ISCTE LICENCIATURA EM ANTROPOLOGIA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA 3 16.Jan.2009
Pensar a linguagem: imaginar uma entrevista a Dan Sperber e Maurice Bloch
ANA CANHOTO N.º 27685 TURMA AC2
Introdução Quando nos predispusemos a realizar um ensaio sobre a relação entre linguagem e pensamento, considerámos que devíamos partir para este como se se tratasse de um terreno antropológico. Seguindo mentalmente os procedimentos metodológicos da etnografia, tal como foram estatuídos por Bronislaw Malinowski nos Argonautas do Pacífico Ocidental, escolhemos como terreno a Antropologia Cognitiva e como nossos informantes Dan Sperber e Maurice Bloch. Partimos do pressuposto que não seria mais do que uma ficção. Imaginámo-nos a segurar um caderno, uma caneta e um gravador e a entrevistar estes dois antropólogos. Optámos por realizar apenas uma entrevista com os dois cientistas sociais presentes, partindo do princípio que um diálogo entre ambos poderia ser mais esclarecedor para o nosso objectivo. Antes de partir para o terreno realizámos alguma pesquisa prévia sobre o nosso objecto de estudo. Tivemos conhecimento, através da análise das obras O Saber dos Antropólogos, de Dan Sperber1, e How We Think They Think: Anthropological Aprroaches to Cognition, Memory, and Literacy, de Maurice Bloch2, que ambos cientistas evidenciam a importância de uma directa relação entre a antropologia e a psicologia cognitiva. Esta circunstância remete para facto que a antropologia se estabelece e constrói o seu discurso baseando-se na linguagem. Muito embora ambos os livros consultados estejam datados proximamente, chamou-nos a atenção para o facto de que a publicação original de Sperber data de 1982 e a de Bloch de 1998; dezasseis anos separam estas duas obras. Reconhecendo a existência de alguns obstáculos linguísticos aquando da nossa tentativa de compreensão do exposto nas respectivas obras, recorremos das mesmas durante as nossas entrevistas. Utilizámo-las para solicitar que nos esclarecessem o mais detalhadamente possível a razão pela qual atribuem importância à Antropologia Cognitiva. Sendo o nosso objectivo procurar compreender qual a importância da língua no modo como construímos, representamos e reproduzimos o nosso conhecimento sobre o mundo, decidimos também inteirarmo-nos sobre o modo como a Antropologia Cognitiva se representa como uma disciplina que procura caracterizar as manifestações culturais dando conta da forma como as ideias são distribuídas e se propagam nos grupos sociais. Com o nosso propósito bem definido, lá partimos para o nosso terreno imaginado.
1 2
Ver Sperber 1992. Ver Bloch 1998.
2
Uma imaginada entrevista e diálogo entre os nossos informantes Dan Sperber e Maurice Bloch Ana Canhoto (AC):
Porque razão consideram que a Antropologia deve procurar aliar-se às
ciências da cognição, principalmente à Psicologia? Dan Sperber (DS):
Ambas disciplinas estabeleceram como objecto estudar o ser humano
partindo do pressuposto que os mecanismos mentais são flexíveis, encontrando-se apenas restringidos pelas regras da natureza e pelas imposições do meio social. As duas disciplinas distinguem-se no modo como estudam essa maleabilidade mental; a Psicologia realiza-o através das manifestações do indivíduo, enquanto a Antropologia, na sua acepção Cultural ou Social, procura compreender as manifestações colectivas. Estamos a falar de um mesmo objecto estudado de diferentes perspectivas, mas que frequentemente se cruzam. E, sendo a razão do seu afastamento mais uma questão de método do que de teoria, parece-me incompreensível a existência de um fraccionamento entre a psicologia e a antropologia. Maurice Bloch (MB): Tal como o Dan referiu, os antropólogos culturais e sociais estudam as
manifestações do ser humano como parte integrante de um colectivo. Muito embora pareçam ter diferentes formas de investigar o mesmo objecto, existe um factor que as une, demonstrando que essa distinção é mais conceptual do que absoluta: ambas têm de se basear no modo como os grupos que investigam se representam culturalmente. Ou seja, sendo a cultura algo que os indivíduos apreendem no seu meio social, de algum modo tiveram de adquirir esse conhecimento. Neste momento já estamos a falar de cognição, do processo de aquisição do saber através de vários mecanismos, como a percepção, a memória ou o pensamento. Como tal considero que a antropologia não pode se alhear das ciências da cognição, pois não deverá teorizar sobre a vida social sem tomar em consideração os processos de aprendizagem e de armazenamento de informação.
