheio de lenha bem seca, misturada com palha, e perto havia outros molhos de lenha e palha para serem colocados só depois de lá estarem amarrados os condenados. Manoel ouviu o sino tocando "a dobrado" e preparou-se para fechar a loja, sem pressas, pois, desta vez, não estava interessado em ficar à frente. Sabia que era a vontade de Deus, mas nunca suportara bem aquele tipo de espectáculos. Criminoso por morte de homem não lhe custava ver enforcar, porque só Deus nos pode tirar a vida, visto que foi Ele que no-la deu. Bêbados brigões e ciumentos de mulheres tornavam-se, por vezes, em assassinos, não satisfeitos em resolver os seus problemas a murro, como faziam todos os homens de bem. — Siô Mánoel, não quero ir!... — Choramingou o pequeno mestiço, enquanto retirava as sacas que impediam de fechar a porta, que era a sua última tarefa diária. — Tenho medo!... Filho mais velho de dois mestiços, que tinham um rebanho de filhos pequenos, o rapazito ainda não fizera os doze anos, mas era bem constituído e tinha bastante força... Por umas poucas moedas e pela comida trabalhava doze horas diárias, sete dias na semana, tirando o período da missa dominical e uma 19

hora por semana para a catequese. Era humilde e raramente precisava de ser admoestado, trabalhando com gosto para o branco, que lhe enchia a barriga e lhe dava a farinha para a mãe fazer o pão. — Eu sei o que sentes, meu rapaz!... — Disse Manoel, parando por instantes o seu trabalho e olhando para ele com ar paternal. — Não deves ter vergonha de teres medo, porque até os homens têm medo, por mais que se gabem da sua valentia... mas tens de ir... Tens de te ir habituando a estas coisas... Por enquanto, ninguém repara em ti, mas, mais tarde, quando fores homem, podes ser alvo de invejas, de cobiças, de ódios cegos... e há pessoas muito más, capazes de te irem denunciar. Julgas que não me custa ir? Só que tem de ser... e o que tem de ser tem muita força! Percebeste? O pequeno abanou a cabeça em sinal de que não tinha percebido. — Olha, fazes assim... — continuou Manoel, depois de fechar a porta e seguindo rua abaixo, a caminho do Largo, com a mão por cima dos ombros do rapaz — vê se encontras uma parede a que te encostes! Ficas com a cabeça levantada, mas fechas os olhos! Não precisas de assistir às partes que te arrepiem! Só é preciso que te vejam lá! O Largo já estava cheio e Manoel procurou um pedaço de parede de casa para se encostarem. De onde estavam, via-se mais de metade do corpo dos condenados e chegava até eles a ladainha dos frades, longa, monótona e imperceptível. As pessoas conversavam, para matar o tempo, e as que estavam à frente iam informando as detrás do que se ia passando. — Trouxeram os presos para assistirem — transmitiu o ferreiro, que estava à frente de Manoel, homem branco, mas tisnado pelo sol. — Estão lá na frente, guardados por homens armados. Estão voltados para a fogueira. — É bom que eles vejam bem! — Proferiu uma índia velha, de cara toda engelhada, a quem a prática religiosa tornara beata e intolerante. — É para aprenderem que Nosso Senhor castiga os que O renegam. — Tem um mais na frente... uns dois passos mais perto do lume — tornou o ferreiro em voz alta, perguntando depois aos que estavam diante se sabiam quem era. — É a índia... a filha do chefe... o herege que está a arder. A informação foi transmitida para os que estavam atrás. — Olha que não está a chorar pelo pai! — riu-se a índia velha, enquanto se benzia com a mão engelhada. — A grande cabra está mas é a chorar pelo amante!... — A índia está a chorar? — Perguntou alguém lá para os da frente. Não, não chorava. Hirta, erecta na sua pequena estatura, mostrava a altivez de um verdadeiro chefe. A face erguida, os olhos fitos nas labaredas, os braços caídos, na posição de sentido, parecia desafiar a força dos poderosos, a 20

inclemência dos que se diziam justos, a crueldade dos que passavam por piedosos. Quando a ladainha acabou, já tinha descido a noite e estavam a acender os archotes nos postes em redor do Largo. Depois, de repente, o vozear da assistência aumentou, como um grito de espanto, no momento em que rompeu um grande clarão e muito fumo no local da execução. Vozes curiosas perguntavam: — O que foi? Que aconteceu? — Não querem lá ver!.... — Exclamou o ferreiro, depois de ter recebido a informação. — A filha do índio fugiu aos guardas e atirou-se para a fogueira!... Agarrou-se ao corpo do moço branco!... — Que arda no Inferno! — Chiou a índia velha, tornando a benzer-se. — A grande porca!... O rapaz, que tinha estado todo o tempo agarrado ao braço de Manoel, enlaçou-o pela cintura, encostou-lhe a cabeça à volumosa barriga e desatou a chorar, convulsivamente, cheio de medo. O português afagou-lhe os cabelos negros, paternalmente, bastante comovido. Foi então que lhe veio à memória, mais uma vez, a imagem da moça da sua aldeia, que o deixara para casar com um ricaço, motivando que ele embarcasse para o Brasil para esquecer a paixão, e duas lágrimas lhe fugiram dos olhos.

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O ACIDENTE

Catarina tentou sair do carro, depois de ter chamado pelo companheiro e de não ter obtido resposta. Estava de cabeça para baixo, dobrada como um feto, mas podia mexer os braços e as pernas. Conseguiu soltar o cinto de segurança e virar o corpo, de modo a ficar de joelhos sobre o tejadilho. Apalpou o corpo de Jorge e tornou a chamar por ele em vão. A porta não se abria. Tacteando, descobriu o vidro quebrado e foi por ali que veio cá para fora, lentamente e à força de pulso, como num parto difícil. A humidade na cara fê-la sentir-se melhor e tentou pôr-se de pé. Estava tonta e a perna direita obedecia a custo, mas conseguia apoiar-se nela. Não sabia era para que lado ficava a estrada, porque havia um tenebroso escuro à sua volta, como se o nevoeiro se tivesse transformado numa cortina de fumo negro. Ouviu um cão ladrar. Então, haveria uma casa próxima; por isso, apurou o ouvido para descobrir de onde vinha o som, mas logo voltou o silêncio, como se o animal se recusasse a colaborar. Lembrava-se de ver o carro a fugir para a direita e depois começar a rolar à sua volta. Tinha gritado. As lembranças horríveis desfilaram rapidamente na sua mente e foi quando se deu conta de que tinha de abandonar o local, pois ninguém a poderia encontrar ali, na companhia do Jorge, que não era o seu marido e que também era casado. A imagem que surgiu na sua mente não foi, porém a cara da mulher de Jorge, apalhaçada de tanta pintura, mas a de seu marido, dura e fria, como se fosse chamar-lhe parva, com o desdém com que habitualmente o fazia, naquele estúpido ar de superioridade e de paizinho, que adoptara desde o fim da lua-de-mel, por ser dez anos mais velho e ter andado na universidade. Do outro lado do carro tinha uma pequena barreira, que amarinhou, rastejando, como se fosse um réptil, socorrendo-se de umas plantas molhadas, que as mãos tocaram, e achou-se no cimo do que deveria ser uma vala, caminhando depois em frente, com a mão na perna para ajudar a marcha, de modo a afastar-se o mais possível, antes que chegasse alguém. Encontrou um campo cultivado que, pelo tacto, lhe pareceu ser milho e sentou-se no chão, entre as canas, virada para o sítio de onde viera. Só nessa altura a angústia começou a invadi-la. Se a encontrassem com o Jorge, o seu casamento estaria acabado e não sabia como iria encarar os filhos, 22

a sogra, os vizinhos e as amigas... E ele? Estaria morto? Não podia ser. Por certo estava apenas ferido e desmaiado. Nem tinham batido em nada, só rolado... — Meu Deus, não o deixes morrer! Doía-lhe a cabeça e a perna, agora que o calor da tragédia passara e se sentia em segurança. Apalpou o couro cabeludo, por entre os cabelos humedecidos pela névoa, e não sentiu que estivesse a sangrar. Apesar de tudo, tivera muita sorte e Deus havia de querer que Jorge também a tivesse. As lágrimas correram-lhe pelas faces, triste por ele e também com sua própria sorte, depois das horas em que se sentira feliz, na casinha da colina, de onde se avistava o mar, e que tinham adoptado para ninho daquele amor proibido. Acusou-se de cobardia, por ter abandonado o companheiro naquele estado e de a força do medo de ser vista por alguém ter sido mais forte do que o amor que realmente sentia por ele, mas rapidamente tentou convencer-se de que não poderia ter feito nada e de que ficar teria sido bem pior para ambos. A sociedade nem seria capaz de explicar-lhe por que razão permitia todas as liberdades às adolescentes, sentindo-se orgulhosa por ter acompanhado a evolução, e continuava a ser implacável para com as mulheres da sua geração. Aturdida, desesperada, ficou ali à espera de que algum condutor visse o carro acidentado.

