Camille Claudel
Tão cedo passa tudo quanto passa! Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco! Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, Odes eli – Julho 2009
SONETO DE MAL-AMAR Invento-te recordo-te distorço a tua imagem mal e bem amada sou apenas a forja em que me forço a fazer das palavras tudo ou nada. A palavra desejo incendiada lambendo a trave mestra do teu corpo a palavra ciúme atormentada a provar-me que ainda não estou morto. E as coisas que eu não disse? Que não digo: Meu terraço de ausência meu castigo meu pântano de rosas afogadas. Por ti me reconheço e contradigo chão das palavras mágoa joio e trigo apenas por ternura levedadas.
José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética
LEMBRA-TE
Lembra-te que todos os momentos que nos coroaram todas as estradas radiosas que abrimos irão achando sem fim seu ansioso lugar seu botão de florir o horizonte e que dessa procura extenuante e precisa não teremos sinal senão o de saber que irá por onde fomos um para o outro vividos Mário Cesariny, Pena Capital
PROCURO-TE
Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu, o ar onde a respiração é doce, um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria. Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido. Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio. Um pássaro e um navio são a mesma coisa quando te procuro de rosto cravado na luz. Eu sei que há diferenças, mas não quando se ama, não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas. Porém eu procuro-te. Antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te. Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas
Kandinsky, Lyrical
LISBOA
Lisboa tem um vestido azul feito de mar e guerra. E cheira a laranjas maduras. Quando as gaivotas trazem no bico os primeiros pedaços de sol para acender o dia, Lisboa deixa correr os cabelos pelo Tejo e o Povo pelas ruas. À mesma hora, a coragem agita no sangue duas grandes asas inquietas. Por todas as janelas destruídas, já o mar entrou, derrubando acácias cantando hinos de espuma. E porque toda a coragem é necessária, toda a esperança é legítima. Joaquim Pessoa, Amor Combate
HOJE É O TEMPO
Este é o tempo do insólito, do vigário, do capricho, da mentira, da
falsificação,
do cheque sem
cobertura, da banha-de-cobra. Não temos um estalão para nada, a própria Terra não garante a estabilidade do metro, o sistema de pesos e medidas é duvidoso que funcione, tudo existe em função de si e não de qualquer outra coisa que lhe confira validade. Hoje tudo é possível porque nada é possível. Hoje a verdade não se demora até ser mentira mas uma e outra se convertem mutuamente e são ambas válidas na sua mútua referência, sendo a mentira verdade e ao contrário. Hoje é o tempo dos aventureiros, do medíocre sagaz, da esperteza, que é a inteligência da astúcia. Hoje é o tempo do curandeiro, do endireita, do bruxo, do vidente, do profeta, do prestidigitador. Hoje é o tempo de ser estúpido porque o inteligente não há razão para não ser mais estúpido do que ele. Hoje é o tempo de todos os caminhos estarem desimpedidos porque não é possível um sistema alfandegário. Hoje é o tempo de todos os contrabandos porque não há razão para um sistema fiscal. Hoje é o tempo da noite para todos os gatos terem a mesma identidade. Hoje é o tempo de tudo ser tempo de. Hoje é o tempo de tudo, portanto de nada. Hoje é o tempo de se não ser. Levanta em ti, se puderes, o que te resta de homem, para seres alguma coisa. Vergílio Ferreira, Pensar
UMA MULHER QUASE NOVA…
Uma mulher quase nova com um vestido quase branco numa tarde quase clara com os olhos quase secos vem e quase estende os dedos ao sonho quase possível quase fresca se liberta do desespero quase morto quase harmónica corrida enche o espaço quase alegre de cabelos quase soltos transparente quase solta o riso quase bastante quase músculo florido deste instante quase novo quase vivo quase agora Mário Dionísio, O Riso Dissonante
Edward Hopper, Summertime
POEMA SOBRE A RECUSA como é possível perder-te sem nunca te ter achado nem na polpa dos meus dedos se ter formado o afago sem termos sido a cidade nem termos rasgado pedras sem descobrirmos a cor nem o interior da erva como é possível perder-te sem nunca te ter achado minha raiva de ternura meu ódio de conhecer-te minha alegria profunda
Picasso,
Maria Teresa Horta, Minha Senhora de Mim
Le repos (Marie-Thérèse Walter)
6 DE AGOSTO DE 1945
Caldelas, 7 de Agosto - A primeira bomba atómica. Que maravilhoso bicho, o homem! Teimou, teimou, e descobriu a pedra filosofal! Caldelas, 8 de Agosto - Em Hiroxima, onde a bomba atómica foi lançada, tudo quanto era vida morreu. Por causa do fumo e da poeira que se levantaram, o mundo esteve de respiração suspensa durante vinte e quatro horas, sem saber o que tinha acontecido. Mas hoje, de manhã, os jornais, diligentes, já estavam senhores da verdade inteira. Não tinham morrido vinte, trinta ou quarenta mil pessoas, como era de temer. Para matar a ridicularia de quarenta mil pessoas não era necessário tanto sonho. Não, felizmente, não se tratava de um desapontamento. Nem quarenta, nem sessenta, nem setenta mil mortos. Isto é: todos os seres vivos liquidados! E a humanidade dobrou o jornal aliviada. Miguel Torga, Diário
Antonio Saura, Crucifixion
PRAIA DO ENCONTRO
Esta imaginação de sal e duna, inquieta e movediça como a areia, ergue, isolada, a praia, mais a espuma que sereia nenhuma saboreia… Quisesses tomar tu este veleiro, que em secreto estaleiro construí, sem velas, sem cordame, sem madeira, - mas branco!, e todo inteiro para ti… Brilha uma luz de morte sobre o porto saído mesmo agora da memória… Ali estarei, à tua espera, morto, ou vivo em minha morte transitória… Combinado. Que eu juro não faltar! Contrário de Tristão, renascerei, se pressentir, aérea, sobre o mar, a sombra singular do barco que te dei. David Mourão-Ferreira
UM AMOR Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, puxaste-me para os teus olhos transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua, ainda apanhámos o crepúsculo. As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar diferente inundava a cidade. Sentei-me nos degraus do cais, em silêncio. Lembro-me do som dos teus passos, uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas, e a tua figura luminosa atravessando a praça até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é, o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali, continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha essa doente sensação que me deixaste como amada recordação.
Nuno Júdice Eric Vignaud, CrépusculeTraz
TRAZ OUTRO AMIGO TAMBÉM
Amigo Maior que o pensamento Por essa estrada amigo vem Não percas tempo que o vento É meu amigo também Em terras Em todas as fronteiras Seja bem vindo quem vier por bem Se alguém houver que não queira Trá-lo contigo também
Aqueles Aqueles que ficaram (Em toda a parte todo o mundo tem) Em sonhos me visitaram Traz outro amigo também José Afonso
O ESPÍRITO
Nada a fazer, amor, eu sou do bando Impermanente das aves friorentas; E nos galhos dos anos desbotando Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando? À vida breve não perguntes: cruentas Rugas me humilham. Não mais em estilo brando Ave estroina serei em mãos sedentas. Pensa-me eterna que o eterno gera Quem na amada o conjura. Além, mais alto, Em ileso beiral, aí espera: Andorinha indemne ao sobressalto Do tempo, núncia de perene primavera. Confia. Eu sou romântica. Não falto. foto: eli Natália Correia, Sonetos Românticos
Como se de repente ao coração do Sol as raízes da luz alguém as arrancasse... Como se de repente as hélices do vento arranhassem o ar, e o Mar estivesse perto... Como se de repente o Mundo entontecesse... Foi tudo de repente e tudo ao mesmo tempo: escuridão, rumor, frescura, movimento. Mas de entre as espirais confusas quem sabia se era de novo amor, se era só melodia? David Mourão-Ferreira
Giacomo Balla , Ragazza che corre al balcone
SÁBADOS
Morte procriadora de bens que são ser e nada ter Olhos de seda e aço penetrando a fronteira Guerreiro sem espada cansado das pedras que lhe arremetem E a terra lavrada com flores de pêssego e bandeiras de milho Misturando orvalho chuva água da mina ao leite branco e doce E nos baldios cabras buscando secos arbustos sem amoras E sem amores Aos sábados visito-te de longe monto num cavalo verde E fico à porta atrás das grades Não me perguntas se durmo se estou acordada nada nunca em vida me perguntaste
Na coragem do pacto da solidão E eu passo no cavalo verde cavalo limpo de sela Mas pelas grades não passam nossas lágrimas brancas E eu passo ao sábado todos os sábados e fico atrás das grades São tardes calmas em que os homens velhos de pijamas às riscas Dependuram as mãos nos parapeitos das janelas e olham para fora E as mulheres velhas encostam os peitos derrotados à tristeza dos próprios braços E olham também
Matilde Rosa Araújo Colóquio Letras, nº 73, Maio de 1983
Franz Marc, Die kleinen gelben Pferde
AS PALAVRAS
Há palavras que são sombras de árvores ou um bálsamo da terra, um pressentimento de espuma, um incêndio do tacto, uma reverência ao desconhecido. Amo as palavras que são às vezes sonâmbulos cavalos, satélites de granito, raparigas cegas no fundo das casas, veias de uma estrela submarina. Como não amá-las pela brisa se são pétalas de um clamor silencioso ou anjos sossegados dormindo sobre a terra ou lúcidas e ébrias, majestosas e puras, magníficas como um dorso recamado de estrelas, intacta revelação de invioladas luas? Desconfio das palavras, mas às vezes são leves, musicais aves que planam sobre uma cidade branca, ilhas mágicas, selados vasos, cordeiros recémnascidos, caravanas vermelhas, armadilhas de cristal, amoroso tremor da matéria terrestre. Como um boi nocturno das águas eu procuro essas guitarras plantadas nas plantas que através de eclipses e da distância erguem uma árvore de música ou uma pirâmide
ou as lianas vivas que me defendem dos abismos. Como estátuas de ar as palavras levantam-se na harmonia delirante do nómada do deserto. Quer sejam suspiros entre os arbustos ou sonâmbulas melodias estão sempre à altura dos seus próprios desejos. Quer o cérebro sangre ou a terra estremeça o seu cerimonial é inesgotável, as suas relíquias vivas. São abelhas ou astros que buscam alimento nos ninhos de amêndoas ou nos espelhos da lua? Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos, nos seus cavalos subterrâneos, nos seus densos diamantes. Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e sombras, sei que são anjos de argila, antiquíssmos arqueiros que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas. António Ramos Rosa, O Não e o Sim
fractal: mur du son
No amor também as palavras são necessárias. Os gestos talvez não bastem. Nem a chuva lá fora enquanto o amor se inflama. Nem o sussurro nas árvores quando os corpos serenam. Nem a melopeia das águas quando as bocas se esmagam. Nem o fulgor dos olhos quando a paixão se impacienta. Penso no amor e logo invento palavras e logo as palavras se põem ébrias. Penso no amor e logo as palavras se soltam como fogosas aves a que não pergunto o rumo. Penso no amor e logo preciso que as palavras digam que amor é este em que penso e em que grito. Fernando Namora Colóquio letras, nº 73, Maio de 1983
Magritte, Procura do Absoluto
Quem sou eu, a que está nesta varanda, em frente deste mar, sob as estrelas, vendo vultos andarem? Sabem, acaso, os vultos quem vão sendo? Sentem o céu, as águas, quando passam? Ou não vêem, ou não lembram? Quando alguém deste mundo para a lua dirige os olhos, meditando coisas e assim no vago mira, para este mundo vão meus pensamentos, tão estrangeiros, tão desapegados, como se esta varanda fosse a lua. Cecília Meireles
Carlo Carrà, Mulher à Janela
A perfeição das coisas O vento - finalmente no fogo do dia - o vento do mundo neste lugar aberto escreve a inclinação dos jovens álamos na última colina contra o céu para sempre novo e antigo. As mãos do vento escrevem em verso ramos e folhas, pontos e traços, a sombra da luz; encurvam para a esquerda e em cima as hastes longas e breves: as vogais aéreas da paisagem terrestre que teríamos esquecido. É subitamente que o vês claramente visto repetindo a imagem do tempo: é uma caligrafia de acaso. Mas é uma caligrafia minuciosa nítida; inquieta e exacta; ofuscante como a incriada perfeição das coisas. Numa outra folha ou margem ou luz ou lugar do mundo és tu agora. Levantas o vestido leve; os teus dedos enrodilham-no, subindo-o numa onda irrepetível e contudo, repetidas vezes sem conta. As tuas mãos enquanto quase quase danças - embora apenas andes sobre o imortal chão da casa. sobem o pano de algodão, apanham a bainha, colhem asas do
escasso mar que te cobria e levam-nas até à linha irrevogável das ancas como se fossem prender o vestido à levíssima ondulação do mundo andante. É como se uma onda no corpo abrisse lenta e fulminante a incalculável praia ao esplendor em que cada coisa se diz como se cantasse o nome do sem nome. A curvatura daquelas hastes e a onda vertical que o teu gesto inventa escrevem então a infindável passagem entre os separados mundos e a isso só podemos chamar alegria. Manuel Gusmão, Teatros do Tempo
Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E o sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
Foto: eli
Esperança
Esperança: não me deixes sozinho isto de sonhar bom para diante esperança. eu fi-lo perfeitamente. Para diante de tudo foi bom
Almada Negreiros, Obras
bom de verdade
Completas
bem feito de sonho podia segui-lo como realidade Esperança: isto de sonhar bom para diante eu sei-o de cor. Até reparo que tenho só esperança nada mais do que esperança pura esperança esperança verdadeira que engana e promete e só promete. Esperança: pobre mãe louca que quer pôr o filho morto de pé? Esperança único que eu tenho não me deixes sem nada promete engana engano que seja
Desenho de Almada Negreiros
Mar, Mar e Mar Tu perguntas, e eu não sei, eu também não sei o que é o mar. É talvez a lágrima caída dos meus olhos ao reler uma carta quando é de noite. Os teus doentes, talvez os teus dentes, miúdos, brancos, agudos, sejam o mar, um mar pequeno e frágil, afável, diáfano, no entanto sem música. É evidente que minha mãe me chama quando uma onda e outra onda e outra desfaz o seu corpo contra o meu corpo. Então o mar é carícia, luz molhada onde desperta meu coração recente. Às vezes o mar é uma figura branca cintilando entre os rochedos. Não sei se fita a água ou se procura um beijo entre conchas transparentes. Não, o mar não é nardo nem açucena. É um adolescente morto de lábios abertos aos lábios da espuma. É sangue, sangue onde a luz se esconde para amar outra luz sobre as areias.
