Texere ~ Iii ~

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  • Pages: 196
III – 1 de Junho de 2005 – 31 de Dezembro de 2005

eli miguel

BAIRRO NEGRO

Negro bairro negro Bairro negro Onde não há pão Não há sossego Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar Os meninos vão correndo Ver o sol chegar Menino sem condição Irmão de todos os nus Tira os olhos do chão Vem ver a luz Menino do mal trajar Um novo dia lá vem Só quem souber cantar Virá também

Menino pobre o teu lar Queira ou não queira o papão Há-de um dia cantar Esta canção Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar Os meninos vão correndo Ver o sol chegar Se até dá gosto cantar Se toda a terra sorri Quem te não há-de amar Menino a ti

Se não é fúria a razão Se toda a gente quiser Um dia hás-de aprender Haja o que houver

Negro bairro negro Bairro negro Onde não há pão Não há sossego Menino pobre o teu lar Queira ou não queira o papão Há-de um dia cantar Esta canção

José Afonso

Prayer

Some days, although we cannot pray, a prayer utters itself. So, a woman will lift her head from the sieve of her hands and stare at the minims sung by a tree, a sudden gift. Some nights, although we are faithless, the truth enters our hearts, that small familiar pain; then a man will stand stock-still, hearing his youth in the distant Latin chanting of a train. Pray for us now. Grade I piano scales console the lodger looking out across a Midlands town. Then dusk, and someone calls a child's name as though they named their loss. Darkness outside. Inside, the radio's prayer Rockall. Malin. Dogger. Finisterre.

Carol Ann Duffy

OS ESTIVADORES

Ode marítima é o que chamo à ode escrita ali sobre a pedra do cais A natureza é certo que muito pode mas um homem de pé pode bem mais

Só eles suam mas só eles sabem o preço de estar vivo sobre a terra Só nessas mãos enormes é que cabem as coisas mais reais que a vida encerra

Ruy Belo, Homem de Palavra(s)

Outros rirão e outros sonharão podem outros roubar-lhes a alegria mas a um deles é que chamo irmão na vida que em seus gestos principia Onde outrora houve o deus e houve a ninfa eles são a moderna divindade e o que dantes era pura linfa é o que sobra agora da cidade Vede como alheios a tudo o resto compram com o suor a claridade e rasgam com a decisão do gesto o muro oposto da gravidade Foto: da net

CANTO SEGUNDO

Esta manhã mal saí do portão parecia-me ter esquecido alguma coisa em casa. Dois passos até ao damasqueiro e toca a regressar. Agora que nada resta para fazer fico sentado diante da janela e pergunto-me a mim mesmo: Queres isto? Queres aquilo? Deitei fogo a páginas de livros, a calendários e mapas. Para mim a América já não existe, a Austrália igualmente, a China na minha cabeça é uma fragrância, a Rússia uma alva teia de aranha e a África o sonho de um copo de água. Há dois ou três dias sigo os passos de Pinela, o camponês, que procura o mel das abelhas selvagens.

Tonino Guerra, O Mel. Trad.: Mário Rui de Oliveira

Ivan Durrant

A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas a palavra criança a palavra segredo. A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distância e a palavra medo. A cidade é um saco um pulmão que respira pela palavra água pela palavra brisa A cidade é um poro um corpo que transpira pela palavra sangue pela palavra ira. A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar. A palavra sarcasmo é uma rosa rubra. A palavra silêncio é uma rosa chá. Não há céu de palavras que a cidade não cubra não há rua de sons que a palavra não corra à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

Del mar azul las transparentes olas

Y huyen abandonándome en la playa a la terrena, inacabable lucha, como en las tristes playas de la vida me abandonó inconstante la fortuna.

Rosalia de Castro Del mar azul las transparentes olas mientras blandas murmuran sobre la arena, hasta mis pies rodando, tentadoras me besan y me buscan. Inquietas lamen de mi planta el borde, lánzanme airosas su nevada espuma, y pienso que me llaman, que me atraen hacia sus salas húmedas.

Mas cuando ansiosa quiero seguirlas por la líquida llanura, se hunde mi pie en la linfa transparente y ellas de mi se burlan.

SESTA ANTIGA

A ruazinha lagarteando ao sol, O coreto de música deserto Aumenta ainda mais o silêncio. Nem um cachorro. Este poeminha É só o que acontece no mundo...

Mário Quintana

Baldio

O menino que fui debruça-se furtivo de meus olhos sobre o recanto da paisagem. Entre a dureza austera dos prédios e o largo sorriso dolorido das vidraças aquele recanto que sobrou da paisagem pertence intacto ao menino que eu fui outrora e o menino que eu fui outrora desce alvoroçado de meus olhos, desliza entre o capim, atira pedra ao gala-galas e salta sobre velhas folhas de zinco apodrecido, num cenário querido de girassóis antigos. Então parto dali e o menino que fui regressa extenuado e adormece na sombra de meus olhos. Max Lyonga

Rui Knopfli

Eugénio

SERÃO PALAVRAS SÓ...

Diremos prado bosque primavera, e tudo o que dissermos é só para dizermos que fomos jovens. Diremos mãe amor um barco, e só diremos que nada há para levar ao coração. Diremos terra ou mar ou madressilva, mas sem música no sangue serão palavras só, e só palavras, o que diremos.

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro

Luís de Camões

49 "Mais ia por diante o monstro horrendo Dizendo nossos fados, quando, alçado, Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo Corpo, certo, me tem maravilhado! A boca e os olhos negros retorcendo E, dando um espantoso e grande brado, Me respondeu, com voz pesada e amara, Como quem da pergunta lhe pesara:

50 — "Eu sou aquele oculto e grande Cabo, A quem chamais vós outros Tormentório, Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, Plínio, e quantos passaram, fui notório. Aqui toda a Africana costa acabo Neste meu nunca visto Promontório, Que pera o Pólo Antárctico se estende, A quem vossa ousadia tanto ofende.

51 — Fui dos filhos aspérrimos da Terra, Qual Encélado, Egeu e o Centimano; Chamei-me Adamastor, e fui na guerra Contra o que vibra os raios de Vulcano; Não que pusesse serra sobre serra, Mas, conquistando as ondas do Oceano, Fui capitão do mar, por onde andava A armada de Neptuno, que eu buscava.

52 — Amores da alta esposa de Peleu Me fizeram tomar tamanha empresa. Todas as Deusas desprezei do céu, Só por amar das águas a Princesa. Um dia a vi, coas filhas de Nereu, Sair nua na praia, e logo presa A vontade senti de tal maneira, Que inda não sinto cousa que mais queira.

53 — Como fosse impossível alcançá-la, Pela grandeza feia de meu gesto, Determinei por armas de tomá-la, E a Dóris este caso manifesto. De medo a Deusa então por mi lhe fala; Mas ela, cum fermoso riso honesto, Respondeu: — "Qual será o amor bastante De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

54 — Contudo, por livrarmos o Oceano De tanta guerra, eu buscarei maneira, Com que, com minha honra, escuse o dano." Tal resposta me torna a mensageira. Eu, que cair não pude neste engano, (Que é grande dos amantes a cegueira) Encheram-me com grandes abondanças O peito de desejos e esperanças.

55 — Já néscio, já da guerra desistindo, Uma noite, de Dóris prometida, Me aparece de longe o gesto lindo Da branca Tétis, única, despida. Como doudo corri, de longe abrindo Os braços pera aquela que era vida Deste corpo, e começo os olhos belos A lhe beijar, as faces e os cabelos.

56 — Ó que não sei de nojo como o conte! Que, crendo ter nos braços quem amava, Abraçado me achei cum duro monte De áspero mato e de espessura brava. Estando cum penedo fronte a fronte, Que eu polo rosto angélico apertava, Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo, E, junto dum penedo, outro penedo.

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— Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano, Já que minha presença não te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? Daqui me parto, irado e quase insano Da mágoa e da desonra ali passada, A buscar outro mundo, onde não visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

— Converte-se-me a carne em terra dura, Em penedos os ossos se fizeram, Estes membros, que vês, e esta figura Por estas longas águas se estenderam. Enfim, minha grandíssima estatura Neste remoto cabo converteram Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas, Me anda Tétis cercando destas águas." —

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— Eram já neste tempo meus Irmãos Vencidos e em miséria extrema postos, E, por mais segurar-se os Deuses vãos, Alguns a vários montes sotopostos. E, como contra o Céu não valem mãos, Eu, que chorando andava meus desgostos, Comecei a sentir do fado inimigo Por meus atrevimentos, o castigo.

Assim contava, e cum medonho choro Súbito de ante os olhos se apartou. Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro Bramido muito longe o mar soou. Eu, levantando as mãos ao santo coro Dos anjos, que tão longe nos guiou, A Deus pedi que removesse os duros Casos, que Adamastor contou futuros.

Os Lusíadas, V, 49-60

Onde até esses cravos de papel Que têm uma bandeira em pé quebrado Sabem rir... Santo dia profano Cuja luz sabe a mel Sobre o chão de bom vinho derramado! Santo António, és portanto O meu santo, Se bem que nunca me pegasses Teu franciscano sentir, Católico, apostólico e romano. (Reflecti. Os cravos de papel creio que são mais propriamente, aqui, Do dia de S. João... Mas não vou escangalhar o que escrevi. Que tem um poeta com a precisão?)

SANTO ANTÓNIO Nasci exactamente no teu dia – Treze de Junho, quente de alegria, Citadino, bucólico e humano,

Adiante... Ia eu dizendo, Santo António, Que tu és o meu santo sem o ser. Por isso o és a valer, Que é essa a santidade boa, A que fugiu deveras ao demónio. És o santo das raparigas,

És o santo de Lisboa, És o santo do povo. Tens uma auréola de cantigas, E então Quanto ao teu coração – Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne, Um austero, mas de alma ardente e ansiosa, Etcetera... Mas qual de nós vai tomar isso à letra? Que de hoje em diante quem o diz se digne Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa. Qual santo! Olham a árvore a olho nu E não a vêem, de olhar só os ramos. Chama-se a isto ser doutor Ou investigador. Qual Santo António! Tu és tu. Tu és tu como nós te figuramos. Valem mais que os sermões que deveras pregaste As bilhas que talvez não concertaste. Mais que a tua longínqua santidade

Que até já o Diabo perdoou, Mais que o que houvesse, se houve, de verdade No que – aos peixes ou não – a tua voz pregou, Vale este sol das gerações antigas Que acorda em nós ainda as semelhanças Com quando a vida era só vida e instinto, As cantigas, Os rapazes e as raparigas, As danças E o vinho tinto. Nós somos todos quem nos faz a história. Nós somos todos quem nos quer o povo. O verdadeiro título de glória, Que nada em nossa vida dá ou traz É haver sido tais quando aqui andámos, Bons, justos naturais em singeleza, Que os descendentes dos que nós amámos Nos promovem a outros, como faz Com a imaginação que há na certeza, O amante a quem ama, E o faz um velho amante sempre novo. Assim o povo fez contigo Nunca foi teu devoto: é teu amigo, Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza! Deita-te noutra cama!) Santos, bem santos, nunca têm beleza. Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?... Tira lá essa capa! Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico Em fantasia, promoveu-te a manjerico. És o que és para nós. O que tu foste Em tua vida real por mal ou bem, Que coisas, ou não-coisas se te devem Com isso a estéril multidão arraste Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem, Essa prolixa nulidade, a que se chama história, Que foste tu, ou foi alguém, Só Deus o sabe, e mais ninguém. És pois quem nós queremos, és tal qual O teu retrato, como está aqui, Neste bilhete postal. E parece-me até já que te vi. És este, e este és tu, e o povo é teu – O povo que não sabe onde é o céu, E nesta hora em que vai alta a lua Num plácido e legítimo recorte,

Atira risos naturais à morte, E cheio de um prazer que mal é seu, Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto, Sê sempre assim! Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim, Esquece a doutrina e os sermões. De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto. Foste Fernando de Bulhões, Foste Frei António – Isso sim. Porque demónio É que foram pregar contigo em santo?

