Texere ~ Ii ~

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  • Words: 17,126
  • Pages: 208
II – 1 de Janeiro de 2005 – 31 de Maio de 2005

eli miguel

... vai florir

Foto: Wiora

Com a vara calculei a distância entre os dias A vara, pensei, vai florir Posso incliná-la para uma criança a colher

Daniel Faria, Poesia

Lusitânia

Os que avançam de frente para o mar E nele enterram como uma aguda faca A proa negra dos seus barcos Vivem de pouco pão e de luar.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo

Trafaria – foto: eli

No Pasaran Par les grillages de l’attente Je laisse l’espoir à la mer Egrener ses ombres mouvantes

Mon regard lèche la torsade

Malgré la honte et les carnages Le cœur léger sous la nuée Nous survivrons en tes mirages Qui offrent leur parfum de menthe Sous la volute enamourée Face à la mer qui invente

Du fer forgé envoluté La brise arrondit sa chamade

Jamel Eddine Bencheikh ,"No Pasaran" In Une salve d'avenir. L'espoir, anthologie poé

Poète Rassemble le monde Brode la dentelle des marées Et calligraphie sur leur onde L’annonciation démiurgique Qui vibre au chant désespéré Jailli de ta lèvre magique

Tisse et fais renaître le songe Où être heureux nous voudra dire Que nous chasserons le mensonge

Foto: eli

QUIEN ME COMPRA UNA NARANJA

¿Quién me compra una naranja para mi consolación? Una naranja madura en forma de corazón. La sal del mar en los labios ¡ay de mí! la sal del mar en las venas y en los labios recogí. Nadie me diera los suyos para besar. La blanda espiga de un beso yo no la puedo segar. Nadie pidiera mi sangre para beber. Yo mismo no sé si corre o si deja de correr. Como se pierden las barcas

¡ay de mí! como se pierden las nubes y las barcas, me perdí. Y pues nadie me lo pide, ya no tengo corazón. ¿Quién me compra una naranja para mi consolación?

José Gorostiza

Os amantes sem dinheiro

Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos

Tinham o rosto aberto a quem passava.

e deslumbrado penetrava nos espaços.

Tinham lendas e mitos e frio no coração.

Eugénio de Andrade

Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados; e olhos de oiro, onde ardiam os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos, e silêncio à roda dos seus passos.

Chagall

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor É não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flaameja, É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!

William Mulready, the sonnet

Florbela Espanca, Charneca em Flor

Impressão digital

Inútil seguir vizinhos, Querer ser depois ou ser antes.

Os meus olhos são uns olhos. E é com esses olhos uns Que eu vejo no mundo escolhos

Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos D. Quixote vê gigantes.

Onde outros com outros olhos, Não vêem escolhos nenhuns.

Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes.

Quem diz escolhos diz flores. De tudo o mesmo se diz.

António Gedeão, Poesias Completas

Onde uns vêem luto e dores Uns outros descobrem cores Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas Onde passa tanta gente, Uns vêem pedras pisadas, Mas outros, gnomos e fadas Num halo resplandecente. Foto: eli

em fundo

Foto: eli

Bach, Concerto for Flute, Violin, Harpsichord, Strings and basso Continuo in A minor, BWV 1044 "Triple Concerto" The English Concert Trevor Pinnock

Não Te Amo

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.

E eu n 'alma – tenho a calma,

Quem ama a aziaga estrela

A calma – do jazigo.

Que lhe luz na má hora

Ai! não te amo, não.

Da sua perdição?

Não te amo, quero-te: o amor é vida.

E quero-te, e não te amo, que é forçado,

E a vida – nem sentida

De mau, feitiço azado

A trago eu já comigo.

Este indigno furor.

Ai, não te amo, não!

Mas oh! não te amo, não.

Ai! não te amo, não; e só te quero

E infame sou, porque te quero; e tanto

De um querer bruto e fero

Que de mim tenho espanto,

Que o sangue me devora,

De ti medo e terror...

Não chega ao coração.

Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett, Folhas Caídas

Almada Negreiros

Quero-te para além das coisas justas

Quero-te para além das coisas justas e dos dias cheios de grandezas. A dor não tem significado quando ma roubam as árvores as ágatas, as águas. O meu sol vem de dentro do teu corpo, a tua voz respira a minha voz. De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas dos beijos? Discuto esta noite apenas o pudor de preferir-te Edward Hopper

entre as coisas vivas.

Joaquim Pessoa, À Mesa do Amor

Encontrou naquele janeiro trabalho

erguendo a lenta parede dos dias. O reboco o triturar a pedra o cimento quase parte das mãos a poeira doendo os olhos.

Encontrou naquele janeiro trabalho nas obras.

Sem ninguém, entre fasquias andaimes e

O seu melhor era o abrir da lancheira

caliça

o termo de alumínio canelado protegendo

sem espaço para legenda bebe café entre o vigésimo terceiro e quarto andar.

o espelhado vidro

João Miguel Fernandes Jorge, O Regresso dos Remadores

o café mantinha-se quente por muitas horas. As botas de velhos atacadores já com

buracos as grossas meias de algodão a camisola rota num dos braços o fato-macaco a negra barba mal feita e os tijolos

Raquel Martins

Só eu sei quanto dói a separação!

Só eu sei quanto dói a separação! Na minha nostalgia fico desterrado À míngua de encontrar consolação. À pena no papel escrever não é dado Sem que a lágrima trace, caindo teimosa, Linhas de amor na página da face. Se o meu grande orgulho não obstasse Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado De visita às pétalas da rosa.

Al-Mu'Tamid

Israel Lifvak

Barco solto

Odilon Redon

Dançar na proa Conquistar O mastro Daniel Faria, A Casa dos Ceifeiros

Magritte

A passagem dos dias

ao tempo restituo o que é dele, e tudo o que é dele o tempo me dá, igual e diferente, com o seu fruto amplo e mudo

Nuno Júdice Se, com o tempo, perco e encontro o que é igual e diferente, perdendo o igual no que é presente e vendo a diferença no passado da presença, ao tempo dou o mesmo que

penso no que foi pensado sem viver, vivendo agora o pensamento que não tive, como vento que por aqui passou e tudo na mesma deixou: árvore seca

cujo ramo vive, flor amarga num azul de céu, ribeiro que a margem prende, ave pousada num fio de silêncio. Assim, De Chirico

Leur cri

parole avant d'assouvir le torrent de sottises dans le bruit de

paroles Il y a ceux qui crient ceux qui appellent

parler désormais dans ce monde

sans remuer les lèvres terrassés et debout

c'est imposer plus de bruit sans entendre sans

marchant terrassés et debout sur le trottoir illimité des villes

écouter

ceux qui crient au secours ceux dont la bouche s'est creusée

seul avec l'horreur de soi et l'horreur dans la

d'un trou sans fond d'où sort le cri

nuit

le cri éraillé le cri avec des fils de bave entre les lèvres ceux qui vivent dans le tombeau vivant du cri

Pourtant on berce au fond de soi un oiseau de

le cri et qui entend le cri

silence on berce au fond de soi un chant sans

Les rues vomissent les autos les bruits et les images

syllabes

sans comprendre

une lumière comme une lampe sans flamme

surtout sans ce désir jamais de comprendre

une langue sans mots

les portes se referment sur la fraîcheur des appartements

un regard qui désire d'autres regards

autour du plat que l'on partage à table dans le mutisme

on sait son visage inaccompli sans la présence

et sur l'écran les satisfaits gesticulent privés du son de leur

d'autres visages

on sait on sait cela que l'on oublie : on le découvre est-ce l'espoir alors quand on se dresse dans le vent et la fougue l'espoir quand on entend au fond de soi germer les mots d'une parole parole vraie confuse petite lumière quand la main trouve sa voie vers d'autres mains devant quand les yeux construisent dans le silence une beauté de regards

Philippe Delaveau, Une salve d'avenir. L'espoir, anthologie poétique

foto: eli

em fundo

Beethoven Sonata for Violin and Piano Nº 9 in A major, op. 47, Kreutzer Sonata Yehudi Menuhin - Violin Wilhelm kempff - Piano

Vem comigo, tecedeira, Pára um pouco de tecer; Há tantas flores no campo, Que apetece i-las colher. -"Teça, teça, condezinho, Que outro tanto farei eu. A ver quem faz melhor teia, Se é o seu tear, se o meu."

Júlio Dinis, Poesias

Júlio Dinis, Poesias

besa en el coll, la més bella contrada.

Mester d´amor

Deixa´t besar i si et quedava enyor besa de nou, que la vida és comptada.

Si en saps el pler no estalviïs el bes que el goig d´amar no comporta mesura. Deixa´t besar, i tu besa després

Joan Salvat-Papasseit

que és sempre als llavis que l´amor perdura.

No besis, no, com l´esclau i el creient, mes com vianant a la font regalada; deixa´t besar -sacrifici ferventcom més roent més fidel la besada.

Ofício de amor

¿Què hauries fet si mories abans sense altre fruit que l´oreig en ta galta? Deixa´t besar, i en el pit, a les mans, amant o amada -la copa ben alta.

Se conheces o prazer, não escatimes o beijo pois o prazer de amar não comporta medida. Deixa-te beijar e beija tu depois, que nos lábios sempre é onde o amor perdura.

Quan besis, beu, curi el veire el temor:

Não beijes, não, como o escravo e o crente, mas como o viandante à fonte oferecida. Deixa-te beijar - ardente sacrifício quanto mais queima mais fiel é o beijo.

Que terias feito se tu morresses antes, sem mais fruto do que a aragem no rosto? Deixa-te beijar, e no peito, nas mãos - amante ou amada - a taça muito alta.

Quando beijes, bebe, o copo sare o medo: beija no pescoço, o sítio mais formoso. Deixa-te beijar, e se ainda te apetece beija de novo, pois a vida é contada.

Joan Salvat-Papasseit - Trad.: José Bento

Amor e Psique. Fresco. Casa de Terêncio. Séc. I

Um mar rodeia o mundo de quem está só

os contornos desse mar com um lápis de névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha nas grutas do litoral: as aves assustadas da solidão. «É um mundo impenetrável», diz quem está só. Senta-se na margem, olhando o seu caso. Nada mais triste para além dele, até esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se que está vivo. Então, espera que a maré suba, Um mar rodeia o mundo de quem está só. É

nesse mar sem marés, para tomar uma decisão.

o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água é negra; o seu horizonte não existe. Desenho

Nuno Júdice, Pedro, lembrando Inês

A cidade é um chão de palavras pisadas

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra. A palavra silêncio é uma rosa chá. Não há céu de palavras que a cidade não cubra

A cidade é um chão de palavras pisadas

não há rua de sons que a palavra não corra

a palavra criança a palavra segredo.

à procura da sombra duma luz que não há.

A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distância e a palavra medo. José Carlos Ary dos Santos, In Sofrimento A cidade é um saco um pulmão que respira pela palavra água pela palavra brisa A cidade é um poro um corpo que transpira pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar.

Vieira da Silva

Não canto porque sonho

Não canto porque sonho. Canto porque és real. Canto o teu olhar maduro, teu sorriso puro, a tua graça animal.

Canto porque o amor apetece. Porque o feno amadurece nos teus braços deslumbrados.

Canto porque sou homem. Se não cantasse seria

Porque o meu corpo estremece ao vê-los nus e suados

mesmo bicho sadio embriagado na alegria da tua vinha sem vinho.

Letra: Eugénio de Andrade Música: Fausto; A. P. Braga

Dez chamamentos ao amigo Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem. Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento. fractal

Hilda Hilst, poesias

Os silêncios da fala

São tantos os silêncios da fala

De sede

Os gemidos

De saliva

nas camas

De suor As ancas Silêncios de silex

O sabor

no corpo do silêncio O silêncio que posto Silêncios de vento

em cima do silêncio

de mar

usurpa do silêncio o seu

e de torpor

magro labor.

