O Poder Dos Apáticos Hipócritas

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O poder dos apáticos hipócritas O guerreiro caminhava sempre a leste. Ouviu dizer que a leste existia uma civilização rica e próspera e que ao longe já era possível ver o esplendor de seus monumentos inconfundíveis. Impossível era não esbarrar neles. No seu país cultuavam-se os ideais de glória, da guerra e da honra; mas se através da guerra não conseguia-se chegar a glória, abandona-se a honra e foge-se. Seu povo era agora dominado por outro. Como escapou com vida e viu que não lhe restava mais nada onde vivia, resolveu sair pelo mundo em busca de alguma chance. Procurava essa outra sociedade, mas não sabia onde ela ficava. Passaram-se meses até perder a conta. Pegou carona em carroças, andou pelo deserto, atravessou rios, roubou cavalos, passou por povoados e não havia sinal de monumentos esplendorosos. Há dias estava caminhando num matagal, vegetação rasteira que parecia oceano. Sol sobre a cabeça. Era verde por todo lado que olhasse, sem nenhum ponto de referência. O guerreiro estava para enlouquecer até ver ao longe um monumento pequeno de uma cidadezinha. Precisava parar lá e recuperar as energias. Chegou à cidade. Espada embainhada, armadura enferrujada, suja, sem ombreiras e parte dela arranhada e quebrada. Ele mostrando uma cara seca e pálida de cansaço e de quem mendigava. Todos os habitantes olhavam-no com estranheza. O viajante não conseguia coordenar os pensamentos: - Água! Ajudem por favor! Qualquer coisa serve! Acolham senão-ão eu posso viver... Os habitantes olhavam perplexos para aquela figura desconhecida. Afastavam-se, tinham medo. O guerreiro fica com raiva porque ninguém ajudava-lhe. Uma mulher aproxima-se: - Eu posso levar você até a fonte. O guerreiro achou o sotaque das pessoas esquisito. - Que tenha uma boa eternidade e gratidão! A mulher não compreendeu e o levou a fonte. Ele bebeu a água em muitos grandes goles e molhou o rosto e o corpo e sacudindo-se como um bicho. - Você quer entrar em minha casa? Estou só. – sussurra a última frase. O guerreiro se ajoelha curvado para ela - Desculpe-me senhora generosa que ajudou este humilde guerreiro. Não posso exigir tamanha hospitalidade de vossa parte porque seria um débito que não teria como pagar. Mas como viajante que precisa de um lugar para repouso, estarei pela cidade e se precisar de mim por estes dias, sinto-me na obrigação de servi-la. Preciso repousar no chão como penitência pelos meus pecados. Preciso da caridade de outra pessoa para me dar alimento até o dia de minha partida, porque não posso exigir demais da sua. Peço que me dê licença para que eu possa contemplar esta bela cidade. Muito obrigado! Ele se levanta. Ela sussurra de novo: - Que homem idiota! Mais calmo o guerreiro começa o botar os pensamentos em ordem e observar a cidade. Estava entardecendo. Trabalhadores com roupas surradas e caras cansadas voltavam empunhando ferramentas. Quase não haviam pessoas nas ruas. Muitas carroças vazias e animais soltos perambulavam sem dono. As casas formavam ruas estreitas, escuras e abafadas. O fedor de esterco estava em todo os lugares. O chão era só terra. Os homens