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O NOVO LÁZARO

A gente só aprecia verdadeiramente um bem depois de o perder ou quando está em vias de ficar sem ele. É o que se passa com um bem precioso, que é a nossa vida. Quanto da existência desperdiça a irrequieta e volúvel mocidade, naqueles verdes anos em que tudo é novidade e a ânsia de viver nos leva a tudo querer, tudo possuir, sem nos darmos conta de que o tempo passa a fugir! Depois, quando chega a idade avançada, vêm as saudades da vida desperdiçada e já se não pode fazer nada. O valor da vida, em toda a sua dimensão, na sua justa medida, só é avaliado por aquele que, estando condenado pela sorte, sabe que a morte já lhe ronda a porta. Hipólito sabia. Dissera-lhe o médico, nesse dia, depois de ter lido aquele maldito relatório. Um ano apenas de vida. Talvez nem tanto... Sentiu que o céu lhe caía sobre a cabeça e que o chão lhe faltava por debaixo dos pés. Voltou para casa, atordoado, subiu a escada quase de gatas, agoniado, e atirouse para cima da cama, de onde não quis sair, durante três longos dias. Queria não pensar, mas não conseguia dormir. — Não é nada — respondia à mulher que, aflita e desconhecendo o que se passava, não sabia o que fazer. — Quero dormir. Não acendas a luz. Deixame estar assim. Não é nada. Não é nada. Maldizia a sua sorte, achando que felizes eram os que andavam por aí sem se aperceberem do virar das folhas do calendário, sem contar os dias que faltam para morrer, quantas vezes desperdiçando as coisas boas que a vida lhes oferece de bandeja. Não era justo que lhe calhasse a ele ser dos que viam de perto a cara da morte, tão perto, que era possível sentir o seu hálito forte. Como o condenado, a quem a providência dá uma anestesia mental, que lhe permite caminhar para o cadafalso com a última dignidade que lhe é possível mostrar, sem espernear, sem ter de ser arrastado à força, Hipólito decidiu manter-se naquele catre de moribundo até à hora derradeira, quieto, insensível, sem inútil choradeira; mas, ao terceiro dia, terminou aquela agonia. Uma estranha luz brilhou dentro dele, como se, naquela hora, o Sol tivesse caído na Terra e espalhasse uma esplêndida aurora em todo o seu ser, dandolhe ganas de viver. Pediu à mulher que lhe trouxesse um copo de leite morno, bem açucarado e afastasse da janela o cortinado, para ver o verde das árvores, a trepadeira florida, o voar das aves, o pulsar da vida. Depois, meteu-se sob o 24

chuveiro quente e ensaboou-se por inteiro para tirar de cima de si todo o desânimo, toda a fraqueza, toda a cobardia, e, enquanto a mulher sorria, ele cantava: — Deus existe! Agora, sei que existe! Vestiu o roupão e foi ter com a mulher à sala, onde lhe contou, então, o que se passava, o que lhe dissera o médico, o que o esperava. Ela chorou, soluçou, assoou-se, porque toda a gente sabe que um dia o fim é chegado, mas ninguém está preparado. Ele tentou serená-la: — Não chores, não tenhas pena! Um dia ela havia de vir e tinhas de a aceitar. Se olhares para trás, verás que vivemos como pudemos e soubemos, que tivemos sucesso, que temos bens e dinheiro, que o nosso casamento não foi interesseiro e nos amámos durante todos estes anos, tal como começámos. Não há dignidade em se morrer como um cão ou outro animal. As árvores morrem de pé e o homem deve lutar até ao final! Porque não deixar atrás de mim, na hora da partida, uma obra meritória, algo de que a memória do meu nome se possa orgulhar? Quantos não sofrem a fome e a mais vil miséria dos tugúrios, mãe de todos os males e de todos os vícios, a prisão da injustiça, a tortura, perante a indiferença dos que vivem na clausura dentro de si mesmos, da soberba, da avareza, da luxúria, da ira, da gula, da inveja e da preguiça, que são os sete pecados capitais? Quantos não passam pelo irmão aflito, que está a sofrer, com a mesma insensibilidade do granito, como maus samaritanos que são? Quantos não matam o seu semelhante sobre a Terra, com a naturalidade de quem dá um pontapé numa pedra, com a vã desculpa de que são coisas da guerra? A mulher deixou de chorar. Serenou. Extasiada com a lógica da oratória, escutava o marido, como a criança ouve a estória que lhe contam antes de dormir. Hipólito, a sorrir, continuou: — Foi grande o nosso amor, mas não quis o Senhor que tivéssemos filhos. Para quem ficará a fortuna alcançada? Tanto trabalho para nada? Não gostarias de ter netos, muitos netos, dezenas de netos? Fazes ideia de quantas crianças nascem acorrentadas às doenças malignas de mães indignas que lhes deram o ser e depois não as querem ter? São por elas abandonadas na valeta húmida das estradas ou nos cantos sombrios dos becos? A SIDA é a peste do nosso século, o castigo dos que levam vida dissoluta, mas os meninos que, ao nascer, herdam esse mal, sem terem sido ouvidos nem achados, começam a sua triste vida já infectados. Por que não recolher, então, muitas dessas crianças, ajudá-las a crescer e dar-lhes o conforto de um lar e um futuro digno? Seriam os nossos netos, os filhos dos filhos que não tivemos.

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Ela gostou da ideia e quis fazê-la também sua, contagiada pela força do marido, pelo seu ânimo. Recolher crianças da rua e dar-lhes guarida era uma bela forma de ambos viverem o resto dos dias de sua vida. — Então, vamos a isto, que o trabalho é muito e o tempo muito pouco! A obra nasceu. Numa pequena quinta a que foi dado o nome da mulher de Hipólito, muitas crianças foram recolhidas e acarinhadas, umas de berço ainda, outras mais crescidinhas, entregues aos cuidados de uma dezena de empregadas, também elas felizes. Como se fossem borboletas, a ranchada corria e brincava, naquela operação natural de crescer, e Hipólito, abraçado à mulher, dizia-lhe enlevado: — Nunca pensaste que irias ter tantos netinhos e netinhas! O trabalho e as preocupações próprias de quem tem uma missão importante a cumprir não lhes deixavam tempo para pensarem no que estava para vir. Era a anestesia mental que a providência dá ao condenado e lhe permite caminhar para o cadafalso com a última dignidade, que lhe é possível mostrar, e que dá também à sua futura viúva ânimo para tudo suportar. Doze meses haviam passado, que era o prazo estipulado pelo Destino e de que se fizera arauto aquele clínico, que tinha lido o maldito relatório. E só então, olhando o calendário, que esgotara os dias do tempo calculado, se deu conta de que as previsões do clínico não se tinham realizado. Peso não tinha perdido, nem as forças, nem o apetite; a cor da pele das mãos não se tinha invertido; as unhas não tinham ficado pendentes, como a estalactite; as articulações, que deveriam ter dores terríveis, continuaram insensíveis; a língua não ficou com durões e, finalmente, a coluna não se tinha curvado para a frente. — Foi das minhas rezas — disse a mulher, imediatamente, não cabendo em si de contente, — foi milagre da Nossa Senhora, que é minha protectora. Foi Ela que não quis que eu ficasse viúva. Hipólito foi ao hospital, onde, por sinal, o médico o recebeu de braços abertos e lágrimas contidas a custo. Lágrimas de alegria. E ele ficou espantado, pois supunha que o outro iria arregalar os olhos de susto, julgandose perante um novo Lázaro ressuscitado! — Por que razão estou vivo e são? — perguntou, admirado. Foi então que soube que um outro homem tinha abalado... em seu lugar, que era suposto ter saúde para lavar e durar, mas que, afinal, foi para o cemitério. Ele, sim, é que estava saudável e nada tinha a recear. Contrito e amável, o médico explicou o mistério. Houvera simplesmente uma troca de análises nos processos e, portanto, ele não tinha doença nenhuma.

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AS BRUXAS

Dizia-me a minha avó que as bruxas são pessoas viventes como nós, mas que se transformam em avantesmas nas noites de Lua Cheia, quando as nuvens andam a curtir saudades por terras distantes e os cabelos dos pinheiros não são despenteados nem pela mais leve aragem. Têm medo da chuva e do vento. Para a santa velhinha que me criou, desde que fiquei órfão, era porque elas só podiam voar se a capa estivesse seca e bem direitinha. É nessas alturas que as corujas piam junto das nossas janelas a agourar desgraça, os cães uivam com medo das sombras deslizantes e os galos cantam à última badalada da meia noite, convencidos de que o Sol está prestes a nascer. Dizem que as bruxas são pessoas viventes como nós e, como nós, sujeitas ao jogo da sorte e do azar na vida; a terem uma sogra para aturar ou alguma nora que as tenha de aturar a elas, pois, como diz o povo, «sogra, nem de barro à porta, e nora, nem de açúcar»; a contraírem maleitas e febrões, curtidos no suor da enxerga a caldos de galinha; a discutirem com as vizinhas por causa das zangas dos putos ranhosos e obesos pela subnutrição e a terem de ganhar o pão com o suor do rosto, mas que, quando se transformam e durante a fase da metamorfose, adquirem extraordinários poderes mágicos que, no entanto, utilizam em superficialidades, em vez de o fazerem em proveito próprio, como comprar lotaria a premiar ou fazer o totoloto com os números certos em semana de «jackpot». Em vez disso, saltam, pulam, guincham e voam. Estes conhecimentos, que bebi nos peitos de minha mãe e me foram ensinados pelos ensinamentos empíricos de minha avó que, não sendo pessoa letrada, nem por isso deixava de acreditar no bom êxito dos chás para as mazelas do corpo e das benzeduras para entorses e maus-olhados, foi-me confirmado um dia pela Senhora Rosalina, uma velha amiga da família por quem cedo me afeiçoei, jurando a pés junto e beijando os dedos polegares cruzados que se tinha passado com ela e que era a mais pura das verdades. A Senhora Rosalina nunca soube o que é ser criança. Aos cinco anos já andava no monte, que nascia do outro lado do caminho fronteiro à casa onde vivia e em que nascera, rompendo por ali acima até tocar as nuvens, a tomar conta de duas cabras e de duas ovelhas, que eram as suas companheiras de brincadeira. Corria atrás delas e as cabras fugiam, trepavam aos penedos, saltavam por sobre os silvados, tilintando os pequenos chocalhos de latão 27

