Texere ~ I ~

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  • Words: 19,678
  • Pages: 218
I - 24 de Agosto de 2004 – 31 de Dezembro de 2004

eli miguel

Vincent Van Gogh

Todo o meu ser é um cântico negro que te levará fazendo-te durar ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos neste cântico eu suspirei tu suspiraste neste cântico eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.

A vida é talvez uma rua comprida pela qual uma mulher segurando um cesto passa todos os dias.

A vida é talvez uma corda com a qual um homem se enforca numa árvore a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.

Josée, Forces Vitales

A vida é talvez acender um cigarro na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor ou o olhar ausente de um homem que passa tirando o chapéu a um outro homem que passa

Ah este é o meu destino este é o meu destino o meu destino é

com um sorriso vazio e um bom dia.

um céu que desaparece com a queda de uma cortina

A vida é talvez esse momento fechado

o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis

quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos

reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia

a vida está no sentimento

o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias

que eu irei pôr na impressão da Lua

e morrer na dor de uma voz que me diz

e na percepção da Noite.

eu amo as tuas mãos.

Num quarto grande como a solidão o meu coração que é grande como o amor olha os simples pretextos da sua felicidade

Irei plantar as minhas mãos no jardim crescerei eu sei eu sei eu sei e as andorinhas virão pôr ovos no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.

o belo murchar das flores no vaso a jovem árvore que plantaste no teu jardim e o canto dos canários alvejando o tamanho de uma janela.

Vou usar um par de cerejas gémeas como brincos e pôr pétalas de dália nas minhas unhas

há um beco onde os rapazes que se apaixonaram por mim se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras pensando nos sorrisos inocentes de uma rapariga

E é desta maneira que alguém morre e alguém segue vivendo. Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato que se esvazia num lago.

que foi levada pelo vento uma noite. Eu conheço uma pequena e triste fada Há um beco

que vive num oceano

que o meu coração roubou

tocando a flauta mágica do seu coração

às ruas da minha infância.

suave, suavemente pequena e triste fada

A viagem de uma forma na linha do tempo

que morre com um beijo todas as noites

fecundando a linha do tempo com a forma

e com um beijo renasce a cada amanhecer.

uma forma consciente de uma imagem a regressar de uma carícia num espelho. Forugh Farrokzad (Versão de Vasco Gato)

Estou mais perto de ti porque te amo. Os meus beijos nascem já na tua boca. Não poderei escrever teu nome com palavras. Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto. Quero a tua boca aberta em minha boca. E amo-te como se nunca te tivesse amado porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos e procuro o teu corpo para além dos meus dedos. Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte. Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim. E eu estou perto de ti porque te amo. Mark Rothko, Sem título

Joaquim Pessoa, Os Olhos de Isa

Ai daqueles

ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse chaga antiga ai daqueles que se amaram sem saber que amar é feito pão em casa e que a pedra só não voa porque não quer não por que não tem asa. Paulo Leminsky

Fractal Feelings

EM LOUVOR DO FOGO

Um dia chega de uma extrema doçura: tudo arde. Arde a luz nos vidros da ternura. As aves, no branco labirinto da cal. As palavras ardem e a púrpura das naves. O vento, onde tenho casa à beira do outono. O limoeiro, as colinas. Tudo arde Na extrema e lenta doçura da tarde. Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio

concerto para uma só voz

a minha : no mais profundo silêncio. Márcia Maia, um tolo desejo de azul

Deedra Ludwig, Alchemy

Il est très simple

Il est très simple: on ne voit bien qu'avec le coeur. Antoine de Saint- Exupéry, Le Petit Prince

Jim Dine, The Woodcut Self

Mais uma noite, amor Mais uma noite, amor. Ao recordar-te retomo os fins do mundo, a cinza, os dias manchados de outras lágrimas. Sabias como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte por esquinas e cafés. Já não me guias os muitos passos vãos, as fantasias da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém, apenas alguns vultos, o que vem «e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez, até de madrugada. O que me fez sentir o muito longe aqui tão perto?

Fernando Pinto do Amaral, A Escada de Jacob Larionov, raionismo

Canção autobiográfica

aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio da sua pata cúmplice, a solidão é uma destreza atormentada; e o coração o incerto secretário de agonia e desejo, variantes da alma. aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio.

canção, canção que nunca acabarias de te escrever, vaivém das tantas coisas.

Vasco Graça Moura, Os Rostos Comunicantes

Camille Claudel, La Danaïde

em fundo

Franz Schuber, Schwanengsang

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo, O que fui de coração e parentesco, O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

Vincent Van Gogh, Vase with Irises against a yellow background

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

sombra debaixo do alçado –,

É terem morrido todos,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo

causa,

frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Pára, meu coração!

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na

Álvaro de Campos, Poemas

Musa

Eustache LE sueur, Trois Muses: Melpomène, Erato et Polymnie

Musa ensina-me o canto Venerável e antigo O canto para todos Por todos entendido

Musa ensina-me o canto O justo irmão das coisas Incendiador da noite E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto Em que eu mesma regresso Sem demora e sem pressa Tornada planta ou pedra

(Eu me lembro do chão De madeira lavada E do seu perfume

Ou tornada parede

Que atravessava)

Da casa primitiva Ou tornada o murmúrio Do mar que a cercava

Musa ensina-me o canto Onde o mar respira

Sophia de Mello Breyner Andresen, Signo

Chanson

Dans l'amour la vie a encore L'eau pure de ses yeux d'enfant Qui s'ouvre sans savoir comment Sa bouche est encore une fleur

Dans l'amour la vie a encore Ses mains agrippantes d'enfant Ses pieds partent de la lumière Et ils s'en vont vers la lumière

Dans l'amour la vie a toujours Un coeur léger et renaissant Rien n'y pourra jamais finir Demain s'y allège d'hier.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour António Canova, Eros e Psique

Sísifo

E, nunca saciado, Vai colhendo (Coimbra, 27 de Dezembro de 1977)

Ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar

Recomeça... Se puderes, Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro, Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade.

E vendo, Acordado, O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças. Miguel Torga, Antologia Poética

Hemos perdido aun este crepúsculo. Nadie nos vió esta tarde con las manos unidas, mientras la noche azul caía sobre el mundo.

He visto desde mi ventana la fiesta del poniente en los cerros lejanos.

A veces como una moneda se encendía un pedazo de sol entre mis manos.

Yo te recordaba con el alma apretada de esa tristeza que tú me conoces. Cayó el libro que siempre se toma en el crepúsculo, Entonces dónde estabas?

y como un perro herido rodó a mis pies mi capa.

Entre qué gentes? Diciendo qué palabras?

Siempre, siempre te alejas en las tardes

Por qué se me vendrá todo el amor de golpe

hacia donde el crepúsculo corre borrando estatuas.

cuando me siento triste, y te siento lejana? Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada

Uma noite acordarei junto ao corpo infindável da amada, e meu sangue não se encantará. Então, rosa a rosa murcharão meus ombros. Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos de distância, como se tudo fosse o cheiro

Então lembrarei a vermelha resina, o espesso

que as ervas pungentemente perdem

murmúrio do sangue,

através do silêncio.

o ocre e sobrenatural aroma das acácias.

Plácido chegarei à mesa, e de súbito

Tentarei encontrar uma forma.

meu coração se atravessará de gelo puro.

Com beijos antigos um momento ainda queimarei

O vinho? Perguntarei. Flores de sal cobrirão

o corpo solitário da amada, direi palavras

a luz poderosa do meu olhar.

de uma ternura azebre.

Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente

E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?

pasmo da minha carne: o vinho?

Rosa a rosa murcharão meus ombros.

Rosa a rosa murcharão meus ombros. Herberto Hélder, A colher na boca

em fundo

Fredrick Hart, Destiny

Maria Callas, La Forza del Destino, Verdi

O próprio génio pode estar ausente Da façanha. Syd Art, Destiny

Basta que nos momentos de terror, Persistente, O ânimo enfrente

Vasco da Gama

A fúria de qualquer Adamastor.

Somos nós que fazemos o destino.

O renome é o salário do triunfo.

Chegar à Índia ou não

O que é preciso, pois, é triunfar.

É um íntimo desígnio da vontade.

Nunca meia viagem consentida!

Os fados a favor

Nunca meia medida

E a desfavor,

Do vinho que nos há-de embriagar!

São argumentos da posteridade. Miguel Torga, Poemas Ibéricos

sete luas Há noites que são feitas dos meus braços e um silêncio comum às violetas e há sete luas que são sete traços de sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura como um cinto de grandes borboletas. E um risco a sangue na nossa carne escura duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás enrolados no nosso desencanto e cisnes brancos que só são iguais à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde o fantasma de nós fica mais perto: e é sempre a nossa voz que nos responde e só o nosso nome estava certo.

Natália Correia, Sonetos Românticos

A minha solidão

(Durante dias andei a ruminar estes versos.)

A minha solidão não é uma invenção para enfeitar noites estreladas...

...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortas e pedras de frio onde nem sequer há portas para o Calafrio. Edward Hopper

...Mas este rir-me de repente no poço das noites amarelas... - única chama consciente com boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um (mesmo quando me queima a pele o teu suor) - sem carne em comum com o mundo em redor.

...Mas este saber que tudo me repele no vento vestido de areia... E até, quando a toco, a própria pele me parece alheia.

...Mas este haver entre mim e a vida sempre uma sombra que me impede de gozar na boca ressequida o sabor da própria sede.

...Mas este sonho indeciso de querer salvar o mundo

Não. A minha solidão não é uma invenção para enfeitar o céu estrelado...

...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

- e descobrir afinal que não piso o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

José Gomes Ferreira

Every Poem is an Epitaph

Desfiz meu corpo nas vivas marés que os versos me traziam. Solidão mil vezes retomada, sombra e pó, palavras que nos doem mais de perto: tudo desfez meu corpo e neste mar um navegante encontra o seu deserto.

Luís Filipe Castro Mendes, Outras Canções

FOREVER GONE

The rose is now forever gone

How well we save the little parts

The scent remains the whole life long

Of sweetness wrapped within our hearts

And visions of a petal's hue

And never count the solemn tears

Abide within the depth of you

That fill the soul throughout the years

The wine he poured and slowly sipped

His words are scrolled in lyric rhyme

Remains on wetness of your lip

That live forever in your mind

A taste so sweet does not depart

His eyes that once enchanted yours

Embedded in a tender heart

Are diamond's gleam that still allures

A touch of silk, a feel of soft

The rose yet blossoms in your eyes

The sense of rising up aloft

It is a flower that never dies

To touch the clouds, to soar the sky Still dwells in reminiscent eye

Elizabeth Santos

I

Afinal sou assim, infeliz e volúvel, Porque minha alma guarda uma ordem diversa De pulsões celulares ao longo do seu eixo: Decifre-me quem saiba, - que, dispersa, Com nome A.D.N. aqui na cruz a deixo.

II

Nervo a pavor, fonte renal de rijo, Cor dos meus olhos, estatura, gosto, Quanto me importo, ó Deus, quanto me aflijo, Tudo A.D.N. inscreve no meu rosto.

Vitorino Nemésio, Limite de Idade

Anne Bertoin, ADN

em fundo

Maria João Pires, Beethoven, Sonatas Quasi una Fantasia

Pace non trovo

Tanto do meu estado me acho incerto

Pace non trovo, e non ó da far guerra

Tanto do meu estado me acho incerto,

E temo e spero, ed ardo e son un ghiaccio,

Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;

E volo sopra’l cielo e giaccio in terra

Sem causa, juntamente choro e rio,

E nulla stringo e tutto’l mondo abbraccio.

O mundo todo abarco, e nada aperto.

Tal m’ha in prigion che non m’apre né serra,

É tudo quanto sinto um desconcerto;

Nè per suo mi riten né scoglie il laccio,

Da alma um fogo me sai, da vista um rio;

E non m’ancide Amor e non mi sferra,

Agora espero, agora desconfio;

Nè mi vuol vivo né mi trae d’impaccio.

Agora desvario, agora acerto.

Veggio senza occhi; e no ò língua, e grido,

Estando em terra, chego ao Céu voando;

E bramo di perir, e cheggio aiuta,

Num’hora acho mil anos, e é de jeito

Ed ho in ódio me stesso ed amo altrui.

Que em mil anos não posso achar um’hora.

Pascomi di dolor, piangendo rido,

Se me pergunta alguém, porque assi ando,

Egualmente mi spiace morte e vita:

Respondo que não sei; porém suspeito

In questo stato son, Donna, per vui.

Que só porque vos vi, minha Senhora.

Petrarca, Cancioneiro

Camões, Rimas

Piero di Cosimo, Simonetta Vespuci

Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel Ordnungen? Rainer Maria Rilke

Munch, O Grito

Uma lâmina de ar atravessando as portas. Um arco, uma flecha cravada no outono. E a canção que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas. E um velho marinheiro grave, rangendo o cachimbo como uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio. É Outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza quando saio para a rua, molhado, como um pássaro. Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.

Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas. Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se como se, de repente, não houvesse mais nada senão a imperiosa ordem de (se) amarem. Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras. Não há um nome para a tua ausência. Há um muro que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho que a minha boca recusa. É Outono. A pouco e pouco despem-se as palavras.

Hoje há soldados eléctricos. Uma parede cumprimenta o sol. Procura-se viver.

Joaquim Pessoa, 125 Poemas – antologia poética

em fundo

Alphonse Mucha

Antonio Vivaldi, I Quatro Stagioni

Desejos vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte Que ri e canta, a vastidão imensa! Eu queria ser a Pedra que não pensa, A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa, O bem do que é humilde e não tem sorte! Eu queria ser a Árvore tosca e tensa Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza... As árvores também, como quem reza, Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol, altivo e forte, ao fim de um dia, Tem lágrimas de sangue na agonia! E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

Picasso, Blue Nude

Florbela Espanca, Livro de Mágoas, in Sonetos

Yo no te pido

Yo no te pido que me bajes una estrella azul solo te pido que mi espacio

Yo no te pido que me bajes

llenes con tu luz.

una estrella azul solo te pido que mi espacio

Mario Benedetti

llenes con tu luz.

Yo no te pido que me firmes diez papeles grises para amar sólo te pido que tu quieras las palomas que suelo mirar.

De lo pasado no lo voy a negar el futuro algún día llegara y del presente que le importa a la gente si es que siempre van a hablar.

Sigue llenando este minuto de razones para respirar no me complazcas no te niegues no hables por hablar.

Georgia O'Keeffe. Evening Star, III

Não sei se dor Ou muito amor Eu sinto.

Mas isto é maior do que a morte; Não posso mais. Eu minto.

Ruy Cinatti, Anoitecendo, a Vida Recomeça

Van Gogh, Tree Sunflowers

As férias

Era uma rosa azul de água amarrada Um palácio de cheiros um terraço E uma jarra de amigos derramada Da casa até ao mar como um abraço.

Era a intensa e clara madrugada Com cigarras dormindo no regaço E a ampulheta do sono defraudada No tempo cada dia mais escasso.

Era um país de urzes e lilases De tardes sonolentas espreguiçando Um aroma de nardos pelo chão

E bandos de meninas e rapazes Correndo amando rindo e adiando A minha inexorável solidão.

Ary dos Santos, O sangue das Palavras

em fundo

Edward Hopper, Morning sun

Elis Regina & Tom Jobim, Por toda a Minha Vida (Pedro Almodóvar, hable con ella)

le coeur..

le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point René Descartes

Gift

ou tell me that silence is nearer to peace than poems but if for my gift I brought you silence (for I know silence) you would say This is not silence this is another poem and you would hand it back to me.

Leonard Cohen, Stranger Music - Selected Poems and Songs

Ítaca

Quando partires de regresso a Ítaca. deves orar por uma viagem longa,

Deves orar por uma viagem longa.

plena de aventuras e de experiências.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

quando, com que prazer, com que deleite,

um Poseidon irado – não os temas,

entrares em portos jamais antes vistos!

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

Em colónias fenícias deverás deter-te

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

para comprar mercadorias raras:

teu corpo toca e o espírito te habita.

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

e perfumes subtis de toda a espécie:

Poseídon em fúria – nunca encontrarás,

compra desses perfumes quanto possas,

se não é na tua alma que os transportes

E vai ver as cidades do Egipto,

ou ela os não erguer perante ti.

para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem. É melhor que ela dure muitos anos, que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho, e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas - versão de Jorge de Sena

Jacinthe Dugal-Lacroix, Freedom

Ítaca

Não vale a pena suportar tanto castigo. Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar. Onde quer que te encontres está contigo dentro de ti em casa na distância onde quer que procures há outro mar Ítaca é tua própria errância.

Manuel Alegre, in Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro

Munch, The dance of Life

o pequeno demiurgo

transumantes paixões digo e surge irrompe escorre ergue-se move-se vive morre

ao Hélder Moura Pinheiro

mas não julguem ser trabalho simples nomear arrumar e desordenar o mundo

escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mar e as árvores crescem dos espaços enevoados

para que não se apague esta trémula escrita

entre olhar e olhar movem-se

preciso do sonho e do pesadelo

animais presos à terra com suas plumagens de ferro

da proximidade vertiginosa dos espelhos e

e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa

de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas

comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver

pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço

penso outono ou inverno

no fim do sétimo dia

e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto sobre o corpo em tímidos gestos eis o tempo do Capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens relâmpago erva águas homem movimento do susto oceanos sal exaustos corpos

Al Berto, O Medo

Sabrás que no te amo y que te amo

SABRÁS que no te amo y que te amo puesto que de dos modos es la vida, la palabra es un ala del silencio, el fuego tiene una mitad de frío. Yo te amo para comenzar a amarte, para recomenzar el infinito y para no dejar de amarte nunca: por eso no te amo todavía. Te amo y no te amo como si tuviera en mis manos las llaves de la dicha y un incierto destino desdichado. Mi amor tiene dos vidas para amarte. Por eso te amo cuando no te amo y por eso te amo cuando te amo. Pablo Neruda, Cien Sonetos de Amor

em fundo

Debussy , La Mer , Trois Esquisses Symphoniques Chicago Symphony Orchestra – Daniel Barenboim

CAMPO DE FLORES

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra Deus me deu um amor no tempo de madureza,

imensa e contraída como letra no muro

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

e só hoje presente.

Deus – ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro, e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor

Deus me deu um amor porque o mereci. De tantos que já tive ou tiveram em mim,

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

o sumo se espremeu para fazer um vinho

e outros acrescento aos que amor já criou.

ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

E o tempo que levou uma rosa indecisa A tirar sua cor dessas chamas extintas

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia

Era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

e cansado de mim julgava que era o mundo um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

Amanhecem de novo as antigas manhãs

secreto investimento em formas improváveis.

que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso para arrecadar as alfaias de muitos amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes, e ao vê-los amorosos e transidos em torno, o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura e o mistério que além faz os seres preciosos à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular, há que amar diferente. De uma grave paciência ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia tenha dilacerado a melhor doação. Há que amar e calar. Para fora do tempo arrasto meus despojos e estou vivo na luz que baixa e me confunde

Vinicius de Moraes William Bouguereau, Crepuscule

Pour un peu de tendresse

Pour un peu de tendresse

LA TENDRESSE

Je t'offrirais le temps Qu'il reste de jeunesse

Pour un peu de tendresse

A l'été finissant

Je donnerais les diamants

Pourquoi crois-tu la belle

Que le diable caresse

Que monte ma chanson

Dans mes coffres d'argent

Vers la claire dentelle

Pourquoi crois-tu la belle

Qui danse sur ton front

Que les marins au port

Penché vers ma détresse

Vident leurs escarcelles

Pour un peu de tendresse

Pour offrir des trésors A de fausses princesses

Jacques Brel

Pour un peu de tendresse

Pour un peu de tendresse Je changerais de visage Je changerais d'ivresse Je changerais de langage Pourquoi crois-tu la belle Qu'au sommet de leurs chants Empereurs et ménestrels Abandonnent souvent Puissances et richesses

Piam, tendresse

em fundo

Jean Sibelius, The Swan of Tuonela

Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Aquela triste e leda madrugada

E alegre se fez triste

Aquela triste e leda madrugada,

Aquela clara madrugada que

cheia toda de mágoa e de piedade,

viu lágrimas correrem no teu rosto

enquanto houver no mundo saudade

e alegre se fez triste como se

quero que seja sempre celebrada.

chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só, quando, amena e marchetada.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos

saía, dando ao mundo claridade,

meu nome no teu nome. E demorados

viu apartar-se de üa outra vontade,

viu nossos olhos juntos nos segredos

que nunca poderá ver-se apartada.

que em silêncio dissemos separados.

Ela só viu as lágrimas em fio

A clara madrugada em que parti.

que de uns e de outros olhos derivadas,

Só ela viu teu rosto olhando a estrada

se acrescentaram em grande e largo rio.

por onde um automóvel se afastava.

Ela ouviu as palavras magoadas

E viu que a pátria estava toda em ti.

que puderam tornar o fogo frio

E ouviu dizer-me adeus: essa palavra

e dar descanso às almas condenadas.

que fez triste a clara madrugada.

Luís de Camões, Rimas

Manuel Alegre, Trinta Anos de Poesia

Helga Butzer Felleisen, Tears

WHEN YOU ARE OLD

WHEN you are old and grey and full of sleep, And nodding by the fire, take down this book, And slowly read, and dream of the soft look Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace, And loved your beauty with love false or true, But one man loved the pilgrim Soul in you, And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars, Murmur, a little sadly, how Love fled And paced upon the mountains overhead And hid his face amid a crowd of stars.

William Butler Yeats, The Rose Matisse, Janela interior com miosótis

Mulheres de preto

Há muito que são velhas, vestidas de preto até à alma. Contra o muro defendem-se do sol de pedra; ao lume furtam-se ao frio do mundo. Ainda têm nome? Ninguém pergunta, ninguém responde. A língua, pedra também.

Eugénio de Andrade, Trinta Poemas

Fotografia de Guilherme Carreiro

Allégeance

Dans les rues de la ville, il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima.

Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L'espace qu'il parcourt est ma fidélité. Il dessine l'espoir, puis, léger, l'éconduit.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma liberté est son trésor ! Dans le grand méridien où s'inscrit son essor, Ma solitude se creuse.

Dans les rues de la ville, il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima Et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas !

René Char

Josée, Passage du Temps

em fundo

Foto: eli

Maria João Pires - Mozart - Klaviersonaten

Que me quereis, perpétuas saudades

Que me quereis, perpétuas saudades, Com que sonhos ainda me abismais? O tempo é um rio que não pára mais, Nem se repetem as visões das margens.

Como se diz adeus a quem morreu, Dizem adeus os anos já passados A desejos iguais, desigualados Se a vontade mudando os esqueceu.

Aquilo a que queria mudou tanto Que é outro amor; e meu prazer dum dia Maldiz o de hoje, ao novo desencanto.

Cada enganosa esperança em meu desejo Passa por ela o tempo e queda, fria, Como Almourol a ver passar o Tejo.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

Teia

Se da baba o insecto faz a teia, se com choro porém não sei prender-te, do céu, que era de cinza, direi verde, e da terra e das lágrimas areia.

E da forma direi que foi ideia, para que à noite o corpo não desperte. Do perdido direi que não se perde se ao menos nestes versos se encadeia.

Do cabelo, se louro, direi preto; do amor que sofri direi soneto, ante a luz tão corpórea que o invade…

Nas redes da ficção ficarás presa e acordarás, mais tarde, na surpresa de ser outra por toda a eternidade.

David Mourão-Ferreira, Infinito Pessoal

Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va On oublie le visage et l'on oublie la voix Le coeur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

On oublie les passions et l'on oublie les voix Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens Ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va

Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va

Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard Et l'on se sent floué par les années perdues Alors vraiment Avec le temps on n'aime plus.

L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie L'autre qu'on devinait au détour d'un regard Entre les mots, entre les lignes et sous le fard D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit Avec le temps tout s'évanouit

Léo Ferré

Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va Mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules A la Gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout seule Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va L'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous Devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens Avec le temps, va, tout va bien Avec le temps... Avec le temps, va, tout s'en va

Kasemir Malevich, Head of a Peasant Girl

Vieste como um barco carregado de vento, abrindo

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam

feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa

sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei

que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste

que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde

o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

para quase tudo. Por isso, vou para casa

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

se partiste, que dentro de mim se acanham as certezas e

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes

tu vais sempre ardendo, embora como um lume de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes, e não existe no mundo cegueira pior do que a minha: o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar, exausto de me ver entre mulheres que se passeiam no cais como se transportassem no corpo o vaivém dos barcos. Dizem-me os seus passos

foto: eli

em fundo

Beethoven

Fantasia coral, op. 80 Wiener Philharmoniker - Claudio Abbado

"fugas"

O lago, o salto no alvo da água. Setas de lume nas escarpas. Pequenas vagas de salgueiros, veios inseguros semeados de batéis. Fisgas em flor, risos abrem o ar. Veredas alvejadas de voos, arroubos dos 20 anos, fugas ao que já findou. Joaquim Manuel Magalhães, uma luz com um toldo vermelho

Foto: René Dumoulin

On ne connaît que les choses que l'on apprivoise

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

“Quantas horas perdi foi por ti que as perdi.” Vai o meu coração repetiu a lição: - "Quantas horas perdi foi por ti que as ganhei..." Sebastião da Gama, Cabo da Boa Esperança

Giacinto Braca, Tempus fugit

em fundo

Apache tears

Schubert - Lieder

Dietrich Fischer-Dieskau Gerald Moore

em fundo

Lucien Lévy-Dhurmer, Harmonie en bleu

Beethoven - clair de lune - Rudolf Serkin

Tão cedo passa tudo quanto passa! Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco! Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada. Ricardo Reis, Odes

Gu Xiaolin (Lironing), Loneliness

No palco eu faço amor com 25.000 pessoas, depois vou sozinha para casa.

