Mar

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O MAR NA HISTÓRIA DA MADEIRA Alberto Vieira

1. O MAR NO NOSSO IMAGINARIO E LITERATURA. O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Tudo isto porque os portugueses se lançaram no século XV à sua conquista. Abateram as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade o Atlântico. A mítica ilha que se perdeu e a Ophiusa - o espesso negrume intransponível que os portugueses souberam vencer até abrirem as novas portas do Índico em 1487. Com os descobrimentos portugueses do século XV desfizeram-se os mitos da antiguidade e medievalidade e cumpriu-se Portugal no Atlântico, que é como quem diz, o Atlântico tornou-se português. Assim o canta ainda que ironicamente Fernando Pessoa na "mensagem". Desta centenária gesta somos herdeiros e toda a nossa cultura e imaginário são fruto disso. Olhando o nosso panorama literário é evidente a afirmação do mar como motivo científico ou poético. Camões em os Lusíadas imortalizou essa parte que continuou a dominar a inspiração poética de Fernando Pessoa da "Mensagem" ou da "Ode Marítima". Em forma de poema ou prosa livre de diversa cariz o tema mereceu a desejada atenção. Deste modo o mar e a gesta dos portugueses são uma constante da nossa literatura. Zurara imortalizou o Infante D. Henrique em a "Crónica de Guiné", João de Barros e outros cronistas deixaram-nos o relato disso, Fernão Mendes Pinto fez da sua "Peregrinação" um manifesto e testemunho dum aventureiro e Bernardo Gomes de Brito recolheu as histórias trágicas da vida no mar em "História Trágico Marítima" (1735-1736). Ou, ainda,, a "Nau Catrineta", que tão bem o romanceiro soube preservar. Acompanhar esse processo é abrir uma das páginas mais nobres da História de Portugal. O Mar poderá assim ser definido na História de Portugal e da ilha através e três momentos: a descoberta, a -fruição, o domínio e a disputa.

2. A DESCOBERTA DO MAR E DA ILHA. A descoberta do mar é um acto simultâneo com a da ilha. Os portugueses demandam a sul à procura das terras míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. Tudo se passa numa ventura no desconhecido, mesmo que tudo se repita por diversas vezes. A abordagem da Madeira acontece com o espectro do espesso negrume que a escondia. E foi, segundo os relatos históricos, a curiosidade em saber o que ele escondia que se revelou a Madeira aos navegadores portugueses no ano de 1419. Desfeita a incerteza e transposto o obstáculo é então o momento de celebrar e de descobrir aquilo que se nos revela. João Gonçalves Zarco decide-se fazer o reconhecimento da costa. Este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa madeirense, mas também pelas revelações que lhe permite no baptismo dos diversos acidentes da costa. A atenção dos marinheiros direcciona-se para a terra e o mar. Na primeira busca boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto no segundo move a sua atenção a fauna marinha, do seu conhecimento ou não. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: Ponta do Garajau. Os lobos marinhos que no dizer do cronista, "era enquanto, e não foi pequeno refresco para ha gente, porque matarão muitos delles, e tiverão na matança muito prazer e festa", deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato tratou-se do

assentamento mas a curiosidade por reconhecer terra que ficara no desconhecimento tinha agora lugar, com "o correr a costa" até ao seu limite a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: "e ho maior que até haquelle tempo tinhão visto, pela rezão do qual peixe ficou nome aquella Ponta ha do Pargo". O facto da toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositam nesta riqueza e o empenho com que a observavam: Porto das Salemas (P. Santo), Baixa da Badajeira (Madeira). Na verdade o Atlântico era desde a antiguidade um espaço privilegiado de pesca, descoberto desde o século VI A. C. pelos cartagineses. E aquilo que buscavam os portugueses não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar, é o óleo e pele de lobo marinho das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira. Assim Cadamosto, em meados do século XV, refere ser a ilha rica "em garoupas, dourados e outros bons peixes". O MAR E OS SEUS RECURSOS. A revelação e descoberta do mar adquiriram interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Todavia a atenção do europeu quanto ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, através dos sistemas de correntes e ventos, além do conhecimento dos acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma acção pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades. Surgem assim as cartas de marear, roteiros de viagem, tabelas hidrográficas e regimentos, que vão permitir uma navegação com maior segurança. Neste contexto são de referir os trabalhos de Duarte Pacheco Pereira, João Lisboa, André Pires, Pedro Nunes, Jorge e Pedro Reinel. A ciência náutica teve grande incremento com os portugueses sendo o momento que medeia o último quartel do século XV e os princípios do seguinte o de maior fulgor, permitindo a navegação astronómica. O conhecimento do mar vai ainda permitir uma evolução no sistema de construção das embarcações na definição do velame. Tudo isto acompanhado de roteiros e cartas que asseguram o traçado ideal permite navegar com maior segurança e rapidez. Note-se que no caso da Madeira o calado das embarcações dos primórdios do século XV não permitiam suportar as invernias pelo que a ilha ficava isolada do reino por cerca de seis meses. Mas aos poucos esse isolamento quebrou-se com o volume das embarcações e as soluções engendradas para fugir às tempestades. Também a chamada carreira da Índia estava condicionada a determinadas épocas do ano. O período de saída de ambos os lados deveria ser bem calculado de modo a retirar bom rendimento do sistema de ventos e correntes marítimas no Índico e Atlântico. Mesmo assim os naufrágios acontecem com alguma periodicidade e o mar é para muitos portugueses a sua última morada. Mesmo assim a carreira da Índia revela um índice baixo de sinistralidade. De acordo com V. M. Godinho nos registos desta carreira para o período de 1500 a 1635. Assim em 912 partidas tivemos 84 perdas e em 516 regressos os danos foram de 75 embarcações. Note-se que nos séculos XVII e XVIII inúmeras embarcações da carreira do Brasil, de regresso ao reino com açúcar ou tabaco, sendo vítimas de tempestade aportam ao Funchal para reparação do velame e mastros e cura dos doentes. A Madeira quanto a isso não foge à regra. A costa da ilha não oferece grandes enseadas de abrigo e desembarque e o Funchal, que se afirmou como o principal porto, encontra-se situado numa zona da costa que não oferece as melhores condições de abrigo na estação invernosa devido aos ventos que sopravam do quadrante sul. Mesmo assim para o período de 1727 a 1802 só estão registados 52 naufrágios.