Um pedaço de lua insiste, insiste e sobre lento arrastando a noite. Os cabelos de minha mãe desprendem-se, espalham-se na água, alisados por uma brisa que nasce exactamente no meu coração. O mar volta a ser pequeno e meu, anémona perfeita abrindo nos meus dedos. Eu também não sei o que é o mar. Aguardo a madrugada, impaciente, os pés descalços na areia. Eugénio de Andrade, As palavras Interditas
Foto: eli
Prenda de anos Abriu as mãos, desconchando-as, e delas tombou a pedrinha. Os olhos da menina seguiram a queda, até se fecharem como se se protegesse do adivinhado ruído. - Isso que trouxe para mim? O pai acenou. Que sim, trouxera da viagem para o aniversário da mais nova. Uma anónima pedra, sem tamanho nem cor especiais. Ser pedra era o único valor daquela pedra. A menina já conhecia as ofertas que lhe cabiam: pena de corvo, casca de arbusto, fragmento de chão. Tudo fragrância do natural, nada comparado nem comparável. Esses sendo seus mimos desde que nascera, consumando o pensar paterno – o que se dá, quando se ama, não se compra. A moça levou a prenda e colocou-a sobre a mesa do seu quarto. Sentou-se, sem gesto nem ruído. Assim calada, esperava -
que
Nenhuma
a coisa
pedra é
saísse um
do
silêncio.
qualquer
nada.
Assim aprendera a inventar nome para os muitos anónimos objectos. Ela vestia esses pequenos desvalores com histórias que retirava da sua fantasia. Nesse criar ela mesmo se iluminava. A restante família se opunha a este fazer de conta. Para os outros
aquilo
era
um
desgaste
de
tempo,
desconversação. As amigas da moça, por igual, lhe desvalorizavam
as
dádivas.
E
exibiam
seus
pertences, cheios de preços. E tanto o faziam que, às vezes, a menina era roída por súbitas invejas. Como
aquela que agora despontava em sua alma. Porque ela, sentada na penumbra do quarto, não lograva inventar nenhuma fantasia para a prenda de anos, algo que convertesse a pedra em coisa única. Então, o pai entrou no aposento e igualmente se sentou. Não se imagina o que sentado se alcança fazer. O Homem se constituiu graças à marcha. Mas foi o sentar que forjou a maior fatia da nossa humanidade. - Lhe explico a palavra, filha. Paisagem vem de pai. A filha riu, enquanto ele lhe contava como descobrira aquela pedra, tão aquela e nenhuma demais. Começava, então, a prenda
não de
aniversário mas de eternidade. Conforme catava magia com suas palavras o pai era todo dela, entregue inteiro e aparecido, como se ela fosse sempre o único motivo dela. Seu pai lhe dava um outro pai, roubando-a dessa orfandade original que nos ataca nas fraquezas. A voz do pai dissolvia o tempo como açúcar se extinguindo no chão. Na ensombração do quarto, o mundo sumia enquanto uma pedra entrava em ovulação. Mia Couto, in ―Pública‖ ( Público, 18-6-2000)
Dos Sonetos a Orfeu
Um deus pode. Mas como erguer do sol, na estreita lira, o canto de uma vida? Sentir é dois; no beco sem saída dos corações não há templos de Apolo.
Como ensinas, cantar não é a vaidade de ir ao fim da meta cobiçada. Cantar é ser. Aos deuses, quase nada. Mas nós, quando é que somos? em que idade
nos devolvem a terra e as estrelas? Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam as palavras nos lábios, ao dizê-las,
esquece os teus cantares. Já não soam. Antonio Canova, Orpheus Cantar é mais. Cantar é um outro alento. Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.
Rainer Maria Rilke - trad. de Augusto de Campos
Hora grave
Quem chora agora em algum lugar do mundo, sem razão chora no mundo, chora por mim.
Quem ri agora em algum lugar da noite, sem razão se ri na noite, ri-se de mim.
Quem anda agora em algum lugar do mundo, sem razão anda no mundo, vem para mim. Alexandre Seon, Quem morre agora em algum lugar do mundo, sem razão morre no mundo, olha para mim.
Rainer Maria Rilke - trad. de José Paulo Paes
Lamento de Orfeu
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento. Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza.
Miguel Torga
Rodin, Orphée
Canto de Orfeu Pendurou no salgueiro a cítara caminhou diante dos seus passos sendo depois punido pelos Anjos. Caminhou sempre para o futuro mesmo olhando para trás na memória e por esse futuro foi punido pois levaria consigo a imagem viva. Não era Eurídice aquela que o seguia mas a sua face figurada pelos olhos de Orfeu ainda capazes de criar o modelo e a imagem. Depois da morte ela ainda vivia pronta para o prender em espelhos dúplices e ele que amava nela o corpo, a alma, o suor, o aroma, a linha dos dedos, levou-a para sempre escendida ao Tempo do Espaço depois do futuro. Foi punido por Anjos ciosos da sua ciência da Origem, enquanto outros Anjos doces coroavam aquele Filho que também levara na memória dos olhos a figura da Mãe, que todos os filhos levam em si. Um terrível canto de lamento humano Depois soou: "Che farò senza Uridice?", com o som das vogais mais dolorosas. Mas o sábio Orfeu deixou a lira
Fiama Hasse Pais
somente ser tocada pelo vento
Brandão, Cantos do Canto
quando o canto perseguia a imagem.
Orfeu da Conceição Monólogo de Orfeu Mulher mais adorada! Agora que não estás, deixa que rompa O meu peito em soluços! Tu enrutiste Em minha vida; e cada hora que passa É mais por que te amar, a hora derrama O seu óleo de amor, em mim, amada... E sabes de uma coisa? Cada vez Que o sofrimento vem, essa saudade De estar perto se longe, ou estar mais perto Se perto - que é que eu sei! Essa agonia De viver fraco, o peito extravasado O mel correndo; essa incapacidade De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso De um homem - nada disso tem importância Quando tu chegas com essa charla antiga Esse contentamento, essa harmonia Esse corpo! E me dizes essas coisas Que me dão essa força, essa coragem Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice, Meu verso, meu silêncio, minha música! Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada Sou coisa sem razão, jogada, sou Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice... Coisa incompreensível! A existência Sem ti é como olhar para um relógio Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido E direcção ao tempo, minha amiga Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada! A beleza da vida és tu, amada! Milhões amada! Ah! criatura! Quem Poderia pensar que Orfeu: Orfeu Cujo violão é a vida da cidade E cuja fala, como o vento à flor Despetala as mulheres - que ele, Orfeu Ficasse assim rendido aos teus encantos! Mulata, pele-escura, dentebranco Vai teu caminho que eu vou te seguindo No pensamento e aqui me deixo rente Quando voltares, pela lua cheia Para os braços sem fim do teu amigo! Vai tua vida, pássaro contente Vai tua vida que eu estarei contigo!
Vinícius de Moraes, O Operário em Construção Orfeu da Conceição Ouvindo: Long Play 10", Odeon MODB 3056 Lançado em 1956Música: António Carlos Jobim Letra: Vinícius de Moraes Arranjos e regência: António Carlos Jobim Violão: Luiz Bonfá
Orfeu Deixem-me a pedra fresca à face quente, Condão da noite, íntegra em seu corpúsculo, E lá deite a cabeça de repente Como a bolha do Sol cai no crepúsculo. Asa de ave sem canto é aquele ramúsculo Que me caiu na testa. - E tanta gente Vê nossa alma coroada! Oh! triste músculo O coração do poeta que o não sente! Um cansaço de morte gela o ousado Domador de palavras como feras. Orfeu sem Orco, ínvio ladrão de lume, Quando, afinal, doméstico e roubado Foi ele na paz da pedra, - e a outras quimeras Sua coroa de rosas se resume. Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte
Tiziano Vecellio, Orfeu e Eurídice
Toda a noite acompanhei a tua viagem, Orfeu, de fogo em fogo, de melodia em melodia, até o centro da Construção das Trevas. Ah! E com que volúpia te vi de novo estrangular a tua Eurídice calada para sempre, morta para sempre - melodia que só oculta no silêncio atravessa as pedras... E agora, Orfeu, raiz do avesso, vejo-te regressar lentamente à superfície da Terra, com as mãos desfeitas em flor de orvalho no fogo consumido. Amanhece. O planeta é de vidro. José Gomes Ferreira, Encruzilhadas
Jules-Elie Delaunay. Foyer de l'Opéra de Paris
Soneto de Eurydice Eurydice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu Ausência que povoa terra e céu E cobre de silêncio o mundo inteiro Assim bebi manhãs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que era meu O meu rosto secreto e verdadeiro Porém nem nas marés nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem E devagar tornei-me transparente Como morta nascida à tua imagem E no mundo perdida esterilmente. Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido
Rodin, Orpheus and Euridyce
Summertime
Man Ray, Lips
Olho a sua boca. Tanto que vem o punhal da luz levar-me os olhos. O carvão, a cinza dos meus olhos. Os seus. A sua boca, o sulco onde me pergunta e eu respondo. A morrer, a olhar anavalhado o seu brilho bravio. Sons de sirenes, uivos, estrondos, desabamentos, ravinas donde rompe o amor. A sua boca. Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição
As Mães
calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão sardinheiras,
depois
de
morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz varrerem o terreiro. Elas são as em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá Mães,
essas
mulheres
que
encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres Goethe pensa estarem fora do envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra tempo e do espaço, anteriores lhes tivesse morrido e para todo o sempre se ao Céu e ao Inferno, assim quedassem órfãs. Não as veremos apenas em velhas, assim terrosas, os olhos Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em perdidos e vazios, ou vivos toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia, como
brasas
assopradas.
em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats Solitárias ou inumeráveis, aí as ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar tens na tua frente, graves, esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal caladas, quase solenes na sua podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a imobilidade, esquecidas de que minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo foram o primeiro orvalho do para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. homem, a primeira luz. Mas Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o também as podes ver seguindo que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem por lentas veredas de sombra, imortais. Se o não forem, são pelo menos as pernas pouco ajudando a incorruptíveis como se participassem da natureza do vontade, atrás de uma ou duas fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos cabras, com restos de garbo na sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela cabeça levantada, apesar das obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se tetas
mirradas.
Como
à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma encontrarão
descanso
nos
côdea ou fazendo uns carapins para o último dos caminhos do mundo? Não há netos, as entranhas abertas nas palavras que vão ninguém que as não tenha visto trocando entre si; outras vezes caminham por com umas contas nas mãos quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um engelhadas rezando pelos seus postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, defuntos, rogando pragas a agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao
uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela vê, só ela vê. Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição. Eugénio de Andrade, Vertentes do olhar
Luís de Camões Tinha uma flauta. Não tinha mais nada mas tinha uma flauta tinha um órgão no sangue uma fonte de música tinha uma flauta. Os outros armavam-se mas ele não: tinha uma flauta. Os outros jogavam perdiam ganhavam tinham Madrid e tinham Lisboa tinham escravos na Índia mas ele não: tinha uma flauta. Tinham navios tinham soldados tinham palácios e tinham forcas tinham igrejas e tribunais mas ele não: tinha uma flauta. Só ele Príncipe. Dormiam rainhas na cama do rei princesas esperavam no belvedere Ele tinha uma escrava que morreu no mar. Morreram escravas as rainhas morreram escravas as princesas nenhuma teve o seu rei para nenhuma chegou o Príncipe. Por issoo a única rainha foi aquela escrava que morreu no mar:
só ela teve
Ficou uma flauta que cantava.
o que tinha uma flauta.
E era uma Pátria.
Morreram os reis que tinham impérios
Manuel Alegre, O Canto e as
morreram os príncipes que tinham castelos
Armas
mas ele não: tinha uma flauta. De fora vieram reis vieram armas de fora os príncipes entregaram armas ficou sem armas o povo. As armas de fora venceram todas as armas de dentro. Só não venceram o que não tinha armas: tinha uma flauta. E as vozes de fora mandaram calar as vozes de dentro. Só não puderam calar aquela flauta. Vieram juízes e cadeias. Mas a flauta cantava. Passaram por todas as fronteiras. Só não puderam passar pela fronteira daquela flauta. Manet, O Flautista E quando tudo se perdeu ficou a arma do que não tinha armas: tinha uma flauta.
Viagem Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar. Miguel Torga
Um nome Di-lo-ei pela cor dos teus olhos, pela luz onde me deito, di-lo-ei pelo ódio, pelo amor com que toquei as pedras nuas, por uns passos verdes de ternura, pelas adelfas, quando as adelfas nestas ruas podem saber a morte, pelo mar azul, azul-cantábrico, azul-bilbau, quando amanhece, di-lo-ei pelo sangue violado e limpo e inocente, por uma árvore, uma só árvore, di-lo-ei: Guernica! Eugénio de Andrade, Mar de Setembro
Picasso, Guernica
Charneca em flor
Enche o meu peito, num encanto mago, O frémito das coisas dolorosas... Sob as urzes queimadas nascem rosas... Nos meus olhos as lágrimas apago... Anseio! Asas abertas! O que trago Em mim? Eu oiço bocas silenciosas Murmurar-me as palavras misteriosas Que perturbam meu ser como um afago! E, nesta febre ansiosa que me invade, Dispo a minha mortalha, o meu burel, E, já não sou, Amor, Sóror Saudade... Olhos a arder em êxtases de amor, Boca a saber a sol, a fruto, a mel: Sou a charneca rude a abrir em flor! Florbela Espanca, Charneca em Flor
Georges Braque, "l'oiseau dans le feuillage"
Eros e Psique
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora,
Conta a lenda que dormia E falso, ele vem seguro, Uma Princesa encantada E, vencendo estrada e muro, A quem só despertaria Chega onde em sono ela mora. Um Infante que viria De além do muro da estrada.