usavam camisas e calças ordinárias, as mulheres usavam toucas, vestidos e luvas; tudo feito de algodão. Não era difícil ver alguém caído no chão com insetos e aves por cima e as pessoas com medo envolta. Toda sorte de indivíduos com doenças degenerativas e contagiosas eram carregados por alguns “profissionais” a um local ao longe para serem queimados aos grupos, mesmo que contra a própria vontade, se ainda restasse. O local era fora da cidade. Grandes valas onde eram jogados os corpos para depois queimar e enterrá-los, evitando assim qualquer possibilidade das pestes se espalharem. Uns já chegavam mortos, e era necessário ficar espantando as aves que não queriam perder a comida para o fogo. De longe via-se a fogueira. Como não era muito distante de onde estava, o visitante, curioso, foi dar uma olhada. Doenças que em suas terras já eram banais, mas onde estava aparentemente não havia remédios. Menos mortes são mais guerreiros. Em uma rua mais escondida e estreita, os corpos de quatro homens mortos com rasgões. O curioso se aproximou e olhou bem os cadáveres. - Briga de faca. – concluiu com segurança de quem já viu muitos parecidos. Ele continuava a observar. Um guerreiro com uma armadura reluzente montado num cavalo conversava com um camponês. O momento é difícil é para todos! Sua fraqueza só demonstra sua falta de vontade de cooperar com nosso mestrio e nosso deus. - Mas senhor, eu estou cansado... – falava o homem com uma voz que denotava completa exaustão. O cavaleiro deu um empurrão com o pé no homem, que caiu no chão e ficou lá mesmo. - Se amanhã não for trabalhar, estará sujeito às punições que o mestrio me permitir. O andarilho assistiu a cena. O que mais lhe impressionou foi a armadura do outro guerreiro. Ninguém ousou contestar. Isso somado a falta de algo esplendoroso, que chamasse atenção, provocou uma sensação de desgosto pelo local que fez o viajante achar aquilo uma terra mal usada por um povo atrasado, que não cria nada e merece ser conquistado por um povo superior como o seu, apesar de ser tarde para isso. O forasteiro, depois, ficou apenas observando os homens chegarem do seu trabalho e entrarem em suas casas. Anoiteceu rápido. Pouco tempo depois, todos saíam de suas casas com tochas que iluminavam a cidade e caminhavam na mesma direção. O visitante resolveu segui-los. Iam cantando uma melodia estranha e sonolenta numa tentativa frustrada de uníssono. Depois de algum tempo de caminhada chegaram a um monumento grande, o mesmo que o andarilho viu ao longe. O forasteiro tirou a armadura destroçada, ficou apenas com a espada e as roupas de pano, para se parecer com os do local, assim que percebeu que não olhavam-no com bons olhos. Conseguiu entrar junto com os outros no templo já que ele tinha um imenso portão. Toda cidade deveria estar naquele lugar. Era gigantesco, mas o forasteiro não o achou muito. Estava acostumado com esse tipo de dimensão. Blocos de pedra gigantescos e amarelados, colunas cilíndricas de sustentação, tochas tentando sem muito sucesso iluminar o lugar. As fileiras formavam de bancos cabiam muitas pessoas. O ambiente parecia um grande cubo. O teto era reto com imagens abstratas compostas de figuras geométricas e ao centro os contornos de um homem barbudo que brilhava como o sol, que também era o ornamento do pingente de todos da região.

Passados alguns instantes, um homem chamado de “Sábio Mensageiro” começou a celebração religiosa em um altar. O discurso durou cerca de uma hora e meia. O homem falou de diversos assuntos. Pregou diversos pensamentos. “Devemos ser bons para os semelhantes. Atacar só para defender-se. Evitar a violência. Respeitar a ordem e as vontades do mestrio e de deus. Afastar-se do pecados e arrepender-se deles. Distância das mulheres enfeitadas e da orgia, do luxo e da ganância. Ser mais forte que meros prazeres carnais. Ser caridoso com aqueles que precisam de ajuda. Lutar contra a injustiça. Pregar a paz onde fosse”. Rezaram muito. O Sábio Mensageiro era dono de uma oratória vibrante e comovente. As pessoas rezavam com um olhar de fé e devoção aos ensinamentos do seu deus. Crédulos, cantavam com uma vibração que assustava visitante, pois no seus país a fé era fraca e a religião decadente, usada descaradamente na política. Ele saiu sonolento, junto de todos na multidão. Viu as pessoas fazerem o trajeto de volta. Viu duas mulheres pequenas e indefesas sendo estupradas por dois brutamontes que agiam no ato como animais selvagens. Mais quatro brutamontes esperavam sua vez e todos trajavam armaduras polidas. Alguns viram, mas ninguém fez nada. O estrangeiro foi para longe para poder dormir quieto. Tinha medo de seu próprio temperamento e sabia que iria se meter em alguma confusão se continuasse ali. Na manhã seguinte, iria tentar sair o mais rápido que pudesse do vilarejo. Durante a cerimônia, devido ao sotaque das pessoas e do Sábio Mensageiro não conseguiu entender palavra por palavra, mas o que ele ouviu na cerimônia era diferente do discurso de sua terra. Estranhou coisas como: atacar só para defender e o desprezo ao luxo. Na sua terra o luxo e as cicatrizes eram sinais de sucesso por batalhas conquistadas. Estranhou também o tom de bondade exagerado do discurso que quase lhe deu enjôo. Dormiu. Na manhã, foi acordado com gritos, pedradas e água gelada na cara, sendo segurado por dois homens. - Ei, o que é isso? – fala o guerreiro atordoado e que não está entendendo nada. - Será levado ao juiz. – um dos homens responde. - O QUE FOI QUE EU FIZ? - É um pecador que veio aqui ameaçar nossa paz. - Quem disse isso? Eu só estou passando por aqui. Eu vim em paz! Vamos evitar a violência! - Você é um inimigo e estamos nos defendendo. - Como podem me julgar assim? - CALADO! SABEMOS QUE É UM INIMIGO! Não negue seus interesses excusos ao passar por aqui. - E ainda ousou pisar em nosso purificado templo ontem. Pagará por esse insulto. Armano nos alertou sobre você. – acrescentou o segundo. - Quem é Armano? O viajante esperneava. Na sua terra existia o deus do castigo. Execuções públicas eram uma forma do governador intimidar o povo, principalmente os rebeldes. Era também uma diversão popular, as crianças adoravam. Lembrando de sua terra e de outros povos conquistados que executavam por esses mesmo motivos, resolveu reagir. Dois homens com facas de agricultura o carregavam. Um carregava sua espada e uma multidão atirava pedras e olhava-o com desprezo. Estavam diferentes da cerimônia. A curiosidade estava misturada à certa xenofobia, mas agora via ódio naquelas pessoas, contrastando com o que viu e ouviu no dia anterior na cerimônia.