Fernando Pessoa, Poemas Dispersos

Carmen 7

Perguntas-me, Lésbia, quantos beijos me serão suficientes e mais que suficientes. Quantos os grãos inúmeros de areia líbica que estão em Cirene produtora de lasarpício, entre o oráculo ardente de Júpiter e o sagrado sepulcro do velho Bato, quantas as estrelas que, na noite silenciosa, contemplam os amores furtivos dos homens - tantos os beijos teus suficientes ao louco Catulo; em tão grande número que os não possam contar os curiosos, nem fazer-lhes feitiço os maldizentes.

Gaius Valerius Catullus. Trad.: Agostinho da Silva

[...] Os homens, esses valem, conforme os deuses concedem, pela coragem ou pela arte... Píndaro (séc. VI-V a.C.)

À TÍLIA

Peregrino, senta debaixo da ramagem, Descansa; eu prometo – sequer o sol selvagem Aqui pode avançar. Porém os raios justos Deverão as sombras aquietar nos arbustos. Aqui sempre sopram brisas frescas do campo, Rouxinóis e negras aves cantam seu canto. Abelhas obreiras recolhem mel das flores Perfumadas para brindar as mesas nobres. E a todos os homens meu murmúrio sereno Cobre facilmente de adocicado sono. Maçãs não carrego, mas sou árvore farta Das Hespérides no jardim, meu amo exorta.

Jan Kochanowski. Trad. Aleksandar Jovanovic In Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro

C'est le temps

C’est le temps, de se parler, si encore on peut se parler, et de se donner, si encore

Günter Rolf

on peut se donner quelque chose. C’est le temps et bientôt on restera sans lui.

Alojz Ihan In Hommage aux poètes des Balkans

Cruzeiro Seixas

– O poema é aqui, quando levanto o olhar do papel e deixo as minhas mãos tocarem-te,

quando sei sem rimas e sem metáforas que te amo

José Luís Peixoto

Chagall

Rumor de água

Rumor de água na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância minha pureza refractada. A ribeira secou no verão.

Rumor de água no tempo e no coração.

Rumor de nada.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

ALEGORIA SEGUNDA De poetas e filósofos tu sabes, sabes também por ti. Por isso eu digo: esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue. Toca-lhe: saberás como em segredo florescem as acácias ao redor dos muros, como fluem suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas a parte mais sensível de ti mesmo.

Dizias ontem que o verão ardia nesta pedra. Nela queimavas tuas mãos. Onde as aqueces hoje? Eu digo: o verão não morreu, esta pedra é o verão. E tudo permanece. E tudo é teu. Tu és o sangue, o verão e a pedra.

Albano Martins, Paralelo ao Vento

A Vaidosa

. Dizem que tu és pura como um lírio E mais fria e insensível que o granito, E que eu que passo aí por favorito Vivo louco de dor e de martírio. Contam que tens um modo altivo e sério, Que és muito desdenhosa e presumida, E que o maior prazer da tua vida, Seria acompanhar-me ao cemitério. Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, A déspota, a fatal, o figurino, E afirmam que és um molde alabastrino, E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio Dos que são teus, ó corpo sem defeito, E julgam que é monótono o teu peito Como o bater cadente dum relógio. Porém eu sei que tu, que como um ópio Me matas, me desvairas e adormeces És tão loira e doirada como as messes E possuis muito amor... muito amor próprio. Harpa 1874 Porto

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde

Mina Anguelova

Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden

Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden, in welchen meine Sinne sich vertiefen; in ihnen hab ich, wie in alten Briefen, mein täglich Leben schon gelebt gefunden und wie Legende weit und überwunden. Aus ihnen kommt mir Wissen, daß ich Raum zu einem zweiten zeitlos breiten Leben habe. Und manchmal bin ich wie der Baum, der, reif und rauschend, über einem Grabe den Traum erfüllt, den der vergangne Knabe (um den sich seine warmen Wurzeln drängen) verlor in Traurigkeiten und Gesängen.

Rainer Maria Rilke, Die Gedichte

Amo as horas sombrias do meu ser em que os meus sentidos se aprofundam; nelas encontrei, como em velhas cartas, o meu dia a dia já vivido, ultrapassado e vasto como numa lenda. Elas me ensinam que possuo espaço p'ra uma intemporal Segunda vida. E por vezes sou como a árvore que, madura e rumorosa, sobre uma campa cumpre o sonho que a criança de outrora (abraçada por suas cálidas raízes) perdeu em tristezas e canções.

Rainer Maria Rilke. Trad.: Ana Hatherly

De algumas perguntas...

De algumas perguntas tememos o som e o desenlace delas, noite adiante, resguardo nenhum. Sabemo-las assim lentas, um cristal mais afiado, um abandono mais duro.

Eduardo Pitta

Andreas Biesenbach

- Ce qui embellit le désert, dit le petit prince, c'est qu'il cache un puits quelque part...

Antoine de Saint-Exupéry, Le petit Prince

ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente aquilo que vejo e observo a cor serve para me exprimir théo: amarelo terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho arles sulfurosas cores cintilanddo sob o mistério das estrelas na profunda noite afundadas onde me alimento de café absinto tabaco visões e um pedaço de pão théo que o padeiro teve a bondade de fiar o mistral sopra mesmo quando não sopra os pomares estão em flor o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras arles continuou a arder quando tentei matar aquele que viu a minha paleta tornar-se límpida

mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo théo cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor e arles théo continua a arder sob a orelha cortada por fim théo em auvers voltei a cara para o sol apontando o revólver ao peito senti o corpo como um torrão de lama em fogo regressar ao início num movimento de incendiado girassol

Al Berto, O Medo

Van Gogh

Canção Depois, tudo estará perfeito: praia lisa, águas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas. Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar. Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre dos meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Choararei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça.

Cecília Meireles, Viagem

quando é doce fazer anos

Sofia Almeida

a praia é a mesma... o tempo passou...

Areia Branca revisitada em 2005

POEMA BREVE

Arndt Norbert

Inda percorro os dias e as noites sem sono e o que perpassa é o sonho

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo

vai tão pequena a teia, que lamento

… sola est non territa virgo, sed tamen erubuit

Ovídio, Metamorfoses, VI: 45-6

Vai tão pequena a teia, que lamento ter perdido o meu tempo em outros jogos, pois com talento e tempo poderia abandonar a fria geometria e desenhar figuras, tão reais que nelas revelasse a verdade maior da fantasia. Um cisne, por exemplo, feito signo do amor incendiário que conduz deuses à terra, procurando gente; uma nuvem ali, de onde cai chuva ou luz, mas que simula pedacinhos de sol, moedas de ouro; cavalos, aves, gado, e um golfinho; por baixo, em singular moldura, o tortuoso corpo da serpente. Mas, pequeno que sou, receio a inveja da sociedade, ou de um poder mais alto, que em mim veja rival ou parasita e me transforme em bicho repelente; preferias alguém menos ligeiro,

carne menos subtil, pele rosada, forma de gente, não de bicho abjecto. Sozinho agora, e solto, enquanto acaba mãe-sol de riscar linhas no horizonte, lamento que não saibas que se esconde uma princesa em cada feia aranha, mais bela e cintilante do que a lua; depois recolho ao centro do meu verso com esta reflexão modesta e triste: de tudo quanto viste e mal ouviste, em mim, do que mais gostas é da baba.

António Franco Alexandre, ARACNE

Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir, Em todos beberei a lua cheia, Quando enfim no meu fim eu possuir Todas as praias onde o mar ondeia. Um dia serei eu o mar e a areia, A tudo quanto existe me hei-de unir, E o meu sangue arrasta em cada veia Esse abraço que um dia se há-de abrir. Então receberei no meu desejo Todo o fogo que habita na floresta Conhecido por mim como num beijo. Então serei o ritmo das paisagens, A secreta abundância dessa festa Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen

LERAM-ME HOJE S. FRANCISCO DE ASSIS

Leram-me hoje S. Francisco de Assis. Leram-me e pasmei. Como é que um homem que gostava tanto das cousas Nunca olhava para elas, não sabia o que elas eram? Para que hei-de chamar minha irmã à água, se ela não é minha irmã? Para a sentir melhor? Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe qualquer cousa Irmã, ou mãe, ou filha. A água é a água e é bela por isso. Se eu lhe chamar minha irmã, Ao chamar-lhe minha irmã, vejo que o não é E que se ela é a água o melhor é chamar-lhe água; Ou, melhor ainda, não lhe chamar cousa nenhuma, Mas bebê-la, senti-la nos pulsos, olhar para ela E tudo isto sem nome nenhum.

Alberto Caeiro, Poesia

À NOITE

Quando o Sol se vai e é chegada a lua o pai corre fechos, persianas, vai trancar o portão que dá p'rà rua. Depois eu adormeço, mas os meus sonhos não cabem na casa e eu saio para riscar a noite com um fio de luz, cavalgar mistérios até de manhã. À noite, uma simples brisa escancara portas e janelas e não há chave, fecho ou tranca que encerre a porta larga dos meus sonhos.

Álvaro Magalhães, O Reino Perdido

y en la tremolación que hay en mi mano...

Vergüenza Es noche y baja a la hierba el rocío; mírame largo y habla con ternura, que ya mañana al descender al río la que besaste llevará hermosura! Si tú me miras, yo me vuelvo hermosa como la hierba a que bajó el rocío, y desconocerán mi faz gloriosa las altas cañas cuando baje al río.

Gabriela Mistral

Tengo vergüenza de mi boca triste de mi voz rota y mis rodillas rudas; ahora que me miraste y que viniste, me encontré pobre y me palpé desnuda. Ninguna piedra en el camino hallaste más desnuda de luz la alborada que esta mujer a la que levantaste, porque oíste su canto, la mirada. Yo callaré para que no conozcan mi dicha los que pasan por el llano, en el fulgor que da a mi frente tosca Turner

Orfeu do avesso

De pé sobre o abismo e não morri:

Andreas Wagner

Canto gregoriano muito limpo não me chegou: o fim Catedral sobre o risco, sobre um azul tão grande que afundar-me podia Ao fundo do mais fundo mergulhei e não morri: amei

Ana Luísa Amaral, Epopeias

O sol no castelo de Almourol Vi poisar o Sol no castelo de Almourol. E inventei uma história com sombras e clarões, príncipes e ladrões, fadas e fadistas, espadas e turistas, reis e rainhas, rios e tainhas, água e aguardente de medronho a correr no rio do sonho. Tudo isto, quando o Sol se pôs no Castelo de Almourol, que rima com rouxinol, que rima com Sol.

Matilde Rosa Araújo

bagagem

As coisas melhores

As coisas melhores são feitas no ar, andar nas nuvens, devanear, voar, sonhar, falar no ar, fazer castelos no ar e ir lá para dentro morar ou então estar em qualquer sítio só a estar, a respirar a respirar, o coração a pulsar, o sangue a sangrar, a imaginação a imaginar, os olhos a olhar.