Janis Joplin

Estátua

Cansei-me de tentar o teu segredo: No teu olhar sem cor, - frio escalpelo, O meu olhar quebrei, a debatê-lo, Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo E minha obsessão! Para bebê-lo Fui teu lábio oscular, num pesadelo, Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado, Esfriou sobre o mármore correcto Desse entreaberto lábio gelado…

Desse lábio de mármore, discreto, Severo como um túmulo fechado, Sereno como um pélogo quieto. Barbara Rainer Nothdurf, Faszination Eis

Camilo Pessanha, Clepsidra

em fundo

Claudined, silence dans l'azur

Ottorino Respighi, Italiana, from Ancient Airs and Dances for Lute

Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Sou de vidro

Tenho fumo por vestido Meus amigos sou de vidro Sou de vidro escurecido Encubro a luz que me habita Não por ser feia ou bonita

Mas por assim ter nascido Não por ser feia ou bonita Envolvida no que digo Encubro a luz que me habita

Mas por ter assim nascido Sou de vidro escurecido Mas por ter assim nascido Não me atinjam não me toquem Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido Tenho fumo por vestido E um cinto de escuridão Mas trago a transparência Envolvida no que digo Meus amigos sou de vidro Por isso não me maltratem Não me quebrem não me partam Sou de vidro escurecido

Lídia Jorge

No rechaces los sueños por ser sueños. Todos los sueños pueden ser realidad, si el sueño no se acaba. La realidad es un sueño. Si soñamos que la piedra es la piedra, eso es la piedra. Lo que corre en los ríos no es un agua, es un soñar, el agua, cristalino. La realidad disfraza su propio sueño, y dice: «Yo soy el sol, los cielos, el amor.» Pero nunca se va, nunca se pasa, si fingimos creer que es más que un sueño. Y vivimos soñándola. Soñar es el modo que el alma tiene para que nunca se le escape lo que se escaparía si dejamos de soñar que es verdad lo que no existe. Sólo muere un amor que ha dejado de soñarse hecho materia y que se busca en tierra.

Pedro Salinas

alvador Dali, Sueño causado por el vuelo de una abeja alrededor de una granada un segundo antes del despertar

ontem,

o meu pôr do sol

Abria o guarda-fatos e tirava

As mãos quietas, o rosto debruçado

o casaco mais velho e as piores

para o vidro sujo de tabacos

calças de veludo cor de sombra

donde ao longe havias de chegar.

Ia ter contigo. Só o perfume O chão coberto duma luz magoada, fazia pressentir o coração,

de papéis amassados, cinzas

essa frágil ideia que batia

que teus pés vinham a calcar.

quando me sentava no café muito antes da hora combinada.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição

Edward Hopper, Sunlight in a Cafetaria

C'est le temps que tu as perdu...

C'est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

Teu nome amarfanhado jaz num poço a um salto mortal do esquecimento teu nome renegado que eu não ouço teu nome feito raiva e desalento

Teu nome que eu roí até ao osso do ódio da ternura e do tormento é agora o sinal de que não posso castigar mais o próprio sofrimento.

Teu nome a cama estreita onde me deito o abismo de sons onde recordo um silêncio impossível e perfeito.

Teu nome que só lembro quando mordo um nome de milhões de nomes feito que só é nomeado quando acordo.

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética

em fundo

Maria João Pires, Le Voyage Magnifique, Schubert

You may say that I'm a dreamer But I'm not the only one

Imagine

I hope someday you'll join us And the world will be as one

Imagine there's no Heaven It's easy if you try No hell below us Above us only sky

Imagine no possessions

Imagine all the people

I wonder if you can

Living for today

No need for greed or hunger A brotherhood of man Imagine all the people

Imagine there's no countries It isn't hard to do Nothing to kill or die for And no religion too

Sharing all the world

You may say that I'm a dreamer But I'm not the only one I hope someday you'll join us And the world will live as one

Imagine all the people Living life in peace

John Lennon

On n'oublie rien de rien On n'oublie rien du tout On n'oublie rien de rien On s'habitue c'est tout

Ni ces jamais ni ces toujours Ni ces je t'aime ni ces amours Que l'on poursuit à travers cœurs

Ni ces départs ni ces navires Ni ces voyages qui nous chavirent De paysages en paysages Et de visages en visages Ni tous ces ports ni tous ces bars

De gris en gris de pleurs en pleurs Ni ces bras blancs d'une seule nuit Collier de femme pour notre ennui Que l'on dénoue au petit jour Par des promesses de retour

Ni tous ces attrape-cafard Où l'on attend le matin gris Au cinéma de son whisky

Ni tout cela ni rien au monde Ne sait pas nous faire oublier Ne peut pas nous faire oublier

Ni tout cela ni rien au monde Ne sait pas nous faire oublier Ne peut pas nous faire oublier Qu'aussi vrai que la terre est ronde On n'oublie rien de rien On n'oublie rien du tout On n'oublie rien de rien On s'habitue c'est tout

Qu'aussi vrai que la terre est ronde On n'oublie rien de rien On n'oublie rien du tout On n'oublie rien de rien On s'habitue c'est tout

Ni même ce temps où j'aurais fait Mille chansons de mes regrets Ni même ce temps où mes souvenirs Prendront mes rides pour un sourire Ni ce grand lit où mes remords Ont rendez-vous avec la mort Ni ce grand lit que je souhaite A certains jours comme une fête

Ni tout cela ni rien au monde Ne sait pas nous faire oublier Ne peut pas nous faire oublier Qu'aussi vrai que la terre est ronde On n'oublie rien de rien On n'oublie rien du tout On n'oublie rien de rien On s'habitue c'est tout

Jacques Brel Van Gogh, Vase with Gladioli

Têm de ser Ridículas.

Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso Cartas de amor Irina Kalentieva, Girl near the window

Ridículas.

A verdade é que hoje Todas as cartas de amor são

As minhas memórias

Ridículas.

Dessas cartas de amor

Não seriam cartas de amor se não fossem

É que são

Ridículas.

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor,

(Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas.) Álvaro de Campos, Poemas

DOMINGO

Quando chega domingo,

que era o que a família desejava,

faço tenção de todas as coisas mais belas

para que o seu futuro ficasse resolvido),

que um homem pode fazer na vida.

Mariazinha Santos quando chega domingo,

Há quem vá para o pé das águas

vai com uma amiga para o cinema.

deitar-se na areia e não pensar...

Deixa que lhe apalpem as coxas

E há os que vão para o campo

e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,

cheios de grandes sentimentos bucólicos

quando ela era ainda muito menina...

porque leram, de véspera, no boletim do jornal:

Para eu contar isto

« Bom tempo para amanhã»...

é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!

Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,

À hora negra das noites frias e longas

pois nesse dia

sei duma hora numa escada

aqueles que passeiam com a mulher e os filhos

onde uma velha põe sua neta

são mais generosos.

e vem sorrir aos homens que passam!

Um rapaz que era pintor

E a costureirinha mais honesta que eu namorei

não disse nada a ninguém

vendeu a virgindade num domingo

e escolheu o domingo para se matar.

— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Ainda hoje a família e os amigos andam pensando porque seria.

Há mais amargura nisto

Só não relacionam que se matou num domingo!

que em toda a História das Guerras.

Mariazinha Santos (aquela que um dia se quis entregar,

Partindo deste princípio. que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,

Venha a miséria maior que todas

eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o

secar o último restolho de moral que em mim resta;

domingo.

e eu fique rude como o deserto

E esta era uma das coisas mais belas

e agreste como o recorte das altas serras;

que um homem podia fazer na vida!

venha a ânsia do peito para os braços!

Então,

E vou a grandes passadas

todas as raparigas amariam no tempo próprio

como um louco maior que a sua loucura...

e tudo seria natural

O rapaz que era pintor

sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

aconchegou-se sobre a linha férrea para que a morte o desfigurasse

Penso isto, e vou a grandes passadas...

e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica

E um domingo parei numa praça

de revolta contra o mundo.

e pus-me a gritar o que sentia,

Mas como o rosto lhe estava intacto

mas todos acharam estranhos os meus modos

vai a família ao necrotério e ficou aterrada!

e estranha a minha voz...

Conheci-o numa noite de bebedeira

Mariazinha Santos foi para o cinema

e acho tudo aquilo natural.

e outras menearam as ancas

A costureirinha que eu namorei

— ao sol

deixava-se ir para as ruas escuras

como num ritual consagrado a um deus! —

sem nenhum receio.

até chegar o homem bem-amado entre todos

Uma vez que chovia até entrámos numa escada.

com uma nota de cem na mão estendida...

Somente sequer um beijo trocámos...

E isto porque no momento próprio

continuou com uma voz

olhava para mim com um propósito tão sereno

que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:

que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,

— .... no entanto, conheço um homem

me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,

que ia para a beira do rio

que era aquela serenidade

e passava um dia inteirinho de domingo

de pessoa que tem a vida cheia e inteira.

segurando uma cana donde caia um fio para a água...

No entanto, ela nunca pôs obstáculo

... um dia pescou um peixe,

que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.

e nunca mais lá voltou...

Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...

O pior é pensar:

(ela está sempre com sujeitos decentes)

que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre

e quando nos fitamos nos olhos,

como se fosse uma festa?... —

bem lá no fundo dos olhos,

O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,

eu que sou homem nascido

tão rara e certa e maravilhosa

para fazer as coisas mais heróicas da vida

que deslumbrado se matou.

viro a cabeça para o lado e digo: — rapaz, traz-me um café...

Pago o café e saio a grandes passadas.

O meu amigo, que era pintor,

Hoje e depois e todos os dias que vierem,

contou-me numa noite de bebedeira:

amo a vida mais e mais

— Olha,

que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

quando chega domingo, não há nada melhor que ir para o futebol... E como os olhos se me enevoassem de água,

Mariazinha Santos, que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou... E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos, que parem ao sol e joguem um tostão na mão dos pedintes... E a menina das horas longas e frias continue pela mão de sua avó... E tu, que só andas com cavalheiros decentes, ó costureirinha honesta que eu namorei um dia, fita-me bem no fundo dos olhos, fita-me bem no fundo dos olhos!

Então, virá a miséria maior que todas secar o último restolho de moral que em mim resta; e eu ficarei rude como o deserto e agreste como o recorte das altas serras: e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem, eu vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

em fundo

Chavelas Vargas - interpreta Pablo Neruda, Eduardo Falú, Nicolas Guillen Facundo Cabral, Atahualpa Yupanqui

Quero falar-te deste amor, como de um vento amordaçado na camisa; uma febre de verão que o mercúrio não acha; um telhado esmagado pela ideia da chuva. Quero dizer-te

que sobre ele pairaram sempre brumas e nevoeiros e profecias de temporais maiores, como os que levam para longe os corpos dos navios. Não há notícias

deste amor; apenas uma intriga, um recado sonâmbulo, um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto na mão sem desdobrar. E há memórias

deste amor? A voz sem as palavras, um livro lido às escuras, um bilhete cifrado deixado num hotel, um velho calendário cheio de desencontros? Não, Munch, Cinzas

não há memória deste amor.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes

MÃOS

Côncavas de ter Longas de desejo Frescas de abandono Consumidas de espanto Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

Rodin, Les Mains

Diz-me, silêncio...

Diz-me, silêncio, em ruídos permanentes singelamente confusos primitivos que mão estender à voz que ouvida não fala comigo ou com ninguém, silente: Devo tocar como quem chama e pede? Ou agarrar o que não fala ainda senão por gestos quase imperceptíveis? Esperarei perguntas sem resposta? Responderei perguntas não faladas? Diz-me, silêncio, em ruídos de que és feito, como entender-te quando és corpo humano.

Jorge de Sena

Magritte, La méditation

esta esquisita prova me tentou de tecer um rumor em muros de água ossos de terra calcinada o jugo

culpado me castigo com engenho e da voz desenhada o artifício restos de pele antiga no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda dos cinco ou mais sentidos vou ser livre na terra desnudada vou dizer o que sei como quem mente.

António Franco Alexandre, A Pequena Face

Athouguia, Na Rota de Mares Subterrâneos

Águia

As águias não deviam ser aves mas corações aduncos e com asas;

se olhares à flor dos campos e das casas sentes o peito maior do que a amplidão:

se alguma coisa nasceu para voar foi o teu coração.