A Madeira não esteve alheada desta situação, pois aqui escalavam as naus portuguesas da rota da Mina, Brasil e Índia, que aí se abasteciam de vinho e lenha; por vezes, muitas embarcações espanholas também aportavam à ilha antes do refresco habitual das Canárias. Assim sucedeu em 1498 com a expedição de Colombo. Esse serviço de apoio às embarcações portuguesas era assegurado e pago pelo provedor da Fazenda da Ilha. Dele apenas se referencia, em 1517, a entrega de oitenta arrobas de lenha a uma nau que se dirigia à Índia e do envio ao reino, em 1531, de duzentas pipas de vinho para a frota da Índia. Por vezes as embarcações escalavam a ilha para tomar o vinho necessário para a viagem. Aliás não foram só os portugueses que utilizaram o vinho madeirense na ementa das naus que sulcavam o Atlântico, pois Também os ingleses o fizeram por diversas vezes; é o caso, em 1533, da escala de Richard Eraen na sua viagem à Guiné, que tomou algumas pipas de vinho no Funchal. A Madeira Também provia as embarcações de retorno que por aí passavam; assim sucedeu em 1528 com uma nau régia capitaneada por André Soares, procedente de Mina, que recebeu do provedor da fazenda biscoito, pescado, azeite e vinho para sustento dos dezoito tripulantes, no período de vinte dias de viagem até Lisboa. 3. O DOMÍNIO E DISPUTA DO MAR. A tradição literária aposta na ideia de um mar indomável capaz de tragar as forças e ímpeto do homem. Para nós o grande desafio aconteceu com os portugueses que o souberam vencer no século XV, tal como faz eco Camões no seu poema imortal. Esta situação criou vantagens aos portugueses para a sua hegemonia no mar, isto é mar descoberto por portugueses é um mar que se fecha à presença de outros. É a teoria do "mare clausum" (mar fechado) que tanta polémica gerou no século XVI. O século XV marca o início da afirmação do Atlântico, o novo espaço oceânico revelado pelas gentes peninsulares. O mar, que até meados do século XIV se mantivera alheio à vida do mundo europeu, atraiu as suas atenções e em pouco tempo veio substituir o mercado e via mediterrânicos. A abertura, como vimos, foi titubeante, mas geradora, no início, de conflitos: primeiro foi a disputa pela posse das Canárias, que se alargou, depois, ao próprio domínio do mar oceânico. Portugueses e castelhanos entraram em aceso confronto, servindo o papado de árbitro nesta partilha. Os franceses, ingleses e holandeses que, num primeiro momento, foram apenas espectadores atentos, entraram também na disputa a reivindicar um mare liberum (o mar livre, aberto)e o usufruto das novas rotas e mercados. Nestas circunstâncias o Atlântico não foi apenas o mercado e via comercial, por excelência, da Europa, mas também um dos palcos principais em que se desenrolaram os conflitos que definem as opções políticas das coroas europeias, expressas por meio da guerra de corso. É esta contenda político-económica, que o oceano gerou, o tema que prenderá agora a nossa atenção. Aqui faremos um breve sumário das questões, pondo em evidência as que nos parecem imprescindíveis para a compreensão do protagonismo dos espaços insulares. Na realidade, como teremos oportunidade de ver, as ilhas foram os principais pilares da estratégia de domínio do oceano, e por isso mesmo todas as iniciativas neste âmbito repercutiram-se de modo evidente nelas. Quando os portugueses se lançaram, no século XV, à exploração do oceano encontraram, à partida, um primeiro obstáculo. As Canárias, que tão necessárias se apresentavam para o controlo exclusivo do oceano, estavam já a ser conquistadas por Jean Betencourt, um estranho navegador, financiado pelos mercadores de Sevilha. Esta foi a primeira dificuldade, que causou inúmeros problemas à plena afirmação do mare clausum lusitano. Em face disso, só havia uma possibilidade: tomar posse de uma das ilhas por conquistar (La Gomera, por exemplo) e avançar com o povoamento da Madeira, que poderia funcionar como área suplementar no apoio ao avanço das viagens para o Sul. Seguiram-se outras dificuldades de importância igual que entravaram o