(embora sem ver) e ficar muito quietinho a ser, os tecidos a tecer, os cabelos a crescer. E isto tudo a saber que isto tudo está a acontecer! As coisas melhores são de ar só é preciso abrir os olhos e olhar, basta respirar! Manuel António Pina

Cada árvore é um ser para ser em nós

Cada árvore é um ser para ser em nós Para ver uma árvore não basta vê-la a árvore é uma lenta reverência uma presença reminiscente uma habitação perdida e encontrada À sombra de uma árvore o tempo já não é o tempo mas a magia de um instante que começa sem fim a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas e de sombras interiores nós habitamos a árvore com a nossa respiração com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses

António Ramos Rosa, Cada árvore é um ser para ser em nós

QUADRO

tanto oiro na tarde escorrendo do poente

as silhuetas das árvores são fímbrias de poemas

e quantos horizontes me esqueceram?

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo

Petit poème des poissons de la mer Je le leur redis une fois, je leur dis une seconde Je me suis penché sur la mer Pour communiquer mon message Aux poissons: «Voilà ce que je cherche et que je veux savoir.» Les petits poissons argentés Du fond des mers sont remontés Répondre à ce que je voulais. La réponse des petits poissons était: «Nous ne pouvons pas vous le dire Monsieur PARCE QUE» Là la mer les a arrêtés. Alors j'ai écarté la mer Pour les mieux fixer au visage Et leur ai redit mon message: «Vaut-il mieux être que d'obéir?»

Mais j'eus beau crier à la ronde Ils n'ont pas voulu entendre raison! Je pris une bouilloire neuve Excellente pour cette épreuve Où la mer allait obéir. Mon coeur fit hamp, mon coeur fit hump Pendant que j'actionnais la pompe À eau douce, pour les punir. Un, qui mit la tête dehors Me dit: «Les petits poissons sont tous morts.» «C'est pour voir si tu les réveilles, Lui criai-je en plein dans l'oreille, Va rejoindre le fond de la mer.» Dodu Mafflu haussa la voix jusqu'à hurler en déclamant ces trois derniers vers,

et Alice pensa avec un frisson: «Pour rien au monde je n'aurai voulu être ce messager!»

Ils souffrent ni vivants ni morts. Pourquoi?

Celui qui n'est pas ne sait pas L'obéissant ne souffre pas.

Mais enfin les obéissants vivent, On ne peut pas dire qu'ils ne sont pas.

C'est à celui qui est à savoir Pourquoi l'obéissance entière Est ce qui n'a jamais souffert

Ils vivent et n'existent pas. Pourquoi?

Lorsque l'être est ce qui s'effrite Comme la masse de la mer. Jamais plus tu ne seras quitte, Ils vont au but et tu t'agites. Ton destin est le plus amer. Les poissons de la mer sont morts Parce qu'ils ont préféré à être D'aller au but sans rien connaître De ce que tu appelles obéir. Dieu seul est ce qui n'obéit pas, Tous les autres êtres ne sont pas Encore, et ils souffrent.

Pourquoi? Il faut faire tomber la porte Qui sépare l'Être d'obéir! L'Être est celui qui s'imagine être Être assez pour se dispenser D'apprendre ce que veut la mer... Mais tout petit poisson le sait! Il y eut une longue pause. «Est-ce là tout? demanda Alice timidement.»

Antonin Artaud, «L'Arve et l'Aume: tentative anti-grammaticale contre Lewis Carroll», Oeuvres Complètes

Último Jardim

Tardes no meu jardim tão lúcidas, quietas, quase inquietas, com pequeninos sóis em cada pétala molhada, com sombras fugidias... (Tal os dias sumindo-se um a um...) E as canções que não foram cantadas? E as rosas decepadas pelo simum? E os riscos na parede? E a sede numa taça vazia? E a noite que começa fria, fria...!

Saúl Dias, Vislumbre

Os olhos do poeta O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo, e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem. Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas, e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros de miséria, com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento. Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos, e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos-de-fada à hora da infância e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade: - todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta. Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório, sai uma estrela voando nas trevas tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes. E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, Poemas

LA VITA DELL'OMO VIDA DO HOMEM Nove mesi a la puzza: poi in fassciola Tra sbasciucchi, lattime e llagrimoni: Poi p'er laccio, in ner crino, e in vesticciola, Cor torcolo e l'imbraghe pe ccarzoni. Poi comincia er tormento de la scola, L'abbeccè, le frustate, li ggeloni, La rosalìa, la cacca a la ssediola, E un po' de scarlattina e vvormijjoni. Poi viè ll'arte, er diggiuno, la fatica, La piggione, le carcere, er governo, Lo spedale, li debbiti, la fica, Er zol d'istate, la neve d'inverno... E pper urtimo, Iddio sce bbenedica, Viè la morte, e ffinissce co l'inferno.

Nove meses no fedor, depois nas faixas, por entre crostas, beijocas, lagrimonas, depois à trela, na andadeira, em camisinha, pára turras na testa, cueiros por calções. Depois começa o tormento da escola, o á bê cê, a vergasta e as frieiras, a rubéola, a caca na cagadeira e um pouco de escarlatina e de bexigas. Depois o ofício, o jejum, a trabalheira, a pensão a pagar, as prisões, o governo, o hospital, as dívidas, a crica, o sol no Verão, a neve no Inverno… E por último – e que Deus nos abençoe – vem a morte, e acaba no inferno.

Roma, 18 gennaio 1833 Giuseppe Gioachino Belli

Giuseppe Gioachino Belli. Trad. Alexandre O’Neill

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S (esse)

Sentinela. Sentinelas. Direi de meu tempo que havia um S havia uma sombra e um silêncio havia um S de sigla e de suspeita com suas seitas e seus sicários.

Ou talvez selva. Talvez serpente. S de sebo e de sebenta: seco seco. E também senão. E também senil.

Não sei se signo não sei se sina não sei se simplesmente sujo. Ou só servil. Ou só sevícia.

De meu tempo direi que havia um S sem sentido.

Havia um S de Saturno havia um susto havia um S de soturno sobre um S de sol.

E também Setembro. E também solstício. Saga e safra. Ou talvez semente. Ou talvez segredo.

De meu tempo direi que havia um S de sepulcro.

Havia um S de sal e sílex havia um silvo Havia uma sílaba ciciada.

E também o sonho: entre suar e ser. (Como um soluço como um soluço.) De meu tempo direi que havia um S de sol e som. Havia Setembro e um assobio contra um S de sombra e de silêncio.

Manuel Alegre, 18 de Janeiro de 74

OFERENDA

São rosas desfolhadas pela noite as oferendas que faço ao meu amor. São raivas soterradas as palavras que segredo velando o meu amor. Os gestos são de medo, os do afago. E a secreta angústia do desejo a porta que me fecha para a vida. São rosas desfolhadas meu amor. São raivas soterradas meu amor. Amor de carne, pasmo de sangue a revelar-me a ferida na luta de encontrar para perder, furor que me devolve corpo a corpo ao espaço onde não ter é ter chegado, de olhos fendidos e com dedos ocos, em frente ao sonho sem saber sonhar.

Em ti, amor, procuro e em ti, abraço o que me foge pois bem sei, meu amor, amante amor que ao nos amarmos nós queremos ser de nós o que em vão ser nos destruísse. E bem sei, bem sei, fêmea de mim, que num e noutro só sabemos ver o que de nós em nós não tem lugar. E és para mim, bem sei, todo o mistério e eu sou a busca dele que te procuro pelo caminho que o teu corpo afirma. Amor, desgosto só de me não seres que eu guardo e quero e peço neste vão abraçar-te solitário pra sem mim ir sugando a tua carne pra sem ti ir fingindo a minha vida - as oferendas que tive e desfolhei - as rosas derramadas pela noite.

Hélder Macedo

Bjorn Rorslett

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos dispersou-me os amigos tenho o coração confundido e a rua é estreita estreita em cada passo as casas engolem-nos sumimo-nos estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Soletro velhas palavras generosas Flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada mãe estrela música. São as palavras cruzadas do meu sonho palavras soterradas na prisão da minha vida isso todas as noites do mundo uma noite só cumprida num quarto só

António Ramos Rosa, Viagem Através de Uma Nebulosa

Sou um funcionário apagado um funcionário triste a minha alma não acompanha a minha mão Débito e Crédito Débito e Crédito a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado Sou um funcionário cansado de um dia exemplar Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? Liers

Summertime

Olho a sua boca. Tanto que vem o punhal da luz levar-me os olhos. O carvão, a cinza dos meus olhos. Os seus. A sua boca, o sulco onde me pergunta e eu respondo. A morrer, a olhar anavalhado o seu brilho bravio. Sons de sirenes, uivos, estrondos, desabamentos, ravinas donde rompe o amor. A sua boca.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição

Edward Hopper

A CARPA

Sobre uma colagem de Marina Obo

Fundolho escamado superficiando olho prà carpa. Vem do fundo do olho que foi ao fundo. Movindo das profundas move manualetas,num abr'olhos de peixespanto. Dizque tacteia águas que estão na água, trevas que estão na terra. Podeserque. Carpabricolada,reactiva nossa gula das jóias, tão segura da sua completude está, tão cor é na desluz que a encerra (escrínio). Nada nadando,a carpa vem ao de cima devolver o olhar com que a vimos. Olho na carpa de olhos em nós.Por ela e por nós. Peixespelho,troço de maravilhoso, atenção!, a carpa vai fechar a luz. Fechou.Agora, no escuro, a carpa travestindo-se para novos feéricos espectáculos pela mão de Marina Obo. Oh, as Carpas amestradas!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

La signora dell'ultima volta

L'ultima volta che la vide non sapeva che era l'ultima volta che la vedeva. Perchè? Perchè queste cose non si sanno mai. Allora non fu gentile quell'ultima volta? Sì, ma non a sufficienza per l'eternità.

Vivian Lamarque

Foto: nasa

FRENTE AL MAR

Oh mar, enorme mar, corazón fiero De ritmo desigual, corazón malo, Yo soy más blanda que ese pobre palo Que se pudre en tus ondas prisionero. Oh mar, dame tu cólera tremenda, Yo me pasé la vida perdonando, Porque entendía, mar, yo me fui dando: «Piedad, piedad para el que más ofenda». Vulgaridad, vulgaridad me acosa. Ah, me han comprado la ciudad y el hombre. Hazme tener tu cólera sin nombre: Ya me fatiga esta misión de rosa. ¿Ves al vulgar? Ese vulgar me apena, Me falta el aire y donde falta quedo, Quisiera no entender, pero no puedo: Es la vulgaridad que me envenena.

Me empobrecí porque entender abruma, Me empobrecí porque entender sofoca, Bendecida la fuerza de la roca! Yo tengo el corazón como la espuma. Mar, yo soñaba ser como tú eres, Allá en las tardes que la vida mía Bajo las horas cálidas se abría... Ah, yo soñaba ser como tú eres. Mírame aquí, pequeña, miserable, Todo dolor me vence, todo sueño; Mar, dame, dame el inefable empeño De tornarme soberbia, inalcanzable. Dame tu sal, tu yodo, tu fiereza. Aire de mar!... Oh, tempestad! Oh enojo! Desdichada de mí, soy un abrojo, Y muero, mar, sucumbo en mi pobreza. Y el alma mía es como el mar, es eso,

Ah, la ciudad la pudre y la equivoca; Pequeña vida que dolor provoca, Que pueda libertarme de su peso! Vuele mi empeño, mi esperanza vuele... La vida mía debió ser horrible, Debió ser una arteria incontenible Y apenas es cicatriz que siempre duele.

Alfonsina Storni, Irremediablemente

EXPLICAÇÃO DA ESPERA

Quando me sentarei ao sol Despido Líquen vivendo Da inclinação dos ramos? Quando crescerei como nuvem Mão leve sobre a fronte Da doença? Quando repousarei Ausente sem sofrer Qualquer ausência?