E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,
Ele tinha que, tentado, Ergue a mão, e encontra hera, Vencer o mal e o bem, E vê que ele mesmo era Antes que, já libertado, A Princesa que dormia. Deixasse o caminho errado Por o que à princesa vem.
Fernando Pessoa, Poesias
A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe, o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. Éros et Psyché, musée archéologique d'Ephèse
Olhar o rio que é de tempo e água
Heraclito inconstante, que é o
E recordar que o tempo é outro rio,
mesmo
Saber que nos perdemos como o rio
E é outro, como o rio
E que os rostos passam como a água.
interminável.
Sentir que a vigília é outro sono
Jorge Luis Borges, in Poemas
Que sonha não sonhar e que a morte
Escolhidos, Trad. Ruy Belo
Que teme a nossa carne é essa morte De cada noite, que se chama sono. Ver no dia ou até no ano um símbolo Quer dos dias do homem quer dos anos, Converter a perseguição dos anos Numa música, um rumor e um símbolo, Ver na morte o sono, no ocaso Um triste ouro, assim é a poesia Que é imortal e pobre. A poesia Volta como a aurora e o ocaso Às vezes certas tardes uma cara Olha-nos do mais fundo dum espelho; A arte deve ser como esse espelho Que nos revela a nossa própria cara. Foto: eli Contam que Ulisses, farto de prodígios Chorou de amor ao divisar a Ítaca Verde e humilde. A arte é essa Ítaca De verde eternidade e não prodígios. Também é como o rio interminável Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Ressurgiremos Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos E em Delphos centro do mundo Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta Ressurgiremos ali onde as palavras São o nome das coisas E onde são claros e vivos os contornos Na aguda luz de Creta Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo São o reino do homem Ressurgiremos para olhar para a terra de frente Na luz limpa de Creta Pois convém tornar claro o coração do homem E erguer a negra exactidão da cruz
n memoriam
Na luz branca de Creta. Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto
Arpad Szenes
"Transforma-se o amador na coisa amada" «Transforma-se o amador na coisa amada», com seu feroz sorriso, os dentes, as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído e silêncio. Traz o barulho das ondas frias e das ardentes pedras que tem dentro de si. E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado silêncio da sua última vida. O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas. Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. E a coisa amada é uma baía estanque. É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas. Transforma-se em noite extintora. Porque o amador é tudo, e a coisa amada é uma cortina onde o vento do amador bate no alto da janela aberta. O amador entra por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate. O amador é um martelo que esmaga. Que transforma a coisa amada. Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito do amador. Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador, dá-lhe o grito dele. E o amador e a coisa amada são um único grito anterior de amor. E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito de amador. E ela é batida, e bate-lhe com o seu espírito de amada. Então o mundo transforma-se neste ruído áspero do amor. Enquanto em cima o silêncio do amador e da amada alimentam o imprevisto silêncio do mundo e do amor. Herberto Helder
"Transforma-se o amador na coisa amada"
Transforma-se o amador na coisa amada Por virtude do muito imaginar; Não tenho, logo, mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pode descansar, Pois com ele tal alma está liada. Mas esta linda e pura semideia, Que, como o acidente em seu sujeito Assim como a alma minha se conforma Está no pensamento como ideia; O vivo e puro amor de que sou feito Como a matéria simples busca a forma. Luís de Camões
Epístola para Dédalo
Porque deste a teu filho asas de plumagem e cera se o sol todo-poderoso no alto as desfaria? Não me ouviu, de tão longe, porém pensei que disse: todos os filhos são Ícaros que vão morrer no mar. Depois regressam, pródigos, ao amor entre o sangue dos que eram e dos que são agora, filhos dos filhos. Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos
Dédalo e Ícaro
MERIDIONAL CABELOS Ó vagas de cabelo esparsas longamente, Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar, E tendes o cristal dum lago refulgente E a rude escuridão dum largo e negro mar; Cabelos torrenciais daquela que me enleva, Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus No báratro febril da vossa grande treva, Que tem cintilações e meigos céus de luz. Deixai-me navegar, morosamente, a remos, Quando ele estiver brando e livre de tufões, E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos E enchamos de harmonia as amplas solidões. Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom Como um licor renano a fermentar nos copos, Abismo que se espraia em rendas de Alençon! E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável, Que tens o imenso bem de ter cabelos tais, E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável, Entre o rumor banal dos hinos triunfais; Consente que eu aspire esse perfume raro, Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro E faz morrer de febre um louco sonhador. Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos, E vais na direção constante do querer, Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos, Que fazem mansamente amar e elanguescer. E a tua cabeleira, errante pelas costas, Suponho que te serve, em noites de verão, De flácido espaldar aonde te recostas Se sentes o abandono e a morna prostração. E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor Que antigamente deu, nos circos dos Romanos, Um óleo para ungir o corpo ao gladiador. ................................................................. ................................................................. Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio, Na vossa vastidão posso talvez morrer! Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio E quero asfixiar-me em ondas de prazer.
Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde
La Chevelure O toison, moutonnant jusque sur l'encolure! O boucles! O parfum chargé de nonchaloir! Extase! Pour peupler ce soir l'alcôve obscure Des souvenirs dormant dans cette chevelure, Je la veux agiter dans l'air comme un mouchoir! La langoureuse Asie et la brûlante Afrique, Tout un monde lointain, absent, presque défunt, Vit dans tes profondeurs, forêt aromatique! Comme d'autres esprits voguent sur la musique, Le mien, ô mon amour! nage sur ton parfum. J'irai là-bas où l'arbre et l'homme, pleins de sève, Se pâment longuement sous l'ardeur des climats; Fortes tresses, soyez la houle qui m'enlève! Tu contiens, mer d'ébène, un éblouissant rêve De voiles, de rameurs, de flammes et de mâts: Un port retentissant où mon âme peut boire A grands flots le parfum, le son et la couleur Où les vaisseaux, glissant dans l'or et dans la moire Ouvrent leurs vastes bras pour embrasser la gloire D'un ciel pur où frémit l'éternelle chaleur. Je plongerai ma tête amoureuse d'ivresse Dans ce noir océan où l'autre est enfermé; Et mon esprit subtil que le roulis caresse Saura vous retrouver, ô féconde paresse, Infinis bercements du loisir embaumé!
Cheveux bleus, pavillon de ténèbres tendues Vous me rendez l'azur du ciel immense et rond; Sur les bords duvetés de vos mèches tordues Je m'enivre ardemment des senteurs confondues De l'huile de coco, du musc et du goudron. Longtemps! toujours! ma main dans ta crinière lourde Sèmera le rubis, la perle et le saphir, Afin qu'à mon désir tu ne sois jamais sourde! N'es-tu pas l'oasis où je rêve, et la gourde Où je hume à longs traits le vin du souvenir?
Charles Baudelaire, Les Fleurs du mal
Estrela da Tarde
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia Meu amor, meu amor Minha estrela da tarde Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde Meu amor, meu amor Eu não tenho a certeza Se tu és a alegria ou se és a tristeza Meu amor, meu amor Eu não tenho a certeza Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e
beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
José Carlos Ary dos Santos
Uma voz na pedra
Não sei se respondo ou se pergunto. Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio. Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra. Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho. De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante. A minha tristeza é a da sede e a da chama. Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio. O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono. Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente. Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim. Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido. Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença. Não sou a destruição cega nem a esperança impossível. Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra. António Ramos Rosa
Abismos
Entre estes meus amigos através de cujos corações arde o horizonte e a ponte da qual o seu sorriso era um dos arcos abriram-se os abismos. Luís Miguel Nava, Rebentação
Soneto menor à chegada do verão
Eis como o vento chega de súbito, com seus potros fulvos, seus dentes miúdos, seus múltiplos, longos corredores de cal, as paredes nuas, a luz de metal, seu dardo mais puro cravado na terra, cobras que despertam no silêncio duro... Eis como o verão entra no poema. Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore
Nesta última tarde em que (te) respiro
Nesta última tarde em que respiro A justa luz que nasce das palavras E no largo horizonte se dissipa Quantos segredos únicos, precisos, E que altiva promessa fica ardendo Na ausência interminável do teu rosto. Pois não posso dizer sequer que te amei nunca Senão em cada gesto e pensamento E dentro destes vagos vãos poemas; E já todos me ensinam em linguagem simples Que somos mera fábula, obscuramente Inventada na rima de um qualquer Cantor sem voz batendo no teclado; Desta falta de tempo, sorte, e jeito, Se faz noutro futuro o nosso encontro
António Franco Alexandre
Não sei, Luís, o que está a acontecer com a máquina do mundo. A tua, etérea, elemental, fabricada que foi do saber alto e profundo e que é sem princípio e meta limitada, era cercada por Deus. A nossa, a dos meus dias, ganhou buracos negros, e Deus poderá entrar em geração espontânea. Mas a máquina que neste momento mais me preocupa não é a do mundo. É a minha. Passo o tempo no ar. Ando de Metro Voador dentro dos meus sonhos [...]. E tudo sobre o céu de Lisboa, à distância do vento e dos pedintes, da porcaria dos cães e do ar cabisbaixo e triste dos transeuntes terrenos. E eu, que nunca tive o menor senso de equilíbrio e jamais entendi o que fossem relações de massa, olho para o céu e nele vejo crescer, como cogumelos fantásticos, pilares de alabastro ou de cristal à prova de cataclismos. E discuto com o Velho a engenharia das pontes pênseis, sustidas no ar como por milagre. O Velho entusiasma-se e deixa o Metro Voador a percorrer os seus antigos mapas: - Uma obra magnífica, digna dum povo que regressa à terra, desiste do Adamastor e das Tormentas e sabe levedar em cimento, ferro e outras matérias, o sonho dos seus sonhos. Um país finalmente alevantado, orgulho em trânsito na fronte da Europa. Armando Silva Carvalho, Em Nome da Mãe
Postscriptum ... apercebo o lume dum coração antigo e simples atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter... ... aqui deixo o espólio daquele cuja vida é cintilação de lugares nítidos... (um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro) ... tenho a certeza de que se virasse o corpo do avesso ficaria tudo por recomeçar... ... mas se aqui voltares talvez encontres estes papéis escritos no recanto mais esquecido da noite... talvez descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou... ... vou destruir todas as imagens onde me reconheço e passar o resto da vida assobiando ao medo... Al Berto, O Medo
karskaya
SONETO DO CATIVO
Se é sem dúvida Amor esta explosão de tantas sensações contraditórias; a sórdida mistura das memórias, tão longe da verdade e da invenção; o espelho deformante; a profusão de frases insensatas, incensórias; a cúmplice partilha nas histórias do que outros dirão ou não dirão; se é sem dúvida Amor a cobardia de buscar nos lençois a mais sombria razão de encantamento e de desprezo; não há dúvida, Amor, que te não fujo e que, por ti, tão cego, surdo e sujo, tenho vivido eternamente preso! David Mourão Ferreira
AUSÊNCIA
Quero dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma; mas que não deixa, por isso, de deixar alguns sinais - um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos. Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto. São estas as formas do amor, podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples também podem ser complicadas, quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade. Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a realidade aproxima-me de ti, agora que os dias correm mais depressa, e as palavras ficam pressas numa refracção de instantes, quando a tua voz me chama de dentro de mim - e me faz responder-te uma coisa simples, como dizer que a tua ausência me dói. Nuno Júdice
Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São as feições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença é porque o tempo tira novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e bastam que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter amado muito, de amar menos. António Vieira, Sermão do Mandato
William Bouguereau, Jeune fille se defendant contre l'amour
So, we’ll go no more a roving I So, we’ll go no more a roving So late into the night, Though the heart be still as loving, And the moon be still as bright. II For the sword outwears its sheath, And the soul wears out the breast, And the heart must pause to breathe, And love itself have rest. III Though the night was made for loving, And the day returns too soon, Yet we’ll go no more a roving By the light of the moon. Byron
Glosa de “so we’ll go no more a roving” de Byron Não irei mais meu erro errando errante Pela noite fora Embora a lua brilhe tanto como outrora Não cesse do amor a voz uivante Que me devora Pois o coração gasta o peito E a espada gasta a bainha O tempo rói o coração desfeito E a alma é sozinha Embora a noite sempre peça amor E o dia volte demasiado cedo E o luar corte como espada nua Não irei mais em pânico e segredo Sob a luz da lua Sophia de Mello Breyner Andresen, Ilhas Glosa de “So, we’ll go no more a roving” Não mais prazer nos daremos até a noite acabar, se bem que inda nos amemos e como antes brilhe o luar.
Para o amor a noite é feita e depressa chega o dia.
A espada à bainha gasta, as almas cansam o seio.
Mas o prazer nos enjeita à luz da lua sombria.
Coração que não se afasta pode até ficar em meio.
Jorge de Sena , in Poesia de 26 séculos
Um pouco de certo modo por toda a parte há homens desmaiados ou simplesmente mortos O AMOR REDIME O MUNDO diziam eles mas onde está o mundo senão aqui?