progresso das viagens para Sul. A procura de uma rota de regresso da costa africana além do Bojador, preocupou os marinheiros e entravou a progresso das viagens para Sul. A volta pelo largo com a passagem pelos Açores foi a solução mais indicada, mas tardou em ser descoberta. A PARTILHA DO MAR. Em 1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema não estava no avanço das viagens, mas sim na forma de assegurar a exclusividade a partir daí, já que na área aquém deste limite isso não fora conseguido. Primeiro foi a concessão em 1443 ao infante D. Henrique do controlo exclusivo das navegações e o direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a procura do beneplácito papal, na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela "res publica christiana" para tais situações. As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452) preludiaram o que veio a ser definido pela bula "Romanus Pontifex" de 8 de Janeiro de 1454 e "inter coetera" de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais e estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D.Henrique.. Na última situação surgem os castelhanos a partir da década de setenta, procurando intervir nas costas da Guiné como forma de represália às pretensões portuguesas pela posse das Canárias. Não obstante as medidas repressivas definidas em 1474 contra os intrusos no comércio da Guiné a presença castelhana continuará a ser um problema de solução difícil, apenas alcançado com cedências mútuas através do tratado exarado em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 6 de Março do ano seguinte em Toledo. A cedência portuguesa estabeleceu a primeira partilha política do oceano, sancionada pelo papa Sixto IV por bula "Aeterni patris" de 21 de Junho de 1481. A partir de então ficou legitimada a posse exclusiva para Portugal do mar além do Bojador. A esta partilha do oceano, de acordo com os paralelos, sucedeu mais tarde outra no sentido dos meridianos, provocada pela viagem de Colombo. O encontro do navegador em Lisboa com D. João II, no regresso da primeira viagem, despoletou, de imediato, o litígio diplomático, uma vez que o monarca português entendia estarem as terras descobertas na sua área de domínio. Mas, apressadamente, os reis católicos tiraram partido da presença de um castelhano à frente do papado -Alexandre VI -- e procuraram legitimar a posse das terras descobertas como pertencendo à sua fatia do Atlântico, por bula de 4 de Maio de 1493, alterada, depois, por outra de 26 de Setembro. O conflito só encontrou solução com novo tratado, assinado em 7 de Julho de 1494 em Tordesilhas e ratificado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de então ficou estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta léguas de Cabo Verde. A mesma ideia perseguiu os portugueses com a chegada ao Índico em 1498. Desde então o rei passou a afirmar-se como "o senhorio da navegação nos mares da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia". Deste modo a presença de intrusos será sujeita à política de cartazes ou licenças que permitiam a navegação de estrangeiros. As disputas por esta "parte de leão" reivindicada pelos portugueses foi interdita por parte de outras coroas que viam na expansão colonial uma forma de afirmação. Primeiro os castelhanos e depois os franceses, ingleses e holandeses. Aos poucos o "mare clausum" transforma-se no "mare liberum" partilhado por todos. Se é certo que a disputa peninsular pelo domínio dos mares ficou solucionada o mesmo já não poderá ser dito quanto à cobiça e empenho doutras coroas europeias. De França questionou-se mesmo a partilha peninsular, solicitando-se o texto do testamento de Adão onde isto estava estabelecido. Perante isto restava aos que havia ficado por fora da partilha o recurso à guerra de corso. O corso é assim a resposta dada pelos excluídos ao domínio ibérico dos mares. Aos demais povos europeus, habituados desde muito cedo às lides do mar, só lhes restava uma reduzida franja do Atlântico, a norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo isto seria verdade se fosse atribuída força de lei internacional às bulas papais, o que na realidade não sucedia. O cisma do

Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos actos jurídicos a medieval plenitude "potestatis". Deste modo em oposição a tal doutrina definidora do mare clausum antepõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o principal teorizador. A última visão da realidade oceânica norteou a intervenção de franceses, holandeses e ingleses neste espaço. Os ingleses iniciaram em 1497 as incursões sucessivas no oceano, enquanto os huguenotes de La Rochelle se afirmaram como o terror dos mares, tendo assaltado em 1566 a cidade do Funchal. A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico peninsular foi a que ganhou maior adesão dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da centúria o perigo principal para as caravelas não resultou das condições geo-climáticas, mas sim da presença de intrusos, sempre disponíveis para assalta-las. Deste modo a navegação foi dificultada e as rotas comerciais tiveram de ser adequadas a uma nova realidade: surgiu a necessidade de artilha-las e uma armada para as comboiar até porto seguro. As reclamações insistentes, nomeadamente dos vizinhos de Santiago, levaram a coroa a estabelecer um conjunto de armadas para protecção e defesa das áreas e rotas de comércio: costa ocidental do reino, litoral algarvio, dos Açores, da costa e golfo da Guiné, do Brasil. Eis algumas das preocupações dos peninsulares nos séculos XVI e XVII. PIRATAS E CORSÁRIOS. O mar deixou de ser um deserto acabando por estar povoado de piratas e corsários. Estes punham-se de guarda aos grandes centros de tráfico comercial, como o foi o Funchal, para conseguir uma presa fácil. Aos castelhanos do século XV sucederam-se os franceses no século XVI a que se seguiram os argelinos no século XVII. Estes últimos actuam como represália pela presença portuguesa em África e incidem a sua acção sobre a ilha do Porto Santo. Cedo os franceses começaram a infestar os mares circum-vizinhos da Madeira (1550, 1566). A partir da união peninsular sucederam-se assaltos franceses à Madeira, no que tiveram a pronta resposta de Tristão Vaz da Veiga. A presença de corsários nos mares insulares deve ser articulada, por um lado, de acordo com a importância que estas ilhas assumiram na navegação atlântica e, por outro, pelas riquezas que as mesmas geraram, despertadoras da cobiça destes estranhos. Mas se estas condições definem a incidência dos assaltos, os conflitos políticos entre as coroas europeias justificam-nos à luz do direito da época. Deste modo na segunda metade do século XVI o afrontamento entre as coroas peninsulares definiu a presença dos castelhanos na Madeira ou em Cabo Verde, enquanto os conflitos entre as famílias régias europeias atribuíam a legitimidade necessária a estas iniciativas, fazendo-as passar de mero roubo a acção de represália: primeiro foi, desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de França, depois os problemas decorrentes da união ibérica a partir de 1580. Esta última situação é um dado mais no afrontamento entre as coroas castelhana e inglesa despoletado a partir de 1557. O período que decorre nas duas décadas finais do século XVI é marcado por inúmeros esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as presas do corso. Para isso Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Mas a sua existência não teve reflexos evidentes na acção dos corsários. Note-se que é precisamente em 1566 que temos notícia do mais importante assalto francês a um espaço português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao comando de uma armada composta de três embarcações perpetrava um dos assaltos mais terríveis à vila Baleira e à cidade do Funchal. Acontecimento parecido só o dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos holandeses em S. Tomé. A mui nobre e rica cidade do Funchal durante quinze dias ficou a mando destes corsários,