De amor Maria Teresa Horta, in Vozes e Depois, há as jarras com rosas de silêncio

Olhares no Feminino

Serralves – fotos: eli

"A Capoeira"

Paula Rego

Táctica y Estrategia y saber que sos Mi táctica es mirarte aprender cómo sos quererte cómo sos

franca y que no nos vendamos simulacros para que entre los dos

mi táctica es

no haya telón

hablarte

ni abismos

y escucharte construir con palavras

mi estrategia es

un puente indestructible

más profunda y más simple

mi táctica es quedarte en tu recuerdo

mi estrategia es

no sé cómo nin sé

que un dia cualquiera

con que pretexto

ni sé cómo ni sé

pero quedarme en vos

con que pretexto por fin me necesites.

mi táctica es ser franco

Mario Benedetti

Tapies

Aqui na orla da praia, ...

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar, Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar, Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face; Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio; O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é;

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar, Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó; Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido, E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Ouve a luz

Ouve a luz Como ainda tem o sabor das algas

Deixei-lhe escrito um recado Das nuvens

Não te esqueças de ouvir a luz

Não te esqueças que ao sol pôr Também eu morro

Não te esqueças

Daniel Faria, Poesia

Famine

Dirty, filthy rags Bones boring through Large empty eyes Fingers like knitting needles. Craving for a morsel of food Stomachs swollen Empty ache. Ireland 1847. Ethiopia 1977 Somalia 1987 Russia, Peru, Auschwich, Japan Biafra, Rawanda. Hunger, poverty and starvation Need no language of translation. It's in the eyes, the feet, the hands The sunken face of many lands. Famine, sickness, death And sorrow.

Saura

Anne Kelly

Árvores do Alentejo

Horas mortas...Curvada aos pés do Monte A planície é um brasido... e, torturadas, As árvores sangrentas, revoltadas,

Árvores! Corações, almas que choram, Almas iguais à minha, almas que imploram Em vão remédio para tanta mágoa!

Gritam a Deus a bênção duma fonte! Árvores! Não choreis! Olhai e vede: E quando, manhã alta, o sol posponte A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

- Também ando a gritar, morta de sede, Pedindo a Deus a minha gota de água!

Esfíngicas, recortam desgrenhadas Os trágicos perfis no horizonte! Florbela Espanca, Charneca em Flor

Fado para um amor ausente Meu amor disse que eu tinha Uns olhos como gaivotas E uma boca onde começa O mar de todas as rotas

Assim falou meu amor Assim falou ele um dia E desde então fico à espera Que seja como dizia

Sei que ele um dia virá Assim muito de repente Como se o mar e o vento Nascessem dentro da gente

Mami

Letra: Manuel Alegre Música: António Portugal

Quand il allume son révèrbere,...

Quand il allume son réverbère, c'est comme s'il faisait naître une étoile de plus, ou une fleur.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

Chagall

Digamos pois que a vida é um teatro, em que cumpre ao actor fingir com arte: levando-a a rir, como se fora farsa, ou digno sendo na tragédia parte.

Paladas de Alexandria in Poesia de 26 Séculos, Tradução e notas de Jorge de Sena

Um céu e nada mais

Um céu e nada mais - que só um temos,

de sóis mal descobertos e lança

como neste sistema: só um sol.

agora a âncora maior sobre o meu

Mas luzes a fingir, dependuradas

coração. Que não te assuste o som

em abóbada azul - como de tecto.

desse trovão que ainda agora ouviste,

E o seu número tal, que deslumbrados

era de deus a sua voz, ou mito,

eram os teus olhos, se tas mostrasse,

era de um anjo por demais caído.

amor, tão de ribalta azul, como de

Mas, de verdade: natural fenómeno

circo, e dança então comigo no

a invadir-te as veias e o cérebro,

trapézio, poema em alto risco,

tão frágil como álcool, tão de

e um levíssimo toque de mistério.

potente e liso como álcool

Pega nas lantejoulas a fingir

implodindo do céu e das estrelas, imensas a fingir e penduradas

sobre abóbada azul. Se te mostrasse, amor, a cor do pesadelo que por aqui passou agora mesmo, um céu e nada mais - que nada temos, que não seja esta angústia de mortais (e a maldição da rima, já agora, a invadir poema em alto risco), e a dança no trapézio proibido, sem rede, deus, ou lei, nem música de dança, nem sequer inocência de criança, amor, nem inocência. Um céu e nada mais.

Ana Luísa Amaral

Teresa Rozatti

La terre est bleue

Magritte, La Lumière des coincidence

La terre est bleue comme une orange Jamais une erreur les mots ne mentent pas Ils ne vous donnent plus à chanter

Oeil de sourd

Au tour des baisers de s'entendre

Faites mon portait.

Les fous et les amours Elle sa bouche d'alliance Tous les secrets tous les sourires Et quels vêtements d'indulgence

Il se modifiera pour remplir tous les vides. Faites mon portrait sans bruit, seul le silence, A moins que - s'il - sauf - excepté Je ne vous entends pas.

À la croire toute nue. Il s'agit, il ne s'agit plus. Les guêpes fleurissent vert L'aube se passe autour du cou Un collier de fenêtres Des ailes couvrent les feuilles

Je voudrais ressembler Fâcheuse coïncidence, entre autres grandes affaires. Sans fatigue, têtes nouées Aux mains de mon activité.

Tu as toutes les joies solaires Tout le soleil sur la terre Sur les chemins de ta beauté.

Paul Eluard, L'amour la poésie

Sobre estas duras, cavernosas fragas,

Sobre estas duras, cavernosas fragas

Que o marinho furor vai carcomendo, Me estão negras paixões n'alma fervendo Como fervem no pego as crespas vagas;

Razão feroz, o coração me indagas. De meus erros a sombra esclarecendo, E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo, Mil objectos de horror co'a ideia eu corro, Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro? Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo; Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

Bocage

Lasso, triste, venho do silêncio em mim. Que escuro o caminho! Que longe do fim!

Indeciso ainda como um cristal baço; mas que fome existe já no meu cansaço!

Olho-me por dentro: que frio, sozinho! Aqueço-me ao fogo do comum destino.

João José Cochofel, Os Dias Íntimos

foto: da bet

If anything is sacred, the human body is sacred

Walt Whitman

munch

CANÇÃO

Lá em baixo, em baixo, grande, grande, o rio, o rio. Na margem, a árvore, a árvore.

O vento move move os ramos ramos ramos.

Versão de Herberto Helder -América do Sul, Uitotos in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o futuro

LABAREDAS

I

III

Só a luz de um sorriso

Beijar a tua boca

no seu puro recorte

ao fim de tanto tempo

É tudo o que preciso

Descobrir como é louca

para adiar a morte

a chama a arder ao vento

II

IV

Sentir na tua pele

Entrar de novo em ti

o princípio do mundo

com plena lucidez

pra que aí se revele

de te saber aqui

o nosso mar sem fundo

pela primeira vez

V

Beber a tua luz no corpo que se entrega Só isso me conduz à verdade mais cega

VI

São dois corpos sonâmbulos à procura de um centro semelhantes a tantos no seu vão movimento

VII

Entre pétalas de água o sabor do teu fogo Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

Georgia O'keefee

em fundo

Schumann Adagio and allegro for Violoncello and Piano in A flat major, op. 70 Mistislaw Rostropóvith - Martha Argerich Deutsche Grammophon

Schumann marriage portrait

Fielleux comme souvent le sont ceux dont on dit qu'ils ont de l'humour

Juliette Greco, Jujube

Claude Chaboud

Foram pétalas

Foram pétalas Ou olhos de deusas O que eu calquei?

Não Não digam

Eu sei Que foram sonhos

Daniel faria, Poesia ultrafractal

Ainda é grande o silêncio

Ainda é grande o silêncio que temos dentro. Levamos a sua lenta abóbada de tempo cumprindo as estações e a rotação dos anos. Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo a uma astral experiência. Vamos adquirindo essa tez translúcida dos velhos que sabe à estrutura dos planaltos. E, um dia, iluminados, entraremos pelo portão sagrado, como quem deu por si em pensamento, com todo o seu silêncio iluminando.

Susanne Vopel

Fernando Echevarría, Figuras

Porque é culpa, se alguma coisa é culpa, não multiplicar a liberdade de um ser amado de toda a liberdade que em nós possamos achar. Onde amamos, temos apenas isto: deixar-nos uns aos outros; porque prender-nos é-nos fácil e não é preciso aprendê-lo.

Rainer Maria Rilke, Requiem para uma amiga

Matthias Pöltl

La vie est semée de ces miracles que peuvent toujours espérer les personnes qui aiment.

Proust

Heidrun W.

La memoria en las manos

Hoy son las manos la memoria.

de días y de noches, sol y agua

El alma no se acuerda, está dolida

la que costó esta forma torpe y dura

de tanto recordar. Pero en las manos

que acariciar no sabe y acompaña

queda el recuerdo de lo que han tenido.

tan sólo con su peso, oscuramente. Se estuvo siempre quieta,

Recuerdo de una piedra

sin buscar, encerrada,

que hubo junto a un arroyo

en una voluntad densa y constante

y que cogimos distraidamente

de no volar como la mariposa,

sin darnos cuenta de nuestra ventura.

de no ser bella, como el lirio,

Pero su peso áspero,

para salvar de envidias su pureza.

sentir nos hace que por fin cogimos

¡Cuántos esbeltos lirios, cuántas gráciles

el fruto más hermoso de los tiempos.

libélulas se han muerto, allí, a su lado

A tiempo sabe

por correr tanto hacia la primavera!

el peso de una piedra entre las manos.

Ella supo esperar sin pedir nada

En una piedra está

más que la eternidad de su ser puro.

la paciencia del mundo, madurada despacio.

Por renunciar al pétalo, y al vuelo,

Incalculable suma

está viva y me enseña que un amor debe estarse quizá quieto, muy

quieto, soltar las falsas alas de la prisa, y derrotar así su propia muerte.

pasando y repasando sobre el hueso: son preguntas sin fin, son infinitas angustias hechas tactos ardorosos. Y nada les contesta: una sospecha

También recuerdan ellas, mis manos, haber tenido una cabeza amada entre sus palmas. Nada más misterioso en este mundo. Los dedos reconocen los cabellos lentamente, uno a uno, como hojas de calendario: son recuerdos de otros tantos, también innumerables días felices dóciles al amor que los revive. Pero al palpar la forma inexorable que detrás de la carne nos resiste las palmas ya se quedan ciegas. No son caricias, no, lo que repiten

de que todo se escapa y se nos huye cuando entre nuestras manos lo oprimimos nos sube del calor de aquella frente. La cabeza se entrega. ¿Es la entrega absoluta? El peso en nuestras manos lo insinúa, los dedos se lo creen, y quieren convencerse: palpan, palpan. Pero una voz oscura tras la frente, —¿nuestra frente o la suya?— nos dice que el misterio más lejano, porque está allí tan cerca, no se toca con la carne mortal con que buscamos allí, en la punta de los dedos,

la presencia invisible. Teniendo una cabeza así cogida nada se sabe, nada sino que está el futuro decidiendo o nuestra vida o nuestra muerte tras esas pobres manos engañadas por la hermosura de lo que sostienen. Entre unas manos ciegas que no pueden saber. Cuya fe única está en ser buenas, en hacer caricias sin cansarse, por ver si así se ganan cuando ya la cabeza amada vuelva a vivir otra vez sobre sus hombros, y parezca que nada les queda entre las palmas, el triunfo de no estar nunca vacías.