AC:
Gostaria que me esclarecessem a razão do afastamento entre a antropologia e a
psicologia. DS:
Trata-se, como já referi, mais uma questão de método do que de teoria. A grande
preocupação dos antropólogos reside na recolha e no modo como apresentam e classificam as informações relativas às culturas. O método etnográfico, que Malinowski nos deixou, a nós antropólogos, como legado, é indubitavelmente inseparável da antropologia. A maioria dos 3
antropólogos experiencia o desejo de compreender como se representam os grupos culturais tornando-se, durante algum tempo, «etnógrafos». Contudo, o que escrevem num caderno ou registam num gravador não corresponde ao trabalho que realizaram. O produto final, i.e., a compilação de alguns anos que passaram no terreno num livro com apenas algumas páginas, acaba por ser um factor determinante para o modo como a «Antropologia» é frequentemente referida como sinónima da «Etnografia». Por sua vez, esta está envolta na ideologia malinowkiana de que o antropólogo é, por excelência, um intérprete cultural, desperdiçando num contínuo e suavizado discurso o que aprendeu no terreno. O mesmo se verifica na psicologia, pois, ao reconhecerem apenas os dados extraídos das experiências de laboratório, os psicólogos permaneceram enclausurados no seu método. MB: Antes de responder à Ana, gostaria de lhe informar que ambas as áreas se consideram
afastadas na teoria, dificultando uma aproximação quanto ao método3. O desejo de compreender as sociedades e de produzir, a partir deste, um trabalho generalista através da experiência no terreno, muito embora seja um sucesso, acarreta vários problemas teóricos e filosóficos4. Desenvolver conceitos baseados em termos culturalmente construídos e mutáveis é uma tarefa muito complexa. Estamos a lidar com a mente e, como tal, qualquer conhecimento sobre estes conceitos exigirá uma enorme familiaridade com a «fenomenologia cultural específica»5 do objecto de estudo. Não duvido do Dan quando refere que a etnografia necessita de ser repensada, contudo não é na «ideologia malinowskiana» de uma objectividade etnográfica que se encontra o cerne do afastamento entre a antropologia e as ciências da cognição. Esta abstracção reside na incapacidade informativa da própria linguagem da etnografia. Qualquer que seja a opção metodológica do etnógrafo, nunca se afastará de uma posição completamente desarmonizada de pretensões científicas. Por atribuir uma maior importância ao discurso do informante, reduzindo o seu papel a um mero observador, o etnógrafo tem de acreditar no que o primeiro lhe transmite sem se questionar se corresponde ou não ao conhecimento que o mesmo tem sobre a cultura em que se encontra inserido. Esta é uma posição fundamentalista. AC:
Se não se importa Dan, antes de lhe colocar a próxima questão gostaria de citar uma
frase do seu livro, pois suscitou-me uma dúvida. O Dan refere: «O antropólogo tem como tarefa … descrever os factores que determinam a selecção de certas representações e a sua partilha por um grupo social. O etnógrafo tem por tarefa, não como ponto único mas principal, tornar inteligível a experiência de seres humanos … Para lá chegar, deve 3
Ver Bloch 1998, p. 40. Ver Bloch 1998, p. 39. 5 Ver Bloch 1998, p. 41, tradução nossa. 4
4
interpretar certas representações culturais que esse grupo partilha … estas duas tarefas são autónomas na sua realização e complementares na compreensão dos fenómenos culturais.»6. Se não estou equivocada no modo como interpreto as suas palavras, o Dan parece revalorizar o trabalho etnográfico, considerando que contribui para a antropologia. Gostaria que me explicasse como. DS:
Qualquer descrição de um fenómeno cultural implica dar conta do modo como os
indivíduos que nele participam o representam. Estamos a falar de ideias; da ideia que os grupos de indivíduos fazem do evento em que estão a participar. Ora, as ideias não são passíveis de observação, mas podem ser compreendidas através da nossa intuição. Nunca poderão ser descritas, mas podem ser interpretadas. Como diria Clifford Geertz, o único modo de descrever os fenómenos culturais é interpretando-os. Porém, devemos estar atentos ao modo como os interpretamos, pois esta interpretação não deve estar assente na aceitação que os fenómenos se reduzem a meras estruturas de significação. A atribuição de um significado não é suficiente para os qualificar como manifestações da cultura assim como os «factos de significação»7 não existem por si só, mas sim enleados com factos de outras naturezas. É necessário ultrapassar a contradição entre o que é descrever e o que é interpretar, entre o que pode ser entendido como uma etnografia que carece de uma proficiência científica e uma antropologia que quer ser reconhecida como ciência. Para resolver esta antinomia e atribuir cientificidade às interpretações aconselho a recorrência ao «comentário descritivo»8 … AC:
Terá de me explicar o que é um «comentário descritivo».
