Saude Em Debate_n75

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  • Pages: 232
Saúde em Debate

v.32

n.78/79/80

jan./dez. 2008

Cebes

ISSN 0103-1104

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)

Saúde em Debate

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)

A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)

Diretoria Executiva



Presidente

Sonia Fleury (RJ)



1O Vice-Presidente

Ligia Bahia (RJ)



2O Vice-Presidente

Ana Maria Costa (DF)



3O Vice-Presidente

Luiz Neves (RJ)



4O Vice-Presidente

Mario Scheffer (SP)



1O Suplente

Francisco Braga (RJ)



2O Suplente

Lenaura Lobato (RJ)



Diretor Ad-hoc

Nelson Rodrigues dos Santos (SP)

Gastão Wagner Campos (SP)



Diretor Ad-hoc

Rodrigo Oliveira (RJ)

Ligia Giovanella (RJ)

EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR

REVISÃO DE TEXTO, CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Zeppelini Editorial

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Paulo Amarante (RJ)

Corbã Editora Artes Gráficas TIRAGEM 2.000 exemplares

CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL

PROOFREADING COVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING Zeppelini Editorial

PRINT AND FINISH Corbã Editora Artes Gráficas NUMBER OF COPIES 2,000 copies

Jairnilson Paim (BA)



Edmundo Gallo (DF) Francisco Campos (MG) CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL

Paulo Buss (RJ)



Áquilas Mendes (SP)

Eleonor Conill (SC)



José da Rocha Carvalheiro (RJ)

Emerson Merhy (SP)



Assis Mafort (DF)

Naomar de Almeida Filho (BA)



Sonia Ferraz (DF)

José Carlos Braga (SP)



Maura Pacheco (RJ)



Gilson Cantarino (RJ)



Cornelis Van Stralen (MG)

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.

This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.

Capa em papel cartão supremo 250 gr

Cover in premium card 250 gr

Miolo em papel kromma silk 80 gr

Core in kromma silk 80 gr

Editora Executiva / Executive Editor Marília Correia CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Sarah Escorel (RJ) Odorico M. Andrade (CE) Lucio Botelho (SC) Antonio Ivo de Carvalho (RJ) Roberto Medronho (RJ) José Francisco da Silva (MG) Luiz Galvão (WDC)

Indexação / INDEXATION

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS) Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe

André Médici (DF) Jandira Feghali (RJ) José Moroni (DF) Ary Carvalho de Miranda (RJ) Julio Muller (MT) Silvio Fernandes da Silva (PR) Sebastião Loureiro (BA)

SECRETARIA / SECRETARIES

Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.

Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos

v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1



Rio de Janeiro

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ISSN

0103-1104

v.32

n.78/79/80

jan./dez. 2008

S U M Á R I O • SUMMARY Editorial / EDITORIAL aPRESENTAÇÃO / PRESENTATION Artigos ORIGINAIS



/ Original articles

Ensaio 9 Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism Alice Hirdes R evisão 18 Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Psychology and Mental Health: three moments of a history João Leite Ferreira Neto Ensaio 27 A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental Eaps : challenge in the practice of the new devices of Mental Health Silvio Yasui, Abilio Costa-Rosa Ensaio 38 Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation of the Mental Health professional in the context of health promotion Walter Ferreira de Oliveira

Ensaio 49 Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate Richard Couto, Sonia Alberti 60 R evisão Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature Tatiana Ramminger Ensaio 72 A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea Ricardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino Ensaio 83 Saúde Mental e cultura: que cultura? Mental Health and culture: what culture? Alexandre Simões Ribeiro Ensaio 92 A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the Companhia Experimental Mu...dança Myrna Coelho

Pesquisa 99 A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva The territorial action of the Centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature Renata Martins Quintas, Paulo Amarante

108 R elato de E xperiência Grupo como dispositivo de vida em um C aps ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintoma Group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms Milena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann 121 Pesquisa Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro Magda Vaissman, Marise Ramôa, Artemis Soares Viot Serra 133 Pesquisa Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família Tick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health Strategy Ionara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares 143 Ensaio Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica Mental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric net Mariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos 150 Pesquisa A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context Katita Jardim, Magda Dimenstein 161 R elato de E xperiência A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro The construction of a territorial base service: the experience of the Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro Alexandre Keusen, Andréa da Luz Carvalho 172 R elato de E xperiência Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte Linking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas Gerais Serafim Barbosa Santos-Filho DocumentoS HISTÓRICOS

/ HISTORICAL DocumentS

182 Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental Comissão de Saúde Mental dos Cebes Artigos ORIGINAIS

/ Original articles

193 Ensaio A crise de dominação no sistema público de saúde The domination crisis in the Brazilian public health system Arlene Laurenti Monterrosa Ayala 200 Ensaio François Dagognet, por uma nova filosofia da doença François Dagognet, for a new philosophy of disease Sabira de Alencar Czermak ARTIGO INTERNACIONAL

/ INTERNATIONAL ARTICLE

207 Ensaio Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado Colombian health model: exportable, depending on the interest of the market Mauricio Torres Tovar

Editorial

A

mbiciosa e revolucionária, a Declaração de Alma-

Mesmo nesse Brasil de tantos avanços não é con-

Ata completou 30 anos sem que seus objetivos

sensual o lugar da atenção primária à saúde, tampouco

fossem totalmente concretizados. O Centro Brasileiro

são uniformes as abordagens em sua implementação.

de Estudos de Saúde (Cebes) dava seus primeiros passos

Vista por alguns gestores como programa seletivo que

quando, em setembro de 1978,  a Organização Mundial

oferta uma “cesta” restrita de serviços e por outros, 

da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a

meramente como um dos níveis de atenção à saúde,

Infância (Unicef) reuniram no Cazaquistão os represen-

ainda não foi viabilizada em sua concepção descentra-

tantes de 137 países que ungiriam a meta de acesso à

lizada, mais abrangente e integral. Estratégica porta de

saúde digna por todos, no mais tardar até o ano 2000.

entrada do sistema, a atenção primária tem um papel

A promessa era desenvolver ações urgentes baseadas

preponderante no processo de implementação do novo

na participação social e na promoção da atenção básica

modelo assistencial do SUS, desde que superadas a

à saúde. O apelo maior era em relação à necessidade

superposição de redes de assistência, a falta de unifor-

de uma ordem econômica mundial mais justa e mais

midade na execução do Programa Saúde da Família

solidária.

(PSF), as  desigualdades no acesso e na utilização dos

A essência da Alma-Ata foi perdida, pois os resul-

serviços,  a pouca valorização e formação inadequada dos

tados sanitários nunca foram tão desiguais no mundo,

profissionais, a  focalização e seletividade de ofertas do

assim como nunca foi tão precário e injusto o acesso

pronto-atendimento mínimo – incluem-se nesse tópico 

à saúde. Hoje, é de mais de 40 anos a diferença na

as Assistências Médicas Ambulatoriais (AMA) na cidade

expectativa de vida entre as nações mais pobres e as

de São Paulo e as Unidades de Pronto-Atendimento

mais ricas. Os gastos públicos com a saúde nesses paí-

(UPA) no município do Rio de Janeiro, alimentadas,

ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dólares por

na verdade, pelo marketing eleitoral.

pessoa e por ano. Muitos Governos deram respostas

Desde que proposta a ‘re-fundação’ do Cebes, tem-se

inadequadas em relação a esse setor, além de terem sido

voltado muito a atenção para a necessidade de retomada

incapazes de antecipar os problemas e impotentes na

do espírito crítico, do debate propositivo que deu origem

busca de soluções.

ao projeto da Reforma Sanitária brasileira. Não se trata

Em ano de efemérides – 20 anos de Sistema Único de Saúde (SUS), 30 anos de Alma-Ata, 60 anos da De-

de insistir na ressurreição da reforma em si, mas de reconhecer o seu grande êxito na construção do SUS.

claração Universal dos Direitos Humanos ­– O Brasil tem

Da mesma forma, não se trata de reinventar o

bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na

passado, mas de manter o clima dos movimentos que

tentativa de melhoria da saúde de seu povo. O relatório

se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos,

anual da OMS de 2008 voltou a recomendar a adoção da

capazes de exercitar a crítica, de reconhecer as deficiên-

atenção primária à saúde em todos os países e destacou

cias, de reorientar os compromissos institucionais e de

o Brasil como exemplo. Os avanços na construção da

radicalizar a democracia.

política nacional de Saúde Mental, um dos temas desta Saúde em Debate, representam bem essa conquista.

A DIRETORIA NACIONAL Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008

3

4

Editorial

A

mbitious and revolutionary, the Alma-Ata Decla-

Even in Brazil, with so many advances, the placing

ration has completed 30 years, without the total

of primary attention to health is not consensual, and nei-

fulfillment of its objectives. The Centro Brasileiro de

ther are uniform the approaches in its implementation.

Estudos de Saúde (Cebes) was taking its first steps when,

Considered by many managers as a selective program

in September, 1978, the World Health Organization

that offers a restricted “basket” of services and, by others,

(WHO) and the United Nations Children’s Fund (Uni-

as merely one of the levels of attention to health, it hasn’t

cef) brought together in Kazakhstan 137 representatives

been made possible in its decentralized concept, more

of countries that would reach the goal of providing access

extensive and complete. As a strategic front door of the

to a deserving health for all, until 2000, at the latest.

system, primary attention plays a preponderant role

The promise was to develop urgent actions based on

in the process of implementing a new SUS assistance

social participation and on the promotion of basic atten-

model, as long as some issues can be overcome, such

tion to health. The greatest plea was related to the need

as the superposition of assistance networks, the lack

for a fairer and more solidary economic world order.

of uniformity to execute the Family Health Program

The essence of the Alma-Ata was lost, because the

(PSF), the inequalities to access and to use the services,

sanitary results have never been so unequal in the world,

the little importance given to professionals and their

as well as the access to health, which has never been so

inadequate qualification, the focalization and selectivity

precarious and unfair. Nowadays, the difference of life

of minimum emergency room offers – in this topic are

expectation rates between the poorest and the richest

included the Ambulatory Medical Care (AMA), in São

nations is of more than 40 years. Public expenses with

Paulo, and the Emergency Rooms (UPA), in Rio de

health in these countries vary, respectively, from 20 to

Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing.

6 thousand dollars per person and per year. Many Go-

Since the proposal of re-founding Cebes, there has

vernments have given inadequate answers regarding this

been a lot of attention into the need to retake the critical

sector, and have also been incapable of anticipating the

spirit, the preposition debate that originated the Bra-

problems and impotent in the search for solutions.

zilian Sanitary Reform project. It is not about insisting

On an ephemerides year – 20 years of National Health System (SUS), 30 years of Alma-Ata, 60 years of

on the resurrection of the reform itself, but recognizing its great success in constructing SUS.

the Universal Declaration of Human Rights – Brazil has

Also, it is not about reinventing the past, but

good reasons to be proud of the work accomplished in

keeping the atmosphere of the movements that were

the attempt to improve people’s health. The World Health

organized around collective ideas and projects, which

Report 2008 has once again recommended the adoption

were able to exercise the criticism, recognize deficien-

of primary attention to health in all countries, and poin-

cies, reorient institutional commitments and radicalize

ted Brazil as an example. The advances in constructing a

democracy.

Mental Health national policy, one of the subjects of this Saúde em Debate, clearly represent this achievement.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008

THE NATIONAL DIRECTORATE

Apresentação

E

sta revista surge num momento muito especial,

A revista é iniciada com uma série de artigos de

afinal, comemoram-se os 30 anos da Reforma Psi-

natureza conceitual. Aqui se incluem os artigos de

quiátrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos

Alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquiátrica

uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um

e da reabilitação psicossocial a partir do materialis-

hospital psiquiátrico. O objetivo desta imagem provo-

mo dialético, de João Leite Ferreira Neto, com uma

cativa é demarcar a distância histórica, ética e política

análise história de três momentos da psicologia em

entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenário atual

Belo Horizonte, de Silvio Yasui e Abilio Costa-Rosa,

de participação dos usuários na construção da política,

que discorrem sobre a estratégia e os desafios do novo

serviços e estratégias em Saúde Mental.

modelo de atenção psicossocial, de Walter Oliveira

No início deste ano, em meio às comemorações dos

que aborda as bases conceituais da Saúde Mental

30 anos de reforma, foi realizado, no Rio de Janeiro,

e sua relação com a formação dos profissionais no

o II  Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde

contexto da promoção da saúde. O artigo de Richard

Mental e Direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas,

Couto e Sonia Alberti apresenta um histórico sobre

militantes das mais diversas áreas da saúde e dos direi-

o conceito de Reforma Psiquiátrica e a tensão entre

tos humanos, participaram desse Fórum debatendo e

clínica e atenção psicossocial e, para finalizar a série,

construindo um novo cenário para a Saúde Mental no

uma importante revisão de estudos brasileiros sobre

Brasil e em várias partes do mundo.

Saúde Mental do trabalhador, de autoria de Tatiana

Para encerrar o ano com chave de ouro, lançamos

Ramminger.

este número especialmente dedicado ao tema da Saúde

A intervenção no campo da cultura tem assumido

Mental, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental,

um papel importante no processo da Reforma Psiqui-

organizado pela recém-criada Associação Brasileira de

átrica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos

Saúde Mental (Abrasme).

é dedicado à relação entre cultura e Saúde Mental.

Há um consenso na área da saúde coletiva sobre a

O texto de Ricardo Aquino trata dos fundamentos e

importante contribuição que o campo da Saúde Mental

princípios da Escola Livre de Artes Visuais do Museu

tem trazido para a saúde de forma geral, problematizan-

Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Alexandre

do a relação instituição-usuário e de institucionalização,

Ribeiro aborda as articulações entre Saúde Mental

destacando a importância do trabalho e do envolvimento

e cultura e Myrna Coelho tece comentários sobre a

da família, bem como a importância do trabalho no

dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica a

território. Enfim, são muitas, e reconhecidas, as contri-

partir das experiências vivenciadas na Companhia

buições. Sabemos que uma revista sobre Saúde Mental

Experimental Mu...dança.

não será consultada apenas por profissionais da área, mas de toda a saúde pública.

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dispositivos estratégicos da política pública de Saúde Mental

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

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Apresentação brasileira, são objetos de pesquisa no artigo de Renata

Na seção de Documentos Históricos, republicamos

Quintas e Paulo Amarante que discorrem sobre as

uma das primeiras manifestações políticas do processo

características inovadoras e substitutivas de tais dispo-

de Reforma Psiquiátrica no Brasil, um marco da pro-

sitivos. O artigo de autoria de Milena Leal Pacheco e

dução crítica em Saúde Mental no país. Trata-se de um

Luiz Zielgman traz algumas reflexões sobre a terapia em

documento elaborado pelo Comissão de Saúde Mental

grupo em um Caps especializado em dependência quí-

do Cebes, intitulado Condições de assistência ao doente

mica; contemplamos, ainda, uma análise do tratamento

mental que, trazendo uma análise bastante precisa das

dos usuários de drogas no Rio de Janeiro no texto de

características de desassistência e violência institucional

Magda Vaissman et al.

do modelo psiquiátrico de então, foi apresentado no

Outro tema importante diz respeito às relações e

I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos De-

possibilidades entre a área da Saúde Mental e a Saúde

putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpósio,

da Família que, de formas distintas, está presente nas

o Cebes apresentou à sociedade brasileira a proposta

abordagens dos artigos de Ionara Rabelo e Rosana

do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do histórico

Carneiro Tavares, através dos resultados de uma in-

texto A questão democrática na área da saúde. A capa da

tervenção psicossocial em mulheres que faziam uso de

presente edição traz uma das ilustrações desse texto.

ansiolíticos, e de Mariana Dorsa Figueiredo e Rosana

Temos uma pauta bastante ampla e variada, que

Onocko Campos, que traz algumas observações acerca

caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimensão

do apoio matricial à Saúde Mental na atenção básica

do campo da Saúde Mental.

à saúde.

Na seção de temas gerais, publicamos os artigos de

A atenção aos usuários em crise é um dos aspectos

Arlene Laurenti Ayala com uma instigante análise sobre a

mais sérios e que coloca em xeque todo o processo da

crise de dominação ou controle das instituições de saúde

Reforma Psiquiátrica. Três artigos são dedicados a esse

por parte dos trabalhadores de saúde e da população. O

tema: O de Katita Jardim e Magda Dimenstein, que traz

texto de Sabira de Alencar traz as reflexões do filósofo,

um análise das práticas do Serviço de Atendimento Mó-

médico e epistemólogo François Dagognet, o precursor,

vel de Urgência (Samu) em Aracaju e suas articulações

a seu modo, da tradição de seu mestre Georges Cangui-

com a rede de atenção psicossocial; o artigo de Alexandre

lhem. Na seção internacional, Maurício Torres analisa

Keusen e Andréa da Luz Carvalho relata a trajetória de

em seu artigo os aspectos relacionados à estrutura, ao

um centro de atenção em Saúde Mental que atende à

financiamento e funcionamento do modelo de saúde

crise e se baseia na lógica do trabalho territorial. Serafim

colombiano.

Santos-Filho aborda a rica experiência de planejamento e gestão da rede de serviços de saúde e Saúde Mental

Boa leitura!

em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos

Paulo Amarante

para os gestores.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

Editor Científico

Presentation

T

his magazine appears at a very special moment,

The magazine starts with a series of articles of

after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric

conceptual nature. Here are included articles by Alice

Reform in Brazil is commemorated. To celebrate this

Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho-

date, we have selected a strange cover: a picture of prison

social rehabilitation from dialectic materialism; by João

cell bars of a psychiatric hospital. The purpose of this

Leite Ferreita Neto, with historical analysis of three

provocative image is to delimit the historical distance,

moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio

ethics and politics between the initial moment, 1978

Yasui and Abilio Costa-Rosa, who discourse about the

and 1979, and the current scenery of users’ participation

strategies and challenges of the new model of psychoso-

in the construction of Mental Health politics, services

cial attention; by Walter Oliveira, who approaches the

and strategies.

conceptual basis of Mental Health and its relation to

In the beginning of this year, during celebrations

the graduation of professionals in the context of pro-

for the thirty years of the reform, the 2 International

moting health. The article by Richard Couto and Sonia

Forum about Collective Health, Mental Health and

Alberti presents the history of the Psychiatric Reform

Human Rights took place in Rio de Janeiro. More than

concept and the tension between clinic and psychosocial

3 thousand people, militants in different fields of health

attention and, to end the series, an important review of

and human rights, have participated in this Forum,

Brazilian studies about Mental Health of workers, by

debating and constructing a new scenery for Mental

Tatiana Ramminger.

nd

Health in Brazil and around the world.

The intervention in the culture field has been

To end the year with a cherry on top, we have

assuming an important role in the process of the Bra-

released this issue, specially dedicated to the theme of

zilian Psychiatric Reform and, because of that, another

Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental

block of articles is dedicated to the relation between

Health, organized by the recently created Associação

culture and Mental Health. A text by Ricardo Aquino

Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

about the fundamentals and principles of the Escola

There is consensus in the collective health area

Livre de Artes Visuais from the Museu Bispo do Ro-

about the important contribution brought by the

sário de Arte Contemporânea is presented. Alexandre

Mental Health field for health in general, rendering

Ribeiro approaches the articulations between Mental

problematic to the relation institution-user and institu-

Health and culture and Myrna Coelho comments on

tionalization, accentuating the importance of health and

the sociocultural dimension of the Psychiatric Reform

family involvement, as well as the importance of field

from experiences seen in the dancing group Companhia

work. Anyway, there many recognized contributions.

Experimental Mu…dança.

We know that a magazine about Mental Health will

The Psychosocial Care Centers (the so called Caps

not be consulted only by professionals of the field, but

in Brazil), strategic devices from the public policy of

by the whole public health.

Brazilian Mental Health, are objects of research in the

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

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Presentation article by Renata Quintas and Paulo Amarante, who

the process of Psychiatric Reform in Brazil, a mark of

discourse about the innovative and substitutive charac-

critical production on Mental Health in the country. It

teristics of these institutions. The article by Milena Leal

is a document developed by the Mental Health Com-

Pacheco and Luiz Zielgman brings subjects to reflect

mittee of Cebes, entitled Condições de assistência ao

about group therapy at a Caps that is specialized in

doente mental, that, by bringing a very precise analysis

chemical dependence; we also contemplate an analysis

of the characteristics of unassistance and institutional

of drug users` treatment in Rio de Janeiro, in the text

violence of the early psychiatric model, was presented

by Magda Vaissman et al.

at the 1st Symposium of Health Policies in the Deputy’s

Other important theme argues about the relations

in October, 1979. In this symposium, Cebes presented

and possibilities between the field of Mental Health and

to the Brazilian society the proposal of the Unified

Family Health that, in distinct ways, is present in the

National Health System (the so called SUS in Brazil)

analysis of articles by Ionara Rabelo and Rosana Carnei-

from the historical text A questão democrática na área da

ro Tavares, through results of a psychosocial intervention

saúde. The cover of the present edition has one of the

in women who were on anxiolytics, and by Mariana

illustrations of this text.

Dorsa Figueiredo and Rosana Onocko Campos, that

The subjects are very broad and varied, which cha-

brings some observations about matricial support to

racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension

Mental Health in the primary health care.

of the Mental Health field.

The attention to users in crisis is one of the most

In the general themes section, we have published

serious aspects and jeopardizes the whole process of the

the articles by Arlene Laurenti Ayala with a provoking

Psychiatric Reform. Three articles are dedicated to this

analysis about the domination crisis or the control of the

subject: The one by Katita Jardim and Magda Dimens-

health institutions by the health workers and the popu-

tein, which brings an analysis of practices of the Mobile

lation. The text by Sabira de Alencar brings reflections

Urgency Service (the so called Samu in Brazil) in Aracaju

of the philosopher, doctor and epistemologist François

and its articulations with the net of psychosocial atten-

Dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition

tion; the article by Alexandre Keusen and Andréa da Luz

of his master Georges Canguilhem. In the international

Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care

section, Maurício Torres analyzes the aspects related to

Center that attends to the crisis and is based on the logic

the structure, financing and functioning of the Colom-

of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the

bian health model.

rich experience in planning and managing the net of services of health and Mental Health in Belo Horizonte,

Enjoy your reading!

pointing out important directions for managers. In the section of Historical Documents, we have

Paulo Amarante

republished one of the first political manifestations on

Scientific Editor

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008

ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism

Alice Hirdes

1

1

Mestre em Enfermagem pela

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); docente de Saúde Mental

RESUMO Este estudo traz uma reflexão teórica acerca da utilização do referencial teórico metodológico do materialismo dialético como suporte para interpretação

da Universidade Luterana do Brasil

e discussão do processo de Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial no

(Ulbra).

contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialética e a dialética do

[email protected]

concreto como substrato teórico para analisar os movimentos que se desenvolveram historicamente no campo da Saúde Mental e assim como na área da reabilitação psicossocial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental;  Desinstitucionalização; Marxismo.

ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodological theoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical support to the analysis of the movements that have taken place in the field of mental health as well as in psychosocial rehabilitation. KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization; Marxism.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008

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10

HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético

I N T R O D U ç ão

Este artigo tem como objetivo realizar uma reflexão teórica sobre o tema da Reforma Psiquiátrica e da reabilitação psicossocial a partir do materialismo dialético. Recorreu-se a autores como Lukács (1979), Konder (1981), Kosik (1995) e Lefebvre (1991), a fim de se resgatarem os princípios e leis da dialética que sustentam uma interpretação dos fenômenos com base materialista. Para tais autores, nada que existe é eterno, fixo, absoluto. Toda vida humana é social e está sujeita a transformações, ou seja, está historicamente condicionada. O sujeito humano é essencialmente ativo e interfere na realidade. Para a história sociológica (ou sociologia histórica), os seres humanos não são apenas objeto de investigação, mas sujeitos em relação ao processo investigatório.

compreender as diferenças numa unidade ou totalidade parcial; buscar a compreensão das conexões orgânicas, isto é, do modo de relacionamento entre as várias instâncias da realidade e o processo de constituição da totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em análise, as determinações essenciais e as condições e efeitos de sua manifestação. (Minayo, 1988, p. 70). Ao abordar a dialética da totalidade concreta, Kosik (1995) dá ênfase à idéia de que esse não é um método que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um panorama total da realidade, mas é uma teoria da realidade e do conhecimento que se tem dela como realidade. É a partir do entendimento da realidade como concretude possuidora de uma estrutura própria que se desenvolvem concepções da realidade. Dessas concepções decorrem conclusões metodológicas que se convertem em princípios epistemológicos para o estudo de temas da realidade ou de práticas relativas à organização da vida humana e da situação social. Kosik enfatiza que a totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. (1995, p. 44).

UMA BREVE VISÃO HISTÓRICA DO MATERIALISMO DIALÉTICO

Pontua, também, que totalidade não significa conhecer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um

A lógica dialética, conforme Minayo (1998),

todo estruturado, dialético, no qual um fato ou conjunto

“introduz na compreensão da realidade o princípio

de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. O

do conflito e da contradição como algo permanente

conhecimento de fatos acumulados da realidade não sig-

que explica a transformação” (p. 68). Outra tese

nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunião

fundamental da dialética é “o caráter total da exis-

de determinados fatos não constitui ainda a totalidade.

tência humana e da ligação indissolúvel entre história

Se compreendidos como partes estruturais de um todo

dos fatos econômicos e sociais e história das idéias”

dialético, os fatos são conhecimentos da realidade.

(p. 69-70).

Konder (1981) também ressalta a característica

A partir do conceito de totalidade, que busca reter

totalizante do conhecimento na dialética marxista. Essa

a explicação do particular no geral e vice-versa, ocorre

teoria decompõe o todo em partes para depois recompô-

o processo de pesquisa. O princípio metodológico da

lo e chegar à totalidade. Entretanto, o autor salienta que

totalidade significa:

tal totalidade não é simplesmente a soma das partes do

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todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitação de-

isso é necessário que sejam desveladas as partes, em um

senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis-

constante caminho traçado do concreto ao abstrato

ciplinar, os conhecimentos se entrelaçam e os resultados

e vice-versa. Mas isso não significa, de modo algum,

obtidos certamente serão mais ricos do que o trabalho

deixar de lado a totalidade, a conexão e interligação dos

realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta última,

fenômenos do todo. A complexidade da dialética se dá

o trabalho é realizado em equipe, entretanto os saberes e

pela busca constante da superação, pela não-satisfação

práticas são executados de forma isolada, estanque, cada

com o já atingido, pela busca por formas mais elevadas

um com um papel fixo, pré-determinado. Isso que dizer

de apreensão da realidade e a explicitação que as contra-

que o resultado dessa intervenção será um, ao passo que

dições da realidade e dos fenômenos encerram.

a ocorrência simultânea de várias abordagens articuladas

De acordo com Lukács:

entre si, será outra. Este autor chama atenção para o fato de que a aproximação da realidade não é a realidade, e que a realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem dela. Outra noção diz respeito à visão de conjunto da realidade. Esta visão é sempre provisória, pois a reali-

o conhecimento, que está em condições de apreender dialeticamente as ‘astúcias’ da evolução histórica, só é válido e eficaz quando suas aquisições forem outros tantos expedientes para a ação prática, cujas experiências virão, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma força sempre nova. (1979, p. 237).

dade não é estática, mas dinâmica e em está constante transformação; não se pode pretender o esgotamento

Entendo que o conhecimento deverá ser passível de

da realidade de determinado contexto. Ou seja, nunca

ser traduzido em uma prática; prática essa transforma-

a realidade alcança uma forma definitiva, acabada.

dora e que, se entendida a partir do conceito marxista

A dialética, enquanto conceito grego da arte do

de práxis – união da prática com a teoria – pode levar

diálogo é utilizada cotidianamente pelos profissionais

à emancipação do ser humano. Nessa perspectiva, o

de Saúde Mental nas negociações com os usuários e seus

estudo de outras formas de tratamento e recuperação

familiares, assim como pela interlocução estabelecida

de portadores de transtornos psíquicos emerge como

entre profissionais de equipes interdisciplinares. A dia-

uma força que se empenha na busca de soluções mais

lética enquanto conceito moderno do modo de pensar

completas e complexas, visualizando a totalidade do

as contradições da realidade e modo de compreender

ser humano. Na perspectiva dialética, a transformação

a realidade em constante transformação nos remete

das idéias acerca da realidade e a transformação dessa

à busca constante de novas formas de abordagem da

realidade devem caminhar juntas.

complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por

De acordo com Kosik (1995) o homem não está

formas mais completas nas quais, através da construção

emparedado na subjetividade, mas tem com a sua

de novas possibilidades, o portador de sofrimento psí-

existência a capacidade de conhecer as coisas como elas

quico reencontre e reescreva a sua história.

realmente são. E este conhecimento se dá através da

Por outro lado, dialética, enquanto modo de pen-

práxis. A dialética, para o autor, trata da “totalidade do

sar as contradições da realidade, a história humana e a

mundo revelada pelo homem na história e o homem

transformação da sociedade, nos leva a uma permanente

que existe na totalidade do mundo” (p. 248).

inquietação, porque não se satisfaz com a aparência

O princípio metodológico da investigação dialética

das coisas, está sempre à procura de sua essência. Para

da realidade social é, para o autor anteriormente referido,

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o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa

se a atenção nos aspectos sadios e concomitantemente

que cada fenômeno pode ser compreendido como um

busca-se melhorar a vida do ser humano portador de

momento do todo. Ressalta-se que um fenômeno social é

transtornos psíquicos através de práticas de reabilitação

um fato histórico que desempenha dupla função: definir

psicossocial.

a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser

Aos novos serviços deverá corresponder uma clínica

revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con-

renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual

quistar o próprio significado e conferir um sentido a algo

simultânea ou seqüencialmente, sejam desenvolvidos

mais. Essa conexão das partes e do todo demonstra que

projetos terapêuticos que contemplem as necessidades

os fatos isolados são momentos artificiosamente separa-

psicossociais das pessoas envolvidas. Isto é o que poderá

dos do todo, os quais só adquirem verdade e concretude

efetivamente trazer uma pessoa a ser cidadã. Importante

quando inseridos no todo correspondente. Assim como

se faz pontuar que os projetos não podem ser modelos

o todo, se os momentos não forem separados tornam-se

construídos a partir dos profissionais; devem ser cons-

um todo vazio e abstrato (Kosik, 1995).

truídos coletivamente com os maiores interessados: os

Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filósofo

usuários.

alemão e um dos expoentes do pensamento dialético, o trabalho é a mola propulsora do desenvolvimento humano através da qual pode ser compreendida a atividade PRINCIPAIS LEIS

criadora do ser. Hegel introduziu a concepção de superação dialética utilizando a palavra alemã aufheben, que significa suspender. O filósofo emprega três diferentes

Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen-

sentidos à palavra: o primeiro sentido é negar, anular,

to dialético de Hegel ser considerado abstrato, vago,

cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mantê-la

idealista, Marx e Engels reescreveram a dialética dentro

suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a

de uma perspectiva materialista. As três leis da dialética

passagem de alguma coisa para um plano superior. A su-

formuladas por Engels com base em Hegel são: lei da

peração dialética, para Hegel, é a ocorrência simultânea

passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); lei

da negação de uma determinada realidade, a conservação

da unidade e luta dos contrários e lei da negação da

do essencial que existe na realidade negada e a elevação

negação.

dela a um nível superior (Konder, 1981).

Alguns autores contemporâneos como Lefebvre

Abstraindo da concepção dialética a questão

e Konder entendem que as leis da dialética não se

negação-superação para o referencial de reabilitação

deixam reduzir a três. Esse reducionismo, na visão

psicossocial, trago a negação da realidade assistencial

de Konder (1981), é arbitrário, mas isso não significa

dos portadores de transtornos mentais centrado no

que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com

modelo do dano, nos déficits, assim como o resgate

precaução. Lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis

e a centralização do foco nas habilidades e a busca do

do método dialético deverão ser universais e concre-

trabalho para se atingirem os objetivos de reinserção

tas. Para este autor o método representa o universal

social, cidadania e qualidade de vida. Ou seja, nega-se

concreto. E estas leis deverão ser, ao mesmo tempo,

a primeira realidade, a centralização do foco nos sinais

leis do real e do pensamento. Deverão ser concretas

e sintomas; em suma, na doença resgata-se e centraliza-

para atingir toda a realidade, mas não podem subs-

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tituir a investigação e o contato com o conteúdo.

E esta lei encontra-se atrelada à lei do movimento

Através da investigação das realidades particulares,

universal, que reintegra o movimento interno dos fatos

da experiência e do contato com o conteúdo pode-se

e fenômenos e o movimento externo, que os envolve no

chegar à essência, ao conceito e às relações das leis

devir e vir-a-ser universal. A pesquisa dialética considera

particulares. O autor ressalta:

cada fenômeno no conjunto de suas relações com os demais fenômenos e com a realidade. Nessa lei, compre-

o método é alternadamente a expressão das leis universais e o quadro de aplicação delas ao particular; ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular subunir-se ao universal.(1991, p. 237).

endemos a reintegração dos fenômenos – institucionalização/desinstitucionalização/reabilitação psicossocial em seu movimento próprio. Através do movimento destes fenômenos se estabelece o entendimento essencial e a

As grandes leis do método dialético para Lefebvre

conexão entre eles.

são: lei da interação universal (da conexão, da media-

A lei da unidade (interpretação) dos contrários nos

ção recíproca de tudo que existe); lei do movimento

fornece a idéia de que a contradição dialética é uma

universal; lei da unidade dos contrários; transformação

inclusão concreta dos contraditórios um no outro e,

da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de-

simultaneamente, uma exclusão ativa. Diferentemente

senvolvimento em espiral (da superação).

da lógica formal que conserva os dois contraditórios à

A lei da interação universal prevê que nada é

margem um do outro, que estabelece uma relação de

isolado. O isolamento dos fatos e fenômenos significa

exclusão. A contradição dialética se situa no universal

uma privação de sentido, de explicação, de conteúdo.

concreto, enquanto a contradição formal permanece na

A pesquisa dialética considera cada fenômeno no

generalidade abstrata.

conjunto da inter-relação com os demais fenômenos e, também, o conjunto da realidade na qual ele é fenômeno. Essa lei estabelece uma conexão importante dos

O método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. (Lefebvre, 1991, p. 238).

processos de institucionalização/ desinstitucionalização e da discussão da reabilitação psicossocial. Sem o enten-

Nessa lei, situo a institucionalização e a desins-

dimento anterior sobre a conformação do instituciona-

titucionalização em psiquiatria (intrinsecamente

lismo em psiquiatria e dos saberes e práticas que durante

contraditórias), como dois lados opostos um ao

décadas legitimaram essa especialidade, não haverá o

outro, mas com uma unidade em comum: o foco na

entendimento ulterior da reabilitação psicossocial em

abordagem da doença mental. Conforme o contexto,

sua totalidade. A reabilitação psicossocial nasceu de

prevalecerá um ou outro – a institucionalização ou

um conjunto de situações: a diminuição dos pacientes

a desinstitucionalização. As idéias contidas em um

internados em hospitais psiquiátricos a partir dos anos

e em outro modelo entram em choque na realidade

1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes

concreta através das práticas executadas. A realidade

ainda hospitalizados e a evolução dos conhecimentos

da desinstitucionalização não pode ser compreendida

psiquiátricos (Saraceno, 1999). Dessa forma, a rea-

sem o prévio entendimento da institucionalização,

bilitação psicossocial não pode ser tratada como um

assim como a conexão estabelecida com a reabilitação

fenômeno isolado.

psicossocial.

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As modificações quantitativas, lentas e graduais

Saúde Mental; em 1990, realizou-se a Conferência para

desembocam em uma modificação qualitativa que apre-

a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica, em Caracas,

senta características bruscas, tumultuosas, expressam a crise e a metamorfose através da intensificação de todas

que resultou na Declaração de Caracas. Finalmente, em 1992, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde

as contradições. É a transformação da quantidade em

Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere

qualidade, também chamada lei dos saltos. O salto

às conferências e à legislação (porque os serviços conti-

dialético implica, simultaneamente, a continuidade e a

nuaram sendo constituídos) até a aprovação, em abril

descontinuidade. Ou seja, o movimento que continua

de 2001, da Lei de Reforma Psiquiátrica. Em 2001, Foi

e o aparecimento do novo. Trago, nesta lei, as mudanças ocorridas com o

estabelecido um novo fórum de discussões por meio da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental.

processo de desinstitucionalização identificadas em

A lei do desenvolvimento em espiral defende que

alguns lugares do mundo a partir da década de 1960 e

há um salto dialético entre a vida e a matéria sem vida,

no Brasil mais tardiamente, após a redemocratização. As

e não uma descontinuidade absoluta. Há uma unidade

transformações políticas, a redemocratização no país, a

sempre renovada entre o individual e o universal, que

Constituição de 1988, a luta pelos direitos humanos e

submete esse individual às leis universais. É na sociedade

o Movimento pela Reforma Sanitária desembocaram

e no pensamento que se revela o movimento em espiral:

em um movimento pela Reforma Psiquiátrica no Bra-

o retorno acima do esperado, para aprofundá-lo e elevá-

sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram

lo em nível, libertando-o de seus limites. É a contradição

mudanças bruscas, o ‘salto’ dialético, através das de-

dialética da negação da negação.

núncias expostas à opinião pública e o surgimento de novas experiências em Saúde Mental, com características desinstitucionalizantes. Observa-se como característica do salto dialético a continuidade, ou seja, o hospital

APLICAÇÃO DO MATERIALISMO

psiquiátrico como realidade ainda presente, os saberes

DIALÉTICO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA E

e práticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda

REABILITAÇÃO

não superados; e a descontinuidade, que compreende o aparecimento de novos serviços respaldados pelas iniciativas das políticas públicas de Saúde Mental.

Considero esta lei fundamental para a compreensão das mudanças e movimentos que o processo de Reforma

Uma característica da lei se refere ao fato de as coisas

Psiquiátrica encerra, pois ela contempla os refinamentos

não mudarem sempre no mesmo ritmo. Transpondo

conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife-

para a questão da Reforma Psiquiátrica, foi possível

renciação entre tratamento e reabilitação, o enfoque do

observar, nas últimas décadas, alguns períodos em que se

trabalho terapêutico sobre os aspectos da história de vida

intensificaram as discussões e o surgimento de novos ser-

das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. No mo-

viços, assim como períodos em que houve uma desace-

delo tradicional biomédico, centraliza-se no diagnóstico,

leração do processo. Historicamente, podemos situar as

nos sinais e sintomas, nos déficits. Através da modificação

décadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas

da centralização do trabalho terapêutico, não no modelo

discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica

da doença, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas,

a

no país. Em 1987, ocorreu a 1 Conferência Nacional de

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permitiu-se aprofundar a questão do sofrimento psíquico,

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e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o

de desinstitucionalização. Entretanto, penso que, a des-

usuário/paciente e o profissional desses limites. Ocorre aí

peito de muitos serviços que trabalham sob a égide da

um salto dialético e não uma descontinuidade absoluta, já

Reforma Psiquiátrica em nosso país, há a necessidade de

que o tratamento continua a ser realizado, mas associado

constantemente redimensionarmos o olhar para as práticas

com técnicas de reabilitação psicossocial. A partir da

em curso para que aos novos serviços correspondam as

união tratamento-reabilitação psicossocial a compreensão

balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial

do indivíduo portador de transtorno psíquico torna-se

da Reforma Psiquiátrica italiana. Sabe-se que os projetos

aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais

de reforma não são homogêneos, pois as práticas são exe-

completas. A lei da negação da negação promove refina-

cutadas conforme a concepção teórica dos profissionais

mentos que são introduzidos aos poucos como estratégia

da área. Dessa forma, é possível visualizar a existência de

para se promover a superação dialética.

princípios orientadores gerais, mas que em última análise

Dentro de uma perspectiva mais ampla, de to-

estão subordinados aos settings específicos das práticas.

talidade, considera-se de fundamental importância o

Através da negação da negação, ou seja, a negação de uma

diagnóstico de vida de uma pessoa e o conseqüente

determinada realidade centrada na exclusão (na doença)

estabelecimento de um projeto terapêutico a partir do

para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios,

contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi-

na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento

cientemente flexível para que incorpore mudanças e dê

psíquico, deverá prevalecer a superação dialética.

margem a possíveis redimensionamentos. Ressalta-se

Os serviços se constituem, para Saraceno (1999),

a necessidade de leitura do contexto dentro de uma

como a variável que influi no processo reabilitativo.

mudança de óptica: comumente, tal leitura é realizada

O autor assinala como característica de um serviço de

em cima dos déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar

alta qualidade a capacidade do serviço em se ocupar de

as forças e os aspectos sadios constitui uma transição

todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de

importante no processo de tratamento e reabilitação,

reabilitação. Saraceno pontua, ainda, que os serviços

assim como a noção de indissociabilidade de ambos.

que não oferecem essas possibilidades acabam gerando

Lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialéticas

hierarquias de intervenção, e os menos dotados são

constituem uma análise do movimento e no movimento

excluídos do processo. O autor ressalta que um serviço

real estão implicadas a continuidade e a descontinui-

de alta qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com

dade, o aparecimento e choque de contradições, saltos

alta integração interna e externa:

qualitativos e superação. Encontram-se aí os aspectos do movimento. As leis dialéticas pressupõem uma unidade fundamental, que é encontrada no movimento, no devir universal. O que ocorre, segundo o autor, é a

[...] um serviço onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos prevalece sobre a separação dos mesmos e em que a organização está orientada às necessidades do paciente e não às do serviço.(1999, p. 96-97).

ênfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de estudo realizado.

A integração interna e externa também deverá

A partir desta constatação, utilizo como referência

acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen-

para o processo analítico neste estudo a lei do desenvolvi-

to e a reabilitação psicossocial. Essa integração se fará

mento em espiral, representado pela negação – superação

possível e concreta se os profissionais visualizarem a

dialética. Muitos avanços ocorreram com as experiências

importância da não-dissociação e assumirem ambos,

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o tratamento e a reabilitação. A idéia contida nessa

Acrescentam-se aqui as inquietações que Basaglia

proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas

(1985) já enfatizava: não é a redefinição da instituição

vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é execu-

em termos estruturais, através de novos esquemas,

tado por uns e a reabilitação, por outros. Ou seja, há

que garantirá ações terapêuticas, mas as relações

a necessidade de não-separação do trabalho manual do

que se estabelecerão dentro das novas organizações

intelectual reproduzido dentro dos serviços para que

assistenciais. Os novos serviços deverão atentar para

haja a superação dialética.

as possíveis (e concretas) contradições que podem se

Saraceno (1999) alerta que, na integração interna

configurar no seu interior. Uma dessas contradições

de um bom serviço devem ser contempladas estratégias

se refere ao discurso sobre a prática muitas vezes não

organizativas e afetivas. A permeabilidade dos recursos

ser condizente com a prática desenvolvida. Basaglia

e dos saberes deve superar a sua separação. Compreen-

postula que as contradições do real deverão ser

demos que esse patamar deveria se constituir no ideal

dialeticamente vividas. É importante ressaltar que,

a ser alcançado pelos serviços. Os movimentos nos ser-

nessa tentativa de criação de um mundo ideal, se as

viços, quando encaminhados às questões organizativas

contradições não forem ignoradas ou postergadas,

e afetivas concomitantemente, conduzirão à superação

mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se

dialética. Da mesma forma, quando os conflitos e

tornará terapêutica. Para isso, devem existir alterna-

contradições forem dialeticamente trabalhados, e não

tivas, possibilidades.

ocultados, será promovida a descontinuidade; o aparecimento do novo e a explicitação das contradições conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças reais nos serviços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Saraceno, Asioli e Tognoni (1997) destacam a atitude de integração da equipe como uma das muitas

Resgato a lei da dialética, defensora de que a nega-

variáveis que determinam a enfermidade e a eficácia da

ção é a força motriz do progresso. Negação essa, enten-

intervenção. Tais variáveis, relacionadas à organização e

dida como a negação de uma determinada realidade e

ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favoráveis ou

a força, como aquela que se empenha na construção de

desfavoráveis. Os autores conceituam uma equipe inte-

outra realidade mais rica e completa. Essa lei poderá ser

grada com variável favorável e que deve ter as seguintes

empregada no campo da Saúde Mental, mais especifi-

características: distribuição do poder; importância dos

camente na área da reabilitação psicossocial. Resgata-se,

conhecimentos; comunicação clara e não-contraditória;

neste processo, toda a potencialidade para a produção

discussão e planificação do trabalho; socialização dos

de vida significativa ao ser humano. Nesse momento

conhecimentos; autocrítica e avaliação periódica dos

ocorre um salto qualitativo significativo, através de

resultados. Entre os fatores que colcoam obstáculos

uma práxis transformadora que vislumbra todas as

à integração interna, os autores apontam a separação

possibilidades que se descortinam frente ao cuidado à

prática entre os diferentes papéis profissionais, os dife-

pessoa portadora de transtorno psíquico. Isso permite

rentes níveis de capacitação e de aspectos culturais dos

alcançar refinamentos conceituais que, em última análi-

papéis profissionais e os conflitos ou frustrações entre

se, proporcionarão um olhar crítico em relação à práxis

os membros da equipe.

da Reforma Psiquiátrica.

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O foco do trabalho terapêutico sobre a escuta, a validação da identidade dos usuários, bem como a abordagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos serviços pautada na égide da Reforma Psiquiátrica. Esses

Lukács, G. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. Minayo, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/ Abrasco, 1998.

diferenciais que contornam as ações introduzem saltos qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pessoas. A superação dialética é alcançada no momento em que são reunidos, no mesmo sujeito histórico, aspectos subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares de cada pessoa.

Saraceno, B.; Asioli, F.; Tognoni, G. Manual de saúde mental. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. Saraceno, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Te Corá, 1999.

Enquanto as práticas tradicionais objetalizavam o doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora, na qual a subjetividade é reintegrada com o corpo social

Recebido: abr./2008 Aprovado: nov./2008

dos portadores de sofrimento psíquico. Essa tomada de consciência sobre a importância dessas intervenções produz movimentos de superação da objetalização a que foi submetido o doente e, também, a reconstrução de um corpo físico, subjetivo e social.

R E F E R Ê N C I A S

Basaglia, F. (Org.). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Konder, L. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Primeiros Passos). Kosik, K. Dialética do concreto. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. Lefebvre, H. Lógica formal/lógica dialética. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Psychology and Mental Health: three moments of a history

João Leite Ferreira Neto

1

Professor do Programa de Pós-

graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

1

RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde

(PUC Minas); doutor em psicologia da

Mental, no município de Belo Horizonte, Minas Gerais. O primeiro é aqui

PUC São Paulo.

chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio

[email protected]

matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área. Conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente prática matricial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial; Apoio matricial; Psicoterapia de Grupo.

ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. The first moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third, matrix support. This paper is examines a literature review and documents of the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand, enables the professional to work with present-day practice in matrix support. KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix support; Psychotherapy, Group.

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I N T R O D U ç ão



Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

A polaridade entre abordagens individuais e coletivas, e a composta pela especificidade da Saúde Mental e da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo da saúde geral e reforma sanitária. Além da necessária revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de

Quando a psicologia foi reconhecida como profissão em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote-

dados será um conjunto de documentos produzidos no decorrer da história mineira e da nacional.

rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório, a organizacional e a educacional. A saúde pública ainda não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos essa situação mudou drasticamente. Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psicologia (Spink, 2007). Diversos estudos apontam que a crescente presença dos psicólogos na saúde pública no Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátrica e com a criação do campo chamado de Saúde Mental (Dimenstein, 1998; Ferreira Neto, 2004). O objetivo deste artigo é a apresentação de alguns elementos da história da entrada e do percurso dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde Mental, no município de Belo Horizonte, Minas

Momento ‘implantação’ – anos 1980 O Programa de Saúde Mental foi oficialmente implantado em Minas Gerais, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do governador Tancredo Neves pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (Pmdb). Nesse período, um número expressivo de profissionais de saúde com perfil progressista ocupou postos importantes na Secretaria de Estado de Saúde. É importante lembrar que o período de abertura democrática no país consolidou uma [...] tática desenvolvida inicialmente no seio do movimento sanitário, de ocupação de espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de introduzir mudanças no sistema de saúde. (Amarante, 1998, p. 91).

Gerais. As fontes bibliográficas e documentais pesquisadas indicam que a construção desse percurso nesse

A chamada Nova República tornou-se o apogeu

município ocorreu em três momentos, marcados por

dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário,

características próprias, em que a noção de Saúde

juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu

Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas

com o próprio Estado.

diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua

Os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa

integração no contexto do SUS. Na década de 1980,

Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI

ocorreu o primeiro período chamado de implantação,

Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração

seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial,

entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados

respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa

atendendo em centros de saúde sem ligação com um

análise histórica abordará com maior atenção a pre-

projeto ou programa que organizasse ações em Saúde

sença de duas polaridades que atravessam este campo.

Mental.

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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

A proposta do Pisam parte da avaliação de uma

Nos antecedentes à oficialização do Programa

prevalência de transtornos mentais de 18% e uma

de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada

demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem

e genérica do que poderia ser definido como Saúde

ações de prevenção primária, integração da Saúde

Mental na rede pública. Algumas vezes, era entendida

Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de

como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o

leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais

doente grave, como as ações preventivas e a participação

não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção

nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo,

primária era considerada eficaz a realização de “grupos

mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda

operativos de gestantes, mães, professores e o atendi-

pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra.

mento a crises” (Mendonça Filho; Alkimin, 1998, p.

Já no Programa de Ações da Saúde Mental da Re-

25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser

gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do

conduzido por psicólogos.

programa na região metropolitana de Belo Horizonte,

Quanto ao atendimento clínico individual, os

Minas Gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo-

pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos

ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas

graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma

em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços

franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os

de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria

psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico-

com algumas prefeituras. As equipes são estabelecidas

logia. O Pisam teve curta duração devido, entre outras

como referência secundária, ou seja, como atendimento

causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos

especializado. A princípio, o Programa de Saúde Men-

privados (Mendonça Filho; Alkimin, 1998).

tal buscava formular, de modo ainda primário, uma

Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde

concepção integral de saúde – o famoso trinômio do

1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros

bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde

de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro

Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio),

de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram

psicólogo (psico) e assistente social (social). A falta de

as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em

experiência para uma formulação mais sofisticada do

centros de saúde no município. A atuação na época era

que seria um trabalho em equipe multiprofissional e

voltada para a demanda infantil, para a participação em

interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter-

outros programas em andamento nas unidades (pueri-

nativa mais óbvia.

cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação

O documento retoma o histórico anterior do Pisam

junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação

e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com

no documento pela priorização do trabalho em grupos,

muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob-

“por permitir uma melhor resposta a demanda” (Secre-

jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental.

taria Municipal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita

Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à

ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar,

demanda específica (doença mental), apoio aos demais

eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma,

programas dos centros de saúde integrando a Saúde

a expressão Saúde Mental era tomada de um modo

Mental no contexto global da saúde, apoio técnico

genérico, sem relação com as propostas da reforma

ao nível primário, articulação com os recursos das

psiquiátrica.

comunidades (escolas, creches, hospitais e associações

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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica

Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra-

do programa. Apenas no primeiro eixo é mencionada a

ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio

necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final-

da psiquiatria. Somente quando Programa de Ações é

mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de

implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar,

‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido

e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a

de evitar ‘internações desnecessárias’ (Secretaria

atuação dos psicólogos aos pacientes graves.

de

Estado de Saúde, 1985, p. 8). Ainda não se falava em substituição do modelo hospitalar.

Nesse momento, é marcante a preocupação da integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde

A ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten-

e a participação de seus profissionais em ações cole-

dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma

tivas com outros profissionais do serviço. As práticas

de abordagem das questões de Saúde Mental” (Secre-

de grupo se constituem numa importante diretriz de

Estado de Saúde, 1985, p. 7). Aponta ainda

trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais

que a intervenção em grupos é um trabalho que exige

agentes. Além disso, é preconizado o apoio técnico ao

constante discussão e aprofundamento por parte dos

nível primário, estratégia que somente se consolidará

profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por

no terceiro momento de ‘apoio matricial’.

taria de

avaliação de seus impactos. A partir desse período os psicólogos continuam envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos serviços, mas também começam a receber a clientela

Momento ‘antimanicomial’ – anos 1990

prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes com transtornos graves e persistentes. Como notificado

A passagem entre os dois primeiros momentos

no documento, a formação em serviço por meio de su-

analisados está atravessada por alguns importantes

pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais

eventos. O primeiro deles, no ano de 1987, foi o II

constante. Além disso, inicia-se o curso de Especializa-

Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental

ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos

em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por

de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede,

uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de

oferecido pela Escola de Saúde de Minas Gerais (Esmig),

maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Os

com forte acento na prática clínica de base psicanalítica

psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores

lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente

presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando

ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se

com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela-

tornará Escola Brasileira de Psicanálise.

borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar

Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por-

a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do

tador de algumas características. Anterior à implantação

movimento em relação ao Estado. As diretrizes apon-

oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais

tavam para um caminho de alargamento das fronteiras

de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse

da luta para uma ação no interior da própria cultura,

campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra-

trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano

mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na

da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade

atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do

puramente assistencial e criava pontes entre as ações no

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âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu,

centros de referência em Saúde Mental (Cersam, versão

desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou

mineira dos Centros de Atenção Psicossocial – Caps).

da desconstrução/invenção” (Amarante, 1998, p. 93),

Um importante documento que avalia esse período

induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista

foi publicado numa coletânea organizada por técnicos

e sua tática de ocupação da máquina estatal. Desde essa

da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy,

nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade

sobre a gestão da saúde. O capítulo que nos interessa

civil e os movimentos populares e com as associações de

é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de

usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa

Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental

e da opinião pública.

da SMSA (Lobosque; Abou-Yd, 1998). Nesse docu-

Através do segundo evento, em 1989, a reforma

mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o

psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter-

projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão

venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos

marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva

na Casa de Saúde Anchieta e a seqüente criação de dis-

“a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição

positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que

por outro modelo de atenção (p. 244).

inspirou várias experiências posteriormente conduzidas por todo o país (Amarante, 1998, p. 83).

O texto, que possui uma função de relatório da gestão, possui um marcado tom político de ruptura

Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação

comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada

ao Congresso do Projeto de Lei 3.657/89 visando re-

em pelo menos quatro aspectos. O primeiro deles, de

gulamentar o processo de reestruturação da atenção à

cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação

Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal

de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-

Paulo Delgado (Partido dos Trabalhadores de Minas

mento sanitário com seu acento nos cuidados primários,

Gerais, PT/MG).

em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as

Em Belo Horizonte, somente durante a gestão municipal do prefeito Patrus Ananias, do PT (1993

autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário, é estabelecida uma divisão indesejada

a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSA) de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos

[...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas, mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas em geral. (1998, p. 245).

profissionais ficassem comprometidas e congestionadas com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha-

O projeto propõe o abandono do modelo america-

da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com

no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente

quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela

pelo Programa da Região Metropolitana de 1985, com

cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado

seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços

para a SMSA o psiquiatra César Campos, engajado, já

especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma-

de longa data, com os movimentos de luta contra o

nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por

aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos

isso, afirma que os Cersam “não se caracterizam como

substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os

serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas

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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

compõem uma rede de assistência que visa substituir

Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,

os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis

antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,

de atenção.

via Distrito Sanitário, com um profissional de Saúde

O segundo tem componentes de gestão de pessoal,

Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. A

uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição

organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta

por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais

ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-

se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes

ternados após nova crise. Garantiu também a chegada

do trabalho” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 253). A

dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o

proposta aponta uma mudança de foco da atenção das

circuito: alta, residência, crise e nova internação.

“crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas

Pacientes e familiares passaram a conhecer uma

clientela majoritária das unidades básicas, para os

nova possibilidade de atenção profissional, próxima de

psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali-

suas casas. Decorridos alguns anos após esse conjunto

ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso

de ações, é possível deduzir que para romper com o cir-

acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo

cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação

ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem

de equipes nas unidades, é necessário uma política de

como a presença em grupos de outros programas, como

organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os

aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246).

profissionais permaneceriam com sua atividade drenada

O tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos

com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se

e da participação em outros programas de promoção da

tornassem parte de sua clientela habitual.

saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse

O quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz

contexto de uma gestão que se compromete com a

respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto

direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente

antimanicomial. De um lado, existe o destaque à psica-

momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia-

nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos

ção entre ações clínicas e de promoção de saúde.

inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não

O terceiro aspecto, de caráter político-adminis-

seriam o que são” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 249).

trativo, configurou-se como passo fundamental para

As autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não

garantir a reorganização da assistência a partir das di-

está presente em momentos políticos incisivos, sendo,

retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSA com

portanto esta uma rara articulação. Ainda é necessário

os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos

se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul-

hospitais privados conveniados por parte da Secretaria.

dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo

Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe-

da Saúde Mental (Ferreira Neto, 2008).

tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão

De qualquer modo, a contribuição da psicanálise,

hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados

isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre

ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois

a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade

hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos

presente no despreparo para conduzir uma clínica

hospitalares privados conveniados na central de inter-

sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua

nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para

colagem com a clínica de consultório, uma vez que os

a organização da nova rede de assistência em Saúde

espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem

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de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc.

atenção à saúde (Brasil, 2004A). É um movimento de

Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que

reorientação do modelo assistencial, operacionalizado

a formação prevalente ainda atende a esse modelo. As

mediante a implantação de equipes multiprofissionais

autoras reconhecem que os profissionais não receberam

em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal

anteriormente este tipo de formação e perguntam:

com uma parcela da população adscrita. Foi formulado

“quem a recebe, aliás?!” (p. 263).

pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser

O texto relata também duas importantes ações extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à

implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome de BH – Vida.

demanda infantil. A primeira foi a criação de fóruns

O documento municipal a ser analisado, datado

regionais de Atenção à Saúde Mental da Criança e do

de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental

Adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como

na assistência básica (Secretaria Municipal da Saúde,

os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de

2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações

Conselhos Tutelares e de outras instâncias comunitárias,

entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu

com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de

contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’

soluções na atenção à infância tanto individual quanto

preconizada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2004B).

coletivamente. A ação dos psicólogos nesse processo foi

Seu diferencial em relação a outros documentos é sua

de suma relevância. O segundo foi o Projeto Arte na

redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e

Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar

as gerências de Atenção à Saúde, ainda que a linguagem

as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários

e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com

com monitores da própria comunidade, desenvolvendo

a Saúde Mental.

atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga de unidade básica.

O documento aponta para o desenvolvimento de ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões

Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi-

relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho,

cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No

da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). Discute

âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor-

também a importância do atendimento na crise, even-

nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o

to que alimenta o sistema manicomial sem a busca

que ocorreu processualmente e não sem dificuldades

apressada da internação. Finalmente, indica o traba-

e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a

lho em equipe como instrumento para superação do

trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e

paradigma médico, “alargando competências comuns,

até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou

desmontando e reorganizando poderes e saberes esta-

contribuições importantes ao projeto.

belecidos” (p. 3). No âmbito da integração das Equipes de Saúde Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família (ESF), o documento preconiza que as primeiras

Momento ‘apoio matricial’ – anos 2000 O Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal estratégia para reorientação do modelo assistencial de

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[...] priorizarão o atendimento aos portadores de sofrimento mental grave e persistente e as ESF se responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta clientela. (p. 4).

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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história

As ESM continuariam acolhendo outras demandas

maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma

mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com

suposta “continuidade ideal” teleológica (Foucault, 1979, p.

apoio das ESM. Os usuários e familiares devem par-

28). Também cerceia a tentação sempre presente da produção

ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do

de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa

controle e planejamento das ações de Saúde Mental. As

uma mitologia construída por um grupo hegemônico.

ações de apoio matricial devem realizar a

O recorte histórico aqui apresentado, que tem por eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de

[...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho concreto, saberes e competências, bem como, progressivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5).

interpretação. Uma delas é que as direções previstas em 1984 na implantação do programa, o ideário de integração na saúde geral de prática de apoio às equipes de saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com

Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou

vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a

a portaria 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da

ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs

Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial,

a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um

através da criação de núcleos multiprofissionais, numa

momento essencial para garantia do projeto de atenção

composição escolhida entre 13 opções profissionais, com

ao paciente grave. O antagonismo ‘clínica versus promo-

ênfase nas ações de planejamento, educação continuada,

ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma

promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da

conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental

Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas.

na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho.

Recomenda também a presença de pelo menos um pro-

Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente

fissional de Saúde Mental em cada Nasf (Diário Oficial

grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de

União, 2008, p. 39). Na portaria são considerados

integração em que ações de promoção caminhem juntas

profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te-

com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. A Saúde

rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais).

Mental é um projeto sempre em movimento, composto

da

Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos, sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um

por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos, têm contribuído para sua contínua reinvenção.

tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação

No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as

muito centrada na diminuição e qualificação da demanda

deficiências de uma formação clínica baseada num modelo

para a Saúde Mental (Sirimim, 2007). Contudo, podemos

liberal-privado de consultório, o que não o preparava para

esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as

a opção prioritária do programa. Sua formação se deu,

ESM e as ESF, terá vários outros desdobramentos.

portanto, em serviço, através das práticas de atendimento aliada às supervisões. Sua entrada no Sus transformou sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas de clínica ampliada (Ferreira Neto, 2008).

Considerações finais

Mais recentemente, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais e intervenções psicossociais

Refletir a partir de estudos históricos com enfoques e recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma

pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente prática de apoio matricial.

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008

Recebido: abr./2008 Aprovado: out./2008

ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental Eaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health

Silvio Yasui 1 Abilio Costa-Rosa

2

Doutor em Saúde Pública pela

RESUMO O processo social complexo da Reforma Psiquiátrica, concretizado

Escola Nacional de Saúde Pública

como Política de Saúde Mental, nas últimas décadas tem levado a uma

1

(ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); docente do Departamento

profunda transformação na prática dos cuidados em Saúde Mental. Isso conduz

de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar

a mudanças no modelo técnico-assistencial que organiza e sustenta as práticas

e do Programa de Pós-graduação em

desses profissionais que, por sua vez, encontram resistência em outros campos.

Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual de São

O objetivo deste trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Instituições

Paulo (Unesp), Assis.

de Saúde Mental, que buscam implantar o novo modelo assistencial, apesar de

[email protected]

se depararem com práticas hegemônicas do paradigma que tentam superar. Foi

2

Doutor em Psicologia Clínica pela

Universidade de São Paulo (USP); docente do Departamento de Psicologia Clínica do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências

realizado um mapeamento preliminar das características da Estratégia Atenção Psicossocial e possíveis avanços, a partir de sua implantação, são apontados. PALAVRAS-CHAVE: Centros de Atenção Psicossocial; Saúde Mental; Assistência Integral à Saúde; Saúde coletiva.

e Letras da Unesp, Assis. [email protected]

ABSTRACT Once the complex social process of Psychiatric Reformation, materialized in Brazil as Mental Health Policy, involves a deep transformation in mental health assistance and causes several changes in the traditional technical assistance model that organizes professional practices, it finds many resistances inside several fields of knowledge. The main objective of this paper is to think about the everyday challenges of Mental Health Institutions that aim to establish a new model of care but still have problems with the old hegemonic practices that they intend to deny. It has been made a preliminary mapping of Psychosocial Attention Strategy characteristics and some possible advances, which could happen after its deployment, are herein stated. KEYWORDS: Mental Health Services; Mental Health; Comprehensive Health Care; Public health.

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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

I N T R O D U ç ão

no que diz respeito aos desdobrementos a partir da proposta de ações de matriciamento em implantação nas diretrizes do Ministério da Saúde. Parte-se da hipótese de que esses esclarecimentos poderiam contribuir como importantes fatores de municiamento na luta

A política de Saúde Mental, construída e pactuada

pelos avanços da Eaps.

por diferentes atores sociais desde meados da década de

As mudanças que já se processam, entretanto,

1980, preconiza e almeja profundas transformações da

não se dão sem muitas resistências ou claras oposições

atenção, isto é, o atendimento e os cuidados ao sofri-

advindas de vários setores e direções. Já temos situado

mento psíquico e demais impasses subjetivos.

o processo complexo a partir do qual se desdobram as

Essas transformações apontam para mudanças

lutas pela Reforma Sanitária e pela Reforma Psiquiá-

na concepção do processo saúde-adoecimento, no

trica, sob a égide de uma luta de hegemonia quanto

modelo teórico e técnico-assistencial que organiza e

ao controle dos interesses e valores que se encarnam

sustenta as práticas dos profissionais; que orienta e

também nas instituições de Saúde Mental (Costa-

sustenta o arcabouço jurídico e o universo de práticas

Rosa; Luzio; Yasui, 2003). Um de nós tem realizado

e valores culturais. Mudanças que apontam, tam-

um avanço nos referenciais de análise desse processo

bém, para proposições éticas em relação aos efeitos

de ações e reações, especificando a forma geral dos

e desdobramentos das ações no campo da Saúde

antagonismos em termos de luta paradigmática de dois

Mental (Amarante, 2007; Costa-Rosa, 2000). Al-

paradigmas: o Paradigma Psicossocial e o Paradigma

gumas dessas transformações estão na constituição

Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Costa-

maior do país e regulamentadas em forma de lei

Rosa (2006) propõe que ‘paradigma’ seja entendido

como, por exemplo, a participação da população

como uma agregação dos diferentes vetores das pul-

no planejamento, gestão e controle das práticas de

sações tanto em termos de ação instituinte quanto de

Atenção, e até mesmo na gestão dos dispositivos

resistências do instituído no campo da Saúde Mental.

institucionais.

O termo ‘medicalizador’ é utilizado com o duplo sen-

Esse conjunto amplo de transformações práticas

tido do radical ‘medic’: centrado no discurso e na ação

e proposições teóricas, tanto éticas quanto políticas,

médica (Clavreul, 1983) e orientado pela utilização

incorporado e vivenciado na atual Política de Saúde

da medicação como resposta preferencial às demandas

Mental é suficiente para que possamos falar em Es-

do sofrimento psíquico.

tratégia Atenção Psicossocial (Eaps), assim como foi

Nessa perspectiva, o objetivo principal do presente

proposta a Estratégia Saúde da Família (ESF). Analisar

trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Insti-

os avanços, as resistências e os impasses no campo da

tuições de Saúde Mental que buscam implantar o novo

Saúde Mental atualmente, em termos de Eaps, nos

modelo assistencial, mas ainda se deparam com práticas

ajudará a explicitar algumas das relações atuais entre

hegemônicas do paradigma que buscam superar. Procu-

o Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) e o Am-

raremos, também, realizar um mapeamento preliminar

bulatório de Saúde Mental, bem como entre esses dois

das características da Eaps e indicar possíveis avanços a

e a Atenção Básica. Essas relações se dão, sobretudo,

partir de sua implantação.