Daniel Faria, Poesia

O espírito da matéria

Também as catedrais são sinfonias: Rege a massa coral da arquitectura a divinização da partitura; e ambas se irmanam por analogias! O alegro, o adágio, o andante, a tessitura, o arco, o fuste, o florão... Alegorias que, pela execução das harmonias, Timbram exatas, no esplendor da altura! E, pelos olhos, as orquestras se ouvem. E, pelo ouvido, a torre se levanta, para que os sonhos da matéria louvem! E na sua amplitude sacrossanta, a alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven, fulge na pedra, quando a pedra canta!

Martins Fontes

O TEMPO

Seria já... ou ontem? Não me lembro O que interessa o tempo neste caso? Se não fosse Agosto era Dezembro As horas que se gastam não refazem

Seria já... ou ontem? Não me lembro Os anos voam num instante de asa E nós não o querendo vamos sendo e sem dar por isso a vida passa

Maria Teresa Horta, Destino

Christian Buth

HOMEM

Homem que vens de humanas desventuras, Que te prendes à vida e te enamoras, Que tudo sabes e que tudo ignoras, Vencido herói de todas as loucuras; Que te debruças pálido nas horas Das tuas infinitas amarguras E na ambição das coisas mais impuras És grande simplesmente quando choras; Que prometes cumprir e que te esqueces, Que te dás à virtude e ao pecado, Que te exaltas e cantas e aborreces, Arquitecto do sonho e da ilusão, Ridículo fantoche articulado Eu sou teu camarada e teu irmão.

António Botto, Canções

Felice Applauso

à la mystérieuse

J'ai tant rêvé de toi que tu perds ta réalité. Est-il encore temps d'atteindre ce corps vivant et de baiser sur cette bouche la naissance de la voix qui m'est chère? J'ai tant rêvé de toi que mes bras habitués en étreignant ton ombre à se croiser sur ma poitrine ne se plieraient pas au contour de ton corps, peut-être. Et que, devant l'apparence réelle de ce qui me hante et me gouverne depuis des jours et des années, je deviendrais une ombre sans doute.O balances sentimentales. J'ai tant rêvé de toi qu'il n'est plus temps sans doute que je m'éveille. Je dors debout, le corps exposé à toutes les apparences de la vie et de l'amour et toi, la seule qui compte aujourd' hui pour moi, je pourrais moins toucher ton front et tes lèvres que les premières lèvres et le premier front venu. J'ai tant rêvé de toi, tant marché, parlé, couché avec ton fantôme qu'il ne me

reste plus peut-être, et pourtant, qu'à être fantôme parmi les fantômes et plus ombre cent fois que l'ombre qui se promène et se promènera allégrement sur le cadran solaire de ta vie

Robert Desnos, Corps et Biens

Lusitânia no Bairro Latino

3

Georges! anda ver meu país de romarias E procissões! Olha estas moças, olha estas Marias! Caramba! dá-lhes beliscões! Os corpos delas, vê! são ourivesarias, Gula e luxúria dos Manéis! Têm nas orelhas grossas arrecadas, Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, Ao pescoço serpentes de cordões, E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Além dos seus, mais trinta corações! Vá! Georges, faze-te Manel! viola ao peito, Toca a bailar! Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito. Que hão-de gostar! Tira o chapéu, silêncio! Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteiros. Lá vem o Pálio e pegam ao cordão Honestos e morenos cavalheiros. [...]

António Nobre, Só

Amadeo de Souza-Cardoso

Logo atrás de ti

Esta dor não passa quando adormeço chora ao pé de mim irremediável alguém nos toca no ombro e damos por nós mais sozinhos o meu lugar na morte é junto da janela logo atrás de ti

Mário Rui de Oliveira

Anna L. Zentner

Hiroshima - 6 de Agosto de 1945 - 8 h 15 m

É a vida Sobe-se numa corrida. Correm-se p'rigos em vão. Adivinhaste: é a vida a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética

É uma escada em caracol e que não tem corrimão. Vai a caminho do Sol mas nunca passa do chão. Os degraus, quanto mais altos, mais estragados estão. Nem sustos nem sobressaltos servem sequer de lição. Quem tem medo não a sobe. Quem tem sonhos também não. Há quem chegue a deitar fora o lastro do coração.

As crianças com as suas vozes brancas

A MINHA TARDE

riscam alegremente o céu azul passam as aves em seu voo rasante desde sá de miranda até jorge de sena

Disponho do vento disponho do sol disponho da árvore

E o tempo passa assim. Sou eu e o passado

arranjo pássaros arranjo crianças

Era novo. Não tenho a razão pelo meu lado

tenho mesmo à minha disposição o mar talvez com tudo isto possa formar uma tarde

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]

uma tarde azul e calma onde me possa refugiar Mas e as ideias as doutrinas os problemas? Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo como pretender ter resolvido o mínimo problema? E as ideias, que só servem para dividir? As ideias têm húmeros inúmeros e é difícil caminhar no meio da multidão Podia dizer (mas não me deixa descansado): Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado Deixai os pássaros cantar as crianças brincar o tempo não urge o coração não arde Quem sou eu? Eu só e minha tarde

Andrea Schauerte

LLUVIA

Oh lluvia silenciosa, sin tormentas ni vientos, lluvia mansa y serena de esquila y luz suave, lluvia buena y pacifica que eres la verdadera, la que llorosa y triste sobre las cosas caes!

y eres sobre el piano dulzura emocionante; das al alma las mismas nieblas y resonancias que pones en el alma dormida del paisaje!

Federico García Lorca

Oh lluvia franciscana que llevas a tus gotas almas de fuentes claras y humildes manantiales! Cuando sobre los campos desciendes lentamente las rosas de mi pecho con tus sonidos abres. El canto primitivo que dices al silencio y la historia sonora que cuentas al ramaje los comenta llorando mi corazón desierto en un negro y profundo pentagrama sin clave. Mi alma tiene tristeza de la lluvia serena, tristeza resignada de cosa irrealizable, tengo en el horizonte un lucero encendido y el corazón me impide que corra a contemplarte. Oh lluvia silenciosa que los árboles aman

Gonzalo Espinosa Mendez

Encontro no poente Encontro no poente essa calma luminosa que rói a ilusão os pretextos subtis e brandamente ilesos a que a razão resiste. Soberanamente se elevam os pássaros pouco ou do maior encanto lhes atendo as penas. Há porém um problema maior a verificação experimental da existência seu decorrer coeso. Procuro a haste que delicadamente retém o lacerado pranto de Actéon e abandonada talvez a poesia tento o encontro da maior contradição adequado entender da felicidade. Isto que digo: que de muito podermos contrafeitos em si do nada é feito o sinal gasto. Ou que dádiva de encontro, o aliado menor mal sujeito que em Elêusis cantávamos sob as oliveiras

Maria Alzira Seixo, Letra da Terra

DEFINIÇÃO

O sal é o mar servido à mesa nas suas praias domésticas de linho.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

UM INSTANTE

Aqui me tenho como não me conheço nem me quis sem começo nem fim aqui me tenho sem mim nada lembro nem sei à luz presente sou apenas um bicho transparente.

Ferreira Gullar

OH YES OH SIM there are worse things than being alone but it often takes decades to realize this and most often when you do it´s too late and there´s nothing worse than too late.

Charles Bukowsky

há coisas bem piores do que ser sozinho. mas às vezes levamos décadas a percebê-lo. e ainda mais vezes demasiado tarde e não há nada pior do que demasiado tarde

Charles Bukowsky Trad. de Amélia Pais

A un olmo seco

Al olmo viejo, hendido por el rayo y en su mitad podrido, con las lluvias de abril y el sol de mayo algunas hojas verdes le han salido. El olmo centenario en la colina que lame el Duero! Un musgo amarillento le mancha la corteza blanquecina al tronco carcomido y polvoriento. No será, cual los álamos cantores que guardan el camino y la ribera, habitado de pardos ruiseñores. Ejército de hormigas en hilera va trepando por él, y en sus entrañas urden sus telas grises las arañas. Antes que te derribe, olmo del Duero, con su hacha el leñador, y el carpintero te convierta en melena de campana, lanza de carro o yugo de carreta; antes que rojo en el hogar, mañana,

ardas en alguna mísera caseta, al borde de un camino; antes que te descuaje un torbellino y tronche el soplo de las sierras blancas; antes que el río hasta la mar te empuje por valles y barrancas, olmo, quiero anotar en mi cartera la gracia de tu rama verdecida. Mi corazón espera también, hacia la luz y hacia la vida, otro milagro de la primavera. António Machado, Poesias Completas

BRAÇOS ABERTOS

Separei os braços E exilei o peito Doeu-me tanto Que não sei chorá-lo

Daniel Faria, Poesia

DEUS NÃO VIVE AQUI

Estas paredes estão geladas. No quarto ao lado, alguém suspira,

Deus não vive aqui, não nos contempla pelos vitrais das suas naves incendiadas. É meio-dia neste país de lágrimas. O sol está parado nas doze lanças de luz insuportável. É meio-dia sobre o rio amargo, cujas barcas dormem na brancura terrível desta hora. Quem arrancou os crisântemos que morrem na casa abandonada? Dói este silêncio, esta ausência, este relógio de pêndulo com passos de fantasma.

mas o quarto está vazio, desde que tu partiste, meu pai das ilhas assombradas. Por isso dizemos, em voz baixa, em surdina, dizemos que amámos, num dia de feroz claridade, num cais de estacas febris, as têmporas que explodiam, todas as veias queimadas pela neve das estepes sem fim. Por isso, deixa para sempre os desertos desta vida, e desce, meu irmão das estrelas,

desce as margens do rio amargo, e ouve, ouve aquele que murmura nos quartos vazios, ouve a oração dos malditos, dos aflitos, ouve o rumor das giestas nos campos do desamparo, as pás que escavam os alicerces, o machado de impiedosa pedra que brilha sobre o gelo do Árctico, meu irmão dos barcos naufragados, procura-me onde o meu corpo já não está, nem o meu nome, aqui, nesta casa abandonada.

José Agostinho Baptista, Esta Voz É Quase O Vento

Bogdan H.

El Pi de Formentor (Electus ut cedri)

Mon cor estima un arbre! Més vell que l'olivera, més poderós que el roure, més verd que el taronger, conserva de ses fulles l'eterna primavera, i lluita amb les tormentes que assalten la ribera, com un gegant guerrer. No guaita per ses fulles la flor enamorada; no va la fontanella ses ombres a besar; mes Déu ungí d'aromes sa testa consagrada i li donà per trone l'esquerpa serralada, per font l'immensa mar. Quan lluny damunt les ones renaix la llum divina, no canta per ses branques l'aucell que encativam; el crit sublim escolta de l'àguila marina, o del voltor que passa sent l'ala gegantina remoure son fullam.

Del llim d'aquesta terra sa vida no sustenta; revincla per les roques sa poderosa rel, té pluges i rosades i vents i llum ardenta, i, com un vell profeta, rep vida i s'alimenta de les amors del cel. Arbre sublim! Del geni n'és ell la viva imatge; domina les muntanyes i aguaita l'infinit; per ell la terra és dura, mes besa son ramatge el cel qui l'enamora, i té el llamp i l'oratge per glòria i per delit. Oh! sí: que quan a lloure bramulen les ventades i sembla entre l'escuma que tombi el seu penyal, llavors ell riu i canta més fort que les onades i vencedor espolsa damunt les nuvolades sa cabellera real. Arbre, mon cor t'enveja! Sobre la terra impura, com a penyora santa duré jo el teu record. Lluitar constant i vèncer, reinar sobre l'altura i alimentar-se i viure de cel i de llum pura... oh vida, oh noble sort!

Amunt, ànima forta! Traspassa la boirada i arrela dins l'altura com l'arbre els penyals. Veuràs caure a tes plantes la mar del món irada, i tes cançons tranquiles 'niran per la ventada com l'au dels temporals.