Carlos de Oliveira, Colheita Perdida

Nicolas Stael

Tudo que faço ou medito Fica sempre na metade. Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica Ao olhar para o que faço! Minha alma é lúcida e rica, E eu sou um mar de sargaço –

Um mar onde bóiam lentos Fragmentos de um mar de além... Vontades ou pensamentos? Não o sei e sei-o bem.

Pessoa, Cancioneiro

De Chirico, Nostalgia do Infinito

Símbolos? Estou farto de símbolos... Mas dizem-me que tudo é símbolo. Todos me dizem nada. Quais símbolos? Sonhos. – Que o sol seja um símbolo, está bem... Que a lua seja um símbolo, está bem... Que a terra seja um símbolo, está bem... Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa, E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas Para o azul do céu? Mas quem repara na lua senão para achar Bela a luz que ela espalha, e não bem ela? Mas quem repara na terra, que é o que pisa?

Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,

Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.

E o que fica da luz do dia

Por uma diminuição instintiva,

Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina

Porque o mar também é terra...

Onde demorava outrora com o namorado que a deixou? Símbolos? Não quero símbolos...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...

Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –

Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,

Que o namorado voltasse para o costureira.

Mas neste poente precoce e azulando-se O sol entre farrapos finos de nuvens,

Álvaro de Campos

mudança de hábito

desistiu. cortou os cabelos, encurtou as saias, trocou a cor do batom e o número do telefone celular. esqueceu promessas e juras - mentiras antigas bem como a cor dos seus olhos e o tom grave da sua voz : dele. tratou de, em paz, viver a vida: a sua. as cartas, entretanto, guardou para o caso de arrependimento futuro ou se viesse a pesar a solidão.

Márcia Maia

Ocorre-me tropeçar em ti numa linha que escrevi noutra idade - tão discreta é a tua presença que ninguém a não ser eu te poderá descobrir. E sinto-me grato, como também o estou ao gato do quintal ou às gaivotas que esgravatam em tantos versos meus à procura de sol fresco para alimento. "É o seu peito, a sua boca", digo então, e na penumbra do quarto por instantes brilha de novo o corpo do desejo.

Eugénio de Andrade, O Sal da Língua

Claudined, Désir Intemporel

O fortuna

Sors immanis

velut Luna

et inanis,

statu variabilis,

rota tu volubilis,

semper crescis

status malus,

aut decrescis;

vana salus

vita detestabilis

semper dissolubilis,

nunc obdurat

obumbrata

et tunc curat

et velata

ludo mentis aciem,

michi quoque niteris;

egestatem,

[...]

potestatem dissolvit ut glaciem.

Carl Orff - Carmina Burana

Caminho sem pés e sem sonhos

Caminho sem pés e sem sonhos só com a respiração e a cadência da muda passagem dos sopros caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes para que a elevação e a profundidade se conjuguem. avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu.

Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais

Astrid Lüders, Wirbel

Semiradsky - Chopin

Das Klavier ist mein zweites Ich Chopin

A João Rui de Sousa

Para um amigo tenho sempre um relógio esquecido em qualquer fundo de algibeira. Mas esse relógio não marca o tempo inútil. São restos de tabaco e de ternura rápida. É um arco íris de sombra, quente e trémulo. É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, Não posso adiar o coração

Na grande confusão deste medo deste não querer saber na falta de coragem ou na coragem de me perder me afundar perto de ti tão longe tão nu tão evidente tão pobre como tu Oh diz-me quem sou eu quem és tu?

António Ramos Rosa

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas E que nele posso navegar sem rumo, Não respondas Às urgentes perguntas Que te fiz. Deixa-me ser feliz Assim. Já tão longe de ti, como de mim. Perde-se a vida, a desejá-la tanto. Só soubemos sofrer, enquanto O nosso amor Durou. Mas o tempo passou, Há calmaria... Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz, seria Matar a sede com água salgada. Kirsten Hellmich, Gross Flehen Miguel Torga, Câmara Ardente

CAMILLE CLAUDEL

L'Abandon

Deborah Ormsby, fractal-Fountain of Youth

Nos teus dedos nasceram horizontes e aves verdes vieram desvairadas beber neles julgando serem fontes.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

A dor da separação

Pousada numa âncora, uma gaivota pia. De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza. Surpreendida, a gaivota levanta voo. Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se. E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste, Perdido no vento. Maruyama Kaoru – Trad.: José Alberto Oliveira In Rosa Do Mundo, 2001 Poemas Para O Futuro

Sonho

Penso que devo ter adormecido por algum tempo; Pois quando acordei tinhas vindo e partido. Apenas algumas flores permaneciam – Flores que não podiam sequer dizer quem eram… E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo Para que as flores falem E a sua fragrância estenda uma trémula ponte Entre nós.

P.S. Rege - Trad.: Cecília Rego Pinheiro

Turner, Claire de Lune

Como cresceram as brasas!

Como cresceram as brasas! Como queimam o ar em que desenho o vazio dos dedos!

Que mala de amianto possuir para guardar o fogo de iluminar as noites que virão?

Egito Gonçalves, O fósforo na Palha

AMOR

Não sei nunca se é isto exactamente o que chamam amor - esta vontade de imaginar assim a força que há-de tornar-nos mais felizes de repente

ou infelizes, tanto faz; a ardente promessa de um saber que nos invade e nos deixa sem nome nem idade à espera de uma imagem que nos mente

na certeza de tudo o que se entrega à nossa alma com uma luz que cega todas as circunstâncias, uma a uma,

até se transformar na fantasia que rouba o dia à noite, a noite ao dia, e vai morrer algures, desfeita em espuma.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa Chagall, Lovers in the Lilacs

Difícil é...

Difícil é esperar quando sabemos nada haver a esperar.

O eco de uma lágrima não basta para dar vento à sementeira.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Colin Mackenzie, tears from the heart

em fundo

Tchaikovsky - Violin Concerto D major, op.35

David Oistrach,Violin. Igor Oistrach, Violin Leipzig Gewandhaus Orchestra - Franz Konwitschny

IL VENTO CI PORTERÀ VIA

Oltre la finestra, un estraneo si preoccupa di me e di te.

Nella mia piccola notte il vento, e le foglie si ritrovano.

Oh corpo rigoglioso...le tue mani come doloroso ricordo, poggia tra le mie innamorate.

Nella mia piccola notte la paura, è distruzione. Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità? Io guardo meravigliato, questa felicità Del mio pessimismo, son dipendente.

E le tue labbra, come una sensazione calda di vita, lasciale carezzare le mie labbra innamorate. Il vento ci porterà via. di Forugh Farrokhzad - traduzione Babak Karimi

Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità? Ora nella notte qualcosa sta passando, e la luna rossa è in allarme. Su questo letto, che ogni attimo teme il crollo, le nuvole, come un popolo in lutto, attendono il momento della pioggia. Un momento e subito dopo... nulla più. Dietro questa finestra la notte trema e la terra arresta il suo girare. Cascina Valletta

O green from head to foot THE WIND WILL TAKE US

place your hands like a burning memory in my loving hands

In my small night, ah

give your lips to the caresses

the wind has a date with the leaves of the trees

of my loving lips

in my small night there is agony of destruction

like the warm perception of being

listen

the wind will take us

do you hear the darkness blowing?

the wind will take us.

I look upon this bliss as a stranger I am addicted to my despair.

Forough Farrokhzad - Translated by Ahmad Karimi Hakkak

listen do you hear the darkness blowing? something is passing in the night the moon is restless and red and over this rooftop where crumbling is a constant fear clouds, like a procession of mourners seem to be waiting for the moment of rain. a moment and then nothing night shudders beyond this window and the earth winds to a halt beyond this window something unknown is watching you and me.

Alexis Lesaffre

Sur mes mains amoureuses Et confie tes lèvres, repues de la chaleur de la vie,

LE VENT NOUS EMPORTERA

Aux caresses de mes lèvres amoureuses Le vent nous emportera! Le vent nous emportera!

Dans ma nuit, si brève, hélas Le vent a rendez-vous avec les feuilles.

Forough Farrokhzad,

Ma nuit si brève est remplie de l'angoisse dévastatrice

Poème extrait du film Le Vent nous emportera,

Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?

d'Abbas Kiarostami

De ce bonheur, je me sens étranger. Au désespoir je suis accoutumée. Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres? Là, dans la nuit, quelque chose se passe La lune est rouge et angoissée. Et accrochés à ce toit Qui risque de s'effondrer à tout moment, Les nuages, comme une foule de pleureuses, Attendent l'accouchement de la pluie, Un instant, et puis rien. Derrière cette fenêtre, C'est la nuit qui tremble Et c'est la terre qui s'arrête de tourner. Derrière cette fenêtre, un inconnu s'inquiète pour moi et toi. Toi, toute verdoyante, Pose tes mains - ces souvenirs ardents -

Erik Anestad

Tu, verde dos pés à cabeça

O VENTO LEVAR-NOS-Á

coloca as tuas mãos, essas memórias escaldantes, nas minhas mãos amorosas

Na minha noite, infelizmente tão curta

entrega os teus lábios ao toque

o vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores

dos meus lábios amorosos

na minha noite, tão breve, e plena de uma angústia devastadora

repletos do calor da vida

ouve

o vento levar-nos-á

ouves o sussurro das sombras?

o vento levar-nos-á.

esta felicidade é-me desconhecida estou habituada ao desespero

Forugh Farrokzad - Versão de Vasco Gato

Ouves o sussurro das sombras? ali, na noite, algo acontece a lua é vermelha e ansiosa e sobre este telhado que a qualquer momento pode ruir as nuvens, qual procissão de carpideiras aguardam o nascimento da chuva. um segundo depois nada atrás desta janela a noite treme e a terra pára de girar atrás desta janela qualquer coisa desconhecida inquieta-se comigo e contigo

Jacques Pontbriand

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra. Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho. De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante. A minha tristeza é a da sede e a da chama. Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio. O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono. Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente. Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim. Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido. Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença. Não sou a destruição cega nem a esperança impossível. Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Magritte, Le regard interieur

El Infinito

De un tiempo a esta parte el infinito se ha encogido peligrosamente. Quién iba a suponer que segundo a segundo cada migaja de su pan sin límites iba así a despeñarse como canto rodado en el abismo.

Mário Benedetti

Edward Hopper, hotel-room

Água morrente Il pleure dans mon coeur Comme il pleut sur la ville.

Il pleure dans mon coeur

Quelle est cette langueur

Comme il pleut sur la ville.

Qui pénètre mon coeur?

Verlaine

O bruit doux de la pluie

Meus olhos apagados,

Par terre et sur les toits!

Vede a água cair.

Pour un coeur qui s'ennuie,

Das beiras dos telhados

O le chant de la pluie!

Cair, sempre cair.

Il pleure sans raison

Das beiras dos telhados,

Dans ce coeur qui s'écoeure.

Cair, quase morrer...

Quoi? Nulle trahison?

Meus olhos apagados,

Ce deuil est sans raison.

E cansados de ver.

C'est bien la pire peine

Meus olhos, afogai-vos

De ne savoir pourquoi

Na vã tristeza ambiente.

Sans amour et sans haine

Caí e derramai-vos

Mon coeur a tant de peine!

Como a água morrente.

Verlaine

Van Gogh, Japonaiserie, Bridge in the Rain (after Hiroshige)

Camilo Pessanha

Tristão e Isolda

As linhas paralelas que nós somos passam, distantes dos terrenos bens. Para elas não são nenhuns dos pomos com que tu, irmão-homem, te entreténs... Ursula Tillmetz, Tristan & Isolde

Podem vir pois ameaçar, tentar águas de fáceis lagos nossos remos... Para nós dois apenas este Mar: o Infinito aonde nos veremos.

David Mourão-Ferreira

Lisboa – do Miradouro do Monte Agudo

mal-me-queres

Ó malmequer mentiroso Quem te ensinou a mentir Tu dizes quem me quer bem Quem de mim anda a fugir

Desfolhei um malmequer Num lindo jardim de Santarém Malmequer, bem me quer Muito longe está quem me quer bem

Coitado do malmequer Sem fazer mal a ninguém São todos a desfolhá-lo Para ver quem lhe quer bem

Malmequer não é constante Malmequer muito varia Vinte folhas dizem morte Treze dizem alegria

Cancioneiro

Van Gogh, vase with daisies and anemones

Drei Eichen, Feuer

AMORES PROIBIDOS

Talvez por um momento então sejamos em memória de David Mourão-Ferreira

sonâmbulos fantasmas do que fomos reflectidos num espelho que não vemos

Onde está quem amamos quando amamos outro corpo de fogo em movimento?