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A mudança de modelo e a prática dos

como um poderoso suporte para a valia da próspera

profissionais: desafios do cotidiano

indústria farmacêutica.

dos serviços

A proposta de ação da Eaps exige a superação desse paradigma e sua substituição por um novo que seja capaz

As transformações propostas pelo complexo campo

de se situar de modo afirmativo: um paradigma que

da Reforma Psiquiátrica brasileira apresentam grandes

situe a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva, com-

desafios, especialmente aos profissionais de saúde que

preendendo o processo saúde-doença como resultante

cotidianamente têm a tarefa de expandir e consolidar

de processos sociais complexos e que demandam uma

essa mudança. Para isso, seus principais instrumentos

abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e interseto-

são: sua formação permanente, que faculte a redefini-

rial, com a decorrente construção de uma diversidade de

ção e reorganização de seu processo de trabalho, e a

dispositivos territorializados de Atenção e de cuidado.

articulação das alianças, ou mesmo forças antagônicas,

Mais ainda, para esse novo paradigma, produção de

entre os diferentes setores da sociedade; em suma, que

saúde e produção de subjetividade estão entrelaçadas

viabilize a criação e expansão concretas de uma rede de

e são indissociáveis, o que traz como conseqüência a

atenção e cuidados baseada em um território e pautada

radical superação das relações sociais e intersubjetivas

nos princípios de integralidade e participação popular.

sintônicas com o Modo Capitalista de Produção, que é

Esse processo emergente de trabalho deve pautar

o alicerce do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico

sua organização cotidiana na ruptura com o modelo

Medicalizador (Costa-Rosa, 2006).

tradicional. O modelo tradicional, pois, baseia-se no

Esses desafios se tornam ainda maiores, consi-

princípio doença-cura e compreende de forma pre-

derando que essa mudança de paradigma ainda não

dominantemente orgânica o processo saúde-doença,

está presente na formação básica dos profissionais de

além de ser estratificado e hierarquizado por níveis de

Saúde. Essa formação continua sendo organizada em

Atenção. Suas premissas são concretizadas em estratégias

disciplinas e especialidades, com pouca ou nenhuma

de cuidado centradas na sintomatologia e, em conse-

integração, levando os profissionais em formação a um

qüência, predominantemente medicamentosas; além

olhar fragmentado da realidade, conseqüência do Para-

disso, por causa da herança deixada pelas instituições

digma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador,

da reclusão, essas premissas são também hospitalo-

ainda dominante. Formados e formatados no modelo

cêntricas. As aproximações à clientela e à população

médico-centrado hegemônico e em práticas disciplina-

seguem modelos verticalizados e reproduzem os moldes

res, os profissionais se vêem diante da responsabilidade

socialmente dominantes da subjetividade serializada

de implantar uma proposta de mudança de modelo

do Modo Capitalista de Produção. As ações tendem

assistencial que requer uma ruptura radical da maioria

a ser funcionalistas por proporem uma adaptação de

dos conceitos estudados ao longo dos anos de formação,

indivíduos queixosos, ‘desequilibrados’ ou desajustados.

além de necessitarem rever radicalmente concepções

Um aspecto dessa prática que merece ser explicitado,

ideológicas e éticas. Tal situação assume, por vezes,

por sua importância radical, é a ação medicamentosa

características de um impasse.

como única solução para todos os males e sofrimentos,

Esse conflito entre proposta e prática, intenção e

subsumindo as pulsações instituintes que por ventura

gesto, gera uma tensão permanente no cotidiano insti-

estejam presentes nas queixas e impasses, funcionando

tucional revelando a contradição entre os paradigmas

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que sustentam os diferentes modelos de cuidado. Via de

Nesse contexto cresce a consciência de que a crise

regra, os profissionais foram moldados em cursos nor-

na Saúde nada mais é que uma expressão fenomênica

teados pelo paradigma hegemônico, foram organizados

de causas mais profundas que têm sua raiz no modelo

em torno de disciplinas fragmentadas, compartimenta-

de atenção médica vigente, estruturado pelo paradigma

lizadas, com pouca ou nenhuma articulação entre si.

flexneriano. Sair da crise implica, necessariamente,

Os profissionais são estimulados, por exigência

transitar de um modelo de atenção médica, fruto do

do mercado, a se super-especializarem com o aprendi-

paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à

zado e o domínio de tecnologias pretensamente mais

saúde, expressão do paradigma da produção social da

sofisticadas. Uma vez graduados, estão aptos a agir

saúde (Mendes, 2006). A saúde seria concebida como

de forma específica, a ler fragmentos da realidade. Os

estado geral decorrente do modo de se levar a vida em

médicos aprendem a medicar e a ver na medicação a

todos os aspectos: físicos, psíquicos, sociais, econômicos,

solução primeira para qualquer tipo de situação; os

culturais e ambientais.

psicólogos aprendem a realizar uma terapia centrada

Ao Paradigma da Produção Social da Saúde corres-

no indivíduo e em seu sofrimento privatizado; os tera-

ponde o Paradigma Psicossocial. Há uma sintonia das

peutas ocupacionais aprendem a coordenar atividades,

concepções ideológicas, teóricas e éticas entre a Reforma

etc. No entanto, nenhum desses profissionais aprende

Psiquiátrica e a Reforma Sanitária. Isso torna ainda mais

a lidar com as situações cotidianas que os usuários dos

inadiável a questão da formação de novos trabalhadores

serviços de saúde e Saúde Mental necessitam quando

de Saúde Mental e do redirecionamento de outros que

procuram pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como,

se encontram ainda em práticas típicas dos modelos

por exemplo, impasses na subjetividade das pessoas e seu

vigentes, cuja superação se exige. Nossa experiência tem

sofrimento, na maioria das vezes, desencadeados pelo

demonstrado que, no campo da Atenção ao sofrimento

cotidiano, que se desenrola em duras condições sociais.

psíquico, os avanços na direção da Eaps aparecem como

Esses profissionais são incapazes de ouvir o sujeito e sua

o passo mais apropriado para a superação de uma série

dor além da doença, de forma que articule os sintomas e

de impasses decorrentes dessas heranças do Paradigma

sinais em um quadro mais amplo e complexo; raramente

Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Tais im-

estabelecem diálogos que produzam uma integração

passes apresentam-se tanto na forma direta do modelo

com outros profissionais que trabalham a seu lado; não

asilar como na forma do preventivo-comunitário, cujo

compreendem as dificuldades das pessoas em aderir ao

estabelecimento modelo é o Ambulatório de Saúde

tratamento estruturado dessa forma; estranham e se

Mental.

incomodam com as reivindicações das pessoas a res-

O relatório final da III Conferência de Saúde

peito de seus direitos; apresentam grandes dificuldades

Mental, promovida pelo Ministério da Saúde em 2002,

em construir estratégias que ampliem a participação e

apresenta propostas referentes à política de Recursos

autonomia dos usuários.

Humanos, destacando-se que:

A mudança de paradigma não é uma agenda específica da Saúde Mental. Pelo contrário, ela se inclui no conjunto de transformações práticas que têm como prioridade a construção do SUS no contexto da Reforma Sanitária.

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[...] uma política de recursos humanos deve visar implantar, em todos os níveis, o trabalho interdisciplinar e multiprofissional no campo da Saúde Mental, na perspectiva do rompimento dos ‘especialismos’ e da construção de um novo trabalhador em saúde men-

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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

tal, atento e sensível aos diversos aspectos do cuidado, garantindo que todo usuário dos serviços de saúde seja atendido por profissionais com uma visão integral e não fragmentada da saúde. (Brasil, 2002, p. 68). É importante referir, aqui, as ações do Ministério que, no setor da Saúde Mental, tendo à frente representantes dos interesses diretos da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, empreende preciosas ações politicamente orientadas para essa direção, em termos de formação permanente, análise e supervisão institucional dos Caps. Um passo imprescindível nesse momento é reunir e sistematizar todos os conhecimentos capazes de configurar claramente a Eaps. A partir da sistematização desse corpo de conhecimentos, é possível ampliar as bases de reflexão e análise da práxis, tanto da Atenção Psicossocial quanto da própria formação de trabalhadores em ação. Essa nossa experiência indica que a ‘formação em ação’ é a única estratégia capaz de se contrapor efetivamente aos efeitos desastrosos de uma formação universitária

(UBS), acompanhada de um texto que apresentava uma série de sugestões de organização do trabalho das equipes de Saúde Mental nessas Unidades de Saúde e nos Ambulatórios. A abordagem era designada como bio-psico-social. O trabalho em equipe era uma espécie de terra prometida onde, afinal, seria possível mudar o modelo asilar e exercer uma boa assistência à Saúde Mental. Mas a concretização dessa proposta de trabalho em equipes multiprofissionais fez com que ela se transformasse, ao longo dos anos, em um dispositivo burocrático. Tal organização de assistência hierarquizada, tendo a equipe de Saúde Mental da UBS como porta de entrada, contribuiu para se configurarem novas demandas, sobretudo um conjunto de ações ambulatoriais paralelas às do Hospital Psiquiátrico. No entanto, não foi capaz de produzir qualquer impacto na lógica hospitalocêntrica; pelo contrário, produziu um aumento na demanda de internações ao ampliar o acesso da população às consultas psiquiátricas.

que se referencia mais pelas demandas ideológicas co-

A multiprofissionalidade continua na agenda do

nectadas aos interesses socialmente dominantes e menos

dia da Eaps; por isso é oportuno refletirmos um pouco

pelas exigências éticas concretas da realidade da Atenção

sobre ela.

Psicossocial e da Eaps.

Podemos levantar uma questão referente ao fato de a reprodução da divisão social do trabalho no campo da Saúde gerar uma hierarquização das relações, na qual o saber médico impera sobre outros saberes, que cumprem

O Ambulatório de Saúde Mental

um papel secundário, o que reproduz a divisão típica do

como estratégia que visou contra-

Modo Capitalista de Produção. Isso produz uma espécie

por-se à lógica hospitalocêntrica

de divisão de atividades e tarefas em compartimentos com pouca ou nenhuma relação entre si. Um exemplo

Nos anos 1980, a criação dos Ambulatórios de

desta divisão é uma dada situação em que a consulta

Saúde Mental, constituídos por equipes multiprofis-

do psiquiatra é tomada como a atividade prioritária e

sionais, era apontada como um promissor instrumento

essencial. Isso gera uma agenda repleta, atendimentos de

de mudança na realidade o primeiro passo da Reforma

curtíssima duração e com grandes intervalos de tempo

Psiquiátrica. No estado de São Paulo, a Secretaria de

entre uma consulta e outra, visando uma alta produtivi-

Estado da Saúde elaborou também uma proposta de

dade, medida pelo número de consultas. Há, também,

ação em Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde

a consulta, geralmente individual, com o psicólogo, que

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tem longa lista de espera, repetindo o modelo da prática

lizador que, por sua vez, está em sintonia com a lógica

liberal típica de parte do trabalho desse profissional;

da divisão do trabalho do Modo Capitalista de Produ-

por fim, há os grupos de orientação, coordenados pela

ção (Costa-Rosa, 1987). Não há dúvidas de que, sem

enfermeira ou pela assistente social, sempre pedagógicos

uma crítica radical à divisão do trabalho e ao processo

e geralmente à margem das demandas subjetivas espe-

de produção da Atenção vigente no campo da Saúde

cíficas daqueles indivíduos. Esses encaminhamentos de

Mental, não poderemos obter avanços na superação da

um profissional para outro são feitos mediante preen-

estratégia asilar e preventivista ainda dominantes. A Eaps

chimento de uma guia entregue pela recepção, onde se

exige um modo de organização de divisão do trabalho

agendam as consultas. Todos os profissionais se reúnem

mais coerente com a lógica dos modos de produção de

(com dificuldade) uma vez por mês e discutem questões

cooperação uma vez que, para o Modo Psicossocial,

administrativas. Nos cinco minutos finais, um ou outro

não se distinguem o processo produtivo dos efeitos da

caso mais grave é trazido à atenção da pequena parte da

produção e dos beneficiários de tais efeitos.

equipe que permanece até o final da reunião.

No campo psíquico há uma indissociabilidade

A propósito do conceito multidisciplinar, do qual

entre produção de saúde e produção de subjetividade.

surgiu o termo multiprofissional, Japiassu (1976) já

Levar em conta a radicalidade dessa proposição conduz

afirmava que a abordagem multidisciplinar estuda um

a uma possível superação do modo de produção comum

objeto sob diferentes pontos de vista, mas sem que tenha

e a um ‘drible’ das diferentes formas do atravessamento

havido um acordo prévio sobre os métodos a se seguirem

capitalístico dessa produção. Para a Eaps, a superação

ou sobre os conceitos a serem utilizados. Há apenas uma

da divisão parcelada do processo de produção (divisão

justaposição de disciplinas sem que fiquem evidentes as

em especialidades), ainda deverá vir acompanhada da

relações que possam existir entre elas.

capacidade de vislumbrar formas para se alcançar a

Na mesma linha de pensamento, Almeida Filho

transdisciplinaridade. A superação do princípio doença-

(2000) descreve a multiprofissionalidade como uma

cura, pois, exige também a superação do modelo sujeito-

justaposição de disciplinas em um único nível, sem

objeto que define as especialidades e ações no paradigma

cooperação sistemática entre os diversos campos disci-

hegemônico.

plinares. Dessa forma, e segundo esses autores, pode-se

A Eaps implica também na superação da raciona-

definir o multidisciplinar como uma somatória de

lidade implícita no modelo médico hegemônico que

diferentes campos que não estabelecem diálogo e não

determina um modo de organização das práticas de

apresentam nenhuma cooperação entre si necessaria-

saúde, caracterizadas por atividades curativas, indivi-

mente, mantendo seus limites e fronteiras e olhando

duais, assistencialistas e organizadas em especialidades.

sob suas perspectivas e a partir de seus lugares para um

O Paradigma da Produção Social da Saúde pressupõe o

mesmo objeto, no caso, o sofrimento psíquico. A equipe

planejamento das ações de Atenção de modo integral,

multiprofissional, por esta caracterização, já está fadada

baseadas no trabalho em equipe e nas práticas coletivas

a ser um apenas um agrupamento de profissionais de

de saúde, superando a atual racionalidade que está

distintas áreas que ocupam o mesmo espaço físico.

pautada numa prática privada e regida por uma lógica

Essa configuração multiprofissional, já analisada e

de mercado. Nessa lógica existe apenas a sociedade

criticada desde muito cedo, está de acordo com a lógica

colocada de modo figurado, ou a parceria, movida a

do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-

interesses comerciais.

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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

Uma proposta de trabalho em equipe para a Eaps

qual também já se conhecem várias coordenadas e que

precisa reconhecer os processos cotidianos de trabalho

é enunciado como estratégia dominante no discurso

como áreas de tensão e interesses sociais conflitantes

oficial do Ministério da Saúde.

encarnados por distintos atores, para justamente pôr

Um sujeito em crise que se recusa a ir à institui-

a salvo desse conflito maior os interesses imediatos

ção sob pretexto de que lá é lugar de louco; a família

dos sujeitos do sofrimento. Com isso, seria permi-

que exige internação de um de seus membros em um

tido que eles tomassem uma posição nos conflitos e

hospital psiquiátrico, reproduzindo a inércia do hábito

contradições que os atravessam; conflitos esses que se

já instituído; o morador de rua que incomoda os vizi-

expressam no sofrimento que, por sua vez, manifesta-se

nhos por se encontrar em sofrimento psíquico grave;

em sua história. Além disso, remover as conquistas da

o usuário que estabelece uma relação de dependência

Reforma Sanitária sobre a participação dos usuários e

com a instituição. Como resposta da equipe a essas

da população no planejamento, gestão e avaliação dos

situações, ouvimos com muita freqüência as seguintes

dispositivos institucionais não deixa de ser um modo

falas: “O usuário não quer vir? Não é mais de nossa

de abrir a oportunidade para eles de participação na

responsabilidade, então.”; “A família pede internação?

metabolização da contradição maior. Sair da posição de

Pois que interne.”; “Morador de rua? Isso é problema

objeto exigirá um exercício rotineiro nos vários aspectos

da Assistência Social do município.”; “O usuário está

da práxis concernente ao novo paradigma.

em crise no serviço? Chama o psiquiatra para medicar!”; Se o usuário está tendo uma crise no meio da rua, “Chama-se a polícia” Além das características que já foram apresentadas

A permanência micropolítica do hegemônico A prática encontrada em diferentes Caps, principal dispositivo para a implantação da atual política de Saúde Mental, revelam que a lógica ambulatorial ainda está amplamente presente no sistema e de forma aparentemente intacta. Prática essa bem distante daquela idealizada pelo modo da Atenção Psicossocial, cuja ética implica na ousadia de buscar o novo. Isso ocorre ainda com mais freqüência nos lugares em que a implantação do Caps se deu a partir do Ambulatório de Saúde Mental. Os exemplos a seguir demonstram situações desafiadoras que as equipes encontram no cotidiano, nas quais se apresenta a tensão permanente que há entre um paradigma hegemônico de cuidados que já se conhece, e que o discurso oficial pretende superar, e outro paradigma que se pretende construir a partir da prática, do

sobre esse modelo hegemônico, é oportuno apresentar outras características desanimadoramente freqüêntes nas ações realizadas em muitos dos Caps: atos norteados por valores e julgamentos morais como “Não faça mais isso, fulano. É muito feio!”; “Quem não se comportar direito não ganha o ovinho de Páscoa!”; “Quem vai acompanhar os usuários? Eles não podem sair sozinhos!”; “Que gracinha, nem parece que são doentes mentais!” Frases como essas revelam que o sujeito do sofrimento é infantilizado e a atuação da equipe se pauta na ‘correção’ e ‘educação’ de seus comportamentos. Certa vez, um usuário, irritado, afirmou, a respeito do Caps que freqüenta: “Isto aqui parece uma creche para doido!” Sobre esse tema Foucault afirma: [...] a loucura encontra-se inserida no sistema de valores e das repressões morais. Ela está encerrada

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num sistema punitivo onde o louco, minorizado, encontra-se incontestavelmente aparentado com a criança, e onde a loucura, culpabilizada, acha-se originariamente ligada ao erro. (1975, p. 84). A lógica presente nesse modo de atenção à Saúde Mental submete os sujeitos do sofrimento e os próprios trabalhadores a um lugar de sujeição, produção e reprodução de subjetividades enquadradas, conformadas e bem-comportadas: produção de afetos tristes, renúncia à potencialidade criativa, ao desejo, à autonomia. Não há Caps aqui, apenas mais uma instituição de Saúde Mental organizada a partir da mesma lógica hegemônica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Essa persistência micropolítica da lógica paradigmática hegemônica também só poderá ser adequadamente enfrentada com a ampliação dos espaços de formação (formação continuada) e de exercício analisado (análise e supervisão institucional), que já fazem parte das iniciativas de formação dos Trabalhadores de Saúde Mental

sua demanda, e do trabalhador com sua subjetividade e caixa de ferramentas (Merhy, 2002). Ao romper com a visão biológica reducionista e propor a desmontagem dos conceitos basilares da psiquiatria hospitalocêntrica e medicalizadora, a Reforma Psiquiátrica, alinha-se na perspectiva de uma crítica aos fundamentos da racionalidade científica moderna (relação sujeito-objeto, reducionismo, determinismo) e propõe inventar o seu campo teórico-conceitual, estabelecendo um intenso diálogo entre os diferentes campos do saber e conhecimentos acerca do humano. Produz, também, um turvamento entre os limites e fronteiras, constituindo possibilidades diversas para pensar e fazer. Essa é uma perspectiva semelhante à que Passos e Barros (2000) denominam transdisciplinaridade que: subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76). Essa proposta é ousada, de alto risco e, ao ser intro-

(TSM), componentes da atual política de Atenção

duzida na práxis cotidiana, visa à produção do disforme,

Psicossocial do Ministério da Saúde.

à emergência do sem contornos, que mais desorganiza do que orienta, que institui o próprio processo de instituir. Dessa forma, o pensamento corre riscos, assume o perigo de se perder na indiferença e no relativismo, estando

Inventar a transdisciplinariedade

sujeito à inércia do ‘tudo ou nada vale o mesmo’. É um

como meio necessário da Eaps

grande desafio constituir esse saber fazer nos interstícios dos campos disciplinares. Ou, como propõem Passos e

A equipe é o alicerce, o principal instrumento de

Barros (2000), com base em um conceito de Deleuze,

intervenção, invenção e produção dos cuidados em

nos “intercessores”, naquilo que se dá no “entre”, no

Atenção Psicossocial. Produção que se dá no agencia-

momento em que ocorre.

mento das pulsações da demanda social e dos afetos para

Não são apenas diferentes disciplinas que analisam

se produzirem vínculos na negociação de interesses di-

um mesmo objeto; a própria consistência do objeto é

vergentes e se construir a ética da Atenção Psicossocial na

transformada. É preciso se abrir às fronteiras e fazer tran-

pactuação familiar e social para um projeto de cuidado;

sitarem conceitos e categorias, transmudarem os olhares

agenciamento esse, enfim, das relações que emergem no

dos sujeitos em ação, transformarem-se os modos de

encontro que se dá entre o sujeito do sofrimento com

pensar, transformarmo-nos como sujeitos, já que se trata

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YASUI, S.; COSTA-ROSA, A.



A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

de um processo de construção de novas subjetividades.

formas de saída da subjetividade serializada que, mor-

Como diz Edgar Morin (2000), trata-se do desafio do

mente, vem associada ao sofrimento e aos sintomas, para

pensar complexo que remete à dialética e à revisão das

outras subjetividades e subjetivações capazes de escapar

teorias de subjetividade.

ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-

No meio de aparentes desencontros é que reside a

lizador e ao Modo Capitalista de Produção.

estratégia para se produzirem os encontros dos sujeitos do

Conectar-se aos horizontes teóricos, técnicos e

sofrimento com a equipe. Como concretizar, no dia-a-dia

éticos da Atenção Psicossocial significa estar sempre

de trabalho e de produção da atenção, esta transdisciplina-

atento aos riscos de se recair na alienação do que já está

ridade? Aqui, podemos evocar a experiência vivenciada no

instituído. É preciso estarmos sempre atentos para que

Caps Luiz Cerqueira, no qual foi possível realizar um traba-

nas finas teias do cotidiano não sejamos capturados pela

lho que muito se aproximou da proposta transdisciplinar,

lógica do conformismo e da repetição, pois este é um

e que poderia ser sintetizado da seguinte forma: o trabalho

processo que se constrói em um movimento contínuo

em equipe é aquele em que os profissionais adotam uma

de desfazer e fazer, desconstruir e construir. Desconstruir

posição de humildade frente ao sofrimento psíquico, este

conceitos e categorias, redefinir as modalidades dos

nosso objeto complexo, e o existir por ele contextualizado.

vínculos intersubjetivos, inventar novas possibilidades

Apenas uma solidária e despojada atitude de diálogo (in-

semânticas e teóricas, desfazer os limites disciplinares

tenso e complexo), pode começar a sondar e contemplar

para tornar novas as produções. Trata-se aqui de um

a amplitude de tal complexidade (Yasui, 1989).

novo agenciamento de pulsações da demanda social e

Isso se reflete na organização dos processos de traba-

dos afetos, para se produzirem vínculos, que não deixam

lho, construídos como uma criação coletiva, de relações

de ser transferenciais; negociações entre interesses diver-

horizontais, que aspira à transversalidade proposta por

gentes presentes nas dimensões micro e macropolítica do

Felix Guattari (1981), e com uma efetiva participação

território; pactuações para um projeto de Atenção e cui-

dos sujeitos do sofrimento e seus familiares. A concre-

dado, que se fazem a partir das relações e nas relações que

tização desse projeto implica em: considerar e ativar os

emergem no encontro entre as demandas dos sujeitos e

dispositivos existentes no território; na responsabilização

as ofertas de possibilidades transferenciais, ou seja, entre

pela demanda, especialmente nos momentos de crise;

o sofrimento dos sujeitos e a capacidade de continência

na criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado

da equipe. Não há dúvidas de que essa capacidade de

aumentando a responsabilidade de cada profissional, não

agenciamento por parte das equipes também é moldada

apenas nas decisões e nas competências para o projeto de

pela plasticidade de sua subjetividade e pela desenvoltura

cuidados, mas também na gestão dos dispositivos insti-

complexa de sua ‘caixa de ferramentas’.

tucionais. Isso implica, de outra parte, uma flexibilidade na execução de tarefas distintas e intercambiáveis. É necessário reconhecer, e não esquecer, que somos atores de uma prática social, que têm a potencialidade, por

A Estratégia Atenção Psicossocial

meio dos encontros que ensejamos no cotidiano de nossa práxis, de produzir novos processos de subjetivação, de

A seguir são apresentados alguns pontos para um

produzir modos mais autônomos de viver e de fazer a

início de discussão acerca de uma definição possível

diferença. Essa diferença está encarnada em diferentes

da Eaps.

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YASUI, S.; COSTA-ROSA, A.



A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental

Yasui (2006) apresenta a idéia de compreender o

instâncias aptas a responder à especificidade das demandas

Centro de Atenção Psicossocial como uma estratégia de

que lhes são atribuídas: demandas específicas de sofrimen-

transformação da assistência, concretizada pela organiza-

to psíquico com exigências de intensidade variada, que

ção de uma ampla rede de cuidados em Saúde Mental, e

vão da exigência máxima que define o Caps atual, até as

que não se limita ou se esgota em sua implantação como

intensidades variadas que definem atualmente, de modo

um serviço de saúde.

geral, o Ambulatório. Sobretudo, a Eaps permitirá consi-

Neste texto, nomeamos claramente e E aps ,

derar a atenção a um conjunto importante e numeroso de

definindo-a a partir dos quatro parâmetros do Modo

problemáticas dentro da especificidade da atenção à saúde,

Psicossocial e das transformações nas dimensões epis-

impedindo a medicalização e psicologização, geralmente

temológicas, técnico-assistenciais, jurídico-políticas e

resultantes do modelo atual.

culturais (Costa-Rosa; Luzio; Yasui, 2003; Amarante; 2007). Tal definição deve incluir, ainda, os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária, particularmente a participação popular no planejamento, gestão e controle das instituições de Saúde, bem como a concepção de integralidade das problemáticas de saúde e da ação territorializada sobre elas. Essa realização prática da Eaps se opera pela agregação da tática do Matriciamento, já exercitada em alguns municípios e posta em ação pelo o Ministério da Saúde, conforme a Portaria 154/2008 (Brasil, 2008), que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf). A Eaps é uma lógica que perpassa e transcende as

É necessário ressaltar, também, que na Eaps não interessa mais se as problemáticas são de alta ou baixa complexidade. Nas ações de matriciamento, ou nas ações específicas dos serviços Caps, tudo é considerado de alta complexidade, o que pode diferir é a especificidade do saber e da ação exigidos. Também não se trata apenas de organizar os novos dispositivos institucionais em algum sistema de referência e contra-referência: o sujeito será sempre compreendido como aquele que está inserido no território e, mesmo quando for alvo de ações específicas de Caps ou ambulatoriais, não deixará de estar adscrito à ESF nem de participar das ações simultaneamente

instituições enquanto estabelecimentos, tomando-as

realizadas por ela; por isso a ESF deverá ser sempre a

dispositivos referenciados na ação sobre a demanda

referência maior da Eaps.

social do território, distanciando-se, dessa forma, de um sistema organizado e hierarquizado por níveis de complexidade da Atenção. A Eaps, uma vez operando e concretizando o principio da integralidade na produção da atenção e cuidado, através do matriciamento, da atenção básica e com a Estratégia de Saúde da Família, poderá dar outro sentido

R E F E R Ê N C I A S

aos estabelecimentos Caps e seu atual segmento de ações ambulatoriais. Poderá ajudar, também, na compreensão de que a persistência do Ambulatório, que convive com o Caps em um mesmo território, significa a reincidência no preventivismo, longe, portanto, da lógica da Atenção Psicossocial. Permitirá, ainda, re-configurar os Caps como

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation of the Mental Health professional in the context of health promotion

Walter Ferreira de Oliveira

1

Doutor; professor do Departamento

RESUMO Este texto discute algumas bases conceituais da Saúde Mental e aspectos

de Saúde Pública do Centro de Ciências

relativos à inserção do profissional de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde

1

da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

(SUS), na perspectiva da promoção da saúde. Algumas enunciações do conceito de

[email protected]

Saúde Mental são examinadas à luz dos confrontos paradigmáticos proporcionados pela perspectiva multiprofissional. Os temas abordam as necessidades fundamentais da formação em Saúde Mental, fortemente influenciada por fatores culturais, econômicos e sociais. Aponta-se uma necessidade de maior discussão, no campo da Saúde Mental, sobre suas bases conceituais e outros temas inter-relacionados. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Saúde pública; Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT This paper brings a discussion about some conceptual bases of Mental Health and aspects related to the insertion of the Mental Health professional in the Single Health System (the so called SUS in Brazil), in the perspective of health promotion. The conceptualization of Mental Health is examined in light of the paradigmatic confrontations propitiated in the multiprofessional context. The themes herein stated respond to a fundamental need in the context of professional formation in Mental Health which is strongly influenced by cultural, economic and social factors. The need of more discussion on the Mental Health concepts and other related themes are herein pointed out. KEYWORDS: Mental Health; Public health; Single Health System. 

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

I N T R O D U ç ão

texto da Reforma Psiquiátrica. Propõe-se um novo olhar sobre e um novo lugar social para a loucura, tomada como referência emblemática; é preciso identificar a Reforma Psiquiátrica a partir desse novo olhar e desse novo lugar social (Amarante, 1995). Mas há outros temas a

Desafios conceituais e

serem explorados na perspectiva do cuidado, da promo-

paradigmáticos em Saúde Mental

ção da saúde e das ações preventivas. Alguns passos têm sido dados nesse sentido, por exemplo, ampliando-se a

O campo profissional da Saúde Mental é vasto,

compreensão de certos estados psíquicos diagnosticáveis

multidimensional e tem grande importância no con-

como possíveis insanidades, para modos diferenciados

texto da saúde coletiva. Encontra-se em um momento

de vivenciar o cotidiano e que traz conseqüências para

histórico de transição paradigmática, que tem como uma

a qualidade da vida de muitos sujeitos estigmatizados

de suas características a força que ganham propostas de

como ‘loucos’ ou ‘anormais’.

reestruturação epistemológica, técnico-assistencial e

Apesar dos avanços, na prática, os profissionais,

político-jurídica, cujo maior impacto reside no desafio

nem sempre conseguem deixar de ter como foco prin-

da psiquiatria hegemônica como dispositivo de máximo

cipal o controle dos sintomas, dos corpos e das vontades

poder na área (Amarante, 1995). O enfraquecimento da

de pessoas diagnosticadas como portadoras de transtor-

hegemonia psiquiátrica favorece abordagens, em Saúde

nos mentais (Rosa, 2006; Scalzavara, 2006; Oliveira;

Mental, a partir de bases conceituais mais diversificadas

Dorneles, 2005). Coloca-se, então, uma questão

e, particularmente, uma visão mais fenomênica, mais

crucial: como desenvolver ações de Saúde Mental na

social e interativa do universo psíquico, que desprivilegia

perspectiva da responsabilidade sanitária exercida efe-

o domínio quase exclusivo do referencial nosográfico da

tivamente em serviços territorializados e promotores da

psiquiatria descritiva tradicional, inclusive no campo

saúde? A questão ressalta a necessidade de se continuar

clínico (Moreira; Sloan, 2002).

com questionamentos, reflexões, problematizações sobre

A Reforma Sanitária brasileira apóia-se em uma

e a busca pela operacionalização dos novos conceitos e

definição ampla de saúde, que procura não usar a doença

paradigmas na prática cotidiana do cuidado sanitário,

como referência primordial. No caso específico da Saúde

bem como na perspectiva das relações interpessoais,

Mental, a busca é por uma definição de sanidade que

interdisciplinares e multiprofissionais, de forma a se

não tome como referência fundamental a patologia sob

construírem e operarem interações promotoras de saú-

a óptica médico-psiquiátrica. Essa idéia não só provoca

de. Além disso, ressalta-se a necessidade de as práticas

novos entendimentos do processo saúde-doença, na

preventivas e reabilitadoras serem repensadas de forma

perspectiva psicossocial, como estrutura o modelo de

que sejam contextualizadas no projeto do SUS.

atenção para a rede de Saúde Mental como um todo.

A formação dos profissionais de Saúde Mental,

O compromisso da responsabilidade sanitária, que

entretanto, ainda se constitui, explícita e, às vezes, sub-

se vem discutindo intensamente no âmbito do Sistema

repticiamente como uma antítese das propostas das

Único de Saúde (SUS), inclui um reexame das posturas

Reformas Sanitária e Psiquiátrica. O profissional está,

éticas profissionais (Campos, 1997). Novas posturas e

via de regra, à mercê de currículos que marginalizam

novas abordagens tornam-se temas importantes no con-

a Saúde Mental e o submetem à psicopatologia tradi-

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cional, privilegiam procedimentos clínicos quase que

vés de seus questionamentos. Mas, esse profissional

exclusivamente aplicáveis a consultórios e ambulatórios

também traz consigo contradições inerentes à sua

tradicionais e promovem a medicalização da vida coti-

formação, com sua raiz na literatura psiquiátrica tra-

diana, o que vai além da corriqueira medicamentação,

dicional. Esta, através dos tempos, cristalizou idéias

passando para toda uma postura cultural que transforma

que são assimiladas, repetidas e perpetuadas de forma

condições sociais e culturais em problemas de ordem mé-

ostensiva ou sub-reptícia nos ambientes curriculares e

dica. Além disso, há o currículo oculto, que desfavorece

extracurriculares. O contraponto é dado pela incor-

a autonomia do cidadão usuário dos serviços de Saúde

poração gradativa, ainda que marginal, de um corpo

Mental, fomentando a tutela e as assimetrias de poder

literário que vem surgindo nos últimos 30 anos a partir

que permeiam as relações profissionais e institucionais

do movimento da Reforma Psiquiátrica.

(Oliveira, 2003). A superação dessa situação é um dos

No período de graduação dos cursos da área da

maiores desafios no contexto da Reforma Psiquiátrica.

saúde, embora os níveis de discussão variem de acordo

Nesse sentido, ainda há muito a se debater (sobre a

com o curso, as idéias são em geral apresentadas sem

evolução das bases conceituais e das representações

que se enfatizem os embates epistemológicos travados,

sociais da Saúde Mental, por exemplo) e a se repensar

desde o século 18, em torno dos conceitos de saúde,

como, por exemplo, as idéias que foram se cristalizando

Saúde Mental e doença mental. Na pós-graduação,

no campo da psiquiatria e que estruturam grande parte

esse quadro melhora para os profissionais que aten-

do pensamento dos profissionais de Saúde Mental, no

dem às áreas confluentes da saúde e das Ciências

momento de sua formação acadêmica.

Humanas e Sociais.

Nossa reflexão sobre a evolução do universo con-

Afinal, quais são as idéias, os conceitos e a filosofia

ceitual em Saúde Mental é extremamente limitada, e

da prática que são transmitidas aos estudantes da área

toma por base metodológica uma análise bibliográfica

como verdades inquestionáveis e, além de tudo, em um

focada em obras de autores que se tornaram marcos

ambiente de sala de aula, intimidador, pouco convida-

proeminentes tanto no que se refere à historicidade da

tivo à crítica e perenemente condicionado pelas notas

formação acadêmica como no que diz respeito à for-

obtidas nas avaliações?

mação profissional a partir do que propõe a Reforma

A história da psiquiatria constitui uma rota concei-

Psiquiátrica. Torna-se possível, dessa forma, esboçar

tual que tem como marco o trabalho de Philippe Pinel,

algumas considerações frente às atuais políticas de Saúde

considerado por muitos o pai da psiquiatria e defensor

Mental propostas no contexto do SUS.

dos direitos humanos, conforme os cânones da Revolução Francesa, da qual foi deputado. Pinel era adepto do chamado tratamento moral, baseado na idéia de que a disciplina e a moralização do comportamento, exercidas

VERTENTES FUNDAMENTAIS NA

em ambiente hospitalar, eram os principais elementos

FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

potenciais de cura das doenças mentais (Alexander; Selesnick, 1980). Isto se coadunava perfeitamente com al-

O profissional de Saúde Mental contribui, com

guns preceitos estabelecidos pela nova ordem capitalista

sua emergente presença nas unidades de saúde geral,

imposta pela burguesia, agora dominante. A organização

para oxigenar o sistema de saúde como um todo atra-

da existência humana nos moldes capitalistas torna de-

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

sejável que os corpos não abriguem condições limitantes

Um dos legados da nosologia de Kraepelin é a idéia

ao trabalho, condições que podem ser produzidas por

de que não há cura para transtornos mentais graves,

problemas inatos ou por vidas desregradas. É preciso

como as síndromes psicóticas. Existe também a palavra

cuidar dos corpos, atitudes e comportamentos, além de

‘alienado’, oriunda da dicotomia colocada e usada para se

controlá-los e normalizá-los. A noção de normalidade

explicar e descrever a doença mental entre razão e desati-

torna-se importante e a prevenção e reabilitação passa

no. O doente mental, por não dispor da razão, não pode

pelo controle, inclusive moral, das pessoas em todas as

participar adequadamente da comunidade social; sua

suas instâncias (Foucault, 1986; 1999). Surge, desta

própria natureza o aliena da convivência sadia e normal

forma, uma linha de pensamento e ação em saúde, cujo

(Almeida Filho, 1999). As idéias de que os alienados

objetivo é a normalização dos comportamentos e cuja

não são capazes de contribuir produtivamente com a

principal medida é a capacidade de produção.

sociedade e de que apresentam um razoável potencial

A medicina se compromete, concomitantemente,

de periculosidade são, então, estabelecidas. O esquema

com o pensar científico da época, que busca as causas

moral e nosográfico impregnou as páginas dos textos di-

definitivas das doenças em substratos patológicos orgâ-

dáticos utilizados largamente na formação de psiquiatras

nicos subjacentes. No final do século 19 surgiu, como

e, por contingência, de outras disciplinas ligadas à Saúde

resultado, a nosologia de Emil Kraepelin, psiquiatra

Mental. Passou-se a aceitar como verdades absolutas

alemão que se dedicou à descrição minuciosa de todos

essa idéia de que as pessoas com problemas mentais são

os comportamentos apresentados pelos ‘doentes mentais’

desatinadas, improdutivas, perigosas, incuráveis e que

e à definição de síndromes identificadas com estes com-

seu tratamento deve ser feito em regime de estrita tutela,

portamentos, permitindo uma sistematização substancial

baseado no controle cuidadoso de seus comportamentos,

do trabalho semiológico em psiquiatria e conferindo um

normalizando-os e moralizando-os.

status de ciência clínica a esta especialidade, tornando-a mais respeitável no âmbito da medicina geral.

Na contra-hegemonia surge o trabalho de Freud, mas algumas questões importantes pendiam sobre sua

As obras de Pinel e Kraepelin, assim como as de

obra. Primeiro, a psicanálise não se enquadra no restrito

outros psiquiatras como Esquirol e Janet, permitem

esquema experimental que a ciência positivista domi-

que diagnósticos psiquiátricos cada vez mais específicos,

nante aceitava como legítimo; segundo, Freud trabalhou

que levem em consideração os comportamentos (sinais)

com populações restritas, principalmente com a classe

e sentimentos (sintomas) expressados pelos pacientes,

social mais privilegiada da Europa do fim do século 19

sejam estabelecidos. Essa psicopatologia descritiva per-

(embora os estudos das forças hegemônicas também

mite que os médicos psiquiatras estabeleçam ‘verdades

tenham sido, em sua quase totalidade, restritos a sujeitos

científicas’ e mantenham sob controle a determinação

internados em manicômios). Apesar de sua psicologia

do cuidado à doença mental. A verdade sobre a doença

dinâmica ser considerada contra-hegemônica, ainda é

mental, estabelecida pelo esquema nosográfico-compor-

de natureza essencialmente determinista e baseada em

tamental, afirma-se como instrumento de poder médico;

estudos de casos patológicos.

uma vez ensinada sob esta óptica, a psicopatologia passa

Em 1913, Karl Jaspers lançou Psicopatologia geral,

a ser aceita como verdade natural. E ela é apresentada

propondo uma abordagem fenomenológica e existencial do

dessa forma até hoje, tendo como ‘bíblia’ o DSM-IV-

psiquismo. Localizamos três vertentes importantes (psico-

TR® da American Psychiatric Association (2003).

patologia descritiva, psicologia dinâmica e fenomenologia

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

existencial) para o futuro desenvolvimento do pensamento em Saúde Mental; vertentes essas que até hoje marcam profundamente a formação dos profissionais da área.

mana tem um significado maior e um valor profundo, tem mais resistência à descompensação emocional do que aqueles que têm atitudes e sentimentos que levam à insegurança.(p. 2324). Por outro lado, Ginsburg (1955) privilegia a capacidade de se relacionar com o meio, que se manifesta

DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL EM SAÚDE MENTAL No início do século 20, o movimento higienista ganha grande força na psiquiatria, afirmando o interesse pela anormalidade e a intervenção preventiva da psiquiatria na vida pessoal, comunitária e institucional. A essa altura o repertório psiquiátrico já incluía a noção de impossibilidade de os esquizofrênicos estabelecerem relações adequadas, o grande sintoma da esquizofrenia na visão da nosologia de Kraepelin. Essa característica, aliada àa noções de periculosidade e improdutividade, passou a estereotipar por contraposição as maneiras de ser da normalidade na visão da psiquiatria; visão essa que consolidava a afirmação peremptória do sistema capitalista. Algumas repercussões desse jogo de forças

em três áreas principais: amor, trabalho e prazer. Ele enfatiza como sinais de uma mente sã a habilidade de reter um emprego, ter uma família, manter-se sem problemas com a lei e aproveitar as oportunidades de obtenção de prazer. (p. 2324). A noção de sanidade estava centrada, portanto, na adaptação social e cultural mediada pela segurança pessoal e confiança na vida e no próximo, na participação alegre de um jogo cujas regras eram estabelecidas no contexto de um complexo social e ideológico hegemônico e na habilidade em se adaptar à sociedade como ela é, aproveitando as oportunidades que ela oferece para o encontro da felicidade. Tornam-se automaticamente suspeitos não só aqueles que se encontram em forma radical de alie-

ideológicas no território da epistemologia da Saúde

nação (os chamados loucos), mas também aqueles que

Mental são flagrantes. Em 1947, Karl Menninger (apud

questionam, angustiam-se ou não aceitam as propostas

Brown, 1958, p. 2324), enuncia a seguinte definição

de participação social oferecidas pelo sistema.

de Saúde Mental:

Essas, e outras definições de mesmo tom, tornam-se importantes referências e compõem o universo conceitual

Adaptação dos seres humanos ao mundo e a outros com o máximo de efetividade e felicidade. Não somente eficiência, ou apenas contentamento - ou a graça de obedecer alegremente às regras do jogo. É tudo isto junto, os comportamentos que implicam consideração social, e uma disposição alegre. Também emblemáticos, Ewalt e Fansworth (apud Brown, 1975) definem o indivíduo saudável como sendo aquele: que tem confiança em si mesmo e nos outros, um senso de competência e um sentimento de que a situação hu-

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dos livros-texto de psiquiatria dos países alinhados com o sistema de produção e o modus vivendi capitalista, como o Brasil. Tais definições acabaram por nortear, nas décadas seguintes, os principais textos psiquiátricos, como os de Mayer-Gross (Inglaterra), Kaplan (EUA), Honório Delgado (Espanha) e Henry Ey (França) entre outros; passaram, também, a apresentar ressonância em textos das áreas de psicologia, enfermagem psiquiátrica e terapia ocupacional que, mesmo trazendo eventuais críticas ao modelo biomédico, aceitavam como base as verdades científicas já estabelecidas nos textos psiquiátricos a respeito da loucura.

OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

Essa linha de pensamento, assim como as linhas

temente vinculada a uma epistemologia essencialmente

contra-hegemônicas, continuava abordando a Saúde

positivista, ao discurso da promoção, privilegiando-se

Mental a partir da doença. A Organização Mundial da

a quantificação de procedimentos, a protocolização

Saúde (OMS) problematizou o assunto ao lançar no

de ações e a avaliação por alcance de metas gerenciais

preâmbulo de sua constituição, em 1946, a idéia de que

estabelecidas por planejamentos normativos.

saúde não podia ser considerada apenas como a ausência

A promoção da saúde questiona a atuação dos serviços

de doenças, mas um estado de bem-estar físico, mental

com base na objetividade e na quantificação. Como estabe-

e social. Essa forma de compreender a saúde é simultâ-

lecer medidas efetivas para a Saúde Mental, ou objetivar a

nea ao lançamento de O normal e o patológico (1943),

análise da condição psíquica, sem voltar a privilegiar uma

de Canguilhem, que questiona a epistemologia vigente

nosologia hoje posta sob suspeita do ponto de vista da

até então na saúde e com grandes repercussões na Saúde

eficácia terapêutica? (Moreira; Sloan, 2002).

Mental. Esse filósofo discutiu de forma aprofundada a

Não existem definições claras que nos ajudem a

questão de a saúde poder ou não ser considerada como

elucidar e quantificar a Saúde Mental, para fins de diag-

um conceito dentro dos padrões da ciência. O autor

nóstico e tratamento e as que existem têm sua credibili-

conclui que sim, mas faz uma ressalva: há uma forma

dade em cheque, como é o caso dos testes psicológicos

de encarar a saúde que é subjetiva, pessoal e outra mais

e de muitas escalas diagnósticas baseadas em contagem

objetiva, científica (Canguilhem, 1990). Essa idéia se

de itens sintomáticos. A questão pode ter significados

contrapunha àquelas de alguns autores da escola feno-

diferentes para profissionais que subscrevem uma abor-

menológica, sobretudo os mais radicais, para os quais

dagem fenomenológica, existencial, qualitativa ou dinâ-

a saúde é uma manifestação exclusivamente de caráter

mica, e para gestores e avaliadores que determinam, com

pessoal, absolutamente privado, só podendo ser avaliada

base no desempenho objetivo e quantitativo, a alocação

pela pessoa que a vivencia (Almeida Filho, 1999).

de recursos nos âmbitos público e privado.

Tal problematização epistemológica, tanto quanto a

Na medida em que se acirram, e não se resolvem,

definição da OMS de 1946, trouxe conseqüências para

as tensões entre a hegemonia do modelo tradicional e a

decisões sobre saúde coletiva. A partir desse entendimento

postura de Reforma Psiquiátrica, os profissionais de Saúde

da saúde, como sendo um estado de bem-estar, ou uma

Mental sofrem a ação de fatores estressantes que obstaculi-

manifestação subjetiva, um atributo que se pode obje-

zam seu desempenho profissional, obrigados a fazer, muitas

tivar e até mensurar, fundam-se diferentes maneiras e

vezes, concessões que os desmotivam e os angustiam.

possibilidades de programar, ou não, ações a promovam e reabilitem. Dependendo do conceito de Saúde Mental sobre o qual se fundamenta, é possível pensar em que consiste a sua manutenção, promoção e reabilitação. Embora o discurso da saúde coletiva inclua o objetivo da promoção, as discussões acima colocadas não

CONTRIBUIÇÕES DO MODELO CULTURALISTA, DA ANTIPSIQUIATRIA E DA PSICOLOGIA SOCIAL

são, a nosso ver, suficientemente contempladas nas discussões clínicas, curriculares ou nos processos de gestão

O modelo biomédico segue a tradição hegemôni-

e planejamento. Essa evasão intensifica a confusão que

ca e, portanto, dicotomiza saúde e doença. Na lógica

se instala a partir da contraposição de uma prática, for-

prevalente, o avanço de um lado significa a menor

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

ingerência do outro, isto é, quanto mais uma pessoa se

e o termo enfermidade (illness) para as características

encontra doente menos possibilidades há de que seja

culturais da doença. Patologia refere-se à ocorrência ob-

considerada saudável e vice-versa. Essa premissa, aceita

jetiva de funcionamento anômalo dos sistemas orgânicos

com reservas, na clínica médica, torna-se complicada no

ou fisiológicos. Na categoria enfermidade, incorpora-se

terreno mental que contempla a idéia de que um indi-

a experiência e a percepção individual relativas a uma

víduo pode, por exemplo, apresentar sinais de doença

variedade de problemas decorrentes da patologia, bem

mental e, ao mesmo tempo, funcionar de forma saudável

como a reação pessoal e social à enfermidade, ou seja, o

em outros planos existenciais ou temporais. O modelo

significado atribuído pessoal e culturalmente à doença.

tradicional, ancorado na descrição e quantificação de

A Antropologia Médica potencializou um novo olhar

sintomas, se traduz em uma prática institucional que

sobre a apresentação e o curso das doenças mentais. Sob

desconsidera as potencialidades humanas e estigmatiza

sua óptica, as apresentações, percepções, significados e

por meio de diagnósticos que definem uma condição

evolução das doenças não constituem uma realidade ob-

como irreversível, apenas controlável por medicamen-

jetiva e inquestionável, como preconiza a psicopatologia

tos. Por outro lado, essa mesma maneira institucional

descritiva, mas ocorrem de acordo com o sujeito, com o

reforça a promiscuidade terminológica saúde/doença

grupo sociocultural e com a interpretação e significância

como Zusman (1975) ilustra:

que lhe são atribuídas pela sociedade e pelos próprios profissionais da área. Além de se contrapor a uma nosologia

Instituições de ‘saúde mental’ normalmente atendem a “doentes mentais.” Profissionais de saúde mental são especialistas em tratamento de doenças mentais e têm relativamente pouco treino em saúde mental. Muitos questionários aplicados à população com a intenção de medir a saúde mental na verdade focalizam sintomas de doenças mentais. (p. 2324).

que reconhece uma evolução da doença independentemente da subjetividade, a abordagem antropológica tira o foco da doença e o coloca na pessoa que sofre e nos sujeitos que a circundam, inclusive o profissional que a diagnostica e trata. Essa é uma proposta radical para evolução do pensamento sobre a doença mental, embora, como enfatiza Almeida Filho (1999), a doença ainda seja

Para Ronald Laing (1959; 1967) e Thomas Szasz

a referência para se pensar a saúde.

(1974), o diagnóstico é uma construção social e política

A antipsiquiatria, na década de 1960, marcou uma

de base econômica e cultural; essa discussão é retoma-

nova aderência à fenomenologia existencial e uma transi-

da no campo da Antropologia Médica sobretudo por

ção para as definições reformistas contemporâneas, enfa-

Kleinman (1988) e Young (1982). A contribuição epis-

tizando o condicionamento social da construção coletiva

temológica desses autores é suficientemente vasta para

da experiência e das identidades de grupos e indivíduos

merecer uma revisão à parte, trabalho a que se dedicou

(Szasz, 1974). Uma criança, argumenta Laing (1967),

Almeida Filho (1999).

começa já em tenra idade a perpetuar valores, crenças

Limitamo-nos aqui a enfatizar o reconhecimento,

e atitudes aprendidos no contexto da vida familiar e

por Kleinman, das diferenças biológicas e culturais no

por conta dos meios de comunicação. À medida que

estado de doença (sickness). O autor propõe duas cate-

se desenvolve pela socialização que acontece na igreja,

gorias na análise da doença, usando o termo patologia

na escola, nos clubes e em outras instituições nas quais

(disease) para categorizar as alterações biológicas ou

se estabelecem relações, cujo acesso é determinado por

psicológicas, de acordo com a classificação biomédica,

sua classe socioeconômica e pelas oportunidades que

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008

OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

lhe são apresentadas (ou negadas) de acordo com sua

destacando-se a atuação de Franco Basaglia na Itália,

inserção sociocultural. A definição da insanidade mental,

que adicionou à sua visão epistemológica uma prática

aponta Szasz (1974), é produzida a partir dessas normas

política que visava o fim dos manicômios. Vastas

e padrões de desenvolvimento, que obedecem a regras

revisões sobre a Reforma Psiquiátrica, na Itália e no

morais e servem à opressão de minorias socioeconômicas

Brasil, têm sido conduzidas, como na obra de Basa-

e aos interesses de indústrias de serviços e de produção

glia (1985), Amarante (1995) e Rotelli, Leonardis e

farmacológica, que dependem da sistematização da in-

Mauri (2001).

sanidade para o seu sustento econômico e político.

Uma série de definições de Saúde Mental ainda

A fenomenologia existencial, na visão da antipsi-

têm sido propostas, seguindo as várias vertentes que

quiatria, conceitua a experiência humana como experi-

compõem os eixos teórico-conceituais da área. Kaplan,

ência comum, compartilhada socialmente. Lane (1984)

Sadock e Grebb (1997) revisam o conceito e apontam di-

corrobora esta visão, apontando que toda psicologia é

versos fatores considerados nessas definições, entre eles,

psicologia social; não há como dicotomizar ser indivi-

a resistência funcional, a constância da personalidade, a

dual e ser social. A autora trabalha a idéia de ‘indivíduo

disposição pessoal, o crescimento e o desenvolvimento

social’, argumentando que a formação da identidade é

compatíveis com ciclo vital, a auto-afirmação, as atitudes

completamente relacional, que ocorre não só em fun-

com o self, a percepção da realidade, a previsibilidade

ção de fatores pessoais, mas das relações com o mundo

de ações, as formas de reação perante circunstâncias

exterior. Eu sou o que o outro ajuda a definir. Minha

internas e externas, as características adquiridas e

experiência é parte da experiência geral do mundo. Mi-

adaptadas em relação ao meio-ambiente, a habilidade

nha percepção do mundo exterior, meus desejos, atitudes

de se relacionar com o meio ambiente e os graus de

e ambições são fruto do que os outros determinam. Os

autonomia, entendida como uma independência das

‘outros’ são pessoas, grupos e instituições com os quais

influências sociais.

estou envolvido direta e pessoalmente, ou aqueles que

Se pensarmos as tendências a partir do Relatório

nem mesmo suspeito quem sejam, mas que podem in-

Lalonde, um dos marcos da Promoção de Saúde, lan-

fluenciar minha maneira de ser. A idéia de que a Saúde

çado em 1974, teríamos ainda que considerar o estilo

Mental da pessoa depende, além dela mesma, de suas

de vida, a capacitação das comunidades e a oferta de

relações com o outro e com o mundo, também se con-

serviços como fatores condicionantes da saúde. A Saúde

trapõe à radicalidade nosográfica-positivista, já que essa

Mental, nessa perspectiva, depende também da respon-

busca a explicação da determinação da Saúde Mental

sabilidade pessoal e admite a influência dos poderes

primordialmente a partir da genética e da bioquímica.

socioinstitucionais. Finalmente, em 2001 a Organização Mundial de Saúde enunciou uma definição de Saúde Mental, como um:

TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE DEFINIÇÃO DE SAÚDE MENTAL A década de 1970 foi marcada pelo desenvolvimento de uma série de movimentos de reforma,

Estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas habilidades, consegue lidar com os estresses normais da vida, pode trabalhar produtivamente e frutiferamente e está em condições de contribuir com sua comunidade. (Organização Mundial de Saúde, 2005).

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

Pode-se dizer, ainda, que a evolução conceitual

CONSIDERAÇÕES FINAIS

no campo da Saúde Mental, em seus aspectos mais progressistas, propicia um retorno da filosofia exis-

Frente a um mundo em constante transformação, o

tencial como base interpretativa para a experiência

profissional de Saúde Mental enfrenta questionamentos

subjetiva (Amarante, 2007). A compreensão ampla

sobre temas emergentes e persistentes e, particularmente,

desta evolução nos ambientes curriculares, acadêmi-

sobre o desenvolvimento de seu campo profissional.

cos e clínicos, pode se fortalecer com o fomento de

Uma das formas de definir o campo da Saúde Mental

discussões sobre a natureza da saúde, da doença, da

é como um sistema aberto que pensa a natureza, as

cura, da reabilitação, da promoção e da prevenção;

condições e as interações humanas, contextualizando

assim como discussões sobre temas como a inter e

sua existência cognitivo-intelectual e suas interações

a transdisciplinaridade, o interparadigmatismo, as

simbólicas. Esse sistema funciona em meio a uma

relações de poder e a contratualidade exercida entre

perspectiva sociocultural que constantemente avalia

profissionais, serviços e usuários, direitos humanos,

comportamentos, determinando quais são adequados e

autonomia e cidadania das pessoas com transtornos

quais são inadequados. Nessa perspectiva, o campo da

psíquicos, natureza, missão e funcionamento das

Saúde Mental é um universo no qual constantemente

instituições, institucionalização e desinstituciona-

se elaboram, checam, discutem e restabelecem valores,

lização, determinação multifatorial envolvida nos

símbolos e significados; é um campo que contribui com

processos saúde-doença e, enfim, sobre a natureza

a formação, compreensão e elaboração de atitudes e

essencialmente política da epistemologia em Saúde

comportamentos pessoais, profissionais e institucionais,

Mental (Vasconcelos, 2002; Almeida Filho, 1999).

diretamente influenciadores na qualidade da vida dos

Essas discussões podem viabilizar o exercício de novas

indivíduos e das comunidades por meio do poder que

formas de relação, novas linguagens, novas práticas e

os profissionais detêm sobre os processos privados e

novas tecnologias sociais nos projetos terapêuticos,

coletivos de saúde-doença.

bem como nortear a participação do profissional de Saúde Mental em ações comunitárias.

O avanço neste campo é crucial para uma sociedade mais sadia, mais justa e humanizada e se materializa no

É importante discutir como se efetiva e se cons-

seio de processos sociais complexos, como as Políticas

trói, conceitualmente e na prática, a postura, o olhar,

Públicas. A discussão das bases conceituais em Saúde

do profissional e das instituições em relação ao sujeito

Mental contrasta e dialoga, assim, com um pano de

que procura por seus serviços ou é colocado involun-

fundo social, político e cultural. As maneiras de concei-

tariamente na condição de usuário. O debate entre

tuar ‘saúde’ e ‘Saúde Mental’, transcendem disciplinas

correntes positivistas, biologicistas, fenomenológicas,

científicas e territórios de ação em saúde, colocando

existencialistas, culturalistas, entre outras, tem um po-

em perspectiva a necessidade de o profissional de Saúde

tencial frutífero se exercido como um diálogo no qual

Mental encarar, em sua permanente formação, os papéis

podem emergir livremente as discussões sobre estes e

que exerce frente à realidade da experiência humana da

outros temas relevantes para o avanço do projeto sani-

forma como ela se apresenta no cotidiano de indivíduos,

tário do SUS.

grupos, comunidades e instituições.

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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual* Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate

Richard Couto Sonia Alberti 2 1

1

Mestre em Pesquisa e Clínica em

Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de

RESUMO O presente artigo visa fornecer um breve histórico do que se convencionou denominar Reforma Psiquiátrica, partindo do pressuposto de que a psiquiatria

Janeiro (IP/UERJ).

moderna, como especialidade médica, nasceu com uma reforma que seria, portanto,

[email protected]

um conceito intrínseco a ela. Das várias nuanças do termo, em particular, nos desdobramentos nos anos 1950, na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, visa-

2

Professora adjunta do IP/UERJ;

e pró-cientista da UERJ; Doutora

se depreender o campo instituído da Saúde Mental – dos manuais de Psiquiatria à

em Psicologia pela Universidade de

Psicanálise, passando pelas Políticas da saúde pública –, supondo que o conhecimento

Paris X-Nanterre; pós-doutorada pelo

da história possa trazer instrumentos para uma melhor compreensão do que se

Instituto de Psiquiatria da Universidade

apresenta atualmente como tensão entre clínica e atenção psicossocial.

Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ); pesquisadora do Conselho Nacional

PALAVRAS-CHAVE: Reforma Psiquiátrica; Políticas de saúde; Manuais

de Desenvolvimento Científico e

psiquiátricos; Psicanálise.

Tecnológico (CNPq); psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

ABSTRACT The article proposes a brief history of the so called Psychiatric

[email protected]

Reforms. It begins with the idea that modern Psychiatry was born as a reform which would, in consequence, be intrinsic to psychiatry. Plural nuances of the term are studied, particularly, those arisen from the movements in 1950´s and changes in Psychiatry occurred in France, England, Italy and the United States. The instituted field for Mental Health will then be examined as a derivation from the effects of Psychiatric manuals and Psychoanalysis, as well as public health politics, assuming that the fact of better knowledge of the history may provide instruments for a better comprehension than the actual one, which presents a tension between the clinic work and the psychological and social care. KEYWORDS: Psychiatric Reform; Health politics; Psychiatric manuals; Psychoanalysis.

* Texto que se baseia no primeiro capítulo da dissertação de Mestrado de Richard Couto, orientando da professora Sonia Alberti, que foi defendida e aprovada em 30 de abril de 2008.

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

I N T R O D U ç ão

quiátrico moderno desde seu nascimento, como uma das muitas especialidades da Medicina. No Brasil, nos últimos 20 anos, no Brasil, é que o termo Reforma Psiquiátrica ganhou ares de grande novidade, principalmente com aprovação da lei federal 10.216, em 6 de abril 2001, con-

Em toda sua história, é a primeira vez, no Brasil, que

solidando a desospitalização gradual dos pacientes psiqui-

a atual Reforma Psiquiátrica tem uma pretensão prática.

átricos e a diminuição dos leitos hospitalares, bem como a

O intuito desta pesquisa não é refazer, em todos os seus

invenção de dispositivos substitutivos. Daí a questão: que

aspectos, a trajetória desta reforma, mas percorrer sua no-

implicação há entre o antigo e os novos dispositivos de

ção, que está intimamente ligada à psiquiatria moderna,

atendimento para os portadores de sofrimento psíquico e

a ponto de se poder levantar a hipótese de que a própria

para os usuários da assistência em Saúde Mental no Brasil,

psiquiatria moderna nasce com uma reforma. Com efeito,

como são denominados pela lei 10.216?

quando Pinel abriu os portões do Hospital de Bicêtre

Com base do que foi apresentado na introdução (a

para a saída dos mendigos, dos órfãos e dos pobres, de

reforma ocorrida no século 18), o intuito desta pesquisa

modo geral, que foram enclausurados devido à grande

é verificar que, com Pinel, a circunscrição dos doentes

mudança dos meios de produção na Europa e que gerou

mentais nos hospitais psiquiátricos (locais onde se pode-

modificações sociais contundentes no século 18, os loucos

ria melhor estudar e tratar os doentes por meio do então

foram mantidos enclausurados (Morrissey, Goldman e

proposto ‘tratamento moral’), se consolidou como uma

Klerman, 1980). Assim, pode-se dizer que a primeira

reforma. Para tal tratamento, considerava-se que a cura

Reforma Psiquiátrica foi empreendida por Pinel, como

das patologias mentais deveria ser conduzida mediante

uma maneira de delimitar os loucos e suas questões no

a atenção integral à mente do doente, partindo da supo-

espaço hospitalar, submetendo-os ao poder psiquiátrico,

sição de que restava algo íntegro da razão perdida com a

sustentado pelo saber médico. Tal observação não data de

doença. Pinel sustentava-se em sua relação com a história

hoje, veja-se, por exemplo, o texto de Tuke (1892). Por

natural e a filosofia para especificar as particularidades

outro lado, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica é, atualmen-

das doenças mentais (Bercherie; 1989).

te, elevada à categoria de conceito, guardando relação com

Em nome do saber científico, a psiquiatria, para con-

os documentos oficiais que regulamentam, viabilizam e

testar Pinel, mais uma vez projeta uma reforma excluindo de

concretizam as propostas engendradas pelo movimento

seu campo o tratamento moral da loucura e visa uma nova

sustentado pela lei 10.216. BRASIL. MINISTÉRIO DA

maneira de tratamento, baseada no empuxo ao cientificismo

SAÚDE. Lei n.º 10216, de 06 de abril de 2001.

presente no século 19, em particular a partir de sua segunda metade (Alberti, 2003). Contudo, o que os historiadores mostram é que por trás dessa reforma está a exigência feita à Psiquiatria de retirar das grandes cidades, tanto na Europa,

AS VÁRIAS NUANÇAS DO TERMO REFORMA

quanto na América do Norte, aqueles que poderiam abalar

PSIQUIÁTRICA

e perturbar a ordem vigente dessas sociedades (Foucault, 1972; Resende, 1987; Candiotto, 2007).

Primeiramente, parte-se da hipótese de que o termo

A massa que ocupou os hospitais psiquiátricos por

Reforma Psiquiátrica está presente no corpo do saber psi-

longos anos, especialmente a partir do início do século

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

20, e o próprio modelo asilar, somente foram novamente

foram as mesmas: 1) um clima social favorável ao ques-

postos em questão depois da Segunda Guerra Mundial.

tionamento do modelo manicomial, respaldado num

Muitos fatores contribuíram para esse questionamento

consenso técnico, político e social, que permitia a elabo-

e por uma nova argumentação de Reforma Psiquiátrica.

ração de objetivos alternativos ao hospital psiquiátrico; 2)

Dentre os principais fatores que exerceram influência para

a legitimação administrativa, que deveria partir do Estado

a desmobilização das internações psiquiátricas, nos anos

em forma de um compromisso de levar adiante o processo

do pós-guerra estão: o crescimento econômico de alguns

de reforma, auxiliado por um corpo técnico qualificado.

países, a reconstrução social e os movimentos sociais e civis.

Para o autor mencionado, todas as tentativas de Reforma

Há outros fatores importantes: os psicofármacos – apesar

Psiquiátrica são marcadas por estas duas condições.

dos freqüentes questionamentos quanto aos efeitos de sua comercialização –, a entrada da psicanálise nos meios psiquiátricos. Tanto nos hospitais ingleses quanto nos franceses, o número de psiquiatras com formação psicanalítica cresceu consideravelmente, o que gerou uma nova forma de postura diante do paciente psiquiátrico. Nos Estados Unidos, essa influência da Psicanálise gerou a chamada Psiquiatria Psicodinâmica; identificada com uma prática liberal, a Psicanálise que se impôs no campo da Psiquiatria, nos anos 1950, era aquela praticada na American Psychoanalytic Association (APA), restringindo o exercício da Psicanálise aos médicos – apesar das críticas veementes a essa prática levantadas por Freud já em 1926 e 1927.

DA PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL ÀS COMUNIDADES A Psicoterapia Institucional e a Política de Setor, na França, formaram um conjunto de reformas que influenciaram várias regiões da Europa, mas também a América Latina, como o Brasil. A Psicoterapia Institucional foi o braço teórico-clínico da política de setor francesa, aquela que orientava o atendimento aos doentes mentais de forma setorizada. Tal forma de serviço pôde ser verificada depois em outros movimentos de Reforma Psiquiátrica

Tal conjuntura também trouxe, ao campo da do-

que estabeleceram sempre a divisão em zonas para os

ença mental, a reivindicação da participação da saúde

serviços de atendimento. Pode-se dizer que a experiência

pública de competência do Estado, obrigando-o a uma

francesa foi a primeira a pôr, na prática, o atendimento em

maior implicação nessa área. Isso foi de grande relevância

zona. Naquele país, a marca da Psicoterapia Institucional

para os diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica

foi uma forte adesão à Psicanálise, principalmente a de

surgidos a partir da década de 1950, como: a Psicologia

orientação lacaniana. A hipótese inicial da Psicoterapia

Institucional e a Política de Setor, na França; a Psiquia-

Institucional estabelecia que a instituição total, seja ela

tria Comunitária e Antipsiquiatria, na Inglaterra; a

hospital, presídio, entre outros, estava doente. Com

Psiquiatria Antiinstitucional, na Itália, e a Desinstitu-

isso, não só os pacientes ou usuários eram doentes, mas

cionalização, nos Estados Unidos.

também os funcionários e agentes da instituição, e ambos

Segundo Desviat (1999), apesar de haver diferenças

deveriam ser tratados. Assim, o marco da Psicoterapia

entre todos esses movimentos de Reforma Psiquiátrica, as

Institucional e da Política de Setor se fez em razão de sua

condições norteadoras e essenciais para suas efetivações

proposta: ser uma ação de saúde pública1.