DS:
Quer as descrições quer as interpretações são representações e como tal devem estar
adequadas a serem compreendidas como se tratasse do objecto que representam. Ou seja, quando um indivíduo reconhece uma representação deve associar a uma determinada coisa. É exactamente esse o objectivo do «comentário descritivo», visando permitir a identificação do objecto representado e particularizando o género de representação. Ou seja, como pode ler no meu livro são bons exemplos as legendas das fotografias ou dos mapas geográficos, pois são comentários que auxiliam a representação sem se confundirem com esta. Porém, é necessário ter alguma atenção, pois quando se trata de interpretações não estamos a falar de simples descrições, as quais se tornam verdadeiras quando adequadas. As interpretações constituem-se 6
Sperber 1992, p. 57. Sperber 1992, p. 25 8 Sperber 1992, p. 27. 7
5
de uma convenção entre a objectividade e a subjectividade, entre a «… adequação às coisas representadas e a eficácia na formação de ideias.»9. É assim no caso da etnografia onde a interpretação é um acto permanente. O etnógrafo frequentemente tem de interpretar o que lhe é transmitido pelos seus informantes, recorrendo à sua intuição, pois, como já tinha referido, as ideias não podem ser objecto de observação. A título de exemplo podemos falar sobre as crenças religiosas dos informantes. Não acha que seria estranho se um etnógrafo descrevesse directamente algumas das frases que lhe são transmitidas? Geralmente não abraça a mesma religião destes, logo nunca poderia partilhar das mesmas ideias. Para resolver esta circunstância pode socorrer-se da descrição indirecta, da compreensão intuitiva dos termos utilizados pelos seus informantes. No meu livro refiro como o kuk kwoth, como conjunção dos termos kuk e kwoth, se transforma, na proposta generalista de Evans-Pritchard, numa única palavra: «sacrifício»10. Consegui esclarecê-la? AC:
Sim. Compreendo o que quer dizer com a recorrência por parte dos etnógrafos aos
«comentários descritivos». Contudo e se ainda se lembra da minha questão anterior, o problema parece residir na antropologia e no facto desta se debater com a problemática da cientificidade. Ou seja, retomemos o exemplo do «sacrifício» de Evans-Pritchard e o que o Dan menciona quanto ao facto deste termo não permitir refutação. Ora, desse ponto de vista não podemos falar em Antropologia como ciência, porque está em falta a premissa da corroboração. Tendo, a Antropologia, como objectivo explicar o que ocasiona a escolha de determinadas representações por parte dos grupos sociais, gostaria me esclarecesse porque considera que as generalizações interpretativas não são uma boa ferramenta para as teorias antropológicas. DS:
O termo «sacrifício» de Evans-Pritchard é um bom exemplo para lhe demonstrar como
algumas interpretações generalistas podem não se adequar ao objectivo pretendido e não podem ser alvo de confirmação e refutação. Se falarmos de uma teoria do sacrifício teremos de nos referir que esta se aplica aos Nuer, mas também a todos os restantes grupos sociais. Ora, Evans-Pritchard atribuiu ao kuk kwoth uma interpretação que remete para «… um resgate, que redime a pessoa que se liberta, por ele, dum mal de que, de outra forma, se arriscava a ser vítima.»11. Parece-me claro que enuncia que o «sacrifício» se assemelha de algum modo a um «resgate». Contudo, os termos separadamente demonstram não ter tradução 9
Sperber 1992, p. 29. Ver Sperber 1992, p. 31-32. 11 Sperber cit. Evans-Pritchard 1992, p. 32. 10
6
na linguagem do etnógrafo, tendo este que recorrer ao termo interpretativo12. Deste modo, a aplicação da palavra «sacrifício» não representa uma categoria Nuer, mas sim uma fusão de categorias, neste caso Nuer e ocidentais. Com base no que acabei de referir, já poderemos colocar em causa uma teoria do sacrifício, pelo facto deste não poder ser fiel ao pensamento dos Nuer, e muito menos seria se falarmos de outros grupos culturais. Podemos compreender que, para a Etnografia, as generalizações interpretativas não levantem qualquer problemática, contudo o mesmo já não se verifica quanto à Antropologia. Se construirmos a categoria «sacrifício» de acordo com Evans-Pritchard, estaremos a associá-la a uma outra categoria designada «resgate», a qual se torna um termo assertivo que obriga a generalizar todos os sacrifícios a resgates. Esta generalização será de difícil refutação. AC:
Então, se uma teoria apoiada numa generalização interpretativa não é passível de
refutação, porque é que o Dan refere que uma generalização descritiva pode ser refutada? DS:
Uma descrição só se adequa quando verdadeira. Tal como mencionei no meu livro, a
própria linguagem é determinante na definição de falsidade ou verdade de uma descrição. Quando as descrições tomam a forma de um enunciado são constituídas de proposições verdadeiras ou falsas. Mesmo que sejam utilizadas como conclusões ou como premissas, as descrições podem ser alvo de confirmação ou anulação, corroborando ou refutando outras descrições13. AC:
Então, se a Antropologia recorre aos textos etnográficos para basear as suas teorias e o
Dan refere que uma Etnografia constituída de generalizações interpretativas não é adequável em termos científicos, de que modo pode contribuir para a Antropologia? DS:
A problemática da utilização da Etnografia reside no modo como a Antropologia utiliza
os textos etnográficos para resolver questões erradas. É uma falácia assumir que termos interpretativos podem ser considerados «… fenómenos homogéneos e distintos …»14. Todos os seres humanos constroem as suas representações mentais, as quais podem ser transmitidas ou não. Quando são expressas entre indivíduos entram num ciclo de comunicação e tornam-se o que designamos de representações culturais. Porém, também as representações construídas individualmente e não declaradas devem ser consideradas culturais. Estas são comummente 12
Sperber 1992, p. 42. Ver Sperber 1992, p. 27. 14 Sperber 1992, p. 50-52. 13
7
construídas e entendidas à luz de um contexto de um conhecimento que é sempre partilhado, pois o ser humano vive em grupos sociais. O que eu pretendo esclarecer é que a Antropologia deve repensar o modo como selecciona e atribui importância apenas a algumas manifestações do ser humano e elimina do seu objecto um elevado leque de representações. A Etnografia não prejudica de modo algum a Antropologia, bem pelo contrário. Valendo-se do comentário descritivo, algumas das interpretações recorrentes nos textos etnográficos podem adquirir um carácter empírico, logo podem ser refutadas. E, tendo os etnógrafos a quase exclusividade de poder ajudar a comunidade de investigadores a conhecer algo sobre os grupos sociais com quem este trabalhou, a etnografia é uma ferramenta essencial na Antropologia. Porém, não deve ser considerada a única, pois, como referi, também é importante dar conhecimento da existência de representações culturais que não são transmitidas socialmente. AC:
De acordo com a minha interpretação parece-me que é essa a razão pela qual o Dan
Sperber considera que a Antropologia se deve aliar às ciências da cognição. Estarei equivocada? DS:
Não está equivocada. É na «epidemiologia das ideias»15 que a Antropologia deve procurar
outras visões das manifestações culturais e com elas se fundir, de forma a possibilitar o encerramento da problemática da carência de cientificidade. AC:
Ora, de acordo com o meu conhecimento a epidemiologia corresponde da forma como as
doenças se espalham nos diversos agregados populacionais. Ou seja, uma «epidemiologia das ideias» corresponderá ao estudo do modo como se propagam as ideias? DS:
Poderei dizer que é algo semelhante ao que referiu. Podemos dizer que a «epidemiologia
das ideias» estuda a evolução e difusão das manifestações culturais. Sabemos que as representações mentais são estruturalmente instáveis, pois as ideias são algo que estão em permanente em transformação e propagação. O que inicia num indivíduo rapidamente se propaga (ou não) a um grupo.