Ou talvez nesse corpo descubramos

Pra que abismo corremos pra que enganos

a memória da alma que perdemos

quando as promessas são poeira ao vento?

pra sempre no momento em que transpomos a fronteira dos gestos quotidianos

De que matéria alheia mal tentamos

e ao sabor de um desejo destruímos

fugir quando a verdade mora dentro

todas as intenções todos os planos,

de alguém a cujo céu nos entregamos

em nome dos prazeres mais supremos

numa noite de sonho e de tormento?

na noite em que deixamos de ser donos do nosso próprio corpo e abandonamos

Ainda somos humanos se traímos

angústias e remorsos e partimos

por instinto um amor de tantos anos

em busca da manhã que não sabemos

e só àquele instante obedecemos? Onde está quem amamos quando somos Ainda somos humanos? Ou seremos

mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?

a febre que há no sangue quando vimos de súbito morrer num corpo e vamos em busca do inferno que merecemos?

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

A gralha negra em tempo de chuva

Lá no alto, num ramo firme arqueia-se uma gralha toda molhada arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva. Não espero qualquer milagre nem nada

que venha lançar fogo à paisagem no interior dos meus olhos, nem procuro mais no tempo inconstante qualquer desígnio, mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem, sem cerimónia ou maravilha.

Brigitte Pelzer-Hilke, Krafftier Krähe - Licht und Dunkelheit

Embora - admito-o - deseje ocasionalmente alguma resposta do céu mudo, não posso honestamente queixar-me: uma certa luz pode ainda surgir incandescente

da mesa da cozinha ou da cadeira como se um fogo celestial tornasse seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos, assim consagrando um intervalo de outro modo inconsequente

um breve repouso com medo de uma neutralidade total. Com sorte, viajando teimosamente por esta estação de fadiga, acabarei

por nos dar grandeza e glória

por juntar um conjunto

ou até amor. De qualquer modo, caminho agora atenta (por isso poderia acontecer mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente, mas astuta, ignorante

de coisas. Os milagres acontecem se gostares de invocar aqueles espasmódicos gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de novo, a longa espera pelo anjo,

de que um anjo se decida a resplandecer

por essa rara, fortuita visita.

repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha ordenando as suas penas negras pode brilhar de tal maneira que prenda a minha atenção, erga as minhas pálpebras, e conceda

Sylvia Plath, Pela Água ed. bilingue - trad.: Maria de Lourdes Guimarães

Uma palavra caída das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras distantes... - palavras que não direi.

Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, Catherine Bourdeau, une certaine timidité

ponho vestidos noturnos, - que amargamente inventei.

Timidez

E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegando

Basta-me um pequeno gesto,

nos ares certos do tempo

feito de longe e de leve,

até não se sabe quando...

para que venhas comigo

- e um dia me acabarei.

e eu para sempre te leve... - mas só esse eu não farei.

Cecília Meireles

je regarde la mer

Je regarde la mer s'élever dans l'espace sur ses immenses ailes d'eau s'envoler loin d'ici loin des misères de la terre et qui se pose pour chanter sur l'une des branches de l'arbre soleil

Pierre Chatillon, Le violon vert

Begoña Rojas, Mar

Aqui na orla da praia, ... A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio; O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é; A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só, Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó; Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido, E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe, Não quero nada do acaso, senão a brisa na face; Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei, Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei. Manuel Antão, A força do mar

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar, Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida. Fernando Pessoa, Cancioneiro

Ser como sou e ver-te como és:

Se eu pudesse iluminar por dentro...

dois bichos de suor com sombra aos pés. Complicações de luas e saliva.

José Gomes Ferreira, Poesia IV (O soneto que só errado ficou certo.)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias para te dizer, com a simplicidade do bater do coração, que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão - mas o desejo de ser a noite que me guias e baixinho ao bafo da tua respiração contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói mas abrir-te mais o abismo que me dói nos cardos deste sol de morte viva. René Magritte, l'empire de la lumière

Duas linhas paralelas

Duas linhas paralelas Muito paralelamente

Mas farta de andar sozinha

Iam passando entre estrelas

Uma delas certo dia

Fazendo o que estava escrito:

Voltou-se para a outra linha

Caminhando eternamente

Sorriu-lhe e disse-lhe assim:

de infinito a infinito

"Deixa lá a geometria E anda aqui para o pé de mim...!

Seguiam-se passo a passo Exactas e sempre a par

Diz a outra: "Nem pensar!

Pois só num ponto do espaço

Mas que falta de respeito!

Que ninguém sabe onde é

Se quisermos lá chegar

Se podiam encontrar

Temos de ir devagarinho

Falar e tomar café.

Andando sempre a direito Cada qual no seu caminho!"

Não se dando por achada Fica na sua a primeira E sorrindo amalandrada Pela calada, sem um grito Deita a mãozinha matreira Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente As duas a murmurar Olharam-se docemente E sem fazerem perguntas Puseram-se a namorar Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas Fica uma estória banal Com linhas e entrelinhas E uma moral convergente: O infinito afinal Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha

Ingrid Wolff-Hamm, Das Unendliche

Certitude

Si je te parle c'est pour mieux t'entendre Si je t'entends je suis sûr de comprendre

Si tu souris c'est pour mieux m'envahir Si tu souris je vois le monde entier

Si je t'étreins c'est pour me continuer Si nous vivons tout sera à plaisir

Si je te quitte nous nous souviendrons Et nous quittant nous nous retrouverons.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour

M.Wiora, flores de tília

Partiste a minha vida...

Partiste a minha vida em longos promontórios, um dos quais penetra até um jardim relvado onde a maneira doce como cruzaste as pernas o fixou em acerada ponta dolorosa.

De longe atacas-me de ternura em riste penetrando na solidão que te franqueio onde se engasta o brilho dos teus olhos e a estranha flor da tua ausência.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha Anni Adkins, bruised hibiscus

CANÇÃO DA ALMA CAIADA

Aprendi desde criança Que é melhor me calar E dançar conforme a dança Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto Que não me enquadro na lei: Minto sobre o que sinto E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar, Sem me poder vencer: Tento afogar no mar O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma Só à noite caio em mim por isso me falta calma e vivo inquieto assim.

António Cícero

Kandinsky, the red oval

em fundo

Tchaikowsky Sinfonia nº 6, en si mayor, op. 74 "Patetica" Orquestra Sinfónica del Estado de la URSS K. Ivanov

Nathann Altman, Anna Akhmatova

Anna Akhmatova

Como Pedra Branca As a White Stone... Como pedra branca no fundo do poço dentro de mim está uma memória.

As a white stone in the well's cool deepness,

Nem quero afastá-la, nem posso:

There lays in me one wonderful remembrance.

é sofrimento e é prazer e glória.

I am not able and don't want to miss this: It is my torture and my utter gladness.

Julgo que quem olhar-me bem de perto dentro em meus olhos logo pode vê-la.

I think, that he whose look will be directed

E ficará mais triste e pensativo

Into my eyes, at once will see it whole.

que alguém que escute uma anedota obscena.

He will become more thoughtful and dejected Than someone, hearing a story of a dole.

Eu sei que os deuses metamorfoseavam os homens em coisas sem tirar-lhes alma.

I knew: the gods turned once, in their madness,

Para que o espante da tristeza dure sempre,

Men into things, not killing humane senses.

em coisa da memória te mudei.

You've been turned in to my reminiscences To make eternal the unearthly sadness.

Tradução de Jorge de Sena Translated by Yevgeny Bonver

¡Si me llamaras, sí; si me llamaras! Lo dejaría todo, todo lo tiraría: los precios, los catálogos, el azul del océano en los mapas, los días y sus noches, los telegramas viejos y un amor. Tú, que no eres mi amor, ¡si me llamaras! Y aún espero tu voz: telescopios abajo, desde la estrella, por espejos, por túneles, por los años bisiestos puede venir. No sé por dónde. Desde el prodigio, siempre. Porque si tú me llamas -¡si me llamaras, sí, si me llamaras!será desde un milagro, incógnito, sin verlo. Nunca desde los labios que te beso, nunca desde la voz que dice: "No te vayas". Pedro Salinas

Juan Gris, La Plaza Ravignan

Amar não é aceitar tudo. Onde tudo é aceito, presumo que há falta de amor. Vladimir Maiakovsky

Alguien entra en el silencio y me abandona. Ahora la soledad no está sola. Tú hablas como la noche. Te anuncias como la sed.

Alexandra Pizarnik, los trabajos y las noches

Pablo Picasso

Se uma folha caída se um rumor brando acordava o silêncio mal represo quanto alarme no ar de flores coberto

Vão longe os tempos de alvoroço de fronteira a fronteira imaginária rara aventura agora impessoal uma alegria alheia que hoje amarga

Van Gogh, two cut sunflowers

Dou corda a este velho relógio de parede pesa-me o braço que levanto do peso de outros tempos que desperto

Como é natural

E um fantasma lá dos fundos do quadrante sorri-me com tristeza e diz É tarde talvez já seja muito tarde.

Vão longe os anos de intermezzo quando a brisa indolente passeava doce esperança à flor dos lábios mudos

Mário Dionísio, O Silêncio Voluntário

Chagall, Lovers Gray

Cet amour qui faisait peur aux autres CET AMOUR

Qui les faisait parler Qui les faisait blêmir Cet amour guetté Parce que nous le guettions

Cet amour

Traqué blessé piétiné achevé nié oublié

Si violent

Parce que nous l'avons traqué blessé piétiné achevé nié oublié

Si fragile

Cet amour tout entier

Si tendre

Si vivant encore

Si désespéré

Et tout ensoleillé

Cet amour

C'est le tien

Beau comme le jour

C'est le mien

Et mauvais comme le temps Quand le temps est mauvais Cet amour si vrai Cet amour si beau Si heureux Si joyeux Et si dérisoire

Celui qui a été Cette chose toujours nouvelle Et qui n'a pas changé Aussi vraie qu'une plante Aussi tremblante qu'un oiseau Aussi chaude aussi vivante que l'été Nous pouvons tous les deux

Tremblant de peur comme un enfant dans le noir

Aller et revenir

Et si sûr de lui

Nous pouvons oublier

Comme un homme tranquille au milieu de la nuit

Et puis nous rendormir

Nous réveiller souffrir vieillir

Oui je lui crie

Nous endormir encore

Pour toi pour moi et pour tous les autres

Rêver à la mort

Que je ne connais pas

Nous éveiller sourire et rire

Reste là

Et rajeunir

Là où tu es

Notre amour reste là

Là où tu étais autrefois

Têtu comme une bourrique

Reste là

Vivant comme le désir

Ne bouge pas

Cruel comme la mémoire

Ne t'en va pas

Bête comme les regrets

Nous qui sommes aimés

Tendre comme le souvenir

Nous t'avons oublié

Froid comme le marbre

Toi ne nous oublie pas

Beau comme le jour

Nous n'avions que toi sur la terre

Fragile comme un enfant

Ne nous laisse pas devenir froids

Il nous regarde en souriant

Beaucoup plus loin toujours

Et il nous parle sans rien dire

Et n'importe où

Et moi j'écoute en tremblant

Donne-nous signe de vie

Et je crie

Beaucoup plus tard au coin d'un bois

Je crie pour toi

Dans la forêt de la mémoire

Je crie pour moi

Surgis soudain

Je te supplie

Tends-nous la main

Pour toi pour moi et pour tous ceux qui s'aiment

Et sauve-nous.

Et qui se sont aimés Jacques Prévert, Paroles

Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence o vencedor; é ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões, Rimas

Vieira da Silva, Jardins suspendus

Cantiga de amigo

Nem um poema nem um verso nem um canto tudo raso de ausência tudo liso de espanto e nem Camões Virgílio Shelley Dante o meu amigo está longe e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai tudo calado todos sem mãe nem pai Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

o meu amigo está longe e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso que faz do amor sozinho o amor imenso. Calai Camões Virgílio Shelley Dante: o meu amigo está longe e a saudade é bastante! Matisse, harmonie jaune

Ary dos Santos, Obra Poética

coisa estranha Papoilas opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e muito sol com luas por dentro estou opiada de ti

para poder mastigar estes sonhos

e percorres-me os nervos todos

reais como mandrágoras

com papoilas borboletas vermelhas

o meu corpo entrança-se de sonhos

Ana Mafalda Leite

e sente-se caminhando por dentro

aspiro-te como se me faltasse o ar e os perfumes dançam-me

qualquer coisa como uma droga bem forte corpo e alma rezam pequenas orações gestos ritmados ao abraçar-te como quem abraça sonhos

Georgia O'keeffe, poppies

Amor

Vibrátil, fina, perfumada e clara, Ondula a aragem que o amor provoca.

Vibrátil, fina, imperceptível, fluida,

Longe, respira a vida. Aqui, o sonho.

Orquestra ao longe, no fundo dos sentidos:

Tudo é infância de águas e colinas

Dedos de flores ondeiam sobre a pele

Na manhã dos teus olhos.

De céus indefinidos...

E voos, de mãos dadas. E cantos, cantos de infinito amor,

Cantam mistérios bocas fascinadas.

Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Abrem corolas, sobre a luz que as toca. Vibrátil, fina, perfumada e clara,

Envolve-se de nuvem nosso abraço.