Elena

Pedro Salinas, largo lamento

as bocas que se juntam

As bocas que se juntam, exalação da carne sobre a carne e o latir, longe, dos cães, rumor de cigarra, arquejante chegada do sangue, chuva e feno

e o rolo do mar nos corpos quando se amam.

António Osório, O Lugar do Amor e Décima Aurora

Elisabeta Rogai

Falarei na lingua de Maria Peres,

labradora de sucos na pedra de gra

a Balteira,

e nas conciencias de todas as que soñaron ser

musa prostibularia e tecedeira de cantigas coa quentura por

amazonas

entre as coxas.

da linguaxe.

Falarei na lingua das irmandiñas que arrebolaron con forza

Para vós, meniñas de augamel,

berros de liberación aos pais

mulleres en froita por madurecer,

da tiranía,

falarán estes gromos de firmeza que me

falarei bidueiro,

rebentan nos dentes

falarei croio,

e son matas de arandeiras.

sarabia, laxe, seara, burato, morno

As palabras han ser xermolos nas miñas fillas

sistema de signos,

e netas innumerábeis,

símbolo

despois,

da memoria que esmorece.

os meus ósos falarán na terra

Falarei na lingua de Rosalía,

para dar vida á terra

de Xaquina Trillo,

para dar nome á terra

de Mariña Mariño Carou,

e á prole que me xurdirá coa boca chea do

a lingua renegada da meniña Carolina Otero violada

poexo enchoupado das brañas.

no camiño, a lingua da miña avoa, canteira anónima,

Rebelión da palabra

arxina da Terra de Montes, Elvira Riveiro

Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só o que é preciso é saber que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que é o amor,ou Daniel U. Jr.

amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada

Podíamos saber um pouco mais

sabemos do amor.

da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa.

Nuno Júdice

Rondel

Do amor quem amo nunca sei ao certo e a quem me tem amor sei que esse amor eu amo ardentemente e nada mais. Dizer de amor, sei bem de quem não digo; não sei, porém, já se o disser, de quem. Tudo se perde no que quero. Às vezes, quando possuo, não possuir quisera. E teu amor me quer. Como saber se quero ou se não quero que se perca? Dizer de amor, assim, pensando em tudo? Como é possível nascer outro, enquanto o mesmo me conheço e a quem nasço? Qual um ou outro? O que se esquece? Aquele que se recorda? O que não pensa? O que finge lembrar-se? Mas lembrar o quê? Eu amo ardentemente e nada mais.

Jorge de Sena, Amor

AMOR

amor que me destrói e destruiu a fria arquitectura desta tarde - só a ti canto, que nem eu já sei outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão para que o frio que me queima os olhos me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre donde não possa ainda erguer-me para encontrar de novo a tua face. Amor desta tarde que arrefeceu as mãos e os olhos que te dei;

Eugénio de Andrade, Os Amantes sem

amor exacto, vivo, desenhado a fogo,

Dinheiro

onde eu próprio me queimei;

Augúrio

Não antecipes a tristeza de morrer: não queiras muito às lágrimas: consola-te bebendo-as. E sê grato ao dia em que, vivo, as tragaste.

António Osório

Crónica

Eram barcos e barcos que largavam fez-se dessa matéria a nossa vida marujos e soldados que embarcavam

E ganhou-se e perdeu-se a navegar

e gente que chorava à despedida

por má fortuna e vento repentino e o tempo foi passando devagar

Ficámos sempre ou quase ou por um triz

tão devagar nas rodas do destino

correndo atrás das sombras inseguras sempre a sonhar com índias e brasis

Que ou nós nos encontramos ou então

e a descobrir as próprias desventuras

ficamos uma vez mais à deriva neste canto que é nosso próprio chão

Memória avermelhada dos corais

sem que o canto sequer nos sobreviva

com sangue e sofrimento amalgamados se rasga escuridões e temporais traz-nos também nas algas enredados

Vasco Graça Moura, Letras do Fado Vulgar

In einen Teppich aus Wasser

n einen Teppich aus wasser sticke meine Tage,

in die Gewässer der Unsterblichkeit.

meine Götter und meine Krankheiten.

In einen Teppich aus Grün

Thomas Bernhard, Auf der Erde und in der Hölle

sticke ich meine roten Leiden, meine blauen Morgen, meine gelben Dörfer und Honigbrote.

In einen Teppich aus Erde sticke ich meine Vergängnis. Ich sticke meine Nacht hinein

Num tapete de água

und meinen Hunger, meine trauer

Num tapete de água

und das Kriegsschiff meiner Verzweiflungen

vou bordando os meus dias,

das hinübergleitet in tausend Gewässer,

os meus deuses e as minhas doenças.

in die Gewässer der Unruhe,

Num tapete de verdura vou bordando os meus sofrimentos vermelhos, as minhas manhãs azuis, as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também.

Num tapete de terra vou bordando a minha efemeridade. Nele vou bordando a minha noite e a minha fome, a minha tristeza e o navio de guerra dos meus desesperos, que vai deslizando p'ra mil outras águas, paras águas do desassossego, para as águas da imortalidade.

Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno Trad.:José A. Palma Caetano Odilon Redon

MANHÃ

Como um fruto que mostra Aberto pelo meio A frescura do centro.

Assim é a manhã Dentro da qual eu entro.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto

em fundo

Liszt Sonata em B minor para piano Sviatoslav Richter Philips

PASTORAL

Não há, não, duas follhas iguais em toda a criação.

Umas são fendidas, crenadas, lobadas, inteiras, partidas,

Ou nervura a menos, ou célula a mais, não há, de certeza, duas folhas iguais.

singelas, dobradas. Outras acerosas, redondas, agudas,

Limbo todas têm, que é próprio das folhas; pecíolo algumas; bainha nem todas.

macias, viscosas, fibrosas, carnudas. Nas formas presentes, nos actos distantes, mesmo semelhantes são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento, e lançam apelos nas ondas que fazem; outras vão e jazem sem mais movimento. Mas outras não jazem, nem caem, nem gritam, apenas volitam nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão, Teatro do Mundo

Madrugada de Alfama

Mora num beco de Alfama E chamam-lhe a madrugada, Mas ela, de tão estouvada Nem sabe como se chama.

Nem mesmo na Madragoa Ninguém compete com ela, Que do alto da janela Tão cedo beija Lisboa.

Mora numa água-furtada Que é a mais alta de Alfama E que o sol primeiro inflama Quando acorda a madrugada. Mora numa água-furtada Que é a mais alta de Alfama.

E a sua colcha amarela Faz inveja à Madragoa: Madragoa não perdoa Que madruguem mais do que ela. E a sua colcha amarela Faz inveja à Madragoa.

Mora num beco de Alfama E chamam-lhe a madrugada; São mastros de luz doirada Os ferros da sua cama.

E a sua colcha amarela A brilhar sobre Lisboa, É como a estátua de proa Que anuncia a caravela, A sua colcha amarela A brilhar sobre Lisboa.

Poema: David Mourão-Ferreira Música: Alain Oulman Canta: Amália Rodrigues

Não tanto os que nos deram

Viver!

a fúria de viver, como esses descobertos depois de se saber

que a vida não é outra É tão frágil a vida,

senão a que fazemos

tão efémero tudo!

(e a vida é uma só,

(Não é verdade, amiga,

pois jamais voltaremos)

olhinhos-cor-de-musgo?) Partidários da vida, E ao mesmo tempo é forte,

melhor: do que está vivo,

forte da veleidade

digamos "não" a tudo

de resistir à morte

que tenha outro sentido.

quanto maior a idade. E que melhor pretexto Assim, aos trinta e sete,

(quem o saiba que o diga!)

fechados alguns ciclos,

teremos p'ra viver

a vida ainda pede

senão a própria vida?

mais sentimentos, vínculos. Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca

Stephan Kocher

SI UNA TARDA s’arrufen sota els portals dins la seva ceguesa, Si una tarda

com pot un aguantar els ulls de les nines

plou la tristesa i lluen sota el baf

boges, els ulls de les nines lletges!

les carrosseries dels cotxes, tot creuant

La letargia, la tarda, la pluja, la pena,

els semàfors, el fang i el fàstic

l’esfondrament general,

de la ciutat humida;

el neguen tant a un, que un s’aferra,

si una tarda

a on sigui, a una cançoneta grisa i d’amor,

un surt cansat de fer feina i plou,

brufada d’esperit.

i plou la tristesa i plou tant que els cecs Miquel Bauça

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;

As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Se eu não morresse, nunca! E eternamente

Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Por baixo, que portões! Que arruamentos!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Um parafuso cai nas lajes, às escuras:

Que aninhem em mansões de vidro

Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,

transparente!

E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis, E eu sigo, como as linhas de uma pauta

Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, Numas habitações translúcidas e frágeis.

Eu não receio, todavia, os roubos; Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes; Ah! Como a raça ruiva do porvir,

E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,

E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,

Amareladamente, os cães parecem lobos.

Nós vamos explorar todos os continentes E pelas vastidões aquáticas seguir!

E os guardas que revistam as escadas, Caminham de lanterna e servem de chaveiros;

Mas se vivemos, os emparedados,

Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...

Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E, enorme, nesta massa irregular

E nestes nebulosos corredores

De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;

A Dor humana busca os amplos horizontes,

Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,

E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde

Pintura: Maria Helena Vieira da Silva Transposição para azulejo: Manuel Cargaleiro Fotografia: José Carlos Nascimento

A queda

Em raivas ideais, ascendo até ao fim: Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...

E eu que sou o rei de toda esta incoerência, Eu Próprio turbilhão, anseio por fixá-la

............................................................. Tombei...

E giro até partir... Mas tudo me resvala Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço d'ouro,

E fico só esmagado sobre mim!...

Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

Volve-se logo falso... ao longe o arremesso... Eu morro de desdém em frente dum tesouro Morro à míngua, de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto, Estendo os braços d'alma - e nem um espasmo venço!... Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, -Vencer às vezes é o mesmo que tombarE como inda sou luz, num grande retrocesso,

Chagall

em fundo

Stravinsky Sinfonia dos salmos Coro da Ópera de Berlim Orquestra Filarmónica de Berlim Herbert von Karajan Deutsche Grammophon

Aflição

Aflição de não ser a grande ilha Que te retém e não te desespera. (A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra E ter a face conturbada e móvel. E a um só tempo múltipla e imóvel Günter Rolf

Não saber se se ausenta ou se te espera. Aflição de ser eu e não ser outra. Aflição de não ser, amor, aquela

Aflição de te amar, se te comove. E sendo água, amor, querer ser terra.

Que muitas filhas te deu, casou donzela E à noite se prepara e se adivinha Objeto de amor, atenta e bela.

Hilda Hilst,

Não sei quem foi que me disse

DIA DE ANOS

que fez a mesma tolice, aqui o ano passado... Agora, o que vem, aposto, como lhe tomou o gosto, que faz o mesmo. Coitado!

Não faça tal; porque os anos que nos trazem? Desenganos que fazem a gente velho; faça outra coisa; que, em suma, não fazer coisa nenhuma, também lhe não aconselho.

Mas anos, não caia nessa! Olhe que a gente começa Com que então caiu na asneira de fazer na quinta-feira vinte e seis anos! Que tolo! Ainda se os desfizesse...

às vezes por brincadeira, mas depois, se se habitua, já não tem vontade sua, e fá-los, queira ou não queira!

Mas fazê-los não parece de quem tem muito miolo!

João de Deus, Campo de Flores

Je t'aime Pour l'aurore légère Pour la rosée qui tremble Au calice des fleurs De n'être pas aimée Et ressemble à ton coeur

Qu'un oiseau fait frémir En la battant de l'aile Et ressemble à ton rire Je t'aime...