Tal proposta da Política de Setor tinham como princípios fundamentais: o princípio da setorização ou zoneamento - delimitaram-se áreas com 50 mil a 100 mil habitantes; o princípio da continuidade terapêutica - uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e pós-cura; o eixo da assistência deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar - o paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade e o efeito cronicizador da instituição deveria ser evitado (Desviat, 1999). 1

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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Já a Comunidade Terapêutica forneceu subsídios

ENTRE HUMANIZAÇÃO E ECLETISMO

à Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde da GrãBretanha. As comunidades terapêuticas tiveram seu início

A Psiquiatria Antiinstitucional, que se fez ponto

ainda nos tempos da Segunda Guerra Mundial, principal-

de partida para a Reforma Psiquiátrica italiana, teve

mente pelo trabalho realizado pelo psicanalista inglês W.

seu início na experiência do psiquiatra Franco Basaglia,

Bion, por meio do atendimento em grupo aos soldados

quando, em 1961, ele assumiu a direção do Hospital

que apresentavam problemas quanto ao engajamento na

de Gorizia, província italiana. O movimento basaglia-

guerra. Essa foi a forma que ele encontrou para atender

no se caracterizou pela tentativa de humanização e a

um grande número de pacientes. No entanto, seu trabalho

transformação da instituição psiquiátrica, apoiando-se

diferia o grupo daquele identificado por Freud (1976C)

no modelo de Comunidade Terapêutica. Porém, em se-

na medida em que propunha um grupo sem chefe. Bion

guida, a tentativa era de levar a experiência dos pacientes

trabalhou com a possibilidade da existência:

para fora dos muros do hospital, para a sociedade que os excluiu:

de um grupo que não se baseia no Ideal do Um (como Exército e a Igreja nas célebres análises freudianas), mas que fizesse existir o particular do sujeito promovendo a heterogeneidade inassimilável a qualquer fusão identificatória. (Laurent et al.; 1998, p. 259). Deve-se salientar que as diretrizes da Lei de Saúde

Uma comunidade que se queira terapêutica deve levar em conta esta realidade dupla, a doença e a estigmatização, para poder reconstruir gradualmente o rosto do doente, como devia ser antes de a sociedade, com seus inúmeros atos de exclusão e através da instituição que inventou, agir sobre ele com sua força negativa. (Basaglia; 1967 [1985], p. 124).

Mental britânica não tinham como objetivo abolir do sistema o hospital psiquiátrico ou diminuir leitos

Ao contrário dos movimentos na França e na Ingla-

psiquiátricos nas unidades; o fechamento deveria ser

terra, o movimento de Basaglia realizou uma contestação

tributário do estabelecimento de outras unidades de

incondicional do modelo manicomial. Uma das críticas

assistência aos pacientes e de serviços presentes nas

mais enfáticas ao hospital psiquiátrico, realizadas por

comunidades onde os pacientes se encontravam. A

Basaglia e seu grupo, foi a violência praticada contra

estruturação dos serviços, a partir do seu planejamento

o doente mental, como o choque elétrico, os métodos

em regiões, com a ênfase nos programas de atendimen-

de indução ao desmaio, a contenção e outros. Para o

to parcial e nos serviços residenciais completos nas

psiquiatra italiano, a violência é tributária, direta das ins-

comunidades, logo foi elogiada por órgãos internacio-

tituições, sejam elas a família ou o hospital psiquiátrico,

nais como a Organização Mundial de Saúde (OMS).

além de ser condição essencial para o estabelecimento e a

Finalmente, é notória a modificação do tratamento

efetivação da instituição e tendo uma função meramente

da questão com essa contribuição especificamente

adaptativa maquilada por um discurso respaldado no

inglesa e que tange à designação do campo já não

campo médico a inferir uma causalidade biológica ao

mais chamado de doença, mas de Saúde Mental, pois

sofrimento psíquico. O psiquiatra respalda a objetivação

foi a iniciativa inglesa que adotou este termo em seus

que fica ainda mais acentuada devido ao assujeitamento

documentos, tanto que hoje a privilegia em detrimento

do paciente à instituição e ao saber psiquiátrico. Basaglia

à doença mental.

ainda afirma que o problema não é a doença em si, mas

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

a relação que se estabelece com ela, pois tanto o psiquia-

a facilidade de acesso pela população aos serviços, que

tra quanto a sociedade sempre tentaram se defender do

incluía uma boa localização e descentralização dos refe-

doente mental.

ridos serviços; informações à população da área sobre os

A Desinstitucionalização norte-americana não

serviços, a assistência e suas características. Além disso,

ofereceu resultados satisfatórios; na verdade gerou um

tais serviços deveriam ser gratuitos e disponíveis a todos.

grande número de abandonados. Até hoje, o estado

Outra marca do projeto implantado por Kennedy foi sua

norte-americano não dispõe de Políticas Públicas de

ênfase na prevenção da doença mental, como também

Saúde, tais como os estados europeus ou como o Brasil.

a tentativa de abrangência das necessidades da comuni-

Salvo o período em que John Kenndy foi presidente, o

dade atendida e não somente dos doentes mentais, que

estado americano pouco fez para se ter uma Reforma

já tinham tratamento.

Psiquiátrica no país. Isso não quer dizer que nos Estados

O método utilizado para realizar o tratamento

Unidos não havia hospitais psiquiátricos públicos. Em

poderia ser considerado eclético ou multidisciplinar:

1955, havia, no país, cerca de 600 mil leitos psiquiá-

psicoterapia de várias orientações, psicofármacos, tera-

tricos e até 1958 houve uma crescente no número de

pia ocupacional, etc. Todavia, a orientação que mais se

internos, sendo que os métodos de tratamento foram

destacou nos centros de Saúde Mental foi a Psiquiatria

questionados tanto pela opinião pública quanto por

Preventiva, de Gerald Caplan, que pode ser considerado

psiquiatras da Associação Norte-Americana de Psiquia-

o seu criador. A concepção de doença mental para a Psi-

tria. Diante desse quadro, em 1963, John Kennedy

quiatria Preventiva residia na postulação de que as várias

realizou um discurso intitulado Mensagem sobre a

formas de doença mental, nas diferentes populações,

doença e o retardo mentais , no Congresso Nacional

eram resultado de fatores contrastantes, fatores positivos,

Norte-Americano, para lançar seu programa de Saúde

denominados subsídios e fatores negativos, denominados

Mental, que chegou a ser considerado uma revolução

práticas de risco. O trabalho da Psiquiatria Preventiva seria

na psiquiatria norte-americana. Depois da mensagem,

identificar tais fatores negativos e tentar corrigi-los de

foi apresentado ao Congresso Nacional, o projeto cujo

maneira positiva, para que eles não viessem a desencadear

título era Community Mental Health Centers Act of

uma doença mental. A teoria da crise, desenvolvida em

1963, que estabelecia a criação de serviços que visassem

1944 por Lindemann, tornou-se a base da Psiquiatria

a prevenção e/ou o diagnóstico das doenças mentais e

Preventiva. Caplan também se valeu das noções de crises

que o atendimento a esses pacientes seria realizado ao

evolutivas e acidentais do psicanalista norte-americano

nível comunitário.

Erik Erikson. O projeto apresentado por Kennedy previa

2

As propostas dos centros de Saúde Mental norte-

a criação de 2.000 centros, mas foram criados somente

americanos a serem estabelecidos, a cada 75 a 200 mil

600. Além disso, na ausência de um sistema nacional de

habitantes, eram de oferecer à comunidade serviços

saúde e o estado crônico de alguns pacientes – e a pouca

essenciais tais como atendimento de emergência e

importância que se deu ao fator da causalidade social tão

hospitalização no período de 24 horas, todos os dias da

enfatizada na Mensagem do Presidente, em 1963 – aca-

semana. Como todo projeto de Reforma Psiquiátrica,

bou por restringir os efeitos originalmente desejados ao

os centros de Saúde Mental tinham como princípios:

funcionamento dos centros de Saúde Mental.

2

Special Message to the Congress on Mental Illness and Mental Retardation.

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A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO DE LUTA

[...excluem] toda e qualquer hipótese etiopatogênica,

E DEBATE: OS MANUAIS E A PSICANÁLISE

como também [fazem desaparecer] o próprio conceito de doença” (Quinet, 2006, p. 12).

Logo após as iniciativas de Kennedy, um movimen-

Por que não considerar a criação dos manuais de

to de psiquiatras, surgido da Psiquiatria universitária

diagnósticos ateóricos como uma Reforma Psiquiátrica?

de orientação bioquímica, iniciou uma campanha de

Porque a Reforma Psiquiátrica não é somente movi-

retorno da Psiquiatria aos pressupostos médicos e cien-

mentos que contestam o saber psiquiátrico e visam a

tíficos do século 19, movido pelas pesquisas de cunho

substituição do modelo asilar de reclusão, mas é também

psicobiológico e psicofarmacológico, principalmente

aqueles movimentos que tentam salvar a Psiquiatria, seja

os trabalhos publicados em 1962 por Donald Klein

com propostas de trabalho diferentes das anteriores, seja

sobre a eficácia da imipramina. Esse movimento ficou

instrumentalizando-a com as descobertas do saber médi-

conhecido como a Escola de Saint Louis, que, na dé-

co-científico ou tentando eliminar a confusão conceitual

cada de 1970, deu partida à eliminação, por meio da

entre as diversas disciplinas psiquiátricas. Levantou-se

eficácia do medicamento, da diferença existente entre

a hipótese de que a proposta do DMS de ser ‘ateórico’,

psicose e neurose, iniciando a depreciação das entidades

além de ser um projeto empírico-pragmático, também

clínicas presentes na Psiquiatria clássica e mantidas pela

deve ser examinada como uma proposta de Reforma

Psicanálise, com Lacan, que, na França, conceituou-as

Psiquiátrica. Segundo Pereira, a orientação ‘ateórica’ é

como estruturas clínicas. No lugar da descrição e con-

uma tentativa de não estar “submetido aos pressupostos

ceituação das entidades clínicas como psicose, neurose e

de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes

perversão, preferiu-se uma lógica do conceito descritivo,

no campo da psicopatologia” (1998, p. 4). Tal tentativa

apoiada na noção de transtorno (disorder). As condições

é centrada de maneira enfática no empirismo dos fatos

para estabelecer o DSM-III e suas posteriores edições

clínicos, ou seja, tão somente nos fenômenos clínicos,

estavam dadas:

identificados e sustentados pela chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE).

O Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui o resultado melhor acabado das propostas empíricooperacionais da chamada Escola de Saint-Louis, liderada por Feighner, Robins e Guze na década de 70. A criação de um sistema operacional de diagnóstico para pesquisa como o RDC (Research Diagnostic Criteria) e, posteriormente, do DSM-III derivam diretamente das proposições daquele grupo. (Pereira, 1998, p. 4).

A confecção do DSM também se serviu da dimensão sanistarista que sempre esteve subsidiada pela epidemiologia e pela Medicina Social, encontrando, assim, um lugar dentro das políticas de saúde pública. Tendo em vista que o estado considera necessária a intervenção da Medicina no social, no cotidiano, principalmente quando a clínica passa a ser regida por parâmetros normatizados, o DSM acabou sendo bem recebido por se fazer um instrumento para o estado. A

Os manuais que se seguiram pretenderam ser cada

marca dos últimos 30 anos é a busca de um ideal de

vez mais desvinculados do saber psiquiátrico, a ponto

eficácia que a consolidação do DSM visa em garantir

de, atualmente, a própria prática da Psiquiatria neles

a normatização dos usuários, apagando as diferenças

sustentada ser de interesse cada vez menor para os

subjetivas que cada paciente pode ter se lhe é dada a

estudantes de Medicina: “deliberadamente ateóricos

oportunidade de comparecer com sua singularidade.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008

COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Não é sem razão que muitos governos, inclusive no

desses médicos era ‘limpar’ a cidade do Rio de Janeiro

Brasil, adotaram como modelo de tratamento, em

do risco de infecção gerada pela falta de saneamento e

muitos hospitais e ambulatórios, as prescrições dadas

planejamento urbanos e da massa de desempregados e

pelos Manuais de Diagnósticos, como a classificação

indigentes que habitavam as ruas (Resende, 1987). Por

diagnóstica e o uso de medicação correspondente; as

meio de Juliano Moreira, criaram-se os hospitais colônia,

fichas de prontuários são a prova disso, tendo em vista

promovendo o uso do trabalho agrícola como instru-

que exigem a sigla do transtorno que se supõem ser os

mento de tratamento global dos doentes mentais. Como

mais adequados ao paciente.

tal projeto não vingou, os hospitais agrícolas acabaram

Numa vertente oposta à eficácia normatizada, à biologização e à medicalização do sofrimento huma-

aderindo a sua verdadeira função, isto é, a exclusão dos doentes mentais em locais geograficamente distantes.

no está a Psicanálise. O rompimento da ortodoxia

A massa presente nos hospitais psiquiátricos, nas

psicanalítica se deu, em parte, mediante o ensino de

colônias e as condições dessas instituições não sofreram

Lacan, na França, que possibilitou o reconhecimento

grandes modificações na era Vargas, no Estado Novo.

da Psicanálise por teóricos do campo da Saúde Mental

Pelo contrário, houve apenas reforma e ampliação das

como um saber que tem contribuições importantes

instalações já existentes e a criação em larga escala de

à Saúde Mental (cf. Figueiredo, 1997). Mas o uso

outros hospitais estaduais, financiados pelo Governo

da Psicanálise nessas iniciativas não deixou de causar

Federal, que obedeciam ao modelo de colônia agrícola.

questões em Lacan, que, em vários momentos de seu

O modelo manicomial sempre foi a mola mestra das

ensino, advertiu seus alunos sobre a extraterritorialida-

Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil. Com o go-

de da Psicanálise em relação à Medicina, aos psicólogos

verno militar na década de 1960, o que se testemunhou

e “outros distintos assistentes terapêuticos” (Lacan,

foi a criação de clínicas e hospitais privados subsidiados

1966[2001], p. 32).

pelo estado, movidos pelos favorecimentos políticos e o enriquecimento de seus proprietários, às custas das diárias pagas pelo estado por cada paciente internado. Em contraposição, durante os anos 1970, o mo-

A CONJUNTURA QUE LEVOU À ATUAL

vimento que resultou nas ‘Comunidades Terapêuticas’

REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

instaladas em alguns hospitais psiquiátricos, passou a apostar na possibilidade de efetivamente sustentar

Em 1852 foi o surgimento da instituição psiquiá-

um trabalho terapêutico em função das propostas que

trica brasileira. O hospital Dom Pedro II, inaugurado

vinham das reformas realizadas em outros países e dos

pelo próprio imperador, destinado aos doentes de todo

investimentos pessoais de alguns psiquiatras. Delgado

o território nacional, tinha uma capacidade para so-

(1998) circunscreve três eventos políticos que desenca-

mente 350 doentes e, no momento de sua abertura, já

dearam o início da contestação e aquilo que se deno-

contava com 144 internos. Uma característica peculiar

minou Reforma Psiquiátrica brasileira: 1. Congresso

da Psiquiatria brasileira foi sua associação à Medicina

Brasileiro de Psiquiatria, entre agosto e setembro de

Higienicista. No governo de Rodrigues Alves (1902-

1977, em Camboriú, Santa Catarina; 2. I Congresso

1906), dois nomes se destacaram na então ciência

Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental, em São

brasileira: Oswaldo Cruz e Juliano Moreira. A missão

Paulo, em janeiro de 1979; 3. III Congresso Mineiro de

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Psiquiatria, em novembro de 1979, com a presença de Franco Basaglia, que teve uma influência marcante no movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil. A partir do projeto de lei, conhecido como projeto Paulo Delgado, apresentado à Câmara Federal, em 1989, iniciou-se, em nível nacional, um movimento crescente de reformulação das Políticas Públicas de Saúde Mental, que abriu as portas dos hospitais psiquiátricos tanto para a entrada de pesquisadores e técnicos de diversas áreas quanto para a saída de pacientes que, muitas ve-

elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. (Amarante, 1995, p. 91, grifo nosso). No Brasil, associa tal processo à redemocratização do país e à crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação políticosocial que caracteriza essa mesma conjuntura de redemocrtatização. (Amarante, 1995, p. 91)

zes, encontravam-se internados há décadas. Uma das

Três anos depois, Delgado (1998) chamava a aten-

grandes contribuições da primeira versão do projeto de

ção para certa imprecisão do termo Reforma Psiquiátri-

lei foi possibilitar o debate sobre a Lei Federal de Saúde

ca, do qual seria feito uso para designar as modificações

Mental, tendo em vista que a referida lei datava de 1934,

do modelo da assistência pública no serviço psiquiátrico

baseando-se, mormente, na exclusão dos pacientes do

brasileiro, no qual se deu início um diálogo entre a Psi-

convívio social.

quiatria e outras áreas do campo da Saúde Mental:

o conceito de reforma psiquiátrica no Brasil A partir de 1995 Nos textos estudados, deparou-se, algumas vezes, com uma referência à Reforma Psiquiátrica como um conceito (cf. Delgado, 1998; Amarante, 1995). Sua

Reforma psiquiátrica é uma expressão algo imprecisa. Nela temos insistido como recurso de designação para o conjunto de modificações recentes que vêm sendo produzidas ou tentadas, a partir do final da década de 70, interessando ao modelo assistencial psiquiátrico público, sua sustentação teórica e técnica, e as relações discursivas que se vêm estabelecendo entre a Psiquiatria, as demais disciplinas de saúde e do campo social, e as instituições e movimentos sociais. (1998, p. 42, grifo nosso).

formulação como conceito depende de cada autor que o propõe e seu uso é tributário das afinidades intelectuais

Ainda três anos depois, Amarante (2001) apre-

e/ou políticas daquele que escolhe utilizá-lo. É interes-

senta uma outra definição, o que permite depreender

sante acompanhar o desenvolvimento desse conceito

um avanço no próprio uso do termo. O autor mantém

ao longo dos últimos anos e é por isso que se retomam aqui algumas de suas incidências. Em 1995, Amarante identificava a Reforma Psiquiátrica com um importante questionamento e conseqüente elaboração de propostas contrárias ao modelo asilar. Propunha a Reforma Psiquiátrica como um: processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a

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o termo ‘processo’, mas ele deixa de ser histórico e passa a ser ‘social’ e ‘complexo’, tendo uma dimensão epistemológica, técnico-assitencial, jurídico-política e cultural, pois haveria várias dimensões nesse movimento: “sendo um processo, é antes de tudo permanente, não tem fim predeterminado e articula várias dimensões simultâneas e inter-relacionadas” (Amarante, 2001, p. 104).

COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual

Nesse momento, lê-se uma primeira tentativa de,

O que fica notório, tanto na idéia central da lei

efetivamente, definir o termo Reforma Psiquiátrica, não

10.216 quanto nas propostas dos dispositivos criados

como um termo cujas incidências históricas podem ser

a partir dela, é a centralização da cidadania e o resgate

buscadas em vários contextos, mas que passou à referên-

da contratualidade social, de modo que não há dúvida

cia do que acontecia no Brasil, no final do século 20, ou

quanto à importância que a lei sustenta no cuidado e

seja, a desinstitucionalização – que estabelece outro mo-

na atenção, ambos em primeiro plano, revertendo um

delo de tratamento, diferente do modelo de isolamento

quadro calamitoso do contexto da institucionalização.

terapêutico – e a mudança – que redefine o conceito de doença mental. O autor defende que debater o conceito de doença é suficiente para transformar as relações das pessoas envolvidas com a questão da Saúde Mental, além

CONSIDERAÇÕES FINAIS

de viabilizar a modificação dos serviços, dos dispositivos e dos espaços na maneira de ver o usuário.

Nos últimos anos, no entanto, multiplicaram-se os

Esse novo paradigma já traz consigo também

estudos sobre a necessidade de investimento na clínica

o debate da dimensão jurídico-política dos direitos

da Reforma Psiquiátrica, sintagma retomado no título

dos doentes à cidadania, pois exige que se rediscuta e

do livro de Fernando Tenório (2001). Apesar de serem

redefina “as relações sociais e civis em termos de cida-

criados locais de tratamento que têm como objetivo

dania, direitos humanos e sociais” (Amarante, 2001,

sustentar a clínica da Reforma Psiquiátrica, observa-se,

p. 105). Promover o resgate dos direitos de cidadãos

por um lado, que a cidadania e o cuidado são tomados

dos usuários, quase que perdido devido às internações

como referência do tratamento dos usuários, mas, por

forçadas no passado, tornou-se a principal reivindi-

outro, promove-se uma preocupação maior com a es-

cação da Reforma Psiquiátrica, pois o movimento

pecificidade de uma clínica que caminhe paralelamente

entende cidadania como a tentativa de garantir, por

à atenção psicossocial.

meio de meios legais e oficiais, e da apresentação de

Neste âmbito, percebe-se, nos últimos anos, que

projetos e aprovação de leis, os direitos civis e sociais

sem um trabalho clínico que leve em conta o sofrimento

dos portadores de sofrimento psíquico. Além disso, é

psíquico, o próprio resgate da cidadania e da autono-

necessária a implantação de serviços e/ou modificações

mia pode ficar comprometido. Assim, surge uma nova

dos serviços já existentes para que a cidadania possa

tensão: entre clínica e atenção psicossocial, no campo

ser uma conquista diária.

da Saúde Mental. Algumas propostas por uma solução

Com a lei 10.216, por exemplo, a internação passou

sugerem ser preciso sustentar um enfoque multidiscipli-

a ser voluntária ou involuntária; neste caso é obrigatório

nar: “o campo da saúde mental é [...] multidisciplinar,

informá-la, via formulário, ao Ministério Público Esta-

heterogêneo e plural, onde diversos saberes e práticas se

dual, justificando os motivos da decisão. Em sete anos,

entrecruzam” (Rinaldi, 2006, p. 142).

a lei 10.216 promoveu grandes mudanças – os Caps, as

Essa orientação visa o enlaçamento de vários sabe-

residências terapêuticas, o trabalho articulado em rede

res. Mas, seria possível sustentar a clínica propriamente

–, principalmente nos grandes centros. Nas áreas mais

dita sem uma orientação clínico-teórica que tenha con-

afastadas deles, ainda há muita resistência e, freqüente-

sistência para enfrentar os problemas diários de nossa

mente, as coisas avançam muito lentamente.

prática? (Barbosa, 2004) Desde o início da história

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da psiquiatria moderna, com Pinel e Esquirol, não há clínica sem orientação definida (Bercherie, 1989). Por razões que transcendem este artigo e que precisariam ser aprofundadas no futuro, é o campo psicanalítico que mais se ocupa com essa busca na atualidade, o que não deixa de levantar novos questionamentos. Por ora, nota-se que a reação que alguns setores da Reforma Psiquiátrica atual dirigem contra o trabalho de psicanalistas que se instrumentalizam do movimento da reforma e, ao mesmo tempo, procuram instrumentalizá-lo com as contribuições de sua própria formação, relaciona-se com o que já se observou, na década de 1970, nos Estados Unidos, quando da publicação dos manuais como o DSM. Revisitar a história para verificar possíveis incidências anteriores de questões atuais transcende a função da história como registro e permite estudar as determinações – nem sempre conhecidas – de movimentos e resistências com as quais se tem que lidar atualmente.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature

Tatiana Ramminger

1

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Psicóloga; mestre em Psicologia

Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO Neste artigo apresentamos uma revisão dos estudos brasileiros sobre a saúde do trabalhador de Saúde Mental, considerando o processo de implantação

(UFRGS); doutoranda em Saúde

da Reforma Psiquiátrica no país. A bibliografia disponível é recente, datando

Pública pela Escola Nacional de Saúde

de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990 havia um predomínio

Pública da Fundação Oswaldo Cruz

de estudos em torno do conceito de estresse, com profissionais da enfermagem e

(ENSP/Fiocruz).

de hospitais psiquiátricos. Atualmente, sobretudo a partir de 2006, os estudos

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não apenas apresentaram um crescimento significativo, como se tornaram mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando, os trabalhadores de Saúde Mental dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). PALAVRAS-CHAVE: Serviços de Saúde Mental; Saúde do trabalhador; Literatura de revisão.

ABSTRACT This paper presents a literature review under the theme “health of Mental Health workers” as considered the introduction of the Psychiatric Reform in Brazil. The available bibliography is recent, with less than a decade. In the end of the 1990’s, studies on the concept of stress carried out with professionals of nursing and in psychiatry hospitals were predominant. Nowadays, mainly since 2006, the studies not only increased significantly, but also became more complex and acquired quality, favouring the workers of Mental Health of the Psychosocial Care Centers (Caps). KEYWORDS: Mental Health services; Workers Health; Review literature.

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I N T R O D U ç ão

concepção de ‘loucura’ e nas formas de tratamento dos usuários (Passos, 2003). Farta bibliografia preocupa-se em (re)discutir a função dos diferentes profissionais nas equipes dos novos serviços de Saúde Mental como, por exemplo,

Neste artigo, procurou-se questionar a formar

a atuação do terapeuta ocupacional (Mangia, 2000;

como o campo Saúde do Trabalhador dialoga com

Ribeiro; Oliveira, 2005), do psicólogo (Bandeira,

a saúde dos trabalhadores de Saúde Mental. Res-

1992; Figueiredo; Rodrigues, 2004), do assistente

saltamos que esse não é um tema muito pesquisado

social (Vasconcelos, 2000), do psicanalista (Figueire-

nem na área de Saúde Mental, que tem priorizado

do,

as discussões em torno das mudanças no cuidado ao

2004) e, sobretudo, dos enfermeiros (Dalmolin, 1998;

portador dos transtornos mentais e no entendimento

Bertoncello; Franco, 2001; Kirschbaum; Paula,

da loucura, nem no campo da Saúde do Trabalha-

2001; Casanova, 2002; Lima; Amorim, 2003; Oliveira;

dor, que acumula estudos em organizações privadas

Alessi, 2003; Silveira, 2003; Silveira; Alves, 2003;

e industriais. Tentando potencializar esse diálogo

Silva; FonsecA, 2005), técnicos e auxiliares de Enfer-

necessário, nosso esforço aqui será reunir e discutir

magem (Maranhão, 2004; Zerbetto; Pereira, 2005).

a produção científica brasileira a respeito da relação

Destaca-se, ainda, a tendência a repetir padrões comuns

entre saúde/adoecimento e trabalho na área da Saúde

ao hospital psiquiátrico, mesmo com severas críticas a

Mental, sobretudo a partir do processo de implantação

esse modelo (Brêda; AugustO, 2001; Campos; Soares,

da Reforma Psiquiátrica no país.

2003; Oliveira; Alessi, 2005A, 2005B; Bichaff, 2006;

Para tanto, foram utilizados os bancos de dados de

2001), do acompanhante terapêutico (Palombini,

Antunes; Queiroz, 2007; Leao; Barros, 2008).

teses e dissertações1 das universidades que disponibilizam

Por outro lado, a bibliografia existente sobre a rela-

este recurso, bem como a base de dados da Biblioteca

ção entre saúde e trabalho em Saúde Mental é recente,

Virtual em Saúde (Bireme, www.bireme.br), que inclui

datando de pouco menos de uma década. Recordemos

Lilacs, Medline, Cochrane e SciELO, com pesquisa feita a

que os estudos sobre a relação entre saúde/adoecimento

partir dos seguintes descritores: Saúde do Trabalhador;

e trabalho, tendem a estar ligados ao que é visível, ou

Saúde Mental; reforma psiquiátrica; trabalhador de Saú-

seja, ao que pode ser medido, examinado ou medicado,

de Mental; trabalhador psiquiátrico; hospital psiquiátri-

estabelecendo-se objetivamente um nexo entre determi-

co. A última consulta foi feita em abril de 2008, sendo

nada situação de trabalho e respectivas conseqüências

que também recorremos, eventualmente, a resumos de

para a saúde do trabalhador (como no caso de uma

congressos científicos e capítulos de livros.

perda auditiva por exposição ao ruído, por exemplo).

Em consulta à literatura que aborda o trabalho na

Dificilmente considera-se, portanto, a mobilização

área da Saúde Mental, principalmente aos textos publi-

cognitiva e afetiva do trabalhador, ambas característi-

cados a partir do processo de implantação da Reforma

cas importantes do trabalho em saúde, especialmente

Psiquiátrica no país, percebemos que os estudos privile-

do trabalho em Saúde Mental. Sendo assim, quase a

giam as mudanças recentes nesse campo, sobretudo na

totalidade dos textos tem caráter qualitativo e poderiam

1

Quando parte das conclusões das dissertações ou teses possuíam publicação em periódicos científicos, privilegiou-se o artigo publicado.

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ser reconhecidos como parte do campo de estudos deno-

apontada como recorrente entre os profissionais da

minado ‘Saúde Mental e Trabalho’. Como este campo

educação, da saúde e da segurança, sobrecarregados em

não é homogêneo, ou seja, não há consenso sobre quais

suas formas de prover cuidado (Codo, 1999). Segundo

seriam suas principais correntes teóricas (Fernandes;

Codo, as principais características dessa síndrome são

Melo; Gusmão et al., 2006; Jacques, 2003), fizemos

a exaustão emocional, a despersonalização da atenção

nossa própria divisão em três blocos, conforme os temas

e a falta de compromisso com o trabalho. As pesquisas

privilegiados em cada estudo.

acerca dos trabalhadores de Saúde Mental que seguem esse referencial apontam um alto índice de esgotamento emocional e estresse crônico entre eles, diretamente proporcional ao tempo e à intensidade do cuidado direto

ESTRESSE, CARGA E SOBRECARGA NO

ao paciente (Fensterseifer, 1999; Rego, 2000; Rosa,

TRABALHO EM SAÚDE MENTAL

2001; Costa; Lima, 2002; Ramminger, 2002; Vianey; Brasileiro, 2003).

Estabelecer a relação entre doença/Saúde Mental e

Por outro lado, Carvalho e Felli (2006), buscaram

trabalho não é tarefa fácil. O processo de adoecimento

analisar o processo saúde-doença vivenciado pela equipe

psíquico é sempre singular e envolve várias dimensões

de enfermagem de um hospital psiquiátrico a partir dos

da vida do sujeito, o que pode dificultar pesquisas quan-

conceitos de carga de trabalho e desgaste, chegando

titativas. Talvez seja essa a explicação para o reduzido

à conclusão que esses trabalhadores apresentam um

número de estudos epidemiológicos encontrados, ainda

intenso desgaste mental muito mais pelas condições de

que sejam fundamentais para nos dar a dimensão deste

trabalho do que pelo convívio com os pacientes. As

‘invisível’ que pode se tornar mais palpável na medida

cargas de trabalho (físicas, químicas, biológicas, fisio-

em que começa a ser reconhecido estatisticamente

lógicas e psíquicas), segundo Laurell e Noriega (1989),

(Tittoni, 1997).

são elementos do processo de trabalho que interagem

Aliás, foi o peso das estatísticas, somado ao esforço

dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador

dos pesquisadores e dos movimentos sociais, que possi-

gerando processos de adaptação e que resultam em

bilitou o reconhecimento legal da relação entre Saúde

desgaste, entendido como uma perda da capacidade

Mental e trabalho no Brasil a partir de 1999, através

potencial e/ou efetiva corporal e psíquica.

do Decreto 3.048 do Ministério da Previdência e As-

Nessa direção, Bandeira, Pitta e Mercier (2000)

sistência Social que discrimina os Transtornos Mentais

validaram, no Brasil, escalas internacionais de avaliação

Relacionados ao Trabalho. Dentre esses transtornos, há

de satisfação (SATIS-BR) e sobrecarga (IMPACTO-BR)

a síndrome do esgotamento profissional, ou burnout,

das equipes técnicas de serviços de Saúde Mental. Tais

descrita pelas teorias do estresse.

escalas passaram a ser utilizadas em pesquisas de ava-

As teorias do estresse, embora tenham como re-

liação, fornecendo importantes subsídios para estudos

ferencial básico a Fisiologia, originaram modelos mais

epidemiológicos. Além disso, os estudos de satisfação

complexos, com a inclusão da perspectiva social e da

vêm crescendo em importância na avaliação da quali-

subjetividade (Seligmann-Silva, 2003). A síndrome

dade dos serviços de Saúde Mental por considerarem

de burnout, mesmo que de início não estivesse ligada

a percepção dos diferentes segmentos envolvidos na

exclusivamente às situações de trabalho, hoje tem sido

atenção (usuários, familiares e trabalhadores), assim

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como a “escala de sobrecarga constitui um preditor

os níveis mais baixos de satisfação e mais elevados de

do estresse apresentado pelos trabalhadores de Saúde

sobrecarga entre os trabalhadores com indicativo de

Mental” (Bandeira; Ishara; Zuardi, 2007, p. 280). No

estresse (Bandeira; Ishara; Zuardi, 2007). As demais

entanto, Reboucas, Abelha, Legay et al. (2008, p. 625)

pesquisas confirmam que quanto maior o grau de so-

ressaltam que, embora os estudos brasileiros sejam rea-

brecarga dos profissionais, menor o seu nível de satis-

lizados com todos estes segmentos, “a pesquisa dirigida

fação no trabalho, assim como a relação inversa entre o

à equipe técnica tem despertado menos interesse do que

nível de escolaridade e satisfação. Em duas pesquisas, a

as que avaliam usuários e familiares”.

satisfação no trabalho esteve relacionada à atuação em

Percebemos que de sua validação (ano 2000) até a

projetos novos e de status diferenciado, à maior idade

publicação das primeiras pesquisas feitas a partir dessas

e ao contrato de trabalho precário. As pesquisadoras

escalas em relação ao trabalho em Saúde Mental, passa-

atribuem tal resultado ao fato de que, provavelmente,

ram-se sete anos. Tivemos acesso a quatro estudos, sendo

os profissionais mais jovens têm menos recursos para

um de validação do construto das escalas, realizado em

lidar com os problemas inerentes ao desempenho das

um município de São Paulo (Bandeira, Ishara; Zuardi,

atividades e quando possuem escolaridade mais elevada,

2007), dois realizados em instituições do município do

maiores expectativas em relação ao trabalho. (Reboucas;

Rio de Janeiro (Reboucas; Legay; Abelha, 2007; Rebou-

Legay; Abelha, 2007; Godoy; Rigotto; Maciel et al.,

cas;

Abelha; Legay et al., 2008) e um que apresenta os

2007). Em relação ao impacto do trabalho, os resultados

resultados preliminares da aplicação do instrumento em

foram diferentes. Enquanto os resultados encontrados

toda rede de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do

no Rio de Janeiro (Reboucas; Legay; Abelha, 2007;

Ceará (Godoy; Rigotto; Maciel et al., 2007). Nesses

Reboucas; Abelha; Legay et al., 2008) não remetem

estudos, a satisfação é considerada um estado emocio-

à associação significativa com a escolaridade, Godoy,

nal que envolve a interação das características pessoais,

Rigotto, Maciel et al. (2007) apontam a relação direta

valores e expectativas dos profissionais em relação ao

entre a baixa escolaridade e o impacto menor do trabalho

ambiente e organização do trabalho. Já o impacto diz

na vida dos profissionais.

respeito às repercussões do trabalho sobre a saúde e o sentimento de bem-estar do trabalhador (Reboucas; Legay; Abelha, 2007). Todas as pesquisas apontam para a predominância significativa das mulheres no trabalho em Saúde Men-

SOFRIMENTO E PRAZER NO TRABALHO EM SAÚDE MENTAL

tal, culminando no caso do Ceará, onde 72,8% dos trabalhadores dos Caps são mulheres (Godoy; Rigotto;

Passemos agora aos estudos que consideram a re-

Maciel et al., 2007). A pesquisa de Reboucas, Legay e

lação entre prazer e sofrimento no trabalho em Saúde

Abelha (2007) destaca que esse segmento concentrou

Mental. A pesquisa de Lanzarin (2003), ancorada na

o menor nível de satisfação com o trabalho e o maior

Psicodinâmica do trabalho, procurou analisar as rela-

impacto sobre a saúde, interpretado pelas autoras como

ções entre trabalho, prazer e sofrimento das auxiliares

conseqüência da ‘dupla jornada’ feminina. No estudo de

de enfermagem de um hospital psiquiátrico. À Luz

validação de construto foi constatada a relação negativa

da Psicanálise, Dejours (1988) entende que, frente às

entre os escores de satisfação e sobrecarga, bem como

vivências de sofrimento, os trabalhadores desenvolvem,

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coletivamente, estratégias defensivas que podem ser

Considerando o referencial da Psicologia Institucio-

muito úteis, pois permitem que as pessoas continuem

nal e da Psicanálise de grupos, Koda e Fernandes (2007)

trabalhando, sobrevivendo à angústia. No entanto:

analisam os conflitos e contradições que se instauram a partir da implantação de um serviço substitutivo à

[...] as estratégias defensivas podem atenuar o sofrimento, mas, por outro lado, se funcionarem muito bem e as pessoas deixarem de sentir o sofrimento, pode-se prever a alienação. (Dejours, 1999).

internação psiquiátrica que exige um contato mais próximo com o paciente e um trabalho mais articulado com profissionais de outras áreas e instituições. Segundo as autoras, isso leva a um “desenraizamento” do trabalha-

Lanzarin (2003) percebeu grande envolvimento

dor, que vê sua identidade profissional posta em questão.

emocional entre as auxiliares de enfermagem e a clien-

Os códigos anteriores, ainda que fossem avaliados como

tela atendida. Segundo a pesquisadora, se por um lado

inadequados, asseguravam um modelo de práticas e re-

essa intensificação do laço afetivo constitui-se fonte de

presentações comuns em relação ao lugar do trabalhador,

gratificação para as auxiliares, e funciona como uma es-

à relação profissional/usuário, à concepção da loucura,

tratégia defensiva frente ao medo e à angústia, por outro

entre outras. A transformação desses códigos leva a um

lado contribui para a exploração do trabalho. Mulheres

momento de fragilidade, muitas vezes vivenciado como

em sua maioria, as auxiliares acabam tomando para si

ameaça contra o sujeito e o grupo ao qual pertence.

algumas responsabilidades que não estão relacionadas

Corroborando esse entendimento, Rabelo e Torres

à função que desempenham. Ao mesmo tempo, esse

(2005) pretenderam avaliar a relação entre a adesão a

cuidado não é reconhecido como uma qualificação ou

determinado paradigma norteador de práticas em Saú-

competência da trabalhadora, mas como a expressão de

de Mental, e a saúde física e psicológica dos profissio-

um instinto maternal inato.

nais da área em Goiânia. As autoras consideraram dois

Ferrer (2007) e Silva (2007) nos apresentam

paradigmas: o biológico e o psicossocial. O primeiro

análises similares de estudos realizados com os pro-

está ligado ao discurso médico psiquiátrico, com ênfase

fissionais dos C aps de Campinas, interior de São

nas causas orgânicas do adoecimento; o segundo, ao

Paulo (Ferrer, 2007) e Goiânia, Goiás (Silva, 2007),

discurso da Reforma Psiquiátrica. Participaram da pes-

embora não utilizem apenas o referencial dejouriano,

quisa, trabalhadores de seis serviços de Saúde Mental

privilegiando as vivências de sofrimento dos traba-

‘substitutivos’ e seis clínicas psiquiátricas. Os resultados

lhadores. Ambas as análises citam como importantes

mostraram que os maiores níveis de bem-estar físico

componentes que contribuem para o sofrimento do

e psicológico não estiveram relacionados ao local de

trabalhador de Saúde Mental a baixa remuneração,

trabalho, mas à adesão ao paradigma biológico que,

os contratos diferenciados e, por vezes, precários de

segundo as autoras, por ser mais legitimado, oferece

trabalho, a má condição física e material dos estabe-

maior segurança ao profissional nesse momento de

lecimentos, a limitação das demais redes de suporte

transição no qual o modelo biológico não foi aban-

e promoção social, a carência de uma política de

donado, nem o modelo psicossocial definitivamente

cuidado aos trabalhadores da saúde e o próprio fato

implantado. No entanto, não podemos deixar de

de haver contato com a loucura. Por outro lado, as

questionar a validade da separação estanque entre esses

duas pesquisadoras também apontam a implicação e

dois paradigmas, bem como das escalas de bem-estar

o prazer desses trabalhadores com sua atividade.

físico e psicológico utilizadas.

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SUBJETIVIDADE, DISCURSOS, PRÁTICAS

discursivas, incluindo desde a crença de que cuidar é

E VIVÊNCIAS DOS TRABALHADORES DE

uma forma de caridade (discurso religioso), a afirma-

SAÚDE MENTAL

ção de que é a ciência que pode falar do tratamento da loucura (discurso científico), até o entendimento de que

Por fim, aqui destacamos os artigos que não tratam

o trabalho em Saúde Mental não pode ser reduzido a

diretamente da relação entre saúde e trabalho em Saúde

um domínio de técnicas, devendo incluir a implicação

Mental, mas que apresentam contribuições para o tema.

política e afetiva com a construção de outro modo de

Considerando a análise do discurso dos trabalhadores,

se relacionar com a loucura (discurso antimanicomial).

encontramos os trabalhos de Bernardes e Guareschi

Em segundo lugar, pela oscilação dos trabalhadores

(2004) e Garcia e Jorge (2006). O primeiro parte do

entre um papel desafiador e criativo, como agentes de

referencial foucaultiano para compreender as formas de

um dispositivo que se pretende inovador, e a constante

subjetivação, ou o modo como os profissionais consti-

desvalorização de sua função enquanto servidor público,

tuem a si mesmos e se reconhecem como trabalhadores

traduzida pela falta de investimentos e ações interseto-

de Saúde Mental. Já Garcia e Jorge (2006) procuram

riais que impõem limites à prática e responsabilizam o

destacar a vivência dos trabalhadores de um Caps à luz

trabalhador individual, excessiva e exclusivamente pela

do pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg

resolutividade dos serviços.

Gadamer. Embora sigam caminhos diferentes, os dois

Da mesma forma, o artigo de Silva (2005) sobre

estudos se valem da figura do ‘humano’ e da ‘humani-

os discursos e práticas em torno da responsabilidade

zação’ para retratar as transformações no cuidado em

no campo da Saúde Mental, aponta para o aumento da

Saúde Mental. A conclusão é que a Reforma Psiqui-

responsabilidade e autonomia do trabalhador de Saúde

átrica, ao reivindicar a humanização do atendimento

Mental em seu processo de trabalho. No entanto, a

em Saúde Mental, não pode deixar de lado o “humano

exigência do trabalhador apto a resolver problemas

que cuida” (Garcia; Jorge, 2006), já que os próprios

complexos não é acompanhada do aumento dos ne-

trabalhadores reconhecem que “a humanização deles

cessários recursos teóricos, financeiros ou emocionais,

[dos pacientes] será a nossa humanização” (Bernardes;

em uma clara tendência à precarizacão do trabalho,

Guareschi, 2004).

somada a expectativas cada vez maiores em relação ao

Em um estudo que privilegiou o ponto de vista dos

trabalhador. Além disso, a ‘tomada de responsabilidade’

trabalhadores de Saúde Mental sobre a relação entre a

– jargão do campo da saúde – não é apenas do serviço

saúde e suas atividades de trabalho (Ramminger, 2006;

(pelo território), mas também do trabalhador (por seu

Ramminger; Nardi, 2007), evidencia-se que a preca-

processo de trabalho), do usuário (por sua condição

riedade das políticas públicas de atenção à saúde do

subjetiva), da família e da comunidade de modo geral

servidor público reflete nos serviços de Saúde Mental. O

(responsabilização social dos atores), em um processo

acolhimento (ou não) das questões relacionadas à saúde

no qual distintas áreas – Saúde Pública, Análise Institu-

no trabalho depende do funcionamento e das diretrizes

cional e Psicanálise – unem-se em torno da convocação

particulares de cada serviço. A análise dos discursos e

à responsabilidade.

práticas possibilita o entendimento de que os trabalha-

Também os estudos que privilegiam as teorias

dores habitam um espaço de tensionamentos e confron-

sobre a representação social corroboram com a com-

tos. Primeiro, pela circulação de diferentes formações

preensão do trabalho em Saúde Mental como uma

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atividade complexa, com a circulação de distintos

A alegria é tomada como indicador da luta contra

discursos e um sobre-encargo do trabalhador, prin-

a tristeza e o sofrimento, sendo necessário um espaço de

cipalmente pelo desinvestimento no trabalho e nos

apoio, para além das supervisões institucionais e clínicas,

serviços públicos (Koda, 2002; Antunes; Queiroz,

que permita retomar a produção de vida, consumida

2007; Leao; Barros, 2008).

em meio ao fazer cotidiano. Essa imagem do consumo

Andrade (2007) propõe, inspirado em Nourodine

da vida pelo trabalho remete à exaustão ou combustão

(2004), considerar o risco no e do trabalho em Saúde

(burnout) do trabalhador e da equipe, pois um coletivo

Mental não apenas como negatividade ou algo que deva

que consome sua própria vida com o objetivo de cons-

ser combatido, mas como positividade e potencialidade,

truir novas possibilidades de vida para outros, se não

um “ato de criatividade necessário e jamais dominado

a produzir o tempo todo, exaure. Da mesma forma, o

para agir, produzir, inventar e realizar” (Andrade, 2007,

segundo analisador proposto por Merhy – o alívio –

p. 85). No entanto, a não ser pelo risco de reproduzir

aponta para a necessidade de alívio também daquele

os modelos manicomiais ou enclausurar-se nas próprias

que se ocupa do alívio dos outros.

defesas frente ao sofrimento do outro, o autor não se aprofunda em relação aos riscos da atividade do trabalhador de Saúde Mental. Merhy (2007), embora sem a pretensão de apresentar um estudo mais sistematizado, compartilha suas

Uma equipe de trabalhadores dos Caps que não possa usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria, de forma implicada, não tem muito a ofertar a não ser exaurir para gerar alívios nos outros, como o manicômio já fazia e faz. (Merhy, 2007, p. 65).

reflexões, a partir de sua experiência como supervisor de um Caps. Ele diz que buscar a produção de cuidados

Aliás, a precarizacão e a falta de condições de tra-

em saúde para além das práticas hegemônicas, é estar

balho em Saúde Mental, bem como o número sempre

no ‘olho do furacão’, sendo necessário construir um

insuficiente de trabalhadores, com excesso de encargos

campo de proteção para aqueles que têm que moldar

e responsabilidades, salientados nos estudos aqui apre-

suas caixas de ferramentas em ato. Descreve o trabalho

sentados, integram uma herança que acompanhou o

nos Caps como algo árduo, com intensa demanda de

hospital psiquiátrico desde a sua fundação e parece ter

múltiplos cuidados, o que faz o trabalhador experi-

se perpetuado nos novos serviços de Saúde Mental2.

mentar sentimentos intensos e antagônicos, cobrando

Esses últimos estudos, já apontam a relação intrín-

de si mesmo e da equipe uma disponibilidade e uma

seca entre a gestão do trabalho e o trabalho como gestão,

abertura difíceis de serem mantidas permanentemen-

ou seja, a indissociabilidade entre as formas de atenção

te, sobretudo para quem oferta seu trabalho vivo

e gestão. O abismo entre um e outro gera sofrimento

para vivificar a vida do outro. São sentimentos de

e adoecimento entre os trabalhadores (Santos-Filho;

tristeza, exaustão e impotência que caminham lado a

Barros, 2007). Jorge, Guimarães, Nogueira et al. (2007)

lado com a exigência de acolhimento e resolução de

trata especificamente da gestão de recursos humanos

problemas complexos de forma criativa e entusiasma-

em três Caps de Fortaleza (CE). Os autores afirmam

da. Assim, o autor propõe a alegria e o alívio como

que os serviços de Saúde Mental enfrentam os mesmos

dispositivos analisadores.

desafios do sistema de saúde geral como, por exemplo,

2

A esse respeito, consultar os relatórios dos primeiros hospitais psiquiátricos citados nos trabalhos de Wadi (2002) e Machado et al. (1978).

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a precarização do trabalho em saúde, que pode ser

de loucura e cuidado. O trabalho em Saúde Mental é

definida como a flexibilização ou ausência de direitos

compreendido como uma atividade, ao mesmo tempo

trabalhistas e de proteção social, baixa qualificação

singular e coletiva, criativa e angustiante, gratificante e

profissional e condições de trabalho insatisfatórias. Na

desgastante e que, para além do corpo do trabalhador,

pesquisa, 60% dos trabalhadores manifestaram algum

deve contar com sua capacidade relacional. Os conceitos

desconforto em relação ao processo de trabalho; suas

mais utilizados nesses estudos, mesmo que por vezes mal

queixas compreenderam desde o volume de tarefas e a

definidos, são aqueles relacionados ao campo da Saúde

burocracia excessiva, até a falta de colaboração e apoio

Mental do Trabalhador, tais como: estresse, desgaste,

dos colegas e do próprio gestor. As condições de traba-

sobrecarga, impacto, sofrimento psíquico, modos de

lho relacionadas à estrutura física dos serviços, também

subjetivação e vivência subjetiva.

deixa muito a desejar. No entanto, mesmo com todas essas limitações, 80% dos trabalhadores declararam que seu nível de satisfação, por trabalhar no Caps, é bom ou excelente. Os autores concluem que há um descompasso entre as políticas de recursos humanos implantadas – como a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS e o Programa Nacional de Despreca-

R E F E R Ê N C I A S

rização do Trabalho no SUS – e sua operacionalização no nível local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando a bibliografia brasileira disponível sobre a relação entre saúde e trabalho na área da Saúde Mental, percebemos que trata-se de um tema recente, que data de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990, predominaram os estudos em torno do conceito de estresse em profissionais da enfermagem e trabalhadores de hospitais psiquiátricos. Atualmente, os estudos não apenas cresceram significativamente, como se tornaram mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando os trabalhadores de Saúde Mental dos Caps. A bibliografia tende a destacar os desafios colocados aos trabalhadores pela proposta “cuidar sem segregar” que exige a redefinição de seu papel como profissional, sua relação com a equipe e os usuários, bem como sua concepção

Andrade, J.M.P. O risco como potencialidade no trabalho com saúde mental. In: Merhy, E.E.; Amaral, H. (Org.). A reforma psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo/ Campinas: Aderaldo & Rothschild/Serviço de Saúde Doutor Cândido Ferreira, 2007. p. 82-106. Antunes, S.M.M.O.; Queiroz, M.S. A configuração da reforma psiquiátrica em contexto local no Brasil: uma análise qualitativa. Cadernos de Saúde Pública. v. 23, n. 1, p. 207-215, 2007. Bandeira, M. Desinstitucionalização: estão os profissionais de psicologia preparados? Psicologia: teoria e pesquisa, v. 8, n. 3, p. 373-384, 1992. Bandeira, M.; Ishara, S.; Zuardi, A.W. Satisfação e sobrecarga de profissionais de saúde mental: validade de construto das escalas SATIS-BR e IMPACTO-BR. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 56, n. 4, p. 280-286, 2007. Bandeira, M.; Pitta, A.M.F.; Mercier, C. Validação das escalas de avaliação da satisfação (SATIS-BR) e da sobrecarga (IMPACTO-BR) da equipe técnica em serviços de saúde mental. Jornal Brasileiro de Psiquiatria,

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Ricardo Aquino 1 Thiago Ferreira de Aquino Rita Aquino 3

1

Diretor; curador do Museu Bispo do

Rosário Arte Contemporânea. [email protected] 2

Músico; mestrando do Programa

de Pós-graduação em Música na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio); professor da Escola Livre de

2

RESUMO É apresentado o modo de funcionamento, princípio ético e os fundamentos da Escola Livre de Artes Visuais, um setor do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea que oferece experiência com a criação artística. O museu define-se pela criação e é constituído como ‘instituição inventada’ na luta da cultura contra a psiquiatria disciplinar. PALAVRAS-CHAVE: Arte; Criação; Museu; Psiquiatria; Terapia artística.

Artes Visuais (Elavi). [email protected] 3

Dançarina; mestre em Dança pela

ABSTRACT One presents the modus operandi, ethical principles and foundations of Escola Livre de Artes Visuais (Elavi). Elavi is a section of Museu Bispo do

Universidade Federal da Bahia (UFBA);

Rosário Arte Contemporânea which offers experience with artistic creation. The

professora da Elavi em 2005-2006.

museum is defined by the creation and stands as an ‘invented institution’ in the

[email protected]

fight of culture against disciplinary psychiatry. KEYWORDS: Art; Creation; Museum; Psychiatry; Art therapy.

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

I N T R O D U ç ão

a criação artística como uma estratégia de combate à ciência psiquiátrica e aos seus efeitos. Benedetto Saraceno recomenda que:

Neste trabalho é apresentada a Escola Livre de Artes Visuais (Elavi) do Museu Bispo do Rosário

Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessitamos de esquizofrênicos cidadãos, não necessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a cidadania. (Saraceno, 1996, p. 16).

Arte Contemporânea inaugurada em 18 de maio de 2005. A Elavi é o segmento do museu que oferece

De fato, a Elavi enquanto setor do Museu Bispo

a possibilidade de experimentação artística, seu pe-

do Rosário Arte Contemporânea, que oferece experi-

ríodo de funcionamento é de segunda a sexta-feira,

ências com a arte, se coloca no campo da mudança e

matutino e vespertino, nas dependências do museu

do novo, contra o paradigma psiquiátrico clássico e o

localizado no perímetro do Instituto Municipal de

seu positivismo cientificista. O museu coloca em ação

Assistência à Saúde Juliano Moreira, na cidade do

as palavras de Friedrich Nietzsche, as quais sintetizam

Rio de Janeiro, e é aberta a usuários dos serviços de

sua inserção no debate das questões sustentadas pela

saúde mental, técnicos e comunidade. A característica

Reforma Psiquiátrica:

essencial da Elavi decorre do fato de ser um dispositivo sem medicamentos que oferece a possibilidade de experimentar a arte fora do circuito de tratamento, de oficina de terapia ocupacional, da arteterapia, ou

A história e as ciências naturais foram úteis para vencer a Idade Média: o saber contra a crença. Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida! (Nietzsche, 1987, p. 11).

outros. Trata-se de um espaço catalisado por artistas, sem a presença de qualquer profissional relacionado à Saúde Mental. O nome escolhido para a escola tem por referência o trabalho do psiquiatra e psicanalista Osório César

O funcionamento por três anos motivou esta apresentação em que são contemplados os fundamentos e, justificado o recurso da arte contra a psiquiatria.

desenvolvido na Colônia do Juqueri entre 1949 e 1971. O psicanalista denominava de Escola Livre de Artes Plásticas. A escolha da denominação Escola Livre de Artes Visuais foi dada em conformidade com a amplia-

MUSEU E REFORMA PSIQUIÁTRICA

ção do campo das artes plásticas, por intermédio do uso de novas mídias.

A Reforma Psiquiátrica se empenha pela mudança

O nome deste setor transmite a idéia de que os

do paradigma psiquiátrico que foi construído tendo

freqüentadores não são ‘doentes mentais sob trata-

por base o asilo e saber psiquiátrico. A Modernidade foi

mento’, mas sim estudantes ou aprendizes de vivências

construída sobre as bases das instituições e dos saberes de

artísticas. Portanto, a escola desloca o foco da saúde e

matiz disciplinar. A Reforma Psiquiátrica problematiza

doença para o da criação e cultura. Entende-se criação

as bases disciplinares da Psiquiatria: o asilo e o saber, e o

artística como algo inerente ao que todos os homens são

correlato disto na cidadania. Mais do que isto, a Reforma

potencialmente capazes. Desta forma, a Elavi sustenta

Psiquiátrica luta por um novo lugar social na cultura a

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

ser ocupado pela loucura e pelos que se encontram na

• o conceito do Museu Bispo do Rosário Arte

condição de sofrimento psíquico. Joel Birman (1992,

Contemporânea se baseia na crítica ao modelo discipli-

p. 72) destaca este como o eixo central da luta do mo-

nar de museu que se estrutura e define sobre a coleção de

vimento. Isto vem ao encontro das seguintes palavras

objetos. A coleção funda o museu disciplinar localizado

de Michel Foucault:

em um edifício, o qual funciona como um pan-óptico, como qualquer instituição disciplinar na qual se dirige

A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história. (Foucault, 2000, p. 157). A desconstrução das instituições e do saber que sustentam a psiquiatria exigiu a construção de novos dispositivos, denominados por Franco Rotelli (1990A) como ‘instituição inventada’. Esta necessidade decorre da mudança do foco do ‘mal obscuro’ (Rotelli, 1990B, p. 91) – os indivíduos recolhidos numa instituição – para ter como objeto as pessoas em situação de sofrimento psíquico. A ‘instituição inventada’ inventa uma nova maneira de cuidar, a partir de um novo olhar, sobre um novo objeto. O Museu Bispo do Rosário

o público a receber passivamente uma narrativa que tem por base uma história mestra, seja na esfera da arte, como da história humana ou natural. Pode-se sintetizar o modelo disciplinar de museu da seguinte maneira: museu = coleção + edifício + público. A crítica a este modelo exigiu do Museu uma nova definição assentada sobre a criação. A criação artística é o que possibilita estabelecer uma linha de fuga do controle do poder psiquiátrico. Como estudou Gilles Deleuze (2003) a criação é a resistência por excelência ao poder, sendo, conseqüentemente, o que funda o Museu. Segundo Deleuze (2003, p. 4), “existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência”. Para ele fazer arte é resistir: 

Arte Contemporânea é uma instituição inventada pelas necessidades e especificidades da luta na cultura. O foco de sua atuação é a defesa da cidadania plena da criação artística dos usuários dos serviços de Saúde

[...] Quando dizemos que ‘criar é resistir’, trata-se de uma afirmação de fato; o mundo não seria o que é se não fosse pela arte, (...) as pessoas não agüentariam mais. (Deleuze, 2003, p. 5).

Mental (Aquino, 2004). Com outras palavras, o Museu é uma instituição

A criação pode ocorrer em qualquer lugar denomi-

inventada na dimensão da luta na cultura que tem como

nado conforme Michel de Certau (2002, p. 202) ‘lugar

proposta o empenho em prol da Reforma Psiquiátrica

praticado’. Esta criação que é realizada no lugar pratica-

da criação artística dos usuários, museus e experiências

do e não mais no edifício sede do museu agencia relações

com a arte. Se a Reforma Psiquiátrica luta pela cidadania

em ressonância naqueles pontos da rede do tecido social

dos usuários e por instituições de cuidados em saúde que

que entram em contato com a ação de criação do museu.

respeitem estes direitos, o museu, por sua vez, é uma

Com isto de forma abreviada, o modo de funcionamento

‘instituição inventada’ que luta pela cidadania plena da

do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea é:

criação dos usuários.

museu = criação + lugar praticado + rede. A criação é o

Há três observações que ajudam a contextualizar a Elavi:

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elemento que funda o Museu em todo e cada segmento do seu funcionamento, inclusive na Elavi;

AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

• quando se fala em luta contra a psiquia-

de epistémê. A epistémê da Modernidade, a terceira

tria deve-se levar em consideração a observação de

e última estudada por Foucault, se alicerçou sobre

Foucault, referente à obra de Robert Castel: “[...]

o historicismo e o deciframento. O historicismo se

a psiquiatria não nasceu no asilo; ela foi, de saída,

apoiou no darwinismo e reservou ao ‘doente mental’

imperialista; ela sempre fez parte integrante de um

o lugar do primitivo, arcaico, não-culturalizado e

projeto social global” (Foucault, 2002, p. 325).

mais próximo ao animal. O deciframento é a atri-

Esta afirmação ganha maior relevo quando focada

buição daqueles racionais, adultos, machos, brancos,

para o fato de que a função de controle das institui-

europeus, de interpretar o sentido oculto das coisas

ções disciplinares tende a se espalhar por todo o corpo

e o último segredo dos fatos humanos. A psicanálise

social. Para Foucault, [...] o esquema pan-óptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. (Foucault, 1977, p. 183). A tendência prevalente é a disseminação das funções, entre elas o controle, exercidas dentro de cada instituição disciplinar pela sociedade, exacerbado a partir de 1945. Com isto, Deleuze (1996) denominou sociedade de controle a nova modalidade do poder de demarcar o tecido social que se observa cada vez mais na contemporaneidade. Assim, o poder psiquiátrico de controle circula pelo tecido social. Na sociedade de controle, sustentar a resistência através da criação artística é sustentar a própria vida, pois, “a vida se torna resistência ao poder quando o poder toma como objeto a vida”. (Deleuze, 1988, p. 99) Com isto, amplia-se a definição: o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea se estrutura tendo

e a etnologia atravessam os saberes da modernidade (Foucault, 1981, p. 396). A crise da sociedade disciplinar é concomitante à crise da epistémê da Modernidade. Para George Yúdice (2004), atualmente na sociedade de controle vive-se sob uma nova epistémê, a contemporânea, que é caracterizada pela ultrapassagem do historicismo e do deciframento: [...] propor uma quarta epistémê baseada na relação entre as palavras e o mundo que resulta das epistémês anteriores – semelhança, representação e historicidade-, mas que, no entanto, as recombina levando em consideração a força constitutiva dos signos. (Yúdice, 2004, p. 53). Este é o patamar para a apresentação da Elavi, enquanto setor do Museu que é uma instituição inventada pela Reforma Psiquiátrica na crítica do museu disciplinar e que se afirma como um museu da criação. A criação organiza e sustenta todos os aspectos do seu

por base a criação para se colocar como uma estratégia

funcionamento: a própria escola livre, as exposições, a

de resistência ao controle do poder psiquiátrico que

ação educativa, etc. O foco é a luta pela cidadania da

se exprime na cultura;

criação dos usuários na cultura. O seu funcionamento se exerce em sintonia com a sociedade de controle –

• a Modernidade foi marcada pela construção

enquanto uma estratégia de resistência ao controle

das instituições disciplinares e por uma nova raciona-

exercido pelo poder psiquiátrico – e também com a

lidade ou maneira de correlacionar as palavras e coisas.

racionalidade contemporânea em contraposição com

Foucault denominou a este arranjo do pensamento

a moderna.

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A RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA

Cooperação contra o comando O exercício do comando é a afirmação do consti-

Antonio Negri e Michel Hardt (2000, p. 453-

tuído, instituído, normatizado e do uniformizado. Ao

458) indicam as características da nova racionalidade.

contrário, cooperação é inovação. As práticas com a

Eles começam por identificar as cinco oposições que

arte na Elavi rompem com o esquema da racionalidade

caracterizam a contemporaneidade: (1) criação contra o

moderna. Isso significa estimular a criação artística, sus-

limite e a medida; (2) procedimento e processo contra o

tentar o procedimento, afirmar a igualdade, pressupor

mecanismo dedutivo; (3) igualdade contra o privilégio;

a diversidade e atuar em cooperação. Portanto, surgem

(4) entre diversidade e uniformidade e (5) cooperação contra o comando.

os três eixos de sustentação da Elavi.

Três eixos de sustentação da Elavi A nova racionalidade da Elavi • Efetiva subjunção da concepção de espaço à Criação contra o limite e a medida

concepção de tempo – Hardt e Negri afirmam que “a

É afirmado o caráter ilimitado e desmedido da

potência constituinte rompe o espaço e o transpõe para

potência de criação. Quando a potência cria, cria a si mesma, alterando todas as relações e colocando-se em um movimento de ultrapassar os limites e medidas, as quais, contra o poder da criação, lutam por reduzi-la. Procedimento e processo contra o mecanismo dedutivo Trata-se da afirmação da liberdade e do processo em luta com os enquadramentos externos da norma, da verdade, da instituição, do saber e da autoridade. Acrescenta-se, entre outros, da instituição e dos saberes psiquiátricos. É a afirmação da criação de novas singularidades agenciadas pela potência da arte. Igualdade contra o privilégio

o tempo” (Hardt; Negri, 2000, p. 439). Esta mudança, no eixo da temporalidade, implica redimensionar o referencial de espaço para o de lugar praticado: o tempo da criação, no presente, é que funda o espaço. • Continuidade da crise instaurada pela potência – Implica na valorização do evento da criação e não do lugar instituído, a Elavi é um lugar praticado pela criação artística que instaura a crise que é a possibilidade de mudança que o acontecimento possibilita. Os acontecimentos ou eventos como define Milton Santos não se repetem, são singulares: “Onde ele se instala, há mudança” (Santos, 2002, p. 146). A definição da Elavi é ampliada com a idéia de ser

O privilégio, por exemplo, dos técnicos ou do saber

um lugar praticado pela criação artística, que institui a

é contraditório ao movimento da potência, ilimitada,

crise permanente, a crise da criação desmedida, susten-

desmedida, não-institucionalizada. O privilégio promo-

tando-se assim enquanto uma clínica da desmedida, da

ve o bloqueio do processo.

criação permanente a provocar crises, ou seja, mudanças tanto externas – no ambiente – quanto internas nos

Entre diversidade e uniformidade

alunos e professores. Esta dinâmica do evento, no caso,

Decorre logicamente da oposição entre igualdade

da criação artística, pode ser alcançada quando este

e privilégio

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evento está catalisado e ocorre levando-se em contas

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as cinco oposições já descritas que levam a superar a racionalidade moderna.