suspensos das coleiras de couro velho. Foi a primeira música que encantou os seus ouvidos infantis, já que, sendo os chocalhos desiguais, produziam diferentes sons, em sequências e misturas aleatórias. Ainda que daquela encosta avistasse o telhado da casa, por entre os pinheiros ralos, e até ali subisse a voz gritada de sua mãe a chamá-la para o almoço, quando o Sol tocava o cocuruto das árvores mais altas, ou ao fim da tardinha, terminada que era a sua tarefa diária, a verdade é que passava o dia sozinha, entre tojos, silvados e penedias. Nunca conheceu outros brinquedos que não fossem as cabras e as bonecas que carinhosamente fazia de ramos verdes de urgueira. Atirava pedras às lagartixas ou a algum lagarto mais afoito; colhia flores na Primavera e amoras silvestres no Verão; acompanhava o labor das formigas nos carreiros, apanhava gafanhotos e bichos-de-conta. O seu corpo franzino amolecia, embalado pelo chiar dorido do vento nas agulhas dos pinheiros, e dormia no chão duro, com as mãos por almofada, quando o calor das tardes estivais apertava depois do parco almoço. — Quando for grande hei-de casar com um homem rico para deixar de trabalhar! — Costumava dizer para as companheiras da aula semanal de catequese, que era a única reunião social que a deixavam frequentar, até porque, nesse tempo, só os rapazes é que iam à escola. Este desejo, formulado com tanta convicção, mas muito mais vulgar entre as mulheres do que ela podia então supor, não se iria realizar e, depois de casada, continuou a dar no duro, porque a barriga não faz cerimónia e dá guinadas quando está vazia. De resto, foi sempre maior a procura que a oferta e, contrariando a lei do equilíbrio universal, os homens ricos tiveram sempre tendência para casar com mulheres ricas, para ficarem ainda mais abastados e poderosos. A estória da Senhora Rosalina passou-se quando ela tinha quinze anos, altura em que já ostentava peitos abundantes e bamboleava as ancas, com aquele ar provocante que as mulheres já trazem escondido de nascença. Deixara ovelhas e cabras e a boa vida da pastorícia, que agora já tinha corpo para cavar a terra, apanhar couves para as galinhas e ajudar a mãe na lida da casa. Um dia, tinha ido ajudar os padrinhos na vindima da pequena vinha que lhes fornecia o vinho de todo o ano, a troco do almoço e da merenda, que era uma das formas de ajudar a aliviar a penúria do agregado familiar. Eles viviam na aldeia, uma boa légua de sua casa. Entrara Setembro na sua segunda metade, quando o Sol já se deita mais cedo, embora as cigarras continuem a cantar odes ao prazer da boa vida, naquela doce preguiça de que a formiga trabalhadeira se vingará, negando-lhe esmola no Inverno. — E que fizeste durante todo o Verão? 28

— Cantei. — Ai, cantaste? Pois dança agora! Nessa época ainda não havia sindicatos, nem horário de trabalho, nem salário mínimo nacional, nem subsídios para calamidades e a subsistência tinha de ser arrancada à terra pela força dos braços, desde o nascer ao pôr do Sol. Já só se vislumbrava um clarão rubro-alaranjado no céu, por cima dos montes, quando ela voltou para casa, metendo pernas ao piso incerto do caminho de terra e pedras, e a noite caíra completamente ao entrar no pinhal do Asdrúbal. Se o clarão da Lua Cheia lhe fora abrindo caminho até ali, agora, dentro da mata, mal se via o carreiro ondulando por entre os fetos altos e pujantes. O medo tomou então conta dela. O coração bate e sobe-lhe à garganta. Vai andando e olhando para todos os lados, receosa de ver aparecer aquelas almas penadas que povoavam as estórias de sua avó. Pouco a pouco, vai-lhe chegando aos ouvidos um estranho e desusado som de confusa algazarra, imprópria para a hora e para o local. À medida que avança, o barulho vai aumentando e alguns sons começam a transformar-se em palavras audíveis, como se um grupo de mulheres andasse roçando mato na calada da noite. A certa altura, chega a uma clareira, onde se lhe depara um espectáculo singular. Em torno de um clarão, como se fosse uma fogueira, várias mulheres dançam uma estranha dança de roda, sem música, dando grandes pulos, gesticulando e gritando sons animalescos, misturados com palavras que não fazem sentido: — Bá-lá-cá! Bi-li-bi! Belzebu, Belzebu, gó-li-bu! Vem a mim ti-pi-ti! As mulheres são irreconhecíveis nas suas saias até aos pés, nas cabeças sem lenço nem chapéu, nas caras escondidas entre os cabelos soltos, compridos e esvoaçantes. Os saltos que dão são tão grandes, que parecem voar baixo, como se não tivessem peso. Entre as palavras perceptíveis, ouve repetidas vezes o nome de Belzebu e então conclui que só podem ser bruxas. O medo faz dos seus dentes castanholas e um frio intenso lhe percorre o corpo. Tenta abandonar o local, precipitada e ruidosamente, fugindo sem saber para onde, pretendendo apenas sair debaixo das árvores e alcançar o campo aberto, mas não consegue o seu intento. Dando conta da intrusa, uma delas soltou uma espécie de grunhido e todas voaram na sua direcção, como um bando de abutres. Sente-se pegada pelos braços e pela roupa e levada pelos ares, num voo de loucura e de terror, com voltas e mais voltas, que a deixam tonta, apesar de ter fechado os olhos para não ver as alturas. Depois, tem a sensação de estar a descer e de ser largada.

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Acordou com os primeiros calores do Sol a beijarem-lhe o rosto. Estava deitada sobre uma meda de palha, perguntando-se o que fazia ali, fora da sua cama, mas depressa se recordou das bruxas e de tudo o que lhe acontecera. Levantou-se e iniciou o reconhecimento do local onde se encontrava, lançando-se depois numa corrida para casa. Foi recebida por uma mãe olheirenta, desfeita em lágrimas, e por um pai ameaçador, ambos atormentados e cansados por uma noite não dormida. Contou-lhes uma confusa estória de bruxas e de voos pelos ares, por entre choros e soluços, tremendo de pavor pelo que lhe acontecera e também pela ira mal contida que via nos olhos do pai. Ele, homem descrente das coisas do sobrenatural, com o coração dilacerado pela desgraça que caíra sobre a sua cabeça, tirou o cinto das calças e deu-lhe uma sova valente, até que a mulher se lhe agarrou ao braço, gritando: — Pára, por amor de Deus, homem, que a matas! — É o que merecia essa cabra, essa porca ranhosa, essa vaca sem vergonha, essa cadela com cio! — Gritou, largando a rapariga e saindo depois, para ver se acalmava. Quando voltou, no fim de pouco tempo, disse para a mulher: — Pega nessa desgraçada da tua filha e leva-a ao Padre Jorge! Ele que a ameace com as penas do Purgatório ou mesmo com as chamas do Inferno, mas que trate de saber quem foi o moiro que andou aí na costa!

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A LENDA DO MOLICEIRO

Há muitos, muitos anos — nem a velhinha que me contou, quando eu era menino, sabia quantos, — um pescador da Ria de Aveiro ouviu uma mulher a cantar e logo se apaixonou por ela só pela beleza da sua voz. Chamava-se Ramiro e era órfão de pai e mãe, tendo sido criado pela madrinha, uma solteirona bastante feia, baixa e gorda, de forte buço, que nunca encontrara quem gostasse dela para casar, embora tivesse um coração de pomba, terno e doce. Ramiro vogava pelas águas espelhadas da Ria e foi guiando o barco para o sítio de onde vinha aquele doce cantar, deparando com uma jovem que se banhava, como se estivesse de pé, pois só se lhe via o corpo da cintura para cima, sem qualquer peça de roupa. Ela não fugiu nem parou de cantar, enquanto o pescador se aproximava. Ao vê-lo junto a si, sorriu-lhe e estendeulhe a mão, que Ramiro agarrou entre as suas, ao mesmo tempo que o coração acelerava os seus batimentos. Era bela como uma princesa, com longa cabeleira de algas caindo-lhe pelas costas e torneando-lhe os peitos fartos e erectos. A sedosa pele era da alvura da areia da praia e os olhos tinham a cor verde do mar sem fundo. Os braços, compridos e esguios, terminavam em mãos de dedos finos, que iam movendo a água em seu redor, em gestos serenos e calmos, como se a afagasse. Conversaram longamente e então ele disse-lhe: — Amo-te e quero casar-me contigo! A jovem sorriu e respondeu: — Seria para mim uma grande felicidade casar-me contigo, pois nunca vi um homem mais belo e mais forte do que tu, mas, infelizmente, não pode ser. Eu não sou uma mulher, mas uma sereia. Soltou a mão que o pescador tinha agarrada e deitando-se de costas na água, mostrou-lhe como a parte inferior do seu corpo tinha a forma de peixe, com cauda e escamas douradas, rebrilhando ao Sol. — Sou a filha mais nova do Rei dos Mares e estou destinada a um Tritão, que me fará infeliz, porque não lhe tenho amor — continuou, começando a chorar e as lágrimas eram pérolas pequeninas, que ficavam a boiar, à sua volta. 31

— Não me importo que não sejas mulher — retorquiu ele. — Casa comigo e construirei para nós uma casa, metade em terra, para mim, e metade na Ria, para ti. — Isso não pode ser! — Insistiu ela. — O Tritão matava-me, porque é muito mau e feroz. Se eu pudesse transformar-me em mulher, então, sim, poderia casar contigo, mas nós sabemos que tal nunca será possível. Estava muito triste agora a bela sereia. Atirou-lhe um beijo na ponta dos dedos, mergulhou e desapareceu. Ramiro, antes de lançar a rede para pescar, ia todos os dias ao local onde tinha visto a sua amada, mas ela não tornou a aparecer. Assim, na sua faina diária, ora suspirava, ora cantava umas trovas tristes, que ele compunha na altura. Era o peixe que lhe dava o sustento para si e para a madrinha. Por vezes, ao cair do Sol, quando puxava a rede, julgava ver reflectida na água o rosto querido da bela sereia. A madrinha, conhecedora daquele sofrimento e querendo-lhe como se seu filho fora, disse-lhe um dia: — Devias ir à ti Bárb'ra, que é mulher de ciência. Talvez ela saiba uma maneira de transformar a tua sereia em mulher. Eu gostava muito de te ver feliz... — Vou, sim, madrinha — respondeu o rapaz. — Por ela eu farei tudo! — Então, tens de ir sozinho e de noite, que ela só tem poderes depois de se pôr o Sol. Assim, ao morrer a tarde de um certo dia, ele meteu pés ao caminho, andando muito tempo sobre as dunas, até chegar a uma choupana sobranceira ao mar. O vento forte empurrava-o para trás e ele fazia um esforço redobrado para continuar a caminhar; terríveis relâmpagos cortavam o céu no escuro da noite, obrigando-o a fechar os olhos para não ficar cego; tenebrosos trovões faziam tremer a terra e a chuva era tanta, que lhe parecia que os próprios ossos estavam encharcados. Cheio de coragem, indiferente à adversidade da Natureza, bateu à porta da choupana, gritando: — Ti Bárb'ra! Ó ti Bárb'ra! Daí a pouco a porta abriu-se e Ramiro viu uma velha toda vestida de negro e com uma vela na mão, cuja chama tremulava com a ventania cá de fora. — Entra, filho! — disse ela, com uma voz que lembrava uma gaita desafinada. — Eu sabia que vinhas. Apesar de valente como poucos lá da terra, Ramiro hesitou por um instante, perante aquela figura sinistra, que mais parecia já não ser deste mundo, de faces cor de terra, um lenço preto à volta da cabeça, de onde caíam umas farripas de cabelo completamente branco, nariz afilado como uma faca, 32