Je t'aime... Pour le jour qui se lève Pour le doigt de la pluie Au clavecin de l'étang Jouant page de lune Et ressemble à ton chant

Et dentelle le bois Au point de la lumière Et ressemble à ta joie Je t'aime...

Je t'aime... Pour le jour qui revient Pour l'aube qui balance Sur le fil d'horizon Lumineuse et fragile Et ressemble à ton front Je t'aime...

D'une nuit sans amour Et ressemble déjà Ressemble à ton retour Je t'aime...

Pour la porte qui s'ouvre Pour le cri qui jaillit Ensemble de deux coeurs Et ressemble à ce cri Je t'aime Je t'aime Je t'aime

Jacques Brel

Jim Dine

Por algum motivo as lágrimas descem Por algum motivo as lágrimas descem até à boca. Mastiga-se o sabor, entra no sangue o sal, em vida se transforma, é sulco que a dor abre, fertiliza, aberta linha de semeadura onde poderá surgir um bosque, uma cidade, uma injustiça...

É o gosto da dor que vitaliza, acende o palpitar no coração que sobe à superfície.

Descem até à boca por algum motivo as lágrimas.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha Alessandra Ciabuschi

Neste momento

Neste momento um pássaro qualquer canta, explica as flores perto da margem dum rio.

Nunca ouvi esse pássaro cantar nem sei onde o rio corre...

Mas todas as noites no meu quarto tento aprender de cor essa melodia que não ouço - sentindo o coração pesado como um pássaro morto.

Josá Gomes Ferreira, Poesia I

Uma marca de algum fogo. O que nela foste tu

Uma marca de algum fogo. O que nela foste tu apenas, a dor que causas ou que no corpo se demora. O amor obriga a esquecer. Estiola, o corpo, demora-se um pouco mais como uma lembrança, como uma vaga. É tão pouco, o corpo, tão claro o seu prazer, tão só. Diante dele se morre, se emudece, se não acorda em ti o calor de um Verão intenso. Diante dele se morre, se não se abre naquele instante o clarão em que a tua sede encontra outra sede sua igual, ou nem isso, só um corpo, uma condição, uma ventania.

Francisco José Viegas, O puro e o impuro Gabriela (Ella) Powel

Gregor transformou-se em barata gigante. Eu não: fiz-me aranhiço, tão leve que uma leve brisa o faz oscilar no seu fio de baba lisa. Até que, contra a lei da natureza, creio que tenho peso negativo, e me elevo no ar se me não prendo ao canto mais escuro desta ilha. Quando descer à teia derradeira não se verá no mundo alteração, ou só talvez alguma mosca contente. Em noites de luar, na alta esquina, ficará a brilhar, mas sem ser vista, a estrela que tracei como armadilha.

António Franco Alexandre, Aracne

Klaus Ender

CULTO

Reclusa, retomo sempre e sempre reinvento o meu nada absoluto

A partir de mim própria, o que de mim oculto

Maria Teresa Horta, Destino

em fundo

Picasso Rodrigo Concierto de Aranjuez Narciso Yepes, guitar Orquestra Sinfónica de RTV Española Odón Alonso Deutsche Grammophon

o pormenor me perturba. O

Infinito pó

pouco e a falta. Ínfimo dos ínfimos. Perda.

No mosteiro no fim do de

Fiama Hasse Pais Brandão, Âmago

clive. A descida e a subida que se assemelham. Estas sensações agudíssi mas. Domingo dia das apoteoses. A ausência consubstanciada no infinito pó do côrrego. O que está a ouvir-se na capela do coro incerto é um grito. Nada se desprende do folhedo das oliveiras além das folhas. No claustro a tranquilidade caótica onde

Nernd Nasner

COM A TUA LETRA

Fala-se de amor para falar de muitas coisas que entretanto nos sucedem.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento

Para falar do tempo, para falar do mundo

às coisas regulares e irregulares do mundo.

usamos o vocabulário preciso

Ou também: eu envio o amor

que nos dá o amor.

sob a forma de muitos olhos e ouvidos a explorar, a conhecer o mundo.

Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor as estradas que servem o meu território.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo

Quer dizer: eu estou mais acordado,

da escuridão do mundo.

não me enredo nas silvas, não me enredo,

Porque tudo se escreve com a tua letra.

não me prendo nos cardos, não me prendo. Quer também dizer: amar-te-ei cada dia mais, estarei cada dia mais acordado. Porque este amor não pára.

Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos

Klimt

la femme est l'avenir de l'homme, elle est la couleur de son âme.

Aragon, Le Fou d'Elsa

Le poète a toujours raison Qui détruit l'ancienne oraison

La femme est l'avenir de l'homme

L'image d'Eve et de la pomme Face aux vieilles malédictions Je déclare avec Aragon La femme est l'avenir de l'homme

Il faudra réapprendre à vivre Ensemble écrire un nouveau livre

Le poète a toujours raison Qui voit plus haut que l'horizon

Pour accoucher sans la souffrance

Et le futur est son royaume

Pour le contrôle des naissances

Face à notre génération

Il a fallu des millénaires

Je déclare avec Aragon

Si nous sortons du moyen âge

La femme est l'avenir de l'homme

Vos siècles d'infini servage Pèsent encor lourd sur la terre

Redécouvrir tous les possibles Chaque chose enfin partagée Tout dans le couple va changer D'une manière irréversible

Le poète a toujours raison Qui voit plus haut que l'horizon

Entre l'ancien et le nouveau Votre lutte à tous les niveaux

Le poète a toujours raison

De la nôtre est indivisible

Qui annonce la floraison

Dans les hommes qui font les lois

D'autres amours en son royaume

Si les uns chantent par ma voix

Remet à l'endroit la chanson

D'autres décrètent par la bible

Et déclare avec Aragon

Et le futur est son royaume Face aux autres générations Je déclare avec Aragon La femme est l'avenir de l'homme

La femme est l'avenir de l'homme Jean Ferrat, Ferrat chante Aragon

Landscape With The Fall of Icarus

the edge of the sea concerned with itself

sweating in the sun that melted the wings' wax According to Brueghel

unsignificantly

when Icarus fell

off the coast

it was spring

there was

a farmer was ploughing

a splash quite unnoticed

his field

this was

the whole pageantry

Icarus drowning

of the year was awake tingling

From Collected Poems: 1939-1962,

near

Volume II by William Carlos Williams

Bruegel

Müde

Cansado

Ich bin müde...

Estou cansado...

Mir den Bäumen führte ich Gespräche.

Com as árvores entabulei conversas.

Mit den Schafen litt ich die Dürre.

Com as ovelhas sofri o horror da seca.

Mit den Vögeln sang ich in Wäldern.

Com os pássaros cantei nas florestas.

Ich liebe die Mädchen im Dorf.

Amei as raparigas da aldeia.

Ich schaute hinauf zur Sonne.

Ergui os olhos para o Sol.

Ich sah das Meer.

Vi o mar.

Ich arbeitete mit dem Töpfer.

Trabalhei com o oleiro.

Ich schluckte den Staub auf der Landstrasse.

Engoli o pó da estrada.

Ich sah die Blütten der Melancholie auf dem Feld meines

Vi as flores da melancolia no campo do meu

Vaters.

pai.

Ich sah den Tod in den Augen meines Freundes.

Vi a morte nos olhos do meu amigo.

Ich streckte die Hand aus nach den Seelen der Ertrunkenen.

Estendi a mão para a alma dos afogados.

Ich bin müde...

Estou cansado...

Thomas Bernhard, Auf der Erde und in der Hölle

Thomas Bernhard, Na terra e no inferno Trad.: José A. Palma Caetano

Rodin

Há dias em que

Há dias em que toda a maré negra dos medos da infância dá à costa

Então é fechar os olhos e deixar que a onda alta rebente

e nos arremesse à praia

e passe

Exaustos

e se canse de nos fustigar Teresa Rita Lopes, Cicatriz

Vem aos meus sonhos

Planta, em frente, a cerejeira dos pássaros brancos, deixa que eles pousem nos ramos e cantem eternamente, deixa que nas suas asas de luz eu leia o meu nome, antes de os relâmpagos acenderem os prados.

Vem aos meus sonhos, vê os labirintos por onde me perco, vê os meus países do mar, vê, em cada barco que parte do meu coração, as viagens que não fiz, os amores que não tive, Robert Burle Marx

a lua cruel da minha solidão.

Vem aos meus sonhos, faz em mim a tua casa.

José Agostinho Baptista, Esta voz é quase o vento

Pedra filosofal Eles não sabem que o sonho

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

é tela, é cor, é pincel,

tão concreta e definida

base, fuste, capitel,

como outra coisa qualquer,

arco em ogiva, vitral,

como esta pedra cinzenta

pináculo de catedral,

em que me sento e descanso,

contraponto, sinfonia,

como este ribeiro manso

máscara grega, magia,

em serenos sobressaltos,

que é retorta de alquimista,

como estes pinheiros altos

mapa do mundo distante,

que em verde e oiro se agitam,

rosa-dos-ventos, Infante,

como estas aves que gritam

caravela quinhentista,

em bebedeiras de azul.

que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim,

Eles não sabem que o sonho

florete de espadachim,

é vinho, é espuma, é fermento,

bastidor, passo de dança,

bichinho álacre e sedento,

Colombina e Arlequim,

de focinho pontiagudo,

passarola voadora,

que fossa através de tudo

pára-raios, locomotiva,

num perpétuo movimento.

barco de proa festiva, alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos duma criança.

António Gedeão, Movimento Perpétuo

em fundo

Tchaikovsky O Lago dos Cisnes Orquestra Filarmónica de Berlim Mstislav Rostropóvich Deutsche Grammophon

Cansa sentir quando se pensa. (Tudo isto me parece tudo. Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo – Cansa sentir quando se pensa.

Ah, nada é isto, nada é assim!)

No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar.

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Neste momento insone e triste Em que não sei quem hei-de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo. E é uma noite a ter um fim Um negro astral silêncio surdo E não poder viver assim.

Armin [m]

Te quiero

Te lo he dicho con las plantas, leves criaturas transparentes que se cubren de rubor repentino;

Te quiero. Te lo he dicho con el agua, Te lo he dicho con el viento, jugueteando como animalillo en la arena o iracundo como órgano impetuoso;

vida luminosa que vela un fondo de sombra; te lo he dicho con el miedo, te lo he dicho con la alegría, con el hastío, con las terribles palabras.

Te lo he dicho con el sol, que dora desnudos cuerpos juveniles y sonríe en todas las cosas inocentes;

Pero así no me basta: más allá de la vida, quiero decírtelo con la muerte; más allá del amor,

Te lo he dicho con las nubes,

quiero decírtelo con el olvido.

frentes melancólicas que sostienen el cielo, tristezas fugitivas; Luis Cernuda, Un rio, un amor * Los Placeres Prohibidos

Markus Latzberg

Amo-te. Disse-to com a água, Disse-to com o vento, Jogando com um pequeno animal na areia Ou iracundo como órgão tempestuoso;

Vida luminosa que vela um fundo de sombra; Disse-to com o medo, Disse-to com a alegria,

Disse-to com o sol,

Com o tédio, com as terríveis palavras.

Que doura os juvenis corpos nus E sorri em todas as coisas inocentes,

Mas assim não me basta. Mais além da vida,

Disse-to com as nuvens, Rostos melancólicos que sustêm o céu, Tristezas fugitivas;

Quero dizer-te com a morte; Mais além do amor, Quero dizer-te com o esquecimento.

Disse-to com as plantas, Leves criaturas transparentes Que se cobrem de rubor repentino;

Luis Cernuda, Um Rio, Um Amor * Os Prazeres Proibidos Trad.: João Emanuel Diogo

AMOR VIVO Nem murchará do Sol à chama erguida... Pois que podem os astros dos espaços Contra uns débeis amores... se têm vida?