Mário Cesariny, Pena Capital
No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dhüa austera, apagada e vil tristeza. Lusíadas, X,145
Poema Mestiço escrevo mediterrâneo na serena voz do índico sangro norte em coração do sul na praia do oriente sou areia náufraga de nenhum mundo hei-de começar mais tarde por ora sou a pegada do passo por acontecer
Mia Couto
O meu mundo tem estado à tua espera; mas não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa, nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei que um poema se escreveria entre nós dois; mas não comprei o vinho, não mudei os lençóis, não perfumei o decote do vestido. Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome (mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido); se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira – estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro com a violência de um incêndio; mas parto antes de saber como seria. Não me perguntes porque se mata o sol na lâmina dos dias e o meu mundo continua à tua espera: houve sempre coisas de esguelha nas paisagens e amores imperfeitos – Deus tem as mãos grandes
Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes
A que vens, solidão, com teu relógio de ponteiros de visgo, de bater de feltro? Ombro nenhum ao meu ombro encostado, a que vens, ó camarada solidão? Companheira, amiga, até amante, até ausente, ó solidão, te amei, como se ama o frio até o frio dar a chama que tu dás, ó solidão! A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto, que se digo o meu sim ou o meu não é só para que os outros me julguem mais um outro, é só para que um morto não tire o sono aos outros? A que vens, solidão? Vai antes possuir os que amam sem esperança e sem saber esperam, dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro o teu ombro nenhum, ó solidão!
Alexandre O'Neill, Poemas com endereço
Portugal Ó Portugal, se fosses só três sílabas. linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, surdo e miudinho, moinho a braços com um vento testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, se fosses só o sal, o sol, o sul, o ladino pardal, o manso boi coloquial, a rechinante sardinha, a desancada varina, o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos, a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, o ferrugento cão asmático das praias, o grilo engaiolado, a grila no lábio, o calendário na parede, o emblema na lapela, Ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato! Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, galo que cante a cores na minha prateleira, alvura arrendada para meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, golpe até ao osso, fome sem entretém, perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, rocim engraxado, feira cabisbaixa, meu remorso, meu remorso de todos nós... Alexandre O'Neill, Poesias Completas
Eu sei, não te conheço, mas existes ...
Eu sei, não te conheço mas existes. Por isso os deuses não existem, a solidão não existe e apenas me dói a tua ausência como uma fogueira ou um grito. Não me perguntes como mas ainda me lembro quando no outono cresceram no teu peito duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos e perfumaram depois a minha boca. Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te. Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos sobre a tua nudez como uma sombra no deserto. É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti, porque tu és o mar que acolhe os meus destroços. É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares em todas as palavras do meu canto. Tenho construído o teu nome com todas as coisas. tenho feito amor de muitas maneiras, docemente,
lentamente desesperadamente à tua procura, sempre à tua procura até me dar conta que estás em mim, que em mim devo procurar-te, e tu apenas existes porque eu existo e eu não estou só contigo mas é contigo que eu quero ficar só porque é a ti, a ti que eu amo.
Joaquim Pessoa, Os Olhos de Isa
Madrigal
Toda a manhã fui a flor impaciente por abrir. Toda a manhã fui ardor do sol no teu telhado. Toda a manhã fui ave inquieta no teu jardim. Toda a manhã fui ave ou sol ou flor secretamente ao pé de ti. Eugénio de Andrade
Que instância determina ser ou não ser razão se é uma ficção o espírito? Nada tem a marca do eterno e no entanto Gioconda sorri os girassóis de Van Gogh germinam com uma violência solar Astreia é ainda a pureza de um rosto entre duas sombras E Orfeu toca a sua lira na ausência de Eurídice perdida Nada é eterno mas o efémero pode ser o instante glorioso a salvação da invenção porque tudo é invenção contra o jugo do destino. Assim a obra nasce para consagrar o que ainda está inacabado mas que vai além da sombra espessa que há na matéria do claro dia
António Ramos Rosa, Deambulações Oblíquas
Reconhecimento à Loucura
Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo? Já. E tomar a forma dos objectos? Sim. E acender relâmpagos no pensamento? Também. E às vezes parecer ser o fim? Exactamente. Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima? Tal e qual. E depois mostrar-nos o que há-de vir muito melhor do que está? E dar-nos a cheirar uma cor que nos faz seguir viagem sem paragem nem resignação? E sentirmo-nos empurrados pelos rins na aula de descer abismos e fazer dos abismos descidas de recreio e covas de encher novidade? E de uns fazer gigantes e de outros alienados? E fazer frente ao impossível atrevidamente e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível? E quando tudo parece perfeito poder-se ir ainda mais além? E isto de desencantar vidas aos que julgam que a vida é só uma? E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo? Tu só, loucura, és capaz de transformar o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais Só tu és capaz de fazer que tenham razão tantas razões que hão-de viver juntas. Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta. Só tu tens asas para dar a quem tas vier buscar.
José de Almada Negreiros, Obras Completas
Há palavras como mulheres nuas violentamente sumptuosas Escrevê-las ou lê-las é como tocar os flancos de uma indolente lua Às vezes têm um rosto de águia e de andorinha e redondos seios de melodiosa sereia Como eu amo o seu corpo as suas maravilhosas minúcias e a sua larga ondulação unânime! As palavras e o corpo não se separam como a luz da luz não se distingue e se chamo ao púbis de uma mulher uma crespa concha de cabelos é a palavra mesma que brilha e coincidindo apaga e revela a própria coisa Por isso já não sei se estou a falar de uma palavra ou de uma mulher ou se não estou a esculpir uma flexível estátua de longas pernas robustas mas voluptuosamente delicadas Esta clara oscilação é o movimento mesmo da matéria inaugural da palavra que cria a transparência e amanhece na noite com frágeis ou duros diademas das suas sílabas solares
António Ramos Rosa, Primeira Vez
M. Todos os dias as suas águas pequenas afloram os meus olhos. E eles, que morriam de inanidade, ganham então súbitos brilhos, abrindo respiradouros para a vida. A pureza, quando não é um olhar infantil, é uma aprendizagem entre venenos subtis. Raramente se alcança, e quando isso acontece já os nossos olhos estão secos - como poderá tão melindrosa flor abrir no deserto? Por isso estas águas, por mais exíguas, me são tão preciosas.
Eugénio de Andrade, Vertentes do Olhar
VERSOS QUASE TRISTES Trago no sangue o mistério daquele resto de estrada que sem tomar nas mãos a que não andei... Glória apetecida E era talvez ali
me não contento!...
que eu ia ser feliz: - Por que é que tu és só ali
pressentimento,
que viriam as Fadas pra contar-me
minha vida?
os contos lindos das Princesas e de Palácios e de Florestas que ficaram por contar; ali que havia de abrir-se o tal jardim com flores que nunca morrem ou, se morrem, há-de ser na pujança da frescura por medo de envelhecer... Mas não passei além da curva... O meu alento já dobrou o joelho desistiu. E eu sei tão bem que há Glória que me chama e que tudo que digo aqui, ou faço, é só arremedar, adivinhar, o que, pra lá da curva que não passo, havia de fazer ou de dizer! E eu sei tão bem
Sebastião da Gama, Serra-Mãe
Se uma pausa não é fim e silêncio não é ausência, se um ramo partido não mata uma árvore, um amor que é perdido, será acabado? um ouvido que escuta uma alma que espera... -uma onda desfeita É ou já não era? Nuvem solitária, silenciosa e breve, nuvem transparente, desenho etéreo de anjo distraído... nuvem, esquecida em céu de esperança, forma irreal de sonho interrompido.. nuvem, luz e sombra, forma e movimento, fantasia breve de ânsia de infinito... nuvem que foste e já não és: desejo formulado e incompreendido. Ana Hatherly
DISCURSO AO PRÍNCIPE DE EPAMINONDAS, MANCEBO DE GRANDE FUTURO Despe-te de verdades das grandes primeiro que das pequenas das tuas antes que de quaisquer outras abre uma cova e enterra-as a teu lado primeiro as que te impuseram eras ainda imbele e não possuías mácula senão a de um nome estranho depois as que crescendo penosamente vestiste a verdade do pão a verdade das lágrimas pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela depois as que ganhaste com o teu sémen onde a manhã ergue um espelho vazio e uma criança chora entre nuvens e abismos depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato quando lhes forneceres a grande recordação que todos esperam tanto porque a esperam de ti Nada depois, só tu e o teu silêncio e veias de coral rasgando-nos os pulsos Então, meu senhor, poderemos passar pela planície nua o teu corpo com nuvens pelos ombros as minhas mãos cheias de barbas brancas Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
Mário Cesariny, Manual de
e um silêncio de morte à nossa passagem.
Prestidigitação
Oh! como se me alonga, de ano em ano, a peregrinação cansada minha! Como se encurta, e como ao fim caminha este meu breve e vão discurso humano! Vai-se gastando a idade e cresce o dano; perde-se-me um remédio, que inda tinha; se por experiência se adivinha, qualquer grande esperança é grande engano. Corro após este bem que não se alcança; no meio do caminho me falece, mil vezes caio, e perco a confiança. Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança, se os olhos ergo a ver se inda parece, da vista se me perde e da esperança.
Luís de Camões, Lírica Completa II
Fuga Aos ventos espalhei a cinza dos meus gestos. Num desprezo de mim, fiz-me poeta, traí os meus sonhos, enchendo vãos papéis de traços sem sentido e talvez falsos. Fui poeta como alguns se suicidam, como outros partem sem destino certo. Sonhei-me longe de tudo o que possuo - longe de mim, longe de quem?afastado, sem contas a prestar... Foi longo o meu engano. Agora vejo que nunca de mim eu me afastei... Adolfo Casais Monteiro, Confusão
SEGREDO DE TI Tenho segredo de ti meu amor de meu invento
convento onde te fecho com o meu corpo lá dentro
Tenho segredo de ti onde me prendo e me deito
e onde te roubo as mãos para as pôr sobre o meu peito
Maria Teresa Horta, Minha senhora de mim
S.O.S. O mundo inteiro está sozinho. Cada pessoa vive isolada no meio das multidões. As multidões são formadas por indivíduos, por numerosíssimos indivíduos separados uns dos outros. As palavras caem perdidas no chão. Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus indivíduos. O mundo inteiro está dividido em tantos mundozinhos individuais, pequeníssimos microscópicos, quantos são os seus habitantes. Mas aquele mundo da colaboração de todos, o único real afinal de contas, esse já não existe. Veio cada qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito em migalhas, reduzido a grãos de areia, pó, nada! Vós, indivíduos das cidades, e dos campos, vós indivíduos de todas as partes e que fazeis parte de todas as multidões, respondei todos um por um: Com quem comunicas tu? Não te perguntamos com quem tratas todos os dias, nem com quem falas, nem com quem vives, nem com quem dormes. Perguntamos-te unicamente:
com quem te entendes? Com ninguém! Estás tão sozinho no meio de toda a gente ou ainda mais do que se não houvesse no mundo mais ninguém do que tu. [...] S.O.S. perdidos, desencontrados, sozinhos! S.O.S. estamos todos desencontrados, estamos todos sozinhos, perdidos todos! S.O.S. sozinhos! S.O.S. desencontrados! S.O.S. perdidos! S.O.S.! sós! S.O.S. S.O.S é o sinal internacional de telegrafia a pedir socorro. Está formado pelas três letras iniciais da frase inglesa: «Save Our Souls», que quer dizer em português: «Salvai Nossas Almas». Estas três letras S.O.S. são as mesmas com que se escreve em português o plural do indivíduo isolado: Sós. Almada Negreiros,, Obras Completas
esta esquisita prova me tentou de tecer um rumor em muros de água ossos de terra calcinada o jugo culpado me castigo com engenho e da voz desenhada o artifício restos de pele antiga no laço da armadilha em silêncio me muro e me demoro no cálculo de rotas inexactas um duro arbítrio quer que me desprenda dos cinco ou mais sentidos vou ser livre na terra desnudada vou dizer o que sei como quem mente. António Franco Alexandre, A Pequena Face
Olho os livros - e de súbito os livros multiplicam-se desde o chão até ao tecto. Paredes imensas, corredores infindáveis compactos de livros, e as caves, e as escadarias interiores, depósitos de infólios no sótão, a cerimónia findou, estou eu só na Biblioteca Geral. Fecharam os portões, ninguém, todo o grande edifício deserto. Passo pelos longos corredores, de cima a baixo os livros nos seus túmulos. São milénios de balbúrdia, tagarelice infindável, [...] interminável algazarra através das eras - estão imóveis nos seus túmulos irrisórios. Passo ao longo dos corredores, ecoam pelo tecto os meus passos claros no mosaico - silêncio. É a hora grave do fim [...] Vergílio Ferreira, Para Sempre
Arcimboldo
Meditação Tudo imaterial na praia rasa Cheia de sol, ao fim da tarde, Proa ao vento quebrada A vaga entre rochedos, se ilumina. É tudo imaterial, tudo neblina Ténue que aos poucos arde, Ao fim da tarde se desfaz, flutua, E voo de ave deslisa Ao longe linha pura. Tudo imaterial na praia rasa. Aqui ninguém me vê: amo a ternura. Ruy Cinatti, O Livro do Nómada Meu Amigo
Mas que sei eu das folhas no outono ao vento vorazmente arremessadas quando eu passo pelas madrugadas tal qual passaria qualquer dono? Eu sei que é vão o vento e lento o sono e acabam coisas mal principiadas no ínvio precipício das geadas que pressinto no meu fundo abandono Nenhum súbito súbdito lamenta a dor de assim passar que me atormenta e me ergue no ar como outra folha qualquer. Mas eu que sei destas manhãs? As coisas vêm vão e são tão vãs como este olhar que ignoro que me olha.