curvo como o bico do mocho, e uns olhos pequeninos, encovados, escondidos num montão de pregas da pela toda engelhada. — Entra, filho! Não tenhas medo! — Insistiu a velha. Lá dentro havia uma fogueira e uma panela de barro sobre uma trempe, de onde saía um vapor que se desfazia no ar. As paredes de madeira davam a impressão de estar dançando com o reflexo das labaredas. Ao fim de algum tempo, começou a perceber que havia uma mesa no meio da choupana e que três gatos pretos dormiam ao pé do lume, aquecendo-se no braseiro. — Ti Bárb'ra, eu venho cá por causa de... — Começou Ramiro. — Não precisas de contar, meu filho, que eu sei tudo! Senta-te aqui à mesa! Lá fora, o temporal continuava. A chuva e o vento faziam abanar a cabana, como se a quisessem derrubar. Sentaram-se à mesa, em bancos de madeira, um de cada lado, de modo que ficaram frente a frente. Ramiro viu então uma caveira sobre a mesa e teve um sobressalto. — Não te assustes, meu filho! — tornou a velha. — É nisto que se transformam as belezas do mundo, os bons e os malvados, os ricos e os pobres. Eu sei que gostarias de ver a tua sereia transformada em mulher. Voute dizer o que tens de fazer. Não é difícil, mas desde já te aviso: o que vais fazer só pode ser feito uma vez; se correr bem, a tua amada sairá das profundezas das águas em forma de mulher e assim permanecerá para sempre; se correr mal, nunca mais a verás, nem mesmo sob a forma de sereia. — Estou disposto a tentar seja o que for — assegurou Ramiro. Então, a velha explicou tudo, tim-tim por tim-tim: — Primeiro, vais construir uma casa de madeira, na duna, no sítio que chamam Costa Nova, pintando-a às riscas da cor que mais gostares, alternando com branco, por causa do mau-olhado; depois, vais pescar a Lua Cheia. — Pescar a Lua Cheia? — Perguntou ele, incrédulo. — Foi isso mesmo que eu disse — continuou a velha. — Metes-te no barco numa noite de Lua Cheia, vais vogando até onde vires o astro reflectido na água. Aí, paras e lançando a rede, puxa-la devagar, de modo que traga a Lua inteira lá dentro. Então, só tens que ir até à casa nova e atirar a rede para o seu interior e logo verás a mulher que foi sereia a sair da água e a entrar em casa. Pode parecer que é tudo fácil, assim, mas o grande problema é que nem a Lua te pode ver nem pode haver o menor ruído até que chegues a casa com a Lua dentro da rede. Não te esqueças! Ao mais pequeno barulho, estará tudo perdido. Ah! ainda uma outra coisa: não podes contar isto a ninguém, nem mesmo à tua madrinha. Para te não esqueceres de nada, repete lá tudo até haveres decorado todos os passos a seguir!

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Três meses levou a fazer a casa e a preparar o moliceiro, pondo na parte superior da proa um acrescento em forma de quarto crescente, o qual, cobrindo-o, não deixaria que a Lua o visse. Numa noite de Lua Cheia, meteuse no barco, foi até onde se via a Lua toda reflectida na água, atirou com cuidado a rede em toda a sua volta e foi puxando, vendo com satisfação que a bola branca vinha dentro dela. Seguiu então na direcção da casa que fizera, aproou na areia e saltou para terra, sempre com a rede fechada na mão e a bola luminosa lá dentro aprisionada. Foi então que o silêncio foi quebrado, porque uma gaivota que dormia na praia ia sendo pisada por Ramiro e levantou voo a grasnar, cheia de medo. Quando o grito da ave atravessou o silêncio da noite, a bola branca desapareceu de dentro da rede e tudo ficou perdido. O pescador tornou ao barco, navegou até umas covas que havia do outro lado da ria, saltou em terra, deitou-se no chão e chorou mil dias e mil noites sem parar. As lágrimas foram tantas, que encheram as covas e o Sol, secando a água, deixou-as cheias de sal. Tudo isto se passou há muitos, muitos anos, mas ainda hoje se podem ver as salinas, que são o sal das lágrimas que Ramiro chorou, tal como muitas casas que depois fizeram na Costa Nova e, porque gostaram da que ele tinha feito, lhe seguiram a traça. O moliceiro, esse, continua a apresentar aquela proa em forma de quarto crescente.

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O EMPURRÃO

A elite cultural da vila ribatejana, aquele grupo que se juntava todas as tardes, entre o fecho das repartições e o jantar, no Café Moderno, estremeceu de emoção com a notícia. Apenas o ajudante de farmácia não era licenciado, mas a sua qualidade de correspondente de O Século fazia dele um intelectual das letras. À roda de duas mesas encostadas, juntavam-se o médico, o conservador do Registo Civil, o notário, o veterinário, o tenente da GNR, o advogado, o chefe de secretaria da Câmara Municipal e um major, proprietário abastado, que fora compulsivamente passado à reserva por motivos políticos, depois de ter andado às voltas com a PIDE e de ter estado preso em Caxias. Nessa tarde, o Dr. Sebastião, conservador do Registo Civil, esperou que estivessem todos — o farmacêutico chegava, geralmente, mais tarde, — sacou do bolso interior do casaco um envelope com listas verdes e amarelas, retiroulhe de dentro uma folha dobrada em quatro, desdobrou-a e entregou-a ao veterinário, que estava à sua direita: — Veio do Brasil... Esta manhã. Perante a expectativa dos outros, o veterinário pôs os óculos de leitura, deu uma olhadela rápida ao conjunto e leu em voz alta: — Academia de Letras de S. Paulo, etc... Sebastião Marcos, etc... Temos o prazer de informar que a sua quadra obteve o 1º Lugar nos Jogos Florais de 1968 desta Academia. Seria para nós uma honra que o viesse receber, etc. — Sim, senhor! — exclamou o tenente. — Então... poeta... e não dizia nada... — Ora!... Lá calha de vez em quando — justificou, tentando um ar modesto. Foi cumprimentado e felicitado por todos. O major sugeriu que o laureado pagasse os cafés e oferecesse brande para comemorarem. — Ó Jaquim, anda cá! — chamou o criado que, de bandeja cromada na mão, servia as mesas. — Aqui o nosso Dr. Sebastião acaba de ser laureado em poesia no Brasil. Pelo ar aparvalhado do homem via-se que não tinha percebido nada. — O Dr. Sebastião é poeta... faz versos... percebes? — Claro, Sr. Major!... Claro!...

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— Ele entrou num concurso no Brasil... mandou para lá uns versos... e ganhou o primeiro prémio. Estás a ver... logo no Brasil, que está cheio de poetas de primeira! O Dr. Sebastião é um grande poeta da nossa terra. O Jaquim, agora, sorria e abanava a cabeça, pois compreendera tudo. — Vá! Serve uma rodada de brande! Do bom, hein! — ordenou o major. — E ele é que paga. Nessa tarde foi esquecida a discussão que vinham tendo sobre as recentes manifestações de Paris, no mês de Maio, e só se falou daquele prémio literário e do poeta que tanto honrava a sua terra natal. Quiseram ouvir a famosa quadra. — Talvez não acreditem... — balbuciou o laureado. — Eu escrevo... e depois esqueço-me. Tenho centenas de quadras e não me lembro com qual concorri. Eles também não dizem aí. Como vou saber? Daqui a uns dias já vos digo. Obviamente, não podia saber. Ele fora colhido de surpresa com aquela carta chegada nessa manhã, inesperadamente. Calculou logo que fosse obra de seu pai, tradicional ganhador de prémios em jogos florais, a que concorria desde a juventude. Tentara falar com ele pelo telefone, mas não tinha conseguido encontrá-lo. Só no dia seguinte ficou a saber que o pai tinha enviado para S Paulo duas quadras em seu nome, por o concurso só admitir duas quadras de cada concorrente. Curiosamente, tendo-lhe deixado as duas que considerava mais fracas, fora uma delas a única premiada. Então, para fazer jus à sua nova condição perante os amigos, começou a fazer umas quadras, que lia no café, passando depois a fazê-las sempre que havia um evento importante na vila, de modo que, em pouco tempo, muitos o conheciam já como poeta e, para mais, laureado no Brasil. O farmacêutico enviou a notícia para O Século, mas nunca foi publicada.