Caminhou um momento mais calmo até uma rua estreita que funcionava como um longo corredor, quase sem entradas laterais. Subitamente moveu os braços, acotovelou os que o seguravam, tomou sua espada de volta. Os “guardas” vieram atacá-lo. O guerreiro atravessou a espada no pescoço de um deles e quase corta o segundo ao meio. Mais dois vieram tentar golpeá-lo. Um golpe frontal no peito esquerdo de um e um golpe cruzado que fez o braço do outro voar longe. Matou ainda outros oito corajosos que vieram enfrentá-lo, sendo esses alguns dos mais temidos chefes de armadura da cidade. Tudo isso em cerca de poucos segundos demonstrando uma perícia incrível com a espada, que nenhum dos guerreiros daquela cidade possuía. O sangue formava poças no chão. A multidão entrou em pânico: alguns desmaiaram, muitos correram logo e outros olhavam com pavor para aquela figura. Parecia um ser maligno com as roupas banhadas em sangue, um olhar de fúria e de quem já deveria estar acostumado a fazer aquilo. Ele pegou uma das facas que estava no chão e ameaçou: - VOU JOGAR NA CABEÇA DE ALGUÉM SE NÃO SAÍREM DAQUI!!! – falou expressando um olhar de raiva, como um animal selvagem querendo expulsar outro do território. Alguns dos que estavam na multidão pareciam exercer certa liderança sobre os outros: - Calma, fiquem longe desse enviado do mal! Ele deve ter poderes místicos. - Tudo bem, vamos embora. – sussurrou, e agora falando em direção ao guerreiro – N... Não... poderá escapar ileso disso... a... a justiça do nosso deus irá lhe punir. Socorreram o do braço decepado e começaram a andar. O guerreiro olhava para eles. Depois de um tempo pôs-se a correr e roubar alguma comida. Naquela hora estava com medo e preparado para morrer, mas depois pensando, ficou surpreso. Como uma multidão teve medo dele? Essa pergunta martelava-o. Deveriam ser um bando de covardes, desses povos pacíficos que merecem ser aniquilados. Lembrava ainda das pedradas que levou, do olhar de ódio e o de credulidade do povo na cerimônia. Não tinham sido nada bons para ele que estava só de passagem. Pareciam um bando de hipócritas. Quando se afastou um pouco daquele povoado, parou um pouco para descansar. A sensibilidade não era o seu forte, mas a morte de seus amigos na guerra já o fez parar um pouco para pensar nas coisas. Às vezes achava a guerra um atraso, outras um avanço. Mais cinco dias de caminhada quase contínua chegou a uma parte mais baixa do relevo, já fora da cidade, onde um povo nômade com suas carroças descansava. - De onde vens? – um deles pergunta. - Do oeste... De muito longe daqui. - Faz parte do grupo de melênios dali perto? - Não. E não gosto deles. O guerreiro percebeu que o homem fez uma expressão feia discreta ao referir-se aos habitantes que havia perto e conquistou confiança ao dizer que não gostava deles. Lembrou também que esses melênios seriam um dos povos a ser invadido depois da turbulência que destruiu seu povo. Ele próprio não conhecia os melênios. - Seja bem vindo. Eu sou Malon. - Mekéski. A figura apática e desnutrida do guerreiro Mekéski deu-lhe uma conotação de inofensivo, apesar da espada. Foi apresentado a alguns dos nômades. Deram-lhe água e comida e receberam-no cordialmente. Enquanto comiam, o guerreiro perguntou: - Vocês sabem onde fica a sociedade a leste mais desenvolvida do mundo?