15
Sperber 1992, p. 52.
8
AC:
O Maurice tem estado muito calado, contudo pareceu-me que no seu livro considera que
esta posição do Dan Sperber é um tanto fundamentalista. Estarei errada? MB: Não passa de uma crença16 considerar que as ciências cognitivas resolvem as problemáticas da
cientificidade da antropologia. Sabemos que os cientistas cognitivos têm um longo caminho a percorrer para compreender o funcionamento da mente. Apenas considero que as suas visões não devem ser ignoradas pela antropologia, pois levantam várias hipóteses sobre a forma como a linguagem opera no nosso pensamento. Não existem dúvidas que a linguagem não se separa da cultura, pois esta é pensada e transmitida textualmente. Todos nós classificamos o mundo de algum modo, contudo será que o fazemos apenas via linguagem? Para responder a esta pergunta temos de perceber de que forma as crianças aprendem a classificar. Ainda persiste na antropologia «A velha ideia de que uma criança aprende os conceitos classificatórios como sendo definições minimais e necessárias …», porém esta já não tem qualquer sustentação. Na actualidade reconhece-se a posição de que os conceitos são formados através de referências indefinidas, que ancoram «… ’familias’ de instâncias específicas vagamente formadas.»17. No meu livro dou como exemplo o conceito de casa. Não precisamos de confirmar se existe correspondência entre a coisa de que estamos a falar – a casa – e as várias características da mesma – têm um telhado, paredes, portas, janelas, etc., para considerar que uma casa sem tecto não deixa de ser uma casa. Geralmente concluímos que se trata de uma «casa» porque se encaixa na ideia do que é tipicamente uma casa.
AC:
Espero não interromper o seu raciocínio, mas imaginemos que eu não tinha qualquer
ideia das características típicas de uma casa. Seria capaz de associar o termo à coisa? MB: A problemática reside exactamente nessas falhas de associação entre termos e coisas. Se fosse
obrigatória a ligação entre conceito e palavra, as crianças, por não partilharem a mesma linguagem dos adultos, não teriam a capacidade de relacionar termos com as coisas. Porém, vários estudos demonstram que as crianças reconhecem a semântica lexical através da tentativa de associar «… as palavras a conceitos já formados»18. Respondendo à sua pergunta, não seria por desconhecimento da palavra «casa» que não seria capaz de associá-la à coisa em si. Os conceitos não necessitam da linguagem para garantir a sua existência.
16
Aplicámos o termo crença como interpretação nossa, não existe qualquer referência ao mesmo por parte do autor. 17 Bloch 1998, p. 5, tradução nossa. 18 Bloch 1998, p. 6, tradução nossa.
9
AC:
Para o Maurice existem outras formas de classificar sem recorrer directamente à
linguagem. Quais? MB: Provavelmente não é capaz de se lembrar quando e de que modo aprendeu a tomar banho, a
vestir-se, a cozinhar, etc. Sabe apenas que terá ocorrido dentro da sua infância. Ora, aprendeu sem conhecer os termos «banho», «vestir», «cozinhar», etc. Ou seja, muito embora nas nossas sociedades escolarizadas tenhamos a ideia de que a instrução pré-determina o conhecimento, esta é uma falácia. Como antropólogos conseguimos reconhecer que em sociedades não industriais se executam as mesmas tarefas de tomar banho sem ser necessário recorrer à instrução. Tal aprendizagem ocorre através da imitação e da tentativa e erro19, recorrendo aos nossos sentidos perceptivos.