Possibilita-se que os usuários criem o seu fazer artístico, valorizando a cooperação, sem a sugestão ou a cobrança de um saber psiquiátrico. Esta produção

• Mudança da natureza da práxis constitutiva

não está subjugada em seu nascedouro pelo olhar

– Para Hardt e Negri, “sua definição não é dada pela

interpretativo redutor a outra lógica ou saber. Nem

efetividade do êxito, mas pela ação efetiva no sentido

mesmo à concessão que se faz em arteterapia, quando

de tentar sempre um novo êxito” (Hardt; Negri, 2000,

se afirma que possibilitam os pacientes à se exprimir

p. 440). Na Elavi a práxis é sempre re-proposta. A

em outra linguagem, mais próxima daquela que pre-

potência se afirma em cada evento ou acontecimento,

domina no inconsciente, ou seja, por imagens e não

criando novas relações de tempo e espaço. Isto pode

por palavras.

gerar, em cada nível, novas subjetividades que são proporcionadas pela experimentação repetida. O objeto é a memória do ato e o importante é a aposta na criação desmedida através da arte. Na Elavi toma-se a potên-

A Elavi: ÉTICA E FUNDAMENTOS

cia da arte como a possibilidade de criação de novas subjetividades que resistem ao controle. Fica esclareido que o processo de afirmação da potência de criação é mais importante que o produto final – o objeto é a memória do ato. Todo o esforço se dirige à valorização do ato de criação e não do objeto final. A Elavi não quer ‘fabricar artistas’, pois estes são valorizados pelos objetos criados. A afirmação desta produção, enquanto arte é apoiada no fato de que o processo a ser ativado é o da criação artística, sendo o seu produto, o objeto, de natureza artística. Isto é atingido, desde que não se interponha outra lógica, a da razão e do pensamento. A Escola valoriza a produção artística dos pacientes,

Um princípio ético: as três metamorfoses A ilustração do que é a postura ética adotada na Escola Livre pode ser encontrada em Nietzsche (1988, p. 43-44), quando ele menciona as três metamorfoses: do espírito da suportação (camelo) ao espírito de rebeldia (leão) e, deste ao espírito de criação (criança). E indica então qual atitude do espírito que leva verdadeiramente à criação: é o dizer sim à vida. O artista é aquele que vê o mundo com o frescor de uma criança, ou seja, com a total abertura para o novo, aquele cuja postura não é a de ficar aprisionado ao “Sim”, tal qual a postura do camelo, à submissão aos ditames de, por exemplo, uma oficina, em que lhe seria solicitado que este criasse naquele momento, com aquelas pessoas, a partir daquele material, em muitas

não como objeto artístico ou produto final a ser reconhe-

até, que crie determinada forma de objeto, para tal ou

cido como arte de qualidade e o seu produtor, artista,

qual finalidade: a cura; um bazar; uma exposição; para

mas sim, deve-se valorizar a produção artística, no qual

agradar ao profissional, etc.

os usuários se empenham. Pois, nesta produção eles se

A postura de dizer “Sim” o condena ao simulacro e

fazem, constituindo novas subjetividades, segundo Niet-

o afasta da possibilidade de criação, condenando aquele

zsche: “A ‘obra’, aquela do artista, do filósofo, inventa

que a isto se submete a uma falsa identidade, alienado

em primeiro lugar aquele que a criou, que se supõe que

na submissão ao outro. Da mesma forma, a atitude de

a tenha criado” (Nietzsche, s/d, p. 199).

afirmar o “Não”, tal qual na postura do leão. Quando

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alguém se coloca nessa postura, sua identidade é cons-

cos – sejam de sua história pessoal ou institucional – e

truída em referência contrária a este outro.

sem nenhuma expectativa direcionada a uma finalidade,

A postura ética é levar às últimas conseqüências

objetivo, intenção ou projeto. O devir criança é o apaga-

a atitude de criar as condições para que as pessoas se

mento de qualquer sentimento ou ressentimento prévio

outrem, do verbo outrar, qual seja o exercício da capa-

ao processo de criação. Trata-se de promover o encontro

cidade da pessoa poder vir a ser um outro pelo recurso

da sensibilidade consigo mesma sem a interferência de

da arte. Os “outramentos”, ou novas subjetividades de

nenhum pensamento, nenhum traço de identidade ou

um tipo distinto daquelas constituídas pela repetição

referência de papel.

automatizada de padrões podem se afirmar quando

O catalisador não deve olhar o criador a partir de

ocorre um mergulho na criação, quando se afirma a

nenhuma expectativa: de ser artista ou doente; de conti-

desmedida da criação artística. Denomina-se clínica da

nuar o último trabalho; de criar algo para uma exposição;

desmedida a clínica ampliada no sentido definido por

de fazer algo para vender; de se colocar em tratamento;

Maurício Garcia (1996, p. 11) que se calca na criação

de ser um artista plástico; ou seja, a postura deve ser sem

artística, pois a arte não tem medida. Se houver medida

memória e sem desejo; sem nenhuma referência ao que

não há arte, pois esta é disruptiva por natureza, conforme

passou e sem nenhuma expectativa para o futuro.

afirmou Felix Guattari (1986, p. 36).

O silêncio das emoções não se aplica no caso da

Deve-se estar atento para que não se sucumba à ilu-

Escola. Vive-se no cotidiano um ruidoso e radical en-

são de que o fato de uma determinada oficina produzir

volvimento, principalmente, com o processo de criação.

‘produtos’, seria algo interessante sob o ponto de vista

As relações e os afetos circulam entre as pessoas no

da Reforma Psiquiátrica. Assim, até mesmo a realização

cotidiano das práticas. A intensidade dos afetos entre

de uma exposição não deve iludir. Deve-se atentar para

os freqüentadores acontece com as características da-

o fato de esta determinada oficina ou exposição estar

quelas prevalentes dentro de qualquer grupo humano.

fabricando ou não falsas identidades, constituindo ou

É possível definir que o grupo constituído na Elavi é

não falsos selves, mesmo que o de artista. E, refletir se

um grupo homogêneo com todos – alunos e professores

dinamiza a construção de uma nova possibilidade ou

– igualmente irmanados na criação artística. Trata-se

se está condenada ao passado, reproduzindo a lógica

de relações transferenciais, sim, como qualquer outra

disciplinar.

relação humana.

Para que a Elavi sustente as condições de afirma-

A relação transferencial não é operacionalizada,

ção do devir criança, deve-se estar atento para que os

entendida no plano da objetividade das relações

catalisadores também participem criando. Com isto,

humanas. Nem mesmo se coloca a ressalva de que

é eliminada a distância entre um ‘olhar de fora’ – téc-

numa atividade de arteterapia ou terapia ocupacional

nico ou profissional, dotado de um saber artístico ou

a transferência se desenvolve mediada pela imagem ou

de uma verdade psicológica -, no encontro com os

objeto. Na escola, o afeto que catalisa é a paixão de

aprendizes.

criar; a captura que a arte agencia em cada um e esta

A atitude dos catalisadores deve estar pautada pelo recomendado pelo psicanalista Wilfred Bion, ‘sem

paixão não deve ser mediada por nenhuma relação terapêutica ou transferencial.

memória e sem desejo’. Deve-se colocar junto ao aluno

A atitude de se colocar ‘sem memória e sem desejo’

sem ser o portador de nenhum de seus traços biográfi-

implica sustentar as questões surgidas e não obstruí-las

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

com alguma verdade, respondendo às solicitações ou

Fundamento primeiro: por uma estética não-

oferecendo respostas, promessas e perspectivas. Trata-se

aristotélica

de não oferecer respostas às questões e sim sustentar

Indica-se sumariamente que o Museu se insere na

a indagação. Busca-se sair da ilusão de verdade, que

luta contra o paradigma clássico da estética concebida

é o ancoradouro da ciência – falsa proteção de um

segundo os mesmos princípios que fundamentam a

saber que lança previsões e que é transcendente – para

ciência para Aristóteles, uma lógica do geral; algo que

se colocar numa relação imanente à sensibilidade.

pode ser entendido e reproduzido por qualquer um,

Localizando-se no aqui e agora da criação, sem certe-

desde que leve em conta as condições de emergência do

zas e verdades, mas com a potência da abertura para

fenômeno e que se assenta na possibilidade de se afirmar

o novo, inesperado, disruptivo, a desmedida, enfim,

os princípios gerais segundo os quais, dado efeito se ex-

a criação artística.

ternaliza. A estética foi concebida tal qual uma ciência.

Outro aspecto derivado da postura ética é o que

A arte, ao contrário, é de natureza singular e individual.

Frieda Fromm-Reichmann (1984, p. 27) postula,

Fernando Pessoa (1986, p. 240) sistematizou a crítica

referindo-se aos profissionais que atuam na Saúde

a esta arte aristotélica, caracterizando que esta tem por

Mental, de que o paciente não deva ser uma fonte de

finalidade a beleza. Também indica os princípios que

satisfação, realização, segurança para o terapeuta, nem

caracterizam uma estética não-aristotélica, apontando

mesmo nas fantasias.

para a idéia de força em contraposição a de beleza. Na

A aposta é no processo de criação e não nos resul-

Elavi não interessa uma estética – aristotélica – que se

tados, benefícios advindos do resultado, uso que vai

baseie na noção de beleza, que vem ao lado da de catarse,

haver do resultado, ou na promoção e gratificação dos

contemplação, acomodação ou adaptação.

profissionais envolvidos. Fromm-Reichmann chama a atenção para a situação em que o profissional inseguro ou insatisfeito não garanta uma transferência positiva

Fundamento segundo: a loucura é ausência de obra

dos usuários, reforçando laços de admiração e de gra-

A Elavi é apoiada no ensinamento de Foucault

tidão, o que estimula uma relação de dependência e

(2000, p. 156), que evidencia a relação de exclusão: a

infantilização. Isto deve ser levado em conta, pois se

loucura é ‘a ausência de obra’ (Foucault, 2000, p. 156).

trabalha com a arte e com produtos que podem vir a

Deleuze (1990) desenvolveu a seguinte tese, o paciente

ser valorizados no mercado repercutindo em ganhos

quando está criando se coloca num devir artista e clinica

financeiros ou de prestígio.

o mundo. Neste momento, o criador se coloca numa

Enfim, na Escola Livre, apostar num devir criança não se resume a uma recomendação técnica. Mais que

postura contrária da compulsão à repetição, prevalente na doença.

isto: trata-se de um princípio ético, visto que se articula

As práticas da Elavi estimulam o processo criativo

com uma postura básica de aposta radical na arte e na

e através deste possibilitam a construção de novas subje-

criação artística. É a afirmação da vontade de alinhar-

tividades. Isto leva a um processo inverso ao da loucura,

se numa postura contra o controle que possa ocorrer

enquanto a ausência de obra entrega à repetição do mesmo,

mesmo em dispositivos extramuros, pois, estas podem

sem diferenciação, sem a afirmação da diferença. A saúde é

reproduzir com a mesma intensidade uma relação de na-

entendida como o fluir do processo de criação e a doença

tureza asilar, como destacou Deleuze (1996, p. 220).

como a interrupção deste processo. O objeto final a que se

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atinge é a memória do ato de criação. O que importa de fato é a criação de novas possibilidades para o criador.

F – Os produtos são deles: o produto final pertence a seus criadores. Os usuários podem dispor de sua criação. G – Eles explicam: os autores ou criadores pro-

Fundamento terceiro: o objeto é a memória do ato A Elavi investe no processo de criação artística:

duzem discursividade sobre suas obras, recebem os visitantes e comentam suas obras.

não importa o objeto ou o produto final originado.

H – Exibir, segundo as correntes: Expõem-se as

Valoriza-se o processo de criação, sendo entendido o

obras segundo as correntes reconhecidas na História

objeto como a memória do ato.

da Arte. O Museu combate o uso das denominações que este segmento da criação humana recebeu no campo psiquiátrico, que as toma como sintoma de

A prática na Elavi: sumário A – Alunos: usuários, técnicos, artistas e comunidade.

doença mental: arte psicótica, psicopatológica, louca, teratológica, degenerada ou imagem do inconsciente. Da mesma forma, combate as denominações que

B – Artistas como catalisadores: artistas oriundos

surgiram no campo artístico conferindo minoridade

do campo da Saúde Mental ou do campo artístico

social à estas obras: arte virgem, bruta, outside art

conduzem os trabalhos. Estes são os propositores ou

ou folk art.

professores, denominados catalisadores. O catalisa-

I – Busca do estilo: Busca-se criar condições para

dor, tal qual na reação química, é o agente que cria

a constituição de novas subjetividades, a afirmação do

as condições para que determinada reação química se

estilo de cada um, numa direção contrária à da psiquia-

processe. Ele não está presente, nem no início nem

tria, de tratamento e cura.

no resultado do processo, sua ação é a de facilitar para que a reação ocorra, de forma mais rápida, mais eficiente. O professor não ‘ensina a fazer arte’, mas sim se coloca como exemplo e estimula a atitude da

CONCLUSÕES

criação. C – Fazer junto: todos os envolvidos nas práticas

Definir o Museu Bispo do Rosário Arte Con-

devem fazer juntos as mesmas atividades para evitar

temporânea, como um museu de criação, implica

o olhar controlador ou decifrador. Rompe-se com a

privilegiar a criação artística na exposição, na ação

prática de deciframento da criação sob qualquer teoria,

educativa, na E lavi , entre outros. São criadas as

escola ou autor.

condições para que o processo da criação se expresse

D – Diferentes linguagens: diferentes linguagens facilitam a livre escolha.

em seu mais elevado grau, na forma mais radical da arte, numa perspectiva que denominada ‘Clínica da

E – Saídas semanais: os alunos são convidados a

Desmedida’, posto que se operacionalize a arte sem

circularem pelos espaços sociais consagrados à arte, a

amarras numa postura de se contrapor à lógica psi-

conhecer outros artistas e seus ateliês, a receberem a

quiátrica, procurando através da criação artística, a

visita de outros artistas interessados em intercâmbio e

criação de novas subjetividades como resistência ao

troca de experiências.

controle do poder psiquiátrico.

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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Na Elavi, a criação artística não é usada enquanto terapia e se rompe com o deciframento da obra de arte. Quando se fala em cura, tratamento, terapia e outros a partir do referencial teórico da psiquiatria, diz-se: a Elavi não cura, não trata, não é terapia. Porém, cura, trata, e age no corpo teórico da psiquiatria: a arte contra a ciência. A

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criação é catalisada exclusivamente por artistas. Praticar oficinas com a arte pode implicar na repetição da lógica disciplinar, a qual fundou o saber psiquiátrico e o asilo. Nesse caso, se lança mão da arte – domesticada –, como já se lançou mão da psicanálise, dos grupos, das comunidades terapêuticas, do lazer e do trabalho.

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A Elavi permite a afirmação da obra em contraposição à loucura, ao criar as condições pra que estes gestos sejam reconhecidos, enquanto obra e estas falas são entendidas como linguagem. A prática clínica da Escola Livre é inserida no campo em construção da clínica ampliada que interessa à Reforma Psiquiátrica, no qual o eixo da cidadania é um dos referenciais e o alvo é o indivíduo em situação de sofrimento psíquico.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Saúde Mental e cultura: que cultura? Mental Health and culture: what culture? “Em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos” (Canclini, Culturas híbridas, p. 349)

Alexandre Simões Ribeiro

1

Psicanalista; doutor em filosofia pela

RESUMO A partir de uma crítica às perspectivas mentalistas fortemente presentes

Universidade Federal de Minas Gerais

entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde

1

(UFMG); professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) no

Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de

campus da Fundação Educacional de

cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental

Divinópolis (Funedi).

coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,

[email protected]

enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reforço das concepções mentalistas na Saúde Mental, o que seria um retrocesso para posturas excludentes. Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura. Para tal, são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção e hibridação a partir das análises sobre a cultura empreendidas por Canclini. PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental

ABSTRACT From a critical point of view to the mental perspectives, strongly operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to searching the joint of collective Mental Health with the culture. However, it is put in question what conception of culture would be supporting the advances in the field of the collective Mental Health. There are culture conceptualizations that reestablish reactionary positions and, therefore, are combined with traditional positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding postures. However, the conceptions after-critical of culture are more beneficial. The general lines of descollect concepts and hibridation from the analyses on the culture are herein displayed in the words of Canclini. KEYWORDS: Psychoanalysis; Clinical psychology; Mental Health

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Saúde Mental e cultura: que cultura?

Salas-ao-Lado

de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou

Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo

seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial

um interessante deslocamento nas rotinas e desafios que

em que a presença e a produção de diferenças, bem como

compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for-

a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,

mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias

o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada

propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contudo, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda era um tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais, fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado e consistente. Aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental poderiam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos de outros campos e problemáticas, não só relacionados à doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousarmos visitar, por assim dizer, a ‘sala-ao-lado’.

olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que garantiam a verdade, a ordem e o futuro. É justo sublinhar, porém, a necessária discussão acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em geral) de maneira não restrita às especialidades (a identidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidadefamília etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já devidamente abordada por alguns autores (Lobosque, 2001; Amarante, 2003). De certa forma, essa parece ser a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (CostaRosa; Luzio; Yasui, 2003). Certamente, a articulação das questões suscitadas pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em relação à cultura tem como repercussão a produção de um novo tom ou ânimo e, até mesmo, esperança em meio à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável. Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do que se entende por ‘cultura’, não conseguiremos ir além de

Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando

uma extravagante idolatria do ‘até-então-marginal’ (sob o

potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre-

escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)

cisamente a que se mostra sensível às considerações pós-

ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a

estruturalistas acerca da cultura. Tais circunstâncias e

acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob

resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma,

a forma do louco). Ora, se há de fato uma possibilidade

com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. Silva,

e o desejo de se fazer uma transformação no campo da

2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação,

Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma

conhecimento e cultura face às novas condições dos

hierarquização disfarçada (‘somos tão superiores que acei-

trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela

tamos a diferença!’), trata-se de se produzir a diferença e

bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas

não exatamente aceitá-la piedosamente. Em suma,

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[...] procuramos deixar claro desde o início que o projeto antimanicomial não se reduz a reformas assistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no âmbito da assistência só adquirem um caráter transformador quando se articulam com uma intervenção na cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figura do louco ao mesmo tempo como objetivo e efeito de sua implementação. (Lobosque, 2001, p. 30). Mas é vital estarmos atentos para a seguinte possibilidade: O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas às quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas. (Guattari; Rolnik, 2000, p. 15). Ou ainda: Atrás da falsa democracia da cultura continuam a se instaurar – de modo completamente subjacente – os mesmos sistemas de segregação a partir de uma categoria geral da cultura. Os Ministros da Cultura e os especialistas dos equipamentos culturais, nessa perspectiva modernista, declaram não pretender qualificar socialmente os consumidores dos objetos culturais, mas apenas difundir cultura num determinado campo social, que funcionaria segundo a lei de liberdade de trocas. No entanto, o que se omite aqui é que o campo social que recebe cultura não é homogêneo. (Guattari; Rolnik, 2000, p. 20).



Saúde Mental e cultura: que cultura?

tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentarse-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso isenta de rigor e, muito menos, de vigor. Reflexões desenvolvidas entre nós por Jairo Goldberg (1992), Paulo Amarante (2003), Abílio Costa-Rosa (2003), Ana Pitta (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros, certamente influenciados por uma série de movimentos, tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se impuseram no período pós anos 1950, em muitos países, apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes de um mesmo território; território este que já coloca em xeque a própria noção enrijecida de território, de espaço com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por conseguinte, de diferença). Ao articular essas circunstâncias, promovedoras de descentramentos, com o rápido quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um mundo pós-colonial?

A esfera e a clínica estrita Principalmente através dos diversos discursos e ações que compõem a psicologia, algo se impôs em nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam oficialmente desde a segunda metade do século 19): a apreensão do psíquico como uma interioridade, como algo que se apresenta como posse individualizada e, em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível marca individualizante e, por isso, identitária. O psíquico, como um emaranhado de traços, memó-

O deslocamento

rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem-

Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria

pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos

a freqüentação de salas-ao-lado? Trata-se da migração de

e ações que extrapolam de forma marcante o campo da

uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos

psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença

calcados em prerrogativas mentalistas para uma perspec-

maiores: a psicologização. A constituição de identidades

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Saúde Mental e cultura: que cultura?

calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên-

Para continuarmos a localizar grandes marcos e

cia direta desse homo psychologicus, finamente construído

momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a

ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo

nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de

industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a

Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que

idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista)

ali se produziu, a ampliação da prática da introspec-

enquanto descobridor do inconsciente. Tão recorrente e

ção ao leitor comum como via de prospecção de uma

homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo

idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que

que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido

Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,

de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do

o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no

discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma

homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e

leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que

os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube

Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha

matricialmente chamar atenção para um caminho que

que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição

se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da ‘fala-

de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava

de-si’ para o outro do externo, do dado a ver: o nosso

aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos

interior. A notória frase de Montaigne, “o que sou eu

do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma

sou para mim mesmo importa mais do que eu significo

espécie de ‘servidão voluntária’ para, então, retomar a

para os outros” (1991, p. 47), ilustra precisamente a

incômoda expressão de La Boétie (1999). Essa servidão,

dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne

que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se

ou por ele, mas em seu tempo, desde então.

em mentalismo.

A ampliação desse processo para aqueles que nem

Todavia, é justo frisar que a noção de interioridade

leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor-

psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an-

mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como

tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da

erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe-

psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu

are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a

rastro em Santo Agostinho e em suas reflexões confes-

reconhecermo-nos como dominados por uma profun-

sionais. A partir de outro ângulo, podemos notar que

didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou

com Descartes (1596-1650), a interioridade é elevada

a entreouvir-nos.

a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen-

O projeto de dominação, discernimento e ades-

talização da razão, ou seja, a esta localização da razão

tramento desse insondável não está em Shakespeare;

como ferramenta que moverá, doravante, o mundo.

sejamos justos, pois ele privilegia perspicazmente o

Aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada

paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde

pelo próprio autor: Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu ligar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável. (Descartes, 1979, p. 91).

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então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao mesmo tempo, nos descompletássemos e transformássemos. A colonização do psíquico interiorizado foi, a despeito disso, uma decorrência da modernidade. Curiosamente, debates que parecem ser bipolarizados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas materialistas (hoje, significativamente reerguidas com

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Saúde Mental e cultura: que cultura?

o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente

Esse imaginário que promulga a detenção privada e,

paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu-

em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental

larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao

é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da

que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano:

psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des-

a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos,

vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação

regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria

freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas

o espaço mental e o espaço do mental. A própria idéia

ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância

de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes,

clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir

é um corolário dessas perspectivas.

a posição do psicanalista – “o eu não é senhor em sua

Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia,

própria morada” (1976, p. 178) – não conseguiu le-

sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por

vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa

Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o

ótica esférica acerca de nós mesmos.

‘fantasma na máquina’ (para retomarmos o tropo pro-

Ótica esférica de nós mesmos. O que isso significa?

posto por Gilbert Ryle em 1949, em O conceito de mente;

Essa organização que nos conduz a um pathos dicotô-

cf. Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito

mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que

da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica,

as esferas à semelhança do que Guimarães Rosa (1988)

tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos

propõe acerca dos espelhos1, são muitas.

excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa,

Quão comum é, entre psicanalistas, professores e

e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico

alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos

e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente

a postulação do inconsciente menos como desconti-

em outra forma de essencialismo.

nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como

Certamente, há razões para que essa imagem da mente como espaço internalizado (ou locus privado) seja

‘impossibilidade de totalização’ e mais como duplo que, substancialmente, me habita?

tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como

Essas localizações sempre comportam efeitos clíni-

óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em

cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,

psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica,

somos levados a compreender que na passagem do sé-

ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma,

culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe

adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria

implicações agudas que ultrapassaram em muito seus

em uma forma de behaviorismo radical.

espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a

O estabelecimento de espaços a serem conquistados,

clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos

demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das

outros campos obtiveram seus delineamentos. Tornou-se

importantes decorrências da razão instrumental e da mo-

possível, a partir da medicina, amparada principalmente

dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora,

pelo método anátomo-patológico, estabelecer um saber

produto e processo dessa cena, conforme Dumont (1985),

sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come-

restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço

çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não

interior hipostasiado sob a forma de mente.

se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,

Conto O espelho (Rosa, 1988, p. 65.)

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Saúde Mental e cultura: que cultura?

genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber

Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con-

este que não mais se volta para o estudo das doenças

duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se

tomadas como realidade em si, mas como específicas a

contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de

quem é afetado por elas. A clínica tornou possível uma

platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos

episteme do particular.

o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando

O passo seguinte, no campo das psicologias, foi

não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo

conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as-

que um psiquismo que se coloca no ‘entre-dois’ e não exa-

sim, a clínica do psíquico. Dessa forma, a clínica pôde se

tamente em um in ou out seria uma rota viável e oblíqua

sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem

aos poderes dos discursos essencialistas.

etimológica, fazendo com que o ‘klinos’ implicasse em

Porém, sobretudo a partir da performática concilia-

um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse

ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja

abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade.

a possibilidade de a ciência, através de uma englobante parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os atuais modos de produção, circulação e consumo de

A dobra da esfera Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no início desse texto tem íntima relação com o afrouxamento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados tanto para o melhor quanto para o pior, por um outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fenômenos contemporâneos, que partam de perspectivas solipsistas. O solipsista é aquele que nos propõe que ‘meu mundo é meu mundo’, tamanho o compromisso com essências, apriorismos e categorias universais que independem da história e da política, ou seja, que não se inscrevem em e através de processos contestados. Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se como a medida da vida. Apresento a hipótese de que a crescente reflexão, ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na ‘Saúde Mental coletiva’ como espaço poroso e afeito a uma constante reterritorialização do psíquico, não seria possível sem que se instale uma sincronicidade entre esses processos e as reterritorializações implicadas nos estudos voltados à cultura, desde um viés antiessencialista.

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bens (rapidamente chamados de globalização), temos a inundação de explicações e imagens fisicalistas do funcionamento da vida em todos os seus aspectos e, em especial, de nosso pathos. A exacerbação do espaço individual, e não mais opaco ao organismo, colocou o sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele. Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspicazmente a forma como palavras e processos demarcadores de alguns aspectos de nossa condição, tais como tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à adaptação, tais como ‘depressão’, ‘distimia’, ‘síndrome do pânico’, ‘ansiedade’ e ‘afetivo-bipolar’. Nitidamente, temos o mercado aberto a todos os ‘especialistas do bemestar’ que buscam um patamar de qualidade total, versatilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental. O mal-estar ganha, pois, uma visibilidade performática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de Benilton Bezerra (2002, p. 235): Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito interior ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as

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regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das sensações e do espetáculo, o malestar tende a se situar no campo da performance física ou mental falha, muito mais que em uma interioridade enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos prevalentes parecem atestar isso: fenômenos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar a obtenção de satisfação, que se torna compulsiva pela via das drogas ilícitas, dos medicamentos, do consumo, da ginástica e do sexo), transtornos vinculados à imagem ou á experiência do corpo (bulimias, anorexias, ataques de pânico), depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação, empenho).



Saúde Mental e cultura: que cultura?

Compreendo que os profissionais atuantes na área da Saúde Mental possam obter uma interessante dobra em seus tecnicismos realizando visitas à sala-ao-lado. Um empolgante espaço de desconstrução de categorias e perspectivas essencialistas vem sendo empreendido nas problematizações acerca da cultura. Dentre diversas possibilidades que participam de um amplo quadro (que poderíamos denominar pós-crítico ou pós-estruturalista a título de uma nomeação um tanto quanto precária), encontramos a argumentação de Nestor García Canclini em seu livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em relação ao tratamento dicotômico e essencialista reservado,

Saúde Mental COLETIVA E CULTURA: ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO Uma das características mais marcantes do campo da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possibilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo-

classicamente, à cultura (suas produções, seus processos, suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só à cultura. Recorrendo a dois conceitos mutuamente implicados – os conceitos de ‘hibridação’ e de ‘descoleção’ – Canclini procura argumentar que não mais podemos compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos (por exemplo, cultura erudita/cultura popular, cultura massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno, tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a partir da suposta segurança dos lugares em que ela é produzida

delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria

ou, a princípio, contida. Trata-se, por conseguinte, de

que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas

se desomogeneizar a cultura.

e dúvidas estão em estado de ‘descoleção’, isto é, estão

Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu-

desterritorializados quando cotejados com a situação

mentação que questiona o estatuto de locais destinados

anterior. Descolecionar leva a ‘deslocar’, ‘decolar’, ‘des-

à cultura e à preservação da história ou do patrimônio

colar’ e, muitas vezes, a ‘des-escolarizar’.

cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se

Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos

dá usualmente com os museus e os monumentos.

muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como

Ao falar em hibridação, isto é, a constante articu-

de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação,

lação entre elementos supostamente puros e discretos,

aqui, não implica em um aparato teórico que conduza

promovendo outros elementos, estruturas, processos

à representação do real em suas minúcias para melhor

que apagam as certezas em relação às fronteiras de-

compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de

marcadoras, conforme Canclini (2006, pxix), somos

dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante

conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.

de tornar a novidade algo transmissível.

Segundo Canclini:

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O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos e os signos em lugares específicos: as mercadorias de uso atual nas lojas, os objetos do passado em museus de história, os que pretendem valer por seu sentido estético em museus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitidas pelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas, e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas e pelos meios massivos de comunicações. Uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de percepção adequados a cada situação2. (2006, p. 300). A descoleção é uma decorrência da hibridação e, enquanto tal, implica em repensar os modos e usos dos poderes: A partir do que viemos analisando, uma questão se torna fundamental: a reorganização cultural do poder. Trata-se de analisar quais são as conseqüências políticas ao passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada, das relações sociopolítica. (Canclini, 2006, p. 345). Talvez tivesse valia a amplificação de uma descoleção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não bem como técnica de revelação do incógnito ou arte interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que instaura descontinuidades e, portanto, devires. Tal como

R E F E R Ê N C I A S

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convidam as palavras de Benilton Bezerra: O que determinará o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será sua capacidade de atualizar aquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação de um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência humana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238).

Descartes, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Dumont, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

Vale ressaltar que o conceito de hibridação se torna mais potente à medida em que a hibridação não implica em junção totalizante, bem como na proporção em que é um processo que implica em perdas e ganhos. Ainda segundo Canclini, “é necessário registrar aquilo que, nos entrecruzamentos, permanece diferente” (2006). 2

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Saúde Mental e cultura: que cultura?

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the Companhia Experimental Mu...dança

Myrna Coelho

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1

Psicóloga; coreógrafa; mestre em

Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP);

RESUMO Este artigo trata dos percursos da construção coletiva do espetáculo de dança-teatro das loucuras Da História, pela companhia Experimental Mu...

professora do curso de Psicologia da

Dança, no município de Diadema entre 1999 e 2001, e seus desdobramentos

Universidade Nove de Julho (Uninove);

até 2005. A Companhia Experimental Mu...Dança é um grupo de dança-teatro

[email protected]

formado em 1999 por pessoas com grave sofrimento psíquico e militantes do Movimento da Luta Antimanicomial. Esse espetáculo tem 80 minutos de duração divididos em 16 coreografias criadas coletivamente, a partir de dois eixos definidos pelos participantes: como o grupo vivenciou o processo de enlouquecimento e o conceito de loucura. A partir da interface arte-loucura, essas experiências são definidas como criação de um espaço de participação política. PALAVRAS-CHAVE: Transtorno mental; Aceitação social; Política social.

ABSTRACT This paper presents the construction trajectory of the dance-theater show das loucuras Da História created by the Experimental Company Mu... Dança, in the city of Diadema, São Paulo, Brazil, between 1999 and 2001, as well as its development until 2005. This is a dancing-theater company created in 1999 by people with psychiatric disorders and militants of the antimanicomial movement. The referred show has 80 minutes and presents 16 choreographies that have been developed by the integrants of the group, based on two subjects: how the group experienced the process of becoming “crazy” and the concept of craziness. Supported by the art/craziness interface, these experiences are defined as the creation of a space with political participation. KEYWORDS: Mental disorder; Social desirability; Public policy.

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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

I N T R O D U ç ão

a prática de “oficinas terapêuticas” como “uma das principais formas de tratamento oferecido nos Caps” (Brasil, 2004). Ressalta-se que nessas manifestações artísticas, os dispositivos materiais e institucionais que as atraves-

O presente trabalho tem por objetivo discutir um

sam, isto é, o ambiente onde o indivíduo manifesta sua

dos aspectos principais da Reforma Psiquiátrica brasi-

criação, bem como aqueles de que dispõe para efetuar

leira: a dimensão sociocultural.

sua criação, as referências de sua história de vida, de sua

Segundo Amarante (2007, p. 73), a dimensão

própria subjetividade e da relação de si com a instituição

‘sociocultural’ expressa o objetivo maior da Reforma

à qual está subordinado, marcará as possibilidades de

Psiquiátrica, ou seja, a transformação do ‘lugar social’

sua obra.

da loucura, pois o imaginário social – decorrente da ide-

Mas, infelizmente, o fato de inserirmos práticas

ologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona a

artísticas em Saúde Mental não garante que elas sejam

loucura à incapacidade do sujeito em estabelecer relações

antimanicomiais e, portanto, subordinadas teorica-

sociais e simbólicas. Dessa forma, o aspecto estratégico

mente ao paradigma da Reforma Psiquiátrica, o que

desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que

garantiria sua inserção real na dimensão sociocultural.

visam transformar a concepção de loucura no imaginário

Nesse processo, muitas ações acabam por afirmar o

social, transformando, assim, as relações estabelecidas

pensamento manicomial, reforçando preconceitos e

entre sociedade e loucura.

prestando um não-serviço à população. Por isso torna-se

De acordo com o ideal da Reforma Psiquiátrica, as transformações devem transcender à simples reor-

tão necessário que tais práticas contemporâneas possam ser discutidas.

ganização do modelo assistencial e alcançar as práticas e concepções sociais, intervindo não apenas no funcionamento dos serviços e na formação profissional dos técnicos envolvidos, mas no profundo e complexo

A Companhia EXPERIMENTAL MU...DAN-

fenômeno da ‘representação social da loucura’. Devemos

ÇA E A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA

pensar o campo da Saúde Mental não como um mo-

REFORMA PSIQUIÁTRICA

delo, mas como um processo. Para tanto, a dimensão sociocultural é fundamental.

Mesmo sendo Política Ministerial, as oficinas artís-

Nesse processo, novas práticas surgem constante-

ticas dentro de um Caps não são unanimidade teórica.

mente, em especial aquelas que fazem uso das linguagens

Os saberes do campo da Saúde Mental não são únicos, há

artísticas. Com o advento e a proliferação, especialmente

muitas divergências que se colocam especialmente entre

nas duas últimas décadas, de serviços substitutivos ao

dois paradigmas. De um lado, o manicomial baseia-se,

manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a

como nos adverte Foucault (2000), em uma invenção da

ser amplamente utilizadas e, com isso, estudadas par-

loucura como doença mental que pede um tratamento

ticularmente no campo da Saúde Mental. Inclusive, a

fundamentado na moralidade e na medicamentação,

legislação brasileira que regulamenta o funcionamento

propondo, num processo de banalização do sofrimento

dos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps) insere

e da natureza humana, que qualquer investimento de

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cuidado em Saúde Mental seja um investimento voltado

da região nordestina, tornou-se interessante a criação de

para a ‘doença’, nunca para os sujeitos da experiência.

um projeto que resgatasse, a partir das danças populares,

Já o paradigma antimanicomial, desenvolve várias ações

histórias culturais das pessoas que estavam no Capsi, das

que buscam transformar o imaginário social em relação

origens de suas famílias, de antigos costumes e rituais.

à loucura, à doença mental, à anormalidade e que se

Iniciamos o projeto como grupo aberto e, com o

referem a um conjunto de práticas sociais que possam

passar do tempo, pudemos perceber que nossa proposta

construir solidariedade, a inclusão dos sujeitos em des-

de trabalho não fazia sentido: o grupo queria dançar seu

vantagem social, a diferença e a diversidade (Amarante,

encontro com a loucura, suas histórias de vida e enlouque-

1999, p. 51).

cimento. A partir daí, mudamos os objetivos do grupo.

Temos o relato de uma experiência paradigmática

Num processo coletivo de discussão e decisão, inventamos

da dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica,

a Companhia Experimental Mu...Dança e construímos seu

possibilitada pelo trabalho iniciado em 1999 no Centro

primeiro espetáculo, das loucuras Da História.

de atenção Psicossocial (Capsi) de Diadema (município

Decidimos, em primeiro lugar, coreografar coleti-

da periferia de São Paulo), época em que trabalhávamos

vamente um espetáculo que problematizasse as histórias

com arte na tentativa de encontrar novas formas de con-

de enlouquecimento dos participantes com o objetivo

vivência respeitosa e digna com as pessoas que buscavam

de apresentá-lo o máximo possível para militarmos na

auxílio em Saúde Mental, coisa que o pensamento mani-

reinserção social da loucura, ou seja, travar debates

comial não leva em conta. Como estagiária de psicologia,

com as platéias sobre a loucura e o Movimento da Luta

uma das atividades propostas pela ‘comissão de ensino’

Antimanicomial, divulgando-o e contribuindo para

da instituição a serem cumpridas era a realização de

modificar o lugar social do louco. As apresentações eram,

um projeto que unisse a experiência de coordenação de

portanto, um norteador fundamental do trabalho sem o

grupo com um desejo pessoal do estagiário. Por conta

qual o mesmo não se justificaria. A construção coletiva

de minha história pessoal como bailarina, eu e minha

surgia em nosso trabalho a partir de Hannah Arendt

supervisora de estágio, Patrícia Villas-Boas Valero, de-

(2003) e sua distinção entre trabalho e labor, distinção

cidimos montar um ‘grupo de dança’ .

esta gerada por uma sociedade da produção. A idéia do

1

A princípio, esse grupo se preocupava em recontar

trabalho está comumente ligada ao suor e à supressão,

as histórias culturais familiares dos participantes através

mas Arendt chama nossa atenção para o quanto estes

das danças populares brasileiras, pois hipotetizávamos que

aspectos relacionam-se com a idéia de ‘labor’, conceito

um dos causadores do enlouquecimento é a vivência da

que expressa ciclos repetitivos, de longa duração. Já no

aculturação. Segundo Redko (1998), tanto a incidência

‘trabalho’, transcendemos nosso próprio universo na

quanto a evolução de graves sofrimentos psíquicos estão

medida em que, necessariamente, nos identificamos com

ligados aos conflitos psíquicos inescapáveis ligados à

nossa produção criativa, diferindo-a da natureza. Isso faz

questão da imigração, à vivência pessoal ou familiar, ao

do ‘trabalho’ uma atividade tipicamente humana, que

distanciamento de elementos de sua cultura tradicional.

nos possibilita construir histórias. É a diferença entre

Sendo a população de Diadema composta em sua maioria

fabricar bens duráveis e não duráveis, produzir fruição

por migrantes, especialmente naturais de Minas Gerais e

de beleza e produzir escravidão.

Esta experiência está descrita e analisada em nossa dissertação de mestrado das loucuras Da História: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social, apresentada ao programa de pós-graduação Iterunidades em Estética e História da Arte da USP, 2007. 1

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008

Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

O segundo ponto fundamental do trabalho da

repetição, mas a usa consistentemente para subverter

Companhia Experimental Mu...Dança era que, além

seu próprio processo de dominação corporal, no aspecto

de recontar as próprias histórias de enlouquecimento,

estético, cognitivo e social, para dançarinos e para o

pudéssemos questionar o conceito de ‘loucura’ estabe-

público. Através da repetição, sua companhia, o Wu-

lecido em diferentes culturas e épocas históricas. Para

ppertal Dança-Teatro, transforma estáveis polaridades.

tanto, montamos um horário de ‘grupo de estudos’ que

Simultaneamente natural e linguístico, experiencial e

ocorriam por meio de visitas à biblioteca e à videoteca

automático, pessoal e social, o corpo ‘reconta’ e ‘redança’

municipais e discussões acerca de livros como História

sua própria história de fragmentação, ausência e domi-

da loucura, de Michel Foucault e Dom Quixote de La

nação, repetindo e transformando constantemente, ou

Mancha, de Miguel de Cervantes. Esse segundo ponto

seja, ‘redefinindo’ a dança (Fernandes, 2000).

viabilizava a construção de uma visão crítica a respeito da

Vale lembrar que durante todo o processo de cons-

própria loucura, e foi proposto pelos bailarinos do grupo

trução de Pina Bausch, as preocupações coreográficas

no momento em que deixaram de olhar apenas para o

centram-se na valorização e reapropriação da gestua-

próprio sofrimento e despertaram para os fenômenos

lidade individual. Assim, na Companhia Experimental

que contribuíram com a construção social da loucura.

Mu...Dança, construímos pontes destas preocupações

Um terceiro ponto do trabalho foi a definição de

coreográficas com o grupo, ampliando as possibilidades

que, como militantes e aspirantes da divulgação da

criativas (Castro, 1992).

nossa causa, deveríamos ocupar a cidade, “levando o

Em nossa Companhia entendemos que na contem-

delírio à praça pública” (Pelbart, 1990, p. 134), ou

poraneidade estamos muito distantes de nosso corpo e, no

seja, não deveríamos ensaiar no ambulatório, mas em

caso de pessoas que tiveram histórias de confinamento em

espaços dedicados a atividades culturais da cidade, onde

instituições psiquiátricas, a relação com o corpo fica ainda

se encontrava nosso público-alvo. Assim, ensaiamos no

mais prejudicada. O corpo é visto como meio para a ob-

Centro Cultural Okinawa em dois momentos: quando

tenção de lucro (Weil, 1990), tornando-se visível apenas

funcionava como um centro cultural, e quando abrigou

no binômio trabalho-consumo, distante do que Keleman

a guarda municipal. Ensaiamos, também, no Centro

(2001) chama de experiência da corporificação.

Poliesportivo da cidade, no Teatro Municipal (Centro

Partindo dos pilares apresentados, as pesquisas do

Cultural Clara Nunes) e na sala de dança do Centro

grupo levaram a construção do espetáculo por três eixos

Cultural Serraria.

norteadores: histórias/experiências de enlouquecimento

Nosso último ponto fundamental do trabalho foi

dos bailarinos, histórias de tratamento dos bailarinos,

a definição da técnica artística utilizada: a dança-teatro,

estudo sobre a história da loucura e sua inserção em

em especial sua expressão contemporânea desenvolvida

algumas culturas. Assim, o espetáculo das loucuras Da

pela bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch.

História conta com 16 coreografias distribuídas em 80

As obras de Bausch não apenas utilizam-se da re-

minutos, criadas a partir das biografias dos próprios

petição como método ou artifício coreográfico, mas a

bailarinos e pesquisadas a partir de três temas escolhidos

incorporam como um tema a ser criticamente retalhado

pelo grupo: O que é loucura? No decorrer da história

e decomposto, até gerar o inesperado e, supostamente,

da civilização, ela recebe o mesmo significado? Esse(s)

o oposto: a diferença, a transformação. A dança-teatro

significado(s) existe(m) independentemente da cultura

de Bausch não rejeita nem serve à força disciplinária da

e da época em que o fenômeno está inserido?

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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

Em nossa dissertação, concluímos que a Companhia

foi proposta e construída, tornou-se um facilitador

Experimental Mu...Dança possibilitou aos bailarinos

para que o grupo pudesse despir-se do manicômio

‘desgrudarem-se’ das experiências de enlouquecimento

mental (Pelbart, 1990). Apesar de todos nós sermos

e deixá-las no passado, saindo do lugar de ‘troca-zero’ da

militantes do Movimento da Luta Antimanicomial e,

loucura para a descoberta de outros lugares do mundo.

ainda, apesar dos Caps serem instituições baseadas na

A metodologia de construção desse espetáculo tornou-se

lógica da Reforma Psiquiátrica, é comum percebermos

visível. A partir da análise do espetáculo apontamos e

que as relações estabelecidas nessas instituições ainda

refletimos sobre as mudanças despertadas nos bailarinos.

são baseadas em relações de saber-poder, ou seja, os

A possibilidade de sair de um lugar de ‘troca-zero’ para

profissionais ‘psi’ têm uma posição privilegiada sobre os

um lugar de criação abriu caminho para que outras

sujeitos acometidos de sofrimento psíquico. Enquanto

potencialidades fossem exploradas por eles. Sair do

os profissionais são bombardeados desde o início de sua

papel social do louco é abrir-se para a possibilidade de

formação com uma verdade paradigmática que institui

ocupar múltiplos papéis sociais. A apropriação de uma

as relações de certo e errado, profissional e paciente,

nova linguagem, a vivência de uma construção grupal,

doente e são, louco e arrazoado, os pacientes, em suas

a ampliação da percepção sobre si e dos outros e a luta

histórias de tratamento (ou tentativa de tratamento)

pela mudança do imaginário social a respeito da loucura

são bombardeados com informações a respeito de certa

trouxeram ao grupo uma vivência do trabalho como

doença incurável, da dependência do saber profissional

construção de linguagem.

e mesmo da subordinação a ele. Mudar essa relação é

A transformação do ‘sintoma’ do sujeito em uma

mudar a si mesmo.

característica de estilo da personagem que ele repre-

Assim como a Companhia Experimental Mu...

sentaria apresentou-se durante todo o trabalho como

Dança, muitos outros projetos inseridos na dimensão

um método bastante significativo. Uma saída para a

sociocultural da reforma se tornaram paradigmáticos.

construção da tarefa e das personagens, mas também

Portanto, torna-se necessário que pesquisas sejam

uma maneira diferenciada de trabalhar com aquelas

feitas de modo a sistematizar tais experiências para

pessoas. Percebemos que ao transformar o ‘sintoma’ em

que seja possível compreender os procedimentos me-

‘estilo’ fornecíamos um novo sentido do ‘sintoma’ para

todológicos comuns que garantiriam uma verdadeira

o sujeito, que poderia, a partir de então, entendê-lo

inserção na dimensão sociocultural e a facilidade de

como algo que fosse além dele mesmo. Com o passar

novas experiências.

do tempo, pesquisando e estudando as personagens, o sintoma ‘desgrudava’ minimamente dos bailarinos, que assumiam novas possibilidades de identidade produzindo algo além da loucura: a arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a valorização da formação do vínculo como intermediário da tarefa, todos puderam perceber que

No momento em que a Secretaria Nacional de

para que o objetivo do grupo fosse alcançado com êxito

Identidade e Diversidade Cultural criou uma política

era necessário que todos se empenhassem e expressas-

específica para financiar projetos culturais no campo

sem sincera opiniões. Esse fato sustenta o paradigma

da Saúde Mental, é veemente que esse financiamento

antimanicomial na medida em que essa tarefa, tal como

seja direcionado pela qualidade dos trabalhos realizados

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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança

e efetivo apoio às pessoas com sofrimento psíquico,

idéias e opiniões, pois o trabalho realizado é de todos

promovendo uma política de cura que garanta a disse-

e diz respeito aos processos de subjetivação e interação

minação do Movimento da Luta Antimanicomial na

de todo o grupo, ao passo que cria uma concretude

cultura.

para esse processo, tornado visível justamente no fazer

Sabemos que no atual estágio do capitalismo, no

artístico, na arte.

qual técnica e razão se sobrepõem à subjetividade e ao

Assim, hipotetiza-se, a partir da experiência da

sentimento, as artes podem transformar essa situação em

Companhia Experimental Mu...Dança que, além da qua-

criação para a autodeterminação. Nesse contexto a arte

lidade técnica dos trabalhos realizados na dimensão so-

se mostra um meio de conhecimento, instrumentos de

ciocultural da reforma, o que garante a essas experiências

aprendizado e, por ser uma ‘ação’ coletiva, possibilita o

seu verdadeiro envolvimento pelos ideais da Reforma

encontro e a atitude.

Psiquiátrica é, justamente, a existência da ‘ação’.

Ao falar em ‘ação’, somos remetidos ao conceito proposto por Arendt (2003). Para a autora, a ‘ação’ é a única atividade exercida diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. Para que ela ocorra, é necessário que exista um ‘espaço público’, ou seja, um espaço correspondente à condição humana da pluralidade. Um espaço em que ‘iniciativa’ e ‘palavra’

R E F E R Ê N C I A S

circulem, conferindo a todos o mesmo direito de expressar suas diferenças na construção coletiva. A ‘ação’ é a condição para a vida política, a condição necessária para que os sujeitos sejam protagonistas de seus papéis como zoon politikon2 na construção coletiva de transformações das realidades humanas. A ‘ação’ se consolida, então, como a condição humana fundamental. Se pensarmos que a construção do ‘espaço público’ é justamente proporcionada por um espaço horizontal e criativo onde as subjetividades circulam, podemos afirmar que a experiência de criação artística coletiva pode ser uma tentativa de construção de ‘espaço público’, ou seja, de experimentação da ‘ação’, a principal característica dos homens. A criação artística coletiva proporciona aos envolvidos a experiência da ‘ação’. Todos sabem que podem tomar a ‘iniciativa’ da ‘palavra’ para colocarem suas

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Animal Político

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva The territorial action of the Centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature

Renata Martins Quintas Paulo Amarante 2

1

Psicóloga; mestre em Saúde Pública

RESUMO Tomou-se como campo de investigação um Centro de Atenção

pela Escola Nacional de Saúde Pública

Psicossocial (CAPS), situado no município do Rio de Janeiro, para verificar como

1

da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/ Fiocruz).

se organiza o seu cotidiano, investigando as possibilidades de suas ações tanto no

[email protected]

seu interior quanto em relação ao território. Foram eleitas como categorias de análise: a responsabilidade pela demanda, a porta aberta, a atenção às situações

2

Doutor em Saúde Pública, pesquisador

titular da Ensp /Fiocruz. [email protected]

de crise e o trabalho territorial, por estas características se articularem em um serviço substitutivo. Utilizou-se de observação participante e de entrevistas semiestruturadas com profissionais do serviço. A investigação ressalta a importância de chegar ao cotidiano deste dispositivo um entendimento das transformações que pode operar. PALAVRAS-CHAVE: Território; Serviço substitutivo; CAPS; Reforma Psiquiátrica.

ABSTRACT The Psychosocial Attention Center (Caps) in the state of Rio de Janeiro, Brazil, was taken as a field of investigation in order to verify how its everyday praxis is organized, investigating the possibilities of its actions, either inside the institution or in relation to the territory. It was elected as analysis category the responsibility towards demand, the open door, the attention to crises situations and the territorial work, for these characteristics are articulated to a substitutive service. A participant observation was used as well as semi-structured interviews with some professionals who work in the CAPS. The investigation emphasizes the importance of making the everyday work reach an understanding of the transformations it can operate. KEYWORDS: Territory; Substitutive services; CAPS; Psychiatric Reform.

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I N T R O D U ç ão

A capacidade do Caps em substituir o manicômio deve estar articulada ao modo com que a sociedade lida com a diferença e como representa a loucura na era da supremacia da razão. Trata-se, portanto, da quantidade de forças que o Caps pode mobilizar, e que o torna capaz

A Reforma Psiquiátrica, no Brasil, constitui-se de

de operar uma revolução na forma como que se lida com

processos com características locais, envolvendo lutas

a loucura na atualidade. Portanto cabe aqui a pergunta:

sociais pela transformação do modo de concepção da

do que se trata ao se constituir um Caps? E, uma vez que

loucura e como lidar com o dito louco. Luta-se tam-

é no território onde essas forças configuram o imaginário

bém, para transformar o modo como a Psiquiatria, em

e concretizam relações, torna-se estratégico indagar a

nome da razão, permite-se categorizar, trancar e tratar

cerca do que pode um Caps em relação ao território.

a loucura, em relação à articulação e invenção de possi-

O objetivo da pesquisa foi caracterizar o funcio-

bilidades de inserção social para as pessoas que sofrem

namento do Caps no que diz respeito às novas práticas

com transtornos mentais. Além disso, compreende,

assistenciais, verificando sua capacidade de articular

ainda, um processo permanente de utilização de jogos

ou não às características do território, como indicativo

de forças que engendram saberes e poderes, e configuram

de sua capacidade de promover uma transformação na

a sociedade em que se vive.

relação da sociedade com a loucura. Não se propôs uma

O referencial teórico fornecido pela Psiquiatria De-

avaliação do Caps, mas contribuir com a compreensão

mocrática Italiana e pela experiência santista de Saúde

da noção de serviço substitutivo, a partir do conjunto

Mental introduz serviços que atuam como substitutivos

de ações que sua atuação territorial possibilita.

ao modelo manicomial, por promoverem rupturas em relação ao modo de funcionamento centrado do hospital psiquiátrico. Enquanto conjunto de referências sociais, de códigos de funcionamento intrapessoais

DESENHO METODOLÓGICO

que conformam um imaginário e uma realidade social que inclui ou exclui o diferente, o território é palco de

Trabalhou-se com a abordagem qualitativa, que de

exercício para a transformação cultural em relação ao

acordo com Minayo (1993, p.10), possibilita “incorpo-

fenômeno da loucura.

rar a questão do significado e da intencionalidade”, per-

No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS),

mitindo evidenciar importantes questões que se fazem

o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) surge como

presentes na construção cotidiana do Caps e definem sua

promessa de composição de uma assistência mais

tomada de posição em relação ao território.

articulada ao território (Portaria 336 de 19/02/02),

Após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesqui-

virtualmente capaz de conhecê-lo em suas peculia-

sa, foi obtida permissão para realizá-la tanto no serviço

ridades, de lidar com as necessidades de seus usu-

de Saúde Mental pesquisado quanto na Coordenação

ários, com as demandas que se produzem, enfim,

da Área Programática.

de compor com as forças do território em favor da

Para caracterizar o funcionamento do Caps em

autonomia, a fim de que se encontrem soluções ao

relação às práticas assistenciais, foi necessária a inserção

sofrimento psíquico.

em campo, tendo como instrumentos de coleta de dados

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

a observação participante e as entrevistas realizadas com os profissionais do serviço.

A partir dos dados obtidos na observação, foram elaboradas perguntas que permitiram colher dos entre-

A estada no serviço ococrreu por um período de

vistados suas opiniões acerca dos temas pretendidos.

quatro meses. Neste intervalo de tempo, buscou-se

Para isso, utilizaram-se perguntas disparadoras, no

adentrar gradativamente nos espaços de atuação dos

intuito de deixar que os entrevistados discursassem

profissionais, na medida em que havia consentimento.

livremente sobre os temas de interesse, expondo, por

A observação foi guiada por um roteiro que con-

meio das associações de idéias, os sentidos que dão às

templava aspectos como: a estrutura física do serviço;

suas práticas no Caps.

seu funcionamento rotineiro; a dinâmica de equipe; as

Foram realizadas seis entrevistas, no período de

relações construídas no interior do Caps, com demais

agosto a novembro de 2005, concedidas no local de

atores e instituições do território.

trabalho dos entrevistados. Os entrevistados, pela Re-

Procurou-se, também, desenvolver o hábito de

solução 196/96, concederam livre e esclarecidamente

estar no Caps de diversas maneiras, isto é, ao expe-

seus depoimentos, conforme o termo de consentimento

rimentar o lugar de alguém na sala de espera, nas

livre esclarecido.

discussões da equipe de profissionais no espaço de su-

As categorias de análise foram retiradas de Nicácio

pervisão, ao observar as interações entre os profissionais

(2003), que entende a proposta de um serviço substi-

e destes com a clientela, nas oficinas, assembléias, e em

tutivo como “serviço no/do território”, quando nele se

atividades e reuniões fora do Caps. No entanto, foi

articulam características, como a responsabilidade pela

possível perceber que havia um limite para a presença

demanda, a porta aberta, a atenção às situações de crise

em alguns espaços.

e o trabalho territorial, que levam a uma relação com

As entrevistas fizeram-se necessárias tanto para

as pessoas que nele vivem, quais sejam. Estes princípios

abrir o campo de explanação sobre situações não

expressam e compõem a transformação da prática tera-

acompanhadas como para aprofundar o nível de in-

pêutica e efetivam a substituição da lógica manicomial,

formações e opiniões quanto à construção do serviço

ao constituírem serviços fortes.

(Minayo, 1993).

Para Rotelli (2001), o serviço torna-se ‘forte’,

As anotações feitas no diário de campo foram

territorial ou substitutivo, ao reconhecer o usuário

separadas por categorias, as quais foram entrecruzadas,

em sua complexidade, mas também considerando sua

promovendo uma sistematização que permitiu a formu-

singularidade e sua diversidade, elaborando respostas

lação de alguns temas principais, que, no final, compu-

dinâmicas e individualizadas que tentam preservar e

seram a análise dos resultados, além do levantamento

ampliar a riqueza da vida das pessoas.

de hipóteses esclarecidas nas entrevistas. Optou-se por entrevistas abertas, por possibilitarem aos entrevistados discorrer livremente sobre os temas de interesse para a pesquisa, favorecendo a elaboração

A PORTA ABERTA

de um discurso em que pudessem expressar suas idéias, crenças, maneiras de atuar e de conceber o Caps. As

A porta aberta delineia novas bases na relação com

entrevistas foram realizadas após algum tempo de par-

o usuário, em que a acessibilidade e a permeabilidade

ticipação no dia-a-dia do Caps.

do uso do serviço, por parte de qualquer pessoa, tra-

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duzem uma flexibilidade em sua organização. Manter

era autorizado ou não a participar, o que evidencia

a porta aberta implica, na capacidade plástica, de aco-

que o serviço não funcionava segundo a dinâmica da

lher a demanda, de forma a garantir atenção a todas

porta aberta.

as pessoas que chegam ao serviço, oferecendo uma possibilidade de resposta a sua questão, mesmo que seja sua escuta apenas. Na experiência santista, a ‘porta aberta’ traduz um conjunto de relações institucionais, num movimento contínuo de questionar e eliminar a contenção concreta e simbólica das instituições asilares, pelas quais se dava o controle do paciente, que: [...] requer uma dinâmica de trabalho que distante de concepções burocráticas seja capaz de operar no movimento de ordem-desordem, instituinte-instituído na qual as ações são construídas, desmontadas, reconstruídas a partir das necessidades dos usuários em seu contexto de relações [...]. (Nicácio, 2003, p.221).

Esse paciente foi indo por conta própria. Ele sabia que tinha oficina do papel tal dia, ele vinha na oficina do papel. E aí, quando a gente se deu conta, ele tava freqüentando várias atividades no Caps. Até ele levou a criar uma regra na equipe, de que paciente de recepção não poderia participar das atividades ainda, só depois que já tivesse cadastrado, que tivesse projeto terapêutico que podia participar, porque meio que fugiu das nossas rédeas. (T2). A porta aberta também significa a abertura para o outro, no reconhecimento e acolhimento dos usuários e ao responsabilizar-se pelos problemas de saúde da região, numa relação em que Campos (1994) estabelece entre um “coeficiente de acolhida” e a “plasticidade” do modelo de atenção, quando se trata

O dia-a-dia do serviço evidenciou a falta da com-

de acessar, junto com o paciente, toda uma variedade

preensão da noção de porta aberta. Observou-se, por

de problemas da demanda, que incluem questões

meio da fala de um entrevistado, um ritmo ambulato-

sociais, econômicas, culturais, além da inconstância

rial de funcionamento, com uma freqüência maior de

dos recursos disponíveis.

técnicos trabalhando nos consultórios ou em oficinas: “a gente ainda tá preso a esse modelo do atendimento, da consulta, os grupos” (T3). Poucas pessoas freqüentavam o serviço de forma

RESPONSABILIDADE PELA DEMANDA

diária e as diversas atividades funcionavam com poucos, sendo quase sempre com os mesmos pacientes. A

A tomada de responsabilidade aponta para a

presença das famílias restringia-se ao grupo familiar ou

ação no território da vida dos pacientes, a partir da

ao acompanhamento às consultas, e não foi observada

necessidade de assumir uma interação ampla e direta

a presença de pessoas da comunidade, mesmo em mo-

com a condição do paciente e das suas relações, e

mentos mais coletivos, como em festas.

chegando aos seus ambientes de vida (Dell’acqua,

A dinâmica do serviço deixava pouco espaço para

1991). O serviço não é o único local de exercício da

a invenção de ações por parte dos pacientes (mesmo

tomada de responsabilidade, pois a prática terapêu-

aquelas requeridas para cada caso), funcionando com

tica é orientada para o enriquecimento da existência

atividades padrão: consultas e psicoterapias individuais,

global, complexa e concreta dos usuários, que os faz

oficinas, visitas domiciliares, assembléia e supervisão.

sujeitos ativos nas relações dentro e fora do serviço

Havia uma repartição dos espaços em que o paciente

(Rotelli, 2001).

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

Ao contrário da direção da prática em relação aos

depende da disponibilidade da equipe para situações que

ambientes de vida dos usuários dos serviços substituti-

desafiam novas formas de comunicação entre os envolvi-

vos, observou-se uma tendência na dinâmica do Caps

dos, “sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou

de trazer para o serviço as situações de trabalho com

mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção” (Dell’acqua,

seus pacientes. No caso de uma paciente, a falta de um

1991, p.61). Lidar com a crise requer a permissão de

trabalho mais articulado com a vizinhança e os fami-

entrada em cena de todos que participam do contexto

liares resultou em ela ser vista como ‘monstro’ por uma

relacional dos usuários.

pessoa próxima, que exigiu que a tirassem dali e que a

Segundo os discursos dos profissionais, a forma

internassem. A dificuldade em conviver com a diferença

de o serviço lidar com a crise era ruim, acentuada pela

de seu comportamento tornou-se insuportável para sua

falta de condições materiais. Evidenciava-se o mau fun-

mãe, que optou por sua internação já na primeira reação

cionamento em equipe e o medo dos profissionais em

de agressividade da filha.

lidar com o paciente em crise e articular possibilidades

Assim como o olhar de estranhamento da mãe,

de atuação que substituíssem a internação.

o olhar do serviço enxergava a doença, algum retardo mental a junto à psicose, deixando de encontrar soluções terapêuticas que ampliassem a rede de relações para a aceitação e promoção da diferença. A hospitalidade oferecida pelo serviço deixou de mobilizar “uma quantidade maior de energia humana e recursos institucionais” (Dell’acqua, 1991, p.65).

A ATENÇÃO DO Caps ÀS SITUAÇÕES DE CRISE A capacidade de responder de forma diversa às situações de crise se insere nas práticas dos serviços substitutivos como capacidade cotidiana de sustentar a atenção à crise, pelo exercício do trabalho em equipe, e ao articular tutela, direitos e responsabilidade (Nicácio, 2003). A complexidade envolvida nas situações de crise

Precisava não a mesma estrutura que o hospital tem, mas o mínimo de estrutura pra poder ficar com uma pessoa que está de fato agitada. Porque assusta, né?, ameaça de bater, fica falando sem parar.[...] As pessoas chamam logo a ambulância. Muito rapidamente, é a 1ª coisa que se pensa. Você pode tentar fazer outras coisas, você pode chamar a ambulância e paralelamente ir tentando abordar essa pessoa.[..] Tem situações com colegas onde a gente ficou lá embaixo e as pessoas olhando da escada de cima. (T3). A resposta às situações de crise está relacionada à organização das práticas do serviço, em sua capacidade de acolhimento e reconhecimento que se constitui como alternativa à internação psiquiátrica: Depende de cada equipe, de como o serviço se organiza. (...) Acho que essa é a questão da relação com o território, o cara ao invés de ir pra emergência, vem pro serviço porque ele sabe que pode ser resolvido ali ou acolhido, esse sofrimento foi acolhido e foi conduzido de alguma forma. (T4).

demanda a criação de estratégias de contato, pautados na possibilidade de transformação da intervenção vio-

Evidenciou-se que a forma como o Caps lida com

lenta, ressignificando os conflitos em direção à invenção

a crise guarda relações com a orientação teórica que

de saúde. A base para tais possibilidades constitui-se na

organiza suas práticas e com o movimento de sair para

relação de contrato e de reciprocidade com o usuário, e

atuar nos espaços de vida dos usuários.

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A RELAÇÃO COM O TERRITÓRIO

localizadas no território, estabelecendo parcerias para venda de trabalhos confeccionados pelos pacientes: “É

O território é o local onde deságuam todas as transformações ocorridas no interior do serviço. A interven-

algo que tá no projeto, mas que na prática precisa de disponibilidade pra isso.” (T2).

ção precisa chegar às instâncias reais e imaginárias para

O questionamento de que o Caps possui de fato

se disseminar a norma e a exclusão, e passar ao âmbito

um trabalho no território se deve ao fato de que a ação

da política, do direito, das legislações, do trabalho e da

no território é mais do que a presença física do serviço

cultura. Colocar-se assim em movimento, articulando-

na região. O discurso de um profissional chama atenção

se no convívio entre as pessoas, é o que Santos (1988)

para uma necessidade de entender o trabalho fora do

chama de “território da vida”, território onde se dão as

Caps, a partir da ótica da inserção social, e reconhece que

trocas materiais e simbólicas e as relações sociais.

uma atuação nesse sentido ainda é incipiente no Caps.

Para Nicácio (1994), o trabalho territorial é construído na articulação de ações diretas e indiretas, abrindo espaços para a ressignificação do fenômeno da loucura e o reposicionamento sociopolítico do paciente na sociedade. A incorporação da noção de território e o alcance das questões que ela implica indicam a assimilação de mudanças concretas ao mesmo tempo na sua dinâmica e em relação à sociedade. O entendimento que traz a relação do Caps com o

O fato de você estar lá fora com eles não significa que eles estejam integrados. Se a gente só coloca eles pra vender, não incentiva uma crítica a respeito disso, por exemplo, só vai vender nos fóruns de saúde mental, a gente não pode achar que isso é o externo propriamente dito. O externo é o cara poder pôr a barraquinha dele, ou ser um ambulante como um outro, com as dificuldades que ele tem. A gente tendo que ajudar da forma que ele precisa, mas não estar tão dependente de situações como essas. (T3).

território é apontado na fala de um profissional quando diz que “A gente tá tentando fazer esses trabalhos mais

O trabalho territorial precisa avançar mais, para

externos” (T1). Existe a consciência de que o trabalho

chegar à possibilidade de convívio social, fora da pro-

do Caps em articulação com outros atores pode mudar a

teção institucional. Trabalha-se para a construção de

percepção que se tem do sofrimento mental, a começar

um novo pacto social, que cria campos de troca entre

da própria família. No entanto, é freqüente, nas falas da

os diversos segmentos da sociedade, e interfere nos

maioria dos entrevistados, a menção à carência de recursos,

processos de exclusão social, além de possibilitar uma

que lhes dificulta sair do ambiente de trabalho, apesar do

nova ética, “em cujo espaço seria possível reciclar tudo

reconhecimento de que o Caps deve atuar no território:

aquilo que seria descartável na lógica de uma sociedade excludente” (Barros, 1994, p.103).