Amar! mas dum amor que tenha vida...

Antero de Quental, Poesia Completa

Não sejam sempre tímidos arpejos, Não sejam delírios e desejos Duma doida cabeça escandecida...

Amor que viva e brilhe! luz fundida Que penetre o meu ser - e não só beijos Dados no ar - delírios e desejos Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia Não virá dissipá-lo nos meus braços, Como névoa da vaga fantasia...

klimt

fala assim devagar devagar deita-me o vinho devagar

CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR

quando o meu copo estiver vazio. Estou convalescente sou convalescente não é preciso que o percebas

E não queiras depois fazer amor. Convida-me só para jantar num restaurante sossegado numa mesa de canto e fala devagar

mas por favor não faças força em mim. Fala, estás-me a dar de jantar estás-me a pôr recostada à almofada estás-me a fazer sorrir ao longe fala assim devagar

e fala devagar

devagar

eu quero comer uma sopa quente

devagar

não quero comer mariscos os mariscos atravancam-me o prato e estou cansada para os afastar fala assim devagar devagar não é preciso dizeres que sou bonita mas não me fales de economia e de política

Ana Goês In 366 poemas que falam de amor Antologia organizada por Vasco Graça Moura

Kate Liu

O Profeta

Pouco antes de morrer disse ele ao povo: Deus te dê ira, que paciência tens de mais

Celso Emílio Ferreira, mesa de amigos Trad.: Pedro da Silveira

Canção de viagem no rio Chikuma Muitas vezes desci ao vale Onde se detém o sonho do crescimento e do declínio E vi as ondas do rio hesitantes, Água cheia de areia que enrola e regressa.

Ah! A velha mansão - que diz ela? A ondulação na margem - o que responde? Em silêncio pensa no tempo que passou, Cem anos como se fosse ontem.

Os salgueiros do Rio Chikuma crescem frágeis: Ontem foi outra vez assim, Também hoje será assim, Para quê tanta agitação nesta vida,

A Primavera frívola, a água afastando-se. Sozinho vagueio entre as rochas. E a esta margem prendo os meus cuidados.

Sempre ansiosos pelo dia de amanhã? Shimazaki Tóson. Trad.: José Alberto Oliveira

Bocca

Boca La bocca che prima mise alle mie labbra il rosa dell'aurora ancora in bei pensieri ne sconto il profumo.

A boca que primeiro levou

O bocca fanciullesca, boca cara,

aos meus lábios a cor da aurora

che dicevi parole ardite ed eri

ainda

cosi dolce a bacciare.

em belos pensamentos desconto o aroma

Ó pueril boca, amada boca, Umberto Saba, Ultime cose

que dizias o que ousavas e tão doce eras a beijar.

Umberto Saba. Trad.: Eugénio de Andrade

da net

em fundo

Igor Stravinsky Le sacre du Printemps Chicago Symphony Orchestra Daniel Barenboim

AU PRINTEMPS

La froidure paresseuse De l’hiver a fait son temps. Voici la saison joyeuse Du délicieux printemps. La terre est d’herbe ornée, L’herbe, de fleurettes, l’est, La feuillure retournée Fait ombre dans la forêt.

Tout résonne des voix nettes De toutes races d’oiseaux, Par les champs, des alouettes, Des cygnes, dessus les eaux.

Mais oyez dans le bocage Le flageolet du berger, Qui agace le ramage Du rossignol bocager.

Jean-Antoine de Baïf (1532-1589)

Poemeto Erótico

Teu corpo é tudo o que brilha Teu corpo é tudo o que cheira Rosa, flor de laranjeira

E flameja como à tarde os horizontes

Teu corpo, claro e perfeito Teu corpo de maravilha Quero possui-lo no leito estreito da redondilha Teu corpo, branco e macio E' como um véu de noivado. Teu corpo é pomo doirado, Rosal queimado de estio

É puro como nas fontes a água clara que serpeja, Que em cantigas se derrama, volúpia da água e da chama Teu corpo é tudo o que brilha, Teu corpo é tudo o que cheira. A todo momento o vejo Teu corpo, a única ilha no oceano do meu desejo.

Desfalecido em perfume Teu corpo é a brasa do lume Teu corpo é chama

Manuel Bandeira

Kate Liu

GÉNESE

Foi assim Todo o mar que eu via se precipitou logo no meu coração Que é de sal

E os peixes cristalizaram com os olhos mortos para as suas manhãs refractadas

Escutando bem ouve-se como ao pé das estátuas música de uma fanada melancolia.

Sebastião Alba, A noite dividida

A noite enrosca-se-me na cintura, a mover-me um cerco, a colocar-me à mercê da lua. Um trilho de água-doce humedece a orla de uma nudez convergente com o desejo. Perante a indiferença de toda a gente, uma mulher desceu a montanha, prenhe de solidão. Fascinada pela noite, deixou que lhe mutilassem as mãos, para parir sem algemas. E doeu-lhe no peito o grito de nascer de todos os filhos, o soluço sufocado de todas as mães. Depois, pairou no ar, um estranho aroma de sardinheiras brancas.

Graça Pires, Reino da Lua

APENAS UM SONETO

O delicado desejo que te doura e nos dura na pele quando anoitece é contra a nossa vida que se tece

Rugama

e é no verso que vive e se demora.

Amor que não tivémos nem nos teve veio-nos chamar agora. De repente

por que minto ao que nunca tu mentiste.

fez-se névoa a palavra do presente

E enganamos assim o coração,

e luz teu corpo que toquei de leve.

disfarçando de mitos o que existe.

Mas se arde na memória da canção o corpo que me deste e me fugiste, o verso é outro modo de traição

Luís Filipe de Castro Mendes, Modos de Música

À vossa verdadeira penitente quam bem guardastes seus pontos devidos; os Apóstolos eram já partidos, ela não parte, vêde o que ali sente;

E assi mereceu ver primeiramente Deus em terra em hábitos fingidos; tudo Amor vence: altíssimos sentidos, a quem tal ortelão se faz presente!

Gregório a põe por üa, outros Doutores fazem as três; após Gregório vão despois os mais, com todos os pintores.

Aqueles direi eu, Senhor, que são aqueles (outra vez!) que são Amores: dos tais suspiros, um só nunca em vão!

El Greco

Francisco de Sá de Miranda, In Poesias de Sá de Miranda

Jorge Tutor Santo Domingo de Silos Choeurs des Moines Bénédictins Pâques à Silos Chant Grégorien

canti ambrosiani

En soi

protégée dans sa coquille ne veut plus rien

on rentre chez soi en soi dans son oeuf

dormir se blottir dans le rêve partir

on s'y met à l'abri loin des regards loin des cris on se retrouve seul en tête-à-tête sans yeux dans le noir l'âme se tait

aller au loin aux confins de l'univers où il n'y a plus de frontières se perdre sombrer dans l'imaginaire se consoler n'avoir plus de peine sourire

silence elle n'a plus envie de chanter plus envie de pleurer

naître à la vie renaître vivre le bonheur

elle cherche le sommeil l'oubli elle reste emmurée

Yves Brillon,

Ovo Flores da Primavera

Ovo de Páscoa do Caucasus Imperial

Ovo dos Camafeus

EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou Não rodou mais para a festa não irrompeu Em labareda ou nuvem no coração de ninguém. A mudança fez-se vazio repetido E o a vir a mesma afirmação da falta. Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa Nem se cumpriu E a espera é não acontecer - fosse abertura E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria, Poesia

Almada Negreiros

Toca o meu rosto voltado para cima,

DEITA-TE AGORA

como se procurasse no céu as carruagens de cedro e ouro, nos caminhos onde me perdi.

Traz-me o cântaro das tuas fontes. Dá-me a beber a sua água porque os meus lábios ardem. Tenho sede.

É Verão, como sabes. As cigarras eternizam a sua música de pianos rudes, as rãs destroem a serenidade do lago.

Vincent Van Gogh

Nunca te levantes; não me voltes as costas.

Deita-te agora, a meu lado, sobre o feno, deixa que o incenso perfume os celeiro

José Agostinho Baptista, Esta voz é quase o vento

sonde adormecemos.

Dentífona apriuna a veste iguana

PANDEMOS

de que se escalca auroma e tentavela, Como supuerta e buritânea amela se palquitonará transcendia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana sussúrrica donstália penicela às tricotas relesta demiquela, fissivirão bolíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai! lingâmicos dolins, refucarai! Por mamivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrarias, lambidonai tutílicos anárias, tão placitantos como o pedipeste.

Frantisek Kupka

Jorge de Sena, Poesia

Vincent Van Gogh

N'oublions pas que les petites émotions sont les grands capitaines de nos vies et qu'à celles-là nous y obéissons sans le savoir. Extrait d’une Lettre à son frère Théo

A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

Embora o teu corpo às vezes se contorça

Embora o teu corpo às vezes se contorça Numa oscilação incerta e vaga, Sei como é intacta e pura a tua força, Sei como é absoluta a harmonia, Que regressando nasce em cada vaga.

No infinito sorriso das espumas, No chamar da maresia, no convite das brumas, Na exaltação de cada maré cheia, No teu ritmo de dança e bebedeira, O que eu procuro e encontro extasiada, É a tua alma viva, nunca profanada.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia

Gaivota

Se uma gaivota viesse

Se um português marinheiro,

trazer-me o céu de Lisboa

dos sete mares andarilho,

no desenho que fizesse,

fosse quem sabe o primeiro

nesse céu onde o olhar

a contar-me o que inventasse,

é uma asa que não voa,

se um olhar de novo brilho

esmorece e cai no mar.

no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração

Que perfeito coração

no meu peito bateria,

no meu peito bateria,

meu amor na tua mão,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde cabia

nessa mão onde cabia

perfeito o meu coração.

perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida as aves todas do céu, me dessem na despedida o teu olhar derradeiro, esse olhar que era só teu, amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração no meu peito morreria, meu amor na tua mão, nessa mão onde perfeito bateu o meu coração.

Letra: Alexandre O'Neill Música: Alain Oulman Canta: Amália Rodrigues

em fundo

Brahms, Um Requiem Alemão Edith Mathis, soprano Dietrich Fischer-Dieskau, barítono Coro do Festival de Edimburgo Orquestra Filarmónica de Londres Daniel Barenboim

Amo-te

Amo-te com pressa de não acabar o amor.

António Osório, O Lugar do Amor e Décima Aurora

Dali

VARIAÇÕES SOBRE "O JOGADOR DO PIÃO",I

Faz rodar o pião redondo tudo em volta Atira a primavera e recupera o verão Terras e tempos tudo assume esse pião que rodopia e rouba o chão à folha solta

Joga tudo no gesto ríspido de vida Reergue o braço a prumo arrisca nessa roda riscada entre parede e tronco a infância toda Tudo é redondo e torna ao ponto de partida

O sol a sombra a cal os pássaros os pés o adro a pedra o frio os plátanos... Quem és? Voltas? rodas? regressas? rodopias? nada

Mas do breve pião levanta ao céu a enxada e que esta vida extensa para sempre seja - será? - tão bem coberta que nem Deus a veja

Gabi T.

Ruy Belo, Obra Poética de Ruy Belo, vol.1

Creio

Creio num engenho que falta mais fecundo De harmonizar as partes dissonantes, Creio que tudo é eterno num segundo, Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro, Na flor humilde que se encosta ao muro, Creio na carne que enfeitiça o além, Rafael Creio no incrível, nas coisas assombrosas, Na ocupação do mundo pelas rosas, Creio nos anjos que andam pelo mundo,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Creio na Deusa com olhos de diamante, Creio em amores lunares com piano ao fundo, Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Natália Correia, Sonetos Românticos

EL MAR

O MAR

Antes que el sueño (o el terror) tejiera

Antes que o sonho (ou o terror) tecesse

Mitologias y cosmogonias,

Mitologias e cosmogonias,

Antes que el tiempo se acuñara en dias,

Antes que o tempo se cunhasse em dias,

El mar, el siempre mar, ya estaba y era.

