PROJETO (3)
12 Com os olhos bem abertos, Gabriel encarou a coluna. Procurou, mais uma vez, algo nela que denunciasse o mal. Mais uma vez encontrou apenas concreto cinzento e frio, silencioso. - Tô ficando é biruta – pensou. – Essa terra de homens cozinha os miolos da gente. Deu as costas para a coluna e voltou a caminhar sem destino. Sentia ainda a presença do objeto, mas fez questão imaginá-lo como névoa se dispersando. Melhor assim, uma preocupação a menos. Logo mais à frente viu surgir diante dos seus olhos uma pequena igreja. Uma igreja? Desde a sua chegada à terra não a vira, embora já tivesse passado por aquele mesmo lugar incontáveis vezes. E ignorar uma igreja, para ele, um anjo, seria difícil. Reconhecia desde sempre os símbolos do Sagrado, e dificilmente deixaria de notar uma igreja. Convencido enfim de que o mundo onde o Supremo o confinara era um pátio de sentidos delirantes afastou suas dúvidas e caminhou em direção às portas da igreja, que era modesta, econômica em termos de arquitetura religiosa. Apenas a grande cruz de pedra no alto do telhado informava que se tratava de uma casa de Deus. O anjo atravessou então as portas e se deparou com uma igreja vazia e silenciosa, a luz vinda exclusivamente de uma infinidade de velas acesas por todos os lugares, ao pé das estátuas tristonhas e desbotadas, em cantos remotos, de um grande candelabro de bronze plantado à esquerda do púlpito. No mais a escuridão gotejava escondendo móveis, quadros de santos, tornando o ambiente mais misterioso do que sagrado. Sentando-se à frente do altar principal, Gabriel procurou por Deus. Chamou-o em oração, depois em voz baixa. Em troca recebeu apenas o silêncio das paredes. - Então é verdade mesmo – falou enfim em voz alta. – O Supremo me abandonou. O silêncio ganhou uma dimensão insuportável. - Responda, Senhor – disse. – Me ajude a não duvidar ainda mais da minha fé! - A dúvida também é um exercício de fé, meu filho.
Gabriel se voltou na direção da voz e encontrou um homem velho, baixo, os poucos cabelos deixando bem clara a sua intenção de lhe abandonarem definitivamente a cabeça. - A fé não se sustenta na dúvida – falou Gabriel com autoridade. – E aliás, quem é o senhor? O homem sorriu e se sentou ao lado do anjo. - Meu nome é Gerôncio, padre Gerôncio. Sou o responsável pela igreja. Gabriel relaxou: enfim alguém que poderia compreender as suas aflições. - E eu sou Gabriel, padre. Sou um... Bem, eu sou alguém que de repente viu a sua igreja e resolveu entrar. - Uma decisão correta, Gabriel. E a igreja é mesmo um lugar de anjos. Ou era, pelo menos. Gabriel se levantou, os olhos arregalados. - O senhor sabe o que eu sou? – perguntou. O padre gargalhou um sorriso de dentes falhos, a barriga saliente subindo e descendo. - Pensei que os anjos não se surpreendiam tão facilmente – falou o padre. – Já vi você antes, na minha juventude, e vi outros anjos também. Os meus colegas de batina dizem que isso é um dom; eu, de minha parte, considero uma maldição. Mas esse tipo de coisa não foi escolha minha. Eu não escolho, Deus é quem escolhe. Gabriel olhou bem para a cara do padre. Talvez fosse maluco. - Não, não, meu filho. Não sou maluco. Apenas sou capaz de ver o que eu não quero, e acabo me metendo em assuntos que não são absolutamente da minha conta. A sua missão, por exemplo... - O que sabe da minha missão? - Pouco, mas o suficiente para saber que vai dar encrenca. Fosse eu mais jovem e ingênuo, como já fui, ficaria exultante: poder testemunhar com estes olhos aqui a volta do Filho de Deus, as maravilhas do amor, essa conversa fiada toda. Mas já estou velho e conheço o Supremo há tempo suficiente para saber que isso é tédio, uma necessidade quase humana de preencher a solidão. Você tem idéia do que deve ser a solidão de Deus? Creio que ele já tá de saco cheio da própria divindade e agora resolveu inventar somente com a intenção de se divertir. - Percebi isso também – falou Gabriel. – E tenho me sentido muito mal. De uma hora pra outra passei a questionar as coisas, Deus, seus objetivos. Meu papel não é, nunca foi, questionar. Dentro da hierarquia eu obedeço ordens, e só. Mas acho que algo aqui nesta terra, o ar, sei lá,
isso faz com que a gente mude o comportamento, mude as idéias. Tenho discordado abertamente do Supremo, em pensamento, mas ainda assim. E sei que ele sabe. - Ele sabe. - Ando agora meio perdido por aqui, sem saber a direção, o rumo. A menina com quem o Supremo cismou também entrou em parafuso, desapareceu sem deixar rastros. E coisas estranhas me acontecem aqui por dentro, passei a pensar nela de maneira como nunca antes pensara em alguém, muito menos uma mulher. Eu sou um anjo, porra, essas coisas não são pra mim, onde é que já se viu! O padre riu. - Gabriel, o negócio é o seguinte: misteriosos... - São os caminhos do Senhor. Tá, eu sei. E daí? - Aí dentro dessa sua missão pode ter outra coisa, um extra, algo que até mesmo o Supremo ignora. Mas tenha certeza de uma coisa: tudo o que você está sentindo, experimentando, tem um sentido. Talvez seja cedo ainda para entender, mas é óbvio que é isso. Eu acredito que Deus às vezes faz coisas sem nem mesmo se dar conta. A gente foi criada para achar que Ele é perfeito, que não erra. Não concordo com isso – a própria humanidade, no meu entender, é a prova mais evidente do erro de Deus, da sua imperfeição. Gabriel levantou as sobrancelhas. - Para um padre, você tem opiniões bem diferentes. - Você também é um anjo diferente, Gabriel. Ou vai querer me convencer de que não pensa exatamente igual a mim? Mas de qualquer maneira, meu filho, somos irmãos em Deus, apesar de Deus. Irmãos em Deus, apesar de Deus. A frase ficou fazendo eco nos pensamentos de Gabriel. Fechou os olhos por alguns instantes e as imagens dos últimos acontecimentos desfilaram por sua mente como se fizessem parte de um filme antigo e desbotado. - E a coluna, padre? - Que coluna? - A coluna alta de concreto que fica logo ali na praça. Basta colocar os olhos nela que eu sinto calafrios. O rosto do padre, pela primeira vez, ganhou contornos severos. - Nunca houve praça nesta rua, Gabriel. Nem coluna.