É uma cilada também, que os Caps têm que ter o cuidado de sair, porque o trabalho te toma, né? Tem casos muito graves que se deixar você fica só dentro do Caps! E a idéia é estar ocupando espaço no território. Então esse é um desafio. (T1).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação com o exterior, no entanto, ainda se

Percebe-se, por meio da observação participante,

reduz às iniciativas pessoais de alguns poucos profissio-

assim como pelas falas dos profissionais entrevistados,

nais, que procuram trabalhar com algumas instituições

que o serviço pesquisado tem-se utilizado tanto de

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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva

iniciativas diretas como indiretas. São realizadas visitas

mentalmente, a luta contra o que fundamenta a insti-

domiciliares, acompanhamento aos pacientes internados

tuição, seja ela psiquiátrica ou não. Trata-se de dar voz

em instituições psiquiátricas, viabilização de atendimen-

àqueles que tradicionalmente encontram-se na posição

to na rede de saúde, além de passeios, e negociações com

de inferiorizados, e lutar pela sua liberação, uma vez que

instituições de lazer, educação, trabalho, e da rede de

a desinstitucionalização é, em última instância, “a luta

saúde, como ambulatórios de Saúde Mental da região,

pela liberação do homem” (Venturini, 2003, p.165). A

nos casos de referência e contra-referência.

desinstitucionalização é o questionamento dos lugares de

No entanto, no Caps pesquisado, a temática da atu-

produção de valores da sociedade, é uma luta política.

ação territorial é pouco presente nas discussões dos técni-

Faz-se necessário colocar em questão a própria

cos, no cotidiano do serviço, fruto de uma dinâmica insti-

normalização do espaço que constitui o Caps enquanto

tucional no qual as atividades encontram-se centradas na

instituição. Na grande maioria das vezes, este dispositivo

clínica tradicional. Ao mesmo tempo, algumas atividades

vem funcionando como um espaço organizado, de ma-

e críticas ensaiam movimentos de questionamento desse

neira procedimento-centrado, de forma em que as práticas

funcionamento. No entanto, não há um envolvimento

e as relações interpessoais se localizam no seu interior,

suficiente dos profissionais para criar uma participação

numa dinâmica centrada na intervenção medicamentosa

da equipe nos contextos reais de vida da clientela, e que

e psicoterapêutica, que tende a produzir uma cronicidade

mobilizem pessoas diversas na articulação de redes sociais,

dos próprios profissionais dentro do serviço.

responsabilidades e potenciais de ação. Para Basaglia, o território:

Apesar do tempo de Reforma Psiquiátrica empreendida no país, entende-se que a superação do manicômio não se reduz a uma modernização da assistência, mas se

[é o] lugar da expressão plena das contradições de classe, espaço real que tornaria mais clara a própria colocação e mais natural o resultado das alianças. (2005, p.242).

trata de uma luta contra os mecanismos de controle da população, que precisa ser melhor trabalhado no cotidiano dos atores da Reforma Psiquiátrica. Essa percepção acerca da capacidade de invenção que um serviço precisa

A partir de então, coloca-se como serviço que convive com o manicômio e o realimenta, quando suas práticas não alcançam a reprodução social de sua clientela. É justamente essa discussão política e estratégica da relação com o território que se encontra ainda pouco presente no entendimento do lugar do Caps, conforme observado, instituindo um serviço que se coloca como intermediário na relação com o hospital psiquiátrico. A gente não quer ser chamado de um serviço substitutivo. A gente tá longe disso. A gente ainda é uma coisa mais ou menos alternativa, no sentido que a gente não substitui o hospital, a gente recorre à internação com muita freqüência. Então não há essa coisa da apropriação do espaço. (T3).

ter para substituir a lógica psiquiátrica ainda não chegou ao ponto de transformar suas práticas e construir serviços de Saúde Mental que se coloquem como substitutivo. Para Venturini, a presença de usuários, familiares, diversos cidadãos e a construção de um clima de cooperação social “constituem-se em indicadores rigorosos da eficácia da desinstitucionalização” (2003, p.173). Desse ponto de vista, o serviço precisa redefinir sua prática, flexibilizar-se no exercício de seu poder, ao abrir-se para permitir o conflito dos atores e incorporar uma capacidade de negociação que considere as necessidades de sua clientela. A penetração no território acontece quando os ser-

A desinstitucionalização não se restringe à retirada

viços se organizam para acolher e trabalhar a pessoa em

de pacientes da instituição psiquiátrica. Ela é, funda-

sua existência concreta, o que impulsiona a um trabalho

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permanente de inscrição na dinâmica do território, ao identificar os atores que estão relacionados às ações de reconstrução de relações com a loucura e ultrapassando iniciativas isoladas, como sair em busca de determinada parceria para alguma ação pretendida. Da arquitetura hospitalar, que exerce seu poder de controle e de formação de corpos dóceis pela anulação das possibilidades de existência própria, ao espaço aberto do território, o tema ainda é a convivência com um poder invisível e onipresente, e a ampliação da

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capacidade de singularização1 de pessoas e de grupos. Trata-se mesmo de facilitar rebeldias cotidianas, revoluções moleculares, de refazer territórios de resistência e existência, não totalmente imunes à ordem dominante,

Giovanella, L.; Amarante, P. O enfoque estratégico do planejamento em Saúde Mental. In: Amarante, P. (Org.). Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 113-149

mas poder ampliar a função de autonomização dos grupos, tornando-os mais hábeis quanto à capacidade de operar seu próprio trabalho de semiotização, de cartografia, de se inserir em níveis de relação de força local, de fazer e desfazer alianças, etc. (Guattari; Rolnik, 1986, p. 46). Em relação a isso, há perseguição dos operadores dos serviços substitutivos, chamando de invenção de saúde e de vida.

Guattari, F.; Rolnik, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. Minayo, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1993. Nicácio, F. Utopia da realidade: contribuições da desinstitucionalização para a invenção de serviços de Saúde Mental. 2003. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 2003. __________. O processo de transformação da Saúde Mental em Santos: desconstrução de saberes, instituições e cultura. 1994. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – PUC-SP, São Paulo, 1994.

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Por singularização Guattari e Rolnik (1986) entendem a capacidade de captar os elementos da situação, de construir as próprias referências práticas e teóricas, saindo da dependência total em relação ao poder global, para ler a própria situação e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criação e de autonomia.o e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criaç, e de ter a capacidadestmento dos tles atores que dele se util 1

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintoma Group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms

Milena Leal Pacheco Luiz Ziegelmann 2

1

Psicóloga com Residência Integrada

RESUMO A dependência química envolve aspectos sociais, ocupacionais,

em Saúde (RIS) com ênfase em Saúde

econômicos, políticos e psíquicos, e necessita, portanto, de diferentes olhares

1

Mental no Grupo Hospitalar Conceição (GHC).

sobre a vida dos sujeitos para que haja uma aproximação de um cuidado

[email protected]

integral. Entretanto, durante muito tempo, os modelos de atenção em Saúde Mental centraram-se na atenuação de sintomas, deixando em segundo plano

2

Médico psiquiatra do Hospital Nossa

Senhora da Conceição (HNSC) do

outras questões vinculadas à existência. Neste artigo, objetivou-se refletir sobre

GHC.

as possibilidades existentes para a clínica de grupos, dentro de um Centro de

[email protected]

Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (Caps ad), por meio do relato de experiência com um grupo terapêutico. Utilizaram-se os conceitos de produção de subjetividade, clínica, desejo, saúde, cuidado, integralidade e grupo dispositivo para problematizar alguns relatos dos participantes. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Centro de atenção psicossocial; Psicoterapia de grupo

ABSTRACT Chemical dependency encompasses social, occupational, economic, political and psychical aspects and, therefore, it demands numerous views of people’s life in order to provide full care, as much as possible. However, for a long time, attention on Mental Health standards focused on diminishing symptoms, while other issues concerning existence were lagged behind. In this paper, we have aimed at reflecting on opening up opportunities for group clinic at a Center of Psychosocial Alcohol e drugs (Caps ad) by means of the report of an experience with a therapeutics group. We considered the concepts of subjectivity production, clinic, desire, health, care, integrity and groups of devices with the purpose of questioning some participants’ speech. KEYWORDS: Mental Health; Psychosocial care center; Psychotherapy, group

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Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

I N T R O D U ç ão

usuárias de álcool e outras drogas e a seus familiares. Por intermédio de cuidados de atenção diária, os Caps ad possibilitam cuidados integrais à saúde, propondo uma nova abordagem, ligada ao social, do sofrimento psíquico, distinta do modelo manicomial, que acaba sendo

Este estudo é fruto de uma experiência clínica com

gerador de exclusão e estigma social (Brasil, 2004B).

um grupo de adultos que se encontrava em tratamento

Embora historicamente a problemática do uso, do

para dependência química1 em um Centro de Atenção

abuso e da dependência de substâncias psicoativas tenha

Psicossocial Álcool e Drogas (Caps ad) de Porto Alegre,

sido abordada por um modelo médico-centrado, em 2003,

em 2006, durante meu primeiro ano de Residência In-

a Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool

tegrada em Saúde (RIS) com ênfase em Saúde Mental

e Outras Drogas foi apresentada pelo Ministério da Saúde.

no Grupo Hospitalar Conceição (GHC)2.

Esse documento assinala a necessidade de se facilitar o

O Caps ad do Hospital Nossa Senhora da Conceição

acesso de usuários ao tratamento, de se ampliar o olhar dos

(HNSC) surgiu com o objetivo de oferecer um cuidado

profissionais, bem como considerar os processos subjetivos,

contínuo às pessoas, com idade a partir de 12 anos, que

as heterogeneidades, as multiplicidades e as particularidades

apresentassem graves problemas decorrentes do uso de

e diferenças dos sujeitos (Brasil, 2004A).

substâncias psicoativas e/ou do comprometimento sócio

Em março de 2006, eu e um colega, psicólogo e

familiar tais quais: intenso sofrimento psíquico, dificul-

residente em Saúde Mental, fomos convidados pela

dades no convívio social e familiar, escassez de recursos

equipe do Caps ad para coordenar o chamado Grupo de

sociais, políticos e econômicos, entre outros. Inscrito

Sentimentos. Com abordagem centrada nos sujeitos e

na proposta de descentralização e territorialização do

suas relações, a proposta foi a de criar um espaço coletivo

Sistema Único de Saúde (SUS), esse serviço é destinado

onde os usuários pudessem refletir sobre suas vidas além

à população das regiões Norte/Eixo Baltazar, Nordeste

do uso dessas substâncias, buscando outros sentidos em

e Noroeste de Porto Alegre/RS, e fornece atendimento

suas experiências. O Grupo de Sentimentos foi iniciado

individual e grupal aos dependentes e seus familiares, por

com oito homens e quatro mulheres, mas alguns pa-

intermédio de equipes multidisciplinares composta por

cientes optaram por deixar o espaço e permanecer nos

profissionais das áreas de Medicina, Psiquiatria, Psicologia,

atendimentos individuais em outros grupos de apoio ou,

Serviço Social, Terapia Ocupacional e Enfermagem.

mesmo optaram por se desvincularem do Caps.

3

Os Caps ad são considerados a principal estratégia

As falas apresentadas neste artigo são de seis adultos:

da Reforma Psiquiátrica para o desenvolvimento de ser-

cinco homens e uma mulher, com idade entre 35 e 60 anos,

viços substitutivos em Saúde Mental. Esses serviços são

pertencentes a camadas populares e, com exceção de um dos

voltados às pessoas portadoras de sofrimento psíquico,

integrantes, que não estavam empregados no momento.

Considera-se dependente químico uma pessoa que faz uso abusivo de álcool e/ou drogas, que apresenta problemas sociais, psíquicos, familiares, ocupacionais, econômicos e políticos recorrentes e que sente dificuldade em reduzir ou suspender tal uso (Brasil, 2004A). 1

O GHC é uma instituição federal considerada eminentemente pública, uma vez que a população atendida é, em sua totalidade, usuária do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, possui quatro núcleos hospitalares: Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor e Fêmina, mais doze Postos de Saúde Comunitária (Brasil, 2007). 2

O território não é (apenas) o bairro do sujeito ou uma área geográfica, mas o conjunto de referências socioculturais e econômicas que permeiam o cotidiano do sujeito. É constituído, sobretudo, pelas pessoas que o habitam, com seus conflitos, interesses e relações (Brasil, 2004B). 3

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No primeiro dia de encontro, após nos apresen-

oportunidades durante a vida. Benevides e Joseph-

tarmos, solicitamos que cada um dos presentes fizesse

son (2006) localizam, nesse período, o surgimento

o mesmo. Todos os participantes revelaram o nome e

de um paradigma enraizado na individualização, no

o tipo de droga que utilizavam. Dissemos a todos que

autocentramento e na totalização, denominado modo-

a forma como eles haviam se apresentado “não nos

indivíduo. Marcado por uma oposição entre indivíduo

contava quase nada a respeito de suas vidas” e apenas

e sociedade, esse modo-indivíduo visa corpos úteis,

mostrava que a existência deles se restringia a uma de-

produtivos e objetos de cuidado, determinando certas

terminada substância. Apresentando-se dessa forma,

formas de estar, sentir, pensar, desejar e viver o mundo

(re)afirmavam a idéia de que suas identidades eram

(Benevides, 1994).

constituídas predominantemente pela dependência de

Diferentemente dessa idéia da subjetividade centra-

determinada substância. O grupo ficou surpreso com

da no “eu”, as produções de subjetividades, ou modos

tal afirmação, já que, segundo um dos integrantes,

de subjetivação, são fabricadas e modeladas no registro

“isso é tudo o que as pessoas querem saber da gente

social (Benevides, 1995). Essas produções se iniciam

[...] a única coisa que importa é se eu bebi ou não, às

no nascimento e envolvem tudo aquilo que produz

vezes isso acontece até mesmo aqui no Caps”.

sentido, como o contato com o ambiente familiar,

A partir dessa experiência e de trechos das falas,

a relação com amigos, afetos, música, arte, cinema,

verifiquei o modo como um cuidado que aborda as-

política, ou seja, expressam-se através do modo como

pectos além dos sintomas de dependência contribui no

os indivíduos pensam, sentem e agem em relação a si,

tratamento, refletindo sobre as aberturas produzidas na

ao outro e ao mundo. É tudo aquilo que singulariza

clínica de grupos. Assinalam-se momentos em que o

e diferencia e são processadas no encontro do sujeito

grupo buscou compartilhar diferentes situações vividas,

com o ambiente social, resultando tanto em marcas

produzir outras subjetividades e desmitificar alguns

singulares como em valores compartilhados na cultura,

modos de ser e viver. Este estudo foi fundamentando

na história, na política e no coletivo. Segundo Benevides

em idéias, de autores como Birman, Rolnik, Benevides,

(2001), tal noção de subjetividade, não-dicotomizante,

Brasil, Naffaf Neto, Foucault, entre outros, que dizem

impossibilita uma separação entre o que é do indivíduo

respeito a produções de subjetividade, clínica, cuidado,

e o que é do social.

desejo, integralidade na atenção e grupo dispositivo.

Miranda (2000) afirma que é possível conceber as produções subjetivas a partir de dois pólos. No primeiro, os indivíduos apresentam certa passividade em relação às instituições produtoras de subjetividade como

PRODUÇÕES DE SUBJETIVIDADE

a família, o Estado, o trabalho, o sofrimento psíquico, repetindo suas formas de agir e pensar. No segundo,

O surgimento do Estado moderno, oriundo de

os indivíduos e os grupos criam “processos múltiplos e

conjunturas investidoras na anulação das diferenças

heterogêneos, que engendram relações livres e criativas”

entre os sujeitos, como o Iluminismo, a Revolução

(p. 41) assumindo, dessa maneira, suas existências de

Francesa, a Revolução Industrial e a Psicologia Com-

forma singular, criando diferentes valores, novas formas

portamental, inseriu na sociedade a idéia de que

de pensar e agir e tornando, por fim, a produção de

todos os indivíduos são iguais e possuem as mesmas

subjetividade singularizada.

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Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

Para Benevides (1994) o corpo-indivíduo tornou-

vestir, tratar” (Bezerra Júnior, 2001, p. 29) aqueles

se objeto de controle e vigilância, impulsionando a

que eram considerados loucos, marginais, bêbados

busca de um cuidado de si. Inspirada em pensamen-

e indesejados pela sociedade. Ou seja, nssa época, as

tos foucaultianos, a autora afirma que os modos de

intervenções serviam apenas para impedir novas pro-

subjetivação tanto constroem determinados objetos

duções subjetivas.

de interesse, como afirmam formas de existir:

No caso da Psicologia, Medeiros, Bernardes e Guareschi (2005) afirmam que ela surgiu com o intuito

a cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem sujeitos-objetos, necessidades e desejos. (p. 28). Guatarri e Rolnik (1986) assinalam que as subjetividades são produzidas também pelas Ciências Humanas, porque são elas que criam, juntamente com a Medicina, a possibilidade de investimento em formas de viver a partir do modo-indivíduo. Essas ciências podem tanto incentivar a manutenção de processos subjetivos homogeinizados sem criar saídas para a singularização, como investir em modos de subjetivação heterogêneos. No caso do uso nocivo do álcool e outras drogas, mesmo com a implementação da Reforma Psiquiátrica e da

de “descobrir o que tornava os seres humanos sujeitos da razão.” (p. 265), criando uma série de recursos para o indivíduo governar a si mesmo. Esses recursos – avaliações, exercícios comportamentais, falar de si – eram (e ainda são) utilizados, muitas vezes, para que o indivíduo soubesse (saiba) quem ele é e entendesse (entenda) como e por quê age em determinadas circunstâncias: “tudo para atentar para as próprias condutas, controlar os excessos, responsabilizar-se por seus atos.” (Medeiros; Bernardes; Guareschi, 2005, p. 266). Nesse caso, o foco não está na saúde e sim na materialização de uma interioridade do indivíduo para subsidiar, segundo Bernardes (2007), formas de poder sobre a vida.

Política Ministerial, o sujeito, nesse caso dependente quí-

Para Foucault (1992), a invariância da clínica

mico, é inserido em um registro social que o individualiza

aparece na história à medida que os modos de ver e de

– ‘Eu sou alcoolista’ – e o circunscreve em um determinado

sentir são mudados, assim como a própria objetividade

território de existência ainda marcado pelo estigma, pelo

da doença.

preconceito e pela exclusão. Assim, serviços de atenção à

A clínica atual ainda apresenta:

saúde, como os Caps, podem funcionar tanto como mecanismos de controle e vigilância, como de auxílio na criação de subjetividades mais livres, criativas e autônomas. Afinal, como pensar uma clínica produtora de subjetividades?

[...] posturas clínicas que reproduzem, acriticamente, as clássicas dicotomias interior/exterior, consciente/ inconsciente, sujeito/objeto, clínica/política, e tantas outras, porém procurando ajustá-las aos novos tempos. (Neves; Josephson, 2001, p. 99). De acordo com Coimbra (2002), essa clínica se depara com:

CLÍNICA, CUIDADO E INTEGRALIDADE Durante muito tempo as práticas terapêuticas foram utilizadas para “remover, excluir, abrigar, alimentar,

[...] histórias e trajetórias que falam de experiências, aventuras, desventuras, sonhos, utopias, massacres fraquezas, cumplicidades, omissões, convivências. (p. 19).

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Tudo isso envolve os mais diversos processos sub-

As novas concepções de saúde e doença vão ao en-

jetivos. Assim como a contemporaneidade, a clínica é

contro da proposta de integralidade, na qual o principal

atravessada pela complexidade e pela desestabilização

interesse já não é o sintoma, mas o sujeito e seu contexto

e deve ser entendida, segundo Deleuze (1992) como

biopsicossocial. Para Mattos (2001), a integralidade

experiência de desvio, de desestabilização e de crise uma

está relacionada ao ideal de uma sociedade mais justa

vez que acompanha a criação de territórios existenciais,

e solidária, pois sua atenção diz respeito ao cuidado às

através de um caráter processual. Envolve, também,

pessoas, aos grupos e à coletividade em seus contextos

questões individuais e coletivas que interpelam o sujeito

históricos, sociais, políticos, econômicos, culturais e

e seus modos de subjetivação. Esses atravessamentos

também subjetivos.

ocorrem através de movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização do desejo.

Nesse sentido, os espaços terapêuticos podem possibilitar que os sujeitos encontrem novas formas

Desejo, de acordo com Rolnik e Guatarri (1986)

para resolver seus conflitos a partir de outras leituras

é uma potência de criação de vida, capaz de inventar e

de sua própria vida. Naffah Neto (1994) utiliza o ter-

transformar modos enrijecidos de ser, sentir e pensar.

mo “psicoterapia-genealógica” (p. 20) para destacar a

Todo desejo é um devir, que constrói e reconstrói objetos

importância de o terapeuta denunciar tudo aquilo que

e seus correspondentes modos de subjetivação (Rolnik,

empobrece a vida das pessoas, produzindo, juntamente

2006). Na clínica, a manifestação do desejo se dá no

com o paciente, pequenas revoluções no cotidiano. Se-

corpo, é ele que comunica.

gundo o autor, psicoterapia significa, etimologicamente,

O surgimento do SUS e seus princípios (uni-

o “cuidado pela vida” (p. 21), capaz de desenvolver o

versalidade, eqüidade, hierarquização, integralidade,

que Nietzsche chamou de “vontade de potência” (p.

descentralização e participação comunitária) colocou

21): uma “potência autônoma, nos seus movimentos

no cenário da saúde pública outros olhares em relação

de expansão/retração, construção/destruição, enchentes,

ao sofrimento e ao sujeito, abrindo possibilidades para

contração/consonância” (p. 110). Segundo o autor, a

se dar espaço ao que vem do corpo, ao desejo, ao afeto

vida doente é:

e ao impulso para a vida, aspectos esses que, muitas vezes, são capturados pelas convenções que enrijecem e doutrinam certos modos de vida ‘indesejados’ para a sociedade. Além disso, a partir da 8a Conferência Nacional de Saúde, a saúde passa a ser vista não apenas

[...] enredada por valores que a intoxicam, obstruem, empobrecem, necessitando desenvolvimento, soltura, liberdade, para recuperar a sua potência criadora e produzir novas formas. (Naffah Neto, 1994, p. 23).

como ausência de doença ou esbatimento de sintomas, mas como um encadeamento de interações em vários

Assim, tudo aquilo que vem do corpo, os afetos, as

níveis de complexidade interdependentes (Giordan,

intensidades, os desejos, as vontades, os movimentos, é

1998). Sendo assim, saúde e doença passaram a não ser

reprimido e a vida se torna limitada.

conceitos definitivos ou opostos, pois “dizem respeito à

A concepção de clínica acima descrita nos oferece

sobrevivência, à qualidade de vida ou à própria produção

uma abertura para o conceito de cuidado proposto por

de vida” (Ceccim, 2000, p. 28), estando relacionados às

Boff (2000). O autor assinala que o cuidado contri-

condições físicas, psicológicas e sociais; ou seja, o indiví-

bui para a reinvenção. Aquele que cuida, no entanto,

duo torna-se um ser tridimensional e biopsicossocial.

deve considerar a liberdade do sujeito, sua liberdade e

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Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

capacidade de escolha e seu potencial para estabelecer

O uso abusivo de álcool e outras drogas está,

normatizações próprias. Pautado na integralidade, e

portanto, relacionado às produções da atualidade:

não na seleção, aquele que cuida de outrem percebe que

narcisismo, consumismo e imediatismo. O indivíduo

cada sujeito possui necessidades que atravessam campos

busca desesperadamente atingir a plenitude narcísica

múltiplos e singulares; sendo assim, seu olhar precisa ser

através de uma poção mágica que inviabilize o reco-

deslocado da doença, atingindo um conjunto de fatores

nhecimento de sofrimentos e desilusões inerentes

que envolvem a vida.

ao ser humano. Nesse “pacto de morte o valor que direciona o sujeito é um antivalor” (Birman, 2005, p. 23), pois é o não-saber sobre sua existência, alienando-se da vida e do outro por meio de um objeto que

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA

satisfaz e mortifica ao mesmo tempo. Ao encontrar

DEPENDÊNCIA QUÍMICA

na substância um alívio imediato (e passageiro) para angústias, sofrimentos, desilusões, tristezas, entre

A compreensão ampliada do sujeito oferece, de acordo com Birman (2005), instrumentos para a for-

tantos outros sentimentos despertados, o sujeito se volta para si.

mulação de um pensamento crítico sobre o mal-estar da

No contexto da dependência química, em que os

contemporaneidade e sua forma de expressão: o narcisis-

destinos do desejo ficam autocentrados no indivíduo, é

mo. Segundo o autor, para entender os processos subje-

oferecida uma abertura para a discussão do trabalho com

tivos, é necessário investigar os destinos do desejo.

grupos como uma possibilidade de produção de modos

Nas últimas décadas, no Ocidente, o ‘eu’ passou a assumir uma posição privilegiada na construção de subjetividade. O autocentramento do sujeito no eu, oriundo das noções de interioridade e reflexão construídas no início da modernidade, conjugou-se ao valor da exterioridade e a subjetividade, por sua vez, acabou tendo uma configuração

de vida, como propõe Benevides (1995): Às portas do século XXI, quando observamos o crescente processo de individuação e privatização das práticas sociais e psíquicas, pensar o grupo nos aparece como uma possibilidade de colocar em questão a problemática da economia do desejo, dos processos de subjetivação e, quem sabe, chamar a atenção para a urgência de se criarem laços de solidariedade e alianças de cidadania. (p. 143).

estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica. (Birman, 2005, p. 23). Com isso, o exibicionismo e o autocentramento

O DISPOSITIVO GRUPO

atingiram o valor da solidariedade/alteridade, impedindo que os sujeitos reconhecessem os outros em suas

Os espaços grupais foram utilizados na saúde

diferenças e singularidades. Desse modo, o narcisismo

pública durante muito tempo com o objetivo único

torna-se uma forma de subjetivação tributária de uma

de atender um maior número de pacientes através da

organização social que incita o consumo desenfreado, o

otimização dos recursos humanos. De fato, em um

autocentramento e a necessidade de prazer imediato.

grupo abrangemos um maior número de pacientes. No

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entanto, é preciso refletir sobre a riqueza desses espaços

GRUPO DE SENTIMENTOS:

quando tomados como dispositivos para a saúde.

OUTRAS POSSIBILIDADES

Conforme Benevides (1994) o termo dispositivo indica algo capaz de acionar um processo de decompo-

A proposta de trabalho com o Grupo de Sentimentos

sição, produzir novos acontecimentos e romper com o

já aparece no campo da Saúde Mental há muitas décadas.

que se encontra impedido de criar, por meio de tensio-

Entretanto, em grande parte, apresenta uma conotação vol-

namentos, movimentos e novos agenciamentos. A clí-

tada para a individualização do sintoma, o que é recorrente

nica de grupos tem caráter processual. Esse processo de

em modelos psiquiátrico-psicológicos voltados para aquilo

mudança não se restringe a uma tomada de consciência,

que nós, enquanto coordenadores/facilitadores, questio-

pois essa, muitas vezes, é capturada por sentimentos de

návamos. A nossa idéia era intervir tanto no grupo como

culpa e valores morais. Para funcionar como provocador

no Caps, problematizando alguns modos de subjetivação

de inquietações, esse tipo de cuidado precisa provocar

acerca do tratamento de dependência química.

inquietações, suscitar perguntas e trazer respostas novas

Sentávamos em círculo a fim de visualizarmos uns

(Brasil, 1995). Essa experiência pode tirar o olhar do

aos outros, em encontros semanais com duração de uma

sujeito de si, de seu lugar. Naffaf Neto (1994) afirma que

hora. Entramos em acordo a respeito de as faltas serem

as relações em um grupo terapêutico podem estabelecer

comunicadas. A ausência de algum membro, quando

tanto identificações ligadas às representações, ou “formas

não notificada anteriormente, geralmente fazia os ou-

extensivas, circunstanciais, históricas, que transpassam

tros pensarem que o colega havia tido uma recaída: “O

todos e os fazem sentir no mesmo barco” (p.104), como

fulano não está vindo faz tempo. Será que ele recaiu?”.

singularizações.

Em relação à abstinência, o único critério colocado

Passos (2005) utiliza-se de Guatarri (1981) para fa-

pelo grupo era de que não se deveria comparecer aos

lar das diferenças entre grupo-sujeitado e grupo-sujeito.

encontros sob efeito de álcool ou outras drogas. Porém,

O primeiro é o grupo dos estereótipos, da hierarquia, da

em duas ocasiões, um paciente compareceu alcoolizado

autoconservação, da exclusão, da unificação, da totaliza-

e os demais participantes disseram que aquilo era “uma

ção e verticalização e que estabelece formas específicas

falta de respeito com a gente que está levando a sério” e

de ser e de viver. O segundo abre-se para os processos

enfatizaram que nós, os coordenadores, deveríamos bar-

criativos de outrem e para a alteridade porque precisa

rar a participação dos usuários naqueles dias. Embora os

do diferente; é suporte para diversos modos de expressão

pacientes fizessem uma crítica dizendo que “a sociedade

emergentes e diferentes enunciados.

só aceita quem não bebe”, eles mesmos esperavam que

Frente a uma situação de conflito trazida por al-

cada integrante mantivesse a abstinência. O simples fato

gum dos participantes, perguntávamos com freqüência

de eles relacionarem a ausência à uma recaída reforça

para os demais: “Alguém já passou por uma vivência

essa idéia. Essa visão da abstinência e da recaída está de

parecida?”. Buscávamos, como aponta Ziegelmann

acordo com as idéias de Moraes (2008), que, em um

(2005), outros modelos de saúde que não reduzissem

estudo realizado em um Caps ad, concluiu que, tanto

os sujeitos a categorias diagnósticas, mas tomassem as

para os usuários como para os profissionais, a abstinên-

formas de viver e os processos de composição de si como

cia é o principal objetivo do tratamento e a recaída é

construções coletivas.

entendida como um mau comportamento:

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Talvez a abstinência seja a expressão máxima de que alguém se encontra em condições de ajustamento e purificação, necessários para serem aceitos socialmente. Mesmo assim, parece que o caráter de vigilância sobre essas pessoas se manterá permanente [...] uma vez alcoolista, sempre uma pessoa diferente, em que não se pode confiar por estar sujeita permanentemente a recaídas e crises. (Moraes, 2008, p.128). No início, os participantes se restringiam aos sintomas: “É tudo por causa da maldita da cachaça”. Desconheciam que o grupo “pelo potencial criativo que insere a partir das transversalizações de idéias, sentimento e experiências do outro” (Ziegelmann, 2003, p. 9), oferece outras subjetivações e territórios existenciais capazes de ressignificar vidas. Aos poucos, o grupo foi trazendo outras inquietações: “Eu queria que vocês me ajudassem com o meu casamento. Eu tenho vontade de sair de casa, mas fico com pena das crianças”. Percebíamos que essas pessoas tinham uma necessidade de falar sobre diferentes aspectos de suas vidas e não apenas aos sintomas relacionados à dependência química e buscavam outras respostas

de seus sintomas repetitivamente na tentativa de se sentirem aliviadas, por outro, reproduzem certas práticas hegemônicas tradicionais que direcionam seu olhar à doença e não ao sujeito e sua complexidade. O uso abusivo de substâncias psicoativas juntamente com a sociedade e seus valores morais que determinam o que é certo e errado, o que é bom ou ruim inibem a produção subjetiva do sujeito, bem como o surgimento de outras formas de ser, estar e sentir. A pessoa passa a se subjetivar principalmente através da droga: “Meu nome é fulano e o meu problema é a bebida”. Se por um lado a tomada de consciência faz com que o sujeito reconheça a dependência química como um problema, ela também o captura. Nesse caso, a produção subjetiva é marcada pelo estigma, preconceito, culpa, tristeza e alienação: “Lá em casa eu não posso opinar porque eu sou o bêbado”. Apresentavam-se ‘escravos(as)’ do álcool e das drogas, enxergando a dependência química como uma marca de sua identidade e a substância, como uma marca de si e um meio de se relacionar socialmente: “Eu sou o Fulano, eu bebo”. Benevides (1994) afirma que devemos buscar a desnaturalização:

através de uma experiência coletiva para desconstruir aquilo que há anos se repete: “Eu lembro do primeiro dia em que a gente conversou. Todo mundo só falava na droga, como se aquilo fosse a gente”. Aos poucos, o grupo passou a desnaturalizar seu território existencial: No início achei que aqui só me perguntariam se eu tinha bebido ou não. Vi que nesse grupo a gente pode falar do que quiser e se não quiser falar nada pode ficar quieto também, só escutando o outro. De um modo em geral, as pessoas procuram os serviços público de saúde acreditando que devem manifestar somente a queixa de seus sintomas, que não podem falar de si, de suas vidas. O tempo de atendimento é curto. No entanto, se por um lado essas pessoas falam

[...] tentar ver historicamente como se produzem determinados efeitos de verdade nos discursos e práticas, efeitos estes que não são, em si, nem verdadeiros, nem falsos. (p. 24). Ao questionarmos o modo como cada participante se apresentava, tentávamos também provocar o surgimento de outros territórios, desejos e modos de vida. A auto-identificação dos sujeitos como ‘dependentes’ parece estar em consonância com um imaginário que a própria sociedade criou, através dos dispositivos de tratamento que reforçam sua postura de impotência diante do controle do uso de drogas [...] como se a partir do momento em que esses sujeitos assumissem a posição de impotência perante a droga, dizendo ‘eu sou adicto’, isso tornasse sua condição inquestionável e natural. (Santos, 2007, p. 195).

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De acordo com Brasil (1995), a troca de experiên-

Luz (2001) assinala que as relações de solidariedade

cias com o outro propicia a criação de diversos sentidos,

renovam a sociabilidade e podem restaurar o tecido

o questionamento de estruturas duras, e a desnatura-

social, formando

lização de modos estereotipados de viver, oferecendo mudanças objetivas e subjetivas. O entrecruzamento de idéias e a coletivização de ações, afetos e pensamentos, algumas vezes, promovem o rompimento das estereo-

pequenos e múltiplos pontos de resistência ao individualismo dominante, colocando a amizade e a cooperação no lugar do valor dominante da competição. (p. 41).

tipias paralisantes que dificultam o viver: “Cada um de vocês é uma força que me ajuda. É um reforço que eu

O restabelecimento da confiança no outro faz com

levo comigo”. O confronto com as diferenças facilita

que o isolamento seja substituído pela convivência, gerando

o rompimento com as habituais dicotomias existentes

otimismo e esperança nos sujeitos. Por outro lado, Naffaf

entre o pensar, o sentir e o fazer, agindo criativamente

Neto (1994) escreve que o termo amizade não condiz com

sobre os conflitos e inovando as relações através da

a realidade de um grupo terapêutico: “mesmo as grandes

criação de novos vínculos: “Às vezes eu estou em casa

amizades sempre preservam um certo pudor, um certo reca-

e me lembro do que um de vocês falou e aí paro de

to” (p. 103). Os grupos são mais como laboratórios da vida

pensar bobagens”.

social, pois reúnem pessoas que nunca se encontrariam ou

No grupo, os participantes compartilhavam a experiência da solidão e do empobrecimento dos vín-

criariam vínculos um com o outro, mas que nesses espaços aprendem a compartilhar experiências fundamentais.

culos: “Os amigos de bar não são amigos de verdade”.

Proposto como dispositivo analítico, o grupo serviu

Falavam de intenso sofrimento psíquico proveniente de

para descristalizar posições e papéis a partir dos quais esses

sentimentos de desvalia, solidão, tristeza e exclusão.

sujeitos construíram suas identidades: “Antes era tudo por

Eu queria falar para vocês que eu ando me sentindo muito sozinho. A família não tem me procurado mais, procuram muito pouco. Lá na comunidade o pessoal é gente boa, mas não é a mesma coisa.

causa da maldita cachaça”. Quando pensamos os grupos em geral com dispositivos, sem separá-los por objetivos clínicos ou ligados à re-socialização, poderemos habitar em outro regime de enunciação, no qual clínica e política formariam um espaço de mútuo engendramento. Transversalizamos,

Ao oferecer um espaço de escuta e de reflexão, o grupo permitiu que os sujeitos vivenciassem outros sentimentos,

com isso, as questões ditas sociais e políticas bem como as chamadas subjetivas ou “íntimas” (Benevides, 2001):

significados, pensamentos, valores, fazeres: “Eu acho que a gente mesmo acaba fugindo dos amigos de verdade, da família. Hoje eu sei dar valor para a minha velha”. A proposta de clínica grupal dá oportunidade para que se formarem laços e solidariedade, aliviando sentimentos de vazio,

Depois que eu comecei a participar desse grupo eu vi que eu tenho que ir atrás das minhas coisas. Não posso ficar só me queixando, querendo que os outros mudem. O tempo está passando e eu vou fazer o que da minha vida?

solidão e desesperança: “Aqui a gente tem cumplicidade e confiança”. Por terem vivido anos ou décadas escondidos

O espaço pode ser visto como um “aprendizado.

atrás de um sintoma, as relações consigo e com o outro

A gente precisa de novas idéias, novas experiências para

encontram-se desgastadas, desacreditadas.

se reciclar”. Isso ocorre na medida em que trabalhamos

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Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma

sob a perspectiva da integração social e da produção de

Outro ponto importante foi a percepção de que os

autonomia, incentivando os próprios sujeitos a buscarem

resultados alcançados vão além do espaço grupal: “O que

outros modos de existência: “É como eu já disse para

a gente vive aqui, leva para lá fora. Quando eu estou

vocês uma vez: não adianta mudar os caminhos, mas

em casa eu penso naquilo que a gente conversou aqui”.

sim o jeito de caminhar”.

A vivência pode servir para “descristalizações de lugares

Em um dos encontros, um participante do grupo

e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói

comunicou seu afastamento devido a uma cirurgia de

em suas histórias” (Benevides, 1995, p. 152): “Antes eu

redução de estômago que sofreria:

pensava que o meu problema era o maior de todos, só pensava em mim”.

Eu queria dizer para vocês que eu terei que me afastar do grupo. Eu fui chamado para fazer uma cirurgia de redução de estômago e agora é isso que está me faltando. Eu quero poder caminhar, andar de ônibus, hoje eu não caibo nas poltronas do ônibus. Eu quero poder comprar roupas, sair, dançar, voltar a trabalhar. Eu tenho só 35 anos e quero mais é viver. Escutar o desejo desse participante e percebê-lo como responsável por sua própria vida é cuidar de forma integral, é tomá-lo como sujeito capaz de ter autonomia para fazer suas próprias escolhas. O rompimento com o paradigma tradicional desloca o objeto de cuidado da doença para o sujeito em sua existência-sofrimento (Alves, Guljor, 2006). Através de trocas, os participantes transformam suas questões em problemas e realizam novas ações, na tenta-

Ver o grupo como disparador de novos modos de subjetivação, é considerar que as diferenças, e não as igualdades, possibilitam novas formas de existir e significar a vida. Em grupo são desenvolvidas as habilidades interpessoais, o desempenho de papéis designados pela cultura, a participação nos processos coletivos e as soluções para os problemas. “Esse grupo é forte porque aqui a gente fala a verdade. Eu venho aqui porque me faz bem”. Essa força à qual o membro do grupo se refere mostra que poder falar do cotidiano e de seus diferentes atravessamentos é saudável e produz autonomia. O cuidado para além do sintoma da dependência incentiva o sujeito a buscar outras respostas, a dar novos sentidos aos seus desejos e às suas relações libertando-se, assim, dos sintomas. E aí que reside a sua força.

tiva de solucioná-los. A fala de cada um pode convidar

Em nossos encontros, os participantes procuravam

o outro a novos entendimentos, ampliando os domínios

outras maneiras de viver a vida. Ao invés de usar drogas

de significação: “Ao escutar as outras histórias, eu pude

para ‘aliviar’ sentimentos, pensavam na companhia da

rever a minha própria história”. O grupo possibilita a

família, dos amigos e, muitas vezes, na companhia de

experiência genuína da alteridade como valor orienta-

si mesmo.

dor de vida. Estamos mergulhados em uma sociedade

Na metade do ano, os participantes começavam

centrada no indivíduo, onde o outro serve como objeto

a chegar um pouco antes do horário do grupo para

de usufruto de cada um. O contato com o coletivo pode

conversar entre eles dentro do Caps, sem a presença dos

despertar novos posicionamentos frente a esse modo de

‘doutores’. Era uma conversa informal, ‘mais livre’, de

individualização dominante que perpassa as formas do

‘amigo’. Nos grupos, os participantes mencionavam que

sujeito se relacionar consigo e com os outros: “No início

gostariam de se encontrar: “fora do Caps, a gente poderia

eu achava que os meus problemas eram maiores e mais

marcar um churrasquinho”. Nesse momento, o grupo

importantes do que os dos outros”.

passou a caminhar com mais autonomia ou, segundo

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Maturana e Varela (1997), a partir de um andar auto-

duziu pequenas rupturas nos modos de subjetivação

poiético. Ainda de acordo com esses autores, o grupo

do coletivo em relação ao sofrimento, às relações e às

já funcionava como dispositivo para o desenvolvimento

histórias individuais. O desenvolvimento desses atri-

de duas características básicas do viver: a potência de

butos produziu nos sujeitos um aumento de algumas

criação de si e sua capacidade de autonomia, produzin-

potências criativas e da autonomia, construindo novas

do o aumento progressivo das potências criativas e de

composições de si.

autonomia na busca de novas composições de si.

PARA FINALIZAR Este trabalho, escrito por vários outros além de

R E F E R Ê N C I A S

mim, buscou contribuir com a criação de campos de atuação que reivindiquem a singularidade, a multiplicação de modos de subjetivação, o resgate da criatividade, tomando a clínica como desvio. Tivemos como objetivo abrir reflexões acerca de cuidados em Saúde Mental,

Alvez, D.; Guljor, A. O cuidado em saúde mental. In: Pinheiro, R.; Mattos, R. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/Abrasco, 2001. p. 221-240.

incentivando mais pesquisadores a criar problematizações e construir outros saberes. Não tenho a pretensão de fechar a discussão e nem de afirmar que a clínica de grupos voltada para a produção de subjetividade seja melhor ou pior do que outras modalidades de grupo ou da individual, mas procurei mostrar que o modelo de

Benevides, R.D.B. Dispositivos em ação: o grupo. In: Lancetti, A. (Org.). Saúde e loucura 6. São Paulo: Hucitec, 1997. ______. Grupo e produção. In: Lancetti, A. (Org.). Saúde e loucura 4. São Paulo: Hucitec, 1995.

atenção integral e o espaço grupal possibilitam que os sujeitos não fiquem tão fragmentados em sua escuta. A ação terapêutica proposta foi a de cuidar da pessoa a partir da escuta de sua vida, com a intenção de produzir outros modos de existência, potencializando, dessa froma, a saúde, a autonomia e a liberdade, mesmo que isso se mostrasse desafiante. Foi preciso pensar em uma clínica integral voltada para outras produções subjetivas; um cuidado que considerasse a complexidade de vida dos sujeitos, tomando o sofrimento psíquico, no caso o consumo de álcool e drogas, não apenas como algo provocado pelo indivíduo, mas como algo decorrente de uma produção social. No desenrolar dessa experiência, pude perceber que o grupo funcionou como dispositivo quando pro-

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008

ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro “É muito antes do ópio que minh’alma é enferma” Fernando Pessoa Magda Vaissman 1 Marise Ramôa 2 Artemis Soares Viot Serra

3

Mestre e doutora em Psiquiatria pelo

RESUMO Este artigo reflete sobre a construção de uma rede de assistência

Instituto de Psiquiatria da Universidade

em álcool e outras drogas no Rio de Janeiro durante 1980 a 2004, mediante

1

Federal do Rio de Janeiro (IPUB/ UFRJ); coordenadora da Unidade de

movimento da Reforma Psiquiátrica e os primórdios da formulação de políticas

Problemas Relacionados ao Uso de

públicas no campo. Utiliza-se de abordagem qualitativa, baseada na história

Álcool e outras Drogas (UNIPRAD) do

de vida de atores sociais, e sua relação com a implantação de instituições e

Hospital Escola São Francisco de Assis

serviços ligados a este cuidado especializado. Apesar da implantação de um

(HESFA) da UFRJ; médica psiquiatra desta unidade.

modelo de assistência baseado nos Centros de Atenção Psicossociais, neste período

[email protected]

permaneceram várias contradições e dicotomias, como se o modelo da Reforma Psiquiátrica passasse ao largo das práticas efetivamente propugnadas.

2

Mestre e doutora em Psicologia

Clínica pela Pontifícia Universidade

PALAVRAS-CHAVE: Assistência à Saúde Mental; Dependência química;

Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio);

Reforma dos serviços de saúde.

supervisora do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS ad) Mané Garrincha, do Rio de

ABSTRACT This article deals with the reflexion, concerning the installation of

janeiro.

a service for the assistance of alcoholics and drug-addicts in Rio de Janeiro, during

[email protected]

the period of 1999 to 2004, by means of the Psychiatric Reform movement which

3

Mestre em Serviço Social pela Escola

anticipated the public policy of treatments in the field. It covers a qualitative

de Serviço Social (ESS) da UFRJ;

approach based on the history of the social actors and its relations with the

assistente social da UNIPRAD/HESFA/

introduction of services and instructions devoted to this specialized care. Despite

UFRJ.

the implantation of an assistance model based on the psychosocial scope centers,

[email protected]

during the period it was verified a lot of contradictions and dichotomies, like the Psychiatric Reform model would navigate far from the effectively supported practices. KEYWORDS: Assistance to Mental Health; Drug addiction; Health services reform.

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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

I N T R O D U ç ão

O paralelo entre o campo da Saúde Mental e a organização de serviços de drogas, teve o objetivo de contribuições para conscientização da necessidade de consolidação e desenvolvimento de políticas públicas na área em nosso estado. Em 1980 surgiram os Centros

O estudo é sobre a construção de uma rede de aten-

de Atenção Psicossocial (Caps), dispositivos usados

ção ao uso de drogas no estado do Rio de Janeiro. Nos

para psicóticos e neuróticos graves, como resposta à

últimos vinte anos foi observada uma discrepância entre

ineficácia do sistema ambulatorial em reduzir o núme-

as propostas e implementações de serviços pautados no

ro de internações em hospitais psiquiátricos. Mas os

movimento da Reforma Psiquiátrica1, no que se refere

dependentes de drogas que se encontravam internados

à assistência à loucura e dependência de drogas.

em hospitais psiquiátricos ou que já estavam sendo

O objetivo foi desenvolver um histórico dessa as-

atendidos em ambulatórios, com várias reinternações,

sistência e da situação dos dispositivos de tratamento.

não foram beneficiados por tal política, a não ser no

Utilizou-se uma abordagem qualitativa com entrevistas

caso de comorbidade.

com profissionais representativos do campo e análise

O termo ‘dependência química’ apareceu freqüente-

de cadastros de serviços. Neste período, prevaleceu a

mente nas falas dos entrevistados referentes a serviços neste

iniciativa privada na oferta de serviços e no treinamen-

período estudado. Ressaltando a noção de doença, valori-

to de recursos humanos, devido à ausência de política

zando o produto em si e confundindo as várias formas de

pública. Mas, a partir de 2002, o Ministério da Saúde

relação do usuário com as drogas, como o uso, abuso e a

estabelece política para o setor2.

dependência. A ‘dependência química’ apresenta-se como

Nos primórdios da estruturação deste campo, os

objeto dos campos dos saberes médico e jurídico, numa

serviços ambulatoriais ou hospitalares eram privados e

ênfase dada à droga, o que pode levar a ações repressivas,

inspirados em experiências pessoais3. Tinham a hipótese

com caráter de ‘guerra às drogas’ e à manutenção do

de que a vivência pessoal construiu uma prática bastante

desaparecimento do sujeito. No campo do saber médico

solidária4, mas, pouco teorizada, com influências norte-

o dependente de outras drogas é visto como doente que

americanas e metodologia pragmática. Nesse período,

requer cuidados especializados e no campo jurídico como

existia um profundo debate entre profissionais da Saúde

doente e criminoso5. Deve-se pensar em uma assistência ao

Mental, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, referente

usuário de drogas que não o remeta sempre à sua impotên-

às noções de doença, de periculosidade e da internação

cia e sim a sua potência de vida, pois é justamente isso que

como exclusão social entre outras.

o paciente busca em seu afã por um grande êxtase.

No contexto de Reforma, a Psiquiatria difere da Saúde Mental. De acordo com Saraceno (1999, p. 144-145), a primeira se refere ao trato da doença mental e a segunda coloca no centro da intervenção a dinâmica da saúde-doença, em que, além de tratar o trabalho de prevenção e promoção de saúde também são imprescindíveis para o desenvolvimento do bem-estar das pessoas. 1

Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, 2003. Portaria 816/GM (30/04/2002) e em maio dispõe sobre as normas para funcionamento e cadastramento de Caps ad. 2

“na criação de serviços e unidades de tratamento de dependentes químicos sempre estiveram presentes vários atores que têm em comum uma história escrita de muito suor, sofrimento e sangue”. (Freire, E., comunicação oral). 3

4

Porém, segundo Richard Rorty (1993), as pessoas são solidárias quando aceitam as diferenças, o que não ocorreria, portanto, num grupo de iguais.

A legislação a respeito (1976 a 2001) sempre foi muito confusa, pois um usuário e traficante eram criminalizados e penalizados, pois sempre houve graves dificuldades de se avaliar essa distinção, visto que muitos usuários, em função da situação de violência nas ‘bocas de drogas’ optam por comprarem grandes quantidades de substância para uso, mas seriam enquadrados como traficantes, pois o critério usado pela Justiça é o de quantidade. 5

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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Mas o que houve historicamente para que o campo

Paralelamente, realizou-se um levantamento das

tenha se organizado isoladamente da Saúde Mental

instituições disponíveis no estado do Rio de Janeiro

e das propostas de políticas públicas, até o final dos

até agosto de 2004, a partir de dados organizados pelo

anos 1990?

Conselho Estadual Antidrogas, e do cadastro orga-

Um setor da medicina tentou preencher a falta de

nizado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade

políticas específicas na área, com iniciativas privadas,

Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ) em parceria

marcadas pelo isolamento, entendendo a internação

com o Nepad/UERJ.

como medida terapêutica ou como o tratamento. Pensou-se na organização de serviços para usuários de drogas no campo da Saúde Mental e a possibilidade de articulação de diversos saberes para a construção de

ALGUNS ASPECTOS CONJUNTURAIS

uma prática com os usuários, que se baseie em uma assistência de âmbito territorial6, na prática possível dos Caps ad e na constituição de uma rede.

Atualmente vive-se uma pandemia de drogas com a explosão do consumo, da criminalidade e da violência a elas relacionadas a partir da década de 1980. Se anteriormente, nos anos 1970, o uso de drogas estava aliado a um enfrentamento político, jovens protestavam

METODOLOGIA

contra a política militarista norte-americana no bojo da guerra do Vietnã e manifestavam seu apoio a Martin

Utilizamos a abordagem de pesquisa social em

Luther King pela paz, hoje a relação do sujeito com a

saúde como apreensão da realidade e a estratégia de

droga é outra, sendo a droga representada por um ob-

‘história de vida’ (Minayo, 1996, p. 126-129) por ser

jeto de consumo, em uma busca desenfreada por prazer

apropriada para ser traçada uma história dos primeiros

individualista (Ramoa, 1999).

serviços para dependentes de drogas no Rio de Janeiro

O resultado da política de repressão ao tráfico de

e conseqüentemente, sobre impasses e possibilidades de

cocaína dos países sul-americanos, estabelecida pelos

construção de uma rede para atendimento de usuários

Estados Unidos e Europa, o Brasil torna-se importante

de drogas.

rota e parte considerável da produção passa a ser destina-

Foram realizadas seis entrevistas com atores que identificamos a partir de nossa vivência no campo da assistência, como importantes, os quais atuaram no período inicial de 1980 a 1990.

da ao consumo interno, com conseqüente agravamento da violência urbana. A partir da década de 1990, o uso de drogas, sua produção e comercialização passaram a representar um

Posteriormente, procedemos à análise qualitativa

problema mundial ao lado da Aids, fome, violência e

das histórias de vida contidas nestes depoimentos e foi

corrupção. Torna-se conseqüentemente motivo de posi-

desenvolvida uma análise do discurso, o que possibilitou

cionamento da Organização das Nações Unidas (ONU)

o levantamento de algumas questões.

na 20ª Sessão Extraordinária da Assembléia Geral das

Território entendido não apenas como região, mas no sentido de um pulsar das relações entre horizontalidades e verticalidades. As horizontalidades serão dos domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. (Santos, M.; Silveira, M., 2002.) 6

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Nações Unidas em 12 de dezembro de 1996, quando

existência em sofrimento (Procópio: 1999, p. 70-94;

foram propostas medidas de cooperação internacional

Rotteli; Leonardis; Mauri,1990, p. 17-59). A Reforma

no enfrentamento do problema das drogas.

Psiquiátrica traz a preocupação não só com a doença,

Houve também neste colóquio o reconhecimento do princípio de ‘redução de demanda’, essencial no

 

mas com o sujeito que sofre e foi influenciado pelo movimento de Reforma Sanitária na sua constituição7.

enfrentamento do problema, com o compromisso de introduzir programas e estratégias nacionais pretendendo-se obter resultados significativos e mensuráveis até 2008 (Brasil/Senad, 2001). Assim, em 2001 o Brasil

OS SERVIÇOS PARA USUÁRIOS DE DROGAS E

adota em âmbito nacional uma Política Antidrogas que

SUA PERIODIZAÇÃO

representa um avanço, ao aderir as diretrizes da ‘redução da demanda’, ao invés de priorizar somente ações de

Há pouco tempo no setor público só havia a re-

cunho repressivo e de segurança e um retrocesso, no

clusão nos hospitais psiquiátricos como proposta de

que se refere ao que já vinha acontecendo em termos de

‘tratamento’ para usuários de álcool e outras drogas. Os

política de redução de danos. Em 1998, a Casa Militar

serviços psiquiátricos encontravam-se8, em sua grande

da Presidência da República assume a coordenação da

maioria, altamente despreparados tecnicamente para

Secretaria Nacional Antidrogas (Ramos, 1998).

enfrentar esta questão. Não havia centros de atenção

A proposta de redução da demanda corre o risco de

psicossocial especializados, ambulatórios, hospitais-dia,

ser atrelada à idéia de criminalizar o usuário e/ou depen-

leitos hospitalares, etc. O primeiro centro de tratamento

dente de drogas e responsabilizar tal parcela da população

especializado para usuários de drogas foi o Centro de

pela existência do tráfico de drogas, ao invés de questionar

recuperação de dependentes químicos – Credeq9, con-

a necessidade de descriminalização da droga.

veniado com o Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu

Porém, a institucionalização e a globalização do

na década de 1980 e havia dificuldade para ter acesso ao

narcotráfico na contemporaneidade devem ser levadas

mesmo, cujo período de internação era de cem dias, o

em consideração como questões que apontam para a

que implicava em baixa rotatividade do leito hospitalar.

necessidade de uma assistência ao usuário de drogas, que

Em meados dos anos 1980, a conjuntura epidemioló-

seja pautada em uma prática territorial, visto que deve

gica do uso abusivo de drogas era evidente e com isso

pensar em criar condições de enfrentamento do tráfico

surgiu uma demanda de atenção médica e psicológica

de drogas a partir de alternativas de lazer, de trabalho

mais especializada, visto que o atendimento em hospi-

etc., para que o usuário de drogas e que muitas vezes

tais psiquiátricos, desde seu surgimento, trouxe como

se introduz no tráfico para obter a droga, adquira de

herança dos hospitais gerais, a visão de filantropia e de

fato e de direito seu lugar de cidadão na sociedade, não

atendimento leigo-religioso.

sendo visto como doente ou criminoso, mas como uma Amarante (1995, p. 93-99) apud Silveira da Silva (2000) destaca três momentos da estruturação da Reforma Psiquiátrica Brasileira: 1-Trajetória Alternativa (de meados de 1970, no movimento contra a ditadura militar); 2-Trajetória Sanitarista (no início dos anos 1980, profissionais reformistas da saúde incorporam-se ao aparelho de Estado); 3-Trajetória da desinstitucionalização (desconstrução/invenção), que surge na I Conferência Nacional de Saúde Mental, abrindo o caminho para a mudança do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental para o da Luta Antimanicomial. 7

8

Ainda hoje a situação não é muito diferente.

9

Credeq – instituição da Assistência Social evangélica.

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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Logo, no Rio de Janeiro, até a década de 1980, ou

fundamental e médio no estado. No entanto, em face de

se tinha uma alta quantia para custear um tratamento

sua perspectiva filosófica baseada no modelo francês de

especializado ou ia-se para o hospício. Naquele momen-

toxicomania na atuação clínica, o Nepad passou a ficar

to era predominante a filosofia de tratamento baseada na

solitário em relação a outros núcleos, pois sua área de

exclusão do usuário do contexto social, laboral e familiar.

atuação restringia-se às drogas ilícitas, sendo os usuários

A internação em clínica especializada constituía-se como

de álcool encaminhados a outros serviços.

a única alternativa de tratamento.

Se por um lado o setor público não apresentava

Surgem, então, os primeiros serviços de atenção

alternativas ou condições de acesso ao dependente de

a dependentes de drogas na cidade do Rio de Janeiro,

drogas, por outro a assistência psiquiátrica mostrava-se

cuja historiografia encontra-se sintetizada no Quadro

inadequada e despreparada. Diante deste panorama, o

1 (em Anexo 1)10.

setor privado vislumbra a possibilidade de um grande

Nos depoimentos levantados e já mencionados

negócio na área da saúde, sem concorrentes. Todavia,

anteriormente é bastante relevante que a história pessoal

assume um papel importante e propõe como estratégia

destes precursores com a droga, funcione como um me-

de tratamento o modelo chamado Modelo Minne-

canismo propulsor de criação de serviços, podendo levar

sota, inspirado nos passos e tradições dos Alcoólicos

a uma posição de maior solidariedade ou de maior difi-

Anônimos e que fomentou o surgimento de toda uma

culdade de suporte teórico para as referidas práticas.

geração de profissionais e instituições seguidoras de seus

O motivo em se envolver no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas deve-se à existência de algum

ensinamentos, a partir de um centro de tratamento para dependentes químicos chamado Vila Serena.

membro com este problema na própria família ou por

Esta instituição teve um papel fundamental de

vivência pessoal com esta problemática. A única ex-

formação de uma ideologia de tratamento aos usuários

ceção até 2001 é o Núcleo de Estudos e Pesquisas em

de álcool e outras drogas e de articulação de uma política

Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado

privatista de atenção, não somente no Rio de Janeiro

do Rio de Janeiro (Nepad/UERJ), pois a equipe de

como em todo o Brasil. Vila Serena, cujo berço foi no

profissionais que criou este núcleo buscou na psicanálise

Estado de São Paulo, se tornou após alguns anos uma

subsídios para sua metodologia de trabalho em atenção

‘franchising’, a primeira no Brasil em termos de trata-

às toxicomanias seguindo o modelo francês em sua fun-

mento de ‘dependentes químicos’, e exportou seu mode-

damentação prática e teórica, inclusive sob supervisão

lo de atendimento a várias capitais brasileiras e cidades

do psicanalista francês Claude Olievenstein do Centro

do interior; sendo inicialmente financiada por grandes

Marmotan de Paris.

empresas multinacionais como McDonald’s e a Johnson

Esta instituição foi a primeira de caráter univer-

& Johnson para a internação de seus executivos.

sitário no estado, sendo responsável pela formação de

Fundada em l983 pelo ex-padre John Burns, o qual

inúmeros pesquisadores deste campo de saber. Desen-

trouxe ao Brasil o modelo de tratamento de abordagem

volveu os primeiros levantamentos epidemiológicos

norte-americana do confronto com a realidade do adicto

sobre o consumo de drogas entre estudantes do ensino

e de práticas psicopedagógicas através de dinâmicas e

Cabe ressaltar que na retrospectiva não foi feita uma separação clara entre os setores públicos e privados, pois se sabe que são complementares dentro do SUS, cabe ao poder público: a regulamentação, normalização, auditoria e controle do sistema como já vigora para o funcionamento de comunidades terapêuticas, segundo o modelo psicossocial (Resolução - RDC /Anvisa, nº 101 de 30 de maio de 2001). 10

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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Quadro 1 - Principais serviços na área de álcool e outras drogas de 1971 a 2005 no Rio de Janeiro. 19711980 19801985 1985 1990

19901995 19952000

2001 2005

2001 2005

Instituição Comunidade S8 1971 Hospital Pedro Ernesto 1980 Vila Serena 1983 Hospital Pinel UTA 1985 Hospital Estadual Pedro II * (Santa Cruz) Credeq 1985* Nepad (UERJ) 1985 OPJ 1987 Clínica Contexto 1989 Hospital da PM 1988 Fundação Osvaldo Cruz 1988 Clínica Jorge Jaber 1989 Clínica Aldeia 1991 Casa do Caminho Cepral/UFRJ 1995 Projad/UFRJ 1996 Unidade Certa* 1996 (Casa de Saúde Dr. Eiras) Centro Vida 1996 Projeto Bem-Te-Vi* 1997-1999 Santa Casa da Misericórdia (RJ) 1998 NAAD 1998 Integrarte Petrópolis 1998 Celeiro da Saúde 1999 Caps ad Estadual Centra-Rio 1999 Rede FIA-1998 1. Criaa UFF (Niterói) 1998 2. Resgate (Campos) 1998 3. Ceata (Duque de Caxias) 1998 4. AADEQ* (Jacarepaguá)* 2000-2005 5. CASA DO LINS* Fundação Simonton IBMR 1999-2005 6. Reencontro Casa da Vila (S. João do Meriti) 1998 7. Gaia (Volta Redonda) 8. Amai (Campos) 9. Casa de Guaratiba* (Rio de Janeiro) 1998-2000 Cead/Deprid (SEAS)1998 Clínica Michelle de Morais 2000 Projeto Nossa Casa (Degase) 2000 Cepuad/UFRJ 2001-2005* Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (Degase) 2001 REVIVA (Barra Mansa) 2001 Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 Uniprad/UFRJ 2005 Caps ad Raul Seixas 2003 Transformando Viver (FIA) 2005 Semente do Amanhã (FIA) 2003 Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001 Cepuad/UFRJ 2001-2005* Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (Degase) 2001 REVIVA (Barra Mansa) 2001 Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 Uniprad/UFRJ 2005 Caps ad Raul Seixas 2003 Transformando Viver (FIA) 2005 Semente do Amanhã (FIA) 2003 Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001

Modelo Comunidade Terapêutica Psicossocial Minessotta Psicossocial Psicossocial

Tipo Filantrópica

Minessotta Psicanalista Day-Top Minessotta Minessotta Psicossocial Minessota Minessota Minessota Psicossocial Psicossocial Minessota Minessota Minessota Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Psicossocial

Tipo de Atenção Internação e Pós-tratamento Universitário Privada Ambulatório Pública Internação Pública (SES) Internação Internação Filant. (SUS) Internação Universitária Ambulatório Filantrópica Internação Privada Corporativa Ambulatório Universitária Internação Ambulatório Privada Internação Privada Internação Filantrópica Internação Universidade Ambulatório Universidade Ambulatório Privada (SUS) Internação Filantrópico Centro-dia Filantrópico Ambulatório Universidade Ambulatório Público (SMS) Ambulatório Filantrópico Centro-dia Filantrópico Centro-dia Público Hospital-dia

Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Psicossocial Minessota Minessota Psicossocial Minessota Minesota Minessota Psicossocial Psicossocial Minessota Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Minessota Minessota Minessota Psicossocial Minessota Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Minessota Minessota Minessota

Universitário ONG ONG ONG ONG ONG ONG ONG ONG Público ONG (SEAS) Público Universidade Deprid-SEJ Público ONG ONG Universidade Público (SMS) ONG ONG Público (SEAS) Público (SEAS) Universidade Deprid-SEJ Público ONG ONG Universidade Público (SMS) ONG ONG Público (SEAS) Público (SEAS)

Centro-dia Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Internação Ambulatório Internação Ambulatório Ambulatório Ambulatório Internação Internação Internação Ambulatório Hospital-dia Centro-dia Internação Internação Internação Ambulatório Ambulatório Internação Internação Internação Ambulatório Centro-dia Internação Internação Internação

*Não realizam mais esse tipo de assistência. O Hospital Estadual Pedro II, após participação em curso de atualização na área de álcool e outras drogas, para a zona oeste, promovido em 2007 pela coordenação de saúde mental do município do Rio de Janeiro, tenta reativar atendimento a dependentes de drogas. Fonte: Catálogo de Serviços para Dependência Química, 4ª edição, Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen), Prefeitura do Rio de Janeiro; Catálogo de Serviços Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nepad/UERJ/UFRJ)

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •

Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

palestras baseadas na filosofia dos grupos de mútua-

ajuda, seriam justamente os que estariam aptos a tratar

ajuda. Outra forma de atuação deste grupo preconizava

dos dependentes – surgem, então, os conselheiros em

a intervenção específica para ‘dependência química’ nas

dependência química.

empresas, mais conhecidos como Programas de Assis-

Vila Serena trouxe a prática do aconselhamento14,

tência ao Empregado (PAE), através de treinamento

ofereceu cursos e palestras a leigos e profissionais inte-

de assistentes sociais e supervisores, que ao identificar

ressados em temas de dependência de drogas. Baseada

casos de ‘usuários pesados’11, deveriam encaminhá-los

na metodologia da Fundação Halzenden/Minnesota, a

para tratamento interno em Vila Serena. Após a alta da

qual valorizava a ponte com os Alcoólicos Anônimos,

internação de 28 dias, em média, os trabalhadores se-

o grupo dirigente de Vila Serena sai fortalecido por

riam acompanhados pelas assistentes sociais no setor de

membros dos movimentos de mútua-ajuda. Nesse pe-

trabalho nas empresas, sendo que estes grupos nos locais

ríodo, com a valorização profissional da metodologia dos

de trabalho foram chamados de pós-tratamento .

12 passos, há uma estimulação também de criação de

12

Em Vila Serena também era ofertado um grupo de

Grupos de Narcóticos Anônimos e de familiares (Na-

reflexão e acompanhamento para ex-residentes e que

ranon), já que se iniciava o grande ‘boom’ de consumo

fazia parte do chamado pós-tratamento (Burns, 1995,

das drogas ilícitas.

p. 25-27). Isto implica na idéia de que ‘tratamento’ se

Neste cenário de ambientes de tratamento percebe-

faz sob regime de internação e que o seguimento não

se o surgimento de um novo ator na figura do ex-depen-

é tratamento e sim pós-tratamento, ou seja, posterior

dente, o qual se prontifica a contar seu drama pessoal a

à exclusão social, em que pese ficar marcada como

outro, ainda em fase de recuperação, possibilitando, a

instrumento terapêutico à semelhança do tratamento

princípio, que o internado ou residente realize a iden-

moral dado aos loucos de toda sorte dos primórdios da

tificação a partir de suas vivências pessoais. Estes conse-

psiquiatria pineliana.

lheiros passam a atuar junto da equipe de saúde como

Naquela época, havia uma carência de profissionais

agentes de motivação e em certas unidades até mesmo

aptos para o atendimento aos dependentes. Médicos e

como figura central em programas de recuperação sob

outros profissionais estavam distantes desta realidade;

regime de internação, conforme ainda hoje é adotado

não havia elo de identificação, além da sabida falta

na grande maioria das comunidades terapêuticas15 que

total de preparo de profissionais da área de saúde e da

oferecem tratamento ‘leigo’ e sem a necessidade da pre-

Saúde Mental. Surge então como proposta de atenção

sença de pelo menos um médico clínico/psiquiatra na

aos usuários: utilizar-se daqueles que vivenciaram o

equipe, conforme a Portaria Anvisa 101/2001.

processo de uso de drogas e que saíram do ‘pesadelo

Esta modalidade de atuação, ‘aconselhamento’,

das drogas’13, através da ajuda de grupos de mútua-

até então não existia no escopo de atuação da equipe

11

Termo utilizado por entrevistado.

Esta abordagem compreende a questão das drogas como sendo uma doença de caráter exclusivamente orgânico e moral, sendo necessário o reconhecimento e a reparação do mal cometido a outros pelo uso da droga. O cunho religioso evangélico esteve presente desde a fundação dos Alcoólicos Anônimos (Ramoa, 1999). 12

13

Termo utilizado por entrevistado.

14

Ocupação muito consagrada nos Estados Unidos e desconhecida até então no Brasil.

No estado do Rio de Janeiro, a experiência das comunidades terapêuticas teve pouco êxito. No entanto, a Comunidade S8 em Niterói, criada em 1971, bastou para formar posteriormente uma forte tradição evangélica de atenção a dependentes. Esta comunidade leiga e de caráter filantrópico foi a pioneira e se mantém hoje como a mais antiga instituição de tratamento de dependentes . 15

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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

de Saúde Mental. Foi e continua sendo mal interpre-

Enfim, em todos os centros (com orientações meto-

tada e sem maiores aportes técnicos e teóricos ou de

dológicas diversas) abandonava-se uma postura clínica

representação profissional. Verificou-se, assim, que o

baseada na forma hierárquica de cuidado e passava-se

aperfeiçoamento e o treinamento foram desde o início

a uma atuação mais horizontal contando-se com uma

uma grande preocupação do pessoal que atuava nesta

equipe multidisciplinar.