que roubaram os produtos agrícolas (vinho e açúcar), profanaram as igrejas(a Sé do Funchal) e aprisionaram muitos escravos. Parte desta presa foi leiloada no momento da partida com os residentes, ou então vendida na ilha de La Palma, onde fizeram escala. Deste assalto ficaram alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o mais pungente e pormenorizado foi o de Gaspar Frutuoso, que no livro das "Saudades da Terra" dedicado à Madeira descreve de modo sucinto os acontecimentos e condena o descuido das suas gentes. Tal como refere a cidade estava " mui rica de muitos açucares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que não cuidavam". Uma das consequências principais deste assalto foi o maior empenho da coroa e autoridades locais nos problemas da defesa da ilha e, principalmente, da sua cidade, que por estar cada vez mais rica e engalanada despertava a cobiça dos corsários. O desleixo na arte de fortificar e organizar as hostes custou caro aos madeirenses e, por isso, era um desejo premente a defesa da ilha. Reactivaram-se os planos e recomendações anteriores no sentido de definir uma defesa eficaz da cidade a qualquer ameaça. O regimento das ordenanças do reino (1549) teve aplicação na ilha a partir de 1559, enquanto a fortificação teve regimentos(1567 e 1572) e um novo mestre de obras, Mateus Fernandes. Perante a incessante investida de corsários no mar e em terra firme houve necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar optou-se pelo necessário artilhamento das embarcações comerciais e pela criação de uma armada de defesa das naus em trânsito. Em terra foi o delinear de um incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível desembarque destes intrusos. As mudanças no domínio político e económico operadas ao longo dos séculos XVIII e XIX não retiraram às ilhas a função primordial de escala e espaço de disputa do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se enquanto o corso ficou marcado por uma forte escalada, entre finais da primeira centúria e princípios da seguinte. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-se os americanos do norte e sul. Nestas circunstâncias as ilhas foram de novo confrontadas com uma conjuntura de instabilidade, idêntica à de um século antes. Ela foi má para o comércio e segurança das populações insulares. Entre 1763 a 1831 as ilhas da Madeira e Açores foram confrontadas com as ameaças e intervenção do corso europeu (franceses, ingleses e espanhóis) e americano, salientando-se nos últimos a represália dos insurgentes argentinos. Ambos os arquipélagos se evidenciaram como a encruzilhada de intercepção do fogo resultante da guerra de represália americana e europeia. Por isso os interesses económicos insulares foram molestados, nos períodos de maior incidência. O mar que durante muito tempo havia sido povoado de monstros e adamastores está agora dominado por piratas e corsários. Aos primeiros os portugueses tiveram arrojo suficiente para os desafiar, mas aos segundos faltou força e meios para os levar de vencida. Tenha-se em conta que num espaço insular imerso neste mar de contendas as vulnerabilidades são maiores. Ninguém terá possibilidade de defender eficazmente uma linha de costa. Assim o testemunham as autoridades madeirenses ao longo dos séculos. Em 1793 dizia-se que a ilha estava "cercada de mar, e pela costa do sul, especialmente cheia de portos abertos assaz mal guarnecidos e pouco susceptíveis de defesa." Esta realidade é um permanente factor de instabilidade e temor do mar, ou daquilo que ele poderá trazer, para o ilhéu. 4. O MAR NO QUOTIDIANO E HISTÓRIA. O mar é hoje incontestavelmente um recurso importante. A sua presença é cada vez mais evidente no nosso quotidiano, como via de comunicação, espaço de lazer e recurso económico. Se nos reportarmos ao passado mais evidente se torna a sua presença para espaços como as ilhas. Até ao advento dos meios aéreos o mar foi para os

