Contos

  • May 2020
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Carta de um turco (sobre os faquires e seu amigo Bababec) François- Marie Arouet de Voltaire Quando me achava na cidade de Benarés, à margem do Ganges, procurava me instruir. Compreendia mediocremente o hindu; escutava muito e observava tudo. Eu ficava na casa do meu correspondente Omri, o homem mais digno que conheci na vida. Era ele da religião dos brâmares. Quanto a mim, tenho a honra de ser muçulmano. Mas nunca trocamos uma palavra dissoante a respeito de Maomé e de Brama. Fazíamos as abluções matinais cada qual para o seu lado; bebíamos da mesma limonada; comíamos do mesmo arroz, como irmãos. Fomos um dia juntos ao pagode de Gavani. Assistimos ali vários grupos de faquires. Uns eram janguis, isto é, faquires contemplativos; os outros eram discípulos dos antigos ginossofistas, que levavam uma vida ativa. Possuem eles, como se sabe, uma língua erudita que é dos mais antigos brâmares e, nesta língua, um livro chamado Vedas. É com certeza o mais antigo livro de toda a Ásia, sem excetuar o Zend-avessa . Passei por um faquir que estava lendo esse livro. - Ah, desgraçado infiel - exclamou ele - Tu me fizeste perder o número das vogais que eu estava contando; e, por isso a minha alma vai passar para o corpo de uma lebre, em vez de ir para o de um papagaio, como tenho motivo para acreditar! Para consolá-lo, dei- lhe uma rúpia. Alguns passos adiante, me aconteceu a desgraça de espirrar; e o barulho que fiz despertou um faquir que se encontrava em estado de êxtase. - Onde estou? - disse ele - Que queda horrível! Não vejo mais a ponta do meu nariz! [Quando os faquires querem ver a luz celeste, o que é muito comum entre eles, fixam os olhos na ponta do nariz] A luz celeste desapareceu! - Se sou a causa disso - disse-lhe eu -, de que, afinal, enxergues além da ponta do nariz, eis aqui uma rúpia para reparar o mal. Retoma tua luz celeste! Depois de assim contornar discretamente a situação, fui ter com os ginossofistas, vários deles me trouxeram vários preguinhos muito bonitos para fincálos nos meus braços e coxas, em honra de Brama. Comprei-lhes os pregos com os quais mandei pregar os meus tapetes. Outros dançavam sobre as mãos; outros na corda bamba; outros andavam num pé só. Havia os que carregavam correntes, caixas... De resto, era a melhor gente do mundo. Meu amigo Omri levou- me ao cubículo de um dos mais famosos deles; chamava-se Bababec; estava nu como um macaco e trazia ao pescoço uma cadeia que pesava mais de sessenta libras. Achava-

se sentado num banco de madeira, lindamente guarnecido de pregos que lhe penetravam nas nádegas, e dir-se-ia que estava num leito de cetim. Muitas mulheres vinham consultá-lo; ele era o oráculo das famílias; e pode se dizer que gozava de grande reputação. Fui testemunha da grande conversa que Omri teve com ele. - Acreditas, meu pai - perguntou-lhe Omri -, que após haver passado pela prova das sete metempsicoses, possa eu chegar à morada de Brama? - Isto depende - disse o faquir - Como vives? - Trato de ser bom cidadão- explicou Omri -, bom esposo, bom pai, bom amigo. Empresto dinheiro sem juros aos ricos e dou esmola aos pobres, incentivo a paz entre meus vizinhos... - Não colocas, vez por outro, pregos nas nádegas? - Nunca, reverendo. - Sinto muito; desta maneira só irás para o décimo nono céu; é uma pena. - Qual o quê! Está muito certo. Sinto-me muito contente com a minha parte. Que me importa o décimo- nono ou o vigésimo, contanto que eu cumpra o me dever na minha peregrinação e seja bem recebido na última morada? Não será suficiente ser um homem direito neste país e depois um homem venturoso no país de Brama? Para que céus pretende ir tu, então, com os teus pregos e as tuas correntes? - Para o trigésimo- quinto céu - disse Bababec. - És muito engraçado - replicou Omri - com essa história de querer ficar alojado acima de mim; talvez isso não passe de uma má ambição! Se condenas aqueles que buscam honrarias nesta vida, por que então ambicionas honrarias tão grandes na outra? E de resto, por que motivo pretendes ser mais bem tratado do que eu? Fica sabendo que em apenas dez dias dou mais esmolas do que te custam em dez anos todos os pregos que enfias no teu traseiro! A Brama pouco se lhe dá que passes o dia nu, com uma corrente no pescoço. Que belo serviço prestas assim à tua pátria! Considero cem vezes mais a um homem que semeia legumes ou planta árvores do que todos os teus colegas que olham para a ponta do nariz ou carregam, uma sela, por excesso de nobreza d' alma. Depois de assim falar, Omri se acalmou, mostrou-se gentil, acarinhou-o, persuadindo-o enfim a que deixasse os pregos e as correntes e fosse viver uma vida direita na sua companhia. E assim, tiraram-lhe o cascão do corpo, jogarem-lhe perfumes, vestiram-no decentemente. Viveu quinze dias muito sensatamente, e confessou que era mil vezes mais feliz do que era antes. Mas...Ficou desacreditado entre o povo e as mulheres não vinham mais consultá-lo. Ele deixou Omri e voltou aos pregos para ter consideração dos outros.