área. No caso de aconselhamento, contudo, houve um

Até 1995, o modelo predominante no Rio de

verdadeiro ‘boom’. Todos se arvoraram de cuidadores de

Janeiro foi centrado no hospital e totalmente desar-

dependentes de drogas e houve uma vasta proliferação

ticulado com o sistema ambulatorial. Em termos de

de pequenos treinamentos, de modo geral capitaneados

seguimento, existia o que se chama ainda hoje de pós-

pelas clínicas privadas para atender a qualquer interessa-

tratamento, geralmente um atendimento semanal em

do, sem quaisquer requisitos acadêmicos prévios.

grupo, pelo prazo de 12 meses, o mesmo ocorria nos

No período de 1980 a 1989, o papel da equipe de

programas financiados pelas empresas. Estas encami-

Saúde Mental e do profissional de saúde ainda tinha

nhavam seus empregados às clínicas particulares, que

pouca relevância. Esta situação perdurou até 1990,

realizavam um acompanhamento, geralmente dentro

quando se se constataram inúmeros casos de comorbi-

da empresa, em grupos de empregados que passaram

dade psiquiátrica .

por internação em clínica particular. O próprio ter-

16

Exceto a necessidade premente de utilização de téc-

mo ‘pós-tratamento’ já mostra o quanto se enfatiza

nicas específicas de terapia de família e de outros suportes

que o tratamento do dependente de drogas se dá via

psicoterapêuticos, os psiquiatras assumiram naquela

internação em um centro de tratamento e em regime

época a liderança de muitas equipes. Mas, começava a

de exclusão. Não se falava ainda em reabilitação psi-

se delinear uma psiquiatria diferente na relação com o

cossocial e reinserção social, pois pela metodologia dos

poder médico, em que o cuidado é obrigatoriamente

12 passos a abstinência e sua manutenção eram a única

compartilhado com o restante da equipe, frente por um

meta no tratamento.

lado, ao pobre arsenal psicofarmacológico disponível, e

Outro modelo de assistência aos usuários foi a

por outro, à magnitude do problema ‘drogas’ com suas

comunidade terapêutica, mas praticamente não existiu

múltiplas causas e a necessidade de atuação multidisci-

modelo de assistência em nosso estado, exceto pela pre-

plinar, assumindo-se, assim, o compartilhamento das

sença da Comunidade S8. No entanto, foi largamente

decisões em grupo, seja com relação ao diagnóstico ou

adotado em vários estados brasileiros, principalmente

para traçar, em conjunto, as estratégias terapêuticas no

por comunidades ligadas às entidades religiosas católicas

plano de trabalho. Negociam-se metas com o próprio

e evangélicas17. Realizava acompanhamento de pós-in-

paciente que assume um papel ativo no seu tratamento.

ternação por nove meses, o qual envolvia o ambulatório

Estudos americanos em epidemiologia de comorbidade de transtornos relacionados ao álcool, drogas e outras desordens psiquiátricas como o Epidemiologic Cathment Area (ECA) Study mostram que mais da metade dos usuários de álcool e/ou de drogas teriam, pelo menos, uma comorbidade associada. No caso da cocaína, 76% dos usuários teriam um transtorno psiquiátrico adicional. Assim, existiriam as seguintes prevalências: 15,7% no último mês, 19,5% nos últimos seis meses e 32,7% ao longo da vida. Em outro estudo importante, o National Comorbidity Survey (NCS) de 1994, estima que 48% de 8.098 entrevistados entre as idades de 15 a 54, reportaram abuso de substâncias e de álcool e/ou de transtornos psiquiátricos ao longo da vida. Dos 26,6% que possuíam algum transtorno ligado ao uso de substância, a metade seria devido ao álcool. Quadro de ansiedade (24,9%) e doenças afetivas (19,3%) respondem pela maioria destes transtornos. (apud Beeder, A.B; Millman, R.B, 1997) 16

A comunidade terapêutica baseia-se num modelo que busca integrar diversas abordagens: a médica (psiquiatria e clínica médica), a psicossocial (o modelo de base psicanalítica, terapia familiar) e a cultural (atividades de caráter espiritual, recreativo e intelectual), preconizando um regime de internação muito longa, em torno de nove meses, com fortes características de incentivo a mudanças comportamentais. 17

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •

Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

de dois meses e a freqüência a grupos de mútua-ajuda. E

o setor publico filantrópico e de ONGs (organizações

os trabalhos da Clínica Day Top e Synanon18 dos Estados

não-governamentais) consignados no Programa de

Unidos são adotados como sistema de tratamento.

Atenção a Criança e ao Adolescente Usuário de Drogas,

No período de 1995 a 2000 inicia-se a inclusão de

da Fundação para a Infância e Adolescência, ligada a

novos atores no panorama de assistência aos usuários de

Secretaria de Ação Social e Cidadania do estado permi-

álcool e outras drogas no estado, até então dominado

tindo uma ampla cobertura a outras cidades do estado

por iniciativas lucrativas. Houve um importante avanço

do Rio de Janeiro. Totalizam sete unidades ambulatoriais

e inicia-se o processo de especialização dos serviços em

e de internação e três instituições ligadas à prevenção

nossa área, com a criação na Universidade Federal do Rio

instaladas e que mantém convênios com a FIA. Os

de Janeiro (UFRJ) do Centro de Estudos e Reabilitação

modelos de tratamento são os mais diversos, desde

do Alcoolismo (Cepral) no Instituto de Neurologia

serviço universitário como o da Universidade Federal

(INDC) e do Programa de Assistência ao Usuário de

Fluminense, aos de cunho religioso e são oferecidos

Drogas (Projad) do Instituto de Psiquiatria (Ipub), bem

programas a adolescentes ‘infratores ou não’, na área de

como, a implantação na Santa Casa da Misericórdia dos

prevenção, internação e ambulatorial.

Programas de Tabagismo e de Alcoolismo.

Neste momento histórico surgem duas novas

Finalmente, inicia-se neste período, no âmbito da

instituições que trazem um novo paradigma para o

universidade, a consecução de sua missão primordial

panorama da assistência pública no estado: o Centro

que é a de treinamento, ensino e pesquisa. São defen-

de Recuperação de Adictos (Centra-RIO), o primeiro

didas as primeiras teses universitárias no Rio de Janeiro

hospital-dia público na zona sul da cidade criado no final

neste campo de saber. Consolida-se, no Rio de Janeiro,

de 1998, que apresentou um crescimento vertiginoso no

uma nova geração de professores e pesquisadores sobre

volume de atendimentos aos usuários de álcool e drogas,

dependência de drogas e com grandes perspectivas de

atualmente conta com cerca de cem casos novos/mês

criar novas linhas de pesquisas no futuro. No âmbito

o que confirma a nosso ver a previsão de que ainda há

privado de ensino criam-se as primeiras pós-graduações

uma grande demanda reprimida de pessoas com estes

em dependência química na Universidade Estácio de Sá

transtornos que necessitam de ajuda.

e no Instituto Brasileiro de Reabilitação (IBMR) para

O segundo momento foi com a implantação do

formar, capacitar e oficializar novos profissionais da área

setor de atendimento ao usuário de álcool e outras drogas

de Saúde Mental e afim, desejoso de atualizarem um

junto ao Conselho Estadual Antidrogas (Cead). O Cead

conhecimento algumas vezes previamente adquirido na

logo assumiu a tarefa do estabelecimento de diretrizes

suas práticas, mas sem a sistematização de um ensino

políticas na área de assistência a dependência de drogas.

formal acadêmico.

As recomendações preconizadas durante o I Fórum Esta-

Ocorre um verdadeiro boom nesta área, até então,

dual Antidrogas, realizado pelo Cead, cuja tarefa foi de

tão carente. Viu-se a instalação maciça de novos serviços

organizar as políticas de atuação no setor de prevenção,

e mesmo de novas formas de financiamento do setor

tratamento e reabilitação de dependentes, desenhadas

público e foi aberto um amplo leque de parcerias entre

naquele encontro. O Cead, através do Deprid, assume

Segundo Saád (2001, p. 18), por volta de 1953, surge na Califórnia uma nova modalidade de tratamento, a comunidade terapêutica denominada Synanon. Seu fundador utilizou conceitos de comunidades terapêuticas psiquiátricas da medicina militar e conceitos de Alcoólicos Anônimos, mas a comunidade terapêutica estava mais compatível com os conceitos de reabilitação psicológica da visão criminal do uso de drogas, exceto que estava empenhada em construir uma comunidade policialesca como um passo para a redenção dos adictos. 18

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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

a missão de operacionalizar uma política de assistência

1999, localizada no bairro de Santa Cruz no espaço

aos usuários de drogas em nosso estado. Deixa de ser

arquitetônico asilar, onde funcionou o Hospital Psiqui-

um órgão meramente consultivo, passando a ocupar um

átrico Raimundo Nonato. Em 2001 é implementada

espaço político de ponta, em termos da formulação de

a segunda clínica de regime de internação, a clínica

políticas de saúde pública na área de alcoolismo e outras

Ricardo Iberê Gilson, em Valença, na qual funcionou

drogas e na assistência ao usuário de drogas. Naquele

um reformatório para adolescentes infratores. E a

momento político o governo do estado do Rio de Janeiro

terceira clínica Nise da Silveira em Barra Mansa. Tais

assumiria através do Cead uma política de assistência

unidades (perfazem o número de três, com proposta de

aos usuários enfatizando o seu vetor social no estado.

expansão, tendo cada uma 90 leitos disponíveis) estão

Assim, ao assumir a função de assistência e acolhimento

ligadas à Secretaria de Ação e Desenvolvimento Social

aos usuários de drogas e à suas famílias, favorecendo a

e relegam ao SUS/Secretaria de Estado da Saúde um

eqüidade e acessibilidade ao cuidado, de forma universal,

papel secundário na formulação e implementação desta

modifica drasticamente o panorama da assistência que

política, o que tenta ser modificado a partir de uma

no início da década passada estava restrito às clinicas

política de Saúde Mental implantada pelo Ministério

privadas, a algumas obras filantrópicas ou ao hospital

da Saúde e que privilegia a implantação dos Caps ad.

psiquiátrico. Não se pode deixar de ressaltar o fato de

a partir de 2001.

que durante esse período vinham sendo pensadas formas

O Ipub/UFRJ, ao criar o Programa de Estudos e

de implantação de uma política pública para o setor,

Assistência a Usuários de Drogas (Projad/UFRJ), faz no

no campo da Saúde Mental e que a iniciativa do Cead

contexto de tornar-se um centro de referência formador

de implantar um espaço de assistência ocorre de forma

de recursos humanos junto ao Ministério da Saúde no

totalmente desarticulada com as propostas divulgadas

tocante ao treinamento e capacitação de profissionais

pelas Conferências Nacionais de Saúde Mental, estando

do setor público que atuarão nos Centros de Atenção

inclusive, na ‘contramão’ de tal proposta, que privilegia

Psicossocial para Álcool e outras Drogas (Caps ad), os

uma assistência pautada no modelo de reabilitação psi-

quais seriam implementados a partir de 2003.

cossocial, não se baseando na internação como elemento primordial de uma assistência.

No campo da Saúde Mental não foi traçado até 2001, alguma política oficial específica para a depen-

Na virada do século, ou seja, de 1999 para 2000,

dência de drogas ainda que por parte do SUS houvesse

assiste-se a um crescimento de 300% nos atendimentos

previsão orçamentária para recuperação dos ‘viciados’19.

no Cead. Pelas estatísticas divulgadas no ano de 2001,

Pelo contrário, no Brasil, o foco das políticas públicas de

observou-se um aumento de mulheres dependentes de

álcool e outras drogas saíram do âmbito do Ministério

drogas procurando ajuda, a maioria associada ao uso

da Saúde e foi para o âmbito do Ministério da Justiça,

indiscriminado de tranqüilizantes. Diante do enorme

inicialmente com a criação do Conselho Federal de

incremento de seu ambulatório, o Cead propõe ao

Entorpecentes (Confem) em 1987, o qual pautou o

Governo do Estado a implementação da primeira

momento de sua atuação no plano governamental nos

clínica popular de internação pública especializada no

últimos anos no estabelecimento de políticas ligadas à

estado, a Clínica Michelle de Morais, em dezembro de

ações de repressão aos entorpecentes.

Artigo 32 § 1ºque diz que metade da receita de que trata o inciso I do artigo um deste artigo, apurada mensalmente, a qual será destinada à recuperação de viciados. 19

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •

Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

Em 2001, o Brasil adota em âmbito nacional uma

partir do saber da mesma e não que estejam defendidos

Política Antidrogas que representa um grande avanço ao

em posições rígidas apoiadas em saberes pré-estabelecidos.

aderir às diretrizes da Redução de Demanda, no lugar

Ou seja, a criação dessa rede é algo extremamente novo e

de priorizar somente as ações de cunho eminentemente

na contramão de propostas como Justiça Terapêutica ou

repressivo e de segurança. Opera a partir de quatro dimen-

práticas centradas na internação como modelo de inter-

sões da ação antidrogas: prevenção, repressão, tratamento

venção. Foram propostas articulares práticas novas, tais

e recuperação, reinserção social e a redução de danos.

como internação domiciliar a programas já existentes de

O Ministério da Justiça ao assumir a liderança na

Saúde Mental e de saúde da família, para que se possa a

questão álcool e outras drogas, torna uma questão de

partir de demandas produzir mudanças efetivas na vida

estado por força de pressões internacionais. Posterior-

de quem sofre ou de quem compartilha do sofrimento

mente, após a 20ª Reunião das Nações Unidas em l998, a

associado ao uso indevido de drogas.

Presidência da República extingue o Confem e transfere suas atribuições ao Gabinete Militar da Presidência da República com a criação da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) e fomenta seus desdobramentos aos níveis estaduais e municipal na luta antidrogas. Ou seja, o ‘combate’ às drogas passa a ser visto como uma política de capital importância para a preservação e manutenção

R E F E R Ê N C I A S

do estado brasileiro. É a partir desse contexto histórico apresentado que se deve entender os impasses para a implantação de uma nova política para álcool e outras drogas, como proposta pelo Ministério da Saúde quando lança o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos

Amarante, P.D.C.; Torre, E.H.G. História da loucura: quarenta anos transformando a história da psiquiatria. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, v.13, n. 1, p. 11-26, 2001.

Usuários de Álcool e outras Drogas (Portaria 816/GM, 30/04/2002) e quando dispõe sobre as normas para funcionamento e cadastramento de Caps ad, bem como sobre o Programa Permanente de Capacitação para a Rede de Caps ad (Portaria 305/SAS de 03/05/2002). Para que se crie uma rede de atenção ao usuário de drogas é preciso efetivar a atual legislação em Saúde Mental, articular os diversos setores produtivos da sociedade, para que a mesma possa ser de fato uma sociedade solidária, na qual cuidar do diferente torne-se uma conduta ética por parte de todos. Para tal é preciso que ideologias sejam desconstruídas e para isso nada melhor do que fazer com que os profissionais de Saúde Mental estejam inseridos nas comunidades e que possam atuar a

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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •

Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008

Recebido: abr./2008 Aprovado: nov./2008

ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família Tick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health Strategy

Ionara Vieira Moura Rabelo Rosana Carneiro Tavares 2

1

Psicóloga do Centro de Apoio

Psicossocial (Caps) Beija Flor – SMS Goiânia; doutoranda em Psicologia

1

RESUMO Este trabalho apresenta os resultados de uma intervenção psicossocial planejada para atender mulheres que estavam usando medicação ansiolítica. Esta

pela Universidade Estadual Paulista

intervenção foi organizada por uma equipe de profissionais do Centro de Atenção

(Unesp).

Psicossocial (Caps ii) em conjunto com equipes de saúde da família (ESF). Ao todo

[email protected]

foram realizados dez encontros com diferentes dinâmicas de grupo, desenvolvidas

2

Psicóloga do Caps Beija Flor – SMS

para o grupo de mulheres e ESF com o objetivo de problematizar o papel da

Goiânia; mestre em psicologia.

mulher em conjunto com o significado do remédio na construção desta identidade.

[email protected]

Constatou-se que o grupo ajudou estas mulheres a entenderem seu sofrimento para além do sintoma, uso racional, bem como a retirada da medicação. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Gênero; Programa Saúde da Família.

ABSTRACT This paper presents the results of a psychosocial intervention planned to attend women who were taking anxiolytic medicines. This intervention was carried out by a professional team from the Mental Health Services (Caps ii) along with professional groups of the family health strategy. In total, ten weekly meetings using different group dynamic techniques were accomplished developed for women and professionals from the family health strategy. These meetings aimed at discussing the women’s role, together with the meaning of the medicine in the construction of a identity. It was found that the group helped the participants to understand their suffering beyond the symptoms, the rational use and the withdrawal of the medication. KEYWORDS: Mental Health; Gender; Family Health Program.

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RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

I N T R O D U ç ão

da especialização, e, portanto, ampliam para fora do hospital psiquiátrico todas as estratégias de atenção em Saúde Mental. A partir destas considerações coloca-se a relevância deste trabalho, a qual propõe relatar uma experiência realizada no município de Goiânia a partir

A Reforma Psiquiátrica coloca-se como um desa-

do ano de 2006, entre a equipe de um Caps II que

fio às ações de Saúde Mental na atenção básica, pois

atende a usuários com transtorno mental e duas equipes

confronta a lógica do encaminhamento, bem como

de saúde da família.

reafirma a comunidade como o locus para o atendimento

Este trabalho iniciou-se a partir de um levanta-

aos transtornos metais. É a partir deste princípio que

mento realizado pela equipe de mulheres atendidas

os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) se propõem

nesta comunidade que faziam uso continuado de

a trabalhar em conjunto com as equipes de atenção à

ansiolíticos. A proposta de busca apenas por mulhe-

saúde da família, atualmente nomeadas como Estratégia

res ocorreu em função de estudos que indicam uma

Saúde da Família (ESF), através de diferentes estratégias

prevalência de pessoas do sexo feminino como sendo

de atuação em cada região do país.

o público que mais faz uso abusivo de ansiolíticos.

Desde as primeiras oficinas propostas pelo Mi-

Sendo assim, justificam-se a relevância e a contempo-

nistério da Saúde, realizadas no ano de 2001, para se

raneidade deste estudo por avaliar que a consolidação

avaliar a inclusão de ações de Saúde Mental na atenção

de novos paradigmas de atenção em Saúde Mental

básica, houve a discussão tanto dos principais proble-

depende das possibilidades de reinvenção da atuação

mas e situações de risco em Saúde Mental, bem como,

em comunidades.

o direcionamento para estratégias de intervenções comunitárias conjuntas, estudos de caso, construção de projeto terapêutico individualizado, evitando assim a lógica do encaminhamento. Percebe-se que a

OS ENCONTROS POSSÍVEIS: SAÚDE MEN-

princípio o Governo Federal optou por uma lógica

TAL E ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA

nomeada como matriciamento (ou apoio matricial) para a atuação de equipes de Saúde Mental em conjunto com as ESF.

O compromisso com a intervenção nos processos de adoecimento, através de ações localizadas na comuni-

O apoio matricial é uma estratégia que busca co-

dade, tem sido um eixo norteador da política de atenção

nhecer e interagir com as equipes de atenção básica em

básica em saúde que se fortaleceu com a implantação

seu território; procura estabelecer iniciativas conjuntas

da Estratégia Saúde da Família (ESF), anteriormente

de levantamento de dados relevantes sobre as demandas

nomeada como Programa de Saúde da Família (PSF).

em Saúde Mental no território; atender conjuntamente

Até o ano de 2007, estas equipes totalizaram aproxima-

situações complexas, realizar visitas domiciliares acom-

damente 29 mil em todo o território nacional, atingindo

panhadas da equipe e atender casos complexos em

cerca de 90 milhões de brasileiros.

conjunto (Brasil, 2007).

Porém, percebe-se que essas equipes apresentam

É importante ressaltar que tais estratégias confron-

deficiências quanto às atuações em Saúde Mental visto

tam o modelo manicomial, pois rompem com a lógica

a hegemonia do modelo biomédico (Filho; Rocha;

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

França, 2006). Dessa forma, nota-se a importância na

janeiro de 2008. Tal portaria cria os Núcleos de Apoio

reflexão e pesquisa sobre estas novas práticas que se inse-

à Saúde da Família (Nasf), compostos por profissionais

rem no processo da reforma sanitária brasileira, elegendo

de diferentes áreas de conhecimento com o objetivo

neste instante o núcleo familiar como possibilidade de

de apoiar, atuar em conjunto e compartilhar com a

intervenção e manejo do processo saúde e doença.

ESF, práticas em saúde nos territórios sob responsabi-

Simultaneamente à implantação e implementação

lidade das mesmas. A portaria recomenda a presença

das equipes de saúde da família, o Ministério da Saúde

de pelo menos um profissional de Saúde Mental na

totalizou a implantação de aproximadamente 1.100

implementação das equipes dos Nasf, porém, não há

Caps em todo Brasil.

exigência que este profissional esteja lotado nos Caps

Para detectar a necessidade de expansão da rede de

do território, mas apenas que esteja lotado em uma

Saúde Mental, a proposta do Ministério da Saúde (Bra-

das unidades de saúde do território. Tal fato deve ser

sil,

2005) é de um Caps para cada 100 mil habitantes,

objeto de discussão dentro de cada município, pois

porém o critério populacional não deve ser o único para

ficará a critério do gestor local a escolha da composição

se planejar a rede de Saúde Mental, cabendo ao gestor

e lotação das equipes dos Nasf. Esta proposta fomenta

local junto a outras instâncias planejar os dispositivos

novos debates, e propõe que profissionais dos Caps

que melhor atendam à população local. Ao avaliar-se

fiquem atentos para que as Nasf e os Caps não passem

apenas os Caps direcionados para o atendimento aos

a desenvolver atividades paralelas, mas que possam

usuários com transtornos mentais, considera-se que os

funcionar em rede para a atenção em Saúde Mental

Caps I dá resposta efetiva a 50 mil habitantes, os Caps

no mesmo território.

II dá cobertura a 100 mil habitantes, e os Caps III a 150

Ao mesmo tempo em que novos dispositivos são

mil habitantes, sendo assim, de acordo como Ministério

criados, os trabalhadores de Caps e equipes de saúde da

da Saúde, há déficit em todas as regiões brasileiras, pois

família já têm construído experiências muito ricas em

atualmente os Caps estão assim distribuídos: região

Saúde Mental, mesmo que nomeadas diferente, mas que

Norte com 0,19 Caps; região Nordeste com 0,28 Caps;

mantém entre si a lógica do matriciamento, onde são

região  Centro-Oeste com 0,27 Caps; região  Sudeste

priorizadas a supervisão, o atendimento compartilhado

com 0,34 Caps e região Sul com 0,41 Caps por 100

e a capacitação em serviço, com o objetivo de aumen-

mil habitantes.

tar a capacidade resolutiva das ações de Saúde Mental

Mesmo ao se considerar um mapa com tantas

naquele território.

deficiências, para um país de dimensões continentais,

A atuação de forma compartilhada permite a

é importante ampliar o debate sobre a Saúde Mental,

integralidade das ações e favorece o trabalho de ques-

pois a lógica do território como espaço de relações e

tões de forma transversal como o conceito de gênero,

trocas, que permeiam os princípios do Caps e da Saúde

o qual é capaz de interligar situações de exploração,

da Família, terminam por contribuir para a conver-

discriminação, violência, salientando determinantes

gência de ações apoiadas por um mesmo paradigma

sociais e culturais que interferem na saúde de mulheres.

em saúde.

Para melhor especificar como o conceito de gênero se

A integração prevista entre os Caps e a ESF passa

inscreve de maneira importante no cotidiano de Saúde

a ser discutida sob um novo enfoque quando, o Minis-

Mental, são discutidos alguns estudos que abordam

tério da Saúde (2008) publica a Portaria 154 em 24 de

esta temática.

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RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

INTERFACES SAÚDE MENTAL E GÊNERO

de depressão, 78% queixavam-se de sintomas de ansiedade e insônia, 39% confirmavam ideação suicida e 24%

Para confrontar o cotidiano excludente das re-

iniciaram o uso de medicação ansiolítica após as situa-

lações em sociedade é necessário pensar as relações

ções de agressão. Mesmo que tal estudo seja norteado

historicamente construídas de exploração da mulher,

pela semiologia psiquiátrica, ele é válido no sentido de

pobre, negra, analfabeta, louca, desempregada que mora

apontar como a rede de conflitos sociais que, em alguns

longe e sofre violência física por parte do parceiro. Dar

casos configuram-se também como violência intrafami-

nome, cor, sentido, data e hora para o sofrimento, pode

liar, é constituinte do campo da Saúde Mental.

possibilitar aos trabalhadores e usuários dos serviços

A situação de violência familiar constrói diferentes

construírem reflexões sobre o que estão vivenciando,

processos e resistências, porém, pode-se avaliar o quanto

possibilitando a transformação desta identidade nome-

crianças, adolescentes e mulheres (mães de crianças,

ada como vítima-doente, podendo ser reposicionada

vítimas de abuso sexual) também apresentam conflitos

e não só ceder à mera repetição de uma identidade

e sofrimento diante da lei do silêncio imposta pelas

pressuposta pelo outro (Ciampa, 2001).

relações de poder (Araújo, 2002).

Ao se procurar estudos que tentam compreender as

Pode-se também, encontrar discussões como as rea-

trajetórias e pontos de aproximação e afastamento das

lizadas por Maragno; Goldbaum, Gianini e Novaes, em

categorias Saúde Mental e gênero, percebem-se duas

que se detectaram diferenças significativas na prevalência

grandes bases teóricas: abordagens epidemiológicas com

de transtornos mentais comuns em determinados grupos

base no modelo biomédico e abordagens sociológicas

populacionais, sendo maior entre mulheres, idosos e

que tentam compreender os determinantes sociais e as

pessoas com menor renda ou de menor escolaridade.

representações compartilhadas que estão presentes no

Este estudo foi realizado em regiões periféricas da ci-

fenômeno.

dade de São Paulo e demonstra o quanto os processos

Os estudos de base epidemiológica (Nunes Filho; Bueno; Nardi, 2000) afirmam que a prevalência de

que envolvem o sofrimento psíquico conectam-se aos indicadores de vulnerabilidade social.

transtornos mentais leves é maior entre mulheres,

Neste cenário de turbulência das relações de violên-

principalmente em áreas urbanas. Com relação ao

cia e exploração sociais, é necessário salientar o conceito

transtorno depressivo, ele ocorre três vezes mais em

de gênero como categoria que se afasta dos princípios

mulheres que em homens, tais dados avaliam de forma

essencialistas ao tentar explicar o ser humano, e tenta

essencialista a Saúde Mental, transformando sofrimento

investigar a realidade de maneira plural, histórica e

em adoecimento.

cultural (Guacira,1997). Neste sentido, pode-se pensar

Por outro lado, as abordagens sociológicas irão

como as experiências vivenciadas por mulheres, que

enfatizar os estudos sobre como as situações de vio-

não se igualam sob esta nomenclatura, podem produzir

lência, exploração e gênero interferem no processo

‘sofrimentos psíquicos’ (reforça-se aqui o plural porque

saúde-doença. Como exemplo pode-se citar o estudo de

também plural será o sofrer) diante da significação que

Adeodato; Carvalho; Siqueira e Souza (2005), no qual

dão e recebem sobre seu cotidiano.

em uma amostra de 100 mulheres que foram agredidas

Como exemplo desta perspectiva, cita-se o estudo de

por seus parceiros e fizeram denúncia na Delegacia da

Alves (2002) no qual o sofrimento descrito por mulheres

Mulher do Ceará, 72% apresentaram quadro sugestivo

idosas, ao narrarem suas histórias de vida, é nomeado

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

como ‘nervoso’, ou seja, relatam como uma vida vinculada

O Caps E A ESF:

à pobreza e violência gerando experiências de fragilização,

CO-AUTORIA EM SAÚDE MENTAL

e tais experiências são objetivadas num sofrimento culturalmente compartilhado, como relatos do nervoso.

O trabalho desenvolvido foi planejado em conjunto

A partir da concepção de que Saúde Mental e gêne-

com as enfermeiras de duas equipes de saúde da família

ro tecem fios que podem ser tocados nas relações entre

e com os agentes comunitários destas equipes. O pla-

profissionais de saúde e comunidade, pode-se pensar em

nejamento em conjunto teve como principal objetivo

tais fios que ao mesmo tempo em que produzem sentidos

possibilitar a aproximação da equipe do Caps com as

para as mulheres, também constroem barreiras entre

equipes de saúde da família e romper com o estigma de

profissionais e pacientes, na medida em que existam

que trabalhar a Saúde Mental é ação restrita de unidades

trabalhadores que não conseguem mais ouvir o sofrer e

de Saúde Mental, cuja compreensão coloca a atuação do

o transformam em dor ou querelância, e a resposta para

ESF na lógica de encaminhamentos quando se detecta

este problema será a coisificação-medicalização.

problemas de ordem psíquica.

Com base no que foi exposto acima, pode-se refletir

O planejamento deu-se por meio de reuniões com

o grande investimento que o Brasil tem feito a fim de

as equipes de Saúde da Família, a fim de fazer levanta-

criar novos dispositivos de atenção em Saúde Mental.

mento da demanda, de quais seriam os problemas viven-

Dessa forma, torna-se essencial que os trabalhadores de

ciados pela população do bairro que pudessem indicar a

Saúde Mental estejam envolvidos nesse processo, trans-

existência de sofrimento psíquico. Buscou-se nesta fase

versalizando o aparato biomédico com possibilidade de

priorizar a atenção à população feminina que estivesse

intervenções que possam enriquecer não só o referencial

fazendo uso continuado de ansiolítico ou que estivesse

teórico, mas também as estratégias utilizadas.

solicitando à equipe de saúde o uso da medicação. Para

Sendo assim, fundamenta-se a discussão de gênero

este levantamento foram feitas buscas em todos os

como um dos prismas que pode transversalizar este ema-

prontuários das duas equipes, a fim de detectar aquelas

ranhado, pois esta temática é capaz de tocar diferentes

famílias que tivessem mulheres em uso de ansiolíticos

experiências, ao mesmo tempo em que desencadeia

e/ou de antidepressivos. Com este levantamento foram

reflexões pertinentes ao viver em comunidade.

encontradas nas duas equipes, 53 mulheres com este

A conectividade do sofrimento psíquico às questões

perfil (27 de uma equipe e 26 de outra).

transversais da vida em sociedade, como por exemplo, as

Após este primeiro levantamento foram planejadas

questões de gênero, torna-se a principal referência para a

visitas domiciliares a todas essas mulheres, a fim de

atuação em Saúde Mental. Nessa perspectiva, destaca-se

conhecer a história de vida e uso de ansiolíticos. Tais

o trabalho desenvolvido por um Caps de Goiânia, em

visitas foram realizadas pelos agentes comunitários de

conjunto com duas equipes de saúde da família, cujo

saúde (ACS) e tiveram importante papel para a capaci-

principal objetivo foi retomar o sofrimento psíquico pelo

tação em serviço dos ACS, pois constituíram elementos

viés do sofrimento sócio-afetivo relacionado às questões

de re-significações do que é adoecimento psíquico e

de gênero, e proporcionar aos profissionais de saúde

de como os sintomas aparecem no curso de vida das

da família a ampliação das possibilidades de reflexão e

pessoas. Todos os casos visitados foram discutidos em

compreensão do adoecimento psíquico para além dos

equipe e propiciaram aos ACS trabalhar com crenças,

aspectos biomédicos dos sintomas.

tais como, ‘usam remédio porque não conseguem dor-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008

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mir’; e reelaborar novos significados que permitissem

vo do grupo e motivá-las para a participação nos encon-

compreender os sintomas como não desconectados da

tros. Foi desenvolvida uma dinâmica de apresentação,

vida e da realidade dessas mulheres. Com os estudos de

com gravuras de conteúdos diversos e solicitou-se que

caso a equipe de saúde da família pôde conectar, por

cada uma das mulheres escolhesse a gravura que melhor

exemplo, a insônia com a realidade de vida das mulheres,

representasse o seu jeito de ser e que permitisse a sua

com relações de poder e com questões sociohistóricas

apresentação por meio desta gravura. Essa dinâmica foi

de gênero.

suficiente para uma significativa mobilização de algumas

O passo seguinte foi planejar quais seriam as

mulheres e permitiu a reflexão quanto à necessidade de

intervenções a serem realizadas. Decidiu-se, assim, or-

propor vivências e dinâmicas menos complexas e mais

ganizar reuniões semanais e convidar essas mulheres a

lúdicas, a fim de evitar a auto-exposição desnecessária,

participarem. O planejamento das reuniões era realizado

mas muitas vezes inevitável, dadas as poucas oportuni-

semanalmente com as equipes de saúde da família. As

dades de fala e reflexões que essas mulheres têm no seu

reuniões semanais com as mulheres ocorriam com a par-

cotidiano;

ticipação de duas psicólogas do Caps, de uma enfermeira da equipe de saúde da família e de uma ACS. Após cada

• complementação de um pensamento: foi solici-

reunião com o grupo de mulheres foram realizadas reu-

tado que cada mulher do grupo completasse a seguinte

niões com todo o restante dos ACS, a fim de apresentar

frase: ‘Se eu pudesse, eu trocaria meu remédio por...’.

os conteúdos trabalhados, avaliar o desenvolvimento do

O objetivo era possibilitar a reflexão do sentido do uso

grupo de mulheres e planejar o que seria trabalhado na

do remédio na vivência de cada mulher, ou seja, buscar,

semana seguinte.

minimamente, conectar o sintoma gerador do uso da

Os encontros semanais com as mulheres tinham

medicação à realidade vivenciada por cada mulher. Nesta

como objetivo problematizar o papel da mulher na re-

dinâmica foi possível emergir conteúdos relativos ao

alidade histórico-social, em conjunto com o significado

desejo por estabilidade financeira, à vontade de sentir-se

do remédio na construção da identidade feminina. Fo-

feliz, ao desejo de ter novamente a alegria de antes e de

ram desenvolvidas dinâmicas e vivências que pudessem

retomar vínculos com familiares, o qual foi colocado por

transportar as mulheres ao núcleo de seus sentimentos

algumas como tendo sido perdido, em função do casa-

e sofrimento, como meio de fazer a junção entre os

mento, das dificuldades financeiras (muitos familiares

sintomas (que exigiam o uso da medicação) e a realidade

moravam em outras cidades ou o marido as impedia de

vivenciada (opressora e impeditiva de rompimentos).

vê-los, etc). Foram expressos conteúdos de identidade

De todas as experiências realizadas destacam-se al-

de gênero e sua relação com o casamento, o sofrimento

gumas mais provocadoras de reflexões e importantes para

de algumas mulheres pelo fato de serem obrigadas a

a compreensão da efetividade do trabalho ora apresenta-

romper com o seu núcleo familiar primário e ter de se

do. São descritas a seguir algumas destas dinâmicas:

adaptar à cultura imposta pelo esposo;

• apresentação com figuras: no primeiro encontro

• recortes de nomes e características: tal dinâmica

foi realizada uma dinâmica de apresentação, cujo objeti-

foi planejada, em função dos conteúdos emergentes

vo foi conhecer as mulheres que estavam participando,

na dinâmica anterior com relação ao afastamento do

propiciar o conhecimento entre elas, esclarecer o objeti-

núcleo familiar primário. Foi solicitado que cada mu-

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RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.

lher escrevesse o seu nome e sobrenome em uma folha,

e assim sucessivamente. Com essa dinâmica surgiram

destacando cores diferentes para cada nome/sobrenome

elementos que possibilitaram trabalhar questões de

e características que pudessem definir cada nome. O

gênero relativas ao papel da mulher no casamento, no

objetivo foi trabalhar a construção da identidade destas

qual ficou marcado um modelo idealizado de casamen-

mulheres em cada eixo familiar (mãe, pai e esposo).

to perfeito e o sofrimento advindo da realidade, ou

Foram emersos conteúdos relativos à formação da iden-

seja, da impossibilidade de realização de uma relação

tidade no seio familiar, como por exemplo, a família

homem/mulher plena. Foram trabalhados ditados

materna e paterna produzindo preconceito de raça; e

como: ‘Quem faz o casamento é a mulher’; ‘por trás

a construção da identidade familiar se contrapondo à

de um grande homem há sempre uma grande mulher’.

identidade construída com o casamento. Ou seja, foram

Foi constatada a dificuldade das mulheres em abando-

conteúdos que marcaram as contradições vivenciadas

narem as escolhas de forma ativa, de sair de relações

por essas mulheres, que ao se casarem renunciavam

infelizes sem necessitar ‘fugir’, os rompimentos relata-

a identidade construída em seu núcleo familiar e se

dos eram todos sem autonomia. Os conteúdos foram

rendiam à exigência de uma aceitação incondicional da

trabalhados buscando refletir a necessidade de que as

identidade da família construída com o esposo (esposa,

mulheres construam recursos pessoais e sociais que

mãe, cuidadora). Para o desenvolvimento desta dinâmica

permitam os rompimentos necessários ao bem-estar

houve um problema: algumas mulheres não sabiam ler

e à Saúde Mental. Dificuldade de lidar com a própria

e escrever. Na reunião de avaliação deste encontro com

sexualidade foi outro elemento que emergiu com essa

todos os ACS, estes avaliaram que o ambiente familiar

dinâmica e permitiu que fossem, minimamente, dis-

dessas mulheres é opressor e dificulta que os agentes

cutidos aspectos relacionados a gênero e sexualidade.

possam intervir. Os ACS refletiram também sobre as

Na avaliação com os ACS muitos se identificaram com

especificidades do bairro: distante, tem alto índice de

os relatos das mulheres, pois a maioria eram mulheres,

criminalidade que gera preconceito e dificulta o acesso

e neles elas puderam refletir suas próprias vidas. Foi

da população masculina a empregos, fazendo com

evidente a coincidência do início do uso da medicação

que as mulheres tornem-se arrimo de família. Foram

com o confronto e a realidade do casamento infeliz.

reflexões feitas pela equipe de saúde da família que, concretamente, retiraram o sofrimento como sendo

A realização da dinâmica da linha da vida durou três

apenas o sintoma (‘não dorme e por isso toma remédio’)

encontros e permitiu amplas reflexões, ressalta-se que o

e possibilitou sua compreensão pelo viés do sofrimento

conteúdo mais homogêneo que emergiu dos encontros

sócio-psico-afetivo.

entre todas as mulheres que freqüentaram o grupo é a condição histórico-social da identidade feminina cons-

• linha da vida: foi trabalhada a dinâmica da

truída para o casamento perfeito, no qual a mulher se

linha da vida, iniciando-se aos 15 anos e utilizando

incumbe do papel de fazer tudo o que o homem solicita

intervalos de cinco anos. Foi solicitado que cada

ou deseja; nunca dizer não ao homem; e sempre permitir

mulher representasse em um papel pardo (por meio

que o marido sugue todas as energias. Uma condição

de escrita ou qualquer outra expressão gráfica, como

que coloca na mulher a posição de impossibilitada de

desenhos ou símbolos) cada período de sua vida,

romper com uma relação infeliz e na qual muitas vezes

iniciando-se aos 15 anos e passando pelos 20, 25, 30,

não há, inclusive, percepção dessa infelicidade, visto que

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culturalmente se o casamento não está bom é porque a

anos utilizando a medicação em função de prescrições

mulher está agindo errado.

anteriores, requisitavam a continuidade da medicação

Esta condição histórica da mulher de se colocar

apenas porque entendiam que este tratamento era o mais

como principal responsável pela felicidade do casamen-

adequado, até o momento que perceberam, no grupo

to, aliada à condição do homem de não fazer concessões

realizado, que sua relação necessitava de algo mais que

na relação marital impõe à mulher, principalmente

abafar quimicamente seu sofrimento. Após estudo de caso

àquela que se encontra em desvantagem socioeconômica

com equipe do Caps, os médicos das ESF fizeram novas

e educacional uma postura de não conseguir romper

avaliações para hipótese diagnóstica e, contando com

com uma relação infeliz e nem superar os estigmas socio-

o apoio do grupo, foi possível a retirada do ansiolítico

culturais. Houve relatos de mulheres que se percebiam

em alguns casos, uso racional e troca de medicação em

infelizes na relação, mas não tinham recursos pessoais

outros. Algumas mulheres que foram ao grupo em busca

para superar suas dificuldades e romper com essa relação,

do medicamento encerraram o processo compreendendo

assim, algumas vezes, sentiam-se obrigadas a conviver

melhor os mecanismos geradores de sofrimento e as ha-

com um ‘homem-carrapato’.

bilidades sociais para lidar com os mesmos, sem que para

A expressão ‘homem-carrapato’ foi utilizada por

isso precisassem silenciar-se com o medicamento.

uma dessas mulheres e é retomada no presente artigo como sendo a forma mais fidedigna de expressar sua condição de vida ao lado de um homem que a massacra e que a impede de viver a própria vida, um homem cuja

CONSIDERAÇÕES FINAIS

ação se limita a sugar o sangue da uma mulher presa a uma situação, cuja condição histórico-social a impede de se libertar.

O trabalho desenvolvido entre o Caps e as equipes de saúde da família, como capacitação em serviço por

Assim, possibilitar a essas mulheres momentos de

meio de estudos de caso e realização de grupos de gênero

reflexão e compartilhamento de todo o seu sofrimento,

possibilitou às ACS e às enfermeiras das equipes de saúde

advindo muitas vezes de sua própria condição sociohis-

da família a compreensão do sofrimento psíquico para

tórica, cria possibilidades de re-significação do sofrimen-

além do sintoma, pois inicialmente a associação feita

to e de ampliação de recursos pessoais e afetivos para

por esses profissionais era de que o uso de ansiolítico

lidar com o seu sofrimento. Fornece condições, mesmo

era devido e justificado por um sintoma específico: a

que minimamente, de reelaborar o papel da mulher na

insônia. Ao final, todos os profissionais da equipe de

formação do ‘homem-carrapato’, pois se ela procura de

saúde da família demonstraram novas compreensões

todas as formas atender a todos os desejos ou exigências

a respeito da insônia como indicando a existência de

do homem, obviamente ele se sentirá muito tranqüilo na

um sofrimento socioafetivo, mesmo que ainda não

relação e utilizará de todos os seus potenciais masculinos

totalmente declarado.

para manter-se nessa condição.

O trabalho em conjunto com as equipes de saúde

Após seis meses, foi realizada avaliação das atividades

da família permitiu não só a aproximação das equipes,

no grupo, e encerramento do mesmo. Neste período

mas também, a garantia da capacitação em serviço,

foram realizadas reuniões para estudo de caso de algumas

haja vista que no decorrer desta atividade, não só as

mulheres que participavam do grupo e estavam há vários

mulheres acompanhadas no grupo foram re-avaliadas

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com a possibilidade de se beneficiarem tanto das temá-

desta medicação para as usuárias do grupo em

ticas trabalhadas no grupo, bem como, da utilização do

acompanhamento na ESF, pois tais medicações não

uso racional da medicação. Por outro lado, entende-se

existem nestas unidades. Também com relação ao

que estes estudos de caso funcionam como capacitação

prontuário, foi estabelecido que haveria a evolução

em serviço, pois o conhecimento compartilhado entre

do prontuário da família (ESF), como forma de pri-

todos os profissionais ultrapassa os casos estudados e

vilegiar uma comunicação única, e mesmo que os/as

serve de apoio para manejos em outras situações que se

usuários(as) também estivessem em atendimento no

configurem demandas em Saúde Mental.

Caps, a equipe de Saúde Mental teria um prontuário

Pode-se considerar que o trabalho em equipe, com

na unidade, mas manteria atualizado o prontuário na

relação à estratégia saúde da família, propicia a re-signi-

ESF. Tal conduta facilitou o monitoramento do uso

ficação do sofrimento e a ampliação das ações do Caps,

de medicamentos, pois o ACS passou, a saber, por

rompendo com a lógica do encaminhamento. Tal ação

exemplo, o projeto terapêutico do usuário e apoiá-lo

traz para o profissional da unidade de atenção à família a

na implementação do mesmo, seja no uso diário da

condição de ser capaz de intervir efetivamente na Saúde

medicação, seja na busca por escolas e atividades de

Mental das pessoas da comunidade de sua abrangência,

geração de renda da região.

sem necessitar encaminhar a um serviço especializado

Como parte do protocolo, também com relação

uma possibilidade que se dá pela transversalidade das

às visitas domiciliares dos técnicos dos Caps, passou-

temáticas trabalhadas em Saúde Mental, como a pro-

se a agendá-las com antecedência para que fossem

posta aqui relatada de inserção da categoria gênero para

sempre realizadas com ACS e enfermeiras da ESF.

a compreensão do sofrimento psíquico.

Tal procedimento fez com que novas redes de suporte

É importante ressaltar que houve uma mudança

social começassem a interagir com as famílias com

significativa na percepção dos ACS, pois durante este pro-

pessoas com sofrimento psíquico grave. Tal fato foi e

cesso eles começaram a trazer casos novos de pessoas em

é crucial na diminuição das internações psiquiátricas

grave sofrimento psíquico, que se encontravam isoladas

e manejo das situações de crise, pois a família passa

em casa há vários anos. Este fato chama atenção, pois,

a contar com vários atores, e, portanto, não mais

por mais que os ACS já soubessem e trabalhassem com o

recorre à lógica crise-doença-internação. Também a

Caps nesta região, ainda assim não conseguiam enxergar

equipe de saúde da família passou a compreender o

como situações de Saúde Mental os casos de isolamento

sofrimento psíquico conectado com as experiências

como o do exemplo acima. Até mesmo a descrição de

vividas, e, sentindo-se mais próxima da equipe do

casos novos quando precisavam solicitar visitas domi-

C aps passou a evitar o uso da ambulância (tanto

ciliares com a equipe do Caps, passou a ser detalhada,

no sentido literal como no figurado), acreditando e

contextualizada e já com as nuances de vulnerabilidade

reinventando estratégias para atender ao sofrer sem

social típicas das vivências em Saúde Mental.

necessariamente encaminhá-lo.

A experiência de trabalho em apoio à ESF

Novas estratégias para a compreensão do sofri-

também foi essencial para a criação de alguns pro-

mento psíquico também foram viabilizadas para a

tocolos para o funcionamento da atenção em rede.

equipe do Caps, que na interlocução com a atenção

Com relação à dispensação de alguns medicamentos

básica tem conseguido aliar não só novos atores para

psicotrópicos, o Caps passou a garantir a entrega

confrontar a lógica asilar, mas também tem encon-

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trado suporte para a criação de projetos terapêuticos individualizados de usuários de Saúde Mental, que sem nunca colocar os pés no Caps já começam a estabelecer laços contratuais na comunidade, graças ao empoderamento construído pelos trabalhadores e trabalhadoras das ESF.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Dape. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 Anos Depois de Caracas. Opas. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005. Ciampa, A.C. A estória de Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense, 2001. Guacira, L.L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes,1997.

R E F E R Ê N C I A S

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica Mental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric net “En medio de la maraña, Dios, la araña”. Mariana Dorsa Figueiredo Rosana Onocko Campos 2

1

Alejandra Pizarnik

1

Mestre; doutoranda em Saúde

RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Básica

Coletiva pelo Departamento de

como uma das necessidades atuais para a continuidade da Reforma Psiquiátrica,

Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da

considerando que a atenção em Saúde Mental deve ser feita dentro de uma rede

Universidade Estadual de Campinas

ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usuários. Em

(DMPS/ FCM/ Unicamp).

seguida, é problematizado o apoio matricial como arranjo de gestão para organizar

[email protected]

as ações de Saúde Mental na Atenção Básica e sua potencialidade como disparador

2

Doutora em Saúde Coletiva;

professora do DMPS/FCM/Unicamp. [email protected]

da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde. PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção básica à saúde; Apoio matricial.

ABSTRACT In this article, it is argued the insertion of Mental Health in the basic system, as one of the current necessities for the continuity of the Psychiatric Reform, considering that the attention to Mental Health must be made inside an ample and linked net of cares. After that, the matrix support is analyzed as a powerful management arrangement to organize the actions of Mental Health in the basic attention and as a trigger for the amplification of the clinic in the health teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system. KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix support.

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I N T R O D U ç ão

disciplinar, por meio de uma rede interligada de serviços de saúde, a qual permita a articulação das ações que, em Saúde Mental, é uma necessidade inquestionável.

Uma rede ou um emaranhado? Durante as últimas duas décadas, a implementação

UMA REDE MULTICÊNTRICA

do modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) tem sido o principal investimento da política de Saúde

Considerando a complexidade das demandas em

Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura

Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão

desses serviços demonstra a crescente e intensiva difusão

sobre a necessidade de articular a assistência prestada

da rede substitutiva de Saúde Mental pelo país, numa

nos Caps com outros serviços de saúde, equipamentos

trajetória frutífera de reversão do modelo assistencial cen-

sociais e a rede social nos territórios, na construção de

trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no

uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,

restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na lógica sanitária hegemônica (Amarante, 2001), o modelo dos Caps ganhou grande visibilidade no decorrer da Reforma Psiquiátrica brasileira, ocupando um lugar de destaque na reorganização da assistência em Saúde Mental. Porém, essa rede de atenção à doença mental grave, ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo

desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos vínculos sociais. Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses graves esteja baseada em cuidados intensivos de especificidade de equipamentos como os Caps (Tenório, 2002), a Atenção Básica tem um importante papel no processo de reinserção social, já que está imersa nos territórios e é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e

de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica

é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

à saúde, resultando num certo descompasso entre as

principais problemas de saúde. A questão mencionada

práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua

aqui vai além da definição de qual serviço deveria se

acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra-

incumbir das demandas de maior gravidade, se os Caps

mentos importantes para o SUS, enquanto sistema

ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser

unificado e integral, assim como para a eficácia tanto da

construída entre os dois tipos de serviços.

Atenção Básica, quanto dos Caps, devido a dificuldade de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção

O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define que um Caps deve:

resolutiva em Saúde Mental. Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, só poderá ser alcançada através da troca de saberes, práticas e de profundas alterações nas estruturas de poder estabelecidas, instituindo uma lógica do trabalho inter-

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responsabilizar-se [...] pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território e [...] desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial. (Brasil, 2004, p. 126).

FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

Ora, se os Caps forem considerados ordenadores da

miséria em que se encontra a maior parte da população

rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando

brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se

o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação

traduz em condições de existência favoráveis às dificul-

àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto

dades afetivas, emocionais e relacionais.

almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)

com o conceito e imagem de uma rede multicêntrica,

os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da

em que o Caps pode funcionar como agenciador das

carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o

demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro

Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-

lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos

ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de

na atenção se destacam, em determinado momento, de

cuidados contínuos, intensivos (específicos dos Caps).

acordo com o andamento do Projeto Terapêutico de cada

Nove por cento da população apresenta transtornos

usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento

mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-

das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se

correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,

movimente para dar sustentação às necessidades dos

pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se

usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente

(Brasil, 2003).

para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar

Existe, ainda, um componente subjetivo associado

em um suporte efetivo para as dificuldades que esses

ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como

usuários possuem.

entrave ao tratamento, à adesão as práticas preventivas e

Assim, destaca-se a necessidade da integração dos

até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,

serviços, há casos comuns entre os serviços, ou situações

uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais

que dizem respeito tanto aos Caps quanto à Atenção

se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;

Básica. Seria o caso do usuário do Caps, aquele da

ou o paciente com câncer que não encontra resistência

região de abrangência de determinada equipe da UBS

para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-

ou o garoto usuário de drogas que em dado momento

ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF

precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é

(Campos, G.W.S., 2003).

fundamental a articulação dos serviços, a discussão do

Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de

caso comum e o envolvimento dos diversos atores no

Atenção Básica vem tencionando a incorporação das

caso em questão.

dimensões subjetiva e social na prática clínica, através

É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde

do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio

Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já

do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade

que tem sido crescente a demanda pela atenção aos

aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes

transtornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos

se deparem cotidianamente com problemas de Saúde

geralmente sob a forma de queixas somáticas e ‘nervosas’,

Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra

transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio-

que 56% das equipes de PSF referem realizar ‘alguma

nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do

ação de Saúde Mental’ (Brasil, 2003), ainda que essas

abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos,

equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com

são diversos os problemas advindos das faltas concretas

esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade

na vida, geradas pela ordem socioeconômica vigente. A

com as famílias e as comunidades, elas se constituem

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num recurso estratégico para o enfrentamento do

Ministério da Saúde (Brasil, 2008) aprovou a criação

sofrimento psíquico.

dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Similar

Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti-

ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os

mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos

nasf

são compostos por profissionais de diferentes áreas

profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori,

especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de

uma demanda específica que justifique a necessidade

Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e

de uma atenção especializada (Brasil, 2003). É o caso

resolutividade dessas equipes.

da senhora que se costuma denominar ‘poli-queixosa’, e que representa uma demanda freqüente para a Atenção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar com sua existência pobre de sentido, com a ausência de

O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE

espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos,

E SAÚDE MENTAL

o empreendimento de longos processos psicoterápicos e a administração de antidepressivos são insuficientes como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros dispositivos de atenção, disparadores de produção de vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade

“Onde a brasa mora e devora o breu Como a chuva molha o que se escondeu O seu olhar melhora o meu” Arnaldo Antunes e Paulo Tatit

(Campos; Nascimento, 2003). Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica

Na proposta de Campos (1999), profundas refor-

e para propiciar maior consistência às intervenções

mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde

em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver

com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-

estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental

balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O

na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre

autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo

os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi-

que os antigos departamentos especializados (outrora

cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção

verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio

ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o

especializado às equipes interdisciplinares.

conjunto de relações sociais que determinam desejos,

Essas equipes, denominadas pelo autor como

interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de

Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-

Souza Campos (2000; 2003).

ção de clientela, garantindo um sistema de referência

Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da

e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.

Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado

A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-

por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse-

tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.

rir a Saúde Mental e outras áreas especializadas na Atenção

Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele

Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador

é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-

da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata-

mite o acompanhamento do processo saúde/doença/

se de uma importante discussão na atualidade, já que a

intervenção (Campos, 1999). Gradativamente, isto es-

estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada

timula a responsabilização pela produção de saúde, pois

em nível nacional a partir da Portaria nº 154, na qual o

quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

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FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica

a implicação da equipe tende a aumentar e as respostas

ciplinar. A transdisciplinaridade que, no sentido dado

profissionais a serem menos estereotipadas. As Equipes

por Passos e Barros (2000) é uma das grandes apostas

de Referência, portanto, seriam responsáveis por realizar

do apoio matricial.

os projetos terapêuticos, promovendo, assim, o vínculo e a responsabilização. Dessa forma, o apoio matricial seria uma ferramenta para agenciar a indispensável instrumentalização das

A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização [...] da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76).

equipes na ampliação da clínica1, subvertendo o modelo médico dominante que se traduz na fragmentação do

A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa

trabalho e na produção excessiva de encaminhamentos,

a compor a rede matricial de apoio. Constitui uma linha

muitas vezes desnecessários, às diversas especialidades,

de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a

segundo Rosana Onocko Campos (2003).

lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e

O apoio matricial se configura como um suporte

romper com o sistema de referência e contra-referência,

técnico especializado (Campos, 1999) que é ofertado a

que produzem encaminhamentos consecutivos para as

uma equipe interdisciplinar de saúde, a fim de ampliar

diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-

seu campo de atuação e qualificar suas ações. Ele pode

sabilização pela produção de saúde (Campos, 1999).

ser realizado por profissionais de diversas áreas especia-

A partir de discussões clínicas conjuntas, apoio para

lizadas, mas estamos tomando aqui a especificidade da

a construção de projetos terapêuticos ou mesmo inter-

Saúde Mental, considerando que as questões subjetivas

venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,

transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser

visitas domiciliares, entre outras), os profissionais matri-

abordadas em toda relação terapêutica.

ciais podem contribuir para o aumento da capacidade

A proposta é que os profissionais possam aprender a

resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção

lidar com os sujeitos em sua complexidade, incorporan-

ampliada em saúde que contemple a complexidade da

do as dimensões subjetiva e social do ser humano, mas

vida dos sujeitos.

que estejam acompanhados por alguém especializado

Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-

que lhes dê suporte para compreender e intervir neste

tricial têm uma importante função pedagógica, já que as

campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe-

equipes podem aprender in loco a intervir no campo da

cimentos e ações, historicamente reconhecidos como

Saúde Mental e se autorizar nas ações que nem sempre

inerentes à área ‘psi’, são ofertados aos profissionais de

cabem nos protocolos, lidando com situações de exclu-

saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar

são social, violência, luto, as mais diversas perdas, que

sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimento psí-

não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a

quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria

própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um

uma oferta do núcleo profissional ‘psi’ ao campo dos

usuário de referência do Caps que está em tratamento na

profissionais de saúde (Campos, 2000), na construção

Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se

de um novo saber, um saber que se pretende transdis-

inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com

Campos, G.W.S. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para centrá-la num sujeito concreto e singular, portador de certa enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeitos em sua totalidade, considerando o biológico como determinante do processo saúde e doença, mas também incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e cultural como outros determinantes. 1

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quadros psiquiátricos mais graves e o atendimento

Segundo Campos (1999), essa reordenação do

conjunto com o apoiador matricial pode proporcionar

desenho institucional da rede de Atenção Básica per-

um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e

mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas

da doença mental, ajudando a diminuir o preconceito

necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser

e a segregação da loucura.

enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo

Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi-

a gestão do processo de trabalho e a formação de outra

te distinguir as situações individuais e sociais, comuns

subjetividade profissional, centrada no diálogo e na

à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela

transdisciplinaridade.

Equipe de Referência e por outros recursos sociais do

No entanto, deve-se reconhecer que a mudança

entorno, daquelas demandas que necessitam de uma

da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial

atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida

não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre

na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais

automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-

ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade,

lhada junto às equipes, instalando espaços destinados

pelo Caps da região de abrangência. Pretende-se, com

à reflexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e

isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de

que possam ser continentes aos problemas na relação

Referência e profissionais matriciais, de modo que o

entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,

encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito

à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento

de forma dialogada.

do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com

Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso,

a pobreza e a violência. Todas essas questões podem

garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as

dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-

vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa-

fissionais não tiverem espaços de reflexão e formação

vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção

permanentes para processá-las, que sejam capazes de

em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a

realimentar constantemente a potencialidade do apoio

articulação entre os profissionais na elaboração de proje-

matricial, enquanto arranjo transformador das práticas

tos terapêuticos pensados para cada situação singular.

hegemônicas na saúde.

O apoio matricial, portanto, provoca e explicita

Assim, afirmamos a importância de espaços

uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos

coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual

papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando

saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-

as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos

cias interligadas e complementares. Uma rede que,

diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais,

sobretudo, incite o movimento de acordo com as

a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas

necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais

cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente

ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao

em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e

usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele

tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação

fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da

de fluxo, evitar práticas que levam à ‘psiquiatrização’ e à

desresponsabilização, uma rede de salvamento e não

‘medicalização’ do sofrimento humano.

de captura e impotência.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context

Katita Jardim 1 Magda Dimenstein

1

2

Psicóloga; mestre em Psicologia

pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal

RESUMO Esta pesquisa investigou as práticas dos profissionais do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) no que diz respeito aos atendimentos

do Rio Grande do Norte (UFRN);

psiquiátricos na cidade de Aracaju (SE) e suas possíveis articulações com a Rede de

supervisora clínico-institucional

Atenção Psicossocial (Raps). A primeira etapa da pesquisa foi realizada através de

do Centro de Apoio Psicossocial

entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do Samu. Os resultados indicam

(Caps) Irmã Augustinha; Membro da

que a concepção de urgência psiquiátrica deles se baseia no conceito de agressividade

coordenação pedagógica da Escola Técnica do SUS de Sergipe.

e que o tempo gasto nas ocorrências psiquiátricas e a falta de capacitação em

[email protected]

Saúde Mental dificultam o transcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa, participamos das reuniões de construção do protocolo psiquiátrico do Samu.

2

Psicóloga; doutora em Saúde Mental

pelo Instituto de Psiquiatria da

PALAVRAS-CHAVE: Crise; Urgência; Saúde Mental.

Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ); docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN.

ABSTRACT This research investigated the professional practices from Samu

[email protected]

(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city of Aracaju (SE), Brazil, and its possible articulations to psychosocial services network. Fieldwork first step was made with Samu workers by semi-structured interviews. The results indicate that their urgency psychiatric conception is based on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol for Samu. KEYWORDS: Crisis; Urgency; Mental Health.

Apoio financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

I N T R O D U ç ão

serviços substitutivos. Tais serviços passam a operar como meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de passagem, visto que no momento de maior necessidade ‘devolvem’ o louco ao manicômio. Por isso, se faz necessária uma discussão acerca da atenção à crise não somente pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões

Com o avanço da luta pela consolidação da Refor-

inter-redes, envolvendo também a Reue e outras.

ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final

Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi-

da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor-

gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da

tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial.

Política Nacional de Atenção às Urgências, o Serviço

Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de

de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), frente às

Luta Antimanicomial (MNLA) e da Reforma Psiquiá-

ocorrências psiquiátricas, bem como as articulações desse

trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os

serviço com a Raps do município de Aracaju (SE).

caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise. Se o intuito da Reforma Psiquiátrica é questionar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o

Algumas definições

hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença,

Antes de começarmos a falar sobre o histórico do

preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral

Samu, é importante conceituarmos urgência e emergên-

e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual

cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo

posicionamento adotamos diante de uma pessoa em

serviço. As várias definições destes termos ainda não são

crise. É importante mencionar que as situações de crise

claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as

são um dos principais motivos de internação psiquiátrica

usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,

no Brasil atualmente (Jardim, 2008).

vamos delimitar o sentido em que estamos utilizando

Isso porque, nesses momentos, a Rede de Atenção

esses termos para fins de esclarecimento do leitor.

Psicossocial (Raps) que deveria se responsabilizar também

Urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à

pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à Rede

saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador

de Urgência e Emergência (Reue). A Reue é uma das

necessita de assistência imediata” (Fernandes, 2004, p. 2).

mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da

Portanto, a urgência se caracteriza por uma situação em

estrutura de rede pensada para organizar o Sistema Único

que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem

de Saúde (SUS), a Raps e a Reue têm linguagem, timing e

risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con-

aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos,

siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica

chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo.

da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com

Assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências

necessidade de imobilização e crises de asma. É no âmbito

(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem

da Urgência que se localiza o atendimento psiquiátrico.

regular a demanda diretamente para dentro dos grandes

Já a emergência é definida como a constatação de

hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou

condições de agravo à saúde que implicam em risco

comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera-

de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,

damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos

normalmente caracterizadas por declaração do médico

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

assistente. Os exemplos seriam as hemorragias, ataques

segundo regulação médica concernente à gestão dos

cardíacos, amputamentos etc. (Fernandes, 2004). A

fluxos de ofertas de cuidados médicos, triando as ocor-

escolha dos conceitos foi feita mediante comparação

rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos

de algumas definições de urgência e emergência (Con-

públicos (Brasil, 2002; Brasil, 2003). É a regulação

selho

Federal

de

Medicina, 1995; Sterian, 2002;

Fernandes, 2004 e Campos, 2005), que nos levaram

médica que interliga o Atendimento Pré-hospitalar (APH) ao hospital. A função do médico é:

à constatação de que, salvo algumas divergências, elas convergem para o exposto. Em 1986, foi criado no Rio de Janeiro o Grupo de Socorro e Emergência (GSE) que finalmente contava com uma equipe composta por médico e enfermeiros da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros.

julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar os recursos necessários ao local, monitorar e orientar o atendimento realizado por outro profissional de saúde [...] ou [...] por um popular. Define e aciona o hospital de referência ou outro meio ao atendimento necessário. (São Paulo, 2001 apud Campos, 2005, p. 16).

Foi nesse contexto que o Samu foi instituído no Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, através de

A partir do recebimento de uma chamada na central

um acordo bilateral com a França. O Samu brasileiro é

reguladora, atendida por um Tarm, que deve acalmar o

estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se

solicitante e preencher um formulário eletrônico com a

em muitos conceitos do modelo americano para seus

localização da vítima, dados detalhados do local, pontos

treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma

de referência e o motivo da chamada. A partir de então,

Life Suport (PHTLS)1.

o Tarm passa a ligação para o médico regulador que

Só em 2002, com a instauração da Política Nacional

avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de

de Atenção às Urgências, que o Samu deixou de ser um

mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação

serviço opcional existente em algumas cidades, passando

médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a

a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo

ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já

pré-hospitalar de urgência. O serviço foi regulamentado

que há dois tipos de ambulância no Samu: as Unidades

através da Portaria 1864 GM de 29 de setembro de 2003

de Suporte Básico (USBs), que contam com uma equipe

(Brasil, 2002; Brasil, 2003).

de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as

Deste modo, conta com uma equipe composta por

Unidades de Suporte Avançado (USAs) com uma equipe

médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma-

formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor

gem, condutores veiculares e aqueles responsáveis pelo

veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de

suporte na central de regulação2, Técnicos Auxiliares de

Tratamento Intensivo (UTI). Depois disso, o médico

Regulação Médica (Tarms) e rádio operadores. O Samu

decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será

atende urgências e emergências clínicas, traumáticas,

direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para

gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona

receber o usuário.

Prehospital Trauma Life Support Committee and the National Association of Emergency Medical Technicians in cooperation with the Committee on Trauma of the American College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospital trauma life support. 4a ed. St. Louis. 1

A regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de Atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, qualificando o fluxo dos pacientes no Sistema e gerando uma porta de comunicação aberta ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos, avaliados e hierarquizados. (Brasil, 2001, p. 1). 2

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

Hoje em dia, a rede nacional do Samu conta com

Reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men-

112 unidades implantadas. No total, 924 municípios

tal e as capacitações realizadas no serviço. O segundo

são atendidos pelo Samu, cerca de  92,4 milhões de

roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de

pessoas. Algumas das capitais brasileiras que possuem a

enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam-

estrutura do Samu são: Aracaju, Belém, Belo Horizonte,

bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional

Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, For-

de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, além da

taleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá,

formação técnica e das participações nos atendimentos

Natal, Palmas, Porto Alegre, Porto Velho, Recife, Rio

psiquiátricos. Neste momento, abriu-se espaço para

Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, São Paulo,

relatos de experiências.

Teresina e Vitória3.

Levando-se em consideração que o funcionamento do Samu se dá através de protocolos nos quais são circunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada

UM ENSAIO METODOLÓGICO

tipo de ocorrência atendida, o fato de o Samu não possuir um protocolo psiquiátrico constitui um problema.

A pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira

Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos

em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro

serviços responsáveis pelo atendimento às urgências

do mesmo ano. A primeira etapa teve como corpus de

psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo

análise dez profissionais vinculados ao Samu de Aracaju,

operativo, o que fazer com essa situação. Geralmente,

sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade

quem lida com isso tende a colocar a ‘crise do paciente’

entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de

como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar

quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi-

as necessidades e demandas excessivas da clientela que

pe eram auxiliares de enfermagem, três eram médicos

o próprio serviço pode estar colapsando (Dell’Acqua;

reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções

Mezzina, 2005). Nesse ínterim, o Samu decidiu lidar

de coordenação: um enfermeiro também coordenador

com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:

e uma assistente social gerente (contabilizando quatro

criando um protocolo específico, uma normatização, que

gestores). Escolhemos informantes de influência direta

serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que

nos atendimentos psiquiátricos4, na gestão das capa-

não é de todo negativo, pois é necessária a construção de

citações e na regulação médica, pontos fundamentais

um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria

para a prática. A coleta de dados foi realizada através

problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas

de entrevistas semi-estruturadas gravadas.

e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimento

Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro

técnico e, por fim, mortificando as relações.

deles, feito para os médicos e gestores, era composto

Assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de

por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/GM

maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha-

e às Urgências Psiquiátricas. Abordava, além disso, a

mento das reuniões para a construção do protocolo psi-

3

Boletim: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=23745&janela=1. Acesso em 6 de março de 2007.