*** Dr. Sebastião, que, sendo embora contra o regime, nunca tinha tido qualquer iniciativa activa, com excepção do major. Depois de alguns dias de euforia popular, o major recebera instruções para tomar conta do município e arranjar uma Comissão Administrativa, para o que convidou cinco dos seus amigos de café, tendo como presidente o Dr. Sebastião, por ser figura notável na terra, já que ele ficaria de fora, porque lhe tinha sido prometido o lugar de governador civil. Perante os excluídos, justificou-se: — O Sr. Tenente não ficava bem ir para a Câmara, porque é tropa e vai ter outras tarefas no MFA; o Dr. Paixão já lá tem o seu lugar de chefe de secretaria e não convém perder a sua competência nem a sua experiência e o 36

Sr. Lapinha está muito ocupado com a farmácia e, além, disso, precisamos dos seus serviços, como relações públicas, pois é jornalista. Tirou uns papéis da pasta e distribuiu-os: — São propostas para o Partido Socialista. Vamos formar a nossa Comissão Concelhia e depois há lugar para todos. Quando se realizaram as primeiras eleições autárquicas livres, a comissão concorreu com listas de outros partidos e ganhou por grande folga, mas só meteu três autarcas, tendo ficado de fora o notário e o veterinário, que, entretanto, na sua qualidade de vice-presidentes da Comissão Concelhia e delegados à Assembleia Distrital, tinham já funções importantes. O major viu rapidamente aprovados loteamentos para os terrenos que possuía junto da terra, cujos lotes, dado que a praia estava a uns escassos três quilómetros da vila, despertaram facilmente o interesse de alguns construtores e por bom preço, recebendo o poeta laureado no Brasil um lote para si e outro para cada um dos filhos, onde vieram a ser construídas belas moradias, com jardim e piscina, por oferta dos construtores. O Dr. Sebastião, agora novo rico, granjeara a simpatia popular, não perdendo oportunidade de dizer uma quadra sua no fim de certas intervenções públicas, como inaugurações de melhoramentos no concelho, entrega de casas de renda social, etc. Como licenciado em direito, tinha o verbo fácil, fluente e aprendeu a fazer promessas que sabia não poder cumprir, mas que caíam bem nos ouvidos dos eleitores. Por isso, conseguiu ser reeleito quatro vezes, embora tivesse relegado o seu velho amigo médico, para meter no seu lugar um comerciante imposto pelo major, que era Governador Civil do Distrito. Quando podia ir para o quinto mandato, reformou-se com o vencimento autárquico, muito maior do que o que teria se tivesse continuado no Registo Civil, a instâncias da mulher, farta de não ter marido e desejosa de começar a gozar a vida, agora que podiam viajar, que fora sempre o seu maior sonho. O Dr. Sebastião pôs o problema da sua retirada na Comissão Concelhia, alegando que desejava dedicar-se por inteiro à poesia e publicar um livro, mas que, no entanto, gostaria de continuar a ser presidente da concelhia. Com efeito, editou três livros, todos de quadras, sem qualquer qualidade, dos quais, embora os fosse oferecendo a torto e a direito, tinha vários pacotes na garagem. Ao ler o primeiro, o pai tinha-o desencorajado de continuar, mas ele estava realmente convencido de que era um grande poeta. À socapa, havia concorrido a alguns jogos florais e nem uma simples Menção Honrosa conseguiu, mas desse fracasso ninguém teve conhecimento, nem mesmo a própria mulher.

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O partido tinha ganho de novo as eleições e o seu sucessor, quase no fim do mandato, organizou uma homenagem ao Dr. Sebastião, tendo sido dado o seu nome à rua onde morava. No descerramento da placa toponímica, os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas ao ouvir o Presidente seu sucessor lê-la em voz alta para a numerosa assistência: RUA Dr. SEBASTIÃO MARCOS Poeta Laureado O pai, que lhe dera inconscientemente o empurrão para a glória, não pôde assistir a esta cerimónia, por ter falecido um ano antes, numa terra distante, restando da sua memória apenas uma sala em sua casa com mais de mil troféus de jogos florais, de todo o País e do estrangeiro, e uma pequena notícia da sua morte, sem direito sequer a fotografia.

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O VALE ENCANTADO

Tive uma tia que morreu solteira, por falta de oportunidades ou talvez por ser demasiado baixa, embora não fosse anã, e usasse óculos com umas lentes muito grossas, que lhe deformavam a íris azul. Como compensação, votou a sua vida de forma autodidata a estudar para obter novos conhecimentos. Passámos muitas e muitas horas juntos e tinha um jeito especial para sossegar a minha traquinice. Entre as muitas encantadoras estórias que, para nos entretermos, a mim e também a ela, me contava, uma em particular ficou na minha memória, enchendo de belo, de maravilhoso, de mágico e de fantástico a minha imaginação de criança. Havia um vale paradisíaco, algures, entre montanhas altas e inóspitas, num país que ninguém conhecia e que não vinha no mapa. Chamava-se Vale Encantado. Tinha água em abundância, sem se saber donde vinha, que corria nos rega-tos, cantando e deslizando sobre seixos brancos, reluzentes, redondos, e de pedaços de cristal de rocha, ametistas, topázios, rubis, esmeraldas, safiras e outras pedras preciosas; saltava em queda livre do alto das ravinas, formando cachoeiras de grande beleza, espalhando por todo o espaço o som de violinos, violoncelos, trompas, oboés e outros instrumentos musicais. Todos os arroios terminavam em lagos calmos, enormes, onde peixes vermelhos e dourados nadavam placidamente, abanando as longas caudas abertas em leque, numa transparência tão pura, como se estivessem num aquário. A água brotava de nascentes, nas encostas, refrescada por vegetação viçosa e aromatizada por tufos de flores silvestres. Era leve ao beber, sem gosto nem cheiro. Uma flora verdejante e diversificada revestia todo o vale. Tudo o que a vista alcançava era verde e flores. Havia lameiros, em cuja erva tenra pastavam vacas, cabras e ovelhas, na companhia de girafas, zebras e gazelas. Por todo o lado se viam arbustos floridos, pintando o ambiente de múltiplas cores e matizes, com a ajuda do trevo amarelo, que crescia por entre a erva, e a rubra papoila, estampada no verde amarelecido dos trigais. As copas das árvores frondosas tocavam o azul do céu, matizando-o de variados tons de verde, com os troncos enfeitados de musgo macio. Folhas peninérvias, como a do castanheiro, palminérvias, como a do plátano, paralelinérvias, como a da 39

bananeira, e múltiplas, como a das acácias, formavam um toldo, cuja sombra era amena e refrescante. Como se não houvesse estações do ano, viam-se cerejeiras, laranjeiras e macieiras em flor, misturadas com outras de cujos ramos pendiam frutos diversificados, carnudos e apetitosos, parecendo brincos coloridos em orelhas de moças casadoiras. Apanhavam-se para comer e logo outros nasciam no seu lugar. Havia cerejas rubras, maçãs rosadas, laranjas sumarentas, peras docinhas, figos brancos e pretos, bananas amarelinhas pintalgadas, enfim, tudo o que se possa imaginar. Pousadas nos ramos despidos das árvores ou saltitando, irrequietas, por entre a folhagem entrelaçada, viam-se muitas aves coloridas: periquitos, araras, colibris, canários, rouxinóis, pintassilgos, melros, pássaros de longa cauda e bicos de formas e cores diferentes. Alguns cantavam e o seu trinado era simplesmente maravilhoso, enquanto outros batiam apenas com o bico forte, como que marcando o compasso de uma melodia bem ensaiada. Aqui e além, passeavam-se vaidosos pavões de cauda aberta em leque, espalhando cambiantes de azul e verde. Casais de patos deslizavam com as ninhadas pelas águas remansosas dos lagos, onde cisnes, brancos e negros, ostentavam o longo pescoço curvilíneo. Os caminhos eram suaves e planos, atapetados de relva tenra e fofa, orlados de crisântemos e de belas estátuas de mármore e de bronze. Alguns terminavam na borda dos lagos, onde se viam praias de areia dourada e fina, com partículas de mica reluzente. O Sol, filtrado pela ramaria do arvoredo, era uma carícia suave e morna, sem a palidez invernal nem o árduo fulgor estival. Era como se fosse sempre Primavera... O ar era leve, com odor de lilases. As folhas não buliam. Não havia o vento que assobia, nem a chuva que molha até aos ossos, nem os vendavais com o relâmpago que assusta ou o trovão que mete medo. Ali o dia durava eternamente e não se conhecia o que era o escuro da noite. E onde ficava este vale encantado? Ninguém sabia. As pessoas de coração puro, que seguiam o caminho do bem, do amor e da fraternidade encontravam-no um dia, sem dar por isso. Ele aparecia à sua frente, radioso e majestático, por artes de estranha magia, do outro lado duma ravina profunda, atravessada por uma ponte de ramos verdejantes, criteriosamente entrelaçados, e coberta por um tecto de glicínias com cachos roxos pendurados. Se, entretanto, uma pessoa má, avarenta e egoísta, se perdesse no caminho e conseguisse chegar lá, ao atravessar a ponte, deparava com um grifo sobre um pedestal de alabastro, um animal medonho e enorme, metade águia e metade leão, de forte bico recurvado, cabeça e asas negras, corpo, patas e cauda de pelo vermelho, que lhe daria uma bicada, atirando-o para o

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fundo da ravina. Ele é o guarda da entrada estreita do Vale Encantado, aquele que vela para que só ali entre quem tiver o coração limpo de qualquer mácula. A minha tia rematava sempre a estória com um aviso: — Se comeres a sopa toda, se te portares bem, se não aborreceres o teu pai ou a tua mãe, vais encontrar o Vale Encantado, uma manhã, quando acordares e abrires os olhos. Então, por vezes, ao despertar, lembrava-me do Vale Encantado, mas o que via eram apenas as paredes do meu quarto pequeno, forradas de papel florido e desbotado pelo tempo e pela humidade. Eis que, agora, com a cabeça branca, a barba rala, as costas abauladas e as pernas fraquejantes, mal acordado ou metido em estranho sonho, dei comigo a atravessar a ponte florida do Vale Encantado que enchera de beleza e de magia o imaginário da minha infância. Trémulo de medo, cheguei junto do grifo de aspecto assustador, olhei-o de frente e fui passando, devagarinho, pela entrada estreita, enquanto o bicho me olhava de soslaio e me piscava o olho com ar de cumplicidade. Entrei no vale maravilhoso, respirei o ar odorizado de lilases, escutei a música das fontes, dos regatos e das cascatas. Que maravilhoso era o canto da passarada! Percorri os cantos mais belos que jamais vira. Fui aos lagos, vi os peixes, os cisnes e as praias douradas, meti os pés na água refrescante e calma. Ó beleza sem igual! Quando, porém, me refiz do espanto, encheu-se-me a alma de tristeza. Aquela maravilha era minha e podia gozar plenamente a sua paz. Era tudo meu, mas estava completamente sozinho. Não havia lá ninguém...