Miquel Costa i Llobera (Versió de 1907)

EL PINO DE FORMENTOR Hay en mi tierra un árbol que el corazón venera; De cedro es su ramaje, de césped su verdor, Anida entre sus hojas perenne primavera Y arrastra los turbiones que azotan la ribera, Añoso luchador. No asoma por sus ramas la flor enamorada, No va la fuentecilla sus plantas a besar; Mas báñase en aromas su frente consagrada, Y tiene por terreno la costa acantilada, Por fuente el hondo mar. Al ver sobre las olas rayar la luz divina, No escucha débil trino que al hombre da placer; El grito oye salvaje del águila marina, Y siente el ala enorme que el vendaval domina Su copa estremecer.

Del limo de la tierra no toma vil sustento; Retuerce sus raíces en fuerte peñascal. Bebe rocío y lluvias, radiosa luz y viento; Y cual viejo profeta recibe el alimento De efluvio celestial. ¡Árbol sublime¡ Enseña de vida que adivino, La inmensidad augusta domina por doquier, Si dura es la tierra, celeste su destino Le encanta, y aun le sirve el trueno y torbellino De gloria y de placer. ¡Oh¡ sí; que cuando libres asaltan la ribera Los vientos y las olas con hórrido fragor, Entonces ríe y canta con la borrasca fiera, Y sobre rotas nubes la augusta cabellera Sacude triunfador. ¡Árbol, tu suerte envidio¡ Sobre la tierra impura de un ideal sagrado la cifra en ti he de ver. Luchar, vencer constante, mirar desde la altura, Vivir y alimentarse de cielo y de luz pura...

¡Oh vida, oh noble ser¡ ¡Arriba, oh alma fuerte¡ Desdeña el lodo inmundo, y en las austeras cumbres arraiga con afán. Verás al pie estrellarse las olas de este mundo, Y libres como alciones sobre ese mar profundo Tus cantos volarán.

Miquel Costa i Llobera

Miró

PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO

mas tenho medo, medo que toda a música cesse e tu não possas mais olhar as rosas.

Não sei como vieste, mas deve haver um caminho

Medo de quebrar o fio com que teces os dias sem memória.

para regressar da morte. Com que palavras Estás sentada no jardim, as mãos no regaço cheias de doçura, os olhos pousados nas últimas rosas dos grandes e calmos dias de setembro.

ou beijos ou lágrimas se acordam os mortos sem os ferir, sem os trazer a esta espuma negra onde corpos e corpos se repetem, parcimoniosamente, no meio de sombras?

Que música escutas tão atentamente que não dás por mim? Que bosque, ou rio, ou mar? Ou é dentro de ti que tudo canta ainda?

Deixa-te estar assim, ó cheia de doçura, sentada, olhando as rosas, e tão alheia que nem dás por mim.

Queria falar contigo, dizer-te apenas que estou aqui,

Eugénio de Andrade, Coração do Dia

Nos olhos de Isa

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite Acende fogueiras. Os meus olhos param. Nos olhos de Isa. Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde. Nos olhos de Isa. Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas, Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra. Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel Onde as abelhas constroem a tarde Desesperadamente. Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa, Nos Olhos de Isa

Elisabetta Rogai

Pára-me de repente o pensamento

Pára-me de repente o pensamento Como que de repente refreado Na doida correria em que levado Ia em busca da paz do esquecimento Pára surpreso, escrutador, atento, Como pára um cavalo alucinado Ante um abismo súbito rasgado. Pára e fica, e demora-se um momento. Pára e fica, na doida correria. Pára à beira do abismo, e se demora. E mergulha na noite escura e fria Um olhar de aço, que essa noite explora. Mas a espora da dor seu flanco estria, E ele galga e prossegue sob a espora...

Ângelo de Lima , In Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro

Fractal

CUÉNTAMELO OTRA VEZ

Conta-mo outra vez Cuéntamelo otra vez: es tan hermoso que no me canso nunca de escucharlo. Repíteme otra vez que la pareja del cuento fue feliz hasta la muerte,que ella no le fue infiel, que a él ni siquierase le ocurrió engañarla.

Conta-mo outra vez: é tão bonito que não me canso nunca de escutá-lo. Repete-me outra vez que o par do conto foi feliz até à morte.

Y no te olvides de que, a pesar del tiempo y los problemas,

Que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer

se seguían besando cada noche.

lhe ocorreu enganá-la. E não te esqueças

Cuéntamelo mil veces, por favor.

de que, apesar do tempo e dos problemas,

Es la historia más bella que conozco.

continuaram beijando-se cada noite. Conta-mo mil vezes por favor é a história mais bela que conheço.

Amalia Bautista Amalia Bautista. Trad.: Jorge Sousa Braga

Picasso

SER LUZ Queria ser luz para poder sentir a tua alma sôfrega bebê-la... Queria ser luz para poder dormir vibrando e ardendo como aquela estrela... Se eu fosse luz iria descobrir mais oceano ainda a cada vela; como os olhos das águias a fulgir seguiria nas noites de procela... Ser luz para doirar toda a miséria, talhar em jóias as pedras dos caminhos, florir as almas, acordar os ninhos... Quando beijo a chorar a noite etérea do teu olhar, amor, a minha cruz é esta sede imensa de ser luz!

António Patrício, Poesia Completa

sub-soneto-crítico

paraíso não há nem para riso nem país para isso nem para brisas. ao vento o rosto revela-se utopia nem de noite nem de dia. só a lúdica crise se revolta na onda que leva a vela. eles SE tomam a sério no se. Sonia Delaunay

E. M. de Melo e Castro

CHILE - 11 de Setembro de 1973

LAS MASACRES

Pero entonces la sangre fue escondida detrás de las raíces, fue lavada y negada (fue tan lejos), la lluvia del Sur la borró de la tierra (tan lejos fue), el salitre la devoró en la pampa: y la muerte del pueblo fue como siempre ha sido: como si no muriera nadie, nada, como si fueran piedras las que caen sobre la tierra, o agua sobre el agua.

Arnd Schultheiss

Nadie sabe dónde enterraron los asesinos estos cuerpos, pero ellos saldrán de la tierra a cobrar la sangre caída en la resurrección del pueblo. De Norte a Sur, adonde trituraron

En medio de la Plaza fue este crimen.

o quemaron los muertos, fueron en las tinieblas sepultados, o en la noche quemados en silencio, acumulados en un pique o escupidos al mar sus huesos: nadie sabe dónde están ahora, no tienen tumba, están dispersos en las raíces de la patria sus martirizados dedos: sus fusilados corazones:

No escondió el matorral la sangre pura del pueblo, ni la tragó la arena de la pampa.

Nadie escondió este crimen.

Este crimen fue en medio de la Patria.

la sonrisa de los chilenos: los valerosos de la pampa: los capitanes del silencio.

Pablo Neruda, Canto General

a mais pura estância

PÉGASO

das lágrimas. À saída do estádio

Sebastião Alba, A Noite Dividida

pressentimos na brisa a chegada dos signos da noite

Indeciso, o cavalo transpõe o fosso do horizonte, sob a lua e um alto expoente de pó

Inverte-se o casco percussor à beira da fonte do Hélicon, e o cavalo grego deita-se para morrer

Um frémito distende-lhe as asas; no olhar anterior ao mito, aflui agora Odilon Redon

What Lips My Lips Have Kissed, And Where, And Why

What lips my lips have kissed, and where, and why, I have forgotten, and what arms have lain Under my head till morning; but the rain Is full of ghosts tonight, that tap and sigh Upon the glass and listen for reply, And in my heart there stirs a quiet pain For unremembered lads that not again Will turn to me at midnight with a cry. Thus in winter stands the lonely tree, Nor knows what birds have vanished one by one, Yet knows its boughs more silent than before: I cannot say what loves have come and gone, I only know that summer sang in me A little while, that in me sings no more. Lois Barker

Edna St. Vincent Millay

[construir uma central nuclear;

Desligando a TV

impeça o desvio dos nossos aviões; dê um empurrãozinho na Habituação Social; dê também uma olhadela pela Secretaria de Estado da

A esta hora as anémonas nadam evitando o lodo e Jesus Cristo está ainda sentado à direita de Deus Pai

É a ele

Cultura;

que me dirijo: para que

ajude o mais possível nas nossas colheitas,

evite a poluição das águas;

procure a maneira de actualizar as pensões de reforma e

acenda a luz das auto-estradas;

invalidez;

faça admitir na Guarda Nacional indivíduos capazes;

termine com as pequenas e grandes invejas dos nossos

fiscalize devidamente os empréstimos externos;

intelectuais;

esteja ao lado dos camponeses e operários;

volte a pôr a Feira do Livro na Avenida da Liberdade;

mantenha a nossa cidade limpa;

tente que cada um de nós ame mais o próximo ou

acabe de vez com a inflação e o contrabando;

se não for possível que ao menos façamos todos férias

não permita lock-outs;

repartidas

não se alheie das graves dificuldades do Serviço Nacional de Saúde; atenda as preces das mães solteiras; não deixe continuar nesta situação o nosso único Zoo; dê coragem aos que julgam que já não há nada a fazer; tire da cabeça dos nossos governantes a ideia maluca de mandarem

Joaquim Pessoa, Amor Combate

Et un sourire

La nuit n'est jamais complète Il y a toujours puisque je le dis Puisque je l'affirme Au bout du chagrin une fenêtre ouverte Une fenêtre éclairée Il y a toujours un rêve qui veille Désir à combler faim à satisfaire Un coeur généreux Une main tendue une main ouverte Des yeux attentifs Une vie la vie à se partager.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour

Il n'y a pas d'amour heureux Rien n'est jamais acquis à l'homme, ni sa force Ni sa faiblesse, ni son coeur. Et quand il croit Ouvrir ses bras, son ombre est celle d'une croix Et quand il croit serrer son bonheur, il le broie Sa vie est un étrange et douloureux divorce Il n'y a pas d'amour heureux

Le temps d'apprendre à vivre il est déjà trop tard Que pleurent dans la nuit nos coeurs à l'unisson Ce qu'il faut de malheur pour la moindre chanson Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare

Sa vie, elle ressemble à ces soldats sans armes

Il n'y a pas d'amour heureux

Qu'on avait habillés pour un autre destin A quoi peut leur servir de se lever matin Eux qu'on retrouve au soir désoeuvrés incertains Dites ces mots " Ma vie " et retenez vos larmes Il n'y a pas d'amour heureux

Mon bel amour, mon cher amour, ma déchirure Je te porte dans moi comme un oiseau blessé

Il n'y a pas d'amour qui ne soit à douleur Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri Et pas plus que de toi l'amour de la patrie Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs

Il n'y a pas d'amour heureux Mais c'est notre amour à tous deux

Et ceux-là sans savoir les mots que j'ai tressés Et qui, pour tes grands yeux, tout aussitôt moururent Il n'y a pas d'amour heureux.

Louis Aragon, La Diane française

L'anima mia si sveglierà nel sole

POESIA FACILE

Nel sole eterno, libera e fremente.

Dino Campana (1885-1932) Pace non cerco, guerra non sopporto Tranquillo e solo vo pel mondo in sogno Pieno di canti soffocati. Agogno La nebbia ed il silenzio in un gran porto. POESIA FÁCIL In un gran porto pien di vele lievi Pronte a salpar per l'orizzonte azzurro Dolci ondulando, mentre che il sussurro Del vento passa con accordi brevi.

Paz não busco, guerra não suporto Tranquilo e só vou pelo mundo em sonho Cheio de cantos sufocados. Apeteço

E quegli accordi il vento se li porta

A névoa e o silêncio num grande porto.

