Ensaio Final I&d

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ISCTE LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA IDENTIDADES & DISCRIMINAÇÕES 16.Jun.2009

O eu social na prática do boxe: reflexão sobre a diferenciação de género num mundo androcentrico

ANA CANHOTO N.º 27685 TURMA AC2

Quando me predispus a realizar este pequeno ensaio sobre as questões de identidade de género no mundo do boxe, tinha a consciência que estava a actuar num terreno que se revelava ambíguo. O eu estava e está sempre presente e, como tal, tive de partir para o mesmo com a noção de que a minha posição seria de nativa e ao mesmo tempo de distanciada, tal como exigem as formalidades antropológicas. Assim, parto para este trabalho expondo a minha experiência pessoal e confrontando-a com o conhecimento antropológico que me permite analisar de que modo eu, tal como os restantes humanos, sou um ser socialmente construído. A natureza apenas me atribuiu um corpo biológico, o qual é manipulado, transformado e representado, ao sabor de valores culturais que estão inculcados em mim. Como praticante de boxe num ginásio do meu bairro, já anteriormente tinha realizado um ensaio sobre a associação do género com as actividades desportivas, porém, parti para este com uma outra perspectiva. Este, biográfico, levou-me a reflectir sobre a razão pela qual eu considero, e assim o digo às pessoas que me rodeiam, que pratico boxe de manutenção e não existe qualquer tipo de competição na minha prática. Há muitos anos que pratico desporto. Experimentei várias modalidades: ballet, actividades gímnicas, dança contemporânea, aeróbica e musculação. Nunca realizei qualquer competição, apenas fiz o que se designa de representação, actuando em classes desportivas que se faziam representar em outros ginásios ou em espectáculos, tendo em vista divulgar o nome do ginásio que frequento. Hoje em dia considero que o que faço é por recreação e por motivos de saúde. As últimas modalidades em termos temporais que frequento são o pilates, o ballet contemporâneo e a salsa, as quais pratico desde Setembro do ano transacto. Quanto ao boxe, frequento esta modalidade há cerca de cinco anos. Lembro-me bem de quando e como comecei a frequentar as aulas de boxe. Fazia musculação junto com uma colega e ambas estávamos desmotivadas. Com alguma frequência nos cruzávamos com o professor do boxe na sala de musculação, com o qual mantínhamos algum diálogo. E foi após algumas conversas, nas quais mostrámos o nosso desinteresse pela modalidade que estávamos a praticar, que este nos convidou para experimentar uma aula de boxe. Não nego que fiz juízos sobre este desporto, que tinha na minha mente algumas imagens relacionadas com a violência, as quais me faziam recear experimentá-lo, contudo tentei e hoje não me arrependo de o ter feito. Quando comecei a praticar o boxe eu e a minha colega éramos as únicas duas mulheres numa sala com vários homens. Contudo, talvez por termos gostado do tipo de exercícios que realizámos na aula e o facto de estarmos as duas mulheres presentes, acabámos por ficar. Recuando no tempo, reconheço que este terá sido um factor fundamental para a minha estada 1

no boxe. Sabia que existia outra mulher presente e mesmo combatendo com homens, seria com a minha colega com quem iria trabalhar mais, dado que no boxe parte dos exercícios são realizados a par. Do mesmo modo conhecia, há já vários anos, o professor, depositando nele a confiança suficiente para não recear a possível a existência de violência explícita na prática desta modalidade dentro do ginásio. Em Setembro desse ano entrou mais uma mulher para o boxe, a qual veio a abandonar vários meses depois, e ao longo dos tempos mais algumas foram experimentando e acabaram por não ficar. O mesmo se verificou quanto aos homens, tendo alguns realizado apenas uma aula. No entanto, eu e a minha colega continuámos a praticar, mantendo-nos na modalidade até à actualidade. E em um ano mais duas colegas se juntaram à turma do boxe, respectivamente em Junho e em Setembro de 2008. Há cerca de dois meses temos uma nova colega. No presente somos cinco mulheres entre cerca de uma dúzia de homens, entre os quais dois são professores. Quando volto atrás no tempo e reflicto sobre a razão pela qual escolhi experimentar o boxe, consciencializo-me que este foi, e é, para mim um desafio. Praticar boxe é uma provocação à visão androcentrica do mundo, à ideia de que existe uma relação entre a prática de desportos e o sexo social. Na minha óptica e pelo modo como percepciono os discursos de quem me rodeia, existe uma correspondência entre o boxe e a masculinidade, como se fosse natural o homem praticar este desporto e anti-natural a mulher o fazer. Como afirma Dorothy V. Harris, no artigo «Femininity and Athleticism» do Handbook of Social Science of Sport, tradicionalmente os desportos têm sido um apanágio da masculinidade, reflectindo-se na aceitação e elogio que a sociedade faz ao homem por este praticar desporto. Contrariamente, o discurso do desporto parece não se coadunar com a imagem estereotipada da mulher ideal (1981: 274), que se encontra simbolicamente identificada com a natureza, com as actividades relacionadas com a reprodução da vida. Ao praticar boxe, no qual são executados movimentos de socar, a mulher passa para um domínio que deixa de lhe pertencer. Ao invés de reproduzir vida, aqui ela simboliza a destruição, identificando-se com o acto da caça e da guerra, tarefas reconhecidas socialmente como pertencentes ao domínio masculino. Esta relação pode ser compreendida se olharmos o que nos diz a história desta modalidade. Dada a sua extensividade, não vou aqui discorrer sobre a mesma, porém não posso deixar de referir alguns aspectos que considero terem repercussões na actualidade. O boxe masculino, tal como o conhecemos hoje, terá tido o seu desenvolvimento durante o século XVIII, com o primeiro combate masculino conhecido a ocorrer em 1681 (Holland 2008) e o feminino em 1722 (Svinth 2000). Este foi, durante muitos anos, um desporto 2