Ruy Belo, Todos os poemas
APONTAMENTOS ÍNTIMOS Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore e até flor, eu sintome vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço. * Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos. a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a diversificação do indivíduo dentro de si mesmo. O bom português é várias pessoas. b) a predominância da emoção sobre a paixão. Somos ternos e pouco intensos, ao contrário dos
espanhóis – nossos absolutos contrários –, que são apaixonados e frios. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quanto mais haja havidos ou por haver. Fernando Pessoa
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como lugares mal situados Homens que são como casas saqueadas Como são como sítios fora dos mapas Como pedras fora do chão Como crianças órfãs Homens sem fuso horário Homens agitados sem bússola onde repousem Homens que são como fronteiras invadidas Que são como caminhos barricados Homens que querem passar pelos atalhos sufocados Homens sulfatados por todos os destinos Desempregados das suas vidas Homens que são como a negação das estratégias Que são como os esconderijos dos contrabandistas Homens encarcerados abrindo-se com facas Homens que são como danos irreparáveis Homens que são sobreviventes vivos Homens que são como sítios desviados Do lugar Homens que são como projectos de casas Em suas varandas inclinadas para o mundo Homens nas varandas voltados para a velhice Muito danificados pelas intempéries
Homens cheios de vasilhas esperando a chuva Parados à espera De um companheiro possível para o diálogo interior Homens muito voltados para um modo de ver Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro De si mesmo Homens tão impreparados tão desprevenidos Para se receber Homens à chuva com as mãos nos olhos Imaginando relâmpagos Homens abrindo lume Para enxaguar o rosto para fechar os olhos Tão impreparados tão desprevenidos Tão confusos à espera de um sistema solar Onde seja possível uma sombra maior Daniel Faria, Homens que são como Lugares Mal Situados
Imobilizar as coisas, as pessoas, os momentos, arrancar-lhes um a um todos os véus, depois olhá-los bem, longamente, saciar-se deles até os olhos ficarem doridos e as pálpebras descerem de cansadas. Olhá-los assim para ter coragem. Observar com atenção tudo aquilo que deixa, tudo, bem de frente, por uma vez, sem receio, e verificar que não tem pena de se ir embora. Não fugir, não se escapar pelas ruas transversais, não se esconder na primeira porta aberta. Não sonhar. Sobretudo não sonhar. [...] de súbito, não sabe porquê, os sonhos tornam-se insuficientes. Agora há sempre uma larga margem de angústia branca, que se lhe enrola ao peito como uma serpente, que o aperta, que lhe corta a respiração e que faz doer. E já não só peito, é todo ele que é apertado, comprimido, por múltiplos, invisíveis anéis. Maria Judite de Carvalho, Paisagem sem Barcos
Recusa
Não terás para me dar quotidiano contigo abrigo corpo despido Nem terás para me dar a segurança do perigo mais do que o gesto ocupado o afago o desmentido Não terás para me dar o espanto de estar contigo. Maria Teresa Horta
Creio Creio nos anjos que andam pelo mundo, Creio na Deusa com olhos de diamante, Creio em amores lunares com piano ao fundo, Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, Creio num engenho que falta mais fecundo De harmonizar as partes dissonantes, Creio que tudo é eterno num segundo, Creio num céu futuro que houve dantes, Creio nos deuses de um astral mais puro, Na flor humilde que se encosta ao muro, Creio na carne que enfeitiça o além, Creio no incrível, nas coisas assombrosas, Na ocupação do mundo pelas rosas, Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen. Natália Correia, Sonetos Românticos
No sonho não há asperezas, nem contrariedades – o
[…]
sonho é como um rio imenso que corre e transborda.
Além disso, o ser que se
Não se lhe opõem diques: não há força que lhe
habitua
resista. A realidade é cheia de intransigências
constantemente de sonho: é
mesquinhas, de ásperos ângulos, de mínimos e
como uma fornalha acesa: não
resistentes pormenores.
há carvão que lhe chegue: a
a
sonhar,
precisa
mina, ao fim de tempo, passa […] inteira pelo metro quadrado Cada ser tem a sua atmosfera própria, cada criatura
duma fornalha…
vive rodeada duma auréola de sonho. Todas as almas segregam sonho, como todas as flores exalam perfume. É uma irradiação. […] Morre um sonho – outro nasce. Para o construir basta um simples nada – mas sem essa atmosfera é que ninguém pode viver. É muitas vezes feita de penas, de gritos – mas tão indispensável como o pão de cada dia. Há homens que arrastam mantos impalpáveis, esplêndidos – noutros o sonho reduzse, apaga-se, mas existe sempre, até nas almas rudimentares. Constitui, apesar de não entrarmos com ele em linha de conta, quase toda a nossa vida. Há atmosferas dessas que se ligam – nasce a simpatia; outras que se repelem – vem o ódio. A verdadeira existência, a que mais nos custa a deixar, é essa que nos parece quimérica. É até, se me não engano, a única que existe. Às vezes morre, dilui-se: a alma já não exala sonho e o corpo continua a viver – mas em verdade vos digo que o homem a quem isto suceda não passa dum cadáver.
Raul Brandão, A Farsa
Através da cela ouve tropel de cavalos e alarido de muito povo, a entrecortar um sussurro distante, confuso, de música e tiros e vozes... É a Feira. Gineto anima-se, crente de que os companheiros virão buscá-lo neste dia de festa, trazendo Rosete com eles. Encosta a face às grades, espera o regresso à vida livre. Uma voz canta, mesmo por baixo da janela, uma canção que ele ouviu, certa tarde, no alto do mirante. E então grita: -
Gaitinhas!
Tou
aqui,
Gaitinhas!
Mas a voz afasta-se. Gaitinhas-cantor vai com o Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais - moços que parecem homens e nunca foram meninos. Soeiro Pereira Gomes, Esteiros
Cantiga Entre tamanhas mudanças, Que coisa terei segura? Duvidosas esperanças Tão certa desaventura. Venham estes desenganos Do meu longo engano, e vão, Que já o tempo e os anos Outros cuidam que me dão. Já não sou para mudanças, Mais quero uma dor segura. Vá crê-las, vãs esperanças, Quem não sabe o qu'aventura. Bernardim Ribeiro
ALEXANDRÍNICOS DILEMAS E fico neste estado catatónico, telegráfico, estúpido, lacónico, quando te vejo ou ouço a tua voz. Bem queria que passasse este registo, que, se é para ser isto sem ter isto, melhor que te tomar é tomar pós de frutos, contra enjoos, suculentos, bons para a pele, na alma como unguentos ou band-aids em chuva autocolante. Mas em qualquer dos casos, o que resta é: não te veja, ou veja (em curta festa): a saudade: submersa e naufragante. Não te posso ouvir mais, digo três vezes, e com muito fervor e muitas preces, como se esconjurasse Satanás. Depois, uma palavra, um leve traço, um minúsculo gesto abrindo o espaço e, mesmo que não estejas, aqui estás. E sentas-te a meu lado na cadeira. Ninguém te vê: só eu. A curva inteira do pescoço, dos ombros, ou da mão. Toco-te levemente e o vizinho na mesa ao lado, espreita-me, de mansinho, pensando que perdi toda a razão. E devo ter perdido, se o real me parece uma coisa desigual,
um band-aid barato, a descolar. E a única coisa mais parecida com o ser realmente é uma vida que não posso, nem devo, acarinhar. E até essa palavra lembra ti, e a fractura começa por aí, numa sintaxe que não sei rimar: Não te posso ver mais. Não, não e não! (E sai-me o verso assim, como vulcão limitado a explodir dentro do mar). E agora, o quê? Pergunto-me, interrogo-me, faço das linhas coração. E chovo-me: miríade em band-aids, tão veloz: é que fico na mesma catatónica, telegráfica, estúpida, lacónica, se torno em verso, e minha, a tua voz. Ana Luísa Amaral
Mãe! Mãe! dói-me o peito. Bati com o peito contra a estátua que tem em cima o verbo ganhar. Ainda não sei como foi. Eu ia tão contente! eu ia a pensar em ti e no verbo ganhar. Estava tudo a ser tão fácil! Já estava a imaginar a tua alegria quando eu voltasse a casa com o verbo saber e o verbo ganhar, um em cada mão! Dói-me muito o peito, Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro
O
Imperador
baixou
mais
a
voz:
- As coisas são como são, Lúcio Quíncio. Suporta-as e abstém-te da indignação. Não se pode impor a cada cidadão um filósofo a seguir-lhe os passos. E, sendo, pelo que sei, um jovem promissor da tua cidade, nunca demonstres, por actos ou omissões, que estás longe do sentir do povo. Poderias romper um equilíbrio fixado na ordem natural das coisas, em que as tuas convicções interviriam como mero capricho pessoal, alheio e perturbador. Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde
Adeus Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro! Era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava! Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, no tempo em que o teu corpo era um aquário, no tempo em que os teus olhos eram peixes verdes. Hoje são apenas os teus olhos. É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor... já não se passa absolutamente nada. E, no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos nada que dar. Dentro de ti Não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus. Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro
YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos a morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição Entre nós e as palavras, surdamente, as mãos e as paredes de Elsenor E há palavras nocturnas palavras gemidos palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever por não termos connosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo
do ar e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmos só amor só solidão desfeita Entre nós e as palavras, os emparedados e entre nós e as palavras, o nosso dever falar Mário Cesariny, Pena Capital
ACONTECEU-ME
Eu vinha de comprar fósforos e uns olhos de mulher feita olhos de menos idade que a sua não deixavam acender-me o cigarro. Eu era eureka para aqueles olhos. Entre mim e ela passava gente como se não passasse e ela não podia ficar parada nem eu vê-la sumir-se. Retive a sua silhueta para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado. E eu tenho visto olhos! Mas nenhuns que me vissem nenhuns para quem eu fosse um achado existir para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia olhos como agulhas de despertar como íman de atrair-me vivo olhos para mim! Quanto havia mais luz a luz tornava-me quase real o seu corpo e apagavam-se-me os seus olhos o mistério suspenso por um cabelo pelo hábito deste real injusto tinha de pôr mais distância entre ela e mim para acender outra vez aqueles olhos que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que não fossem, que importa? Vi o mistério! Obrigado a ti mulher que não conheço. Almada Negreiros
Estamos agora em paz sabendo simular o esquecimento sentados com os olhos no vento lá de fora atirado para antes de nós as mãos caídas nos joelhos mas nada suplicantes só esvaídas conformados com não nos conformarmos resignados a esperando não esperarmos como se tudo fosse um imenso tanto faz Mário Dionísio, Terceira Idade
Então eu mais-vi: toalha de gente sobre altar-mor
mandavam ter. O esquecido
face a sacrário: Carmo, o com e sem ruínas,
que vai em nós todos da
bebedoiro e muralhas linhas de céu que nem talha
evitada
onde apontarem baterias-velas pretas enristadas. As
Carmo em missa roxa.
transmutação
do
árvores: cheias de corpos com cabeças tão viventes Maria Velho da Costa, Missa lamparinas: o cabelo de minha mulher também in Albis arborescia: tanta sarça ardendo nessa espera então tudo. […] Se isto esturra vai ser uma contusão dos fiéis que nem maremoto do Cisma. […] Ah, Maria S., ali no Largo que hoje me parece mais estreito como se olhos me fossem nele ameninados das Zeiss e loucas moções, estava orando a gente um poderem-Ser. […] Tal como em Missa havia um não saber de ires e vires e flexões e genuflexões, braços ao alto do puto tropa em Kyries de eu a ver: a cara aflita a dizer ao oficiante longe a eucaristia bronca: sangue e esquírolas pelo templo ao léu, holocausto campal se desse para o torto. Oficiante de dentro, GNR sacrista de emperrado sacrário, fazia que vinha e que não vinha. Cara via-se bem borrada de nec plus ultra. Eu lia na boca do salgueiro, Maia que esse depois foi: a porra, pá. E na cara dele à escuta os berros do bispo recém que o havia de estar a atazanar da cripta daquela Roma: […]«Afinfa-lhes, pá, ou pensas que é só o Carmo que está em jogo. Vai». E ele foi […] Ah, grande celebrante que lá havia de estar tão oculto em câmara escura quanto estes que custavam a ir ao Brasil de torna-viagem, sem terem feito violência nenhumíssima ou terror, excepto o que
A minha solidão
A minha solidão não é uma invenção para enfeitar noites estreladas… … Mas este querer arrancar a própria sombra do chão e ir com ela pelas ruas de mãos dadas. … Mas este sufocar entre coisas mortas e pedras de frio onde nem sequer há portas para o Calafrio. … Mas este rir-me de repente no poço das noites amarelas… - única chama consciente com boca nas estrelas. … Mas este eterno Só-Um (mesmo quando me queima a pele o teu suor) - sem carne em comum com o mundo em redor. … Mas este haver entre mim e a vida sempre uma sombra que me impede de gozar na boca ressequida o sabor da própria sede.
… Mas este sonho indeciso de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso o mesmo chão do pobre e do vagabundo. … Mas este saber que tudo me repele no vento vestido de areia… e até, quando a toco, a própria pele me parece alheia… Não. A minha solidão Não é uma invenção Para enfeitar o céu estrelado… … mas este deitar-me de súbito a chorar no chão e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado. José Gomes Ferreira, Poesia III
Ainda é grande o silêncio que temos dentro. Levamos a sua lenta abóbada de tempo cumprindo as estações e a rotação dos anos. Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo a uma astral experiência. Vamos adquirindo essa tez translúcida dos velhos que sabe à estrutura dos planaltos. E, um dia, iluminados, entraremos pelo portão sagrado, como quem deu por si em pensamento, com todo o seu silêncio iluminando. Fernando Echevarría, Figuras
"flor do frangipani"
Tudo sempre se passou aqui, nesta varanda, por baixo desta árvore, a árvore do frangipani. Minha vida se embebeu do perfume de suas flores brancas, de coração amarelo. Agora não cheira a nada, agora não é tempo das flores. O senhor é negro, inspector. Não pode entender como sempre amei essas árvores. É que aqui, na vossa terra, não há outras árvores que fiquem sem folhas. Só esta fica despida, faz conta está para chegar um Inverno. Quando vim para África, deixei de sentir o Outono. Era como se o tempo não andasse, como se fosse sempre a mesma estação. Só o frangipani me devolvia esse sentimento do passar do tempo. Não que eu hoje precise de sentir nenhuma passagem dos dias. Mas o perfume desta varanda me cura nostalgias dos tempos que vivi em Moçambique. E que tempos foram esses! Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma. Mia Couto, A Varanda do Frangipani
E o espaço fica - ah fica - e ninguém ousa mais que espreitar a medo para dentro dele pelas grades de um verso em que palpita a vida, tão pura e tão ausente como quando um dia primeiro ela vibrou num cheiro de maresia, ascendendo das águas, luminosa, num corpo ainda escamoso cuja pele seria este sabor de espaço e de ternura em solidão perfeita descobrindo o amor. Jorge de Sena, Conheço o sal
Cais Nunca parti deste cais e tenho o mundo na mão! Para mim nunca é demais responder sim cinquenta vezes a cada não. Por cada barco que me negou cinquenta partem por mim e o mar é plano e o céu azul sempre que vou! Mundo pequeno para quem ficou... Manuel Lopes
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico... Esta espécie de alma... Só depois de amanhã... Hoje quero preparar-me, Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Depois de amanhã serei outro, A minha vida triunfar-se-á, Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Serão convocadas por um edital... Mas por um edital de amanhã... Hoje quero dormir, redigirei amanhã... Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância? Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo... Antes, não... Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. Só depois de amanhã... Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã... O porvir... Sim, o porvir...