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O SINISTRADO

Caía uma chuva miudinha, irritante, que enevoava a noite e me obrigava a redobrar de atenção à estrada estreita e sinuosa, que serpenteava por entre muros de quintas arborizadas, numa descida constante pela serra, a caminho do litoral. As luzes do carro, embora perdendo-se, difusas, por entre a chuva, iluminavam as copas das árvores que, sobressaindo no alto dos muros envelhecidos e sem verem pinga de cal há muito tempo, bordejavam o caminho e deveriam oferecer uma deliciosa sombra a quem passasse nas bermas durante o dia. Sempre que há pouca visibilidade, é meu costume seguir devagar, numa marcha cautelosa e atenta às curvas não sinalizadas, a um ou outro buraco que a intempérie e o uso sempre vão fazendo no pavimento betuminoso e que os responsáveis se esquecem de tapar. Já lá vai o tempo em que a verdura da mocidade adorava as velocidades, naquela irresponsabilidade própria da juventude, e que me trouxe, entretanto, alguns dissabores. Nessa idade, ingenuamente julgamos que os acidentes só acontecem aos outros e que a morte não passa de uma imagem surrealista. A certa altura, frente a um portão de ferro orlado de pilares pontiagudos, vislumbrei por entre os fios de chuva e a luz dos faróis um vulto escuro e indefinido no chão, que me obrigou a parar. O que quer que fosse estava imóvel. Com um mau pressentimento, nem pensei no guarda-chuva e apeando-me, deixei o carro travado com o travão de mão, o motor a trabalhar e as luzes acesas. Aproximei-me com certa cautela, que a gente, torna, não torna, só ouve falar em assaltos perpretados sob os mais díspares disfarces. Era um ser humano, prostrado de bruços, envolto numa capa escura de plástico, provavelmente cuspido de uma motorizada que esborrachara a lataria da frente no muro alto da quinta e se encontrava uns metros mais atrás, tombada de lado. Para ver se a pessoa estava consciente, exclamei alto, a uns previdentes passos de distância: — Ói! Eh! Não tugiu nem mugiu. Um tanto baralhado com a inusitada situação, fui ao portão da quinta em busca de auxílio, mas a escuridão dentro da casa, que o clarão do carro levemente destacava do escuro da noite, e uma grossa corrente

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presa com um cadeado ferrugento a unir os dois batentes da grade deram-me a certeza de não haver ali ninguém. Fui então erguer o vulto do chão, virei-o e os faróis embateram numa cara de homem, de cor negra, olhos cerrados e narinas largas. Afastei a capa e não vi sinais de sangue. O coração batia. Lancei os olhos à estrada deserta e, com grande esforço, consegui arrastá-lo até ao carro e deitá-lo no banco traseiro. Quando faltavam uns dez minutos para chegar ao Hospital, o infeliz soltou um gemido. — Oh amigo, tem dores? — perguntei sem virar a cabeça e continuando com atenção ao trânsito que atravancava as ruas da cidade, naquela hora do regresso de toda a gente a casa. O homem continuava a gemer, mas não falava. Chegado à porta da Urgência, entrei e dirigi-me ao balcão de atendimento, dizendo, apressado e sem entrar em desnecessários pormenores naquele momento: — Tenho um ferido no carro. Caiu de uma motorizada. — Traga-o para dentro e venha fazer a ficha! — respondeu o funcionário por detrás do vidro de protecção sanitária, com um orifício circular por onde passava o som das vozes. Olhei em redor e não vi nem um maqueiro nem um polícia a quem pedir ajuda. Diversas pessoas aguardavam a vez nas cadeiras dispostas em filas na sala de espera. Três homens que estavam a acompanhar doentes ajudaram-me a levar o sinistrado para a sala e a estendê-lo de costas sobre as cadeiras, onde lhe pousei a cabeça sobre o meu kispo que, entretanto havia despido. Soltava gemidos, a espaços, mas continuava com os olhos fechados, sem dar conta do que se passava. — É família do doente? — Perguntou-me o funcionário da recepção, quando fui fazer a ficha. — Eu?... Nem sequer o conheço. Encontrei-o caído na estrada... acho que deve ter caído da motorizada. — Como é que se chama o doente? — Sei lá!... — Atirei, já irritado com a frieza e a estupidez do funcionário, que parecia ter as perguntas gravadas. — Já lhe disse que o encontrei na estrada... O homem semicerrou os olhinhos pequenos, de modo que a coisa mais visível do seu rosto, enrugado por uma idade que devia estar a chegar à da reforma, passou a ser o bigode branco, farfalhudo, a morder-lhe os lábios finos e descorados, juntou as mãos que se haviam libertado do teclado da máquina de escrever e, pausadamente, explicou: 43

— Esta casa tem regras. Sem nome, não há ficha. Sem ficha, não há internamento. Não será melhor ver se ele tem Bilhete de Identidade? E cartão da Segurança Social. Fui vasculhar as algibeiras do sinistrado, que nem eram muitas, uma na camisa e três nas calças, mas apenas encontrei uma nota e algumas moedas. Voltei ao balcão. — Nada. Não tem nada. — Assim, nada feito — foi a resposta lacónica. — Como assim? — Inquiri, indignado. — O homem está a gemer com dores e não lhe acodem? Sem abandonar o tom pausado, calmo e explícito de quem levou uma vida inteira a atender pessoas impacientadas por desgraça caída de repente e ansiosas por uma ajuda rápida, disse-me: — O doente já vai ser visto por um médico e vou providenciar-lhe uma maca. Nesta casa há humanidade... mas tem as suas regras. Mesmo que as pessoas não concordem, não adianta. As regras fizeram-se para a gente cumprir. Quem é o responsável pelo doente? Tenho de pôr na ficha o nome da pessoa responsável. Pelo menos, isso. Aquela calma de burocrata convicto desarmou-me e tirou-me toda a vontade de refilar. — Sou eu. Ponha aí o meu nome! — O nome e a morada. Também preciso da sua morada.

*** Voltei ao hospital na manhã seguinte, antes de ir ao escritório. Não havia vestígios da chuva da véspera e um sol morno, gostoso, punha mais claras as cores do casario. Pouco passava das oito, mas o trânsito apresentava já uma certa intensidade, nesta época em que os transportes públicos se demitiram da sua função e a viatura substituiu as pernas humanas. A minha mulher, conhecedora da minha preocupação, sugeriu-me que pusesse um anúncio no jornal, mas essa ideia pareceu-me inútil, porque onde o homem deveria viver certamente não chegavam os periódicos. Achei preferível levar uma Polaroid e tentar encontrar alguém que o conhecesse, procurando lá pelas bandas onde ele tinha tido o acidente. Lá o fui encontrar na sala de espera, agora deitado sobre uma maca, tapado com um cobertor, resguardo das correntes de ar num canto juncado de vasos com plantas artificiais, que davam, no entanto, o ar alegre de um jardim ao amplo compartimento. Haviam-no posto a soro e ainda não recobrara os sentidos. Quase todas as cadeiras estavam ocupadas por pessoas à espera de 44

serem atendidas, indiferentes ao drama do homem da maca, porque o egocentrismo que assolou as sociedades citadinas as faz olhar exclusivamente para o próprio umbigo. Só desviavam a atenção do televisor empoleirado a meio da parede do fundo para o altifalante que, a intervalos irregulares, as ia chamando pelo nome e que era o passaporte mágico para entrarem na porta proibida, que dava acesso à esperança. Por detrás do balcão vi duas funcionárias e imensa gente à espera de fazer a ficha, em duas filas que me pareceram intermináveis, e desisti de procurar ali informação sobre o estado do doente. Agarrei-me a um maqueiro que ia a sair. — Está em coma, mas não tem nada partido... Foi todo radiografado... Deve ter batido com a cabeça... Embora não conhecendo o sinistrado, agora que era oficialmente responsável por ele, sentia-me como se existisse realmente alguma ligação entre nós. Recebi, por isso, com alívio a notícia de que ele não tinha nada partido. Nós, os portugueses, temos uma especial propensão para dramatizar o mais simples facto da vida e toca-nos sempre a desgraça dos outros, especialmente depois de uma certa idade, em que estamos mais sensibilizados para pensar que ela nos poderia ter acontecido a nós próprios. Fotografei-o naquele papel que sai logo da máquina, embora sem atingir a melhor qualidade, e que não deixa de ser uma das milhentas maravilhas da técnica, de que o homem contemporâneo desfruta de forma natural, sem se aperceber das vantagens e das facilidades do seu dia a dia, em relação aos seus antepassados mais próximos. Passei pelo escritório para dar umas ordens e parti para o local do acidente, onde não fui feliz nas buscas que fiz nas tabernas das aldeias ao redor. — Esse pessoal trabalha geralmente nas obras e vive em barracas erguidas no próprio local de trabalho — opinou um companheiro de café, onde, depois de regressar, entrei para me recompor com uma bica curta. — Se o seu homem não tem documentos, não lhe vai ser fácil encontrar uma pista. Já viu o que vai para aí de obras, onde os africanos são explorados até à medula, com baixos salários e sem qualquer regalia social? E quem lucra com isso? Nós? Nã!... Eles, os construtores, é que ficam com a massa. As obras saem-lhes mais baratas. Não é? Mas as casas não são mais baratas. Logo... menos custos, mais lucros. — Nas obras?... — saiu-me como um pensamento em voz alta. — É. No seu lugar, procurava era nas obras. Aproveitei a ideia e, durante três dias, percorri os estaleiros mais próximos do local do sinistro, mas sem qualquer resultado. Mostrei a fotografia vezes sem conto... e nada. 45

*** Ia todas as manhãs ao hospital, como quem participa num ritual de culto da esperança, celebrado por um sacerdote invisível, mas onde se sente a sua etérea presença. O estado do doente continuava estacionário. A soro, de olhos fechados, dir-se-ia que dormia tranquilamente, sem dores. Raramente estava sozinho e, mesmo assim, apenas durante a noite, quando o movimento abrandava. Uma companhia sempre renovada, mas que não deixava de ser uma companhia, barulhenta de dia e mais pacata nas horas mortas, porque a quase totalidade das urgências são falsas urgências e o Banco funciona como um serviço de consultas, para quem tem uma dor ou uma perna inchada há alguns dias, que não cedem a chás ou a mezinhas caseiras. Ali estava o doente, assistido, mas sem direito a uma cama na enfermaria, por decreto da burocracia. Uma pessoa sem documentos é como se não existisse. Para mais, se não pode falar, nem nome tem. É um desconhecido. Por isso, algum funcionário lhe começou a chamar Zeca e o nome pegou. Reparei que tinha um aspecto muito apresentável e que o barbeavam regularmente. Era notória a simpatia que o pessoal sentia por aquele infeliz, incógnito, vítima da rigidez das regras, um aventureiro que fugira da pobreza da sua terra e para quem a caprichosa Sorte se tornou madrasta, colocando-o numa imobilidade letárgica, sem termo determinado. Devido às minhas visitas diárias, deixei de ser um estranho na Urgência e o pessoal considerava-me como se fosse familiar do doente. Ele e eu éramos certamente os únicos habitués do Serviço, já que os seus frequentadores chegavam e partiam, sem deixar traços emocionais da sua permanência. Enfermeiros, maqueiros, bombeiros e polícias trocavam comigo impressões sobre o homem da maca, hóspede forçado da sala de espera pela ditadura da burocracia, tornado um verdadeiro caso no Hospital, pela sua singularidade. Informaram-me que o coma era assim mesmo e que não havia mais nada a fazer senão esperar. A medicina, apesar do seu extraordinário progresso científico e tecnológico, ainda não possuía um remédio para aquele mal.