executado pelas classes baixas e operariado, frequentemente para entretenimento das classes mais altas. No entanto, enquanto o boxe masculino se desenvolveu nos países ocidentais, tendo sido reconhecido em 1904 como desporto olímpico, a aceitação do boxe feminino foi tardia e ainda no presente as associações procuram o reconhecimento por parte do COI. A nosso ver é perceptível, em toda a história do boxe, uma clara distinção entre o reconhecimento deste desporto praticado por homens e por mulheres, o qual tem perdurado e é visível na forma como no presente existe pouca divulgação sobre o mesmo. Tomemos como exemplo a relação entre o boxe e o cinema: a saga de filmes sobre Rocky Balboa, de 1976 a 2006; The Champ, de 1979; The Raging Bull, de 1980; The Boxer, de 1997; Ali, de 2001 e Cinderella Men, de 2005, entre muito outros onde se divulgou o boxe masculino. Em termos femininos falamos apenas de Million Dollar Baby, de 2004, filme que considero ter sido determinante para uma mudança na forma como homens e mulheres consideram o que é o boxe. Este facto denota-se numa maior procura do boxe por parte das mulheres. Talvez porque o boxe feminino esteja pouco divulgado, estão também na minha lembrança as primeiras reacções dos meus familiares e amigos, quando os informei que o estava a praticar. Quanto à minha família, porque no passado o meu irmão frequentou o boxe no mesmo ginásio e ambos os meus progenitores há mais trinta anos praticam actividades gímnicas neste, a estranheza não foi tão perceptível. Tinham conhecimento sobre o tipo de exercícios que se realizavam nas aulas, como também existe uma relação de alguma proximidade com os professores. Todavia, não negaram que não esperavam que a minha prática do boxe perdurasse, acreditando que eu iria desistir. Quanto aos meus amigos a situação muda de figura, pois ouvi e ainda hoje me dizem como é possível eu praticar boxe, referindo que este é um desporto violento. E a minha reacção foi e tem sido sempre frisar que o boxe que pratico é de manutenção física e procuro sempre evidenciar que não existe violência explícita nas aulas. Mas não posso negar que compreendo que, quer homens quer mulheres, imaginam um boxe que não corresponde à realidade da minha prática, pois eu própria inicialmente representei-o como violento e rígido, algo que não podia se coadunar com a minha ideia de desporto. E após alguns dias de execução das aulas vim a reconhecer que não passava de imaginação, de uma representação rockyana1 onde o pugilista existe como alguém que tem um corpo físico muito musculado, o nariz partido, a cara ferida, entre outras marcas de violência física. 1

Pretendo com este termo demonstrar a relação que existe entre a imagem de Rocky Balboa, uma personagem fictícia transmitida a milhares de pessoas através do cinema e da televisão, e a construção do imaginário humano no que concerne ao pugilismo.