O mar, o sempre mar, já estava e era.

Quién es el mar? Quién es aquel violento

Quem é o mar? Quem é aquele violento

Y antiguo ser que roe los pilares

E antigo ser que rói pilares

De la tierra y es uno y muchos mares

Da terra e é um e muitos mares

Y abismo y resplandor y azar y viento?

E abismo e esplendor e acaso e vento?

Quien lo mira lo ve por vez primera,

Quem para ele olhar vê-o pela primeira vez,

Siempre. Com el asombro que las cosas

Sempre. Com o assombro que as coisas

Elementales dejan, las hermosas

Elementares deixam, as belas

Tardes, la luna, el fuego de una hoguera.

Tardes, a lua, o fogo de uma fogueira.

Quién es el mar, quién soy? Lo sabre el dia

Quem é o mar, quem sou? Sabê-lo-ei no dia

Ulterior que sucede a la agonia.

Que se segue à agonia.

Jorge Luís Borges, El outro, el mismo

Jorge Luís Borges. Trad.: José Agostinho Baptista in O Mar na Poesia da América Latina

Tristesse Dieu parle, il faut qu'on lui réponde. Le seul bien qui me reste au monde Est d'avoir quelquefois pleuré. J'ai perdu ma force et ma vie,

Musset,

Et mes amis et ma gaieté; J'ai perdu jusqu'à la fierté Qui faisait croire à mon génie.

Quand j'ai connu la Vérité, J'ai cru que c'était une amie; Quand je l'ai comprise et sentie, J'en étais déjà dégoûté.

Et pourtant elle est éternelle, Et ceux qui se sont passés d'elle Ici-bas ont tout ignoré.

Günter London

CANCELA

Um dia certos ombros nela assomam, noutros certos olhos dela partem e olho a sua sombra com os pássaros que vão para mais longe e nos entregam os primeiros dias em que desce a noite mais cedo, depois vem o inverno, o acolhimento, a repousante canção dos cães a ladrar. A cancela tem a marca dos meus dedos, tantas vezes a abriram, tantas a fecharam, a própria resina fareja na distância cada passo meu que me aproxima cada passo de alguém que não me alcança. No meio da cerca está uma cancela

Guarda-me na casa onde outrora um outro

também ela fechada. O ar cingiu-a

já não traz ao teu corpo esse prazer

com um donaire agreste de abandono.

que me forças, no vaivém, a abrir.

E a cera e a madeira nela ficam folha de zimbro e maré vagante. Joaquim Manuel Magalhães, A poeira levada pelo vento

Lágrima

Bate-me o luar no rosto; e o meu olhar Em lágrima saudosa se condensa. Vejo-a diante de mim como suspensa

A comovida lágrima crepita...

Na sombra do ar.

Relâmpago de dor. Mas nada vejo! E nela está presente o meu desejo

Em seu líquido seio de esplendor

E a minha vida, frágil e infinita.

Tua imagem começa a alvorecer, Pois toma corpo vivo no meu ser

E a lágrima cintila, num adeus...

Quando a beija, sorrindo, a minha dor.

E, desprendida dos meus olhos, ei-la, Já distante, no espaço; é nova estrela

Ébria do teu espírito sagrado,

Subindo aos céus.

A radiosa lágrima estremece, Enquanto minha face empalidece E o luar e a noite cismam ao meu lado.

Teixeira de Pascoaes, Elegias

Thomas Grabs

em fundo: a música do barroco

Evaristo Baschenis

Fermoso Tejo meu, quão diferente Mas lá virá a fresca Primavera: Tu tornarás a ser quem eras de antes, Eu não sei se serei quem de antes era.

Fermoso Tejo meu, quão diferente Te vejo e vi, me vês agora e viste: Turvo te vejo a ti, tu a mim triste, Claro te vi eu já, tu a mim contente. A ti foi-te trocando a grossa enchente A quem teu largo campo não resiste; A mim trocou-me a vista em que consiste O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes, Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera Que fôramos em tudo semelhantes!

Francisco Rodrigues Lobo, Poesias

Virava todo o seu sentir para o mar

... a tempestade sacudia o granito da sua imobilidade surgiam estes sinais transparentes Virava todo o seu sentir para o mar quando no medo dos míticos promontórios se rasgou a oceânica visão... a ânsia de partir...

estes animais cuja pelagem de ouro a noite corroeu e os passos alucinados pelas lajes do porto ressoavam no medo... medo que o mar o acorde

remotas eram as constelações que consultara

e descubra que não existe mar nenhum...

os rostos traziam a brancura queimada das velas... ... eram palavras segredadas lendas de feras

por fim atacaram-nos as febres

que os dedos e a matemática já tinham assinalado nos mapas

as febres da alba com perfume a violeta

a vida da selva a flora mole dos pântanos

as febres que iluminam os sentidos

os costumes tribais dos arquipélagos

e alimentam o surdo canto dos loucos e dos búzios...

a prata das planícies o mistério de caudalosos rios... Al Berto, Salsugem

Maria José Camões

O AR OS TECTOS opressas porque estão a erguer casas de telha vã e pastoreiam só animais que restam impolutos das ribeiras cheias de temporais e frutos que nas águas tristes se despenham.

Como repetido é sempre o inverno, com a chacina de animais, com os ventos iguais que nos descoram, as cornijas nas ruas devorando os temporais e nós, sem profissões libertas, também Esti

Aqui o inverno mata as profissões que têm acesso ao ar,

a erguer os corpos opressos pelos tectos.

a dos que andam por fora por ruas e por roupas, com as vias da respiração

Fiama Hasse Pais Brandão, (Este) Rosto

Ledo o meu amigo foi caçar no monte Logo sossegaram as águas suaves. Vindo ele do monte, cantaram as aves. Jovial o vento levou-me o vestido, Soltou-me o cabelo. E o resto não digo... Ledo o meu amigo foi caçar no monte, Disseram-me as aves que o esperasse na fonte. Jovial o vento levou-me o vestido, Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

Natália Correia, Cantigas de Amigo, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, II

Que o esperasse na fonte disseram-me as aves. A brisa movia as águas suaves. Jovial o vento levou-me o vestido, Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

A brisa movia as águas na fonte, Logo sossegaram vindo ele do monte. Jovial o vento levou-me o vestido, Soltou-me o cabelo. E o resto não digo...

H.D.R.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,

CANÇÃO DE AMOR

porque nada eu direi sem o teu nome. Porque nada existe além da tua vida, da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te meu amor,

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,

para além da morte, para além de tudo.

faria amor, assim, com as palavras. Eu cantaria mesmo que tu não existisses porque haveria de doer-me a tua ausência.

Joaquim Pessoa, Canções de Ex-cravo e Malviver Por isso canto. Alegre ou triste,canto. Como se, cantando, tocasse a tua boca, ainda antes da tua presença. Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses, ó minha amiga, doce companheira. Eu festejo o teu corpo como um rio, onde, exausto, chegarei ao mar.

Jim Dine

Esta é a minha carta ao Mundo Que nunca Me escreveu – As Notícias simples que a Natureza contou –

This is my letter to the World

Com branda Majestade A sua Mensagem está destinada

A Mãos que não consigo ver –

This is my letter to the World

Pelo Seu amor – Afáveis – camponeses –

That never wrote to Me –

Julguem-me brandamente – a Mim

The simple News that Nature told – With tender Majesty

Emily Dickinson – Trad.: Cecília Rego Pinheiro

Her Message is committed To Hands I cannot see –

Esta é a minha carta ao Mundo

For love of Her – Sweet – countrymen –

Que nunca Me escreveu –

A quem nunca me escreveu –

As simples Notícias que a Natureza contou –

As simples Novas que a Natura conta –

Com a sua terna Majestade

Com suave Majestade.

A sua Mensagem é entregue

A Mensagem é confiada

A Mãos que não posso ver –

A Mãos que não posso ver –

Pelo Seu amor – Doces – concidadãos –

Só por amor da Natureza – irmãos –

Fazei de Mim – um terno juízo

Julgai-me com suavidade.

Emily Dickinson – Trad.: Nuno Júdice

Emily Dickinson – Trad.: Jorge de Sena

Judge tenderly – of Me

Ao Mundo escrevo esta carta,

Emily Dickinson

A PREGUIÇA

Este

lento

talento

de vazarmos tristeza. Rainer Müller

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética

COM O ESPÍRITO DA CASA

Acabei hoje o sabonete cujo uso iniciaste aquando o teu último banho cá em casa. Ficaram coisas que te pertencem e que não sei se deva guardar, a saber: um candeeiro, um desenho, uma fotografia. Outras coisas ficaram alguns discos e já não sei que livro. Não ferem tanto. Há ainda a memória da pele, o amarelo dos olhos e algumas expressões do teu português falado. Mas estas últimas coisas já se confundem com o espírito da casa, quero dizer-te com a poeira da casa.

João Miguel Fernandes Jorge, A Jornada de Cristóvão de Távora. Primeira Parte

Mireille Turcot

Eu

Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver Eu sou a que no mundo anda perdida,

E que nunca na vida me encontrou!

Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida...

Florbela Espanca, Livro de Mágoas

Ignoto Deo Desisti de Te achar no que quer que seja, De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja... - Tu é que não desistirás de mim!

José Régio, Biografia Desisti de saber qual é o Teu nome, Se tens ou não tens nome que Te demos, Ou que rosto é que toma, se algum tome, Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome Do teu amor nos seja o mais que temos, E empenhei-me em domar, nem que os não dome, Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano Que por demais tresanda a gosto humano! Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

ARDIS

A incompreendida figura do amor a céu descoberto sem que se exprima rodeamo-nos de vinganças, medidas, ardis e enchemos os livros da ardente ausência de nós próprios

Ao entardecer corremos ao pontão sobre o mar e a vida só se parece com alguma coisa que sabemos

José Tolentino de Mendonça, in 366 poemas que falam de amor uma antologia organizada por Vasco Graça Moura

Norbert Piechula

GUERNICA

e limpo e inocente, por uma árvore, uma só árvore, di-lo-ei: Guernica!

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro Di-lo-ei pela cor dos teus olhos, pela luz onde me deito, di-lo-ei pelo ódio, pelo amor com que toquei as pedras nuas, por uns passos verdes de ternura, pelas adelfas, quando as adelfas nestas ruas podem saber a morte, pelo mar azul, azul-cantábrico, azul-bilbau, quando amanhece, di-lo-ei pelo sangue violado

Picasso

ABRIL DE ABRIL

Abril de vinho e sonho em nossas taças era um Abril de clava

Abril em acto

em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Era um Abril de amigo

Abril de trigo

Abril de trevo e trégua e vinho e húmus

Abril tão bravo

Abril de boca a abrir-se esse Abril em que

Abril palavra

Abril se libertava.

Abril de novos ritmos novos rumos. Era um Abril de clava Abril de cravo Era um Abril comigo

Abril contigo

ainda só ardor e sem ardil.

Abril de mão na mão e sem fantasmas esse Abril em que Abril floriu nas armas.

Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça era um Abril na rua

Abril de massas Abril a rodos

Abril de sol que nasce para todos.