ilhéus aquilo que os aproximava ou afastava de outras ilhas e espaços continentais. O mar foi e continua a ser a via fundamental de comunicação. Daí advém que o mar está preso à vista do ilhéu e é uma presença permanente no seu quotidiano. A sua ausência gera saudade. O ilhéu por muito tempo teve no mar o seu cordão umbilical. Perante isto o ilhéu olha o mar com um misto de devoção e medo. Esta atracção pelo mar condicionou desde o início a vocação do madeirense. Deste modo a Madeira foi terra descoberta, mas também de descobridores. Na verdade, a Madeira, arquipélago e Ilha, afirma-se no processo da expansão europeia pela singularidade da sua intervenção. Vários são os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. OS MADEIRENSES E O DOMÍNIO DO MAR. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. além disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de tudo isto está patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes. Á função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outras condições contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no Atlântico. O desenvolvimento rápido da economia de mercado, em uníssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar continuidade à gesta de reconhecimento do Atlântico reforçaram a posição da Ilha e fizeram avolumar os serviços prestados pelos madeirenses. Aqui surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de títulos e benesses pelos serviços prestados no reconhecimento da costa africana, defesa das praças marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e Indicas. A posição geográfica da ilha, o seu processo rápido de povoamento e valorização económica projectou-a para uma rápida afirmação no Atlântico Oriental. Assim, decorridos apenas vinte e seis anos sob a ocupação, os moradores da Madeira empenharam-se na disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Em 1446 João Gonçalves Zarco, foi enviado a Lanzarote, como plenipotenciário para afirmar o contrato de compra da ilha. Acompanham-no as caravelas de Tristão Vaz, capitão do donatário em Machico e de Garcia Homem de Sousa, genro de Zarco. Mais tarde em 1451, o infante enviou nova armada, em que participaram gentes de Lagos, Lisboa e Madeira, sendo de salientar, no último caso, Rui Gonçalves filho do capitão do donatário do Funchal. Para a aristocracia madeirense o empenhamento nas acções marítimas e bélicas é, ao mesmo tempo, uma forma de homenagem ao senhor (monarca, donatário) e de aquisição de benesses e comendas. Zurara na «Crónica da Guiné» confirma isso, referindo que a participação madeirense ia ao encontro dos princípios e tradições da cavalaria do reino. O que não invalida a sua presença com outros objectivos, como sucede a partir de meados do século XV. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, com participação activa nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças africanas do norte, nos séculos XV e XVI. Esta presença de gentes da Madeira continuará por todo o século XV em três frentes: Marrocos, litoral africano além do Bojador e terras ocidentais. Na primeira e última a presença dos madeirenses foi fundamental.

A tradição refere que o primeiro homem a lançar-se à aventura do descobrimento das terras ocidentais foi Diogo de Teive, que em 1451 terá saído do Faial à procura da ilha das Sete Cidades, mas que no regresso apenas descobriu as de Flores e Corvo. Seguiram o seu exemplo outros madeirenses que gastaram muito de sua fazenda para abrir o caminho, mais tarde, trilhado por Colombo. A ilha estava em condições de propiciar ao navegador as informações consideradas imprescindíveis para o descobrimento das terras ocidentais. Note-se que este apelo do Ocidente é uma consequência lógica do reconhecimento dos Açores, ocorrido a partir de 1427, todavia as ilhas mais ocidentais (Flores e Corvo) só em 1452 foram pisadas por marinheiros portugueses. A sua entrada no domínio lusíada deu-se por mãos de Pedro Vasquez de la Frontera e Diogo de Teive em 1452, no regresso de uma das viagens para o Ocidente à procura das ilhas míticas. As ilhas açorianas, por serem as mais ocidentais sob domínio europeu até à viagem de Colombo, era o paradeiro ideal para os aventureiros interessados em embrenhar-se na gesta descobridora dos mares ocidentais. Desde meados do século XV, madeirenses e açorianos saem, com frequência assídua, à busca de novas terras assegurando, antecipadamente, a posse do que descobrissem por carta régia. É de notar que este interesse dos insulares pela descoberta das terras ocidentais é muito anterior a Colombo e persistiu após 1492. A primeira carta conhecida é de 19 de Fevereiro de 1462, sendo a posse das novas ilhas Lovo e Capraria e outras que iria descobrir, dadas ao João Vogado. Ainda antes de 1492 temos outras concessões a Rui Gonçalves da Câmara(21 de Junho de 1473), Fernão Teles(28 de Janeiro de 1474), Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito(24 de Julho de 1486). Após a primeira viagem de Colombo não esmoreceu o interesse dos insulares por tais viagens. O Ocidente exerceu sobre os ilhéus, madeirenses e açorianos, um fascínio especial, acalentado, ademais, pelas lendas recuperadas da tradição medieval. Por isso mesmo, desde meados do século XV, eles entusiasmaram-se com a revelação das ilhas ocidentais - Antília, S. Brandão, Brasil. No extenso rol de aventureiros anónimos que deram a vida por esta descoberta, permitamnos que referencie os madeirenses Diogo de Teive, João Afonso do Estreito, Afonso e Fernão Domingues do Arco. A. Ballesteros identifica este último como o piloto anónimo que em 1484 veio a Lisboa pedir ao rei uma caravela para, segundo Fernando Colombo, "ir a esta tierra que via.". A estas iniciativas isoladas acresce toda uma tradição literária e os dados materiais visíveis nas plagas insulares. A literatura fantástica, a cartografia mítica o aparecimento de destroços de madeira e troncos de árvores nas costas das ilhas açorianas acalentavam a esperança da existência de terras a ocidente. Nas costas das ilhas açorianas do Faial e Graciosa encalhavam alguns pinheiros, enquanto nas Flores davam à costa dois cadáveres com feições diferentes das dos cristãos e dos negros. Tudo isto levantava o fervor dos aventureiros que com assiduidade se deparavam perante ilhas que nunca existiram. A "décima ilha", por exemplo, nunca passou de uma miragem. A curta permanência de Colombo no Porto Santo e, depois, na Madeira possibilitou-lhe um conhecimento das técnicas de navegação usada pelos portugueses e abriu-lhe as portas aos segredos, guardados na memória dos marinheiros, sobre a existência de terra a Ocidente. Bartolomé de Las Casas e Fernando Colombo falam que o mesmo teria recebido das mãos da sogra "escritos e cartas de marear". Ambos os cronistas fazem do sogro um destacado navegador quatrocentista. Tudo isto não passa de criação para enfatizar a ligação de ambas as famílias. Na verdade Bartolomeu Perestrelo, ao contrario de muitos genoveses ou seus descendentes, não é referenciado nas crónicas portuguesas como navegador. Ele apenas é referenciado como capitão do donatário da ilha do Porto Santo, por carta de doação de um de Novembro de 1446, e na condição de povoador da ilha acompanhou João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz em 1419. Mesmo assim em sua casa podia ser possível a presença de tais documentos. Mais importantes foram os elementos que lhe terá fornecido