Ondula a aragem que o amor provoca.

Vibrátil, fina, perfumada e clara, Ondula a aragem. Fadas e duendes Agitam instrumentos na folhagem...

Natércia Freire

Jean Arp, Constellation

Un sol

¿En dónde está el espíritu sombrío De cuya opacidad brote la llama? Ah, si mis mundos con su amor inflama

Mi corazón es como un dios sin lengua,

Yo seré incontenible como un río.

Mudo se está a la espera del milagro, He amado mucho, todo amor fue magro,

¿En dónde está el que con su amor me envuelva?

Que todo amor lo conocí con mengua.

Ha de traer su gran verdad sabida... Hielo y más hielo recogí en la vida:

He amado hasta llorar, hasta morirme.

Yo necesito un sol que me disuelva.

Amé hasta odiar, amé hasta la locura, Pero yo espero algún amor natura

Alfonsina Storni

Capaz de renovarme y redimirme.

Amor que fructifique mi desierto Y me haga brotar ramas sensitivas, Soy una selva de raíces vivas, Sólo el follaje suele estarse muerto.

¿En dónde está quien mi deseo alienta? ¿Me empobreció a sus ojos el ramaje? Vulgar estorbo, pálido follaje Distinto al tronco fiel que lo alimenta. Munch

O círculo é a forma eleita É ovo, é zero. É ciclo, é ciência. Nele se inclui todo o mistério E toda a sapiência. É o que está feito, Perfeito e determinado, É o que principia No que está acabado. A viagem que o meu ser empreende Começa em mim, E fora de mim, Ainda a mim se prende. A senda mais perigosa. Em nós se consumando, Passando a existência Mil círculos concêntricos Desenhando.

Balla, mercury passing in front of the sun

Ana Hatherly

em fundo

Donizetti, l'elisir d'amore Rescigno, Pavarotti, Blegen Metropolitan Opera

Bouguereau, the first kis

Una furtiva lagrima

Una furtiva lagrima negli occhi suoi spuntò... quelle festose giovani invidiar sembrò... Che più cercando io vo? M'ama, lo vedo. Un solo istante i palpiti del suo bel cor sentir!.. Co' suoi sospir confondere per poco i miei sospir!... Cielo, si può morir; di più non chiedo.

Eccola... Oh! qual le accresce beltà l'amor nascente! A far l'indifferente si seguiti così finché non viene ella a spiegarsi.

Una Furtiva Lacrima - G. Donizetti

Enleio

Não sei se volteio Se rodopio Se quebro

Se tombo nesta queda em que passeio

Não sei se a vertigem em que me afundo é este precipício em que me enleio

Não sei se cair assim me quebra... Me esmago ou sobrevivo em busca deste anseio

Maxfield Parrish, ecstasy

Maria Teresa Horta, Destino

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, A essa hora dos mágicos cansaços, Quando a noite de manso se avizinha, E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha A tua boca... e eco dos teus passos... O teu riso de fonte... os teus abraços... Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca, Traça as linhas dulcíssimas dum beijo E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca... Quando os olhos se me cerram de desejo... E os meus braços se estendem para ti... Hopper

Florbela Espanca, In Charneca em Flor

Como te amo? How do I love thee? Como te amo? Deixa-me contar os modos. Amo-te ao mais fundo, amplo e alto

How do I love thee? Let me count the ways.

Minh'alma pode alcançar, além dos limites visíveis

I love thee to the depth and breadth and height

E fins do Ser e da Graça ideal.

My soul can reach, when feeling out of sight For the ends of Being and ideal Grace.

Amo-te até ao nível das mais diárias E ínfimas necessidades, à luz do sol e das velas.

I love thee to the level of everyday's

Amo-te com liberdade, como os homens buscam por

Most quiet need, by sun and candlelight.

Justiça;

I love thee freely, as men strive for Right;

Amo-te com pureza, como voltam das Preces.

I love thee purely, as they turn from Praise.

Amo-te com a paixão posta em uso

I love thee with the passion put to use

Nas minhas velhas mágoas e com a fé da minha infância.

In my old griefs, and with my childhood's faith.

Amo-te com um amor que me parecia perdido

I love thee with a love I seemed to lose

Com meus Santos perdidos - amo-te com o fôlego,

With my lost saints, - I love thee with the breath,

Sorrisos, lágrimas, de toda a minha vida! - e, se Deus

Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,

quiser,

I shall but love thee better after death.

Amar-te-ei melhor depois da morte.

Elizabeth Barrett Browning

Elizabeth Barrett Browning

Sonetos dos Portugueses, trad.:Luís Eusébio

Sonnets from the Portuguese

Chagall, Land Gods II - Cupid and Psyche

em fundo Ave Maria Gratia plena Maria, gratia plena Maria, gratia plena Ave, ave dominus Dominus tecum Benedicta tu in mulieribus Et benedictus Et benedictus fructus ventris Ventris tui, Jesus. Ave Maria Ave Maria Mater Dei Ora pro nobis peccatoribus Ora pro nobis Ora, ora pro nobis peccatoribus Nunc et in hora mortis Et in hora mortis nostrae Gustav Klimt, Franz Schubert

Et in hora mortis nostrae Et in hora mortis nostrae

Franz Schubert, Ave Maria

Ave Maria

Sozinha no bosque Com meus pensamentos, Calei as saudades Fiz tréguas a tormentos.

Olhei para a Lua, Que as sombras rasgava, Nas trémulas águas Seus raios soltava.

N'aquela torrente Que vai despedida, Encontro assustada A imagem da vida.

Do peito em que as dores Já iam cessar, Revoa a tristeza E torno a penar. Dante Gabriel Rossetti, Portrait of Elizabeth Siddal

Marquesa de Alorna, Obras Poéticas

Les gens ont des étoiles qui ne sont pas les mêmes.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

Asas

Eu tenho asas! Piso o chão como pisa toda a gente mas tenho asas de impalpável tecido transparente, feitas de pó de estrelas e de flores. Asas que ninguém vê, que ninguém sente, asas de todas as cores. Pequenas asas brancas que me afastam das coisas triviais e as tornam leves, fluídas, irreais - polén, nuvem, luar, constelações, irisados cristais. Asa branca minha alma a palpitar, bater de asas o doce ciciar de pálpebras e cílios. Ó minhas asas brancas de cetim! Revoadas de pássaros meus sonhos, Meus desejos sem fim!

Fernanda de Castro, Exílio

Hino ao sol

Respiro o doce hálito da tua boca - diz Akhenaton ao divino Sol. Vejo a tua beleza todos os dias, quero para sempre ouvir tua doce voz, como o vento. Desejo que a vida renasça em mim, graças ao teu amor. Dá-me o alento que rejuvenesce o teu espírito, para que eu o colha, o receba e dele viva. Chama por mim até à eternidade. Jamais deixarei de estar contigo, jamais deixarei de te responder.

Akhenaton (Amenófis IV) Foto: eli

A imobilidade rasa da

ENDIMIÃO, ENDIMIÃO

resignação. Amar-te o silêncio é entregar-me em abismo à natureza.

Endimião, Endimião, porque existes só para seres sombra do desejo mais forte.

Maria Alzira Seixo

Apelas para o elo

in 366 poemas que falam de amor

que a boca bem redonda continua.

antologia organizada por

O beijo, sede de água

Vasco Graça Moura

luminosa soando a pedra fresca escorrida pelo rio. Só faltam assim as mãos. A empatia. (O senso mais medido.) Endimião, não quero teu busto ao canto da casa que me ergo, não quero a cegueira empedernida. És, ouve bem, a pura forma de encontrar a via, o sono, o canto na lonjura.

Por ti lutavam deuses desumanos. E eu vi-te numa praia abandonado À luz, e pelos ventos destroçado,

Endymion

E os teus membros rolaram nos oceanos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

David Perret, endymion

La blanche Séléné...

- La blanche Séléné laisse flotter son voile, Craintive, sur les pieds du bel Endymion, Et lui jette un baiser dans un pâle rayon...

Arthur Rimbaud, Soleil et chair

Edward J. Poynter, Vision of Endymion

On n'a pas besoin de la lune

On n'a pas besoin de la lune Quand on est vraiment amoureux Pas besoin de vent sur la dune

Un petit coin de parapluie Contre un coin de paradis Elle avait quelque chose d'un ange

Ni de source ni de ciel bleu Du moment qu'on aime sa brune Ça suffit pour qu'on soit heureux Les yeux dans les yeux Et le coeur joyeux On oublie la terre et les cieux

On n'a pas besoin de la lune Quand on est vraiment amoureux Pas besoin de vent sur la dune Ni de source ni de ciel bleu Du moment qu'on aime sa brune Ça suffit pour qu'on soit heureux

Quelle bonheur quelle joie quelle chance Ma donnée la vie La première fois que je vis

Les yeux dans les yeux Et le coeur joyeux On oublie la terre et les cieux

Celle qui est mon amie Nous avons fait connaissance Son jardin fleuri

On n'a pas besoin de la lune Quand on est vraiment amoureux

Et pas sous le ciel de la Provence Mais sous un parapluie Place Clichy Georges Brassens, chansons de sa jeunesse

AMIZADE

De mais ninguém, senão de ti, preciso: Do teu sereno olhar, do teu sorriso, Da tua mão pousada no meu ombro. Ouvir-te murmurar: - "Espera e confia!" E sentir converter-se em harmonia, O que era, dantes, confusão e assombro.

Carlos Queirós in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura

em fundo

BRAHMS

O som do violino escapa por entre as lisuras As fissuras incandescentes da tarde

Buscando no corpo a eleição a perfeição Os jacintos adormecidos da arte

Numa desordem súbita Resnichenko, violin

Maria Teresa Horta, Destino Johannes Brahms, Violin Concerto, op. 77

Sintra

Foto: eli

... um jardim terreal que Salomão mandou aqui a um rei de Portugal

Gil Vicente

Em Sintra

As águas maravilham-se entre os lábios e a fala, rápidos em Sintra espelhos surgem como pássaros, a luz de que se erguem acontece às águas, à flor da fala divide os lábios e a ternura. Da linguagem rebentam folhas duma cor incómoda, as de que maravilhado de água surges entre livros, algum crime, um menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues equívoca a luz depois. Rápidos Monserrate – Sintra – foto: eli

espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa

escuta amor

talvez num dia em que de mim já nada mais exista te lembres de dois braços que te abraçaram convulsivamente nessa altura deixa que os lábios te sangrem deixa que o sangue

te corra pelo peito

foto: Wiora

e as mãos essas abandona-as...

Mário Henrique Leiria

Miedo

Aquí, sobre tu pecho, tengo miedo de todo; estréchame en tus brazos como una golondrina y dime la palabra, la palabra divina que encuentre en mis oídos dulcísimo acomodo.

Háblame de amor, arrúllame, dame el mejor apodo, besa mis pobres manos, acaricia la fina mata de mis cabellos, y olvidaré, mezquina, que soy, ¡oh cielo eterno!, sólo un poco de lodo.

¡Es tan mala la vida! ¡Andan sueltas las fieras!... Oh, no he tenido nunca las bellas primaveras que tienen las mujeres cuando todo lo ignoran.

En tus brazos, amado, quiero soñar en ellos, mientras tus manos blancas suavizan mis cabellos, mientras mis labios besan, mientras mis ojos lloran.

Alfonsina Storni

Anni Adkins

Liberdade

Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando, ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo

Foto: eli

Azul. Era azul?...

Azul. Era azul? Era a cor que era, não a que pretendo - ou seja, a que relembro. O mar. Água, em todo o caso. Vento por cima; ou era a voz de alguém fazendo o ar bulir? É na pele o que sinto ou nos ouvidos soa? A sós a praia. A sós, que não estou lá.

Pedro Tamen, Memória Indescritível

Foto: eli

endechas a Bárbara escrava Aquela cativa

Onde o povo vão

Que me tem cativo,

Perde opinião

Porque nela vivo

Que os louros são belos.

Já não quer que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que pera meus olhos Fosse mais fermosa.

Pretidão de Amor, Tão doce a figura, Que a neve lhe jura Que trocara a cor.

Nem no campo flores, Nem no céu estrelas Me parecem belas Como os meus amores.

Leda mansidão, Que o siso acompanha; Bem parece estranha, Mas bárbara não.

Rosto singular, Olhos sossegados, Pretos e cansados, Mas não de matar.

Presença serena Que a tormenta amansa; Nela, enfim, descansa Toda a minha pena.

Uma graça viva, Que neles lhe mora, Pera ser senhora De quem é cativa.

Esta é a cativa Que me tem cativo; E. pois nela vivo, É força que viva.