AC:
É por se basearem apenas na linguagem que considera que alguns antropólogos
erradamente assumem que sabem equacionar as representações culturais e individuais? MB: Sim. Mas eu não nego que linguagem verbalizada não tem um papel importante, apenas
considero que não é indispensável à aquisição de conhecimento. Armazenar conhecimento através da linguagem não significa que se compreendeu algo. Ao expormos o nosso conhecimento por palavras somos obrigados a transformar o nosso saber de modo a que este se relacione, mesmo que a relação seja distanciada, com essas palavras. É nas diferentes formas como se podem relacionar as palavras com o conhecimento que podemos diversificar a tendência para agrupar aspectos do conhecimento em determinados domínios. Ou seja, se considerarmos que certas palavras estão associadas entre si e as classificamos num determinado domínio, estamos a limitar a diversidade de possíveis conteúdos significativos das coisas. Quando um antropólogo tenta dar conta de um conjunto de conhecimentos transformando-os em palavras não está a reproduzir a organização do conhecimento do grupo que estuda, mas sim está a metamorfosear esse saber em algo com uma diferente forma lógica. Por essa razão os antropólogos devem evitar utilizar mecanismos de estilo que transformam a descrição em possíveis teorias. Provavelmente até o modelo de cultura que os antropólogos têm advogado, nas suas várias escolas e vertentes ao longo do tempo, pode ser algo totalmente diferente.
AC:
Terá de me explicar melhor de que modo a antropologia poderá beneficiar com as
ciências da cognição. 19
Ver Bloch 1998, p. 7, pois foi nossa opção interpretativa substituir «participação tentativa» por tentativa e erro.
10
MB: Eu acredito que a antropologia tem a seu favor o legado de Malinowski. Não no que refere à
procura de uma objectividade, mas sim no método, na pertinência da observação-participante. Quando está presente o etnógrafo pode recorrer aos seus sentidos perceptivos para tentar compreender como os indivíduos realizam as suas tarefas diárias. Não necessita que lhe transmitam oralmente o que estão a fazer, pode observar os movimentos dos seus informantes. Ao fim de algum tempo poderá estar apto a perceber como é que os mesmos aprenderam determinadas tarefas, analisando introspectivamente os agrupamentos de conhecimentos. Devido à sua prolongada experiência de estadia com os seus informantes conseguirá viver tão eficazmente dentro de uma cultura, a qual era anteriormente estranha, quanto eles. Essa permanência irá possibilitar o estabelecimento de «modelos mentais não-linguísticos» que permitem enfrentar a vivência do dia-a-dia. Desse modo o conhecimento será adquirido antes das confirmações linguísticas, não proporcionando azo a erros quando esse saber for transportado para uma linguagem verbal. AC:
Pelo que eu entendo considera que ficam ultrapassadas as problemáticas da linguagem a
partir do momento em que o etnógrafo adquire o seu primeiro conhecimento do terreno através da observação. Ou seja, tal como os seus informantes apreenderam o mundo utilizando diferentes zonas do cérebro estimuladas pela utilização dos sentidos perceptivos, o antropólogo terá de seguir o mesmo caminho. Talvez eu esteja errada, mas se o etnógrafo vai para o terreno com um conhecimento aprendido de uma certa e determinada forma, será ele capaz de se alienar desse modo de aprendizagem? MB: Sim. Se eu fui capaz de transpor para a linguagem o conhecimento não-linguístico que apreendi
com as culturas Malagasy e eu sou um ser humano como todos os restantes, porque é que os outros etnógrafos não terão a mesma competência?
AC:
Julgo estar confusa relativamente ao que o Dan referiu. Por um lado, indicou que ambas
as disciplinas só teriam a beneficiar uma com a outra e, no início desta entrevista aludiu ao método como responsável pelas divergências. Por outro lado mencionou que a teoria do relativismo cultural, considerada a teoria mais generalista da Antropologia, tem um carácter moral e cognitivo, mas declara não conhecer qualquer «… modelo relativista do desenvolvimento cognitivo.»20. Quando desenvolve esta questão no capítulo sobre «As crenças aparentemente irracionais»21 argumenta que o relativismo permite que as crenças, 20 21
Sperber 1992, p. 72. Ver Sperber 1992.