Manuel Alegre, 30 Anos de Poesia

Maria Keil

Liberté

Sur mes cahiers d'écolier

Jécriss ton nom

Sur mon pupitre et les arbres

Sur les merveilles des nuits

Sur le sable sur la neige

Sur le pain blanc de journées

J'écute ton nom

Sur les saisons fiancées J'écris ton nom

Sur toutes les pages lues Sur toutes les pages blanches

Sur tous mes chiffons d'azur

Pierre sang papier ou cendre

Sur l'étang soleil moisi

J'écris ton nom

Sur le lac lune vivante J'écris ton nom

Sur les images dorées Sur les armes des guerriers

Sur le champs sur l'horizon

Sur la couronne de rois

Sur les ailes des oiseaux

J'écris ton nom

Et sur le moulin des ombres J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert Sur les nids sur les genêts Sur l'écho de mon enfance

Paul Eluard,

Viagem

Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura,

Aparelhei o barco da ilusão

O que importa é partir, não é chegar.

E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação

Miguel Torga, Antologia Poética

ESPERANÇA

É como se alguém me pisasse e eu me risse - uma alegria toda cor e luz.

É como se alguém me batesse e eu cantasse - um canto de amizade e paz.

este vício secreto e interior esta badalada do relógio da alma

É como se alguém me cuspisse

este pulsar no coração do mundo

e eu passasse indiferente

esta consciência duma ferida em chaga

- um caminho claro como o dia.

este sentir a dor duma mulher pobre e faminta.

É como se alguém me apunhalasse

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome

e eu o abraçasse

Ó silencioso grito dos camponeses sem terra!

- um fogo de fraternidade humana.

Ó vento da certeza que os carrascos temem!

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome Vasco Cabral, A luta é a minha primavera

Namoro Mandei-lhe um cartão que o amigo Maninho tipografou: Mandei-lhe uma carta em papel perfumado

«Por ti sofre o meu coração».

e com letra bonita eu disse ela tinha

Num canto - SIM, noutro canto - NÃO

um sorriso luminoso tão quente e gaiato

E ela o canto do NÃO dobrou.

como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete

espalhando diamantes na fímbria do mar

pedindo rogando de joelhos no chão

e dando calor ao sumo das mangas.

pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,

Sua pele macia - era sumaúma...

me desse a ventura do seu namoro...

Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas

E ela disse que não.

sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo tão rijo e doce - como o maboque...

Levei à avó Chica, quimbanda de fama a areia da marca que o seu pé deixou

Seus seios, laranjas - laranjas do Lage

para que fizese um feitiço forte e seguro

seus dentes... - marfim...

que nela nascesse um amor como o meu... E o feitiço falhou.

Mandei-lhe essa carta

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,

e ela disse que não.

ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,

paguei-lhe doces na calçada da Missão,

E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»

ficámos num banco do largo da Estátua,

Olhei-a nos olhos - sorriu para mim

afaguei-lhe as mãos...

pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

falei-lhe de amor... e ela disse que não. Viriato da Cruz Andei barbado, sujo e descalço, como um mona-ngamba. Procuraram por mim «-Não viu... (ai, não viu...? não viu Benjamim?» E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair levaram-me ao baile do sô Januário mas ela lá estava num canto a rir contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela e num passo maluco voámos na sala qual uma estrela riscando o céu!

Chichorro

PRELÚDIO

Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada...

Pela estrada desce a noite

Que é feito desses meninos

Mãe-Negra, desce com ela...

que gostava de embalar?...

Nem buganvílias vermelhas

Que é feito desses meninos

nem vestidinhos de folhos,

que ela ajudou a criar?...

nem brincadeiras de guisos,

Quem ouve agora as histórias

nas suas mãos apertadas.

que costumava contar?...

Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas.

Mãe-Negra não sabe nada...

Mãe-Negra tem voz de vento,

Mas ai de quem sabe tudo,

voz de silêncio batendo

como eu sei tudo

nas folhas do cajueiro...

Mãe-Negra!...

Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando mãos cruzadas no regaço, bem quieta bem calada.

É tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada...

Alda Lara, Poemas

Judee Plourde

CANTO DE NASCIMENTO

a marcar os intervalos de tempo Aceso está o fogo

vinte cabaças de leite

prontas as mãos

que o vento trabalha manteiga

o dia parou a sua lenta marcha

a lua pousada na pedra de afiar

de mergulhar na noite Uma mulher oferece à noite As mãos criam na água

o silêncio aberto

uma pele nova

de um grito sem som nem gesto

panos brancos

apenas o silêncio aberto assim ao grito

uma panela a ferver

solto ao intervalo das lágrimas

mais a faca de cortar As velhas desfiam uma lenta memória Uma dor fina

que acende a noite de palavras depois aquecem as mãos de semear fogueiras

Uma mulher arde no fogo de uma dor fria igual a todas as dores maior que todas as dores. Esta mulher arde no meio da noite perdida colhendo o rio

enquanto as crianças dormem seus pequenos sonhos de leite.

Paula Tavares, O Lago da Lua

Lívio de Morais

Danielle Jaquillard

Acreditava naquela história do homem que nunca chora. Eu julgava-me um homem. Na adolescência meus filmes de aventuras punham-me muito longe de ser cobarde na arrogante criancice do herói de ferro. Agora tremo. E agora choro. Como um homem treme. Como chora um homem!

José Craveirinha, Antologia de poetas africanos

Regressámos ao anonimato

Regressámos ao anonimato mais leves. Mas é minha a muda inquietação esse temor da armadilha do cinismo. A noite contempla-nos despojados de sonhos e, tu disseste - tão próximas as estrelas – tão longo o caminho para chegar a elas.

Maria Alexandra Dáskalos, Do Tempo Suspenso

Clearlette

Canção de embalar Apaga-se a luz. Maninho acorda depois por causa da voz falando baixinho segredando no meio escuro... Não fala de mamãe... Ti Lobo talvez... Mas nhô Chico Polícia há dias contava: "Ti Lobo não tem..." Essa voz nocturna segredando... O homem branco talvez que lá vai de vez em quando

"Dorme Maninho pra não vir Ti Lobo..." Maninho volta-se e dorme no colchão de saco vazio sobre a terra batida. Ao lado no chão dormindo também o naviozinho de lata que fez com suas mãos...

"Dorme Maninho pra não vir Ti Lobo..." Volta-se e torna a dormir... Amanhã cedo vai correr o naviozinho de lata nas poças da Praia Negra...

Jorge Barbosa

HOME AMB BLUES (A LA MANERA D'ELLINGTON, BROWN AND BEIGE)

Eric Vançon El blues El blues serveix El blues serveix per cantar les solitàries nits El blues serveix per cantar les meves solitàries nits

El blues El blues no és res El blues no és res més que un cant El blues no és res més que un cant per cridar-lo en les meves solitàries nits El blues és una estrella que brilla cada nit per no apagar-se després fins a l'altra nit El blues és una estrella que brilla El blues és una estrella El blues és El blues El blues és un prec que canten els negres i uns blancs per demanar que no sigui tan negra la nit El blues és un prec que canten els negres i uns blancs per demanar El blues és un prec que canten els homes El blues és un prec El blues és EL BLUES

Joaquim Horta, Home que espera

Meditação

Tudo imaterial na praia rasa Cheia de sol, ao fim da tarde, Proa ao vento quebrada A vaga entre rochedos, se ilumina. É tudo imaterial, tudo neblina Ténue que aos poucos arde, Ao fim da tarde se desfaz, flutua, E voo de ave deslisa Ao longe linha pura. Tudo imaterial na praia rasa. Aqui ninguém me vê: amo a ternura.

Ruy Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo

O Ovo de Galinha

O ovo revela o acabamento, a toda mão que o acaricia, daquelas coisas torneadas num trabalho de toda a vida. E que se encontra também noutras que entretanto mão não fabrica: nos corais, nos seixos rolados e em tantas coisas esculpidas cujas formas simples são obra de mil inacabáveis lixas usadas por mãos escultoras escondidas na água, na brisa. No entanto, o ovo, e apesar da pura forma concluída, não se situa no final: está no ponto de partida.

João Cabral de Melo Neto, Terceira feira

Sue Choppers-Wife

Quero um cavalo

Quero um cavalo de várias cores, Quero-o depressa, que vou partir, Esperam-me prados com tantas flores, Que só cavalos de várias cores Podem servir.

Deixem que eu parta, agora, já, Antes que murchem todas as flores. Tenho a loucura, sei o caminho, Mas como posso partir sozinho Sem um cavalo de várias cores?

Reinaldo Ferreira, Poemas

Quero uma sela feita de restos Dalguma nuvem que ande no céu. Quero-a evasiva – nimbos e cerros – Sobre os valados, sobre os aterros, Que o mundo é meu. Quero que as rédeas façam prodígios: Voa, cavalo, galopa mais, Trepa às camadas do céu sem fundo, Rumo àquele ponto, exterior ao mundo, Para onde tendem as catedrais. Franz Marc

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles, Poesia

Picasso

Libertà

Nosostros los Gitanos tenemos una sola religión: la libertad. En cambio de ella renunciamos a la riqueza, al poder, a la ciencia y a la gloria. Vivimos cada día como si fuera el último. Cuando se muere, se deja todo: una miserable carroza com un gran imperio. Y creemos que en ése momento sea mucho mejor haber sido Gitanos que reyes. No pensamos en la muerte. No la tememos, eso es. Nuestro secreto es gozar cada día de las pequeñas cosas que la vida nos ofrece y que lo demás no saben apreciar: una mañana de sol, un baño en la vertiente, la mirada de alguien que nos ama. Es difícil entender estas cosas, lo sé. Gitanos se nace.

Nos gusta caminar bajo las estrellas. Se dicen cosas estrañas sobre los Gitanos. Se dice que leen el futuro en las estrellas y que tienen la poción del amor. Lo gente no cree en lo que no se sabe explicar. Nosostros, en cambio, no tratamos de explicarnos las cosas en las que creemos. La nuestra es una vida simple, primitiva. Nos basta tener por techo el cielo, fuego para calentarnos y nuestras canciones cuando estamos tristes.

Spatzo (Vittorio Mayer Pasquale)

Tomasz Tomaszewski

Agrada-nos caminhar sob as estrelas. Contam-se estranhas histórias sobre ciganos. Diz-se que lemos nas estrelas e que possuímos o filtro do amor. As pessoas não acreditam nas coisas que não sabem explicar. Nós, pelo contrário, não procuramos explicar as coisas em que acreditamos. A nossa vida é uma vida simples, primitiva, basta-nos por tecto um céu, um fogo para nos aquecer e as nossas canções quando estamos tristes. Nós, ciganos, temos uma só religião: a da liberdade. Em troca desta renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória. Vivemos cada dia como se fosse o último. Quando se morre, deixa-se tudo: um miserável carroção como um grande império. E nós cremos que nesse momento é muito melhor ser cigano do que rei. Nós não pensamos na morte. Não a tememos - eis tudo. O nosso segredo está no gozar em cada dia as pequenas coisas que a vida nos oferece e que os outros homens não sabem apreciar: uma manhã de sol, um banho na torrente, o contemplar alguém que se ama. É difícil compreender estas coisas, eu sei. Nasce-se cigano.

Pasqualle Spatzo, Raiz e Utopia

Preia-mar

As ondas quebram na areia, dizem segredos perdidos... Saudades da maré-cheia, de barcos e tempos idos... Segredos tristes, lamentos, que o mar não pôde calar... E foi dizê-los aos ventos, aos pescadores, ao luar... As ondas dizem na areia saudades de tempos idos... Segredos da maré-cheia, de barcos tristes - perdidos.