*** Foi uma espera de oito longos meses, em que diariamente o visitei, na esperança de o ver abrir os olhos e falar, dizer como se chamava, de onde era, que idade tinha, que parentes próximos deixara do outro lado do mar. Os amigos e os companheiros de café pediam-me regularmente notícias dele, como se tratasse de parente meu. Também para todos nós ele era o Zeca.

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Um estranho em terra alheia é como um passarinho que tem o seu poiso nocturno no ramo de uma árvore perdida na floresta. Os seus colegas de trabalho, ao darem pela sua falta, terão pensado que partira em busca de emprego com melhores condições. Sem dor, sem sofrimento, finou-se na madrugada invernosa do último dia do ano, quando as pessoas festejavam ruidosa e alegremente a chegada do Ano Novo, naquela esperança anualmente renovada no final de cada ano que passa. O Céu, zangado com os homens, zurzia a escuridão da noite com raios e coriscos, com acompanhamento musical de tímbales, como se quisesse chorar, no seu modo estranho, a libertação da alma do infeliz africano finado em terra de desconhecidos, longe dos parentes e dos amigos. O pessoal da Urgência fez questão de se quotizar para pagar o funeral do Zeca e, quebrando a rigidez das regras, levou-o para dentro, para que o seu trajecto para a morgue fosse exactamente igual ao dos doentes que ali morriam. Apesar de desconhecido, teve um funeral acompanhado por muita gente, pelos muitos amigos que não chegou a conhecer, mas que, entretanto arranjou neste transe infeliz, pessoal da Urgência que estava de folga, bem como pessoas das minhas amizades e dos meus conhecimentos.

*** Estava eu no Hospital, no dia a seguir ao Ano Novo, a assinar a imensa papelada que é necessária a uma pessoa, mesmo quando morre, na qualidade de responsável oficial pelo doente, quando entrou uma equipa da Televisão, que ia fazer uma reportagem sobre o doente da sala de espera da Urgência, de que tivera conhecimento por uma notícia de um semanário local. Com o ar apressado que sempre têm os funcionários da Televisão, partiram tão depressa como vieram, não sem antes desabafar a sua frustração: — Isto é que é galo! Vem a gente de Lisboa a correr e o gajo já bateu as botas. Logo uma notícia destas que sempre dava uns dois ou três minutos no Noticiário... A caminho de casa, fui meditando que até na morte se pode ser infeliz. Zeca, finado sem a companhia de um familiar ou de um amigo, jazendo agora incógnito num qualquer cemitério de país estranho, nem sequer pôde aproveitar a única oportunidade que a Televisão lhe queria dar de ser conhecido por milhões de pessoas, ainda que tal conhecimento fosse tão efémero como a frescura de uma brisa momentânea no meio de uma tarde cálida de Agosto.

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O ADIAMENTO

Sentado numa cadeira de espaldar, toda em couro, com muitos botões de latão, cuidadosamente areados, o director da Penitenciária punha assinaturas num montão de documentos. Do outro lado da grande secretária de mogno, o chefe da secretaria aguardava, sentado, em silêncios interrompidos aqui ou ali para qualquer explicação. Pela janela aberta entrava o ruído de um ou outro automóvel que descia a estrada, para lá da cerca da frente. Depois, ficava só o som cavo das picaretas, batendo o tufo calcário do pátio, onde alguns presos procediam ao conserto do colector de esgotos, sob o olhar vigilante de um guarda armado. O director rabiscava uma assinatura ilegível no fundo da folha ou uma simples rubrica no canto superior direito, virava-a sobre o monte que estava já à sua esquerda e recomeçava o mesmo ritual. Trabalho monótono e lento. Às cinco horas teria de ir buscar a mulher para uma cansativa viagem de seiscentos e tal quilómetros. Tinha-lho prometido mais uma vez — aquela visita aos sogros não se fazia há três anos, por motivos que ele conseguia inventar quase à última hora, — mas, agora, tinha de ser mesmo, porque o calhandreiro do Richard o vira num bar com uma garota nova e bonita e logo fora contar à mulher, que era amiga da sua. Apesar de todas as desculpas que arranjara, ela propusera esquecer o assunto com a condição de irem passar aquele fim-de-semana com os pais, na quinta que ela achava maravilhosa e tranquila, mas onde ele se aborrecia profundamente, até porque o sogro era um daqueles homens que contrariam tudo o que a gente diz. E o monte de papéis nunca mais acabava!... O chefe da secretaria, cansado de aguardar, sem qualquer motivo de distracção no meio daqueles móveis que ele via desde há mais de vinte e cinco anos, abria a boca, de tempos a tempos. Para ocupar o espírito, ia pensando que a sexta-feira estava a findar, iniciando-se dois dias de folga. Como sempre, levaria a filha até ao cais para ela ver o movimento dos barcos que chegavam e partiam. Vítima de paralisia infantil e órfã de nascença, absorvia todo o carinho do pai, que nunca lhe recusava coisa alguma, e era sempre ao cais que ela pedia para irem, mesmo quando chovia e tinham de ficar dentro do carro.

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O médico da cadeia irrompeu no gabinete, depois de um toque de mão na porta fechada, e exclamou: — O gajo está mesmo mal. O rim esquerdo está todo infectado. O director pousou a esferográfica e olhou-o apreensivo, enquanto ele se acomodava num sofá, puxava do cachimbo e começava a atacá-lo de tabaco. Apoiando o queixo na mão esquerda e o cotovelo sobre a secretária, perguntou: — Poderá aguentar-se de pé? Caminhar? — Com aquela febre?... É impossível. — Mas a execução é só na terça-feira! Pode ser que até lá... — Não. É impossível. — Talvez com antibiótico a febre baixe... — Não dá tempo. — O médico abanou a cabeça, num gesto que tirava qualquer dúvida. Acendeu o cachimbo, demoradamente, puxando fundas fumaças azuis. O director levantou-se e foi até à janela. Era um homem forte e baixo, prestes a fazer cinquenta anos, mas muito bem conservado. O caso era inédito na sua carreira e estava indeciso. Tornou a tentar: — A gente podia experimentar... Que Diabo, alguma coisa se poderá fazer!... — O gajo tem de ser operado e já, senão morre. — O médico foi perentório e tornou a acender o cachimbo, que se apagara. Estava visivelmente aborrecido, antevendo que não conseguiria sair a horas para levar a mulher ao supermercado. Como era seu hábito, quando estava nervoso, o director introduzira o dedo mindinho no ouvido e abanava-o. Conhecia a Lei e sabia que não lhe era permitido executar uma pessoa que não se encontrasse em estado de se aperceber do castigo que recebia, tanto mais que haveria repórteres a assistir. Olhou o relógio de parede, onde já passava das cinco. Agora ser-lhe-ia impossível passar primeiro pela casa de Eva — a tal garota nova e bonita, — com quem mantinha uma relação há mais de um ano. Entretanto, o médico chupava o seu cachimbo e acendia-o cada vez que se apagava, fitando em silêncio o caminhar dos ponteiros do relógio, adivinhando a mulher à sua espera, e o chefe da secretaria pensava que a filha, que fazia a lida da casa na sua cadeira de rodas, veria o jantar arrefecer. O bater das picaretas bulia com os nervos de todos. Depois de fitar o céu, durante algum tempo, e de arrumadas no cérebro todas as angústias, o director decidiu-se a telefonar ao director de serviços. Depois de uns vinte minutos para conseguir a ligação — o telefone estava a falar, — informaram-no de que ele tinha saído mais cedo, pelo que pediu que 49

passassem a ligação para o director-geral, que também estava a falar pelo telefone directo. A secretária ficou de dar-lhe o recado para telefonar logo que estivesse livre. O relógio de parede marcava as cinco e meia. O director passeava nervosamente sobre a alcatifa policromática do gabinete, receoso, por um lado, da ira da mulher e, por outro, antevendo a longa viagem que já teria de ser feita toda de noite, o que lhe era sempre penoso. Quando a campainha do telefone tocou, sentou-se rapidamente e apressou-se a expor o assunto. Do lado de lá da linha a voz era firme e concisa: a execução tinha de ser adiada sine die e deveria ser dada ao condenado a assistência médica necessária. — O doutor diz que ele tem de ser operado. — Pois então operem-no! — O doutor diz que se não for imediatamente o preso morre. — Então providencie para que não haja demoras! Após alguma hesitação e compondo maquinalmente o nó da gravata, jogou a última cartada: — A minha mulher espera-me para irmos visitar os pais ... É no Sul, na encosta da ... — Terá de ficar para outra vez! — cortou a voz do outro lado do fio, secamente. — Sinto muito, mas não podemos arriscar-nos a que o preso morra sem assistência. Chame a ambulância e transfira-o para o hospital! Telefone para avisarem o cirurgião! Monte a segurança necessária! A quadrilha poderá querer aproveitar-se da oportunidade. Sobretudo, que os jornais não sejam informados! A quadrilha virá a saber do mesmo modo, mas sempre será melhor não haver notícia. Mande informação ainda hoje para eu levar a despacho do ministro na segunda-feira! Por fax! Sinto que tudo isto tenha alterado os seus planos, acredite! Quando desligou o telefone, o director meteu o dedo mindinho no ouvido e pôs-se a abaná-lo com fúria. Não poderia dizer que lhe era desagradável a anulação da viagem, porque as suas relações com o sogro nunca tinham sido cordiais e a sogra irritava-o com aquela mania dos diminutivos, como se estivesse sempre a falar com criancinhas. Além disso, poderia passar por casa de Eva no domingo, enquanto a mulher assistia à missa e se reunia com as restantes senhoras da co-missão paroquial de beneficência. O pior era ter de lhe dar a notícia de mais outro adiamento, depois de ter prometido solenemente que, desta vez, houvesse o que houvesse, iriam mesmo. As duas figuras baralhavam-se na sua mente, sobrepondo-se alternadamente, num efeito inconsciente de comparação: a mulher, com os seus ataques de nervos a propósito de tudo e de nada, fazendo chantagem emocional com a sua saúde 50