11
quando correctamente interpretadas, sejam demonstrativas de «… como o conhecimento humano é culturalmente determinado.»22. No mesmo capítulo explica que, em termos psicológicos o relativismo é incoerente. Gostaria que me esclarecesse, no caso das «crenças aparentemente irracionais», como pode uma Antropologia assente no relativismo se relacionar com uma Psicologia Cognitiva não relativista23. DS:
O relativismo assenta na premissa que, tal como «… não existem valores morais comuns
a todos humanos … não existe uma realidade comum a todos os humanos.»24. Está estatuído que «relativismo cultural» possibilita aos antropólogos a compreensão de crenças que parecem à primeira vista absurdas e irracionais. Não duvido que amplamente útil, contudo há que ter cuidado com o modo como se formula o conceito de relativismo. Quer os intelectualistas, que consideram «as crenças aparentemente irracionais» como erradas, quer os simbolistas, que recorrem a metáforas, não conseguem eliminar a suspeição destas serem consideradas irracionais e ilógicas. Para os relativistas fundamentalistas25, a problemática da irracionalidade tem resolução se considerarmos que os significados, os conceitos e as regras que definem a lógica são culturalmente determinados. Ou seja, as crenças mostram-se irracionais porque a compreensão sobre a cultura que as advoga é deficitária. Quanto ao relativismo, pensado em termos psicológicos, este é, como referiu, incoerente, pois aceita o anti-inatismo do espírito humano. I. e., contraria a ideia de que o desenvolvimento comportamental do ser humano parte de factores internos para se expandir ao longo da maturação do indivíduo. Podemos dizer que os argumentos da antropologia e da psicologia não abonam o modo relativista de explicar as concepções sobre «crenças aparentemente irracionais». Porém, se eliminarmos o relativismo e desenvolvermos um conhecimento baseado no racionalismo iremos concluir que estas adquirem lógica se estabelecermos «… duas distinções de ordem psicológica: entre representações proposicionais e as representações semiproporcionais, por um lado, e entre as crenças factuais e as crenças representacionais, por outro.»26. AC:
Gostava que me esclarecesse sobre essas distinções.
22
Sperber 1992, p. 69. Ver Sperber 1992, p. 72, onde o autor indica que não conhece qualquer obra da «Psicologia cognitiva comparativa» que seja relativista. 24 Sperber 1992, p. 19. 25 A utilização do termo fundamentalistas foi opção nossa, não existindo qualquer menção a este termo na obra de Dan Sperber. É nosso objectivo referirmo-nos aos antropólogos que, agora de acordo com o autor, levam o relativismo a sério, Sperber 1992. 26 Sperber 1992, p. 92. 23
12
DS:
As proposições só podem ser verdadeiras ou falsas. Ou seja, numa mesma frase
proposicional não podem existir conjuntamente uma interpretação falsa e uma verdadeira. Contudo, quando falamos de crenças, estas podem ter várias interpretações. Se optarmos pelo relativismo cultural, podemos justificar que «os indivíduos de culturas diferentes vivem em universos diferentes», contudo é necessário demonstrar de que forma esses indivíduos, por pertencerem a culturas diferentes, coabitam diferentes universos. À partida, encontramo-nos limitados quando procuramos interpretar termos como «diferentes» e «universo». São demasiado vagos e torna-se impraticável a detecção da interpretação correcta. Designámos estas representações de «semiproposicionais», pois não é possível identificar unicamente uma proposição, a qual só pode ser verdadeira ou falsa. Denominámos de representações «proposicionais» todas aquelas em que identificamos uma única proposição27. O nosso óbice reside no facto da nossa linguagem oral se revestir de representações semiproposicionais, pois estas permitem-nos tratar informações para as quais não temos competências ao nível conceptual. Podemos não conhecer a significação, mas é-nos facultada a sua utilização através da experimentação. Estamos de novo perante a dificuldade de conhecer a interpretação correcta. Quanto à diferença entre as crenças factuais e as crenças representacionais, as primeiras são «representações autónomas» que um determinado indivíduo encontra na sua memória, enquanto as segundas são «… um conjunto indefinido de atitudes mentais diversas … específicas de uma cultura, ou mesmo de um indivíduo.»28. AC:
Qual a relação entre a racionalidade, as representações proposicionais e
semiproposicionais e as crenças factuais e crenças representacionais? DS:
As crenças factuais são racionais quando são compatíveis com o conteúdo das restantes
crenças. No que concerne às crenças representacionais estas só existem quando indivíduo ou grupo de indivíduos possuem uma crença factual relativamente a algo e que esta coisa tenha uma existência passível de comprovação. No que concerne às representações, quando se trata de uma representação proposicional esta pode ser racional ou não, mas quando falamos de representações semiproposicionais é racional pensar que a interpretação de algo é verdadeira e é irracional considerar que factualmente algo existe. Quando uma única coisa tem várias interpretações mais facilmente acreditamos factualmente que a interpretação dessa coisa é verdadeira. Podemos dizer que as crenças factuais não são crenças no seu sentido estrito, mas
27 28
Ver Sperber 1992, p. 83. Sperber 1992, p. 87.