Lontani sopra il mare sconosciuto. Sogno. La vita è triste ed io son solo Num grande porto cheio de velas leves O quando, o quando in un mattino ardente

Prestes a zarpar para o horizonte azul

Doces ondulando, enquanto o sussurro Do vento passa com acordes breves.

E aqueles acordes o vento os leva Distantes sobre o mar desconhecido. Sonho. A vida é triste e eu estou só.

Oh quando oh quando numa manhã ardente A minha alma despertará no sol No sol eterno, livre e fremente.

Dino Campana, in Dez Poetas Italianos Contemporâneos, Selecção, tradução e notas de Albano Martins Marlene Kremers

Essa velha ciência, a de esperar,...

isso que te interessa. Gostavas apenas que os cadernos ficassem, gravados de ti e de quem amas, guardados em gavetas, guardando o mundo.

Essa velha ciência, a de esperar, escreve-la em cadernos retirados a cada viagem. Neles anotaste os movimentos do mundo, o balanço

Francisco José Viegas, O Puro e o Impuro

do mar. São só velhos, os cadernos; ainda

escreves à mão, ainda respiras por ele, ciência antiga - onde a conservas? Linha a linha as viagens vão passando por eles como um mapa: aqui as ilhas, ali pequenos continentes,

provas de que o mundo não acaba à tua porta quando o jardim desaparece entre os granitos. Levantas a voz uma vez por outra, mas não é Duarte belo

A fome

Aqui, onde a mão não alcança o interruptor da vida, aqui só brilha a solidão. Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão não brilha, apenas se estorce. A fome fala através das feridas.

Francis Bacon

Luís Miguel Nava, Vulcão

"Chora, chora, mulher arrenegada; "Lacrimeja por esses aquedutos... LÁGRIMAS

Ela chorava muito e muito, aos cantos,

"Quero um banho tomar d’ água salgada".

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde

Frenética, com gestos desabridos; Nos cabelos, em ânsias desprendidos, Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos, Deitado no sofá, pés aquecidos, Ao sentir-lhe os soluços consumidos, Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos; - "Tu pareces nascida de rajada, "Tens despeitos raivosos, resolutos; e ne

Jsuis seulement amoureux de Marie

Je ne suis seulement amoureux de Marie, Anne me tient aussi dans les liens d'Amour, Ore l'une me plaît, ore l'autre à son tour : Ainsi Tibulle aimait Némésis, et Délie.

On me dira tantôt que c'est une folie D'en aimer, inconstant, deux ou trois en un jour, Voire, et qu'il faudrait bien un homme de séjour, Pour, gaillard, satisfaire à une seule amie.

Je réponds à cela, que je suis amoureux, Et non pas jouissant de ce bien doucereux, Que tout amant souhaite avoir à sa commande.

Quant à moi, seulement je leur baise la main, Les yeux, le front, le col, les lèvres et le sein, Et rien que ces biens-là d'elles je ne demande.

Pierre de Ronsard, Second livre des Amours

Chagall

Adeus

Consumada, Um poema de líquido pudor, Um sorriso de amor, E mais nada.

É um adeus... Miguel Torga

Não vale a pena sofismar a hora! É tarde nos meus olhos e nos teus... Agora, O remédio é partir discretamente, Sem palavras, Sem lágrimas, Sem gestos. De que servem lamentos e protestos Contra o destino? Cego assassino A que nenhum poder Limita a crueldade, Só o pode vencer a humanidade Da nossa lucidez desencantada. Antes da iniquidade

Willi Schnekenburger

SETEMBRE

Somriuen en les postes diafanitats llunyanes. Amb una delicada tristesa de germanes, les roses de setembre s’esfullen lentament.

Aquella primavera ja és lluny per no tornar;

Miquel Ferrà, A mig camí, 1926.

fugí batent ses ales en la claror xalesa. De sos daurats ensomnis, una tristesa en resta, i de ses flors tan belles, ni una en va fruitar. Ara, que com una ombra l’estiu declina ja i es va emboirant de llàgrimes sa lluminosa festa, no sents pertot difondre’s, ànima meva, aquesta sentor de flor marcida qui en l’aire se desfà? Potser l’abril, d’enfora, l’últim adéu t’envia. El seu record perfuma l’estiu en sa agonia, encomanant als aires un mal d’enyorament.

Victoria Josephson

Tempo, subitamente solto...

Tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias, como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo, mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer. eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar, que eu amava, quando imaginava que amava, era a tua tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto, era a tua pele, antes de te conhecer, existia nas árvores nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde. muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto

Estamos agora em paz

Estamos agora em paz sabendo simular o esquecimento sentados com os olhos no vento lá de fora atirado para antes de nós as mãos caídas nos joelhos mas nada suplicantes só esvaídas conformados com não nos conformarmos resignados a esperando não esperarmos Tapiès como se tudo fosse um imenso tanto faz

Mário Dionísio, Terceira Idade

OLHAR

Olhei quase sempre para o chão. E aquela estrela que parava no sul, descia de repente e caía aos nossos pés. Recolhi-a, ano após ano, e com o resto da sua luz quis iluminar o teu caminho. Mas tu não viste as suas lágrimas que eram as minhas, apagando a última, sobre o chão.

José Agostinho Baptista, Biografia

Tux

AO SOL

(Oração de tradição oral)

Eu te saúdo sol. Sol das estações, Na tua viagem pelos altos céus. Rasto indelével no cimo dos montes, Senhor amável de todas as estrelas. Mergulhas sereno nas trevas do mar, E nada te toca e nada tu sofres. Depois te alevantas da calma das ondas, Como jovem príncipe coroado de rosas.

Cultura Celta (gaélico escocês) Trad.: José Domingos Morais In Rosa do Mundo - 2001 poemas para o Futuro

LA ORILLA DEL MAR A mí venga el lloro, pues debo penar. No es agua ni arena la orilla del mar.

José Gorostiza No es agua ni arena la orilla del mar. El agua sonora de espuma sencilla, el agua no puede formarse la orilla. Y porque descanse en muelle lugar, no es agua ni arena la orilla del mar. Las cosas discretas, amables, sencillas; las cosas se juntan como las orillas. Lo mismo los labios, si quieren besar. No es agua ni arena la orilla del mar. Yo sólo me miro por cosa de muerto; solo, desolado, como en un desierto.

A UMA OLIVEIRA

Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.

Pré-camoniana, sazão a sazão, foste varejada séculos a fio. O pinho viajou. Tu ficaste. Ao som bárbaro de um rádio de pilhas, desdobram toalhas na tua sombra rala.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Os trabalhos da mão

Começo a dar-me conta: a mão que escreve os versos envelheceu. Deixou de amar as areias das dunas, as tardes de chuva miúda, o orvalho matinal dos cardos. Prefere agora as sílabas da sua aflição. Sempre trabalhou mais que sua irmã, um pouco mimada, um pouco preguiçosa, mais bonita. A si coube sempre a tarefa mais dura: semear, colher, coser, esfregar. Mas também acariciar, é certo. A exigência, o rigor, acabaram por fatigá-la. O fim não pode tardar: oxalá tenha em conta a sua nobreza.

Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência

Les feuilles mortes

Refrain: C'est une chanson qui nous ressemble Toi, tu m'aimais et je t'aimais Et nous vivions tous deux ensemble Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais Mais la vie sépare ceux qui s'aiment Tout doucement, sans faire de bruit Et la mer efface sur le sable Les pas des amants désunis.

Oh! je voudrais tant que tu te souviennes Des jours heureux où nous étions amis En ce temps-là la vie était plus belle, Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui Les feuilles mortes se ramassent à la pelle Tu vois, je n'ai pas oublié... Les feuilles mortes se ramassent à la pelle, Les souvenirs et les regrets aussi Et le vent du nord les emporte Dans la nuit froide de l'oubli. Tu vois, je n'ai pas oublié La chanson que tu me chantais.

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle, Les souvenirs et les regrets aussi Mais mon amour silencieux et fidèle Sourit toujours et remercie la vie Je t'aimais tant, tu étais si jolie, Comment veux-tu que je t'oublie? En ce temps-là, la vie était plus belle Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui Tu étais ma plus douce amie Mais je n'ai que faire des regrets Et la chanson que tu chantais Toujours, toujours je l'entendrai!

Paroles: Jacques Prévert

por decreto

tão mais inúteis quanto mais se sucedem ensolaradas e mudas são as manhãs de domingo : eu finjo que não te espero finges tu não nos saber e a vida segue. a olhos vistos se adelgaça perde o viço empalidece sem que haja em toda a medicina uma única maneira - poção ventosa ou vacina que a possa socorrer exceto talvez abolir - por decreto - de uma vez por todas todas elas : as mudas e claras e azuis e inúteis manhãs de domingo.

Márcia Maia

Já nasceste a saber o que eu não sei

Já nasceste a saber o que eu não sei, o que o lume na água mais procura; se me dás de beber vou ter a sede incessante da fonte mais impura. Cada noite te peço que imagines uma outra fina, elementar tortura, como essa, de nunca mais arder o corpo que no corpo se insinua. Por cada gesto teu, leio almanaques de vãs filosofias, para ter a réplica prevista à sua altura; por cada lábio, sou mais sábio que toda a corte celeste talmudista; e ainda não sei o que ao nascer sabias.

António Franco Alexandre, Duende Cory Ench

REFERÊNCIA

Quantas vezes te digo quantas vezes… que és para mim o meu homem amado? O que chega primeiro e só parte por vezes antes de eu perceber que já tinhas voltado Quantas vezes te digo quantas vezes… que és para mim o meu homem amado?

Aquele que me beija e me possui me toma e me deixa ficando a meu lado Quantas vezes te digo quantas vezes… que és para mim o meu homem amado? Que sempre me enlouquece e só aí percebo como estava perdida sem te ter encontrado

Maria Teresa Horta

Kate Liu

Aquela noite de beijos e carícias indecisas...

Aquela noite de beijos e carícias indecisas...

eu, capaz por uma vez de não pensar os meus gestos

Amaste-me talvez nesses momentos - só nesses momentos...

e tendo apenas a voz do mais obscuro instinto.

Aquele recanto de aldeia esquecido no meio da cidade,

A natureza em volta aniquilava as nossas biografias,

a noite perfeita,

e não havia senão a extática presença da terra e dos astros,

a paz imensa daquela hora breve

e perdidos nela, nós, tão pobres, tão abandonados,

- essa indizível magia de certas noites imensas...

purificados de toda a nossa miséria,

Sim, amaste-me talvez nesses breves momentos

tão Eva e Adão antes da maçã comida,

Em que fomos apenas a Mulher e o Homem

nós, vivos em nossa carne bem humana,

- tu, liberta da tortura de analisar sem fim

tecendo nas linhas embriagadas das nossas carícias

os teus sentimentos por este e por aquele;

o véu que nos escondia a memória dos outros.

Que importam as palavras que dissemos, as juras que fizemos! Que nesse momento, em cada um de nós, as palavras do outro eram já sabidas antes de ser ditas, e o tumulto dos nossos corpos, e o tumulto das nossas almas, e a maré viva da nossa perfeita comunhão, e o espraiar-se da nossa ternura sobre o mundo, eram a única Palavra que valia!

Adolfo Casais Monteiro In 366 poemas que falam de amor uma antologia organizada por Vasco Graça Moura

Chagall

Um dia vais pla rua como quem

inocentes obstáculos povoando

Um dia vais pla rua como quem já não deseja nada deste mundo: olhas pró céu, reparas no inferno e todas as pessoas são iguais,

a memória indelével. Continuas, atravessas o parque e de repente encontras o regresso já perdido no dia do juízo. Fica aqui, coisa inútil que alguém deixou arder, resto de prata acesa em mil estilhaços e espera pelo último semáforo, pla última canção perto da noite até que o vento seja o teu destino.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

Exactamente como foi, ...

