A Olhar Uma Rajada De Mísseis No Céu

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A olhar uma rajada de mísseis no céu Escola de Preparação de Oficiais do Ar e Pilotos (EPOAP), divisão AI1F, perto da fronteira de Pascatazes, uma república de grande território e miserável, que ficava no meio dos países em tensão. Qualquer hora iria ser tomada por completo. O dia era calmo, um feriado militar só dentro dessa escola. Não havia solenidade a cumprir, era só um dia de descanso para, no dia seguinte, pegar pesado com os cadetes. A maioria deles relaxava, iam às quadras de esporte ou saíam para transar com alguma mulher. Os do alto escalão fora, recrutas nos esportes, homens saindo e entrando, nada acontecia, os sentinelas conversavam alto, riam e cuspiam no chão. O alojamento era todo branco, imenso, com janelas em cada cômodo, mas parecia uma prisão. Cada quarto era pequeno. Cabiam dois beliches e algumas gavetas porque soldado não precisa mesmo de muito espaço. No quarto 303, três deles descansavam em suas respectivas camas. -Sabem o que tem na semana que vem? - perguntou um baixinho e fraco, chamado Mirgo. -Sei, é a formatura dos veteranos. – respondeu o forte, que sempre anda com barba por fazer para fazer tipo. Chamava-se Telos. -É. Daqui a uma semana vai fazer um ano que eu estou aqui. Mais um e eu saio. -Espera aí, você vai fazer só o período obrigatório mesmo? -É. -Pôrra cara, você pode ser um piloto ou um oficial se seguir aqui! Você só tem nota boa, teu pai conhece militares, você pode ganhar promoção mais rápido com os teus contatos e vai jogar isso fora? – falou o barbado num tom de quem não acredita e quer persuadir. -Não vou servir aos interesses sujos de ninguém. Vocês não conseguem ver o quanto isso é pequeno em vez de glorioso? -Pode parar por aí! – se exalta e levanta da cama o Telos. – São essas minhocas desse colégio fuleiro onde você estudou! Novas maneiras de ver a História! – num tom de zombaria agora. – É TUDO CONVERSA! Quando essa pôrra desse país for invadida você vai dizer o quê? Vai pedir pros caras irem embora?! -Sei lá. Mas não vou fazer parte disso. -A guerra não vai acontecer. Pelo menos não agora. – falou o Ferisgêiseres, conhecido como “Muleta”. Tinha cara de quem parece estar sempre dormindo e que até agora não tinha se manifestado. -Faz muito tempo que não tem um atrito. – reconhece Telos. -Mas... depois que derrubarem o teu teco-teco, qual será o tamanho da pensão que a tua família vai receber? - provoca Mirgo. -Quem disse que eu vou morrer? Além do mais, não é um teco-teco, são os melhores do mundo. -Isso te disseram. Por acaso te passaram informações secretas do inimigo para você comparar? Além do mais, perceba: existem aparelhos que captam seqüências codificadas de baixa amplitude do inimigo lá do outro lado do continente, pode-se controlar mísseis com remoto, mas as melhores televisões são em preto-e-branco e o sinal nunca pega bem. -Hmm... pois é. – complementa Muleta. Duas semanas depois, houve um dos raros finais de semana em que alguns cadetes podiam voltar pra casa pra ver a família. Mirgo saiu sem se despedir dos amigos. Estava