o seu cunhado Pedro Correia, capitão da ilha Graciosa (Açores). Daí ele dava conta de outras notícias das terras açorianas, sem esquecer os despojos estranhos que aportavam com assiduidade às praias da ilha do Porto Santo. Aí, na Madeira e Porto Santo, ouviu histórias e relatos dos aventureiros do mar, teve acesso a provas evidentes da existência de terras ocidentais legadas pelas correntes marítimas nas praias. Um destes vestígios foi a castanha do mar, mais popularmente conhecida como "fava de Colombo". Por tudo isto é legítimo de afirmar que o navegador saiu do arquipélago, em data que desconhecemos, com a firme certeza de que algo de novo poderia encontrar a Ocidente, capaz de justificar o seu empenho e da coroa. Durante os cerca de dez anos que permaneceu em Portugal Cristóvão Colombo acompanhou de perto as expedições portuguesas ao longo da costa africana. O fascínio do navegador pelo mar, conquistado no Mediterrâneo como corsário ou comerciante, despertou-lhe o apetite para as navegações atlânticas portuguesas. No momento em que se fixou em Lisboa toda a atenção e azáfama estava orientada para o desbravamento da extensa costa africana além do Bojador, conhecida como costa da Guiné. Nesta época era já conhecida e navegada toda a área costeira até ao Cabo de Santa Catarina, alcançado em 1474, no período do contrato de Fernão Gomes. É de salientar que a Madeira foi por muito tempo a escala obrigatória das embarcações portuguesas que se dirigiam à costa africana. Tal facto derivou de o Funchal ser o único porto seguro, avançado no Atlântico, dispondo de excedentes de cereais e vinho, necessários à dieta de bordo dos marinheiros. A par disso os madeirenses acalentavam, desde a década de quarenta, a aventura das navegações africanas, interessado às famílias principais da ilha. Por tudo isto é inevitável associar a viagem de Colombo à sua curta estadia nas ilhas da Madeira e Porto Santo, onde contactou com a realidade atlântica, adquiriu as técnicas necessárias para se embrenhar na aventura de busca das terras ocidentais. O retorno do navegador à ilha, em 1498, no decurso da terceira viagem, pode e deve ser entendido como o seu reconhecimento aos madeirenses. Aqui teve oportunidade de relatar, aos que com ele acalentaram a ideia da existência de terras a Ocidente, o que encontrara de novo. O convívio com as gentes do Porto Santo havia sido prolongado e cordial pois em Junho de 1498, aquando da terceira viagem, não resistiu à tentação de escalar a vila. A sua aproximação foi considerada mau presságio pois os porto-santenses pensavam estar perante mais uma armada de corsários. Desfeito o equívoco foi recebido pelos naturais da terra, seguindo depois para a Madeira. A 10 de Junho de 1498 a chegada do navegador ao Funchal foi saudada apoteoticamente, como nos refere frei Bartolomé de Las Casas, o que provoca mais uma vez, a familiaridade com esta gentes e a esperança que elas depositavam em tal empresa. O cronista remata da seguinte forma o ambiente de festa que o envolveu: "le fué hecho mui buen recibimiento y mucha fiesta por ser alli muy conocido, que fué vecino de ella en algún tiempo". O MAR COMO VIA DE COMUNICAÇÃO. Mas o mar não é só a via que leva o ilhéu à aventura da descoberta, pois está sempre presente no dia à dia da ilha. Também as condições orográficas da ilha o arrastaram para outra ligação ao mar, como via fundamental do desenvolvimento interno. Toda a economia madeirense é dominada pelo mar e define-se pela litoralidade da sua implantação sóciogeográfica. A insuficiência das comunicações terrestres, que perdura até ao nosso século, evidencia a importância de actuação das vias marítimas materializadas numa teia complicada de rotas de cabotagem. A sua preferência é muitas vezes relativizada em face dos acidentes e adversidades da costa e do mar, pois os ventos e as correntes marítimas dificultam a sua utilização. A Madeira, devido aos condicionalismos de ordem geográfica e climática, apresentava reduzidas possibilidades para o desenvolvimento das vias e meios de comunicação terrestres e marítimas. Esta condição limitou as