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Do mesmo modo reconheço que a imaginação dos meus amigos é fértil, aceito que certos valores culturais estão de modo tal inculcados que tenho eu dificuldade em modificá-los. Refiro-me à relação entre boxe e masculinidade. Tal como ouvi de colegas e amigos que o boxe é um desporto de homens, por vezes dou comigo própria a representá-lo como tal. Refiro-me ao facto de percepcionar no meu corpo, quando realizo alguns exercícios denominados de espelho2, uma postura que identifico como masculina. Por frequentar outras modalidades, com alguma frequência comparo a minha atitude corporal, análise que me orienta para a relação entre o boxe e a masculinidade, como se o meu corpo se transformasse no momento em que entro na porta da sala. E mesmo admitindo que o faço por recreação e por motivos de saúde, não me consigo alhear do facto de que sou um produto de uma cultura em que os desportos como o boxe, o kickboxing, as artes marciais, entre outros são do domínio da masculinidade. De algum modo e como refere Pierre Bourdieu na sua obra A Dominação Masculina, é como se o meu corpo incorporasse a ordem masculina do mundo e naquele espaço e durante aquele tempo é um produto social que se adapta a uma certa posição (1999). Nesta as diferenças biológicas são manipuladas para que ao meu corpo lhe seja atribuída uma característica da masculinidade, tornando naturalizada a minha prática do boxe. É como se eu necessitasse de me convencer e de persuadir quem me rodeia a reconhecer que o meu corpo feminino é tão competente quanto um corpo masculino e torna-se impossível não reconhecer que sou dominada por uma construção de um mundo hegemonicamente masculinizado. Mas se por um lado procuro assumir uma postura masculina, por outro lado não deixo de me representar como mulher, utilizando o meu corpo biológico como corpo político. É neste mundo do ginásio que ponho em causa a invariabilidade da construção de um mundo onde o homem se quer dominante e a mulher se aceita dominada. Perante a inerência de uma classificação do mundo de acordo com certos preceitos, entre os quais a diferenciação de género como a categoria que aqui pretendo destacar, vejo-me compelida a reconhecer que socialmente se espera que eu, como mulher, seja feminina. Assim o tenho confirmado nos discursos de quem me rodeia. É como se naturalmente eu tenha incorporadas características como a submissão, a amabilidade, a disponibilidade, a discrição e que o meu reconhecimento como mulher dependa dessas particularidades. E não querendo deixar de me representar como tal, encontrei no mundo do boxe uma forma de demonstrar que 2

O trabalho de espelho consiste em realizar um combate fictício junto ao espelho, imaginando que o oponente se encontra à nossa frente. Este tipo de trabalho permite-nos observar a nossa postura e realizar uma auto-análise da nossa atitude enquanto pugilistas.

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a dominação masculina nem sempre é uma realidade consensual e aceite sem que exista outra alternativa. Não quero deixar de interpretar o papel que a sociedade espera de mim, mas questiono um eu social onde o sexo biológico fundamenta a existência de diferenças sociais, procurando demonstrar através da prática do boxe que a feminilidade é apenas uma construção social e que a minha natureza biológica não me impede de agir com violência física. Todavia, não posso negar que esta construção social está inculcada em mim, pois tal como pretendo mostrar que a natureza não me torna dominada, por outro lado eu percepciono que procuro demonstrar que a minha prática tem por objectivo apenas a manutenção física e a recreação. É como se a competição fosse algo que me pudesse tornar menos feminina, pois exige um trabalho corporal ao nível muscular que não deixa de existir na minha imaginação como característica masculina. Como nos diz Bourdieu, adquirimos inconscientemente «a arte de viver feminina», apresentando um corpo que procura se apresentar forma distinta de um corpo que se identifica como masculino (1999: 23). É deste modo que o boxe se transforma num desafio, o qual perpassa o espaço da sala e alarga-se ao meu meio social, onde o eu individual quer evidenciar a sua feminilidade, reconhecendo que o eu social vivencia uma modalidade masculinizada. E ao sentir que sou coagida a adaptar o meu corpo a uma conjuntura que considero me ser exigida, sou levada a reconhecer que a violência simbólica partilhada por ambos, dominador e dominado, respectivamente homens e mulheres, acaba por engendrar a minha realidade e eu sou inconscientemente engendrada nela. E qualquer análise que eu realize sobre a minha experiência como pugilista por recreação, como eu me identifico, orienta-me para uma reflexão que sou influenciada por uma estrutura cognitiva e social onde impera a lei da masculinidade.

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Bibliografia:

BOURDIEU, Pierre 1999 «Capítulo 1: Uma Imagem Aumentada» in: Pierre Bourdieu A Dominação Masculina. Oeiras: Celta Editora. pp. 1-45.

BOURDIEU, Pierre 1999 «Capítulo 2: A Anamnese das Constantes Ocultas» in: Pierre Bourdieu A Dominação Masculina. Oeiras: Celta Editora. pp. 47-69.

HARRIS, Dorothy V. 1981 «Femininity ans Athleticism» in: Lüschen, Günter R. F. e George H. Sage (Eds.) Handbook of Social Science of Sport. Illinois: Stipes Publishing Company. pp. 274-94.

HOLLAND, Gary 2008 [2007] «Early Boxing History» BBC London. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/london/content/articles/2007/11/13/early_boxing_history_feature.shtml (acedido em 13 de Junho de 2009).

SVINTH 2000 «Kronos History 1700-1859 (rev 01/00)» Library and Archive Canada. Disponível em: http://epe.lac-bac.gc.ca/100/201/300/ejmas/kronos/2000/ NewHist1700-1859.htm (acedido em 13 de Junho de 2009).

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