Exactamente como foi, o medo de me enganar mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar de noite às escuras a pensar em ti E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela quinta-feira o dia do amor em vez de ser na quarta, o erro surge-me gigante, um peso carregado como Atlas Por isso é que preciso de lembrar coisas exactas, como aconteceu tudo; não só transpor depois na ficção recolhida, sou eu que te preciso e dos teus dias que me foram meus

lugar comum e fácil, mas as noites são grandes e lembrar-se exactamente, de uma forma correcta é-me tão importante dentro das noites a pensar em ti sabendo: não te vejo nunca mais

Ana Luísa Amaral

Lembrar-me exactamente como foi, o que usei nesse dia e o que usei no outro, até que horas tudo, se havia gente ou não e em que dia. Porque as palavras depois se reconstroem O que se disse então torna-se fácil. Assim dito parece coisa pouca,

Helana de Almeida

Celebración del viento y de los árboles

Si el espacio llorase, como pretende la nube, el viento sería una historia de lágrimas. En el polvo toco los dedos del viento. En el viento leo la escritura del polvo. El camino no puede avanzar de verdad más que a través de un viento dialogante con su propio polvo. El viento posa la mano derecha en el hombro de la rosa y se mete la izquierda en el bolsillo. Viento: ladrón de perfume.

El viento es el dialecto en la naturaleza. La luz es la lengua culta. El aire: único amante con quien baila la rama mientras se dispone a acostarse con otro amante. Vientos: cuerpos que caminan con pies invisibles como de ángeles. Viento: palabra confusa que murmura el silencio cósmico.

El viento enseña silencio aunque no cese de hablar.

Hoy, triste por el aire enfermo, la adelfa no ha bailado. Al árbol le gusta entonar canciones que el viento no recuerda. Viento: puerto único, movimiento perpetuo hacia lo desconocido.

Adonis (Ali Ahmad Said), Traducción del árabe por María Luisa Prieto

OUTONO

Tarde pintada Por não sei que pintor. Nunca vi tanta cor Tão colorida! Se é de morte ou de vida, Não é comigo. Eu, simplesmente, digo Que há tanta fantasia Neste dia, Que o mundo me parece Vestido por ciganas adivinhas, E que gosto de o ver, e me apetece Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga, Diário X

words

so many stories, images, proverbs, etc. But the words aren't good enough, the wrong ones kiss me. Sometimes I fly like an eagle

Be careful of words, even the miraculous ones. For the miraculous we do our best, sometimes they swarm like insects and leave not a sting but a kiss. They can be as good as fingers.

but with the wings of a wren. But I try to take care and be gentle to them. Words and eggs must be handled with care. Once broken they are impossible things to repair.

They can be as trusty as the rock you stick your bottom on. But they can be both daisies and bruises. Yet I am in love with words. They are doves falling out of the ceiling. They are six holy oranges sitting in my lap. They are the trees, the legs of summer, and the sun, its passionate face. Yet often they fail me. I have so much I want to say,

Anne Sexton

Como nuvens pelo céu

Como nuvens pelo céu Passam os sonhos por mim. Nenhum dos sonhos é meu Embora eu os sonhe assim. São coisas no alto que são Enquanto a vista as conhece, Depois são sombras que vão Pelo campo que arrefece. Símbolos? Sonhos? Quem torna Meu coração ao que foi? Que dor de mim me transtorna? Que coisa inútil me dói?

Fernando Pessoa, Poemas dispersos

Estrofa al vent

I eternament la maternal Natura l'espargirà per la infinita altura

Jo escric al vent aqueixa estrofa alada

quan el meu nom, obscur, serà extingit.

per a què el vent la porti cel enllà Gabriel Alomar jo vull seguir-la amb ma candent mirada, plorós de no poder-la acompanyar. Entre els hiverns, quan vibri la ventada, el meu vers per l'espai ressonarà, i sobre els homes sa brunzent tonada durà el so d'un incògnit oceà. I cantarà en la lira de les branques i de la lluna en les crineres blanques o en l'arquet de silenci de la nit. Gaspar Sabater

Soneto Amor perfeito dado a um ser humano: Também morre o florir de mil pomares E se quebram as ondas no oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral Esperança e desespero de alimento Me servem neste dia em que te espero E já não sei se quero ou se não quero Tão longe de razões é meu tormento Mas como usar amor de entendimento? Daquilo que te peço desespero Ainda que mo dês – pois o que eu quero Ninguém o dá senão por um momento. Mas como é belo, amor, de não durares, De ser tão breve e fundo o teu engano, E de eu te possuir sem tu te dares.

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar No mundo graves tormentos; E pera mais me espantar, Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim O bem tão mal ordenado Fui mau, mas fui castigado. Assim que, só para mim, Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Com o espírito da casa

Acabei hoje o sabonete cujo uso iniciaste aquando o teu último banho cá em casa. Ficaram coisas que te pertencem e que não sei se deva guardar, a saber: um candeeiro, um desenho, uma fotografia. Outras coisas ficaram alguns discos e já não sei que livro. Não ferem tanto. Há ainda a memória da pele, o amarelo dos olhos e algumas expressões do teu português falado. Mas estas últimas coisas já se confundem com o espírito da casa, quero dizer-te com a poeira da casa.

João Miguel Fernandes Jorge, A Jornada de Cristóvão de Távora. Primeira Parte

Não uma semelhança com ideias ou doutrinas, Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

Saí do comboio A criada que saiu com pena A chorar de saudade Saí do comboio,

Da casa onde a não tratavam muito bem...

Disse adeus ao companheiro de viagem, Tínhamos estado dezoito horas juntos.

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.

A conversa agradável,

Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

A fraternidade da viagem, Tive pena de sair do comboio, de o deixar.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

Amigo casual cujo nome nunca soube. Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas... Toda despedida é uma morte... Sim, toda despedida é uma morte. Nós, o comboio a que chamamos a vida Somos todos casuais uns para os outros, E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove, porque sou homem. Tudo me comove, porque tenho,

Álvaro de Campos

X-B

Nesta Cidade-Mundo quem poderá entoar um cântico de júbilo? O real O manto da invenção Árvores de lágrimas Florestas de papel Impotência tudo Um desvalor enche o nosso coração

Ana Hatherly, Rilkeana

em fundo

Christoph Willibald Gluck Dance of the Blessed Spirits de Orfeo ed Euridice Karlheinz Zoeller, flauta Herbert von Karajan Berliner Philharmoniker

AS SEM-RAZÕES DO AMOR

não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é primo da morte,

Não precisas ser amante,

e da morte vencedor,

e nem sempre sabes sê-lo.

por mais que o matem (e matam)

Eu te amo porque te amo.

a cada instante de amor.

Amor é estado de graça e com amor não se paga.

Carlos Drummond de Andrade

Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca,

Camille Claudel

OUTROS MASTROS

moldo o teu rosto entre os barcos: imóvel percurso do desassossego a fogo e quartzo revelo a memória de outros mastros: padrões da viagem inconcluída repousa o mar na orla dos teus olhos (vesperal e frio)

ermo dos claustros por ti erguidos no meu painel de tojo arremesso à água as grainhas e vou perder-te mais longe: onde as nascentes despertam

José Manuel Mendes, Limiar da terra

Botella al mar

Pongo estos seis versos en mi botella al mar con el secreto designio de que algún día llegue a una playa casi desierta y un niño la encuentre y la destape y en lugar de versos extraiga piedritas y socorros y alertas y caracoles.

Mario Benedetti

NA SOLIDÃO RENOVADA

Com os dentes. Sem música, sem água.

Reptilmente.

António Ramos Rosa, Nos Seus Olhos de Silêncio

A terra... O mar...

A terra é a minha passagem, O mar o meu refúgio... Maria do Céu Costa, Sentimentos no Silêncio

PELO FIM DA TARDE

Era um dia, pelo fim da tarde, o sol descia sobre o sentimento da vida.

João Miguel Fernandes Jorge, Tronos e Dominações pelo fim da Tarde

PENSAMENTO

meu penssamento partiu no vento podem prendê-lo matá-lo não Meu pensamento quebrou amarras partiu no vento deixou guitarras meu pensamento por onde passa estátua de vento em cada praça [Refrão]

de um novo mundo foi vagabundo contrabandista foi marinheiro maltês ganhão foi prisioneiro mas servo não [Refrão] E os reis mandaram fazer muralhas tecer as malhas de negras leis homens morreram chamas ao vento por ti morreram meu pensamento

Foi à conquista Letra: Manuel Alegre Música:A. Correia de Oliveira e A. Portugal

tecum©

jamais a almejada península

pura inquietação de noite escura

e a parca claridade

e raras madrugadas faz-se a minha alma Márcia Maia de bruma e penumbra quase sempre ocaso derradeira luz sobre um deserto de mares imensos

assim eu sou

sempre ilha

um gato é um poema

Um cão, eu sempre disse, é prosa; Um gato é um poema.

Jean Burden, In Assinar a Pele

Domingo

Quando chega domingo, faço tenção de todas as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida. Há quem vá para o pé das águas deitar-se na areia e não pensar... E há os que vão para o campo cheios de grandes sentimentos bucólicos porque leram, de véspera, no boletim do jornal: «bom tempo para amanhã»... Mas uma maioria sai para as ruas pedindo, pois nesse dia aqueles que passeiam com a mulher e os filhos são mais generosos. Um rapaz que era pintor não disse nada a ninguém e escolheu o domingo para se matar.

Ainda hoje a família e os amigos andam pensando porque seria. Só não relacionam que se matou num domingo! Mariazinha Santos (aquela que um dia se quis entregar, que era o que a família desejava, para que o seu futuro ficasse resolvido), Mariazinha Santos quando chega domingo, vai com uma amiga para o cinema. Deixa que lhe apalpem as coxas e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou, quando ela era ainda muito menina... Para eu contar isto é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo! À hora negra das noites frias e longas sei duma hora numa escada onde uma velha põe sua neta e vem sorrir aos homens que passam! E a costureirinha mais honesta que eu namorei

vendeu a virgindade num domingo — porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores! Há mais amargura nisto que em toda a História das Guerras. Partindo deste princípio, que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer, eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo. E esta era uma das coisas mais belas que um homem podia fazer na vida! Então, todas as raparigas amariam no tempo próprio e tudo seria natural sem mendigos nas ruas nem casas de penhores... Penso isto, e vou a grandes passadas... E um domingo parei numa praça e pus-me a gritar o que sentia, mas todos acharam estranhos os meus modos e estranha a minha voz...