- Estivemos lá há alguns anos. Ela tem muitos nomes e muitos governos. Muito bonitas... monumentos magníficos mas é muito longe daqui. A conversa continuava. Malon era um sisudo conversador de olhar desconfiado. Tocaram no assunto sobre os melênios. - Alguns dos nossos foram a esse vilarejo não voltaram mais. Acho que os mataram. Já ouvi falar dessa fama. Vamos acertar este assunto ainda em breve. - Eu quando passei por lá matei uns que tentaram me matar. Me acusaram de alguma coisa... - Verdade? – Malon disfarçava um esboço de um sorriso – merece uma recompensa. Existem muitos homens de cálculos. Inventaram isso. Malon mostrou um objeto cônico. - Olhe por aqui. Mekéski olhou pelo vidro e demorou alguns instantes a entender do que se tratava. O objeto ampliava a imagem podendo ver a longa distância, neste caso cerca de 10 vezes. - Isso é chamado de luneta. É o brinquedo mais simples do leste. Pode levá-lo. A leste há melênios por toda parte. Isso pode servir se quiser viver. Então ainda faltava muito. A refeição com nômades foi em clima amigável. Na partida, despedidas formais. Malon disse que sua caravana talvez partisse em breve. Era noite. Sem vontade de andar, Mekéski repousou sobre uma elevação de pedras, numa “minúscula montanha”, próxima. Vendo por cima, percebe-se que os nômades não eram tão numerosos. Dormiu. Na manhã seguinte, Mekéski brincava com a luneta. Escalava pedras para poder ter uma visão mais ampla do local. Algo chamou sua atenção. A nordeste, era possível ver um mar de gente caminhando, carregando bandeiras com símbolos e cores diversos. As únicas em comum eram diversas bandeiras com um homem barbudo brilhando como o sol. O guerreiro surpreendeu-se com a quantidade. Não imaginou que os melênios pudessem constituir esse mar de gente. Estavam preparando-se para uma dura batalha, apesar de não terem cara de guerreiros. De repente, surgem colunas em direção à depressão em que os nômades se encontravam. A desproporção era descomunal. Entregariam a pouca tecnologia que tinham. Mulheres serviriam de diversão para os homens. Prisioneiros de guerra fáceis. Escravos. Mekéski começou a tirar essas conclusões. Não havia como lutar. Nem todas as armas do mundo poderiam com tanta gente. De repente, o cavaleiro que vinha na frente de uma coluna faz um gesto permitindo a descida dos outros ao local, e o oceano de pessoas avançou gritando. Os melênios chegaram com homens jogando tochas nas carroças e nas pessoas. Os nômades não tiveram tempo de pegar suas espadas. Bestas, flechas, espadas e lannças cortando cabeças. Os melênios estavam matando com gosto. Berravam e moviam-se agitadamente. Enlouquecidos, enfurecidos. Estupros às vivas e aos cadáveres. Mulheres, crianças e maltrapilhos que nem sabiam segurar sua arma tornaram-se guerreiros vorazes que matavam sem perguntar, gritando como bestas. Uns bebiam sangue. Mekéski não entendeu o porquê daquilo. Sem prisioneiros de para escravizar? Os poucos que foram capturados serviram para serem amarrados até vir algum guerreiro melênio para numa competição para ver quem conseguia decepar mais pessoas ou cabeças ao mesmo tempo. Pareciam estar testando se espada estava afiada nos nômades. Uns iam morrendo ao serem decepados aos poucos, outros eram sangrados, amarrados em

cavalos que corriam em sentidos opostos, e ainda haviam os que foram obrigados a serem escoiceados até morrer. Mekéski ficou assistindo a tudo detalhadamente com a ajuda da luneta. A luta foi rápida, a diversão massacrante demorou um pouquinho mais. Há poucos dias uma multidão teve medo dele. Viram alguns mortos como se aquilo fosse um ato mais cruel já presenciado na vida para depois agir como selvagens. Aqueles que o viajante considerava imbecis que mereciam ter as terras tomadas, com a ajuda de um reforço tornaram-se valentes. A selvageria foi tamanha que até ele ficou levemente impressionado. Até quando iria durar essa coragem, o guerreiro não quis fazer palpites. Mas era perigoso ficar ali. Mekéski desceu para outro lado da pedra onde estava seu cavalo e decidiu continuar sua jornada.

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