Fernando Pessoa
O ESTATUÁRIO
Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, - primeiro, membro a membro, e depois feição por feição, até à mais miúda; ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasgalhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estendelhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar. Padre António Vieira, Sermão do Espírito Santo
Saberás que não te amo e que te amo pois que de dois modos é a vida, a palavra é uma asa do silêncio, o fogo tem sua metade de frio. Eu amo-te para começar a amar-te, para recomeçar o infinito e não deixar de amar-te nunca: por isso é que ainda te não amo. Amo-te e não amo como se tivesse nas minhas mãos as chaves da fortuna e um incerto destino infortunado. Este amor tem duas vidas para amar-te. Por isso amo-te quando não te amo e por isso amo-te quando te amo. Pablo Neruda, Antologia Breve
L'Angélus de Millet
Recolhidos os camponeses de Millet olham a terra, quando o céu, às Trindades, os convoca. Forquilha, cesto, carro, homem, mulher - já tão longe na história! Alexandre O'Neill, Poesias Completas
Jean François Millet
OS ÚLTIMOS MORTOS DA PIDE Ainda é grande o silêncio que temos dentro. Levamos a sua lenta abóbada de tempo cumprindo as estações e a rotação dos anos. Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo a uma astral experiência. Vamos adquirindo essa tez translúcida dos velhos que sabe à estrutura dos planaltos. E, um dia, iluminados, entraremos pelo portão sagrado, como quem deu por si em pensamento, com todo o seu silêncio iluminando.
Fernando Echevarría, Figuras
Do meio dos telhados donde gatinhava o regime que fora de salões e enxovias bolçava contra a rebentação da cidade a pedrada de tiros do rancor acossado. A biltre obediência das inquirições, das negaças, dos traços toldados, dos pátios chulos onde grimpavam torturas como hera de sangue pelas mãos caladas, ia ainda metralhar à queima-roupa. Sobre ti, sobre o outro além, sobre a alegria de todos. A sanha era qualquer um: matavam esses últimos sinais do que tínhamos sido Saíam em braços anónimos do erro nocturno para a claridade que ninguém ainda conhecia. Joaquim Manuel Magalhães
Como açucena, abre-se o teu rosto por sobre a doce, tímida paisagem Daniel Filipe
O GRITO: VARIAÇÕES O caderno onde escrevo trouxe-mo a minha filha de viagem. Tem «O Grito» de Munch sobre o corpo. Sinuoso e disforme, auto-retrato raso, a boca em verde, as mãos acompanhando a curva da cabeça, e o resto em disjunção — como esse céu. As cores serão de pouco mais de século, foram nórdicos dedos a compô-las. Mas há nessas figuras ao fundo de uma estrada, de uma ponte (divisão de harmonia e desconforto, de um azul escuro a encostar-se ao negro), uma implosão comum. É uma ponte, tem que ser uma ponte o que se vê, e o caos que se desenha nesse rosto não deve estar atrás, mas no que está à frente, no caminho. Qualquer futuro, invisível daqui. E há os pequenos barcos, perigosamente em centro indefinível. Redemoinho? Sol? Seja o que for, reflecte, parcialmente, um amarelo quente, ameaça de um astro que se põe. Ou de um meio-dia atravessado a ventos ondulantes. Podia-se (inviamente) inverter o caderno, ver em diagonal. Mas seria uma imagem semelhante à do caderno inteiro. Mesmo que do avesso, havia de
falar a mesma dor. Curvo e sinusoidal, o mesmo espaço. Só a cerca castanha, precipitada no abismo verde, é breve protecção. Ela, e a mão que, de viagem, me trouxe este caderno. Um pouco ainda, também, as suas folhas, que, por enquanto (e quase todas), brancas, lhe são um forro quase mudo. Quase —
Ana Luísa Amaral
Tarde de mais
Quando chegaste enfim, para te ver Abriu-se a noite em mágico luar; E p’ra o som de teus passos conhecer Pôs-se o silêncio, em volta, a escapar... Chegaste, enfim! Milagre de endoidar! Viu-se nessa hora o que não pode ser: Em plena noite, a noite iluminar E as pedras do caminho florescer! Beijando a areia d’oiro dos desertos Procura-te em vão! Braços abertos, Pés nus, olhos a rir, a boca em flor! E há cem anos que eu era nova e linda!... E a minha boca morta grita ainda: Por que chegaste tarde, ó meu amor?!... Florbela Espanca, Livro de Soror Saudade
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles, Poesia
Picasso
Azagaia, Árvore, Sombra Há objectos que perseguem a nossa infância, depois, vida fora, esquecem-se os seus mágicos nomes, a sonhada utilidade que os anima. Poderíamos pressenti-los dentro de nós, e isso sucede, por instantes, quando o fundo que os obscurece se ilumina de repente e os distinguimos a contra-luz. Silhuetas animam-se na memória. Uma breve, quase acessória, viagem no tempo começa. Em África, na casa onde nasci, e depois de casa em casa - eram frequentes as mudanças – o meu pai pendurava uma azagaia na parede. Sempre a mesma azagaia. Era um objecto nobre. marcava um hábito guerreiro: imaginar que a sustinha sobre a cabeça, que a arremessava longe, trespassando a sombra da árvore que se erguia no quintal. trespassava a sombra e não a árvore, repare-se. E então a sombra, sob o sortilégio do imaginado arremesso,
começava a retrair-se e a afilar-se. Desaparecia. Com o desaparecimento da sombra ficava apenas a árvore e a longa azagaia presa ao solo. A sombra de uma árvore visita-me agora. Vem nos meus sonhos recentes dizer-me que há um livro nos sonhos, e que esse livro se escreve com a linguagem crepuscular da memória. Sei que se trata de uma sombra órfã. Que se soltou das contingências de lugar e luz para viajar no eterno. Sei agora que a substância da árvore se aliou à substância da azagaia. Que ambas vibraram, continuam a vibrar, juntas. Luís Quintais, A Imprecisa Melancolia, Teorema, 1995.
"PROFISSÃO: POETA"
Um dia foi a minha vez de ir a Paris. Foi necessário um passaporte. Pediram a minha profissão. Fiquei atrapalhado! Pensei um pouco para responder verdade e disse a verdade: Poeta! Não aceitaram. Também pediram o meu estado. Fiquei atrapalhado. Pensei um pouco para responder verdade e disse a verdade: Menino! Também não aceitaram. E para ter passaporte tive de dizer o que era necessário para ter o passaporte, isto é – uma profissão que houvesse e um estado que houvesse! Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro
Sísifo Recomeça... Se puderes, Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro, Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade. E, nunca saciado, Vai colhendo Ilusões sucessivas no pomar E vendo Acordado, O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças. Miguel Torga, Diário XIII
Baixo-relevo em pedra
Ítaca Quando partires de regresso a Ítaca deves orar por uma viagem longa, plena de aventuras e de experiências. Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, um Poseidon irado – não os temas, jamais encontrarás tais coisas no caminho, se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime teu corpo toca e o espírito te habita. Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Poseídon em fúria – nunca encontrarás, se não é na tua alma que os transportes ou ela os não erguer perante ti. Deves orar por uma viagem longa. Que sejam muitas as manhãs de Verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos! Em colónias fenícias deverás deter-te para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola, âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie: compra desses perfumes quanto possas E vai ver as cidades do Egipto, para aprenderes com os que sabem muito. Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos, que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho, e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca. Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas (versão de Jorge de Sena)
exercício espiritual
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia é preciso dizer azul em vez de dizer pantera é preciso dizer febre em vez de dizer inocência é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora Mário Cesariny de Vasconcelos, manual de prestidigitação
Meu aceso lume Colheste as flores da tua chama apagaste devagar os teus sentidos sossegaste o corpo em sua cama desguarneceste em mim os teus motivos Que a vela acesa corte a madrugada e lhe desdiga a calma e a palavra Colheste devagar o meu queixume: Ó meu amor! Ó meu aceso lume! Maria Teresa Horta
SONETO DA FIDELIDADE
De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Que vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei-de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Vinícius de Moraes
Chagall
por todos os lados, basta uma explosão aqui perto para ele desabar. Nada, não deixa nada
"Fala, Yaka!"
atrás dele. A sociedade será A estátua yaka olhava para ele, muda. Os olhos outra nesta terra, nem vestígios transparentes fitavam o velho e ele sentiu a falta de registará ar
que
o
acompanhava
há
na
História.
A
tempos. História guarda os feitos de
- Fala, Yaka – disse com muita dificuldade. heróis,
na
medida
que
O segundo obus cortou o céu límpido e parecia mais interessam às forças vitoriosas próximo do sapalalo. O pó amarelo saiu em maior da época. Não são os seus quantidade das paredes de cima. Um pouco dele veio vestígios que a nova sociedade docemente pousar sobre o quintal. A explosão vai querer na História. Um também pareceu mais perto. Eles avançavam, colono a mais. Para esquecer. pensou
o
velho,
e
a
estátua
não
fala. A culpa foi minha? Tinha sido
É o fim, pensou ele, já sem forças para o dizer em apenas o mexilhão da estória, voz alta. Devo fazer o balanço da minha vida. Faz-se uma bimba que se afogou sempre um balanço no fim, não é? Não falo, mas sei porque duas vagas chocaram que me estás a perceber, Yaka. No fim dum ano, exactamente dum
amor,
dum
negócio,
duma
guerra:
sobre
ela.
a Olhou para a estátua yaka, sem
contabilidade dos ganhos e perdas. Só tenho que falar,
enquanto
a
cidade
fazer a das perdas. Uma família a que dei origem, estremecia sob as explosões hoje espalhada pelo mundo. Só Joel e Chico sucessivas que a abalavam. O sobraram. E Joel talvez agora já esteja morto, sem ar lhe faltava e deixou-se sepultura. É importante estar sem sepultura? deslizar para o chão. Encostou Gostaria de levar a enterrar esse menino que a face na terra húmida e descobri no fim da vida. E fui egoísta, e ia dizer-lho, contemplou a estátua de lado, a quando me alegrei que fosse lutar. Ia fazer o que boca aberta para sorver o ar nunca fui capaz de fazer, ele ia redimir-me. É que já mal conseguia entrar sempre assim, descobre-se demasiado tarde. Não nela. deixará traço no mundo. Nem o sapalalo. Não foi ele que o construiu, mas deixei-o apodrecer, já sai pó
Pepetela, Yaka
"cansaço" O que há em mim é sobretudo cansaço Não d'isto ou daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: cansaço assim mesmo, ele mesmo, cansaço Álvaro de Campos
Tarde A tarde trabalhava sem rumor no âmbito feliz das suas nuvens, conjugava cintilações e frémitos, rimava as ténues vibrações do mundo, quando vi o poema organizado nas alturas reflectir-se aqui, em ritmos, desenhos, estruturas duma sintaxe que produz coisas aéreas como o vento e a luz. Carlos de Oliveira
O menino que escrevia versos De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei? (Versos do menino que fazia versos) Mia Couto, O fio das Missangas, (contos)
Ai que sábados mais profundos! É curioso este planeta com tanta gente em movimento: ondas de pernas nos hotéis, urgentes motociclistas, carris que vão prá beira-mar e quantas raparigas imóveis raptadas pelas rodas rápidas. Todas as semanas terminam em homens, mulheres e areia, e temos de correr, não perder nada, vencer colinas tão inúteis, mastigar música insolúvel, voltar cansados ao cimento. Eu bebo por todos os sábados sem me esquecer do prisioneiro atrás das paredes cruéis: os dias dele não têm nome e este rumor que passa e corre vai-o cercando como o oceano sem descobrir qual é a onda, a onda do húmido sábado. Ai que sábados irritantes armados de bocas e pernas, desenfreadas, sempre a correr, bebendo mais do que é a conta: Pablo Neruda, Antologia não protestemos contra o bulício Breve que não quer andar connosco.
“duas pessoas” -Sabem quantas pessoas tem havido desde o princípio do mundo até hoje? - Duas. Desde o princípio do mundo até hoje, não houve mais do que duas pessoas: uma chama-se a humanidade e a outra o indivíduo. Uma é toda a gente e a outra uma pessoa só. Um dia perguntaram a Demócrito como tinha chegado a saber tantas coisas. Respondeu: Perguntei tudo a toda a gente. Bastantes séculos mais tarde, Goethe confessou por sua própria boca que «se lhe tirassem tudo quanto pertencia aos outros, ficava com muito pouco ou nada». Por aqui se vê que cada um é o resultado de toda a gente; o que de maneira nenhuma quererá dizer que seja o bastante ter cada qual conhecido toda a gente para que resulte imediatamente um Demócrito ou um Goethe! Precisamente o difícil não é chegar aos Grandes, mas a si próprio!... Ser o próprio é uma arte onde existe toda a gente e em que raros assinaram a obra-prima. O que está fora de dúvida é que cada um deve ser como toda a gente, mas de maneira que a humanidade tenha efectivamente um belo representante em cada um de Nós. Almada Negreiros, Obras Completas
Mentira A Mentira é a recriação de uma Verdade. O mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas ténues e delicadas. Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. O que não quer dizer que o jogo resulte sempre. Resulte seja o que for ou do que for. A Ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso. Pelo menos ainda. Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da noção de tempo ou duração ou extensão. A aceleração do tempo pode traduzir-se pela imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se por um máximo de aceleração ou um mínimo de extensão: aceleração tão grande que já não se veja o movimento ou o espaço ou a duração. Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém.