possibilidades de desenvolvimento económico, fazendo restringir essa actuação à faixa litoral sul entre Machico e a Calheta, espaço recheado de enseadas e calhetas para o necessário movimento de cabotagem. Assim surgem portos em Machico, Santa Cruz, Funchal, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta. O transporte da produção de açúcar da Calheta do ano de 1509 para o Funchal fez-se por barqueiros, em conjunto ou individualmente; executava-se ao longo de todo o ano, mas habitualmente no período da safra e de maior exportação, entre Março e Julho. Até 1508 todo o movimento com o exterior era feito a partir do Funchal. daí que existisse um contínuo movimento de cabotagem, entre este porto e os restantes da ilha, para o escoamento do açúcar. A partir de então, ao ser permitida a carga e descarga para a exportação do açúcar, contribuiuse para a valorização dos portos das partes do fundo em detrimento do Funchal. Esta situação mantevese por pouco tempo, pois no ano imediato a medida foi revogada. O porto do Funchal surge no dealbar do século XVI como o principal entreposto madeirense do comércio atlântico. A zona ribeirinha do burgo funchalense, em redor da alfândega nova, era o pólo principal de animação. Aí convergiam mercadores, carreteiros, barqueiros, mareantes e curiosos. No calhau havia-se instalado em 1488 o cabrestante, cuja exploração foi concedida em regime de monopólio a João Fernandes Mouzinho, com o foro anual de cem reais. Desde 1568 a sua exploração seria entregue a uma sociedade, passando em finais do Século a ser explorado por diversos mareantes que Aí construíram um número variado de cabrestantes. O município aforava não só a instalação do cabrestante, mas também as casas e os chãos necessários para a actividade desses mareantes e barqueiros. O foro de um cabrestante variava entre duzentos a trezentos reais, enquanto o de um chão ou casa se cifrava em trezentos reais. Perante esta evidência do mar no quotidiano madeirense será necessário descobrir os testemunhos dos seus agentes ao longo da História. Note-se que o centro principal de incidência dos homens do mar se situava na zona ribeirinha do Funchal. Aí deparamo-nos com 82% dos barqueiros e 98% dos mareantes. Muitos destes encontravam-se temporariamente ao serviço de embarcações que aportavam ao Funchal. Desses 12% são do reino, nomeadamente de Tavira, Faro, Lagos, Alcácer do Sal, Santarém, Porto, Esposende, Sesimbra, Gaia. Viana, Barcelos e Vila do Conde. Sendo assim, o movimento de embarcações entre a Madeira e o reino era intenso, salientando-se neste último o litoral algarvio, a região de Lisboa e a costa norte. A Existência de mareantes fora do Funchal - Calheta, Santa Cruz, Machico (3%) - evidencia Também a Existência de contactos dessas embarcações de comércio a longa distância nestas zonas costeiras. A acostagem de navios e o serviço de carga e descarga foi por muito tempo um problema insolúvel para o porto do Funchal. No século dezoito insiste-se na necessidade de um molhe. Os estudos começaram em 1755 mas este só foi concluído no reinado de D. José. O advento do século XIX, acarreta novas exigências, mas a reivindicação de um porto capaz foi-se arrastando até à presente centúria. Nos séculos seguintes continuou a apostar-se no mar como a via mais fácil e rápida de comunicação, quer na vertente sul quer a norte. A atestar esta valorização das comunicações marítimas está a construção de cais nos principais centros desse trafico. Assim temos na vertente Sul Ponta de Sol(1850), Santa Cruz(1870), Lazareto e Machico(1874), Faial(1901), Câmara de Lobos e Porto da Cruz(1903), Ribeira Brava(1904-1908), Ponta da Oliveira e Caniço(1909), Ponta da Cruz(1910). E para a vertente norte surgem os de S. Jorge(1910), Porto Moniz e Seixal(1916) . A CONSTRUÇÃO NAVAL. Mas o mar não é apenas a via que nos aproxima dos outros, uma vez que também nos brinda com inúmeros recursos económicos. A pesca é, a par da actividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de

povoamento que por isso mesmo no início se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, pelo que teremos de admitir a valorização da construção naval; ela surge não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta actividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de Reparação e Construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da ilha e em Machico sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. As madeiras da ilha da Madeira foram muito apreciadas no século XV na construção naval, no reino e na ilha. O seu uso imoderado nestas e noutras actividades conduziu à paulatina desarborização da ilha, pelo que as autoridades concelhias actuaram no sentido da defesa do parque florestal madeirense, restringindo o uso das madeiras a sectores essenciais da vida local. Deste modo proibiu-se a exportação de tabuado e limitou-se a construção naval à construção de caravelões a barcas “pera serviço e maneo das cousas e negocios da ylha...”. Em 1515 especificava-se que a madeira apenas deveria satisfazer as necessidades da pesca do carreto, sendo interdita a sua venda para fora. Por esta razão em 1541 é incriminado André Lourenço, mestre de moinhos de açúcar em Santa Cruz, por ter construído uma embarcação de maiores dimensões do que as permitidas no regimento. OS RECURSOS DO MAR. A pesca, ao contrário do que hoje acontece não era a actividade exclusiva de alguns núcleos do sul, pois se alargava a toda a ilha. A afirmação desta actividade levou à criação de núcleos piscatórios que se afirmaram ao longo dos tempos e que evidenciaram a importância da vertente sul. O desenvolvimento de algumas indústrias no nosso século levou à sua valorização. Em 1909 Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Seixal, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. A primeira baleia conhecida na baía do Funchal é de 1595, enquanto em 1692 uma outra capturada rendeu 64 000 réis, mas já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis.. Em 1741 Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosos da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objectivo. A indústria em questão só terá lugar após a grande guerra, conhecendo -se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade nos primeiros anos da presente centúria: fábrica da Ponta da Cruz de João A. Júdice Fialho (1909), fábrica do Paul do Mar de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa; Fábrica de Pedra Sina em S. Gonçalo de Maximiano Antunes (1939); Fábrica de Machico (1949) de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira; Fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui o pescado da ilha passará assim a ter dois destinos: o consumo público e a indústria de conservas, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então o único destino era o consumo público sob a forma de fresco ou salgado. tenha-se em conta o