13
sim conhecimentos, saberes que não se colocam em questão. Contrariamente, as crenças representacionais fundamentam-se na religião. AC:
Então, porque razão para a psicologia as crenças parecem irracionais, enquanto a
antropologia não chega a questionar a irracionalidade? DS:
O problema reside no facto de se aplicar inadequadamente a psicologia. Ou seja, são
erroneamente consideradas crenças constituídas por proposições reconhecidas como verdadeiras. Para a antropologia, eliminando o relativismo, pois é apenas supérfluo e levanta outras problemáticas, partindo da premissa que os indivíduos com os quais nos relacionamos acreditam representacionalmente numa determinada representação semiproposicional, então nós deveremos racionalmente acreditar do mesmo modo. AC:
Parece-me que o Dan pretende substituir a teoria do relativismo cultural pela teoria de
uma Antropologia Cognitiva. Estarei errada? AC:
Parece-me que o Maurice considera que qualquer ser humano pode compreender o modo
como o outro se representa sem grande esforço, a partir do momento que convive com ele. Não acha demasiado simplista? Ou seja, considera que somos capazes de nos abstrair de um conhecimento inculcado em nós, como se a nossa mente estive vazia e pronta para receber novos saberes? O trabalho de um etnógrafo que não tem fim … No momento em que coloquei estas perguntas ao Dan Sperber e ao Maurice Bloch, estes já não estavam no terreno. Tinham-se ausentado sem me esclarecer se estaria errada no modo como interpretei tudo o que me tinham transmitido desde que iniciei esta entrevista. Provavelmente, se estas perguntas tivessem sido esclarecidas outras se levantariam e continuaria a questionar se estaria equivocada. Fiquei com a nítida sensação que este trabalho ficou incompleto, porque não atingi o meu objectivo. Terei de aguardar por uma nova oportunidade de incursão neste terreno, esperando contar com a presença de ambos antropólogos. Uma opinião pessoal do meu caderno de campo
14
É minha opinião que não seria correcto realizar qualquer conclusão a este trabalho, pois o seu desfecho não corresponde a nenhuma tentativa de criar uma teoria sobre o modo como os antropólogos manifestam o seu interesse pela Antropologia Cognitiva. Pelo contrário, constatei que a linguagem exposta neste trabalho me faz questionar até que ponto o nosso pensamento não está formatado para acreditar no que nos dizem e na capacidade de nos colocarmos na mente dos nossos informantes. Se por um lado me achei capaz de imaginar como discorreriam das suas ideias, como se estivesse dentro da sua mente, por outro lado cheguei ao fim com a percepção que não tenho competência para o fazer. Este facto está espelhado na dificuldade em engendrar um diálogo, pois, tal como referi na introdução deste trabalho, dezasseis anos separam as obras dos dois informantes. A dúvida persiste: se a linguagem e o pensamento têm um carácter duplamente biológico e cultural, mas os termos são em si culturalmente construídos, seremos capazes de compreender se o pensamento está alicerçado na linguagem? A resposta assusta pois, qualquer que seja a teoria generalista que daí advenha, leva-me a pensar que estaremos perante um relativismo fundamentalista.
15
Bibliografia: BLOCH, Maurice E. F. 1998 How We Think They Think: Anthropological Approaches to Cognition, Memory, and Literacy. Oxford: Westview Press. SPERBER, Dan 1992 O Saber dos Antropólogos: Três Ensaios. Lisboa: Edições 70.
16