Mariazinha Santos foi para o cinema e outras menearam as ancas — ao sol como num ritual consagrado a um deus! — até chegar o homem bem-amado entre todos com uma nota de cem na mão estendida... Venha a miséria maior que todas secar o último restolho de moral que em mim resta; e eu fique rude como o deserto e agreste como o recorte das altas serras; venha a ânsia do peito para os braços! E vou a grandes passadas como um louco maior que a sua loucura... O rapaz que era pintor aconchegou-se sobre a linha férrea para que a morte o desfigurasse e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica de revolta contra o mundo. Mas como o rosto lhe estava intacto vai a família ao necrotério e ficou aterrada! Conheci-o numa noite de bebedeira e acho tudo aquilo natural. A costureirinha que eu namorei deixava-se ir para as ruas escuras

sem nenhum receio. Uma vez que chovia até entrámos numa escada. Somente sequer um beijo trocámos... E isto porque no momento próprio olhava para mim com um propósito tão sereno que eu, que dela só desejava o corpo bom feito, me punha a observar o outro aspecto do seu rosto, que era aquela serenidade de pessoa que tem a vida cheia e inteira. No entanto, ela nunca pôs obstáculo que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas. Hoje encontramo-nos aí pelos cafés... (ela está sempre com sujeitos decentes) e quando nos fitamos nos olhos, bem lá no fundo dos olhos, eu que sou homem nascido para fazer as coisas mais heróicas da vida viro a cabeça para o lado e digo: — rapaz, traz-me um café... O meu amigo, que era pintor, contou-me numa noite de bebedeira: — Olha,

quando chega domingo, não há nada melhor que ir para o futebol... E como os olhos se me enevoassem de água, continuou com uma voz que deve ser igual à que se ouve nos sonhos: — .... no entanto, conheço um homem que ia para a beira do rio e passava um dia inteirinho de domingo segurando uma cana donde caia um fio para a água... ... um dia pescou um peixe, e nunca mais lá voltou... O pior é pensar: que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre como se fosse uma festa?... — O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara, tão rara e certa e maravilhosa que deslumbrado se matou. Pago o café e saio a grandes passadas. Hoje e depois e todos os dias que vierem, amo a vida mais e mais que aqueles que sabem que vão morrer amanhã! Mariazinha Santos, que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...

E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos, que parem ao sol e joguem um tostão na mão dos pedintes... E a menina das horas longas e frias continue pela mão de sua avó... E tu, que só andas com cavalheiros decentes, ó costureirinha honesta que eu namorei um dia, fita-me bem no fundo dos olhos, fita-me bem no fundo dos olhos! Então, virá a miséria maior que todas secar o último restolho de moral que em mim resta; e eu ficarei rude como o deserto e agreste como o recorte das altas serras: e virá a ânsia do peito para os braços! Domingo que vem, eu vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

PALMEIRA AGRESTE

Palmeira agreste, aveludado perfume de índias ocidentais. De que falam as sombras azuis, a lentidão reconvertida, a súplice inclinação das horas?

Albano Martins, Paralelo ao vento

OS BARCOS

Dormem na praia os barcos pescadores Imóveis mas abrindo Os seus olhos de estátua E a curva do seu bico Rói a solidão

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

[...] puisque c'est elle que j'ai arrosée.

Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry

Quando falamos de amor Agarrados ao fogo das palavras afogamo-nos supondo ter a margem sob os dedos? Quando falamos de amor de que amor falamos? Quando esperamos realizar a nossa esperança de que esperança nos cremos portadores? A que verdade supomos esperançar-nos? Quando falamos da fonte e a madrugada sabemos se haverá água nas manhãs?

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Daqui a pouco acaba o dia

Daqui a pouco acaba o dia. Não fiz nada. Também, que coisa é que faria? Fosse o que fosse, estava errada.

Daqui a pouco a noite vem. Chega em vão Para quem como eu só tem Para contar o coração.

E após a noite a irmos dormir Torna o dia. Nada farei senão sentir. Também que coisa é que faria?

Fernando Pessoa, Poemas dispersos

MARESIA

Neste mar à minha frente O sol repousa e os nossos olhos dormem… - Caem saudades mortas como chuva miúda, Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas, Ou ficam, extáticas, como um bafo da areia, Calmas, sobre a paisagem, Como um véu de cambraia deixado… Não sei se é o calor das algas, Se é o bafo da areia que baila, Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol Como um véu de cambraia deixado, Sei que me lembram os signos do Zodíaco Em boa caligrafia, Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!... E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela, Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia Duma inconsciência que se não parece com nada, Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante

Fazendo, lentas, e desfazendo A mesma curva humaníssima e sensível, Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino pequeno Sobre o chão acamado, esta palavra. AMOR.

António Pedro In Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro

CORAGEM

É preciso arranjar outros

Pôr fim ao lamento deste vento

motivos

tentar tirar ao anjo

outras flores e astros

a túnica e o sabre

Outras abertas

É preciso inventar outras paisagens outros montes e águas

Entre a chuva cansada de um Outono

outras margens

que não sabe já qual é a terra certa

Abrir e expor o coração e finalmente deixar

É preciso pensar outras imagens

correr as lágrimas

outras fissuras, sítios e cidades Maria Teresa Horta, Destino

Mina Anguelova

Amore, oggi il tuo nome

Amore, oggi il tuo nome al mio labbro è sfuggito come al piede l'ultimo gradino...

ora è sparsa l'acqua della vita e tutta la lunga scala è da ricominciare.

Amor, hoje teu nome Amor, hoje teu nome a meus lábios escapou como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida e toda a longa escada é para recomeçar.

T'ho barattato, amore, con parole.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Buio miele che odori

Escuro mel que cheiras

dentro diafani vasi

nos diáfanos vasos

sotto mille e seicento anni di lava -

sob mil e seiscentos anos de lava -

ti riconoscerò dall'immortale

Hei-de reconhecer-te pelo imortal

silenzio.

silêncio.

Cristina Campo

Cristina Campo. Trad.: José Tolentino Mendonça

A MÃO NO ARADO

e a pequenina vida que se concede às unhas Feliz aquele que administra sabiamente

Mais triste é termos de nascer e morrer

a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

e haver árvores ao fim da rua

Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

É triste ir pela vida como quem regressa e entrar humildemente por engano pela

Oh! como é triste envelhecer à porta

morte dentro

entretecer nas mãos um coração tardio

É triste no outono concluir

Oh! como é triste arriscar em humanos regressos

que era o verão a única estação

o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão

Passou o solidário vento e não o conhecemos

ao longo do mar transbordante de nós

e não soubemos ir até ao fundo da verdura

no demorado adeus da nossa condição

como rios que sabem onde encontrar o mar

É triste no jardim a solidão do sol

e com que pontes com que ruas com que gentes

vê-lo desde o rumor e as casas da cidade

com que montes conviver

até uma vaga promessa de rio

através de palavras de uma água para sempre dita Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada entre o fumo e o domingo na tarde de novembro e ter como futuro o asfalto e muita gente e atrás a vida sem nenhuma infância revendo tudo isto algum tempo depois A tarde morre pelos dias fora É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

Ruy Belo, in Poemas de Ruy Belo ditos por Luís Miguel Cintra

com três paus fazes uma canoa com quatro tens um verso,

deixa o tempo fazer o resto

deixa o tempo fazer o resto.

Ana Paula Inácio, Vago Pressentimento Azul Por Cima

deixa o tempo fazer o resto fechar janelas aplacar os barcos recolher os víveres semear a sorte acender o fogo esperar a ceia abre as portas: lê a luz a sombra, a arte do passarinheiro

Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa. Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.

René Char, A Religião do Girassol Trad.: Jorge Sousa Braga

HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE NO CREPÚSCULO DA VIDA

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar

pensava eu... como seriam felizes as mulheres

se espantasse com a minha solidão

à beira-mar debruçadas para a luz caiada remendando o pano das velas espiando o mar

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no

e a longitude do amor embarcado

coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

por vezes

um dia houve

uma gaivota pousava nas águas

que nunca mais avistei cidades crepusculares

outras era o sol que cegava

e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta

e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite

inclino-me de novo para o pano deste século

os dias lentíssimos... sem ninguém

recomeço a bordar ou a dormir tanto faz

e nunca me disseram o nome daquele oceano

sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade

esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

Al Berto, O Medo

Salta con la camisa en llamas

Salta con la camisa en llamas de estrella a estrella, de sombra en sombra. Muere de muerte lejana la que ama al viento.

Alejandra Pizarnik, Árbol de Diana

LE CANCRE avec des craies de toutes les couleurs sur le tableau noir du malheur il dessine le visage du bonheur.

Il dit non avec la tête mais il dit oui avec le cœur il dit oui à ce qu’il aime il dit non au professeur il est debout on le questionne et tous les problèmes sont posés soudain le fou rire le prend et il efface tout les chiffres et les mots les dates et les noms les phrases et les pièges et malgré les menaces du maître sous les huées des enfants prodiges

Jacques Prévert, Paroles

CARTA DE OUTONO

Pensarás que não te escrevi antes porque o verão consome a energia da alma com um apetite solar; e porque as tempestades do crepúsculo incendiaram as palavras com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu ouço aquelas aves que gastaram as asas na travessia do Espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso nas traseiras do invisível, onde um deus culpado se esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos anjos enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar; agarram-se aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde, gritam em direcção às nuvens com os olhos secos e sem medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas verdes como as folhas perenes do norte. Então, ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto; e os teus dedos tenham perdido a força antiga que

desafiava a sombra. Procuro uma entrada no átrio desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos perdendo-me do silêncio na insistência dos passos. O passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me neste bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros; o teu amor gastou-se com um breve brilho de isqueiro. Saio sem desejo dos desertos de outubro e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies provisórias de um esquecimento de estações.

Nuno Júdice, in Poemas em Voz Alta Poemas ditos por Natália Luiza

A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso. Manoel de Barros

8 de Dezembro: Florbela Espanca~ Camille Claudel

AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? É mal? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente! Há uma Primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar...

MEU AMOR

MEU AMOR Meu amor meu amor meu corpo em movimento minha voz à procura do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a crescer nós parámos o tempo não sabemos morrer. e nascemos nascemos do nosso entristecer. Meu amor meu amor meu pássaro cinzento, a chorar a lonjura, do nosso afastamento. Meu amor meu amor meu nó de sofrimento minha mó de ternura minha nau de tormento este mar não tem cura este céu não tem ar nós parámos o vento não sabemos nadar e morremos morremos devagar devagar

José Carlos Ary dos Santos, Poesia Completa

Veio de longe, e mal chegou partiu para mais longe ainda

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede

E a vida... e o amor... Deixá-la ir, a vida!...

Antero de Quental, Sonetos

Uma onda que penso. Outra em que reparo. A mesma em que pensei e que retorna ao mar.

Manuel Rui, A Onda

Esplendor da tarde; deve haver um amarelo também a florir!

Yosa Buson

Como está sereno o Céu

Como está sereno o Céu, como sobe mansamente a Lua resplandecente, e esclarece este jardim!

Marquesa de Alorna, Sonetos

De facto não amamos como as flores totalmente simples na sua entrega

Ana Hatherly

Eu pescador que tantas vezes faço a mim mesmo a pergunta de Elsenor e quais águas que passam sei que passo sem saber a resposta. Eu pescador.

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades

Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio Há-de vir um Natal e será o primeiro em que hão-de me lembrar de modo menos nítido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que só uma voz me evoque a sós consigo Há-de vir um Natal e será o primeiro em que não viva já ninguém meu conhecido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem vivo esteja um verso deste livro Há-de vir um Natal e será o primeiro em que terei de novo o Nada a sós comigo Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem o Natal terá qualquer sentido Há-de vir um Natal e será o primeiro em que o Nada retome a cor do Infinito David Mourão Ferreira Um Monumento de Palavras - CD

Jesus bleibet meine Freunde, Meines Herzens Trost und Saft, Jesus wehret allem Leide, Er ist meines Lebens Kraft, Meiner Augen Lust und Sonne, Meiner Seele Schatz und Wonne, Darum lass ich Jesum nicht Aus dem Herzen und Gesicht.

- em fundo:

J.S. Bach, Cantata BWV 147 Jesus bleibet meine Freunde The Choir of New College, Oxford Edward Higginbottom-

solstício de inverno - uma meditação

Jules Massenet, Méditation from Thais Anne-Sophie Mutter Wiener Philarmoniker James Levine-

Receita de Ano Novo Para você ganhar um belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido

pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto da esperança

(mal vivido ou talvez sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.

mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens?

Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente.

passa telegramas?). Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar de arrependido

É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

III – 1 de Junho de 2005 – 31 de Dezembro de 2005 eli miguel

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