precária, repelindo-o na cama por causa da dor de cabeça; Eva, com a juventude radiosa dos seus vinte e quatro anos, olhar doce e calmo, sempre disposta a satisfazer os mais pequenos caprichos do seu "chuchu" - como carinhosamente o tratava, - com aquela roupa sexy com que o recebia. — Doutor, telefone ao cirurgião e acompanhe o preso ao hospital! — O médico, com o cachimbo apagado entre os dentes e parecendo não pensar em coisa alguma, levantou-se e saiu, como se fosse inútil responder. — É preciso fazer uma informação para seguir ainda hoje por fax — disse ao chefe da secretaria, que tinha guardado silêncio durante toda aquela espera. — A esta hora o pessoal já saiu. Pode ser que ainda apanhe alguém. — Disse com a reverência que lhe era habitual e deixou o gabinete apressadamente. O director chamou o chefe dos guardas e deu-lhe instruções para que a transferência do preso para o hospital se fizesse com segurança. Percorrendo o corredor a caminho do seu gabinete, o chefe da secretaria ia nervoso, pensando na hora tardia a que chegaria a casa, onde iria encontrar a filha com o seu habitual mau humor, agravado pela longa espera. O director era muito miudinho com ofícios e informações, mesmo em casos de rotina, obrigando-o frequentemente a fazer alterações nos textos. Já antevia que a informação que ia fazer teria de vir a ser alterada. Além da irritação causada pelas exigências do director, que a disciplina hierárquica obrigava a conter, ia adquirindo, pouco a pouco, um perigoso complexo de inferioridade, que tornava ainda mais difícil a elaboração das minutas. A escriturária loura, de olhos azuis e nariz de papagaio, a quem os colegas gostavam de dirigir galanteios para se divertirem com o embaraço da sua natural timidez, preparava-se para deixar o trabalho. Já tinham saído todos, mas ela estivera na casa de banho a escovar o cabelo e a retocar a pintura da cara e dos lábios, com um cuidado fora do habitual. — É preciso fazer uma informação para seguir ainda hoje por fax! — Ordenou o chefe da secretaria, contente por tê-la encontrado ali. — Desculpe ter de atrasar a sua saída! — Mas hoje estou cheia de pressa!... — Exclamou, quase a chorar. — Lamento muito! São ordens do director. Com uma raiva que não podia exteriorizar, a rapariga viu o chefe entrar no seu gabinete e sentou-se à secretária, esperando pela minuta. Sentia-se a mulher mais infeliz do mundo. Ficara de se encontrar num bar com uma antiga colega da escola, que vira por acaso na rua, com quem falara dos bons velhos tempos e cujo marido ficara de levar um amigo divorciado. Depois, jantariam numa pizaria e iriam a uma discoteca. 51

Fosse por não ser bonita ou pela sua timidez, passara dos trinta anos sem nunca ter tido um namoro a sério. Andara com alguns, mas parece que apenas lhes interessava fazer amor, já que a relação pouco durara. Ela ainda não tinha perdido as esperanças, embora o correr dos anos a preocupasse seriamente. Por isso, continuava a tentar e neste homem divorciado pusera grande expectativa. Não estava em idade de perder oportunidades e, agora, ali aguardava uma minuta que teria de passar a máquina, pensando que a amiga talvez se cansasse de esperar e se fosse embora. Para mais, ela explicara-lhe como ir ter ao bar, mas não sabia o nome, pelo que nem sequer podia telefonar. Através dos painéis envidraçados do gabinete do chefe, via-o rabiscar folhas de papel, que amarrotava e lançava para o cesto. Eram seis e um quarto. Tinha vontade de chorar e a custo continha as lágrimas, não fosse o chefe vêla, pois nunca tinha simpatizado com ela, o que agravaria a sua situação profissional. A cada folha começada esperava que fosse a definitiva. Esperava, angustiada, por aquele homem que andava sempre taciturno, mal-humorado, ralhando por tudo e por nada, e só para o director era todo salamaleques. O preso chegou ao hospital pelas sete horas — era já noite — e a maca ficou no corredor, vigiada por dois guardas armados, à espera que terminasse a operação da única sala do serviço de urgência. Médicos, enfermeiras e maqueiros passavam, sem pressa e sem mostrar qualquer surpresa. O médico da cadeia, que desaparecera durante mais de uma hora, voltou para junto da maca e, por instantes, segurou com os dedos o pulso do preso, verificando a pulsação. Depois, desapareceu outra vez, pensando em como aquele hospital de cidade pequena era diferente dos das capitais. A operação que estava a decorrer terminou já depois das oito e meia e, como a rendição do turno se fazia às nove, a equipa de serviço iniciou os preparativos para se ir embora. Só que o anestesista não apareceu para render o colega. Telefonaram-lhe para casa e souberam que estava doente. O telefone dos outros dois não atendia. — Tens de ficar até amanhã! — Disse ao anestesista o chefe do grupo. — Já fiz doze horas e não suporto mais gases — retorquiu, vestido e pronto para sair. — Tem de ser! Não encontro nenhum dos outros dois. — Pois eu não fico e, se for preciso, meto atestado! Chamem o Robert, que foi para o moinho. — Isso é muito longe... — Já disse que não fico. Doze horas de gases já me chegam por hoje. Como era seu hábito, Robert fora passar o fim-de-semana num moinho que adquirira em estado de semi-ruína e no qual fizera obras de restauro e 52

alguns melhoramentos. Ficava num pequeno monte sobranceiro ao mar, podendo ver-se, mesmo à vista desarmada, todos os cargueiros que dobravam o cabo, rumo ao Sul. Da janela das traseiras dominava-se um extenso vale, com um ribeiro de boa largura, orlado de salgueiros muito juntos, formando uma dupla sebe que o escondia completamente. Divorciado, quando ainda não tinha completado quatro anos de casado, gostava de viver só, embora tivesse esporádicas aventuras amorosas. O seu moinho, porém, nunca acolhera nenhuma dessas mulheres. Era um refúgio, onde procurava acalmar o "stress" profissional e esquecer algumas desilusões. Ali, voltado para o mar ou para o vale, numa cadeira de lona e no terraço circundante, como que adquiria outra personalidade. Lendo ou simplesmente pensando, aqueles fins-de-semana constituíam os seus melhores momentos de felicidade. — Não há anestesista — telefonou o médico da cadeia ao director. — O único cujo paradeiro é conhecido está a seiscentos quilómetros. — Telefone-lhe para que venha com urgência! Depois trato das formalidades. — Não tem contacto — esclareceu o médico, aborrecido por ainda estar sem jantar. O director passeou durante algum tempo no gabinete, meditando sobre o que devia fazer. Ligou para casa do director de serviços e do director-geral, não tendo encontrado ninguém. Todos tinham abalado para gozar o fim-desemana, enquanto ele estava ali preso entre as quatro paredes. A mulher tinha feito uma fita que o enervara e precisava urgentemente de ir a casa da amante para acalmar. Até lhe tinha telefonado a dizer que passaria brevemente por lá, mas o assunto estava a arrastar-se demasiado. De repente, aflorou-lhe uma ideia luminosa. Ligou para o hospital e pediu para falar ao médico. — Há aí alguém que saiba onde está o anestesista? Havia. O director esfregou as mãos de contentamento, vendo-se já nos braços de Eva, extravasando toda aquela tensão acumulada. Ligou para a base aérea militar, que lhe forneceu o número de casa do comandante. Felizmente encontrava-se em casa, jantando com uns familiares, e explicou-lhe a situação, solicitando que disponibilizasse um helicóptero, comprometendo-se a enviarlhe na segunda-feira seguinte a requisição assinada pelo ministro. O aparelho iria ao hospital buscar o funcionário que, por sua vez, indicaria o local aonde recolheria o anestesista. Terminado o fim-de-semana, a escriturária retomou o seu lugar à secretária, sem vontade de trabalhar, pois perdera o encontro com a amiga e passara dois dias horríveis às voltas com os seus fantasmas. O chefe da 53

secretaria entrou com o semblante carregado, como era habitual, já que não era fácil viver com uma deficiente em cadeira de rodas, porque, embora a paraplégica tratasse da lida da casa, naquilo em que podia ser dispensada a mulher-a-dias, e fosse autónoma em quase tudo o que dizia respeito à sua higiene pessoal, tinha um mau humor permanente, fruto da consciencialização da sua diferença, da certeza de que nunca casaria nem teria filhos, como as outras mulheres. O director, esse, era um homem feliz. Mais uma vez adiara a visita aos sogros e vivera bons momentos com a amante. O médico, que parecia não ter sido afectado pelo que se passara, por hábito de ofício, entrou-lhe no gabinete e disse: — O gajo safou-se. — Já está bom? — Perguntou o director. — Claro que não! Estive lá há pouco. No sábado já se sentou e ontem foi pelo seu pé à casa de banho. — Então, aguenta-se de pé. Já pode andar. Isso é bom. Visivelmente satisfeito, meteu o dedo mindinho no ouvido, abanando-o, antes de ligar para o director-geral, a quem pôs ao corrente da situação. — É verdade, Sr. Director-Geral. O homem já está em condições. — Então pode-se marcar a data da execução? — Evidentemente que sim, Sr. Director-Geral — confirmou o director.

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