Ana Hatherly
A GÉNESE DO AMOR
Talvez um intervalo cósmico a povoar, sem querer, a vida: talvez quasar que a inundou de luz, retransformou em matéria tão densa que a cindiu, a reteve, suspensa, pelo espaço — Eram formas cadentes como estas: Imagens como abóbadas de céu, de espanto igual ao espanto em que nasceram as primeiras perguntas sobre os deuses, o zero, o universo, a solidez da terra, redonda e luminosa, esperando Adamastores que a domestiquem, ou fogos-fátuos incendiando olhares, ou marinheiros cegos, ávidos de luz, da linha que, em compasso, divide céu e mar Quasar é pouco, porque a palavra rasa o que a pele descobriu. E a pele também não chega: pequeno meteoro em implosão
Estátua em lume, talvez, à espera, a paz (ainda que haja ausente crença ou fé), e, profano, o desenho desses estranhos bichos, semi-monges, malditos, deslumbrados, e uma visão, talvez, na penumbra serena de algum claustro Talvez assim tivesse algum sentido a génese do amor
Ana Luísa Amaral
Poeta o que é?
Poeta o que é? Um homem que leva o facho da treva no fundo da mina - mas apenas vê o que não ilumina.
José Gomes Ferreira, Poeta Militante
Chagall, the poet with the birds
"senhor doutor..."
antecipam,
pré-falecidos.
moribundo
O
insulta-nos?
Perdoamos, com certeza. […] eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Arranja
lá
uma
maneira,
Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não senhor doutor. Desarasca lá sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam uma
maneira
de
eu
ficar
minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas moribundo,
submorto.
parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando Afinal, estou aqui na prisão conto a minha história me misturo, mulato não das porque me destinei prisioneiro. raças, mas de existências. Nada, não foi ninguém que A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei
queixou. Farto de mim, me
uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe
denunciei.
quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar.
mesmo.
Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo do
cansaço do tempo que não
corpo?
vinha. Posso esperar, nunca
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a
consigo nada. O futuro quando
minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia.
chega não me encontra. Onde
Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal
estou, afinal eu?
Entreguei-me Devido,
talvez,
eu o
para me defender. Enquanto nem me conhece. O Mia Couto, Vozes anoitecidas meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto, mas já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou aqui preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco. Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir de mim? Explico: os moribundos tudo são permitidos. Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles
A pequena angústia
Mais perto de mim são as estrelas neste jardim, do que os homens sentados a meu lado. As estrelas brilham. Os homens falam lá entre eles. Não escutam o silêncio os homens que falam neste jardim. As estrelas falam perto de mim. Ruy Cinatti.
Cansa sentir quando se pensa. No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar. Neste momento insone e triste Em que não sei quem hei-de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer. Tudo isto me parece tudo. E é uma noite a ter um fim Um negro astral silêncio surdo E não poder viver assim. (Tudo isto me parece tudo. Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo – Ah, nada é isto, nada é assim!)
Fernando Pessoa
Terra Nha Chica, conte-me
cobrindo os montes
aquela história
cobrindo as várzeas…
de meus irmãos Ah! Anos fartos! hoje perdidos no mundo grande…
Milho, feijão, pilão cochindo,
Nha Chica, eu sei:
fumo no ar,
anos de seca,
riso nos lábios,
gentes morrendo,
grog, cigarros,
casa sem telhas,
batuques, bailes
de porta em porta
e casamentos…
olhos crescendo
Olho estes campos,
barriga inchando,
olho estes mares,
um dia tombam
e sinto a vida
de olhos vidrados
prendida à terra,
por qualquer canto…
feita de sonhos que um dia esvaem-se
Lisboa, América,
- mas surgem sempre…
Dacar ou Rio: - dentro de nós surge esta ideia partir!, partir! Resignados, os que ficaram ficam esperando que as nuvens toldem que a chuva caia que o chão fecunde
António Nunes
Belerofonte Quem disse alguma vez que há deuses lá nos céus? Não há, não há, não há. Não deixem que ninguém, mesmo crente sincero nessas velhas fábulas, com eles vos engane e vos iluda ainda, Olhai o que acontece, e dai a quanto digo a fé que isto merece: eu afirmo que os reis matam, roubam, saqueiam à traição cidades e, assim fazendo, vivem muito mais felizes que quantos dia a dia pios são e justos. Quantas nações pequenas, bem fiéis aos deuses, sujeitas são dos ímpios com poder e força, vencidas por exércitos que as escravizam. E vós, se em vez de trabalhar rezais aos deuses, e deixais de lutar para ganhar a vida, aprendereis que os deuses não existem. Que todas as divindades significam só a sorte, boa ou má, que temos neste mundo. Eurípedes (trad. de Jorge de Sena, in Poesia de 26 Séculos)
SEXTA-FEIRA
Tranquila Sexta-feira abandonada Sexta-feira Sexta-feira cada vez mais triste como ruelas antigas Sexta-feira de indolentes pensamentos indispostos Sexta-feira de sinuosos e nefastos espreguiçamentos Sexta-feira de nenhuma expectativa Sexta-feira de rendição. Casa vazia casa solitária casa trancada contra a investida da juventude casa da escuridão e ânsias de sol casa de solidão, augúrio e indecisão casa de cortinas, livros, guarda-louça, fotografias. Ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena como uma corrente profunda através do coração dessas silenciosas, abandonadas Sextas-feiras através do coração dessas tristes casas vazias ah, como a minha vida fluiu silenciosa e serena. Forough Farrokhzad, Versão de Vasco Gato
poema de combate indecente rimar, uma criança a esbugalhar os olhos de pavor. uma cidade a arder. a governança do mundo a esquivar-se: a sua dança rima obscenamente com timor. indecente rimar. lua assassina. uma rajada e outra. um estertor. um uivo, um corpo, um morto em cada esquina. honra do mundo que se contamina no arame farpado de timor.
indecente rimar sândalo e vândalo. sacode a noite apenas o tambor das sombras acossadas. tens o escândalo que te invadiu a alma, mas comanda-lo? onde te leva o grito por timor?
indecente rimar pois também rimam temor, tremor, terror e invasor por mais hipocrisias que se exprimam enquanto de hora a hora se dizimam os restos do que resta de timor.
indecente rimar: mas nas florestas nunca rimaram tanta raiva e dor a às vezes são precisas rimas destas, bumerangue de sangue com arestas da própria carne viva de timor.
Vasco Graça Moura
Estou com um dos homens que eu amo. Hoje, o mais próximo, e que escreve; que eu amo através do coração da inteligência; sua companhia preciosa não deseja envolver-me senão muito docemente, com o seu ouvido; ouvido de que eu receio a sombra, o discernimento, como se não crêsse ainda na persistência da minha duração. Virá o dia em que sem esse
mais,
sem
esse
menos,
o nosso
conhecimento será rasante. Por agora, é ainda uma banda em declive. Maria Gabriela Llansol, Causa Amante
O MAR AMADO O que nele se move é exactamente o que amo ou o que chamo porque onda chamo ao movimento Cresce na tão igual água amado por mim exactamente amado como se em vez de mar fosse algo mais do que água ou maior. Fiama Hasse Pais Brandão
Procuro-te
Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu, o ar onde a respiração é doce, um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria. Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido. Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio. Um pássaro e um navio são a mesma coisa quando te procuro de rosto cravado na luz. Eu sei que há diferenças mas não quando se ama, não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas. Porém eu procuro-te. antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te. Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas
Creio, creio hoje firmemente, que os seres humanos não foram destinados a verdadeiramente comunicar. É-nos dado um nome e uma identidade própria quando nascemos. Somos indivíduos e indivíduos permanecemos. Somos únicos e únicos queremos ser. Natural é que paguemos o preço. […] Nenhum de nós disposto a abrir ao outro muito mais do que a sua face mundana. Cada um, como tantas vezes sucede, a ouvir o outro mais por cortesia do que por interesse verdadeiro. No fundo, interessados sobretudo em encontrar uma caixa de ressonância perante a qual pudéssemos desenrolar o tema preferido: falar de si mesmo. Paulo Castilho, Fora de Horas
Criação Sonhada
Tanto tempo a pensar divino esforço que adormecendo deus sonhou consigo: Sonhou braços e pernas e cabeças, sonhou paisagens de mental pudor conversas calmas com o quase feito E esforçado ficou e exausto se quedou ao ver-se assim traído pela obra criada Só em sonho
Ana Luísa Amaral
BARBARA
Rappelle-toi Barbara Même si je ne les connais pas Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là Rappelle-toi Barbara Et tu marchais souriante N'oublie pas Épanouie ravie ruisselante Cette pluie sage et heureuse Sous la pluie Sur ton visage heureux Rappelle-toi Barbara Sur cette ville heureuse Il pleuvait sans cesse sur Brest Cette pluie sur la mer Et je t'ai croisée rue de Siam Sur l'arsenal Tu souriais Sur le bateau d'Ouessant Et moi je souriais de même Oh Barbara Rappelle-toi Barbara Quelle connerie la guerre Toi que je ne connaissais pas Qu'es-tu devenue maintenant Toi qui ne me connaissais pas Sous cette pluie de fer Rappelle-toi De feu d'acier de sang Rappelle-toi quand même ce jour-là Et celui qui te serrait dans ses N'oublie pas bras Un homme sous un porche s'abritait Amoureusement Et il a crié ton nom Est-il mort disparu ou bien Barbara encore vivant Et tu as couru vers lui sous la pluie Oh Barbara Ruisselante ravie épanouie Il pleut sans cesse sur Brest Et tu t'es jetée dans ses bras Comme il pleuvait avant Rappelle-toi cela Barbara Mais ce n'est plus pareil et tout Et ne m'en veux pas si je te tutoie est abîmé Je dis tu a tous ceux que j'aime C'est une pluie de deuil terrible Même si je ne les ai vus qu'une seule fois et désolée Je dis tu a tous ceux qui s'aiment
Ce n'est même plus l'orage De fer d'acier de sang Tout simplement des nuages Qui crèvent comme des chiens Des chiens qui disparaissent Au fil de l'eau sur Brest Et vont pourrir au loin Au loin très loin de Brest Dont il ne reste rien. Jacques Prévert
É apenas o começo. Só depois dói, e se lhe dá nome. Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode acontecer da maneira mais simples: umas gotas de chuva no cabelo. Aproximas a mão, os dedos desatam a arder inesperadamente, recuas de medo. Aqueles cabelos, as suas gotas de água são o começo, apenas o começo. Antes do fim terás de pegar no fogo e fazeres do inverno a mais ardente das estações. Eugénio de Andrade, Sulcos da Sede
«Sabes, tenho estado a pensar numa coisa estranha: quando nos apaixonamos por alguém, esse apaixonarmo-nos diz concretamente respeito a quem? Não é à pessoa propriamente dita, não pode ser, porque ao princípio não a conhecemos: só vemos nela o que projectamos: uma estátua grega, um verso de Camões, as Glosas do Caballero de Cabezón... [...] não me parece que a palavra "sentimento» seja susceptível de integrar uma expressão pleonástica. Pleonasmo implica redundância, não é? Acho que no amor nunca há o perigo de redundância; ou melhor: pode-se ser redundante à vontade no sentido em que chover no molhado é já de si uma componente própria do estado de estarmos apaixonados; é monocórdico amar-se alguém, deliciosamente monocórdico... tomáramos que a pessoa amada fosse duas vezes ela própria!» Frederico Lourenço, pode um desejo imenso
Eu não procuro nada em ti, nem a mim próprio, é algo em ti que procura algo em ti no labirinto dos meus pensamentos. Eu estou entre ti e ti, a minha vida, os meus sentidos (principalmente os meus sentidos) toldam de sombras o teu rosto. O meu rosto não reflecte a tua imagem, o meu silêncio não te deixa falar, o meu corpo não deixa que se juntem as partes dispersas de ti em mim. Eu sou talvez aquele que procuras, e as minhas dúvidas a tua voz chamando do fundo do meu coração. Manuel António Pina
Enigma Os que a ouvem quando a chuva bate nos vidros – a chuva mais fria, a de dezembro, ou a que desce das montanhas, durante a noite – não sabem por quem ela chama. nos seus lábios de musgo, os nomes confundem-se num gemido antigo; e os que encostam o ouvido aos vidros, interrogando o outro lado da janela, nem assim distinguem um pouco mais do que é lícito saber, ao homem, do que se passa na terra. Nuno Júdice
Era mi dolor tan alto, que la puerta de la casa de donde salí llorando me llegaba a la cintura. ¡Qué pequeños resultaban los hombres que iban conmigo! Crecí como una alta llama de tela blanca y cabellos. Si derribaran mi frente los toros bravos saldrían, luto en desorden, dementes, contra los cuerpos humanos. Era mi dolor tan alto, que miraba al otro mundo por encima del ocaso. Manuel Altolaguirre
"O nascido depois" Eu confesso: eu não tenho esperança. Os cegos falam de uma saída. Eu vejo. Após os erros terem sido usados como última companhia, à nossa frente senta-se o Nada. Bertolt Brecht
Imprevisto corrigido Se minto? Quantas vezes! Mas em palavras. Não Nos meus olhos castanhos, Nestas linhas atávicas da mão… Se minto?... Minto, pois! Mas nas orais palavras que vos digo, Não nas que estão a sós comigo, E em que enfim deixo de ser dois. Não nas que entrego a músicas, miragens, Alegorias, fábulas, mentiras, Cadências, símbolos, imagens, Ecos da minha e mil milhões de liras. Se minto?... Minto! É regra de viver. Mas não quando, poeta, me desnudo, E a mim me visto de inocência e a tudo. Venha quem saiba ver! Venha quem saiba ler! José Régio, As Encruzilhadas de Deus,
«Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves. De facto envelhecem quando a tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos surgem tão carregadas de tempo.» Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, Sá da Costa
"Eco"
«Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?! Talvez que fosse à caça: quer fazer surpresas com alguma corça branca lá da floresta. Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras. Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher também, também chamou Adão. Teve medo. Mas julgando fantasia chamou de novo: Adão? E uma voz de mulher também, também chamou Adão. Foi-se triste para a tenda. Adão já tinha vindo e trouxera as setas todas, e a caça era nenhuma! E ele a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ela fugiu-lhe. - Outra que não Ela chamara também por Ele.» Almada Negreiros, Orpheu I
"O silêncio"
«O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa. […] O silêncio era agora maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alimentasse todas as suas pétalas» Sophia
de
Mello
Breyner
Andresen,
silêncio‖ in Histórias da Terra e do Mar
―O
UM DIA
O Excesso Mais Perfeito Queria um poema de respiração tensa e sem pudor. Com a elegância redonda das mulheres barrocas e o avesso todo do arbusto esguio. Um poema que Rubens invejasse, ao ver, lá do fundo de três séculos, o seu corpo magnífico deitado sobre um divã, e reclinados os braços nus, só com pulseiras tão (mas tão) preciosas, e um anjinho de cima, no seu pequeno nicho feito nuvem, a resguardá-lo, doce. Um tal poema queria. Muito mais tudo que as gregas dignidades de equilíbrio. Um poema feito de excessos e dourados, e todavia muito belo na sua pujança obscura e mística. Ah, como eu queria um poema diferente da pureza do granito, e da pureza do branco, e da transparência das coisas transparentes. Um poema exultando na angústia, um largo rododendro cor de sangue. Uma alameda inteira de rododendros por onde o vento,
ao passar, parasse deslumbrado e em desvelo. E ali ficasse, aprisionado ao cântico das suas pulseiras tão (mas tão) preciosas. Nu, de redondas formas, um tal poema queria. Uma contra-reforma do silêncio. Música, música, música a preencher-lhe o corpo e o cabelo entrançado de flores e de serpentes, e uma fonte de espanto polifónico a escorrer-lhe dos dedos. Reclinado em divã forrado de veludo, a sua nudez redonda e plena faria grifos e sereias empalidecer. E aos pobres templos, de linhas tão contidas e tão puras, tremer de medo só da fulguração do seu olhar. Dourado. Música, música, música e a explosão da cor.