num daqueles dias de revolta com tudo e com todos por causa da tensão de uma guerra que não sabia se iria acontecer, do serviço militar ser obrigatório, da cultura militarista, da imbecilidade humana. Queria mudar o mundo sozinho ou explodir todos que fossem contra suas idéias de paz. Violência contra violência. Para poder chegar à casa dos seus pais, precisava tomar dois ônibus em três horas de viagem. “Por que aquela escola militar tinha que ser lá nos fins do mundo? Lançar um ataque rápido? Talvez”, ponderava. A EPOAP ficava perto da fronteira sul, na transição entre vegetação rasteira e floresta, bem longe dos locais mais urbanos. Mais ao norte, pequenas cidades e comunidades pobres de pescadores. Lá as pessoas não sabiam o que era um jornal. Estavam isolados do resto do mundo. Mirgo ponderava se isso seria bom ou ruim. Vinha filosofando na viagem até chegar a cidadezinha da casa dos seus pais. É filho único. Quando chegou à casa estava perto da hora de almoço. A sua tinha uma arquitetura estranha, ovalada irregularmente no teto por dentro e por fora e marcas do tempo, contrastando com as outras que sempre possuíam um declive elíptico e regular. Falou com os pais, Mirgo e Mirela, no tom de calmaria de sempre. Conversaram sobre banalidades, trivialidades e conhecidos. Tudo na calmaria e seriedade deles. Tudo como sempre foi. Apesar se serem seus pais, tinham idade e aparência de serem seus avós. Seu primo Folóspo chegou pouco depois. Militar de patente mediana formado na EPOAP. Saudações amigáveis. Folóspo era o único militar de quem Mirgo não tinha ódio porque ele não tinha sofrido lavagem cerebral. Explicava com filosofia porque realmente acreditava nos seus ideais militares, mas respeitava os pontos de vista contrários. No almoço, assistiam à televisão comendo uma carne dura num prato raso, até porque a comida não era muita. Folóspo, meio hesitante, cortou um assunto qualquer e desembuchou: -Er... sei que não gosta de guerra Mirgo... heeeh. hmm... por isso eu tenho que te falar sobre... hmm... ela vai acontecer em breve e... Folóspo tinha uma mania de falar e ficar pensando nas próximas palavras fazendo esse som indeciso. -Como é? -É informação secreta. Chegou a mim através duns amigos que são amigos do general. Vão invadir países ao sudeste de Pascatazes a pretexto de... hmm.... étnicos... heeh... de que não vão aceitar tropas e intervenção econômica num povo irmão. Falúria, Marcródia e Firbonja devem ser heeeee.... os alvos. Vão expulsar as tropas de Kóastrepüll de lá e, assim, eles vão perder os combustíveis... heeee... quando ouvi isso já sei o que vai acontecer. Heee... Vão quebrar a Ordem das Nações. Sei que tu não gosta de guerra, pode fugir. Dá tempo. -E quando vai ser? -Não sei. -Por que não há sinais disso na TV? – perguntou o Mirgo pai. -Estão controlando tudo. Ordens diretas do chefe-de-governo. Mirgo olhou para os pais, não sabia o que fazer. A mãe queria que ele desertasse, o pai disse que ele poderia fazer o que quisesse. O pai tinha servido ao exército por 6 anos e depois virou arquiteto de prédios militares. Iria pedir proteção, mas ao filho conseguir isso, seria impossível. Mirgo ficou o resto do dia perturbado com a notícia. Falou palavrões e chutou paredes. Amaldiçoou os generais.

Tinha que telefonar para o Muleta. Esse também só estava lá para cumprir o tempo obrigatório. Muleta não tinha ido ver a família e, no telefone militar, poderia ser percebida a traição. -Heeeee... é rápido. É que vai ter “festa” em breve. “Todo o mundo” vai brincar de fogueira, briga, música, corrida, orientação, e “estilingue”. Até logo. – e desligou. Tinham seus códigos, quando não queriam ser percebidos pelos seus superiores. Eram estúpidos demais para entender qualquer metáfora. Sabiam só Física, Matemática e Geografia para tiro de mísseis. Códigos só com as forças especiais. Quis sair dali. Pegou o mapa do mundo e olhou várias vezes para ele tentando catar um país que não estivesse envolvido em nenhuma aliança militar. Mas todos estavam. Sabia de cor todas as alianças, aliados e inimigos de seu país. Iria tentar fugir para o que em uma remota possibilidade se isolasse do conflito. Brojistanha poderia ser uma boa opção. Há aproximadamente 60 anos, são Grawsldjana e Kóastrepüll quem mandam no comércio e na política. O advento das máquinas fez esses dois países investirem em tecnologia e exportá-la para o mundo, junto com sua dominação; Grawsldjana, em especial, ao norte e Kóastrepüll mais ao sul. Questão debatida há anos, mas nunca resolvida, os combustíveis fósseis eram motivos de disputas enquanto a tensão aumentava. Mirgo botou algumas coisas na mala, poucas, despediu-se dos pais e foi ao aeroporto. “Vôos internacionais suspensos por tempo indeterminado”, foi essa a mensagem que ele viu lá. “Ameaça de atentados terroristas. Permaneçam calmos que o governo está resolvendo a situação”, no noticiário da TV. Alguma coisa estava acontecendo, e ele ainda não estava sabendo. Deveria acontecer em breve, não poderia fugir. Não tinha experiência ainda para ser piloto, iria ser soldado raso no front. Voltaria vegetal, morto ou com sorte, aleijado. “Brojistanha firma parceria com Grawsldjana para sistema de dutos de transporte de combustíveis”. “Pronto, acabou”, pensou ele. Pegou um ônibus qualquer sem saber para onde iria, desceu e andou por aí. Depois, pegou um ônibus interurbano para voltar a casa dos pais, desceu. A rodoviária era longe da casa. Tinha ainda que dar umas passadas. Pegou uma pequena carona num caminhão de trabalhadores, secos, apáticos. Crianças esqueléticas comiam alguma coisa no colo das mães enquanto espantavam os insetos, homens dividiam entre todos um pouco de dinheiro. Mirgo olhava para eles com pena, mas teve vontade de ir junto deles antes de descer do caminhão e voltar para casa; já à noite. Imerso em reflexões, invejava a simplicidade e repugnava a pobreza a qual os trabalhadores eram submetidos, vivendo naquelas redondezas. Olhou para o céu. Uma sensação de vazio, uma vontade de chorar, um olhar capisbaixo. Fraqueza por não poder fazer nada. Mas o que ele queria era fazer nada, porque não deveria ser necessário, nos seus sonhos. “De que adianta eu voltar pra cá?”

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