Pretos os cabelos, Luís de Camões, Rimas

Marie Benoist, Portrait

Camoniana

Quem és tu, bárbara, que moras num poema que se estuda nas escolas e se lê em recitais, - tu que te limitaste a ser amada por um poeta que, se calhar, mais não te deu em troca do amor do que esse poema que tu, se calhar, nunca chegaste a ouvir? Quem és, ó mulher mais real do que esse poeta que te cantou, e de cuja vida ninguém sabe nada - a não ser que te amou, e te deitou nesse poema em que ainda vives, e respiras como no dia em que ele o escreveu lembrando-se do teu corpo, e dos teus lábios, e dos dias, ou noites,

nessa bárbara encontraram uma imagem precisa e definitiva? volta-te nesses versos, para que te vejamos o rosto, e diz-nos o teu nome o nome autêntico, e não esse que o poeta inventou para te chamar num poema que de ti só guarda o segredo; e adormece depois, esquecendo o que de ti disseram, e os comentários de que foste o pretexto, e as imagens em que, cada vez mais, foste perdendo a tua, e única, imagem.

que contigo se passaram? Quem és, mulher real e sonhada que habitas todos os poemas que esse poema inspirou, e todos os sonhos que

Nuno Júdice, Um canto na Espessura do Tempo

em fundo

Ottorino Respighi, Italiana from Ancient Airs and Dances for Lute (suite III) Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Somos como árvores só quando o desejo é morto Só então nos lembramos que dezembro traz em si a primavera Só então, belos e despidos, ficamos longamente à sua espera.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

Takashi Imashiro, arbres dépouillés par l'hiver

oh! a primeira pegada

Oh! a primeira pegada Foto: eli

na areia molhada... E a sombra dum homem E um homem de pé

a erguer-se dos seixos

a olhar em redor

com pés de deusa azul

para o sonho do céu,

para atravessar, sozinha,

dos peixes e das ondas,

as águas e as nuvens...

num querer arrancar-lhe

- e ir criar o mundo

a dor da realidade.

com mãos de tempestade...

Oh! a primeira pegada na areia molhada...

José Gomes Ferreira, Poesia II

WATER MUSIC. DE HÄNDEL

Sobre o rio descem cordas e madeiras a remos de metais.

É como sol nas águas, no arvoredo verde que as águas reverdece de verdura e sombra.

Crepitam trompas e destilam flautas na crespa ondulação que as proas tangem e morre em margens de oboé e bombo, cadenciando o choque das remadas de ouro.

A brisa flui serena e fina em cabeleiras e em rendas que ondulam risonhas e solenes Jean-Jules Sahmson, La Musique, Georg Friedrich Händel

sobre os bordados esparzidos, prata

Com pompas e sorrisos

que dança e salta enquanto

os instrumentos tocam

as barcas se meneiam

virilmente lânguidos

na transparência opaca de águas como céu

a circunstância de uma festa aquática:

azul que a tarde por silêncios tece

secreta e oculta uma melancolia

em majestade eterna e momentânea

dessas grandezas que ordenadas flúem

dos astros em seu curso.

a remos de metais no efémero perene de que o eterno faz a sucessão de instantes.

Habitados só por deuses e pastores

Os últimos acordes como vénias passam.

gerados na saudade

O sol dardeja sobre as frondes. Tronos

da simples harmonia

dourados se dissolvem no reflexo de águas

contrapontada na invenção da vida,

que a música prolonga em gloriosas tardes.

os planetas pisam abstractas órbitas

E a glória se dilui de etéreas trompas

à luz de um sol de que recebem foco.

que as cordas acompanham sobre os rios

E as barcas descem temporais o rio

de música tão régia que a existência vive

de cujas águas são flutuante forma

o acto de pensar na ordem recriada.

da eternidade do destino ignoto.

Jorge de Sena, Arte de Música

O Cacilheiro

Na Ponte passam carros e turistas iguais a todos que há no mundo inteiro, mas, embora mais caras, a Ponte não tem vistas como as dos peitoris do Cacilheiro.

Leva namorados, marujos, soldados e trabalhadores, e parte dum cais que cheira a jornais, morangos e flores. Lá vai no Mar da Palha o Cacilheiro, comboio de Lisboa sobre a água: Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro. Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.

Regressa contente, levou muita gente e nunca se cansa. Parece um barquinho lançado no Tejo por uma criança.

Num carreirinho aberto pela espuma,

Se um dia o Cacilheiro for embora,

la vai o Cacilheiro, Tejo à solta,

fica mais triste o coração da água,

e as ruas de Lisboa, sem ter pressa nenhuma,

e o povo de Lisboa dirá, como quem chora,

tiraram um bilhete de ida e volta.

pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.

Alfama, Madragoa, Bairro Alto, tu cá-tu lá num barco de brincar. Metade de Lisboa à espera do asfalto,

Letra: Ary dos Santos

e já meia saudade a navegar.

Música: Paulo de Carvalho Canta: Carlos do Carmo

Leva namorados, marujos, soldados e trabalhadores, e parte dum cais que cheira a jornais, morangos e flores. Regressa contente, levou muita gente e nunca se cansa. Parece um barquinho lançado no Tejo por uma criança.

Elegia

Foto: eli

A veces me dan ganas de llorar, pero las suple el mar.

José Gorostiza, de Canciones para cantar en las barcas

Qui sait...

Qui sait, nous ne nous aimerions peut-être pas tant Si nos âmes ne se voyaient pas de si loin. Nous ne serions peut-être pas si près, qui sait Si le destin ne nous avait séparés.

Nazin Hikmet, c'est un dur métier que l'exil

Tapiès

em fundo

do Miradouro de Santa Luzia

The Choir of New College, Oxford Edward Higginbottom

Amor é olhar total, que nunca pode ser cantado nos poemas ou na música, porque é tão-só próprio e bastante, em si mesmo absoluto táctil, que me cega, como a chuva cai na minha cara, de faces nuas, oferecidas sempre apenas à água.

Fiama Hasse Pais Brandão

CALÇADA À PORTUGUESA

O mar sai das mãos destes calceteiros que logo de manhã se ajoelham na rua

Água soberba e manchada de sexo.

a bater nos cubos de pedra

Negro, negro sensual de mornas e coladeiras

como se fossem pães de um tempo

não subas acima do passeio.

inacabado.

Não me invadas o corpo,

Sisudos e pacientes limpam o corpo negro

não me molhes as noites mal dormidas.

do pó branco do trabalho e avançam lentamente aos pés

E o homem no chão afeiçoa

de quem anda a correr pelos próprios meios

a pequena pedra

e mundos.

ao mar seco e saudoso da sua transumância,

O mar não se devia perder

às entranhas da terra que não é a sua.

em minúcias citadinas de raças que tentam conviver

Só o coração simples lhe pede

na sobrevivência.

uma sede de água.

Mas o suor é uma água nostálgica que envolve a carne frágil

Ou de cerveja.

das mulheres com seus carrinhos de compras e as suas crianças de carrinho.

Armando Silva Carvalho, Lisboas

Lisboa, Parque das Nações in CAIS, Círculo de Apelo à Integração dos Sem-abrigo Nº 54 - Janeiro/Fevereiro de 2001

L'Alliance

Définitivement ils sont deux petits arbres Seuls dans un champ léger Ils ne se sépareront plus jamais.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour photogalery

Destino Como a todo o ente o seu fado Quem disse à estrela o caminho Que ela há-de seguir no céu? A fabricar o seu ninho Como é que a ave aprendeu? Quem diz à planta - "Floresce!" E ao mudo verme que tece

Por instinto se revela, Eu no teu seio divino Vim cumprir o meu destino... Vim, que em ti só sei viver, Só por ti posso morrer.

Sua mortalha de seda Os fios quem lhos enreda? Almeida Garrett, Ensinou alguém à abelha

Folhas Caídas

Que no prado anda a zumbir Se à flor branca ou à vermelha O seu mel há-de ir pedir? Que eras tu meu ser, querida, Teus olhos a minha vida, Teu amor todo o meu bem... Ai! não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado, Como no céu gira a estrela,

Garrett, desenho de Almada Negreiros

em fundo

Andy Warhol, Beethoven

Beethoven, Symphonie nr.9 Anna Tomowa-Sintow . Agnes Baltsa Peter Schreier . José Van dam Wiener Singverein Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

freunde trinken alle wesen ODE AN DIE FREUNDE

An den Brüsten der Natur; Alle Guten, alle Bösen Folgen ihrer Rosenspur.

O Freunde, nicht diese Töne! Sondern lasst uns angenehmere anstimmen und freundenvollere!

Küsse gab sie uns und Reben Einen Freund, geprüft im Tod; Wollust ward dem Wurm gegeben, Und der Cherub steht vor Gott!

Freunde, schöner Götterfunken Tochter aus Elysium wir betreten feuertrunken Himmlische, dein Heiligtum! Deiner Zauber binden wieder,

Froh, wie seine Sonnen fliegen Durch des Himmels prächt'gen Plan, Laufet, Brüder, eure Bahn, Freudig, wie ein Held zum Siegen

Was die Mode streng geteilt; Alle Menschen werdwn Brüder, Wo dein sanfter Flügel weilt.

Seid umschlungen, Millionen. Diesen Kuss der ganzen Welt! Brüder! Überm Sternenzelt

Wem der grosse Wurf gelungen, Eines Freundes Freund zu sein, Wer ein holdes Weib errungen Mische seine Jubel ein! Ja, wer auch nur eine Seele

Muss ein lieber Vater wohnen. Ihr stürzt nieder, Millionen? Ahnest du den Schöpfer, Welt? Such'ihn überm Sternenzelt! Über Sternen muss er wohnen.

Sein nennt auf dem Erdenrund! und wer's nie gekonnt, der stehle Weinend sich aus diesem Bund.

Friedrich von Schiller

Presépio no exterior do Convento de Mafra, Dez. 2004 Fotos de F. –

Em nome dos que choram, Dos que sofrem, Dos que acendem na noite o facho da revolta

KYRIE

E que de noite morrem, Com a esperança nos olhos e arames em volta. Em nome dos que sonham com palavras De amor e paz que nunca foram ditas, Em nome dos que rezam em silêncio E falam em silêncio E estendem em silêncio as duas mãos aflitas. Em nome dos que pedem em segredo A esmola que os humilha e os destrói E devoram as lágrimas e o medo Quando a fome lhes dói. Em nome dos que dormem ao relento Numa cama de chuva com lençóis de vento O sono da miséria, terrível e profundo. Em nome dos teus filhos que esqueceste, Filho de Deus que nunca mais nasceste, Volta outra vez ao mundo!

José Carlos Ary dos Santos, 20 Anos de Poesia

L'hymne à l'Amour Je renierais ma patrie Je renierais mes amis Si tu me le demandais Le ciel bleu sur nous peut s'effondrer

On peut bien rire de moi

Et la terre peut bien s'écrouler

Je ferais n'importe quoi

Peu m'importe si tu m'aimes

Si tu me le demandais

Je me fous du monde entier Tant qu'l'amour inond'ra mes matins

Si un jour la vie t'arrache à moi

Tant que mon corps frémira sous tes mains

Si tu meurs que tu sois loin de moi

Peu m'importe les problèmes

Peu m'importe si tu m'aimes

Mon amour puisque tu m'aimes

Car moi je mourrais aussi Nous aurons pour nous l'éternité

J'irais jusqu'au bout du monde

Dans le bleu de toute l'immensité

Je me ferais teindre en blonde

Dans le ciel plus de problèmes

Si tu me le demandais

Mon amour crois-tu qu'on s'aime

J'irais décrocher la lune

Dieu réunit ceux qui s'aiment

J'irais voler la fortune Si tu me le demandais Paroles: Edith Piaf Musique: Marguerite Monnot

Toulouse-Lautrec, Baiser

Ad Animam Oblitam

Estamos em Lisboa face a face, neste lugar atlântico de passagem. Ouço na tua voz um recado de Alice:

amanhã, se puderes, veste-te de azul pálido e de branco, põe no cabelo uma fita prateada. Senta-te, como convém, no crescente da lua e navega sobre as águas de outro dia, cantam sereias.

Manuela Parreira da Silva, O Álbum de Vishnu

Lisboa - do Miradouro da Senhora do Monte – foto: eli

Solstice d’hiver

Solstice d’hiver, solstice noir Solstice d’espoir Au creux de ton ombre Dans ton silence La lumière vient, Reprend son souffle... Solstice noir, solstice d’espoir Solstice d’hiver Dans le silence et dans l’errance… L’espérance…

Michèle Roberge, Tant d’hiver au cœur du changement: essai sur la nature des transitions

Foto: a.m.

persegue a vereda. Eu penso em flores mutiplicando-se e botões em hastes vestigiais,

AO APROXIMAR-SE O INVERNO

nesta época cansada e tuberculosa.