Esta contra-reforma do
Espreitando lá do fundo de três séculos,
silêncio.
um Murillo calado, ao ver que simples eram os seus
A sua mão erguida rumo ao
anjos
céu, carregada
junto dos anjos nus deste poema,
de nada.
cantando em conjunção com outros astros louros salmodias de amor e de perfeito excesso. Gôngora empalidece, como os grifos, agora que o contempla. Ana Luísa Amaral
"figura que me é querida" «_____________ o homem só vulto esteve aqui hoje, com sua imagem infeliz. […] passeia incansavelmente nestes pinhais e, à noite, pára onde uma vela brilha. Pára raramente, pois o seu vulto fatiga-se quando espera, e as portas são pedras opacas que defendem as casas disseminadas por entre as árvores e os jardins. Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia
que
há
por
aqui,
incluindo
a
misericórdia por nós que brota de uma fonte algures, ignore onde. Refiro-me a ele, refiro-me à sombra, refiro-me à precisão geométrica de um vulto. A este dia de sol sobrepôs-se um dia de paz e nevoeiro por onde ele caminha sem o podermos chamar de nenhum sítio. Com precisão, não sei onde ele está, quem é, e o que está para ser. Mas sei que ele é alguém destituído do peso da sua forma, […]. Continuo a vê-lo,
outras coisas, o passageiro de
homogéneo no seu movimento cinzento delimitado;
misericórdia do pinhal, figura
de mim para ele estabelece-se uma ponta de
que me é querida e que nunca
nostalgia através da qual lhe entrego a parte maior
deixa de invadir-me.»
da minha tristeza; vejo-o parar com nitidez, abrir as Maria Gabriela Llansol, um costas e o saco, e aprofundar o meu peso em si. Já beijo dado mais tarde, pp. 97leva outros pesos que ele trata como pesos ligeiros, 98, edições rolim ou pequenas medidas estuantes de vida. É, entre
MAIS TARDE
A minha morte chegará um dia Um dia na primavera, luminoso e gracioso Um dia de inverno, poeirento, distante Um dia vazio de outono, desprovido de alegria. A minha morte chegará um dia Um dia doceamargo, como todos os meus dias Um dia oco como o que passou Sombra de hoje ou de amanhã. Os meus olhos adaptam-se à penumbra dos pátios As minhas faces parecem frio, pálido mármore Subitamente o sono arrasta-se sobre mim Livro-me de todos os gritos dolorosos. Lentamente minhas mãos deslizam sobre anotações Que chegaram até mim debaixo do feitiço da poesia, Relembro que outrora em minhas mãos Retive o sangue flamejante da poesia. A terra convida-me para os seus braços, As gentes reúnem-se para me sepultar aqui Talvez à meia-noite os meus amantes Coloquem sobre mim coroas de muitas rosas. Forough Farrokhzad, versão de Vasco Gato
“De olhar por esta janela” «De olhar por esta janela este céu de cidade… De cidade, digo eu… Este céu, sem traço de vida, sem cor, sem uma silhueta de terra nem de árvores, extraordinariamente esbranquiçado… De o olhar só, me vem uma grande opressão! Sinto-me perdida num infinito apagado, e incapaz de toda a fixação. Como somos difíceis de conquistar! Julgamo-nos às vezes a pisar terra firme, a conhecer os lugares e as pessoas, e basta uma impressão destas, um nada, para nos abater. Não é saudade que sinto, é desapego, é falta de segurança.» Irene Lisboa, Solidão, Presença
Somos como as folhas das árvores... Quais folhas criadas pela estação florida da primavera, quando de súbito crescem sob os raios do sol, assim somos nós: por um tempo de nada, nos deleita a flor da juventude, sem conhecermos o mal ou o bem que vêm dos deuses. Ao lado estão as Keres tenebrosas, uma detentora da velhice medonha, a outra, da morte. Pouco dura o fruto da juventude - o tempo de o sol derramar a sua luz sobre a terra. E depois, logo que chega o fim da estação. melhor é morrer logo do que viver, pois são muitos os males que surgem no nosso coração: ora é a casa que cai em ruína, ora os efeitos dolorosos da pobreza; outro não tem filhos, e, sentindo a sua falta. desce ao Hades, debaixo da terra; outro tem doença que lhe destrói a vida. Não há homem a quem Zeus não dê muitos infortúnios. Mimnermo (Séc.VII a.C.) Trad. Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade
Retrato em Movimento Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe. O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia o que fazer agora da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; - 2º - peixe, cor preta, pintor em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que
na sua tela um peixe amarelo. Herberto Helder, Retrato Movimento
em
"Mas com zurrapa, não..." «Rasgar um véu e espreitar. A importância do véu reside exactamente no facto de ser preciso rasgá-lo para ver melhor. Como as aparências. Passar ao lado de lá é dalgum modo transgredir fazer de contas que não existe um risco de giz, um limite a deter-nos. Compete à alma jogar, mais uma vez, o seu jogo. Mas com zurrapa, não, zurrapa quer dizer batota, e grosseira.» Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses, pág. 182,
Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos, E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício. A minha vida passada misturou-se-me com a futura, E houve no meio um ruído do salão de fumo, Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez. Ah, balouçado Na sensação das ondas, Ah, embalado Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã, De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas, De não ter personalidade propriamente, mas sentirme ali, Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse. Ah, afundado Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono, Irrequieto tão sossegadamente, Tão análogo de repente à criança que fui outrora Quando brincava na quinta e não sabia álgebra, Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida, Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma, Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro. Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos
"quer lá saber" «É jogador até ao fundo da alma, e com a alma não brinca ele. Senta-se, mergulha na tensão do jogo, como se mergulhasse no mistério da missa, e tenta compreendê-lo. Aceita a divindade, quer dizer, o acaso, mas não deixa por isso de o interrogar ou corrigir, quando pode, e em geral sai-se bastante bem. Os outros pesam pouco, pesam apenas na medida em que hesitam, erram ou acertam, influenciando o jogo, influência aliás diminuta porque é fácil prever-lhes os erros, os acertos, as hesitações. Se descobre qualquer aldrabice, o que raramente acontece, deixa andar. O acaso, o essencial, também se faz desses acidentes. Uma vez que dê por eles, que não passe por parvo diante de si mesmo, quer lá saber.» Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses
«A vida era um labirinto de escuridão, sem alvores de madrugada que lhe orientassem a cegueira. Habitava um vazio sem rostos, onde mesmo o seu já não tinha significado. […] O seu destino de mulher era um destino de silêncio e de ausência. Ah! Poder voltar atrás àquele tempo em que vivera descuidada e feliz, como se estivesse à espera de outros ainda mais felizes.»
[…] "Canta-se o que se perde", estava escrito no poema que relia. Mas não cantava. Limitava-se a escrever, como as avós tinham bordado, para encher as horas dos dias, se propor uma tarefa, uma finalidade que lhe apagasse a frustração e o vazio. Uma escrita, contida, do e no silêncio.» Luísa Dacosta, O planeta desconhecido e romance da que fui antes de mim,
"apenas silêncio" « e o silêncio cresce e é fundo e é total, de tal modo que poucos notam que é apenas silêncio, porque há sempre ruídos sobrepostos, preenchendo-o, música de
fundo,
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speakers, avisos,
relatos,
profusões
informações, de
linguagens
balbuciadas, com uma extensão talvez máxima, mas com uma comunicação sempre mínima, as pessoas circulam, eficientes, em circuitos cada vez mais fechados, interiorizaram a tal ponto o universo de não-palavras que as circunda que acabaram por emudecer por completo,» […] «[…] mas a literatura também se converteu em silêncio, tornou-se apenas imanente, as palavras ficam cercadas, bloqueadas, e encontra-se sempre um meio de demonstrar às pessoas que elas significam tudo, e que, portanto, não significam nada, a palavra escrita é uma palavra morta e por isso eu quero a palavra dita, rente ao corpo, inseparada do corpo, língua, boca, braço, mão, gesto, movimento do eu e do outro, do eu para os outros e de novo destes para mim, a palavra que está no princípio do eu e do mundo e da vida e que é talvez, talvez, o amor, […]» Teolinda Gersão, O Silêncio,
«uma pequena orelha verde»
a tal ponto se habituaram a viver dentro de caixas bem isoladas que qualquer som
«É um mundo que começou a enlouquecer, disse de espontâneo
as
incomoda,
transportam
em
volta
repente, sem preparação. Um mundo eficiente, de da
silêncio total, em que ninguém mais fala com cabeça uma caixa de vidro ninguém. As pessoas estão sentadas, ombro contra mental que se fecha por si ombro, à espera, mas o objectivo da espera é sempre mesma à menor suspeita de falso, o autocarro, o comboio, o avião, porque todos desordem, e
então alguém
propõe
quem
os lugares são iguais e nada é diferente em parte que
estiver
alguma. E enquanto se espera o silêncio cresce, vai disposto a escutar os outros ficando sempre mais denso e mais pesado, e algumas ponha na lapela uma pequena pessoas começam a ficar inquietas, porque de orelha verde.» repente percebem que estão bloqueadas, dentro de caixas de vidro, o universo é um conjunto gigantesco de sucessivas caixas de vidro, e elas apenas transitam, ou são transportadas, de umas para as outras, casas, escritórios, autocarros, hospitais, aeroportos, aviões, transatlânticos, é inútil percorrer milhões de quilómetros porque o mundo fica sempre cada vez mais longe, é como se flutuassem, imponderáveis, num espaço vazio, os seus pés não assentam mais sobre a terra, correm seis dias sobre escadas rolantes e tapetes rolantes e no sétimo dia ficam parados sobre uma alcatifa, e o mundo que não tocam mais vem até elas apenas em imagens, dentro da televisão-caixa-de-vidro. Então algumas pessoas são tomadas de pânico e começam a falar, porque acham necessário modificar este estado de coisas, mas descobrem que não é possível falar porque as pessoas do lado as olham com estranheza,
Teolinda Gersão, O Silêncio,
«talvez nunca» «A tensão entre ambos, desde o início. Porque eles eram dois mundos sem pontos de contacto. A consciência disso, desde o primeiro instante. As tardes em que ela vagueava ao longo do rio, solta, dispersa, confundida com as coisas, as árvores, o rio, os barcos, os movimentos da água, o ondular do vento, uma figura indefinida caminhando através da luz baça. E do outro lado da ponte a janela iluminada, a pequena casa para onde ele se mudara, dissera-lhe, e esperava por ela, detrás das janelas altas. Entrar na casa e tomar a forma da casa, reunir na bruma os pedaços do seu corpo e ser breve e mortal entre dois braços, partir correndo, subir até ao último andar, abrir a porta e entrar de repente em sua vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a água, a bruma, o obscuro milagre que no universo dele não existia - mas Afonso não punha nunca o seu próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu encontro. Ele não aceitava risco algum. Porquê então o absurdo impulso de atravessar a ponte quando não haveria talvez nunca uma ponte possível,» Teolinda Gersão, O Silêncio
Um dia, gastos, voltaremos A viver livres como os animais E mesmo tão cansados floriremos Irmãos vivos do mar e dos pinhais. O vento levará os mil cansaços Dos gestos agitados irreais E há-de voltar aos nossos membros lassos A leve rapidez dos animais. Só então poderemos caminhar Através do mistério que se embala No verde dos pinhais na voz do mar E em nós germinará a sua fala. Sophia de Mello Breyner Andresen
Camille Claudel
Tão cedo passa tudo quanto passa! Morre tão jovem ante os deuses quanto Morre! Tudo é tão pouco! Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, Odes eli – Julho 2009