interesse nas salinas em Câmara de Lobos e Praia Formosa de que existem testemunhos desde o século XVIII mas nunca adquiriram grande dimensão e interesse. Desde o início da ocupação da ilha que o peixe é um recurso destacado. Deste modo sobre ele recai um imposto, isto é, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, Ribeira Brava e Tabua esse dizimo era cobrado pelos jesuítas, que desde a segunda metade do século XVI tiveram assento na ilha. O pescado acudia com maior assiduidade ao Funchal onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo sucedia que as diversas localidades da vertente sul embora dispondo de núcleos piscatórios debatiam-se quase sempre com a sua falta, por os pescadores preferirem a sua venda na cidade. Face aos produtos as autoridades municipais foram forçadas a tomar medidas. Em Machico os pescadores da vila estavam obrigados a aí venderem 1/4 do pescado, passando em 1640 para 1/3. Já na Ponta do Sol a Câmara proibiu em 1704 a sua venda para fora do concelho e em 1727 obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar sob pena de 2 000 réis. Mesmo assim o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto do foral de 1516 os isentar do pagamento do dizimo. Os madeirenses também iam pescar às costas da Berbéria, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico. Disso se conclui face a uma reclamação dos pescadores em 1596 face ao tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que daí traziam. A par disso sucedem-se medidas intimidatórias aos pescadores de Câmara de Lobos, obrigando-os, de acordo com mandato de 1713, a descarregar o seu pescado no Funchal. Esta e outras situações levaram o corregedor a organizar em 1783 um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto SantoEstabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo- que não teve efeito. A par disso sucederam-se medidas de defesa desta industria através de regulamentos que delimitavam a forma da pescada, quanto às redes a usar e no século XIX o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da ilha e P. de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877 recomendando ao governador medidas contra essa prática. A venda do pescado era feita na praça de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tablados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que através dos seus escravos procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, hoje Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores. A sua influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma diminuta comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. A pesca ocupava em 1914 mais de mil e quinhentos pescadores com 537 embarcações, já em 1931 temos 1500 pescadores servidos de 24 embarcações a motor e de 508 à vela ou a remos. REDESCOBRIR O MAR PARA A CIÊNCIA. O interesse pelo mar não se reduziu apenas à junção dos seus recursos económicos. Também é de registar uma aposta nos estudos científicos a partir do século XVII. A passagem de alguns cientistas ingleses pela Madeira propiciou uma primeira descoberta das raridades da sua fauna marinha.. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane(1687) e James Cook(1768 e 1772). Já no decurso do século XIX aumentou o interesse pela ilha, por parte de súbditos ingleses residente ou de passagem. Destes podemos destacar os estudos de Richard Lowe(1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate

Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses neste estudo poderá ser assinalado com João José Barbosa du Bocage. O primeiro a apelar a isso foi José Silvestre Ribeiro quando em 1850 criou o Gabinete de História Natural., que se apagou com a sua saída em 1852. Todavia a aposta no estudo e divulgação dos recursos marinhos viria só a acontecer mais tarde com a criação do Aquário do Museu Municipal, que abriu ao público em 1951.A publicação do Boletim do Museu Municipal desde 1945, os estudos de Adão Nunes, Adolfo César de Noronha e Gunter Maul vieram a dar conta de quão rico é o nosso património marinho. A DEVOÇÃO E O MEDO. Nas comunidades piscatórias a devoção religiosa adquire dimensão particular. Esta poderá incidir em qualquer dos santos patronos - S. Pedro o pescador, S. Pedro Gonçalves Telmo - ou nos oragos do lugar, como é o caso de Nª Senhora da Piedade para o Caniçal, do Senhor dos Milagres para Machico, de Nª Senhora da Conceição no Porto Moniz e do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada(...). Santelmo era a invocação óbvia em momentos de tempestade. A ele associava-se as centelhas luminosas que apareciam nas extremidades dos mastros dos navios, provocadas pela electricidade atmosférica. Este fenómeno ficou conhecido como o fogo de Santelmo. A devoção ao santo ocorria com particular incidência no Funchal, ao cabo do Calhau, e em Câmara de Lobos. Em ambos os portos piscatórios existe uma capela da sua invocação, cujo culto era assegurado por uma confraria da responsabilidade dos mesmos pescadores. Todavia a confraria em questão apostava mais no auxílio mútuo aos pescadores e familiares. Cada barco deveria entregar uma cotização à confraria que este administrava depois no auxílio em caso de naufrágio ou morte. Assim sucedeu no Funchal, Câmara de Lobos e Calheta, onde funcionou esta confraria. Já no presente século todo esse apoio passou a actas desde 1939 centralizado Casa dos Pescadores. EPILOGO. Olhando à história da ilha denota-se que o mar, embora obrigatoriamente sempre presente, não adquire a dimensão que deveria merecer. No início, os madeirenses são mais aventureiros do que marinheiros e, depois, continuam quase que a ignorar o mar e os seus recursos. Para isso deverá ter contribuído a política centralista da coroa, que sempre estabeleceu limitações a essa redescoberta do mar a partir das ilhas. São os entraves ao desenvolvimento da construção naval e os segredos que medeiam os conhecimentos sobre o mar. Perante tudo isto o madeirense afirma-se como agricultor e aventureiro, que faz-se transportar e às suas riquezas por outrem. De entre, os homens que têm por palco o mar, são um grupo reduzido, o que gera algumas dificuldades nomeadamente no aproveitamento dos seus recursos para a alimentação. No passado foi insistente a falta de pescado para abastecimento do mercado local, tornando-se indispensável a sua importação. De igual forma o madeirense deixou entregue a mãos alheias a tarefa de estudo e conhecimento do mar. Foram os ingleses que tiveram o condão de nos revelar quão rico era o mar que nos rodeiam.

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