O sermão de Nasrudin Khawajah Nasr Al-din - Certo dia, os moradores de um pequeno lugarejo quiseram pregar uma peça no Mullá Nasrudin. Na época ele já era considerado uma espécie meio indefinível de santo, e então, para testálo, resolveram convidá-lo para fazer um sermão na mesquita. Nasrudin concordou. No dia marcado, ele subiu ao púlpito e falou: - Ó, fiéis! Vocês sabem o que eu vou falar para vocês? - Não, não sabemos - responderam eles, em coro. - Já que não o sabem, não poderei vos falar nada. Gente ignorante, isso é o que vocês todos são. Assim não é possível começar o que quer que seja disse o Mullá, bastante indignado com a ignorância daquela gente que o fazia perder tempo. Para surpresa geral, Nasrudin desceu do púlpito e foi para casa. Dias depois, um pouco envergonhados, formaram uma comissão de fiéis que seguiu até a casa de Nasrudin para, mais uma vez, convidá-lo para fazer o sermão da Sexta-feira seguinte, dia da oração. Nasrudin subiu ao púlpito e começou o sermão com a mesma pergunta da semana anterior: Desta vez, a congregação respondeu em coro: - Sim, Mullá, sabemos. - Neste caso - disse Nasrudin - , não existe razão para prender- vos aqui por mais tempo. Podem se retirar. E voltou para casa. Por fim, conseguiram persuadi-lo a fazer o sermão da sexta-feira seguinte, que começou com a mesma pergunta: - Sabem ou não sabem? A congregação, julgando-se preparada, respondeu: - Alguns sabem e outros não. - Ótimo - disse Nasrudin - já que é assim, que aqueles que sabem transmitam o que sabem para aqueles que não sabem. E foi para casa.

Como Nasrudin criou a verdade Khawajah Nasr Al-din As leis não fazem com que as pessoas fiquem melhores - disse Nasrudin ao Rei - Elas precisam, antes, praticar certas coisa de maneira a entrar em sintonia com a verdade interior, que se assemelha apenas levemente à verdade aparente. O Rei, no entanto, decidiu que ele poderia, sim, fazer com que as pessoas observassem a

verdade, que poderia fazê-las observar a autenticidade - e assim o faria. O acesso a sua cidade dava-se através de uma ponte. Sobre ela, o Rei ordenou que fosse construída uma forca. Quando os portões foram abertos, na alvorada do dia seguinte, o Chefe da Guarda estava a postos em frente de um pelotão para testar todos os que por ali passassem. Um edital fora imediatamente publicado: "Todos serão interrogados. Aquele que falar a verdade terá seu ingresso na cidade permitido. Caso mentir, será enforcado." Nasrudin, na ponte entre alguns populares, deu um passo à frente e começou a cruzar a ponte. - Onde o senhor pensa que vai? - perguntou o Chefe da Guarda. - Estou a caminho da forca - respondeu Nasrudin, calmamente. - Não acredito no que está dizendo! - Muito bem, se eu estiver mentindo, pode me enforcar. - Mas se o enforcarmos por mentir, faremos com que aquilo que disse seja verdade! - Isso mesmo - respondeu Nasrudin, sentindo- se vitorioso. - Agora vocês já sabem o que é a verdade : é apenas a sua verdade.

O Relógio Khawajah Nasr Al-din O relógio de Nasrudin vivia marcando a hora errada. Mas será que não dá para tomar uma providência? - alguém comentou, - Qual providência? - falou o Mullá. - Bem, o relógio nunca marca a hora certa. Qualquer que seja a providência já será uma melhora. Nasrudin deu uma martelada no relógio. O relógio parou. - você tem toda a razão - disse ele - De fato, já dá para sentir uma melhora. - Eu não quis dizer "qualquer providência", assim literalmente. Como é que agora o relógio pode estar melhor do que antes? - Bem, antes ele nunca marcava a hora certa. Agora, pelo menos duas vezes por dia ele vai estar certo. -

Moral: É melhor estar certo algumas vezes do que jamais estar certo.

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