Tendo em vista que os profissionais que realizam o atendimento às ocorrências psiquiátricas no Samu de Aracaju são os médicos (indiretamente, por telefone), os auxiliares de enfermagem e os condutores veiculares (diretamente, no local). 4

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos

A concepção de urgência psiquiátrica foi associada

junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo,

de forma unânime pelos entrevistados a ‘agressividade’.

abordaremos somente as reuniões de protocolo.

É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos

As reuniões intersetoriais contaram com uma psi-

de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com

cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental,

alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva

dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do

às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que

serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o

serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de

coordenador clínico do Samu de Aracaju e da Urgência

defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma

Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São

postura de medo, que acaba gerando omissão do cui-

José, órgão responsável pela regulação da demanda de

dado. Assim, ambas as posturas geralmente progridem

Saúde Mental na Reue, e o coordenador clínico do

para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,

Samu estadual. Nas reuniões foram observados a relação

o Samu conta com o auxilio do Corpo de Bombeiros,

entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava

cordas e muitas ataduras.

para idealizar esse instrumento. Além disso, a nossa

Além das práticas in loco, a concepção da urgência

participação constituiu uma intervenção, tendo em

psiquiátrica ligada à agressividade também influencia

vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos

diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,

pelas ambulâncias do Samu, geramos discussões a partir

organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou

dos casos assistidos e da literatura esquisada. Além da

não uma ambulância para o caso e é responsável pelo

nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de

encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde

2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns

fixo. Dessa forma, os reguladores acabam por selecionar

dos participantes: uma médica sanitarista, responsável

a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti-

pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na Atenção

lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos

Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento

pelo Samu são aqueles que não podem ser transportados

de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro-

num carro comum, ou seja, os casos que precisam de

fissionais do Samu, quanto a sua regulação e abordagem

um aparato específico para imobilização. Com isso, o

no local de ocorrência, o coordenador clínico do Samu

Samu reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento

de Aracaju e do UCM e a psicóloga representante da

psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais

coordenação de Saúde Mental.

em seus atendimentos. Outra questão importante é a do tempo. Os serviços de urgência têm de funcionar da maneira mais

A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência,

breve possível. Quando falamos em casos referentes à

tempo, capacitações e o protocolo

Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um

A primeira etapa da pesquisa de campo foi cons-

dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os

tituída por intermédio de entrevistas. Os dados mais

atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro

relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a

vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a

concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a

tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam

questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação

resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em

e a ausência do protocolo psiquiátrico.

realizar os atendimentos; entendem que uma garota com

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

asma precisa muito mais de uma USB do que um louco

se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um

surtando e isso acaba fortalecendo o estigma.

grande problema do que de uma solução.

Apesar de o Samu ter um Núcleo de Educação Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é

Configurar um serviço dessa forma não seria emperrar os fluxos?

ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte-

Será que, em lugar de enxergarmos esse ‘não saber

ceram em 2004. Os gestores afirmaram que a falta de

o que fazer’ como uma grande questão a ser extirpada o

capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação

quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade

sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta

de afirmação vital?

de interesse dos profissionais. Muitos técnicos afirmaram

Ao final dessa primeira experiência, percebemos que

que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri-

somente entrevistas focadas na legislação5, na concepção

cos; quando perguntamos o motivo, responderam não

de urgência psiquiátrica e nas capacitações não levariam

saber como agir nesses casos. É importante ressaltar

a discussão muito longe, porque poderia desvelar pro-

que o Samu é um serviço que funciona com base em

blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções

protocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são

práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade

eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as

à pesquisa de campo com a segunda etapa, que problema-

ocorrências. Por isso, a falta de protocolo psiquiátrico

tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi-

foi apontada como um item negativo, um agravante

quiátricas realizadas pelo Samu de Aracaju, mas também o

desestabilizador do funcionamento do serviço.

movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo

Atualmente, está sendo desenvolvido o protocolo da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de Ara-

psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de 2007 e não chegou à sua conclusão até então).

caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM

Tendo em vista essa proposta, o espaço do Samu,

e com a gestão clínica dos Samus estadual e municipal.

como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões

Esse protocolo busca delinear quais critérios deverão

levantadas, configurando o ponto de partida para se dis-

ser usados na regulamentação para guiar os médicos

cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento

a respeito dos procedimentos que devem ser seguidos

dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade

no caso de ocorrências psiquiátricas. Delinear esses

premente de se organizarem estratégias que dêem conta

procedimentos é importante para o funcionamento do

da atenção à Saúde Mental, o Samu decidiu construir o

Samu no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra

protocolo psiquiátrico. Assim, a nossa análise foi feita

o paciente psiquiátrico definitivamente no hall dos casos

a partir do acompanhamento das reuniões do grupo

atendidos e com alta resolutividade.

operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação

Entretanto, há a necessidade de segurança e, por

do atendimento aos casos que entram nesse circuito pelo

isso, busca-se o controle em tudo que se faz. A estabili-

Samu e desembocam na Urgência Clínica e Mental do

dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba

São José. Escolhemos esse destino com base na conexão

por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. A

entre os dois serviços: o Samu como a porta de entrada

saúde é a fluidez desse processo. Assim, a formatação de

da demanda e a UCM de São José como regulador do

prática rígidas, como as propagadas pelo Samu quando

fluxo das urgências psiquiátricas na rede.

5

A Portaria 2048/GM e a Política Nacional de Saúde Mental.

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões

que fazia parte da equipe, deixou de ser plantonista e

de construção do protocolo psiquiátrico

passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia

Em maio de 2007, o Samu fervilhava em meio a

e checar todos os internos. O caso é preocupante. Alguns

uma crise decorrente de um processo que se arrastava

pacientes com diagnóstico prévio de transtorno psiquiátri-

desde a abertura do serviço, quando a Portaria 1864/

co com intercorrências clínicas que foram encaminhados

GM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada

para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a

(Brasil, 2003). A Portaria, que institui o Samu como

óbito graças à falta de estrutura do serviço.

dispositivo móvel da Política Nacional de Atenção às

Geralmente, nos casos em que o solicitante atesta

Urgências (Brasil, 2002), estrutura um serviço capaz

que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui-

de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o

átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não

mal-estar nos lugares mais distantes, ainda que houvesse

existe conexão direta ou indireta nem encaminhamentos

a necessidade de os profissionais ficarem pendurados

para a Raps ou para um núcleo de Atenção Básica: o

numa corda de rappel para um salvamento vertical

atendimento delegado à Reue começa e termina em si

ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. Os

mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um

técnicos do Samu devem se tornar agentes preparados

circuito mortificado.

para enfrentar qualquer situação, com ‘nervos de aço’ construídos sob um considerável alicerce identitário.

O primeiro passo para o ‘tratamento’ da crise em ambos os serviços foi programado para ser a construção do

Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um

protocolo. No entanto, o que poderia dar, de fato, corpo

serviço como o Samu, mas a comoção gerada pelas ur-

à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói

gências psiquiátricas levantava questões todos os dias. Os

ao longo desse processo: a aproximação dos gestores a fim

médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia-

de se formar uma rede de apoio social, a familiarização

res de enfermagem tinham medo de serem assassinados

com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes

durante os atendimentos, o relacionamento com a UCM

de dar suporte aos trabalhadores e aos usuários.

era complicado e com os Caps, inexistente. Surgiu, então,

Problemas de articulação da rede surgiram aos mon-

a necessidade de se idealizar um protocolo psiquiátrico.

tes. O Samu não entendia porque os Caps têm carros

Nesse sentido, ficou decidido que o delineamento

próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um

desse protocolo seria feito em conjunto pela Saúde

de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. A

Mental e pela UCM, o que contribuiria para conectar

prioridade do Samu é atender pessoas que estejam nas

a rede. Entretanto, estavam sempre lidando com uma

ruas, pacientes encaminhados de algum outro serviço

linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar

ficam em segundo lugar na escala de prioridade. A gestão

na simples criação de uma normalização para diminuir

do Samu justifica que pacientes nos serviços estão mais

a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços

bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,

inquietos com as suas incertezas.

podendo, dessa forma, esperar para serem transportados.

Não era só o Samu que estava em crise. A UCM tam-

Quando, em uma das reuniões, os representantes dos

bém dava seus sinais. A sua atribuição de urgência clínica

Caps compareceram, a questão de que eles não têm como

foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso,

atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com

todos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento

urgência da ajuda do Samu, pois nem sempre seus carros

foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral,

estariam à disposição ou mesmo funcionando.

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

Surge, então, uma questão crucial: a falta de res-

Raps se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da Reue

posta aos episódios de crise dos usuários dos Caps e de

que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente

outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos

medicalizada. Tendo em vista que tanto a Raps quanto

principais fatores que contribuem para o fortalecimen-

a Reue compõem o SUS, mas, não conversam muito

to da lógica manicomial, exatamente por direcionar

entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível

essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda

vira uma agressão à vida da pessoa.

se mantêm fortes por serem consagrados pela própria

A construção do protocolo será muito eficaz para

rede substitutiva como o serviço indicado para atender

o Samu funcionar, mas em nenhum momento foi ques-

prontamente a crise do usuário por meio de internações

tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen-

e intervenções medicamentosas.

temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de

Enquanto ambulatório que acompanha longitudi-

um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios

nalmente um usuário constante, essa realidade do Caps

tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma

pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu-

simplificação diante da complexidade da vida. A crise,

niões de construção do protocolo, de que o médico é o

vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações

profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto

de supressão: a medicação e a internação compulsórias.

que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias

Tendo isso em vista, questionamos: a quem serve

se sustenta na grande maioria das vezes por conta das

esse protocolo? O que significa um protocolo nesse

crises. Da mesma forma, a falta de preparo dos profis-

contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças

sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento

em protocolos?

intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar

O trabalho na urgência requer uma sensibilidade do

na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso

técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir

fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se

sentido para o que está acontecendo, buscar informações

fazer é conter o paciente.

do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades

Essa posição centrada no médico, principalmente

dele. Apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,

no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta

nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,

os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos

estamos lidando com pessoas em momentos de intenso

principais argumentos utilizados como justificativa para

sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua

a não-atenção à crise nos Caps é a falta de psiquiatras na

diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela

rede. Muito ainda gira em torno do psiquiatra quando

identidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça

nos reportamos à crise. Apesar disso, nós já tivemos vá-

a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma

rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem

norma, favorecendo a violência simbólica.

psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde Mental (Lancetti, 2006). 6

Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS (integralidade, eqüidade e humanização), importantes

Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen-

norteadores de uma prática ampla. A ‘integralidade’ con-

tral da captura da loucura. A crise é o momento em que a

siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas

Para um maior aprofundamento sobre isso consultar Lancetti, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005; Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001. 6

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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

as suas necessidades e, para isso, é importante que haja

A acomodação e convencionalização de uma verdade,

integração das ações, pressupondo a articulação da saúde

a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz

com outras políticas públicas que tenham repercussão na

voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.

área e na qualidade de vida dos indivíduos. A ‘eqüidade’

Esse imperativo por constantes criações e movimen-

tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se

tações é a grande inspiração dos movimentos antimani-

em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de-

comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e

siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem

propiciem uma fluidez da vida em todas as direções, e não

precisa de menos (Cunha; Cunha, 1998). A ‘humaniza-

a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e

ção’ é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no

precipitadas. Por isso, o nosso campo de atuação tende a

processo de produção de saúde (Brasil, 2004).

se expandir e a se reinventar todos os dias.

Com base nisso e nos princípios da Reforma

Assim, focar o Samu, um serviço altamente medica-

Psiquiátrica é que defendemos uma flexibilização do

lizado que, para alguns, não é compatível em nada com

protocolo, que deve servir como um dispositivo para

os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização

disparar ações consoantes com a necessidade imediata do

da Reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que

sujeito, transformando-o em agente ativo no processo,

nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali-

fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à

dades ainda não exploradas. A nossa pesquisa, em suas

própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado.

inúmeras idas e vindas, percorreu caminhos inter-redes

O Samu, em vez de servir como um mero transporte

para conhecer o trabalho dos técnicos do Samu, pensar

com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva

em suas possíveis articulações a fim de problematizar a

e que contemple as diretrizes da Reforma Psiquiátrica.

atenção e a resposta à crise na cidade de Aracaju.

Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun-

Apesar de o Samu ter um histórico de hesitações no

cionar com uma lógica oposta a que está acostumado.

atendimento a casos psiquiátricos, o que inclui uma falta

Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam

de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,

se constituindo enquanto analisadoras do Samu de uma

de acordo com atribuição da Portaria 2048/GM de 5 de

maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi-

novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará

mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por

chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de

que não pensarmos em estratégias que humanizem o

aproximarem-se da Raps a fim de construir o protocolo.

Samu de forma que todas as ocorrências possam seguir,

Esse momento é especialmente importante, a despeito

de maneira palpável, as diretrizes do SUS?

de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa a gerar frutos; na última reunião para a construção do protocolo, realizada em meados de novembro, alguns gestores da Raps e da Reue decidiram que, após quase

À GUISA DE UMA CONCLUSÃO

um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de compartilharem essas questões com todos os trabalha-

A Reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por

dores de ambas as redes.

buscar a descontrução de uma instituição secular, como

Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte-

é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez

ceu o I Encontro Inter-Redes de Atenção à Pessoa em

mais estratégias de guerra e um caminhar constante.

Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do

político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico-

protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de

mial. Por isso, impera um incômodo, um movimentar

se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni-

incessante e criativo que rodopia no caos da vida. As

cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro

certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades

encontro de muitos outros já planejados.

que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade

Além disso, o Samu se mostrou um serviço com pos-

de essência podem conferir um território confortável

sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que

e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo-

os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento,

vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à

o que viabiliza a inclusão da família no processo, bem

própria morte. Vivemos numa guerra constante contra

como a rapidez no atendimento que, feito no momento

a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera

propício, pode evitar internações e permitir encaminha-

uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.

mentos mais eficazes e potentes.

Deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades

O acolhimento se mostrou a principal força para o estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em

que podem ser criadas com o intuito de despertarmos para a transitoriedade potente e criativa da vida.

crise na produção de sentido. Assim, a crise pode ser rein-

A necessidade de preparar os técnicos de ambas

ventada como potência transformadora, momento para

as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum

engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu-

é necessário. As oficinas virão com esse propósito, mas

tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a

não podem ser a única tentativa. Além da programa-

comunicação como fundamento e os afetos como direção,

ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria

ele se torna ‘improtocolável’, aberto, totalmente flexível

significativo intercambiar os profissionais para que

para se adequar às situações que se apresentarem.

conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da

Isso nos remete a uma discussão que já começa a

rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é

se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os

importante haver prudência ao aproximá-los. No que

gestores da Saúde Mental: o papel dos Caps na atenção

diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,

à crise. Com a recusa dos Caps ao atendimento à crise

seria interessante que pessoas fossem estrategicamente

e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos

plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis-

vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio-

sionais serviriam como aproximadores, disseminadores

nalização dos serviços mais emblemáticos da Reforma

de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam

Psiquiátrica. A estratégia que deveria abrir caminho

incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar

para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado

alguns fluxos previamente estabelecidos.

demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos

Precisamos nos aventurar em outros mundos

para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um

possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter-

serviço fechado cheira a manicômio.

nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica

Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e

manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é

sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida

a questão da crise e de quais significados ela pode as-

e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e

sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos

passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra-

nos responsabilizar. Os movimentos antimanicomiais

balho que procuramos realizar são atos de forte cunho

ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

159

160

JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica

de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e cabe a todos nós levá-las a diante. Este trabalho é uma convocação, um chamado para uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um convite à experimentação e à invenção de outros mundos possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto pessoas e profissionais.

R E F E R Ê N C I A S

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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008

trabalho (Samu). Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005. Conselho Federal De Medicina. Resolução nº 1451 de 10 de março de 1995. Define Urgência e Emergência, equipe e equipamentos para os primeiros socorros. Diário Oficial da União. Seção I, p. 3666. Brasília, 1995. Disponível em http://www.cremesp.org.br/library/modulos/legislacao/versao_impressao.php?id=2989. Acesso em 16 out. 2008. Cunha, J.P.P.; Cunha, R.E. Sistema Único de Saúde: princípios. In: Campos, F.E.; Tonon, L.M.; Oliveira Júnior, M. (Org.). Planejamento e gestão em saúde. Cadernos de Saúde, n. 2. Belo Horizonte: Coopmed, 1998. Dell’acqua, G.; Mezzina, R. Resposta à crise: estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: Amarante, P. (Org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial 2. Rio de Janeiro: Nau, 2005. p. 161-194. Fernandes, R.J. Caracterização da atenção pré-hospitalar móvel da Secretaria de Saúde do Município de Ribeira Preto – SP. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, 2004. Jardim, K. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) no contexto da reforma psiquiátrica: em análise a experiência de Aracaju – SE. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Centro de Ciências do Homem, Letras e Artes da UFRN, Natal, 2008. Lancetti, A. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005. Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001. Sterian, A. Emergências psiquiátricas: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. Recebido: abr./2008 Aprovado: ago./2008

ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro The construction of a territorial base service: the experience of the Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

Alexandre Keusen 1 Andréa da Luz Carvalho

1

2

Médico psiquiatra; doutor em

Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de

RESUMO O artigo relata a trajetória do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ), centro de atenção à saúde mental pertencente à Secretaria Estadual de

Janeiro (UFRJ); diretor do Centro

Saúde do Rio de Janeiro, no atual contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ) de

A partir das políticas estaduais e municipais de Saúde Mental, que orientam a

1998 a 2006; atualmente funcionário do

substituição de hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços de saúde mental

setor de Terapia de Família do Instituto

de base comunitária, o CPRJ vem se transformando em um serviço territorial

de Psiquiatria da UFRJ. [email protected]

cada vez mais voltado a atender às necessidades da clientela do seu território de forma complexa, incluindo o desafio de acompanhar clinicamente pacientes com

2

Psicóloga sanitarista; mestre em Saúde

Coletiva pelo Instituto de Medicina

transtornos mentais graves e moradores de rua.

Social da Universidade Estadual do

PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria Comunitária; Reforma Psiquiátrica; Saúde

Rio de Janeiro (IMS/UERJ); analista

Mental; Política de Saúde; Serviços de Saúde Mental; Reforma dos Serviços

de Gestão em Saúde da Diretoria de

de Saúde.

Planejamento Estratégico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). [email protected]

ABSTRACT The article states the trajectory of the Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, a center of attention to mental health belonging to the State Clerkship of Health of Rio de Janeiro in the current context of the Brazilian Psychiatric Reform. Starting from the state and municipal politics of Mental Health, that gives orientation to a replacement of psychiatric hospitals for a net of services of Mental Health of community base, Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro have been transformed throughout years into a territorial service of complex assistance focused on the needs of the patients, including the challenge of following-up patients with serious mental disorders and homeless people.

KEYWORDS: Community Psychiatric; Psychiatric Reform; Mental Health; Health Policy; Mental Health Services; Reformulation of Health Services.

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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

I N T R O D U ç ão

a experiência das modificações ocorridas na assistência de um hospital psiquiátrico que procurou aproximá-lo cada vez mais dos modelos comunitários atualmente preconizados pela política de Saúde Mental.

A partir do final da década de 1970, um movimento político que questionou o tratamento hospitalocêntrico de doentes mentais (Amarante, 1995) e criou as bases

BREVE HISTÓRICO DO CENTRO

das políticas e técnicas na área da Saúde Mental do

PSIQUIÁTRICO RIO DE JANEIRO

final da década de 1980 e da década de 1990, ajudou a fundar o conceito de Reforma Psiquiátrica atualmente

O Centro Psiquiátrico Rio De Janeiro (CPRJ) é

já absorvido no dia-a-dia de gestores, profissionais da

um centro de atenção integrado de Saúde Mental sob a

Saúde Mental e usuários.

administração da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de

A Reforma Psiquiátrica1 consiste em um conjunto

Janeiro (SES/RJ). Criado em agosto de 1998, a partir da

teórico e prático de transformações nas áreas da política

transferência do Posto de Atendimento Médico (PAM)

de saúde, da clínica e da cultura, que tem como pres-

Psiquiátrico localizado na Avenida Venezuela (antiga

suposto e critério ético a inclusão do doente mental

emergência psiquiátrica que, nos anos 1970, centralizava

na sociedade, bem como o seu tratamento em serviços

todas as internações dos pacientes segurados do Instituto

de base comunitária e a sua inscrição social como um

Nacional de Previdência Social, INPS), caracteriza-se

cidadão de direitos2.

por um serviço com emergência psiquiátrica que conta

A redução dos leitos psiquiátricos e a expansão

com uma Enfermaria, dispõe de 18 leitos psiquiátricos

de uma rede de serviços comunitários têm sido uma

(oito femininos, sete masculinos e três extras), um am-

das estratégias implantadas pelo Ministério da Saúde a

bulatório e um hospital-dia.

partir da década de 1990, que visa à inclusão social do

A missão do CPRJ tem sido desenvolver projetos e

doente mental e o seu tratamento prioritário em servi-

ações voltados à clientela com transtornos mentais, em

ços abertos como, por exemplo, os Centros de Atenção

especial àqueles com quadros mais graves e dificuldades

Psicossociais (Caps).

nas relações sociais. De 1998 a 2006, foi concebido

Este artigo pretende relatar a história da transforma-

em adequação às Políticas Públicas voltadas para a

ção de um hospital psiquiátrico em um Centro Integrado

Reforma Psiquiátrica desenvolvidas pelo Ministério

de Saúde Mental. Hoje, considerando-se a política que

da Saúde (MS), SES/RJ e pela Secretaria Municipal de

privilegia a implantação de uma rede comunitária, é de ex-

Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ). Atuando de forma

trema importância se pensar no que pode ser feito com os

integrada, os serviços do CPRJ buscavam atender essa

equipamentos hospitalares psiquiátricos públicos. É nesse

clientela em situações de crise e de acordo com suas

sentido que o artigo pretende acrescentar algo: relatando

demandas cotidianas.

O conceito de reforma psiquiátrica no Brasil sofreu a influência dos movimentos de reforma psiquiátrica na Europa e EUA, mas principalmente teve como inspiração o modelo de reforma italiano (ver Desviat, 2001 e Rotelli; Leonardis; Mauri, 1990). 1

A lei 10.216/2001 (Brasil, 2004A) regulamenta os direitos dos doentes mentais e os tipos de internação. As repercussões clínicas e políticas desta legislação são analisadas por Delgado (2001). 2

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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

No início, em 1998, era como um hospital psiquiátrico; possuía 15 leitos para curta permanência nos

família devem ser considerados relevantes para o tratamento dos transtornos mentais.

quais era feita a avaliação da internação psiquiátrica e,

É nesse sentido que a sua clientela alvo, prioritária

quando necessário, o encaminhamento de pacientes

para acompanhamento no ambulatório e hospital-dia,

para clínicas privadas contratadas do SUS. Possuía,

é a residente na área do centro do município do Rio de

também, um ambulatório predominantemente de

Janeiro e adjacências (área programática 1.0). No entan-

psiquiatras e um hospital-dia incipiente. Seu papel era

to, ele ainda permanece como um dos quatro pólos de

ser mais um hospital psiquiátrico que concentrasse os

emergência psiquiátrica da cidade do Rio de Janeiro5,

recursos e a clientela de todo o município e estado do

oferecendo atendimento 24 horas e sendo responsável

Rio de Janeiro. Com o avanço das Políticas Públicas

pela avaliação da necessidade de internação. Seus leitos

voltadas à abertura de serviços territoriais que dessem

são regulados desde maio de 2003 pela Central de Re-

conta das demandas da clientela em seu entorno, como

gulação da SMS/RJ.

os Centros de Atenção Psicossociais (Caps), a política de

É importante destacar, ainda, os projetos voltados

controle e regulação dos leitos psiquiátricos3 bem como

a especificidades de determinadas clientelas. O aten-

o início das discussões entre os serviços do entorno do

dimento à população de rua com transtornos mentais

hospital através do Fórum de Saúde Mental da Área

realizado no hospital-dia, em parceria com o Instituto

Programática 1.0 (a partir do segundo semestre de

de Psiquiatria/UFRJ, e o projeto Pater, desenvolvido

2006), o CPRJ realizou transformações em seu projeto

no ambulatório e voltado para a população idosa tam-

terapêutico institucional no sentido de caminhar para

bém portadora de transtornos mentais, são exemplos

o perfil de uma unidade assistencial em Saúde Mental

desses projetos.

4

mais engajada em responder às necessidades e demandas da população adscrita ao hospital.

Ressalta-se que o projeto terapêutico da instituição é oferecer serviços (internação, atendimento

É preciso ressaltar que, na área de Saúde Mental, a

mutiprofissional na emergência e consultas em diversas

oferta de recursos mais próximos do local de moradia dos

especialidades tais quais: psiquiatria, psicologia, assis-

pacientes e o sentido de responsabilização das equipes

tência social, enfermagem, terapia ocupacional, oficinas

pelo seu acompanhamento é o modelo que traz melhores

terapêuticas, atendimento à família, grupos terapêuticos

resultados em relação à diminuição na necessidade de se

e atividades artísticas) para a clientela com transtornos

utilizar a internação, que geralmente é um recurso que

mentais, levando-se em consideração o quadro clínico

onera o sistema de saúde e não deve ser utilizado como

e a situação social dos pacientes. O desafio do CPRJ é

único recurso terapêutico. Outro ponto importante a

criar projetos que respondam às diversas necessidades

ser destacado, é que os contextos do paciente e da sua

de sua clientela.

A partir de maio de 2003, a SMS Rio de Janeiro passou a regular todos os leitos psiquiátricos públicos e privados contratados da Cidade do Rio de Janeiro. O CPRJ, junto com os outros três pólos de emergência psiquiátrica (Hospital Municipal Jurandyr Manfredini (HMJM), Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP) e Instituto Municipal Nise da Silveira), passou a integrar esse processo de regulação, configurando-se como avaliadores da internação psiquiátrica da cidade (solicitantes e executantes de internação psiquiátrica). Seus leitos eram preferencialmente reservados à sua clientela. 3

O CPRJ está localizado na Praça da Harmonia, no bairro Saúde, na área programática 1.0. Essa área possui uma projeção da população para 2007 de 228.549 habitantes, segundo dados do Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro). Os bairros oficiais que compõem esta AP são: Centro, Saúde, Gamboa, Rio Comprido, São Cristóvão, Santa Tereza, Mangueira, Paquetá, Santo Cristo, Cidade Nova e Caju. 4

5

Os outros três pólos psiquiátricos são o HMJM, o PAM Rodolpho Rocco e o IMPP, sendo que o HMJM e o IMPP são também hospitais psiquiátricos.

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164

KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

Na época da mudança do antigo PAM Venezuela,

O ambulatório é aberto preferencialmente aos

o centro se encontrava em clara decadência, sendo des-

pacientes que residem na área programática 1.0 do

crito como uma ‘pocilga’ pelo coordenador de saúde

município do Rio de Janeiro, mas mantém assistência

do Ministério da Saúde em 1987. Já o seu processo de

a todos os pacientes de outras regiões do município e

transformação foi avaliado duas vezes pelo Programa

Estado do Rio de Janeiro que já se encontravam em

Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar (PNASH)

acompanhamento na Unidade.

(Brasil, 2004A) como a melhor unidade do Estado do Rio de Janeiro.

O hospital-dia acompanha preferencialmente novos pacientes, moradores da área programática 1.0

Neste texto relataremos a evolução desta experi-

do município do Rio de Janeiro, e pacientes antigos de

ência, avaliando o ano de 2006 em comparação com

outras regiões do município e Estado do Rio de Janeiro.

o período de 2000 a 20056, através da compilação

Esse é um dos poucos serviços no Estado que possuem

de indicadores da assistência e outros relatos sobre as

um projeto terapêutico para o acompanhamento de

mudanças dos serviços que objetivavam construir um

população de rua.

serviço de Saúde Mental de base territorial.

As equipes realizam reuniões semanais internas para discussão dos casos e dos problemas dos serviços; seus coordenadores reúnem-se semanalmente com a Direção para que haja maior integração entre os vários

O FLUXO DE PACIENTES NO CPRJ

serviços. As equipes também fazem reuniões entre si para discutir casos.

Como já dito anteriormente, o CPRJ se configura como um dos quatro Pólos de Emergência Psiquiátrica no Município do Rio de Janeiro, responsável pela avaliação da necessidade de internação. A porta de entrada

INDICADORES DA ASSISTÊNCIA

para os seus diversos serviços como enfermaria, ambulatório e hospital-dia é a emergência que funciona 24 horas, sete dias por semana. Caso haja necessidade do paciente permanecer in-

Emergência e enfermaria

ternado, ele é encaminhado à enfermaria, onde a equipe

Houve um aumento nos atendimentos feitos na

realiza uma avaliação sobre a sua permanência ou solicita

emergência e no ambulatório no período de 2000 a

à Central de Regulação um leito para a sua transferência.

2005, sendo que registrou-se uma diminuição no nú-

Essa decisão é feita com base em diversas variáveis como

mero de atendimentos na emergência nos anos 2000

o local de moradia do paciente, acompanhamento do

e 2001, enquanto no ambulatório manteve-se um

paciente por algum serviço do CPRJ e, sobretudo, sua

aumento em todo o período. Em 1999, o ambulatório

situação clínica.

realizava 14.996 atendimentos; em 2005 esse número

O CPRJ começou a desenvolver um sistema próprio de registro de informações desde a sua inauguração, em 1998. Todos os pacientes que entram na emergência são registrados nesse sistema. No decorrer desses oito anos, foram feitas discussões com as equipes dos diversos serviços nas reuniões semanais de Direção visando integrar suas informações, ou seja, que o registro do paciente poderia ser visualizado em todas os departamentos de ações terapêuticas no hospital. Tal sistema permitiu também a realização de estudos sobre a reinternação dos pacientes para uma melhor formulação dos projetos terapêuticos das equipes. A partir do ano 2000, o sistema passou a ser alimentado com informações mais contínuas. 6

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cresceu em 95% (29.257 atendimentos). Já no ano

relação aos números anteriores, que variavam entre

2006, houve uma diminuição de 12% nos atendimentos

10.000 e 12.500 atendimentos anuais. Em 2004, houve

de emergência em relação a 2005 (Gráfico 1).

16.059 atendimentos e em 2005 esse número subiu

Dentre os fatores para a diferença no desempenho

para 17.125. Destacamos que no segundo semestre de

da emergência e do ambulatório, destacam-se: a análise

2005, houve a transferência de uma das Emergências

da demanda que chega ao CPRJ e que, em grande parte,

Psiquiátricas do Instituto Municipal Nise da Silveira para

reflete a oferta ainda insuficiente de serviços de saúde

o PAM Rodolpho Rocco. Esse acontecimento causou

mental na Cidade do Rio de Janeiro; as dificuldades de

alguns transtornos para a clientela, já acostumada ao

articulação entre os diversos serviços em uma cidade

atendimento feito pelo Instituto Médico Nise da Silveira

de aproximadamente seis milhões de habitantes e com

já que foi feita uma distribuição desta clientela entre os

uma história marcada pela presença maciça de hospitais

outros três pólos de emergência.

psiquiátricos na resolução dos problemas de quem sofre

A diminuição no número de atendimentos em

de alguma desordem psíquica.

2006 pode estar relacionada a alguns fatores internos

O desafio da implantação da Reforma Psiquiátrica

e externos ao funcionamento do CPRJ. Os fatores ex-

na Cidade do Rio de Janeiro está não só no aumento

ternos dizem respeito a uma tendência, que se iniciou

de serviços extra-hospitalares que se responsabilizam

em 2003 e acelerou durante esse ano, dos serviços a se

pelo acompanhamento de determinada clientela, mas

responsabilizarem preferencialmente por suas clientelas

também na elaboração de processos de trabalho que

mais adscritas, visando o seguimento desses pacientes

estejam mais direcionados à necessidade da clientela

inclusive com ações em seu território de moradia; ou-

de ser considerada em sua integralidade e no fato de o

tro fator importante foi a ação da Assessoria de Saúde

recurso da internação ser utilizado com critério técnico

Mental da SES/RJ no auxílio aos municípios do Estado

definido por uma equipe multidisciplinar.

do Rio de Janeiro para organizar suas portas de entrada.

De 2004 a 2005, houve um aumento significativo

Já os fatores internos dizem respeito à rigorosa avaliação

dos atendimentos feitos pela emergência do CPRJ em

dos pacientes no CPRJ pela equipe que, neste período

Gráfico 1 - Distribuição de atendimentos na emergência e no ambulatório no CPRJ de 1999 a 2006 60000 50000 40000

Emergência

30000

Ambulatório Total

20000 10000 0 1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 1999-2006

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de oito anos, tornou-se multidisciplinar, inibindo cada

Como já constatado, esses leitos foram inseridos na

vez mais a distribuição de receitas (prática usual nas

Central de Regulação da SMS/RJ em maio de 2003,

emergências em geral) fazendo com que, dessa forma, o

quando os leitos psiquiátricos começaram a ser regu-

paciente se engajasse em um tratamento contínuo.

lados na cidade do Rio de Janeiro. O CPRJ é uma das

Um dos indicadores que ajuda a acompanhar o

quatro portas de entrada que avaliam a necessidade de

desempenho das equipes de emergência é o percentual de

internações psiquiátricas sendo que os 18 leitos da Enfer-

atendimentos na emergência que se tornam internações.

maria de Curta Permanência são disponibilizados para o

Como já foi dito anteriormente, esse indicador reflete

próprio CPRJ; quando há necessidade de transferência,

o esforço do CPRJ em tornar mais complexo o atendi-

o hospital solicita um leito à Central de Regulação.

mento em sua porta de entrada, de forma que a decisão

Segundo dados do Datasus/MS, o faturamento das

acerca da internação seja um critério técnico consentido

internações em um período de seis anos (2000 a 2005)

pelo médico juntamente com o psicólogo e o assistente

têm sido em média R$ 95.638,83, o que representa uma

social. Os dados apresentados no Quadro 1 mostram a

média de 836 Autorizações de Internações Hospitalares

relação entre o número de atendimentos na Emergência

(AIH) por ano. Chamamos a atenção para o fato de que

Psiquiátrica do CPRJ e o número de internações.

o faturamento da AIH corresponde ao pagamento das

Nesse período, a média percentual de internações girou em torno de 16%. A partir de 2002, houve uma

internações de 24 horas e que muitas vezes o paciente tem alta em menor período.

tendência de queda mais expressiva com estabilização

Na enfermaria, há um esforço da parte da equipe em

entre 2004 e 2005 e nova queda em 2006. Analisando-se

tornar essa internação o mais breve possível com a finali-

os números absolutos de atendimentos na emergência e

dade de inserir o paciente em serviços extra-hospitalares.

o número de internações, percebemos, no entanto, que

A enfermaria conta com uma equipe multidisciplinar

houve uma queda significativa das internações em com-

formada por médicos psiquiatras, enfermeiros, técnicos

paração aos anos de 1999 e 2006 (com uma diferença

em enfermagem, auxiliares de enfermagem, terapeutas

de 943 internações, ou seja, queda de 41%).

ocupacionais e assistentes sociais. A estada do paciente

Chama-se atenção para o fato de o CPRJ ter uma

no CPRJ não se limita à permanência no leito e à ad-

enfermaria dispondo de leitos de curta permanência.

ministração de medicamentos; a equipe multidisciplinar

Quadro 1 - Percentual de atendimentos da emergência psiquiátrica do CPRJ que se tornaram internações de 1999 a 2006 Anos

Número de atendimentos

Número de internações

%

1999

12.050

2.295

19,05

2000

10.130

2.205

21,77

2001

10.572

2.114

20,00

2002

11.956

2.051

17,15

2003

12.679

1.881

14,84

2004

16.059

1.967

12,25

2005

17.125

2.106

12,30

2006

11.882

1.352

11,38

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 1999-2006

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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

deve qualificar a assistência, oferecendo atividades no

vidas em projetos de atividades, houve a possibilidade de

pátio interno da enfermaria, e realizar grupos diários

oferecer a toda a clientela do CPRJ, independentemente

com as famílias dos pacientes internados. Dessa forma,

do local do atendimento, a possibilidade de envolvê-la

acredita-se que o que faz diminuir o tempo de interna-

com programas de atenção específica, seja em termos

ção é a interlocução da equipe multidisciplinar com os

de terapia ocupacional, musicoterapia, arte-terapia,

recursos apresentados para cada paciente visando, em

projetos vocacionais, entre outros. Isso, juntamente

muitos casos, a sua intensificação e articulação.

com as transformações pelas quais a enfermaria passava,

O caminho para o setor é assumir integralmente

apontava para o encaminhamento do projeto do CPRJ

toda a clientela de seu território, tendo-se inclusive

como uma unidade de atenção territorial no campo da

ampliado o número de leitos voltados ao atendimen-

Saúde Mental.

to, e não à transferência dos pacientes do território, e

De acordo com os dados apresentados no Quadro 2,

procurar encaminhar os pacientes de outras localidades

as médias dos indicadores hospitalares (taxa de ocupação

para os outros pólos. Durante o ano de 2006, a equipe

e tempo médio de permanência) aumentaram no

da enfermaria começou a dar prioridade ao atendi-

período de 2000 a 2005. Esses valores (principalmente

mento a essa clientela, não mais transferindo aqueles

o tempo médio de permanência) expressam, em parte,

que morassem na região, fortalecendo os laços com

resultados do incremento das atividades na enfermaria

o hospital-dia e com ambulatório. Uma dificuldade

nesse período.

evidente, em função da limitação de recursos para se

O Quadro 2 mostra, também, uma diferença

lidar com os pacientes de outras regiões, ocorria espe-

de 23 pontos entre as médias na taxa de ocupação de

cialmente em relação à clientela feminina que possuía

2000 e 2006. Esse aumento pode estar relacionado às

poucas alternativas de leitos disponíveis na cidade do

dificuldades de obtenção de leitos femininos na cidade

Rio de Janeiro.

do Rio de Janeiro. Principalmente em 2005, houve uma

Em 2005, iniciamos um processo de discussão no

drástica combinação de suspensão e redução de leitos

CPRJ que resultou em uma nova organização denomi-

devido aos vários processos de auditoria e interdições

nada de Setor de Atividades. O hospital-dia foi dividido

em hospitais psiquiátricos privados contratados pelo

em um setor de atividade e um setor terapêutico, com

SUS realizados pela Vigilância Sanitária da SES/RJ e

o objetivo de se organizar a demanda dos projetos tera-

SMS/RJ. Em 2006, houve a suspensão de internações

pêuticos da clientela. Na enfermaria a equipe do ‘pátio’,

na Clínica Valência, que oferecia 200 leitos ao sistema.

desde 2003, iniciara atividades no ambulatório com a

Essa medida resultou na modificação dos leitos psiqui-

clientela da sala de espera e com atendimentos progra-

átricos públicos que passaram a atender mais mulheres

mados. Em 2006, com a fusão de todas as equipes envol-

do que homens, já que há uma oferta maior de leitos

Quadro 2 - Taxa de ocupação e tempo médio de permanência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias Indicadores hospitalares

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

Taxa de ocupação

71%

79%

82%

80%

89%

85%

94%

2

2

2

2

3

2,3

3,9

Tempo médio de permanência (dias)

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 2000-2006

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

167

168

KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

masculinos nas clínicas privadas contratadas pelo SUS

estrutura e funcionamento dos hospitais psiquiátricos,

na cidade do Rio de Janeiro.

o CPRJ deve ter uma estrutura de pouca complexida-

Em 2006, o CPRJ registrou em cinco meses (ja-

de atender às ocorrências clínicas. Observa-se que a

neiro, março, abril, maio e setembro) taxas de ocupação

maior parte das causas de morte esteve relacionada à

maiores que 100%. Os tempos médios de permanência

dificuldade de tal paciente ser inserido e acompanhan-

nos leitos femininos (6,6 dias) sempre foram, em média,

do clinicamente pela rede de saúde em geral e não à

maiores do que os masculinos (1,6 dias).

desordem psiquiátrica.

No entanto, ao analisar as altas dadas no período (com exceção daquelas devido a óbito, transferência e Ambulatório e hospital-dia

evasões), percebe-se que este indicador vem aumentando gradativamente, podendo estar relacionado, mais uma

O ambulatório do CPRJ oferece atendimento indi-

vez, ao trabalho da equipe da enfermaria. O Quadro 3 de-

vidual e em grupo por médicos psiquiatras, psicólogos e

monstra que a média percentual de altas dadas pela equipe

assistentes sociais, para pessoas maiores de 18 anos. Nos

da enfermaria em relação à média do total de internações

últimos quatro anos, definiu-se que a clientela de primeira

no período aumentou significativamente, havendo uma

vez deveria ser moradora dos bairros localizados na área

diferença de 15 pontos entre 2005 e 2006.

programática 1.0 do Município do Rio de Janeiro, mas

Houve apenas 11 óbitos no período de 2000 a

há ainda pacientes de outras áreas programáticas do mu-

2006: dois no ano de 2000, um em 2001, um em

nicípio e da Baixada Fluminense que são acompanhados.

2002, dois em 2003, dois em 2004, três em 2005 e um

Essa escolha se deu devido a um grande número de faltas

em 2006. Segundo portaria do Ministério da Saúde n

o

às consultas marcadas de pacientes de áreas mais distantes

251/2002 do Programa Nacional de Avaliação do Siste-

e, também, para que o serviço pudesse utilizar melhor

ma Hospitalar (PNASH) (Brasil, 2004B) que orienta a

toda sua capacidade. De acordo com o Quadro 4, houve

Quadro 3 - Internação e alta hospitalar no Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias Indicador hospitalar

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

Internação

187

176

176

158

159

175

113

36

36

43

42

43

39

42

19%

20%

24%

27%

27%

22%

37%

Altas hospitalares %

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 2000-2006

Quadro 4 - Atendimentos de primeira vez e subseqüentes no Ambulatório do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – período 2000 a 2006 Tipo de atendimento

2000

2001

2002

2003

2004

Inicial

1.651

1.565

2.545

1.839

1.782

1.300

1.012*

Subseqüente

18.901

19.705

22.768

28.577

28.832

30.523

27.736*

Total

20.552

21.270

25.313

30.416

30.614

31.823

28.748*

* Não está contabilizado o mês de janeiro Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Boletim de Atendimento Ambulatorial 2000-2006

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

2005

2006

KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

um aumento de 55% nos atendimentos do ambulatório

arte, marcenaria e culinária. Esse serviço oferece

no período de 2000 a 2005.

alimentação para pacientes que freqüentam o serviço

O ambulatório do CPRJ desenvolve um projeto

em regime integral. O hospital-dia do CPRJ possui,

especial voltado para a população idosa (projeto Pater),

também, uma associação de familiares, a Associação dos

que realiza avaliação neuropsicológica de pacientes com

Familiares, Usuários, Amigos e Funcionários do Centro

suspeitas de demência e Mal de Alzheimer; dessa forma,

Psiquiátrico do Rio de Janeiro (Afaucep), que apóia as

projetos terapêuticos específicos para estas clientelas

famílias e pacientes do hospital-dia. O Quadro 5 mostra

podem ser elaborados.

o aumento de 22% nos atendimentos feitos no hospital-

Outro projeto desenvolvido no ambulatório foi a

dia do CPRJ, comparando-se os anos 2000 e 2006.

formação do núcleo de Psicanálise, com reuniões dos

Segundo dados do Datasus/MS apontados no Quadro 6

técnicos de vários setores semanalmente. Essa equipe

houve também um crescimento no faturamento do

ampliou de forma significativa o atendimento psico-

hospital-dia no período 2000 a 2005.

terápico na Unidade e, com sua discussão, influenciou projetos na emergência e no hospital-dia.

O hospital-dia ainda realiza parcerias com as áreas sociais da SES/RJ, da SMS/RJ e com o Instituto de Psi-

O hospital-dia do CPRJ é voltado ao atendimento de

quiatria da UFRJ para o cuidado e acompanhamento de

pacientes com transtornos mentais graves e persistentes

pacientes com transtornos mentais graves e persistentes

cujos laços sociais encontram-se esmaecidos. É também

em situação de moradores de rua, em especial aqueles

composto por uma equipe multidisciplinar: psicólogo,

que moram no centro da cidade e adjacências. Essas

médico psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente

parcerias implicam no abrigamento desses pacientes em

social, auxiliares de enfermagem e oficineiros. Além das

albergues e hotéis; a contrapartida dada pelo CPRJ é o

tradicionais consultas realizadas por profissionais de nível

tratamento destes pacientes. Esse projeto foi incluído

superior, o hospital-dia oferece atividades que visam à

entre as dez experiências bem sucedidas na III Confe-

reinserção psicossocial de pacientes como oficinas de

rencia Nacional de Saúde Mental.

Quadro 5 - Número de atendimentos de pacientes e familiares no hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – período de 2000 a 2006 Clientela atendida

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

Pacientes

8.626

10.523

10.006

11.135

12.656

11.852

11.799

Familiares

1.227

849

698

592

420

270

271

Total

9.853

11.372

10.704

11.727

13.076

12.122

12.070

Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Boletim de Atendimento Hospital-dia 2000-2006

Quadro 6 - Valores totais anuais, em reais, de faturamento do hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – Período 2000 a 2005 Unidade CPRJ

2000

2001

2002

2003

2004

2005

180.421,7

205.837,4

222.553,6

172.012,8

210.219,4

195.396,5

Fonte: DATASUS/Ministério da Saúde. Sistema de Informações Hospitalares 2000-2005

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008

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170

KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM SERVIÇO DE

também, serviços terapêuticos para moradores de rua

SAÚDE MENTAL TERRITORIAL NO MEIO

com transtornos mentais graves e persistentes e que

DO CAMINHO7

não têm onde morar. Analisando-se o modelo assistencial desenvolvido

Destacamos que, ao final desses quase dez anos,

pelo CPRJ de 1998 até o momento, pode-se dizer que

o CPRJ têm ampliado sua produção em todos os seus

esse modelo está em processo de transição, ou seja,

serviços, procurando qualificar a assistência em Saúde

ao longo deste período o hospital foi agregando à sua

Mental de acordo com os princípios da Reforma Psi-

função de avaliação da internação psiquiátrica outros

quiátrica, ou seja, garantir os direitos dos pacientes e

serviços como ambulatório e hospital-dia, serviços que

um tratamento humanizado, inserindo-o no social para

se responsabilizam pelo acompanhamento de clientelas

romper preconceitos.

e tornam o CPRJ uma instituição mais complexa vol-

A arte adquiriu um papel especial como instrumento terapêutico e elemento de enfrentamento do

tada ao seguimento da população residente nas áreas próximas ao hospital.

processo de exclusão e da luta contra o estigma dessa

Esta apresentação de uma experiência vivenciada

clientela. Destacamos o projeto, chamado Convivendo

no CPRJ destaca que seu atual modelo assistencial se

com a Música, que gerou o grupo musical Harmonia

aproxima mais das funções de um Caps tipo III8 (Bra-

Enlouquece composto pela clientela e técnicos da

sil,

Unidade, que já lançou dois CDs e vem se apresen-

voltada à população com transtornos mentais graves e

tando em eventos públicos de importância social e

persistentes e que tenham dificuldade em estabelecer

Casas de Espetáculos no projeto Loucos por Música e

laços sociais. A grande diferença é o fato de que o CPRJ

outros, no Rio de Janeiro, Salvador, Santos, Brasília e

ainda possui uma emergência psiquiátrica e ainda cum-

Porto Alegre. No projeto Convivendo com a Música,

pre a função de avaliação da internação psiquiátrica

semanalmente, a clientela se reúne para ouvir e tocar

para a cidade do Rio de Janeiro.

2004C), ou seja, uma unidade de Saúde Mental

música; pelo menos uma vez por mês eles recebem um

Isso nos permite demarcar a possibilidade de haver,

músico convidado: já foram recebidos um violinista da

nas grandes cidades, um desenvolvimento de serviços

Sinfônica de Sttugart, uma banda punk de meninas

que possam atuar de forma integral e ser integrado à

do Rio de Janeiro, uma banda de forró entre outras

rede, atendendo de forma territorial a clientela, seja

participações. Além da música as artes plásticas, poesia,

na crise, em sua demanda cotidiana ou no processo

teatro e outras expressões artísticas foram vivenciadas

de reabilitação.

durante este período no CPRJ.

Por fim, ressalta-se que as modificações realizadas

Em 2006, o hospital começou a desenvolver pro-

em seu modelo assistencial relacionam-se às necessi-

jetos de visitas domiciliares sistemáticas para pacientes

dades e negociações junto às Secretarias Estadual e

que residem da área do entorno do hospital, mas que

Municipal de Saúde do Rio de Janeiro com o intuito

não conseguem aderir a nenhum dos seus serviços e,

de se implantar a política da Reforma Psiquiátrica.

Este título se deve ao fato de que o CPRJ, apesar de todas as modificações apresentadas o aproximarem de um serviço territorial, sua posição no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde ainda é de hospital psiquiátrico. 7

Um Caps tipo III se constitui como um serviço de atenção psicossocial de base territorial que funciona 24 horas e possui no máximo cinco leitos para internação psiquiátrica exclusiva de seus pacientes em acompanhamento. 8

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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro

Ao mesmo tempo, todo o processo de construção da diversidade de atividades só foi possível por causa do engajamento de técnicos, usuários e seus familiares que, através de debates públicos, assembléias e reuniões de

Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstitucionalização, uma outra via: a Reforma Psiquiátrica italiana no contexto da Europa e dos ‘países avançados’. In: Nicácio, F. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 17-59.

equipe, procuraram encontrar soluções para a melhoria da assistência dada pelo CPRJ.

Recebido: abr./2008 Aprovado: ago./2008

R E F E R Ê N C I A S

Amarante, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ ENSP, 1995. Brasil. Ministério da Saúde. Lei n. 10216 de 6 abril de 2001. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, DF, 2004A. p. 17-19. _______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 251, de 31 de janeiro de 2002. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, DF, 2004B. p. 118-124. _______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 336, de 19 de fevereiro de 2002. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, DF, 2004C. p. 125-136. Delgado, P.G.G. No litoral do vasto mundo: lei 10.216 e a amplitude da reforma psiquiátrica. In: Cavalcanti, M.T.; Venâncio, A.T.A. (Org.). Saúde mental: campo, saberes e discursos. Rio de Janeiro: Edições IPUBCUCA, 2001. p. 283-290 Desviat, M. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte Linking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas Gerais Serafim Barbosa Santos-Filho

1

Médico sanitarista; mestre em

saúde pública e epidemiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais

1

RESUMO Neste artigo aborda-se a experiência de articulação de um conjunto de instrumentos de gestão subsidiando a organização dos serviços substitutivos

(UFMG); consultor do Ministério

de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) de Belo Horizonte, Minas

da Saúde, atualmente realiza

Gerais há cerca de dez anos. Enfatiza-se o modo de aporte das diretrizes do

acompanhamento/apoio aos Serviços

planejamento e dispositivos agregados, para avançar num modelo de co-gestão dos

de Saúde Mental do Sistema Único

processos locais de trabalho. Além da utilidade na organização interna dos serviços,

de Saúde (SUS) em Belo Horizonte e Região Metropolitana na área de

explicita-se o potencial dessas ferramentas de gestão na organização da rede e no

planejamento e gestão.

desenvolvimento de ações articuladas. O aprofundamento dessas aproximações

[email protected]

pode contribuir para a consolidação dos processos coletivos de trabalho em Saúde Mental e potencializar a integração da rede. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Planejamento; Gestão; Rede.

ABSTRACT In this article it is approached the articulation experience of a set of management tools subsidizing the organization of substitutive Mental Health services of the Single Health System (SUS) of Belo Horizonte (Minas Gerais), in about ten years. The emphasis is in the mode of intake of the planning guidelines and aggregated tools to improve a model of participating management. In addition to the utility in the services internal organization, it is clear that these tools potential for managing the organization’s network and development of coordinated actions. It is suggested that these approaches deepening can do much to the consolidation of the collective work processes’ in Mental Health and to enhance the network integration. KEYWORDS: Mental Health; Planning; Management; Network.

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

I N T R O D U ç ão

ao que tem sido apontado por Campos (2000, 2003, 2006) como inovações nos modelos de gestão, atualmente enfatizando-se a metodologia de ‘apoio institucional’, como estratégia de assessorar os coletivos na discussão e enfrentamento de situações, compartilhando e fazendo

Historicamente, no âmbito dos serviços tradi-

ofertas, inclusive de ferramentas.

cionais de Saúde Mental não eram utilizados recursos

Nesse eixo, trabalhar com ferramentas de planeja-

de planejamento focados nos processos de trabalho e

mento e de avaliação abre caminhos para repensar per-

organização da atenção. A aproximação das diretrizes

manentemente ‘o quê’ (metas) está sendo alcançado, com

e instrumentos de planejamento estratégico e outras

quais ‘estratégias’, em quais ‘direções’, atinando-se para

ferramentas de gestão no campo da Saúde Mental é algo

um acompanhamento avaliativo das ‘mudanças’ propostas

que vem ocorrendo recentemente, a partir das mudanças

e esperadas com o serviço. Esse processo ajuda na refle-

no paradigma da atenção, especialmente com a Refor-

xão contínua sobre a proposta de desinstitucionalização,

ma Psiquiátrica e proposta dos serviços substitutivos

sobre o que ela traz como objetivos e quais componentes

(Amarante, 1992).

(‘indicadores’) realmente delimitam o caráter ‘substitutivo’

A apropriação dos referenciais do planejamento, atrelados à uma concepção de gestão participativa, con-

dos serviços, isto é, faz pensar sobre os objetivos e o que está efetivamente sendo posto em prática.

tribui não somente para articular a dinâmica dos serviços

No presente artigo, esses e outros aspectos são

em torno de sua missão e metas, mas sobretudo para

levantados e analisados, tendo-se por base um ‘projeto

fomentar o exercício da construção coletiva de objeti-

de intervenção/apoio’ que começou com uma série de

vos, processos e viabilidade para os projetos desejados.

oficinas de planejamento ocorridas em um Cersam/

O planejamento pode, portanto, ser exercitado em um

Caps do SUS/BH, no início de seu funcionamento,

caráter pedagógico, de aprendizagem coletiva.

em meados dos anos 1990. Essas oficinas propiciaram

Nesse sentido, nossa aproximação sistemática em

a orientação do processo de trabalho no serviço, avan-

curso há cerca de 10 anos, inicialmente com um dos

çando em discussões que extrapolam a tessitura do seu

Centros de Referência de Saúde Mental (Cersam/Caps)

modus operandi, abrigando importantes questões nessas

do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS/

direções que acabamos de mencionar, no sentido de fo-

BH), pautou-se exatamente por essa linha, fomentando

mentar o protagonismo da equipe na co-construção do

a perspectiva de um ‘jeito’ compartilhado de conduzir

‘sentido’ daquele serviço substitutivo que se inaugurava.

serviços, marcando a importância do envolvimento efe-

A pergunta que sempre levantamos para inquietar: ‘a

tivo de todos os atores na produção do seu próprio fazer

que viria um serviço substitutivo?’ E, quais ‘frentes de

e das práticas de atenção, jeito que sugeria a importância

ação’ poderiam ser construídas para corresponder à nova

da atitude de co-responsabilização em torno de ‘planos

missão que se colocava.

de ação’, planos sempre cuidadosamente revistos, e vistos

A seguir, são sintetizadas algumas reflexões sobre

não numa perspectiva burocrático-protocolar, mas como

os movimentos desencadeados com o serviço que foi

norteador dos movimentos considerados necessários

mencionado, agregando também nossas outras experi-

para a consolidação dos serviços. Essa sistemática de

ências, estendidas aos demais serviços da rede do SUS/

aproximação e acompanhamento dos serviços alinha-se

BH e outros municípios mineiros.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

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174

Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

A demanda pelo ‘planejamento’ e os rumos da

e adesão ao modelo proposto; (III) os relacionados ao

interlocução estabelecida

processo de trabalho, mostrando a inexistência ou insu-

O primeiro serviço que nos foi demandado para

ficiência de definição ou clareza de papéis, atribuições,

contribuir com a organização no início de sua estru-

arranjos para o trabalho em equipe, rotinas operacionais

turação foi o Cersam/Caps Noroeste. Esse Cersam foi

e fluxos; (IV) as dificuldades de viabilizar algumas pro-

criado no final de 1995, a partir da reestruturação de

postas previstas no modelo, especialmente as do âmbito

um ‘grande’ serviço ambulatorial ligado ao Instituto

da reabilitação psicossocial; (V) e as questões estruturais

Nacional de Previdência Social (Inamps), no processo

inicialmente trazidas como uma percepção de limitação

de municipalização de serviços. Os gestores do Sistema,

de recursos materiais e humanos.

no qual o Serviço estava inserido, articularam um grupo

Seguindo na problematização das situações, mais

de apoio à sua reorganização, incluídos como assessores

do que ações sistemáticas para superação dos problemas

para a discussão de seu planejamento. A participação

levantados, o planejamento passou a ser uma estratégia

deu-se, então, desde o ‘planejamento’ das estratégias para

da equipe para a construção de um ‘projeto diretor’

‘desconstruir’ o serviço instituído (Inamps), caminhando

do Cersam/Caps. Clareou-se para a equipe a dimen-

para ajudar em todas as etapas de sua estruturação como

são político-instrumental implicada no planejamento

Cersam/Caps.

estratégico, possibilitando entender a necessidade de

No Cersam/Caps em sua nova missão e organização

uma permanente atitude de participação e negociação,

como serviço substitutivo seria um serviço de curta per-

não somente na definição de uma ação/projeto, mas

manência, devendo estar articulado a uma rede ambula-

principalmente para assegurar a sua operacionalização.

torial para acompanhamento após o período de crise.

Vislumbrou-se a dimensão político-decisória implica-

Após o início de funcionamento, a equipe do ‘novo’

da no ato de planejar, envolvendo interesses, desejos,

serviço manifestou interesse em discutir sistematicamen-

recursos físicos e mobilização de poderes dos diversos

te os problemas que estavam sendo observados, expressos

atores implicados.

no processo de trabalho, nos resultados das atividades

As principais ações propostas englobaram aspectos

e principalmente nas insatisfações que começavam a

que contemplavam desde a necessidade de discussões

despontar no grupo.

continuadas e ampliadas em torno do projeto institu-

A partir de uma reunião inicial e co-validação da

cional da Saúde Mental, até a estruturação de rotinas ad-

demanda que se apresentava, delinearam-se os pos-

ministrativas para o serviço. Permeando esses extremos,

síveis movimentos a serem disparados, enfatizando e

o processo de trabalho foi o alvo central do enfoque,

explorando especialmente o interesse e mobilização

criando-se critérios e fluxos organizadores do trabalho da

dos envolvidos na construção de um possível ‘projeto’

equipe e para articulação com outros órgãos e serviços,

para o serviço.

problematizando-se a idéia de rede.

Como grandes grupos de problemas pode-se citar:

Os momentos da construção das matrizes operacio-

(I) aqueles que tocavam na dificuldade de compreensão,

nais concluíram uma primeira fase do planejamento do

de forma coletiva, das diretrizes centrais do projeto ins-

Cersam/Caps, desenhando o que era preciso ser explo-

titucional da Saúde Mental dentro de um novo modelo

rado mais minuciosamente. A conclusão dessa fase foi

assistencial; (II) os relacionados a recursos humanos,

ligada diretamente ao estabelecimento de cronogramas

principalmente quanto ao desenvolvimento, qualificação

de trabalho, constando de subprojetos e atividades a

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008

Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

serem desenvolvidas no âmbito interno e nas articulações com órgãos externos.

E nesses movimentos, o serviço/equipe foi crescendo em seu potencial de inventar rumos e buscar a consolidação dos apoios considerados necessários como desafios. Do ponto de vista do planejamento, havia que

Para além de uma abordagem instrumental de

se exercitar esse apoio com direcionamento cuidadoso

planejamento: contribuição das oficinas e movimentos

dos problemas levantados, principalmente para não

de planejamento na ampliação das discussões

correr o risco de enviesar ou supervalorizar as dimensões

Vale ressaltar uma dimensão de ações que naquele

mais ‘aparentes’ dos problemas ou as que apareciam

momento foi de vital importância para o Serviço, ou

como ‘sintomas’ mais diretos, a exemplo das situações

seja, a preocupação em se demarcar como uma das

de ‘demanda excessiva’ ou das ‘várias faltas estruturais’,

pautas prioritárias a discussão da (nova) clínica que

queixas que já naquele momento eram largamente

se desejava fazer e que já se experimentava no próprio

manifestadas.

exercício de um aprendizado coletivo. Na medida

Portanto, a necessidade de ajudar a tratar dos

em que foram se desenvolvendo as oficinas de plane-

problemas trazendo-os para o âmbito do ‘processo de

jamento, inicialmente no âmbito da exploração dos

trabalho’, processo complexo por se pretender como

problemas gerais (‘organizacionais’) e, depois como

inovador e em ruptura (ou superação) com os modelos

desdobramento dessas, outros assuntos emergiam do

tradicionais de fazer. Por outro lado, o cuidado também

próprio cotidiano de experiências, vivências, desafios

na perspectiva propositiva, ajudando a equipe a encon-

que se apresentavam em meio a muitas inquietações,

trar rumos, mas sem passar a idéia de que as soluções dos

inclusive, pela própria novidade e intensidade do

problemas passavam por um eixo de ‘total organização’,

que estava sendo construído. As oficinas, portanto,

de modo acrítico, com o risco de se criar uma visão ‘dura’

contribuíram funcionando como um cenário no qual

de um processo de planejar; risco de tentar responder

se acolhia e provocava a discussão das demandas e

com estruturas rígidas, ‘protocolos’ e ‘fluxos’ inflexíveis

ofertas do Serviço – a ‘clientela-alvo’, os ‘produtos’ a

às situações que na verdade eram revestidas de outros

lhes serem ofertados, o ‘modo de ofertar’, as marcas

desafios e necessidades.

(‘qualidade’) a serem impressas nessas ofertas/ações,

Na verdade, o mais importante era provocar e

e as ‘respostas’ esperadas com esses ‘investimentos’.

inquietar a equipe para perceber o processo de plane-

Como isso era efetivamente o cerne do trabalho, na

jamento e organização atrelado à perspectiva da clínica

medida em que se ia aprofundando a discussão sobre

que é o caminho pelo qual se apresentam, e são reveladas

o ‘fazer’ e conduzir os ‘casos’, foi sendo observado

as necessidades reais dos sujeitos/usuários.

ou reforçado a necessidade de tratar dessas questões

Portanto, é no âmbito da clínica que se conhece

também em outra esfera, ampliando os loci de sua

a necessidade e se direciona a ação; e é nesse contexto

problematização. Nesse momento, despontou e

que essa necessidade e essa ação poderiam ser debati-

fortaleceu-se na própria equipe a demanda por ati-

das, ‘organizadas’, sistematizadas, direcionadas, à luz

vidades de supervisão clínica. É interessante lembrar

de um planejamento – planejamento que viria ajudar

que essa demanda se apresentou como uma operação

a pensar critérios, prioridades, fluxos, constituição de

colocada em um dos planos de ação da equipe, a partir

equipes, papéis, etc, mas tudo em torno de um objeto

das primeiras oficinas de planejamento.

claro/esclarecido (necessidades, demandas, prioridades).

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

Evidentemente, a potência do planejamento se estende

situações (baseadas nos ‘casos’ e na vida do serviço)

quando se pensa que tudo isso está na perspectiva de

que, ora podem ser da ordem de discussão em fóruns

rede, uma vez que os ‘casos’ (as necessidades, demandas)

‘específicos’ (supervisão), ora devem ser ampliadas, na

circulam em vários pontos de uma rede, para tal carecen-

ótica da gestão (também em sentido ampliado), para

do de bons (e pactuados) arranjos e fluxos. Mas, tudo

resultar em revisão dos modos de funcionamento e

na perspectiva do que são exatamente as necessidades

em intervenções e respostas mais eficazes e satisfatórias

(compreendidas no âmbito da clínica ampliada) dos

(tanto para usuários quanto para os trabalhadores/

sujeitos-usuários da saúde mental. Pode-se notar que o

equipe, e para a instituição/gestão). É importante

que se nomeia como dispositivo de ‘projetos terapêu-

observar o quão interessante (e coerente) tem sido a

ticos’, em um sentido, ocupam esse lugar de necessária

pauta dos seminários regulares que o Cersam Noroeste

indissociação entre ‘clínica’ e ‘planejamento’ e entre

vem fazendo bianualmente, cujos temas vêm a refletir

1

‘atenção’ e ‘gestão’ . Ressalta-se a importância atual dessas reflexões,

exatamente essa interlocução entre clínica e eixos de planejamento/gestão.

inclusive porque não é incomum os serviços/equipes de

Acredita-se, e há esse retorno a partir de nossas

Saúde Mental em início de funcionamento ou em fases

atividades de acompanhamento, que a máxima amplia-

de reorganização ‘solicitarem’ planos/intervenções em

ção de espaços de discussão possibilita não somente a

certa dureza na concepção de organização, como que

ampliação de alternativas, mas também gera ‘desesta-

‘sufocados’ por problemas e ‘crentes’ em sua solução, por

bilizações’ interessantes, provocativas. As discussões

meio de arranjos apenas estruturais, formais, ‘externos’,

ampliadas ajudam a não cristalizar a prática, a não se

como que externos à clínica, ao objeto mais central

colocar apenas em função da demanda, a refletir sobre

nesses/desses serviços.

uma série de pontos críticos do processo e relações de

Ainda no rastro dessa reflexão enfatizada é pertinen-

trabalho, enfim, fazendo aparecer e/ou fortalecer estra-

te a perspectiva de um desenho de ‘apoio’ aos serviços,

tégias que têm coerência com as práticas substitutivas.

compondo-se de momentos regulares de supervisão

Possibilitam, com diferentes olhares e questionamentos,

clínica (realizadas por um supervisor específico) e de

tocar em ‘indicativos’ que estariam refletindo a eficácia

momentos de ‘oficinas’ em uma ótica mais ampliada

na gestão e resultados dos serviços.

de planejamento. Observa-se que em determinados

Esses novos serviços de caráter substitutivo (ao

momentos isso é benéfico para os serviços. Essa alter-

modelo manicomial), na medida em que se consolidam,

nância de espaços de problematização, cada um com

acenam cada vez mais a desafios em torno do processo e

suas especificidades e jeitos próprios, foi experimentada

metas para o enfrentamento dos modelos tradicionais.

no Cersam Noroeste e também vivenciada ou sugerida

Por um lado, podem ser elencados vários indicadores

em outros serviços. Deve ser vista não exatamente como

de resultados satisfatórios, como por exemplo, os casos

uma complementaridade de abordagens, mas como

progressivos de desospitalização dos pacientes, a redução

espaços de levantamentos, explorações e condução de

nos índices de reinternação ou de primeiras internações,

O aprofundamento dessa discussão, em diferentes direções, tem sido feito por Gastão Wagner Sousa Campos (Campos, 2000, 2003, 2006) e tem sido retomada suas bases na formulação das diretrizes e dispositivos do Humaniza SUS/Política Nacional de Humanização. Para maior conhecimento sobre o marco teóricopolítico do Humaniza SUS, bem como seus dispositivos, recomenda-se uma consulta aos materiais disponibilizados no site do Ministério da Saúde: www.saude. gov.br/humanizasus 1

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

a ampliação de acesso e outros. Por outro lado, no coti-

em prol da legitimidade dos planos’ (Onocko, 2003).

diano dos serviços, os profissionais têm convivido com

Isto implica,

problemas de diferentes ordens, de âmbito estrutural e de processos de trabalho, resultando em desgastes com múltiplos fatores em seu entorno – vêm acarretando uma sobrecarga diária aos profissionais, traduzida no

assumir uma perspectiva mais descentralizada de mundo, trazendo à tona o mundo social dos atores para além da fria compreensão do planejamento enquanto tecnologia (Onocko,2003),

desgaste que é vivido para se conseguir levar adiante o projeto proposto. Essas questões acenam para a necessidade de apro-

o que potencializa sua relevância enquanto ação comunicativa.

fundar a discussão da organização dos serviços nesse

Considerando as dimensões técnica e política do

momento de consolidação. E para isso é importante o

planejamento e da atuação intersetorial, deve-se enfatizar

aporte de referenciais que ajudem a problematizá-los,

o seguinte:

isto é, dando visibilidade aos resultados (indicadores quanti-qualitativos), evidenciando as falhas no processo e sugerindo caminhos para correção de rumos e viabilização de novas frentes. A apropriação de ferramentas de planejamento e de avaliação assume relevância especial no âmbito do movimento e desempenho dos gestores (e equipes), que muitas vezes expressam a sua limitação quanto a habilidades em

O trabalho não se restringe, portanto, a um simples preenchimento de planilhas e corresponde a uma verdadeira análise do ‘estado da arte’ em termos do conhecimento e da tecnologia disponível para o enfrentamento do problema selecionado, ao tempo em que liberta a imaginação dos participantes para que possam pensar em formas inovadoras de organização das atividades previstas, com os recursos disponíveis. (Teixeira; Paim, 2002).

conduzir os processos cotidianos. Mais do que um caráter instrumental, esses aportes são um arsenal

Se tais princípios valem para o setor saúde em geral,

importante para efetivar o processo coletivo da ges-

destaca-se aqui sua pertinência na área da Saúde Mental,

tão, ampliando e consolidando dispositivos de gestão

considerando os desafios para ampliação e consolidação

participativa, como os colegiados/fóruns de decisão e

dos seus novos serviços e práticas (serviços e práticas

condução dos serviços.

inovadoras) e a estruturação de projetos intersetoriais.