Daniel Filipe, Missiva

COTOVIA - Voei ao Recife, no Cais Pousei na rua da Aurora. - Aurora da minha vida, Que os anos não trazem mais! Alô, cotovia, Aonde voaste, Por onde andaste, Que tantas saudades me deixaste? - Andei onde deu o vento. Onde foi meu pensamento. Em sítios, que nunca viste, De um país que não existe… Voltei, te trouxe alegria. - Muito contas, cotovia! E que outras terras distantes Visitaste? Dize ao triste. - Líbia ardente, Cítia fria, Europa, França, Baía… - E esqueceste Pernambuco, Distraída?

- Os anos não, nem os dias, que isso cabe às cotovias. Meu bico é bem pequenino Para o bem que é deste mundo: Se enche com uma gota de água. Mas sei torcer o destino, Sei no espaço de um segundo Limpar o pesar mais fundo. Voei ao Recife, e dos longes Das distâncias, aonde alcança Só a asa da cotovia, - Do mais remoto perempto Dos teus dias de criança Te trouxe a extinta esperança, Trouxe a perdida alegria.

Manuel Bandeira

Lulu Lagland

Azul

Adivinhei-te através da verdura azul, colhendo as flores que iam abrir na próxima primavera. Eu era o andarilho sem cansaço, os bolsos cheios de tesoiros desprezados: os seixos que as águas modelaram durante milhões de anos, as asas que as borboletas entregaram aos ventos, as sementes que entram pelas janelas dos comboios e querem dialogar connosco… (Um raio de sol acariciava a tua face através da verdura azul!...)

Saúl Dias, Obra Poética

Andrea

Dos hombres caminaron por la luna

Dos hombres caminaron por la luna, Otros después. ¿Qué puede la palabra, Qué puede lo que el arte sueña y labra, Ante su real y casi irreal fortuna? Ebrios de horror divino y de aventura, Esos hijos de Whitman han pisado El páramo lunar, el inviolado Orbe que, antes de Adán, pasa y perdura. El amor de Endimión en su montaña, El hipogrifo, la curiosa esfera De Wells, que en mi recuerdo es verdadera, Se confirman. De todos es la hazaña. No hay en la tierra un hombre que no sea Hoy más valiente y más feliz. El día Inmemorial se exalta de energía Por la sola virtud de la Odisea De esos amigos mágicos. La luna, Que el amor secular busca en el cielo Con triste rostro y no saciado anhelo, Será su monumento, eterna y una.

Chagall

Jorge Luis Borges, El oro de los Tigres

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos, mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo doeu-me onde antes os teus dedos foram aves de verão e a tua boca deixou um rasto de canções. No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração que era o resto da vida - como um peixe respira na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

Vieira da Silva

Soror Mariana – Beja

Cortaram os trigos. Agora A minha solidão vê-se melhor.

Sophia de Mello Breyner Andresen, O nome das Coisas

Ó sino da minha aldeia Ó sino da minha aldeia, Dolente na tarde calma, Cada tua badalada Soa dentro da minha alma. E é tão lento o teu soar, Tão como triste da vida, Que já a primeira pancada Tem o som de repetida. Por mais que me tanjas perto, Quando passo, sempre errante, És para mim como um sonho, Soas-me na alma distante. A cada pancada tua, Vibrante no céu aberto, Sinto mais longe o passado, Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Les mots que nous employons

Les mots que nous employons on me les a passés et je les emploie, mais pas pour me faire comprendre, pas pour achever de m'en vider, Alors pourquoi? C'est qu'en réalité je ne les emploie pas En réalité je ne fais pas autre chose que de me taire et de cogner.

Antonin Artaud, Suppôts et supplications

Mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra. Com mãos tudo se faz e se desfaz. Com mãos se faz o poema - e são de terra. Com mãos se faz a guerra - e são a paz. Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedras estas casas, mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas. E cravam-se no tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas. De mãos é cada flor, cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

MAR BRAVO

Mar que ouvi sempre cantar murmúrios Na doce queixa das elegias, Como se fosses, nas tardes frias De tons purpúreos, A voz das minhas melancolias. Com que delícia neste infortúnio, Com que selvagem, profundo gozo, Hoje te vejo bater raivoso, Na maré-cheia de novilúnio, Mar rumoroso! Com que amargura mordes a areia, Cuspindo a baba da acre salsugem, No torvelinho de ondas que rugem Na maré-cheia, Mar de sargaços e de amarugem! As minhas cóleras homicidas, Meus velhos ódios de iconoclasta, Quedam-se absortos diante da vasta, Pérfida vaga que tudo arrasta, Mar que intimidas!

Em tuas ondas precipitadas, Onde flamejam lampejos ruivos, Gemem sereias despedaçadas. Em longos uivos Multiplicados pelas quebradas. Mar que arremetes, mar que não cansas, Mar de blasfémias e de vinganças, Como te invejo! Dentro em meu peito Eu trago um pântano insatisfeito De corrompidas desesperanças!...

Manuel Bandeira, Antologia Poética

Femme noire

Femme nue, femme noire Vétue de ta couleur qui est vie, de ta forme qui est beauté J'ai grandi à ton ombre; la douceur de tes mains bandait mes yeux Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi, Je te découvre, Terre promise, du haut d'un haut col calciné Et ta beauté me foudroie en plein coeur, comme l'éclair d'un aigle Femme nue, femme obscure Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir, bouche qui fais

lyrique ma bouche Savane aux horizons purs, savane qui frémis aux caresses ferventes du Vent d'Est Tamtam sculpté, tamtam tendu qui gronde sous les doigts du vainqueur Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée Femme noire, femme obscure Huile que ne ride nul souffle, huile calme aux flancs de l'athlète, aux flancs des princes du Mali Gazelle aux attaches célestes, les perles sont étoiles sur la nuit de ta peau. Délices des jeux de l'Esprit, les reflets de l'or ronge ta peau qui se moire A l'ombre de ta chevelure, s'éclaire mon angoisse aux soleils prochains de tes yeux. Femme nue, femme noire Je chante ta beauté qui passe, forme que je fixe dans l'Eternel Avant que le destin jaloux ne te réduise en cendres pour nourrir les racines de la vie.

Léopold Sédar Senghor, Chants d'ombre

Mulher nua, mulher negra Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza! Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos. E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro, Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado, E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro de uma águia. Fêmea nua, fêmea escura. Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro, boca que faz lírica a minha boca savana de horizontes puros, savana que freme com as carícias ardentes do vento Leste.

Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos do vencedor Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada. Fêmea nua, fêmea negra, Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos flancos do atleta, nos flancos dos príncipes do Mali. Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre a noite da tua pele. Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que ondula à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia, ante o sol dos teus olhos. Mulher nua, fêmea negra, Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente, antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para alimentar as raízes da vida.

Léopold Sédar Senghor. Trad.: Guilherme de Souza Castro)

O curso deste rio

O curso deste rio é feito de pensar o silêncio mais frio que há por dentro de amar: onde nada nos chega, nem a voz atravessa esta ausente incerteza que nos trai e dispersa;

Erica Melis

onde nós não vivemos mas brilha no olhar o que não nos dissémos nem pudémos calar.

Luís Filipe Castro Mendes, Modos de Música

SOMBRAS

A meio desta vida continua a ser difícil, tão difícil atravessar o medo, olhar de frente a cegueira dos rostos debitando palavras destinadas a morrer no lume impaciente de outras bocas anunciando o mel ou o vinho ou o fel. Calmamente sentado num sofá, começas a entender, de vez em quando os condenados a prisão perpétua entre as quatro paredes do espírito e um esquife negro, onde vão desfilando imagens, só imagens de canal em canal, sintonizadas com toda a angústia e estupidez do mundo.

As pessoas – tu sabes – as pessoas são feitas de vento e deixam-se arrastar pela mais bela respiração das sombras, pla morte que repete os mesmos gestos quando o crepúsculo fica a sós connosco e a noite se redime com uma estrela a prometer salvar-nos. A meio desta vida os versos abrem paisagens virtuais onde se perdem as intenções que alguma vez tivemos, o recorte obscuro de perfis desenhados a fogo há muitos anos numa alma forrada de espelhos mas sempre tão vazia, sem abrigo para corpo nenhum.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

Madrigal

Giovanni Lanfranco

Em fim fenece o dia, Em fim chega da noite o triste espanto E não chega desta alma o doce encanto; Em fim fica triunfante a tirania, Vencido o sofrimento,

Sem alívio meu mal, eu sem alento, A sorte sem piedade, Alegre a emulação, triste a vontade, O gosto fenecido, Eu infelice em fim, Lauro esquecido. Quem viu mais dura sorte? Tantos males, amor, para uma morte? Não basta contra a vida Esta ausência cruel, esta partida? Não basta tanta dor? tanto receio? Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio? Não basta estar ausente, Para perder a vida infelizmente? Se não também cruel neste conflito Me negas o socorro de um escrito? Porque esta dor que a alma me penetra Não ache o maior bem na menor letra, Ai bem fazes amor, tira-me tudo! Não haja alívio não, não haja escudo Que a vida me defenda! Tudo me falte, em fim, tudo me ofenda, Tudo me tire a vida Pois eu a não perdi na despedida. Violante do Céu, Rimas Várias

Sexta-feira

Tranquila Sexta-feira abandonada Sexta-feira Sexta-feira cada vez mais triste como ruelas antigas Sexta-feira de indolentes pensamentos indispostos Sexta-feira de sinuosos e nefastos espreguiçamentos Sexta-feira de nenhuma expectativa Sexta-feira de rendição. Casa vazia casa solitária casa trancada contra a investida da juventude casa da escuridão e ânsias de sol casa de solidão, augúrio e indecisão casa de cortinas, livros, guarda-louça, fotografias. Ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena como uma corrente profunda através do coração dessas silenciosas, abandonadas Sextasfeiras através do coração dessas tristes casas vazias ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena.

André Wohlgemuth

Forough Farrokhzad. Versão de Vasco Gato

ESTAR COMIGO

ESTAR COMIGO é o meu nativo modo de estar Desertam as sombras Entre os objectos e o chão límpido sua ausência é a ficção do dia. Ralf Greiner

Sebastião Alba, A Noite Dividida

Quem não sai da sua casa

Quem não sai da sua casa Não atravessa povos, montes, vales, Não vê as cenas bíblicas das eiras, Nem mulheres de infusa, equilibradas, Nem carros lentos, chiadores, Nem homens suados, Quem vive como o insecto cativo no seu redondel, Cria mil olhos para nada...

Irene Lisboa

Rene Lauterbach

AMOR SILÊNCIO AMARGO A ROÇAR-ME A MORTE

Distância cumulada remanso de uma espera ponte da aventura do dois à unidade amor brilho raiando a chave do desejo minuto adormecido ao pé da eternidade. Amor tempo suspenso, ó lânguido receio, no pranto do meu canto és a presença forte estame estremecido dissimulado anseio amor milagre gesto incandescente porte. Amor olhos perdidos a riscar desenhos em largo movimento o espaço circular amor segundo breve, lanceta, tempo eterno no rápido castigo da lua a gotejar. Amor silêncio amargo a roçar-me a morte grito partido do vidro sobre o peito ilha deserta no meio das capitais do norte grilhetas ajustadas no rio em que me deito.

Salette Tavares In 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura

A TRAIÇÃO

quando do cavalo de tróia saiu outro cavalo de tróia e deste um outro e destrouto um quarto cavalinho de tróia tu pensaste que da barriguinha do último já nada podia sair e que tudo aquilo era como uma parábola que algum brejeiro estivesse a contar-te pois foi quando pegaste nessa espécie de gato de tróia que do cavalo maior saiu armada até aos dentes de formidável amor a guerreira a que já trazia dentro de si os quatro cavalões do vosso apocalipse

Alexandre O'Neill, Poesias Completas Klaus Oppermann

II – 1 de Janeiro de 2005 – 31 de Maio de 2005

eli miguel

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