Junto às árvores húmidas um homem vira-se. Ramos de veias como cobras mortas Esta é a mulher que eu sou,

coagulam no seu pescoço e na sua têmpora

sozinha ao aproximar-se o inverno,

uma palavra palpita como sangue:

começando a compreender o outono,

"Olá, olá!"

o lamento do céu

(penso em flores multiplicando-se.)

e as fracas mãos de cimento. Ao aproximar-se o inverno há funerais O tempo passou,

para espelhos e suas pálidas memórias.

o tempo passou.

A tarde pondera o seu silêncio.

São quatro da tarde

Como se pode gritar alto

e o trimestre do inverno

para alguém assim

principia hoje.

(virando-se lentamente, sem objectivo),

Escuto às escondidas momentos, estações.

alguém que nunca viveu,

O salvador dorme no túmulo

alguém que não vive?

enquanto a terra tranquilamente acena. O vento agita a rua O tempo passou e o relógio deu as quatro horas.

e os velhos corvos vivem sós, voando em círculo sobre os antigos pomares.

O vento persegue a vereda,

A escada ousada é mesquinha, afinal.

Encontrar-nos-emos como os mortos milenares. Quem roubou a capacidade de acreditar

O sol julgará a nossa putrescência.

nos castelos dos contos de fadas? O que poderá levantar agora alguém

Estou fria, fria,

para dançar ou deixar cair o cabelo infantil

e não mais sentirei

nas correntes? Quem pisa a maçã finalmente saboreada?

calor algum. Ó bem-amado, os peixes

Caro amigo, que nuvens

estão a mordiscar a minha carne

descem para regozijo do sol?

onde me tens cativa no fundo do oceano. O tempo pesa tudo em redor.

Dos contornos verdes do pensamento,

Brincos de madrepérola

ao contemplar o voo,

furam-me. Estou fria.

um dia um pássaro ergueu-se,

Eu sei que até os sonhos

as folhas tremeram

de uma papoila selvagem redundam

no sopro decidido do vento.

nalgumas gotas de sangue.

Aquela luz violeta na janela

Eu suspendo linhas e números

era apenas a imagem de uma candeia.

e de uma limitada geometria fujo, gozando o vasto espaço.

O vento escuta atentamente no beco

Estou exposta, como as pausas

tal como fez no dia em que as tuas mãos morreram.

numa declaração de amor,

O dia traz consigo desolação.

esse amor que me fez mal.

Queridas estrelas de papel, quando as mentiras

Eu construí este barco insular

fervilharem no céu, que conforto

debaixo de tempestades e krakatoas:

haverá nos versos dos loucos profetas?

da mais ínfima partícula estilhaçada

pode nascer o sol.

regressou e ficou diante do espelho e me chamou.

Saúdo-te, noite inocente!

A noite estava azul

Os olhos dos lobos nómadas

por causa dos azulejos de Isfahan.

transformas em cavidades

A dor deu-me colo e eu concebi.

de fé e despida confiança.

Ele ficou de pé puro e resplandecente

Ao longo dos teus bancos os salgueiros

como um espelho mas subitamente

cheiram os gentis machados que se aproximam.

eu estava casada com os ramos das acácias.

Eu abandonei este leito de serpente, o mundo descomprometido

A minha mãe tinha estado a chorar.

das palavras e dos sons onde batem os pés das multidões

Pela janela nada chegou

e as pessoas oferecem o seu beijo

e a felicidade inteira percebeu

enquanto atam o nó da tua forca.

que as tuas mãos morreriam. Eu não vi nada

Saúdo-te, noite inocente!

até as quatro horas terem sido dadas pelo desgraçado cuco.

Mas por que não olhei eu?

De olhos como o ninho vazio

Havia uma janela

do roc, aquela mulher chegou,

e uma vista apartada.

escoltando até ao enterro

Junto às árvores húmidas um homem virou-se,

a minha adolescência, encrustada na noite.

a minha mãe tinha estado a chorar, porém eu não vi nada.

Quando levará o vento o meu cabelo?

Nessa noite tornei-me a noiva

Quando plantarei eu amores-perfeitos na fronteira

das acácias quando o meu marido

e gerânios na janela do céu?

Quando voltarei a dançar

e a noite caiu sobre a acácia revelada,

no rebordo dos copos?

recolhendo por trás das vidraças da janela

Quando conduzirá a campainha da porta

as últimas coisas do dia.

a uma voz iminente?

Onde estive eu, o cheiro da noite ainda sobre mim,

Eu disse à minha mãe que tudo terminara.

o túmulo ainda fresco com terra

Eu disse: "Acontece mais cedo do que se pensa.

para aquelas mãos mortas...?

Temos de enviar condolências para a página de necrologia."

Tão gentil foste na maneira como mentiste,

E aí vem ele, o pateta presunçoso,

na maneira como fechaste

os seus dentes mastigando salmos,

os olhos abertos do espelho.

o seu olhar devorando-te. Junto às árvores húmidas ele vira-se

Arrancaste os candelabros às hastes de arame

(lentamente, sem objectivo).

e levaste-me aos campos prazerosos

São quatro horas.

na escuridão cortante

Ramos de veias como cobras mortas

onde um pequeno rasto de vapor,

coagulam no seu pescoço e na sua têmpora

debaixo das intermináveis rodopiantes estrelas

uma palavra palpita como sangue:

de papel, era tudo o que restava

"Olá, olá!"

da pressa de uma sede.

(Alguma vez cheiraste quatro lírios azuis assim?)

Quem traduziu a fala em som, quem tornou a vista pública,

O tempo passou,

quem reclamou o cabelo acariciado?

o tempo passou,

Aqui está a alma -- olhai! --

de alguém que falou destas coisas,

O brilho dos azulejos abandonou-te,

alguém que lançou um olhar,

mas eu pairo ainda com tal plenitude

alguém pacificado por uma carícia.

que a minha voz é um telhado

Martirizada pelas farpas da ilusão,

no qual o povo realiza as suas orações.

ela carrega as marcas dos teus cinco dedos na sua face.

Pessoas tão satisfeitas, mortas. Mortas, e infelizes.

Em que consiste o silêncio,

Caladas, inteligentes, mortas.

ó bem amado, senão no não dito?

Bem vestidas, bem alimentadas.

A minha fala prolonga-se nos pardais

Sociáveis, mortas.

e no furor da natureza.

Nas gares da estação, com luzes

A primavera, diz ela, está aqui

que facilmente tremelicam, frutos

com folhas e brisas perfumadas.

apodrecem em suas ansiosas mãos.

O chilreio morre nas fábricas.

Tão preocupadas estão

Quem dá corda ao seu relógio habitual,

com os perigos de um cruzamento,

subtraindo e dividindo,

porém é aqui, ao soar o apito de paragem,

nos caminhos do céu?

que um homem deve ser esmagado

Quem ignora o canto do galo

pelo abrandamento do trânsito.

excepto enquanto seu sinal para o pequeno-almoço?

Junto às árvores húmidas um homem vira-se...

A coroa do amor está na sua testa enquanto os trajes de casamento apodrecem por todo o lado.

Onde estive eu?

Então o sol não iria conceder

Eu disse à minha mãe que tudo terminara.

o mesmo final feliz

Eu disse: "Acontece mais cedo do que se pensa.

a ambos os pólos desesperados.

Temos de enviar condolências

para a página de necrologia."

Confiemos na aproximação do inverno...

E agora eu acolho uma nova presença da solidão.

Forugh Farrokzhad - Versão de Vasco Gato

Eu rendo o meu quarto. Por que são sempre as nuvens escuras prenúncios de pureza, os sofrimentos de uma vela uma suspeita cujo derreter é mais brilhante na ponta?

Confiemos, confiemos nesta aproximação do inverno, este murchar das árvores cheias de fruto, foices deixadas de lado, sementes encarceradas. Olha como a neve cai...

Debaixo dessa neve estão as tuas jovens mãos. Mas no próximo ano a Primavera deitar-se-á com o céu por baixo da janela, e os verdes caules ramificar-se-ão, transportando a flor, a partir do seu corpo, ó bem-amado.

Mafra – foto de F. -

que dins el misteri de l'ombra florida,

tombats a la molsa,

LA RELÍQUIA passàvem les hores millors de la vida.

De l'aigua sentíem la música dolça; Faune mutilat, dintre la piscina guaitàvem els peixos, brollador eixut, collíem poncelles, caçàvem bestioles, jardí desolat i ens féiem esqueixos de ma joventut... muntant a la branca de les atzeroles. Beneïda l'hora Ningú sap com era que m'ha duit aquí. que entre l'esponera La font que no vessa, la font que no plora de l'hort senyorívol, me fa plorar a mi. fent-lo més ombrívol, Sembla que era ahir creixia la rama d'antiga olivera.

de la vida mia, Arbre centenari, sense les ferides que al cor ha deixat; amorós pontava la soca torçuda, sense les ferides que es tornen a obrir perquè sense ajuda quan veig que no vessa poguéssim pujar-hi. ni canta ni plora la font del jardí. Al forc de la branca senyora i majora Trenta anys de ma vida volaren depressa, penjàvem la corda de l'engronsadora, i encara no manca, i, venta qui venta, penjat a la branca, folgàvem i réiem fins que la vesprada un tros de la corda de l'engronsadora, la llum esvaïa de l'hora roenta, com trista penyora, de l'hora encantada. despulla podrida d'un món esbucat... Somni semblaria Faune mutilat, el temps que ha volat brollador eixut,

jardí desolat

de ma joventut.

Joan Alcover, Cap al tard, 1910

Foto : G.

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que hão-de me lembrar de modo menos

Há-de vir um Natal e será o primeiro

nítido

em que o Nada retome a cor do Infinito

Há-de vir um Natal e será o primeiro

David Mourão Ferreira

em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem vivo esteja um verso deste livro Presépio de Machado de Castro

ternura

o brilho do meu olhar quando

(sem que te apercebas)

em ti repouso meus olhos.

Márcia Maia

As nuvens são sombrias

As nuvens são sombrias Mas, nos lados do sul, Um bocado do céu É tristemente azul.

Assim, no pensamento, Sem haver solução, Há um bocado que lembra Que existe o coração.

E esse bocado é que é A verdade que está A ser beleza eterna Para além do que há. Foto: eli

Fernando Pessoa, Poemas Dispersos

Estranho é o sono que não te devolve.

Estranho é o sono que não te devolve. Como é estrangeiro o sossego De quem não espera recado. Essa sombra como é a alma De quem já só por dentro se ilumina E surpreende E por fora é Apenas peso de ser tarde. Como é Amargo não poder guardar-te Em chão mais próximo do coração.

Daniel Faria, Poesia

Georgia O'Keeffe, Abstraction IV

XVII

Estilo manuelino: Não a nave romântica onde a regra Da semente sobe da terra Nem o fuste de espiga Da coluna grega Mas a flor dos acasos que a errância Em sua deriva agrega

Sophia de Mello Breyner Andresen, Cem Poemas de Sophia

Mosteiro dos Jerónimos – Foto a.m.-

em fundo

Foto: eli CALLAS - life & art Massenet - Werther! Qui m'aurait dit CD2 - the romantic heroine

Foto: eli

CHARLOTTE

"Des cris joyeux d'enfants montent

Werther! Werther!... Qui m'aurait dit

sous ma fenêtre,

la place que dans mon coeur

et je pense à ce temps si doux

il occupe aujourd'hui?

où tous vos chers petits jouaient

Depuis qu'il est parti, malgré moi,

autour de nous!

tout me lasse!

Ils m'oublieront peut-être!"

Et mon âme est pleine de lui!...

Non, Werther, dans leur souvenir

Ces lettres!

votre image reste vivante,

Ah! je les relis sans cesse...

et quand vous reviendrez...

Avec quel charme, mais aussi quelle tristesse!

mais doit-il revenir?...

Je devrais les détruire... je ne puis!

Ah! ce dernier billet me glace

(lisant)

et m'épouvante:

"Je vous écris

"Tu m'as dit: A Noël!

de ma petite chambre;

Et j'ai crié: jamais!

un ciel gris

On va bientôt connaître

et lourd de décembre

qui de nous disait vrai!

pèse sur moi, comme un linceul...

Mais si je ne dois reparaître,

et je suis seul! seul! toujours seul!..."

au jour fixé, devant toi,

Ah! personne près de lui!

ne m'accuse pas, pleure-moi!

Pas un seul témoignage

Oui, de ces yeux si pleins de charmes,

de tendresse ou même de pitié!

ces lignes, tu les reliras,

Dieu! comment m'est venu ce triste courage

tu les mouilleras de tes larmes... Ô Charlotte, et tu frémiras!"

d'ordonner cet exil et cet isolement? (ouvrant une autre lettre)

(Edouard Blau, Paul Milliet & Georges Hartmann)

ternura

Todas as paisagens nos teus olhos me parecem nuvens

cobrindo horizontes de certas cores que só existem dentro do silêncio.

Sandra Costa

Foto: eli

Castelo de São Jorge

I - 24 de Agosto de 2004 - 31 de Dezembro de 2004

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