Ilustrando o potencial do planejamento participativo O PLANEJAMENTO PERMEANDO A AÇÃO INTERSETORIAL EM SAÚDE MENTAL

na ampliação de ações intersetoriais em Saúde Mental À luz do planejamento participativo, as ‘situações’ que se apresentam como situações-problema – objetos de

A intersetorialidade pode ser vista como ‘estra-

intervenção – são realidades a serem conhecidas, reconhe-

tégia de reorganização das respostas aos problemas,

cidas e exploradas pelos diversos sujeitos que as vivenciam.

necessidades e demandas sociais dos diversos grupos da

O ponto central que se destaca nesse eixo é o reconhe-

população’ (Teixeira, 2002), refletindo em projetos e

cimento dos ‘outros’ atores na articulação desejada para

planos efetivos de ação; e o planejamento como meio de

propostas de solução (construção de alianças para atuação

‘revalorizar as estratégias de negociação e de cooperação,

e solução). No atual momento da Reforma Psiquiátrica,

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tanto no plano mais ‘macro’, como na esfera local de

Em um seminário da rede de serviços de Saúde

implementação de ações, é indiscutível a necessidade

Mental da criança e do adolescente, tendo como tema

de potencializar a ‘reunião’ dos diversos sujeitos/agentes

central a Intersetorialidade, foi possível contribuir

envolvidos nesse ‘assunto’, no intuito de possibilitar a

no aprofundamento da discussão sobre a construção

manifestação de suas diferentes percepções e interesses, e

de ações articuladas com diferentes atores sociais. Os

disparar movimentos de intervenção. No plano local, por

desdobramentos desse seminário levaram à revisão

exemplo, deve-se refletir sobre até que ponto se avançou

dos marcos de organização da atenção à criança e do

no envolvimento do ator ‘família/familiares’ na dinâmica

adolescente, sendo um dos produtos desse movimento

dos novos serviços; indo mais longe: até que ponto foram

a elaboração de um documento/projeto de construção

disparadas ações para envolvimento da comunidade local.

compartilhada, envolvendo a coordenação, equipes de

Por outro lado, deve-se refletir permanentemente sobre o

trabalhadores e gestores locais (dos serviços), abrindo-se

grau de articulação que se tem conseguido efetivar entre

para o envolvimento de outras áreas. Reafirma-se com

os próprios serviços de saúde, buscando sempre manter

isso a potência do trabalho construído em parcerias.

em pauta a discussão sobre ‘rede’.

O esforço para a realização de um trabalho con-

De outro lado, numa perspectiva bastante am-

junto é por si mesmo um indicador de aprendizagem

pliada, exemplos recentes da Saúde Mental podem

na perspectiva da atuação integrada, desafio que deve

ser tomados para ilustrar experiências efetivamente

levar em conta as diferenças reais existentes (de objetos,

inovadoras no âmbito de um plano intersetorial. É o

de saberes, de momentos, de gerência, etc.) entre os

caso da iniciativa de propiciar aos usuários atividades

diferentes serviços que compõem a rede, o que torna

como visitas/entradas nos cinemas da cidade, mobili-

fundamental a premissa de ‘flexibilidade’ para buscar

zando, para isso, diferentes setores, incluindo a rede de

integração, inclusive numa perspectiva que pode ser

empresas de cineclubes. Isso demonstra a incorporação

chamada político-pedagógica. Especialmente o ‘momen-

e intercâmbio de desejos, interesses, saberes e recursos

to estratégico’ do planejamento deve ser terreno fértil,

distintos, bem como de operações táticas desencadeadas

como salienta Onocko (2003), para, nesses contextos, a

para viabilizar essas ‘intenções’, essas ações. E, é um

‘equipe se confrontar com as perguntas: Quem somos?

exemplo de situação que deve ser colocada em análise,

Quem são os outros? Estamos imaginando o mesmo

nos espaços do cotidiano de trabalho, para delas serem

futuro? Desejamos as mesmas coisas?’. Desponta nesse

extraídas as ‘lições’ como experiência pedagógica, de

contexto uma importante problematização de ‘sentidos’,

aprendizado no aporte de habilidades e instrumentos

de interesses e de espaços de governabilidade, que pode

de planejamento/negociações. Certamente essa é uma

apontar para desafios maiores, como reflexão sobre a

dentre várias outras experiências, e foi aqui destacada

(re)construção coletiva de objetivos, produtos esperados

por permitir demarcar de forma muito pertinente à

e processos de trabalho, estimulando a mobilização,

‘coerência entre o que se propõe como projeto inovador

motivação, criatividade e assunção de responsabilida-

(âmbito da inclusão social efetiva dos sujeitos), o exer-

des, como a atitude política. A implicação no processo

cício de uma clínica ampliada (contemplando recursos

passa a ir além da assunção ou delegação de funções e

ampliados nos projetos terapêuticos) e a perspectiva

competências restritas ao plano técnico. Acredita-se que

organizativa (do planejamento) contribuindo para isso’.

a democratização das relações e intensificação das ações

(Comentário do autor)

comunicativas (entre dirigentes, técnicos e usuários, e

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

interserviços em rede) deve-se constituir como um dos

Cersams e Coordenação de Saúde Mental. O início

produtos dos instrumentos de gestão, firmando espaços

desse processo deu-se a partir de uma nova série de

para mudanças das práticas institucionais (Campos,

oficinas chamadas pelos próprios serviços (gestores)

2000; Teixeira; Paim, 2002).

e coordenação, para discussão de problemas gerais

No momento atual da Saúde Mental, a exploração

no funcionamento dos serviços e articulação da rede.

de todas essas perspectivas pode potencializar em muito

Ao serem levantadas coletivamente algumas questões,

o desenho, abrangência e ‘invenção coletiva’ de ações.

foi proposta a continuação do debate canalizando-o

Vale ressaltar que alguns dos serviços substitutivos,

de forma a apontar e direcionar, coletivamente,

como os centros de convivência, vêm demonstrando,

metas e estratégias de ação (para enfrentamento dos

segundo sua própria percepção, que não há limites

problemas identificados), definindo e negociando as

para disparar experiências inovadoras, muito para além

metas possíveis de serem alcançadas, considerando a

de abordagens tecnicistas. E quanto mais sistemáticas

realidade de cada serviço e dentro de prazos julgados

forem as interlocuções, subsidiadas por arranjos/planos

pertinentes. Assim seriam trabalhados com metas

político-instrumentais é possível aumentar o alcance e

que norteariam o acompanhamento e avaliação de

qualidade dessas iniciativas e seus resultados.

desempenhos, conforme acordos firmados entre partes (Coordenação e Gestores Locais). Os próprios instrumentos avaliativos seriam negociados e definidos de forma compartilhada. Apesar de terem

AVANÇANDO NO APORTE DE FERRAMENTAS

sido envolvidos cerca de seis meses nesses primeiros

DE GESTÃO: APOSTANDO NOS

movimentos (de problematização, definição e pactu-

DISPOSITIVOS DE CONTRATUALIZAÇÃO,

ação de metas), esse processo foi apenas iniciado e,

‘CONTRATOS DE GESTÃO’, PARA

aqui, é importante ressaltar tal movimento enquanto

CONSOLIDAR A REDE DE SAÚDE MENTAL

potencial que se apresenta para ajudar na consolidação da rede de Saúde Mental do SUS/BH. Destacam-se

Até a presente discussão, foi enfatizada a aborda-

duas vertentes capazes de abrigar a riqueza desse

gem dos instrumentos de planejamento e organização

processo de contratualização e o que efetivamente

de serviços em seu potencial de abrir campo para pro-

ele pode potencializar.

blematizações e negociações. E na intenção de explorar ao máximo essa perspectiva do compartilhamento dos processos, das metas e do fazer cotidiano, pautam-se

Quanto ao alcance do método/dispositivo

agora os chamados ‘contratos de gestão’, dispositivos

A perspectiva da ‘contratualização’ está atrelada à

que têm sido enfatizados a partir da Política Nacional de

efetivação de um processo de ‘co-gestão’, extrapolando

Humanização (PNH) (Brasil, 2006) e que possibilitam

uma compreensão de ‘contrato’ no sentido formal,

avanços nos modos de definir coletivamente os modos

normativo ou mesmo jurídico. No âmbito que mais

de fazer e os rumos de um projeto, serviço ou da rede.

interessa ao presente artigo, contratar significa, então,

Parte-se de uma situação concreta que começou

a capacidade de estabelecer contato, criar conexões,

a se experimentar na rede de Saúde Mental do SUS/

redes – uma estratégia de pôr as ações, os serviços,

BH mais recentemente, envolvendo todos os Caps/

para funcionar de outro modo; para alterar os modos

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

de relação e os modos de gerir o/no trabalho. Em

Quanto aos conteúdos previstos nos contratos e seu

termos instrumentais, os contratos devem-se compor

‘acompanhamento avaliativo’

de metas discutidas e definidas coletivamente, pelas

As metas que foram contempladas nos ‘contratos

partes envolvidas no processo, co-construindo pro-

internos de gestão’ refletem pautas ampliadas, nas quais

jetos, encadeando-se co-análises e co-elaboração de

se pode observar o avanço do projeto de Saúde Mental

propostas viáveis. Em sua metodologia, é importante

no SUS/BH, sobretudo dando passos para ajudar a

serem desencadeados movimentos simultâneos em

ampliar/consolidar um trabalho em rede, com esforços e

duas direções: em uma, o movimento de oficinas en-

instrumentos mais sistemáticos para viabilizar e sustentar

volvendo gestores dos serviços e coordenação central;

articulações e pactuações entre os serviços. Por outro

em outra, um desdobramento e aprofundamento de

lado, e ao mesmo tempo, mostram-se claros os diferentes

discussões entre gestores e suas equipes, não somente

momentos de cada serviço/Cersam, cada um apontando

repassando ‘informes’, mas criando-se espaços efetivos

suas metas específicas, seus ‘jeitos’ e seus tempos para

de atualização das diretrizes dos projetos, propiciando

desencadear processos (para isso podendo-se proceder a

sua apropriação pelo conjunto dos trabalhadores e

uma ‘decomposição’ das metas a serem programadas de

ajustamento coletivo de metas no nível local.

forma gradativa num cronograma de implementação).

Em ambas as direções, o eixo fundamental é

O respeito aos diferentes perfis, momentos e especifi-

o de abertura a processos de pactuação, com co-

cidades de cada serviço é uma diretriz cara ao âmbito

responsabilidade em torno de metas não-definidas de

dos contratos de gestão. É um dos seus diferenciais de

modo apenas externo, mas de forma compartilhada.

outros instrumentos de definição de metas, comumente

Nesse eixo, deve-se valorizar também a perspectiva de

estabelecidas de modo prescritivo e unilateral. O que

formação dos gestores quanto à capacidade de gestão

poderia parecer apenas um processo de programação,

baseada na escuta; quanto ao aprimoramento de uma

ganha outra relevância, de âmbito político e de rede de

das funções do gestor como apoiador institucional, a

compromissos.

de fazer ‘ofertas’, provocando e estimulando inovações

Uma estratégia fundamental do processo de contra-

no trabalho, sustentando os processos e movimentos.

tualização é instituir um método de ‘acompanhamento

A essa ótica atrela-se a perspectiva pedagógica de forta-

avaliativo’, cuidando para que as metas sejam aferidas

lecimento dos gestores (e da gestão) quanto ao aporte

(em seu cumprimento), não no sentido de uma ‘fiscali-

de conceitos, ferramentas e instrumentos de gestão,

zação de seu alcance absoluto’, mas no que se concebe

que podem ser mais sistematicamente utilizados no

como ‘avaliação formativa’, capaz de ir ‘incluindo’ as ra-

dia-a-dia, envolvendo os trabalhadores em práticas

zões que explicam seu maior ou menor êxito, subsidian-

institucionais de planejamento, avaliação, contratua-

do ‘regulações’ no processo e repactuação de metas.

lizações (com base em metas), ampliando a capacidade

Vale destacar as metas/iniciativas que foram aponta-

de intervenções de toda a equipe. Esse aspecto ‘for-

das, buscando-se cada vez mais efetivar o funcionamento

mativo’, na própria prática, é um aspecto que deve ser

dos serviços na perspectiva de uma atuação transdisci-

ressaltado inclusive pela necessidade e compromisso

plinar, crescendo em sua proposta de se constituir como

institucional com a atualização dos gestores, alguns

serviço inovador, produtor de conhecimento, de uma

novos na rede, e com pouco conhecimento das áreas

‘clínica feita por muitos’ (utilizando uma expressão da

de planejamento, gestão e avaliação.

área e que serviu como mote de um dos grandes seminá-

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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte

rios bianuais que se organizou com o Cersam Noroeste). Tudo isso vai de encontro ao que se quer enfatizar no âmbito da missão dos serviços de saúde, marcando seu compromisso com a produção de serviços (âmbito da atenção), mas também com a produção de sujeitos, conhecimento, aprendizagem no coletivo (âmbito da gestão) (Campos, 2000; 2003; 2006). A democratização das relações e intensificação das ações comunicativas entre dirigentes, técnicos e usuários deve-se constituir como um dos produtos desses instrumentos de gestão,

______.Um método para análise e co-gestão de coletivos a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000. Onocko, R.C. O planejamento no labirinto. 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2003. Teixeira, C.F; Paim, J.S. Planejamento e programação das ações intersetoriais para a promoção da saúde e da qualidade de vida. In: Teixeira, C.F. (Org.) Promoção e vigilância da saúde. Salvador: ISC, 2002.

instituindo-se como espaço para mudança das práticas institucionais.

Recebido: abr./2008 Aprovado: out./2008

R eferências

Amarante, P.D.C. A trajetória do pensamento crítico em Saúde Mental no Brasil: planejamento na desconstrução do aparato manicomial. In: Kalil, M.E.X. (Org.). Saúde Mental e cidadania no contexto dos sistemas locais de saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. p.103-119. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Campos, G.W.S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos, G.W.S.; Minayo, M.C,S.; AkermaN, M.; Júnior, M.D.; Carvalho, Y.M. (Org.).Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006. ______. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.

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Documento Histórico

/ Historical Document

SAÚDE MENTAL Condições de assistência ao doente mental* Comissão de Saúde Mental dos C e b e s

O quadro sabidamente distorcido da assistência médica no Brasil, com a perversa tendência à privatização e ao abandono pelo Estado da responsabilidade pela assistência médica da população, delegando essa obrigação social aos grupos privados, é consideravelmente mais grave na área de cuidados ao doente mental. Se é verdade que a tendência à privatização é um fenômeno geral atingindo os mais variados segmentos da assistência médica, ou fora dela, não é menos verdadeiro que a previdência conta com alguns hospitais de conhecida eficiência técnica, não raro os mais procurados nas diferentes especialidades por seu reputado padrão de qualidade e que, se não atendessem ao universo de segurados, devido ao seu número aquém do mínimo necessário num Estado estruturado para atender às necessidades mínimas de todos os setores sociais, constituir-se-iam um serviço modelo, a partir do qual os particulares seriam medidos, num sistema em que o controle de qualidade sobre os serviços contratados fosse efetivo. Essa possibilidade, todavia, nem mesmo é possível na psiquiatria, especialidade da sem nenhuma unidade hospitalar oferecida pela Previdência, deixando a totalidade da assistência entregue aos hospitais particulares através da compra de serviços. Não resta, pois, à Previdência, a possibilidade de controlar a qualidade dos serviços comprados, medida por comparação com a assistência diretamente prestada, como é exeqüível noutras especialidades. Desse modo, é de se estranhar que a psiquiatria seja o setor da assistência médica onde as denúncias sobre as distorções, a eficiência e o baixo padrão tenham se tornado lugar comum, motivo que faz dela assunto permanente * Texto extraído de: “Condições de assistência ao doente mental”. In: Assistência psiquiátrica no Brasil: setores públicos e privados. Revista Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n.10, p. 49-55, abr./jun. 1980.

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Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental

nas páginas dos jornais. Uma nota oficial do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, em setembro de 1978, já apontava a necessidade de: 1. Denunciar que o modelo assistencial psiquiátrico em funcionamento é ineficaz, cronificador e elitista. Ineficaz, já que o índice de recuperação é insignificante e a prevalência de doença mental na população só tem aumentado. Cronificador porque elege métodos que, usados isoladamente, provam ser francamente nocivos, como a segregação de doentes em hospitais, com internações repetidas. E elitista, porque deliberadamente exclui o acesso das camadas mais amplas da população a técnicas mais eficazes, como a psicoterapia. 2. Denunciar que tal distorção permite florescer uma verdadeira “indústria da loucura”, constituída por gigantescos hospitais, os quais têm na eterna reinternação de doentes mentais, tornados crônicos, uma fonte inesgotável de lucro, financiada principalmente pela previdência Social. Temos razão para acreditar que a alarmante situação, denunciada há cerca de um ano, não mostra sinal algum de mudança. Pelo contrário, a desativação dos próprios da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), o incremento da política de credenciamento, o vertiginoso crescimento do setor privativo e a diminuição das oportunidades de preparação de recursos humanos pintam com cores mais sombrias a situação do setor. A seguir, serão feitas considerações sobre o quadro atual da atenção ao doente mental com base na cidade do Rio de Janeiro, observando-se como se articulam a atuação do Ministério da Saúde, da Previdência Social e o setor privado.

A atuação do Ministério da Saúde A Dinsam, órgão do Ministério da Saúde, antigo Serviço Nacional de Doenças Mentais, foi criada com o objetivo de prestar assistência médica ao doente mental e ditar a política de saúde do setor. Uma das poucas áreas em que o Ministério da Saúde ocupa-se de parte do atendimento médico assistencial às pessoas, a Dinsam parece passar por um processo irreversível de deterioração. Criada em 1941, essa Divisão orientou as políticas do setor e estimulou a construção de frenocômios por todo o país, sendo que o setor público deteve a responsabilidade maior por essa parte especializada da assistência. Além da fixação das políticas e da parte normativa, a Dinsam desincumbiu-se da prestação direta da assistência no antigo Distrito Federal através da Colônia Juliano Moreira, do Centro Psiquiátrico Pedro II, do Engenho de Dentro, do Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, e, posteriormente, do Hospital Pinel. Com a transferência da Capital para Brasília e com a criação do Estado da Guanabara, os hospitais permaneceram sob a administração do Ministério da Saúde, situação diferente das verificadas nas demais unidades da federação. Embora devesse oferecer um atendimento de padrão modelar, próprio para uma instituição que normatiza a assistência, a verdade é que a assistência prestada se caracterizou, com breves e escassas exceções, como retrógrada, ineficaz e aquém do padrão mínimo aceitável. O Hospital Pinel, talvez por estar localizado na Zona Sul carioca e prestar pronto-socorro a uma camada socialmente privilegiada da população, funcionou desde a sua criação em moldes mais modernos, oferecendo uma assistência de melhor qualidade. Tanto foi assim que logo se transformou em um dos principais centros de formação de recursos

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humano, acolhendo estagiários de todo o país; essa situação perdurou até o último ano. No Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no curto período de 1972 a 1974 ocorreram experiências bastante interessantes tanto do ponto de vista técnico, com a introdução de novas formas de tratamento, quanto do ponto de vista de formação profissional, com a instituição da residência médica e o incremento das possibilidades de aperfeiçoamento técnico para as diversas categorias profissionais que atuam nos programas de atenção ao doente mental. Tais experiências não tiveram, porém, longo fôlego. Experiências promissoras em seu início, dotando a Dinsam de atividade acadêmica, propulsora de melhorias no padrão de atendimento, elevando o conceito dos profissionais e da população beneficiaria dos hospitais do Engenho de Dentro, não foram adiante. Injunções políticas, interferências na orientação técnica adotada e mmacartismo fizeram com que esses hospitais regredissem a uma época que se acreditava estar ultrapassada. As técnicas mais liberais e eficazes de tratamento, com psicoterapia, o atendimento familiar, a comunidade terapêutica, e mesmo o internacionalmente conhecido Museu do Inconsciente, considerados subversivos pela maior liberdade e participação que propiciavam ao interno e foram substituídos pelo encarceramento sumário e pela brutal opção do eletrochoque, além das altas doses de medicamentos. Deve-se lembrar, a bem da verdade, que o padrão de atendimento do Hospital Pinel relativamente razoável – por comparação – e esses fugazes ventos inovadores no Engenho de Dentro em nenhum grau transportaram as sementes modernizantes à Colônia Juliano Moreira com seus milhares de internos, insignificante número de técnicos, deixados ao longo do caminho, entregues à própria sorte. Para se ter uma vaga idéia do desamparo a que foram relegados esses infelizes, um grupo de médicos, assistentes sociais e psicólogos, contratados em 1974 como estagiários, foram encarregados de fazer um levantamento sobre o número e a situação dos pacientes ali internados2. Para a perplexidade desses técnicos, dentre os inúmeros absurdos constatados, descobriu-se que o número real de internos era bem maior do que a capacidade a instituição, doentes (?) sem registro, sem prontuário nem tratamento. Para citarmos apenas mais um dado, tendo em vista o número exaustivo de problemas apontados, boa parte dos pacientes não via um médico havia mais de dez anos, o que da indícios do descaso da instituição em relação à recuperação dos pacientes. Isso nos permite, ainda, fazer uma dramática interferência sobre os índices de recuperação naqueles hospitais, posto que a Dinsam não divulga dados sobre período de internação e índice de altas. O fim da residência médica no Engenho de Dentro e a repressão às formas mais modernas de tratamento, não sustaram os programas de estágio, que prosseguiram no Hospital Pinel, foram estendidos ao Engenho de Dentro e, em menor grau, à Colônia e ao Manicômio Judiciário. Entende-se isso, em primeiro lugar, pela dramática carência de profissionais nesses hospitais, o que poderia ser minimizado pela ampliação do número de estagiários não remunerados ou bolsistas sub-remunerados, mas se tornaria mais oneroso com a utilização de profissionais regularmente contratados; em segundo lugar porque, com o afastamento da direção que implementara inovações, estimulando a participação de técnicos e pacientes na condução do tratamento, novos técnicos foram então admitidos para trabalhar “com rédeas curtas” e mantendo o mesmo controle sobre os pacientes. Os técnicos que para ali se dirigiram, em geral recém-formados e em busca de aprimoramento e experiência, acharam-se usados como mão-de-obra substitutiva, farta e barata, nem ao menos recebendo em troca a especialização procurada. Estiolou-se a formação, subverteu-se a experiência, e o estágio para profissionais e estudantes foi oficializado através de concursos para as “bolsa de saúde mental”, com verbas da Campanha Nacional de Saúde Mental, expediente que ao mesmo tempo sub-remunerava o profissional utilizado como mão-de-obra para sanar a crônica deficiência

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de técnicos (o último concurso para o provimento de cargos data de 1957), e mascarava o processo de exploração existente por não reconhecer o vínculo trabalhista, expediente típico de lesão aos direitos do trabalhador assalariado, perpetrado por instituições públicas ou privadas nesses 15 anos de regime autoritário. A partir de então, o peso maior da responsabilidade com a assistência caiu predominantemente nos ombros de estudantes e profissionais denominados estagiários ou “bolsistas”, fórmula mágica através da qual o Ministério da Saúde desconhecia os direitos trabalhistas de mais de duas centenas de trabalhadores. Para evitar discussões estéreis, julgamos relevante ressaltar que não se tratava, absolutamente, de cursos de especialização ou de estágios de treinamento profissional, como demonstravam a inexistência de um programa de ensino, a falta de supervisão e, até mesmo, a assunção de cargos com responsabilidade de chefia por esses trabalhadores que, ademais, cumpriam função de ensino ao orientar a prática dos estudantes que faziam Internato no Hospital Pinel. Não restam dúvidas, pois, tratar-se de uma forma de velar a relação de emprego, escamotear a legislação trabalhista e lesar os direitos desses trabalhadores3. Naturalmente, a progressiva mobilização de amplos setores da sociedade civil e dos trabalhadores, em particular, em prol da reconquista dos direitos usurpados a partir de 1964, teve forte ressonância entre os profissionais da Dinsam4. Alargada a tomada de consciência do esbulho aos seus direitos e criadas as condições para sua organização e mobilização, com a criação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, esses trabalhadores, após insistirem na regularização de sua situação trabalhista e na melhoria da assistência, razões pelas quais se viram acuados por ameaças e punições diversas, até a concretização de demissões, paralizaram suas atividades; foi única maneira encontrada para deixar clara a discordância da parte deles com o tipo de atendimento que vinham sendo obrigados a prestar, especialmente no Engenho de Dentro e na Colônia Juliano Moreira, e exercer legítima pressão no sentido de ver tal situação regularizada. Na ocasião, foi enviado um documento à direção da Dinsam e ao Ministro da Saúde, Sr. Almeida Machado, do qual, entre outras reivindicações, destacamos: 1. Reconhecimento do vínculo trabalhista conforme prevê o cap. V – decreto 60.252, que cria a Campanha Nacional de Saúde Mental, para os técnicos funcionalmente denominados “bolsistas” [...] 2. Regularização da situação trabalhista, conforme determinada a Lei 3.999 de 15 de dezembro de 1961, para os técnicos funcionalmente caracterizados como estagiários, que cumpram carga horário semanal mínima de 20 horas e que tenham tempo de serviço superior a 6 meses. O art. 3º da referida Lei dispõe sobre a remuneração para os médicos ditos estagiários e acadêmicos internos após cumprido esse prazo. 3. Regularização da situação trabalhista dos demais técnicos em saúde mental, em conformidade com o disposto na CLT. 4. Criação da Residência Médica em Psiquiatria, oficializada junto ao MEC, e de acordo com as normas da Associação Nacional dos Médicos Residentes.5 Na realidade, em sua “luta pela dignidade profissional e melhores condições de atendimento à população”6, esses trabalhadores exigiam tão somente o cumprimento da legislação em vigor, tornada letra morta pelo próprio poder público. Data daí o ritmo acelerado de deterioração, até agora irreversível, do atendimento psiquiátrico prestado pela Dinsam, bem como a paralisação dos programas de aperfeiçoamento de recursos humanos levados a cabo, principalmente no Hospital Pinel, e que deixaram seqüelas de extrema gravidade mesmo com a contratação de alguns profissionais pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), pequeno número, considerada a popu-

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lação de internos e o volume de atendimentos outrora prestados nos ambulatórios que até hoje continuam à mostra, desafiando uma solução. Essas seqüelas, conseqüências da irresponsabilidade da direção da Dismam e do Ministério da Saúde, podem ser assim resumidas: 1. Extinção do atendimento psicoterápico à população infanto-juvenil, sem recursos para tratamento particular; 2. Extinção do Ambulatório de Crise do Hospital Pinel, para prevenção de suicídios e atendimento a problemas emocionais prementes; 3. Paralisação do Centro de Informação Toxicológica (CIT) do Bloco Médico – Cirúrgico do Engenho de Dentro; 4. Comprometimento da qualidade do trabalho assistencial dos demais setores, pela sobrecarga de trabalho sobre os trabalhadores que permaneceram incapazes de arcar com as duas centenas de serviços que, mesmo contando com as duas centenas de demitidos, era demasiado7. Não é à toa que o Ministério da Saúde, órgão normativo da assistência médica e que deveria prestá-la em nível modelar, oferece à população uma assistência que, para evocarmos uma palavra que designava certo tipo de doente mental, é sórdida. A Colônia Juliano Moreira, com seus 4.000 internos, parece estar situada fora do tempo, cuja marcha parece ignorar, e cumprir seu inexorável destino de campo de concentração8. O Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro está com seus ambulatórios desativados, pavilhões semi-abandonados e internos assistidos por um número insuficiente de técnicos. O Hospital Pinel, outrora disputado campo de treinamento profissional e dotado de serviços de conceituada reputação, encontra-se semi paralisado. Os hospitais do Ministério da Saúde são hoje, mais do que nunca, baluarte da psiquiatria mais retrógada. Brioche para os ideólogos da privatização; prova da incapacidade da privatização; prova da incapacidade do poder público em prestar assistência médica à população.

A Previdência Social e a solução asilar Ao contrário do que ocorre na área do Ministério da Saúde, onde a assistência é prestada diretamente através da Dinsam, na área previdenciária, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) arca com apenas parte do atendimento ambulatorial, oferecendo a grupos privados, e outros, toda a assistência hospitalar. O destaque, para efeito de exposição, da assistência previdenciária privativista, por equívoco, não marca como poderia uma oposição ao Ministério de Saúde. Pelo contrário, somos levados a acreditar em uma complementaridade entre as duas áreas: na medida em que parece ocorrer uma progressiva e intencional atrofia do Ministério da Saúde, tem-se como conseqüência a retração de sua área de atuação na assistência psiquiátrica direta, ocorre simultaneamente, grande crescimento da oferta de atenção médica por terceiros, através da venda de serviços à Previdência. Ou seja, a retratação do Ministério da Saúde na prestação de serviços, no Rio de Janeiro, coincide com a hegemonia absoluta da atenção previdenciária, entregue a terceiros. Faz-se necessária a pergunta: quem lucra com essa política de saúde?

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Parece que a resposta está diante dos olhos de quem quer enxergar. Isso não quer dizer (desfaçamos logo qualquer equívoco) que apoiemos ou façamos apologias à psiquiatria asiliar prestada pelo Ministério da Saúde ou por quem quer que seja. O problema é que a progressiva desmobilização dos próprios do Ministério da Saúde, longe de representar uma diminuição no índice de reinternação no Rio de Janeiro, apenas mudou o locus, situado agora no hospital privado, cujo objetivo é o lucro e onde o paciente é apenas um meio para isso, uma mercadoria. Bem entendido, a retração da atenção psiquiátrica pelo Ministério da Saúde determinou apenas um repasse do paciente ao lucrativo setor privado. Esse modelo assistencial adotado pela Previdência, entregando a terceiros a responsabilidade pela assistência, proporcionou um verdadeiro boom psiquiátrico, representado pelo vertiginoso crescimento do número de leitos psiquiátricos e, em seu rastro, da população asilar. Seria o resultado do surgimento de demanda reprimida, constituída por pessoas até então sem acesso aos hospitais? Parece tratar-se de algo diferente, todavia. Não temos notícia, pelo menos neste século, de pacientes psiquiátricos sem tratamento por ausência de vagas em hospital. Ao contrário de outras especialidades, em que existem até mesmo filas de pacientes aguardando vagas para tratamento clínico ou cirúrgico em regime de internação, na psiquiatria, os leitos existentes, já no período anterior à adoção da linha privatizante, davam conta da assistência a ser prestada. Apesar disso, entretanto, o credenciamento de leitos foi crescente, fazendo-nos supor que isso era realizado sempre diante da demanda. Coloca-se, então, a pergunta: Qual a natureza dessa demanda? Pergunta difícil de ser respondida, dada a inexistência de estudos mais aprofundados nesse campo; dificuldade essa, acrescida inclusive pela imprecisa delimitação do conceito de doença mental. Isso, porém, não nos impede de adiantar a seguinte hipótese, plausível a nosso ver: o sistema político e econômico, implantado neste país nos últimos 15 anos, pelo que vem provocando de opressão, exploração e miséria, constitui-se como um fator permanente de exclusão do tecido social ao elevar a criminalidade, a morbidade e a marginalização em geral a índices inimagináveis. As instituições de saúde, a psiquiátrica em especial, ao tomarem para si esses marginalizados, enquanto doente, exime a sociedade da responsabilidade de sua produção. Ou seja, o processo de desenvolvimento adotado no país, alienante e excludente, deixa à sua margem uma parcela de indivíduos que não suportaram o peso da marcha. A instituição médica, ao medicar o problema, psiquiatrizá-lo ao inseri-lo nas classificações nosográficas, esconde a relação causal existente, prestando-se ao papel ideológico de escamotear a questão da produção social da doença. A contrapartida da dissimulação ideológica oferecida ao sistema está representada nos ganhos que aufere, em decorrência da linha privatizante adotada, tendo o Estado abandonado sua função de produtor de direto aos serviços de saúde. Para que não restem dúvidas: estamos falando da cumplicidade entre o Estado, que deveria representar a todo heterogêneo da sociedade, e a parcela dominante desse todo, representada aqui, nesse setor específico do sistema, pelos empresários da saúde. De um lado, o Estado ao adotar um modelo político-econômico marginalizador de mais de 70% da população em relação aos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico, possibilita um aumento econômico, possibilita um aumento dos índices de morbidade e, com ele, de doenças mentais, ao mesmo tempo em que privatiza a assistência; de outro, esses setores privados, beneficiados pela linha privatizante e que, em contrapartida, isenta a organização social imprimida pelo Estado, pela responsabilidade da produção das doenças, ao medicar ou psiquiatrizar o problema.

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Para se ter uma idéia a respeito da produção desse tipo especial de marginalizados9, o doente social e o papel ideológico de encobrimento da medicalização, vale consultar o ensaio Assim enlouquecem nossos operários10, publicado recentemente, que aponta como alternativa para fugir da fome e da miséria, “a loucura como estatuto”, isto é, uma condição que permite ao trabalhador receber o benefício doença da Previdência e fugir da exploração do trabalho. Ainda sobre a natureza desse tipo de marginalização continuam ou autores: Ele está alienado do controle social e do controle da produção, produz sem prazer e sem nenhum outro ganho secundário de origem psicológica, só é motivado pela permanente necessidade imediata de sobrevivência. É máquina submetida a stress contínuo, a desgaste oriundo das massacrantes jornadas de trabalho, o que ganha não dá nem para a alimentação e, portanto, não há a mínima possibilidade de lazer, as férias são vendidas em troca de um salário extra, a vida é um imenso e doloroso cansaço. Insistindo ainda na caracterização dessa demanda, para que não pairem dúvidas sobre a cumplicidade que denunciamos, entre Estado e empresários da saúde, citamos uma matéria, publicada no último boletim informativo do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro11, sobre a região de Paracambi (RJ) que, diante do fechamento de sua maior indústria e o aumento extraordinário do índice de desemprego e miséria: assiste à expansão de um hospital psiquiátrico, que lentamente vai absorvendo, no seio acolhedor da medicina mental, os desempregados e suas famílias: o hospício substitui a fábrica; o desemprego e a miséria se acomodam no diagnóstico psiquiátrico. Considerada assim a natureza da demanda12, entende-se o que significa o crescimento do número de leitos psiquiátricos enquanto pólo de atração para essa massa de marginalizados sociais, feitos doentes, e que encontram no Estatuto do Doente Mental uma forma de subsistência, através do benefício-doença. A internação representa, para o paciente, a prova da gravidade de seu estado de saúde e a garantia do recebimento do auxílio e, para o hospital, lucro certo e garantido no ato do credenciamento com a Previdência. Acusada a linha privatista vigente e caracterizada a demanda, faz-se mais claro o predomínio asilar em detrimento do tratamento ambulatorial, implantado nos últimos anos, embora sabiamente ultrapassado e mais oneroso. Ultrapassado porque, ao invés de contribuir para o ponto restabelecimento do paciente, contribui justamente para institucionalizá-lo ao cronificar as suas mazelas; e oneroso porque comparado ao custo do tratamento realizado em caráter ambulatorial (mais eficaz inclusive e, por isso, menos interessante do ponto de vista econômico) é o que conta dentro da lógica capitalista para as empresas médicas13. Estas exercem, através da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), uma influência na fixação das linhas políticas para a saúde, sem a contrapartida da influência do segurado. Daí a orientação vigente, nitidamente privativista e empresarial, autocrática e antipopular, no sentido que, se atende às pressões dos setores empresarias, não responde às necessidades de saúde da população. O próprio Ministério da Saúde aponta o quadro da assistência psiquiátrica no Brasil da seguinte forma: 1. O sistema assistencial brasileiro, baseado na solução custodial, que consiste na internação em massa dos pacientes em hospitais psiquiátricos, está inteiramente superado, pois seu abandono vem sendo preconizado há cerca de trinta anos.

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2. As internações em hospitais psiquiátricos do país são feitas, em proporção apreciável, de modo indiscriminado sem a devida triagem especializada. 3. As despesas com hospitais psiquiátricos alcançam 90% dos custos operacionais totais, havendo Estados que não utilizam recursos em serviços estra-hospitalares.14 O Ministério da Saúde reconhece, pois, a natureza anômala e indefensável da tendência asilar da assistência psiquiátrica ao privilegiar o asilo, em detrimento do ambulatório e ao estimular o uso abusivo do leitor hospitalar. Dessa forma, o índice de internação em relação ao número de consultas efetuadas superam qualquer estimativa técnica. Para se ter uma noção em números, prova irrefutável de que o interesse do segurado ou de que os parâmetros ditados por estudos idôneos ficam em segundo plano diante da lógica empresarial, confrontamos a estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual “o percentual de admissão hospitalar deverá atingir 3% das consultas psiquiátricas”, com a estimativa da Previdência que calcula em 13,7% as consultas psiquiátricas que resultaram em internações em 1975 e em 36% o cálculo referente apenas ao Estado de São Paulo em 197315. Ao menos no que diz respeito a discursos, publicações, mensários estatísticos, etc, não têm o Ministério da Saúde ou a Previdência como negar a índole perversa de um modelo voltado exclusivamente a interesses alheios à recuperação da saúde do segurado. No que diz respeito à prática, entretanto, aliam-se na cumplicidade ao estimularem a medicina de mercado, omitirem-se na apuração das denúncias às distorções apontadas e propiciarem o credenciamento de crescente número de leitos hospitalares construídos com financiamento do Fundo de Apoio Social, recurso público, portanto. Em dados de 1973, tímidos para refletir a aberração de hoje, as ações de saúde do Ministério da Previdência, quanto a gastos, se realizam em mais de 90% através do setor privado, dos quais 80% em hospitalização16. Atualizem-se esses dados, considerando a privatização crescente e, ademais, considere-se que nessa área especializada a Previdência não conta com nenhum próprio e teremo, na devida dimensão, o caráter perverso, anacrônico e cúmplice, que os setores público e empresarial conferem ao modelo assistencial. Essa característica, nesse setor especializado, reflete e complementaridade e adequação entre o sistema político-econômico alienador-enfermizante e a prática médica psiquiatrizante. Não seria acaso necessário perguntarmos: a existência de instituições que acolham em seu seio esse marginalizado social, diagnosticado como doente mental, encobrindo com o manto de seu reconhecimento científico e a reivindicação da propriedade de sua intervenção técnica, os mecanismos socioeconômicos da marginalização? Não integrará, organicamente, um sistema calcado na defesa de interesses particularistas e na repressão e marginalização daqueles que se lhes opõem? É justamente a confirmação da existência da organicidade dessa relação, que estivemos discutindo, que faz do modelo assistencial o que ele é hoje. Indicada a inclinação estrutural da assistência – perversão estrutural – e de como se dá nele a inserção da instituição psiquiátrica, faz-se necessária, ainda que em rápidas pinceladas, uma observação sobre o papel desempenhado pelos técnicos de saúde mental e suas condições de trabalho. Como se sabe, o modelo capitalista de desenvolvimento impôs não apenas uma alienação do trabalhador em relação aos instrumentos de produção e ao produto de seu trabalho, mas também determinou um rumo na evolução das relações de produção, no sentido de uma socialização cada vez mais ampla da atividade produtiva. Ora, julgando ter ficado claro o exposto até aqui, se a prática médica é organizada em termos empresariais e obedecendo à lógica

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do mercado, nenhuma estranheza deve causar a verificação de que uma evolução no mesmo sentido tenha ocorrido na medicina17. De fato, o predominante no cenário da assistência médica são as clínicas, hospitais, etc, geridos como empresas, voltadas para o lucro como qualquer empresa capitalista, transformando o médico e demais técnicos em trabalhadores assalariados. Empregado, trabalhará cumprindo orientação da empresa, atribuindo prioridade ao lucro financeiro do patrão, o que significa aumentar o período de internação, efetuar internações desnecessárias e outros expedientes, sem contar aqueles que correm o risco de serem sumariamente dispensados18. Não é por outra razão que o total de intervenções em psiquiatria no país, na área previdenciária, chegou a 305 mil quando a estimativa da Previdência ficava em 105 mil, calculando-se em bilhão o gasto desnecessário, no ano de 197719. Como desvincular esse tipo de distorção do processo de aviltamento da dignidade do profissional acuado diante da pressão dos empresários, sob a angustiante necessidade de garantir o emprego? Assim se explicam as condições de exploração a que os profissionais estão submetidos e que, por sua vez, está intimamente relacionada com o tipo da assistência prestada: 1) o empresário, dispondo de forças de trabalho em excesso, sustentado pela proliferação indiscriminada de escolas médicas, impõe sua lei ao mercado, explorando o médico e interferindo em seu trabalho. Impõe critérios de admissão, altas, tratamentos e etc, que visam ao lucro e não à cura; 2) o padrão de atendimento, em conseqüência, é o pior possível, com o tratamento sofrendo a intervenção de fatores extra técnicos, não raro danosos ao paciente; 3) o médico, impotente, é aviltado: primeiro, na sua autonomia técnica, ao se ver constrangido a adotar critérios com os quais não concorda, cassada sua liberdade de escolha do tratamento adequado, independentemente do fato de a empresa receber mais ou menos por ele; segundo, em sua condição de trabalhador, ao ver freqüentemente desrespeitados os direitos trabalhistas elementares. Quando o profissional mostra discordância com o papel que lhe obrigam exercer, invariavelmente perde o emprego. E os casos de demissão, sobretudo nesses dias em que, depois de anos de severa repressão, os médicos e demais técnicos voltam a discutir a questão da assistência psiquiátrica e a reivindicar melhores condições de trabalho, são cada vez mais freqüentes. Situam bem o problema das demissões e ameaças diversas, aqueles que as consideram como: investida dos empresários da loucura contra aqueles que se negam a compactuar com as condições vergonhosas de trabalho e com o precário atendimento dispensado aos pacientes.20 Diante desse quadro sombrio, onde se combina o desrespeito aos direitos e à dignidade do profissional, o tratamento repressivo aos pacientes e o super-faturamento das empresas, a Previdência cruza os braços, abdicando à sua responsabilidade, a não ser que atribuamos seriedade e eficácia aos relatórios que locupletam as gavetas dos burocratas, ou as prosaicas ‘incertas’ do atual titular da pasta. O mal de que sofre o modelo médico assistencial e, em particular, a assistência psiquiátrica, é estrutural. Não se trata apenas de evitar distorções, recuperar ou aperfeiçoar o atual modelo. A perversão estrutural que denunciamos tem seu ponto de partida na abdicação, pelo Estado, à prestação de um serviço básico: o serviço de saúde, direito inalienável do homem. Ao delegar sua prestação a terceiros, o Estado mostra, na área específica da saúde, a feição particularista que vem assumindo nos últimos quinze anos.

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NOTAS*

1. Jornal do Brasil, 2/9/78. 2. Dados obtidos com profissionais que fizeram parte desse grupo de trabalho. O relatório final desse levantamento foi arquivado pela Dinsam. 3. Para melhor caracterização da situação dos profissionais denominados “bolsistas”, consultar o artigo Subemprego na Dinsam, publicado no Sinmed, abril de 1978. p. 6 (RJ). 4. Ver documento enviado pelos “bolsistas” e estagiários, datado de 6/6/78, ao Diretor da Dinsam, exigindo a readmissão de três colegas demitidos, por denunciarem as precárias condições da assistência e a irregularidade do vínculo trabalhista. A resposta a este documento foi a demissão imediata de mais 80 profissionais. 5. Documento enviado ao Ministro da Saúde em julho de 1978. 6. Idem. 7. Nota oficial do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, em O Globo, setembro de 1978. 8. Jornal do Brasil, 23/9/79. 9. A marginalização social gerada pelo modelo de desenvolvimento a que o país vem sendo submetido a partir de 64 se manifesta ao aumento da criminalidade, dos menores abandonados, uso de drogas, etc. A doença mental representa apenas uma das formas de marginalização. 10. Revista Rádice, pág. 21, nº 10, ano II, jul-agost, 1979. 11. Boletim Informativo do M.T.S.M., nº 5, agosto de 1979. 12. A caracterização da demanda, feita aqui superficialmente, está a exigir estudos mais aprofundados. Tornado doente mental pelo trabalho ou excluído do processo de produção, marginalizado e acolhido numa instituição psiquiátrica, essa diferença não tira a validade da nossa argumentação. 13. “Que o setor privado mantenha a situação pela recusa em investir em ambulatórios compreende – se facilmente porque a consulta médica que irão vender ao Inamps custa Cr$ 86.00 e o leito hospitalar 5.000 ao mês. Apesar disso, em alguns Estados como Pernambuco e São Paulo, um sistema ambulatorial privado começa – se a estruturar, Talvez nesses casos o ambulatório e hospital psiqiátrico estejam se retro alimentando não tem que prove aos empresários que os ambulatórios podem ser lucrativo”. Santana, S. A Situação da Assistência Psiquiátrica no Brasil. III Encontro Nacional de Assessores de Psiquiatria do Inamps/MPAS, Porto Alegre, RS, outubro de 1978, mimeografado. 14. Brasil, MS. Política Nacional de Saúde, Brasília, 1973. 15. Gentile de Mello, C. A Irracionalidade da Privatização da Medicina Previdenciária. Revista Saúde em Debate, nº 3, 1977, SP. 16. Gentile de Mello, C. Perspectivas de Medicina da Previdência Social, Ver. Paulista de Hospitais, 21(12):54046, dez. 1973, SP.

* As citações do presente documento foram mantidas na formatação da publicação original.

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17. Na psiquiatria a socialização do trabalho é favorecida ainda mais por ser a assistência desempenhada por uma equipe multidisciplinar. 18. Sinmed, jun-jul., 79, pág. 13, RJ.1 19. Gentile de Mello, op. Cit., 1973. 20. B. I. do M.T.S.M., op. Cit., nº 5.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

A crise de dominação no sistema público de saúde The domination crisis in the Brazilian public health system

Arlene Laurenti Monterrosa Ayala

1

Mestre em Saúde Pública pela

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); enfermeira da Secretaria

1

RESUMO A crise atual das instituições públicas de saúde é evidenciada pela freqüência sempre crescente com que surgem notícias, veiculadas na imprensa

Municipal de Saúde de Joinville,

escrita, manifestações de insatisfação dos usuários e trabalhadores da saúde.

(SMS).

Procurando compreender melhor essas manifestações, este artigo examina o

[email protected]

enfraquecimento dos mecanismos de dominação/controle dessas instituições sobre os trabalhadores de saúde e população. Em segundo lugar, apontam-se as formas de coerção adotadas por essas instituições em situação de oposição e conflito. E, finalmente a necessidade de um controle verdadeiramente democrático sobre o setor é reafirmada. Foram utilizadas como prova da situação atual de crise no setor, notícias de jornais de difusão nacional e regional. PALAVRAS-CHAVE: Dominação-subordinação; Participação social; Sistemas de saúde; Setor público.

ABSTRACT The current crisis in the Brazilian public health institutions becomes evident through the users’ and healthcare workers’ manifestations of dissatisfaction shown in the increasing number of news in the press. Aiming at understanding those manifestations, this paper analyzes the institutions’ weakening of the control/ domination mechanisms over healthcare workers and the population. The ways of coercion adopted by some institutions in situations of conflict and opposition are herein pointed out. Finally, this paper also reinforces the need of a true democratic control over the health sector. As a means of highlighting the current situation, news printed in both local and national newspapers were used. KEYWORDS: Dominance-subordination; Social participation; Health systems; Public sector.

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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

I N T R O D U ç ão

escrita às quais, muitas vezes, não damos nenhuma importância e sequer percebemos as manifestações de uma crise ali explicitadas.

Como pode a 8ª Conferência Nacional de Saúde e o movimento pela Reforma Sanitária dos anos 1970 e 1980 ter tido sucesso em identificar um modelo teórico de atenção à saúde com base em premissas e diretrizes da universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação da sociedade, mas não nas formas e modalidades de transição para que tais premissas e diretrizes fossem alcançadas? É tarefa de uma teoria de transição articular as questões específicas do processo social em andamento,

O trajeto problemático do setor de saúde Durante o percurso de organização do setor saúde no Brasil, a função da participação na definição das políticas de saúde foi alienada dos setores da sociedade e transferida para as instituições públicas. Assim, essas instituições adquiriram o poder de aglutinar os trabalhadores de saúde e setores da sociedade num padrão hierárquico estrutural e funcional segundo um critério que define a maior ou menor participação no controle e definição dessas políticas.

identificando com precisão suas limitações. Desse modo,

A centralização do poder de decisão nos níveis

as restrições da teoria da Reforma Sanitária com relação

centrais de comando e a arrogância dos especialistas em

aos problemas da transição hoje se afirmam, primor-

planejamento e gestão em saúde não têm sido capazes de

dialmente, pela ausência de uma estrutura organizativa,

imprimir a eficácia, no sentido de controlar o número de

composta por indivíduos livremente associados capaz

pessoas que vêm adoecendo e morrendo diariamente.

não só de negar a ordem dominante, mas também de

Práticas determinadas em tais bases têm privado os

exercer as funções de participação na efetivação dos ide-

trabalhadores do setor e usuários, de participar efetiva-

ais da Reforma Sanitária. A participação, como resultado

mente na definição das políticas de saúde, o que vem

de tradições culturalmente estabelecidas na sociedade

ampliando consideravelmente a incapacidade do setor

no intercurso material, é o elemento estratégico para

em responder às necessidades básicas de saúde dos indiví-

a reestruturação dos rumos da tão desejada Reforma

duos e da coletividade. A prova disso é a crise estrutural

e retomada do compromisso com os valores de uma

da saúde, que já vem ocorrendo há algum tempo e, a

sociedade produzida na própria realidade.

cada dia, aprofundando-se, ainda que sua intensifica-

Hoje, somos testemunhas da atual crise pela qual

ção não assuma a forma de “grandes confrontações”. A

o setor público de saúde vem passando. Tal crise, nem

seguir, mostraremos trechos de manchetes publicadas

preciso dizer, vem violando o direito mais elementar dos

em jornais que explicitam a crise.

indivíduos: decidir sobre sua própria existência. A leitura de jornais com informações sobre o nosso dia-a-dia pode constituir uma fonte importante para a explicitação da crise e dos embates políticos contemporâneos do setor da saúde. Nessa perspectiva, procurou-se mostrar um olhar sobre o nosso cotidiano e uma leitura mais atenta das informações veiculadas pela imprensa

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008

Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidos A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro fechou, ontem de manhã, a Maternidade Leila Diniz, em Jacarepaguá, onde um bebê morreu no início do mês e outros três foram contaminados, supostamente por uma bactéria. [...]. Há um ano, outros cinco bebês também adoeceram por causa de uma bactéria e três

AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

deles morreram, após inundações na maternidade (Albuquerque, 2005). Outra notícia veiculada no Jornal Folha de São Paulo expõe a gravidade da situação atual. Em nome da necessidade de racionalização, estuda-se de que forma poderá

Ironicamente, porém, a padronização do trabalho intelectual ‘no topo’ das hierarquias técnicas, o monopólio da informação e decisão à ‘democracia representativa’ através da institucionalização e cooptação dos Conselhos Municipais de Saúde, entre outras questões e o acesso limitado dos indivíduos ao acesso universal,

ser negado aos pacientes com quadro clínico grave o

trazem consigo uma ‘bomba social’ em forma de uma

acesso a tratamentos que poderiam salvar suas vidas.

constante insatisfação da parte dos usuários em gran-

Constata-se que, na tentativa de resolver o problema do

de escala, à medida em que o sistema não consegue

déficit do número de leitos de UTI, o governo propõe a

absorver as demandas por serviços e que as formas de

restrição do acesso aos pacientes, sem que em momento

organização, saídas da lutas autônomas, começam a se

algum faça referência às reais necessidades de ampliação

submeter às formas de organização da classe gestora,

do número de leitos. Segundo o presidente da Associação

sendo os representantes do corpo social transformados

de Medicina Intensiva Brasileira (Amib):

em novos gerentes da instituição. A contradição é estabelecida entre a forma vigente

existe oferta de 21,5 mil leitos de UTI em todo país, no entanto, seriam necessários no mínimo 26 mil vagas, embora o número ideal, segundo recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de no mínimo 44 mil. (apud Colluci, 2005, p. C1). Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação O Ministério da Saúde vai criar normas que permitam selecionar o tipo de paciente que ocupará um leito de UTI. A idéia é que entrem e permaneçam nas unidades de terapia intensiva das redes públicas só pacientes com chances reais de recuperação. Para isso, serão estabelecidos indicadores de prognóstico, baseados em evidências científicas, utilizadas tanto na internação como na alta [...] (Colluci, 2005, p. C1).

de controle e a perda dos comandos centrais do setor do controle e da dominação, dado o funcionamento problemático do setor, que produz um padrão de atendimento desumano e com baixa resolutividade aos grupos populacionais. A prática de dominação do setor saúde vem encontrando resistência da população, que mostra sua insatisfação através da imprensa, em função do difícil acesso às tecnologias em saúde, desde as mais simples até as mais complexas; do outro lado, há uma resistência por parte dos trabalhadores de saúde, em conflito com as formas de organização do trabalho impostas pela estrutura central de comando, que exigem vários pressupostos operacionais e técnicos; destaca-se, sobretudo, o

O absurdo, na notícia acima referida, é a delega-

pressuposto de perseguição de eficiência, num contexto

ção de responsabilidade, imposta pelos burocratas aos

de pouca valorização dos trabalhadores e sobrecarga de

médicos, de condenar à morte. Essa delegação desloca

trabalho.

a responsabilidade do setor de salvar ou melhorar a

O insucesso dos programas de saúde reflete na

vida para os profissionais médicos. Desses exemplos,

prática das unidades de saúde responsáveis pelo atendi-

que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente

mento aos indivíduos e à coletividade. A superlotação

que não se poderia chegar a outra conclusão que não

dos prontos atendimentos dos hospitais e os agravos à

a da possibilidade de esta crise ser posta como o limite

saúde dos portadores de doenças crônicas que poderiam

da própria vida.

ser prevenidos, e exigem tratamentos mais agressivos,

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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

podem ser um indicativo da baixa resolutibilidade desses

nal de saúde, a responsabilidade pela ‘leviandade’ ao

programas.

afirmar que o mesmo só presta concurso público para

Igualmente significativo é o modo persistente com

‘testar seus conhecimentos’, distorcendo a verdade. Essa

que esses gestores acreditam que novos programas de

resposta não pode identificar as reais causas do não-

saúde, contempladores dos efeitos dissociados de seus

preenchimento das vagas disponibilizadas. Uma delas,

determinantes, possam resolver os problemas de saúde

a falta de atratividade pela remuneração do trabalho, já

da população sem que sejam consideradas as dimensões

é vista como resultado da política de não-priorização

geradoras do adoecimento: a econômica, a política e a

da saúde nas ações dos governos. Assim, se evita não

social. Ou ainda, como se pode constatar na manchete

apenas enfrentar as causas, mas simultaneamente essa

a seguir, atribuir a culpa da ineficácia do sistema ao

evasiva torna-se uma conveniente ‘justificada’ perante

fato de os especialistas médicos realizarem concursos

a população.

em instituições públicas simplesmente para testar suas capacidades profissionais, ignorando que, para esses profissionais, os salários oferecidos pelo sistema público

Repressão ao dissenso

estão aquém do mercado. Para Pierantoni (2001), essa

Quando o setor de saúde não consegue enfrentar

remuneração desloca esses profissionais para setores

manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, impor sua

ligados à assistência supletiva à saúde.

‘tolerância repressiva’, entra em cena a defesa deliberada da repressão. A concretude dos fatos evidenciados nos

Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde [...] A mãe de Pablo, de um ano e um mês, deveria levar o filho a cada 30 dias no médico para acompanhar a doença do filho, que sofre de sopro no coração. Desde janeiro, porém, ela não consegue vaga no posto de saúde da Vila Nova.[...]. Desde o início do ano, apenas uma especialista está atendendo a população do bairro na parte da manhã. Gerente se justifica Por lei, não podemos renovar os contratos, temos de chamar médicos aprovados no concurso público de 2004. A gerente complementa: ‘Há quem faça o concurso só por fazer, da mesma maneira que prestam vestibular para testar a própria capacidade’ [...] (Weber, 2005, p. 6).

leva a abordar com especial atenção uma pequena parte da história dos trabalhadores de saúde da instituição na qual a autora trabalha há tantos anos, sobretudo em razão de práticas dessa instituição pública, que têm como base uma determinada forma de resposta ao dissenso na qual a dominação deve sempre prevalecer. A atitude de expor a situação, de certa forma representa uma fonte de dados e, espera-se que, com esse procedimento, seja possível esclarecer que o episódio ocorrido no final do ano de 2003 e durante o ano de 2004 teve substancial importância no que diz respeito ao estudo do tema proposto. As manchetes de jornal a seguir, ilustram muito bem o que hoje vivenciamos

Vista de outra forma, a justificativa explicitada acima no jornal do município de Joinville, Santa Catarina, A Notícia, deixa claro que o setor público de saúde nem sempre representa uma alternativa profissional atrativa e, por isso, não logra sucesso no preenchimento de seus quadros. A resposta dada pela gerente dissimula a falta de atratividade, jogando, mais uma vez, ao profissio-

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no setor: Perseguição e política Uma das fiscais que prestou depoimento ontem na CEI que investiga denúncias contra o setor de vigilância sanitária, da Secretaria de Saúde de Joinville, disse que foi vítima de perseguição por parte do chefe hierárquico, Domingos Alacon [...] (Neves, 2003, p. 8).

AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da saúde [...] A secretária municipal de saúde, Tânia Eberhardt, admitiu ontem ter conhecimento de que o ex- chefe da vigilância à saúde, engenheiro Domingos Alacon, era sócio de uma empresa que poderia ter afinidade com o setor que ele dirigia [...]. Nos depoimentos anteriores, dois fiscais disseram sentir-se constrangidos ao autuar empresas que eram clientes do Centro de Assistência Integral ao Trabalhador (Cait), empresa de Alacon. ‘Todos sabemos que as pessoas, às vezes, procuram diretamente as instâncias superiores, mas isso não é nenhum crime’, disse a secretária, sobre o fato de empresários não quererem falar com os fiscais, mas diretamente com o ex-chefe do setor [...] (Junges, 2003, p. 5).

trabalhadores de saúde1, relaciona-se à legitimação de

Os fatos ocorridos na Secretaria Municipal de Saúde

da, por intermédio das instituições de direito privado,

de Joinville despertaram na autora uma profunda inquie-

denominadas de Organizações Sociais (OS). Portanto,

tação a respeito das questões dos interesses explicitados

a política atualmente nada mais é que a aplicação de

pelos gestores de saúde, indignação com a injustiça e a

medidas utilizadas como instrumento de manipulação

opressão para com os trabalhadores de saúde que tive-

do corpo social em detrimento de seu desenvolvimen-

ram a coragem de denunciar o uso da estrutura pública

to, sendo também de sua responsabilidade responder

pelos setores privados e, tristeza em relação aos 1.700

sistematicamente às crises do sistema.

tais práticas por meio da sujeição desses trabalhadores a processos disciplinares.

Ação política como expansão do setor privado As matérias jornalísticas a seguir expõem, de forma reveladora, que as formas de controle indireto das decisões são obrigadas, em função dos grandes interesses de expansão dos setores privados, a permitir um controle direto, através de representantes de grandes empresas aos mais elevados postos políticos do executivo, ou ain-

trabalhadores de saúde e Conselho Municipal de Saúde

Vejamos outra manifestação da mídia na qual as

que se omitiram, permanecendo em silêncio e alheios

estratégias de ocupação privada das macroestruturas

perante os acontecimentos da época.

afinada com os princípios de expansão encontram seu

Tais acontecimentos sugerem uma análise inquietante, primeiro por tratar-se de uma tentativa de colocar as instituições públicas a serviço dos setores privados e, segundo, por tornar-se evidente que o fato foi totalmente ignorado pelos setores representantes da população, principalmente pelo Conselho Municipal de Saúde e pela Comissão Municipal de Saúde do Trabalhador, esta última composta por sindicatos de trabalhadores. Isso nos leva a concluir que esses setores não possuem um projeto político voltado para o interesse coletivo, ou talvez que não possuam projeto político nenhum ou po-

equivalente também nas microestruturas. Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar repasses ilegais [...] o prefeito de Itabuna, Geraldo Simões (PT), foi acusado pelo Ministério Público de efetuar repasses ilegais (no total, R$ 7 milhões) para a Aias (Associação Itabunense de Apoio à Saúde). [...] ‘As transferências são ilegais e configuram, em tese, ato de improbidade administrativa, que causa prejuízo ao erário’, escreveu o procurador [...]. Segundo o promotor, a irregularidade está no fato de uma entidade privada, sem fins lucrativos, gerir recursos do governo [...] (Martinez, 2003, online).

dem estar sendo cooptados pelos interesses dominantes no poder. Por último, pode-se constatar que a defesa da

O modo como a ação política tem sido utilizada

intolerância institucionalizada, na forma de punição dos

para a expansão do setor privado é ainda mais revelador,

Os três trabalhadores de saúde que denunciaram as irregularidades na Secretaria Municipal de Saúde foram transferidos e respondem ou responderam por processo administrativo interno. Um deles sofre de distúrbios psiquiátricos e se encontra em tratamento. 1

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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

mesmo quando tais ações são desvirtuadas e apresentadas

A necessidade de um controle social

como interesse da sociedade. Na manchete a seguir cons-

Se há necessidade de retornar aos princípios origi-

tatamos esta revelação, à medida que o atendimento das

nais da Reforma Sanitária é imprescindível uma análise

reais e prioritárias necessidades da população não se cons-

da forma como se instituiu o controle social do Sistema

titui pré-condição para o financiamento das empresas do

Único de Saúde (SUS). A lei 8.142 de 28 de dezembro

setor privado, prestadoras de atendimento em saúde.

de 1990 instituiu os conselhos e as conferências como instâncias de controle social do SUS (Radis Dados,

Governo Lula cria programa de apoio financeiro para os planos de saúde O governo Luiz Inácio Lula da Silva prepara medidas de socorro financeiro para as empresas de planos e seguros de saúde, o polêmico setor que reúne 1.797 operadoras e responde pela assistência a 40,1 milhões de brasileiros. A intenção é criar duas linhas de crédito, ambas com recursos do mercado financeiro, a princípio de duas instituições estatais[...]. Uma das linhas servirá para estimular fusões e aquisições. [...] Se aprovada, ela poderá criar monopólio no mercado, diz Arlindo de Almeida, presidente da Abramge[...]. Segundo Cardoso, os principais grupos de setor, o de operadoras e seguradoras de saúde, perderam clientes nos últimos quatro anos, [...] (Leite, 2005, p. C1).

2005). Ao analisar esse importante aspecto da proposta, deparamo-nos com grandes dificuldade por entendermos que a instituição de uma entidade jurídica não garantirá o controle social, e pela completa transformação dos ideais da Reforma Sanitária em uma realidade que substitui a participação coletiva dos indivíduos livremente associados pela participação forçada de homens governados por uma força política que lhes é alheia, na forma dos Conselhos Municipais e Locais de Saúde. Sob tais circunstâncias, cabe ao movimento pela Reforma Sanitária refletir se a institucionalização do controle social tem levado à sustentação e legitimação das aspirações da sociedade ou do sistema. Estamos

A medida acima, proposta pelo atual governo, visa

convictos de que as aspirações do corpo social só podem

equilibrar as enormes perdas do setor privado. Conse-

ser plenamente estabelecidas se as condições para sua

qüentemente, ela prescreve a transferência de subsídios

realização forem expressas concretamente, na própria

públicos a esses setores. Essas medidas políticas têm

realidade.

servido, portanto, para responder às crises das instituições privadas e aos ditames do Capital Monopolista, numa freqüência crescente. Não há dúvidas de que no sistema atual se desenvolve uma crise estrutural em sua

CONSIDERAÇÕES FINAIS

totalidade, hoje manifestada através do crescente e contínuo distanciamento entre os interesses da maioria da

Quando a sobrevivência dos indivíduos está ame-

população e das estruturas do sistema, de maneira que

açada, e de fato está, pela estrutura pública ineficiente,

as perturbações acentuam-se e a observação a ser feita

ineficaz, corrupta e pela administração, das instituições

refere-se ao fracasso evidente das instituições públicas e

públicas e privadas, inadequada e descomprometida com

privadas no enfrentamento dos problemas da socieda-

o bem-estar da sociedade, a saída é a mudança das regras

de. E isso nos faz evidenciar a necessidade urgente de

do jogo social; é colocar os indivíduos no controle dos

um controle social que garanta uma maior eficácia do

seus interesses. Reconhecer essa necessidade significa

sistema público de saúde e, portanto, a melhoria das

não ser condescendente com as políticas atualmente

condições de vida dos indivíduos e da coletividade.

praticadas pelas instituições, que privilegiam o capital e

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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde

utilizam medidas manipuladoras e repressivas, além de imporem a penúria, a falta de alternativas, a humilhação e a miséria aos indivíduos, descumprindo, com rigor, o seu objetivo. E isso nos faz retornar ao corpo de nosso trabalho. Caracteriza-se aqui que no passado, os defensores da Reforma Sanitária discursaram em prol de uma política antiliberal. Agora, precisam retomar,com o mesmo vigor a análise da conjuntura atual. Deve-se considerar aspectos que nos limitamos a simplesmente mencionar, como, por exemplo, emancipar as ações coletivas dos interesses econômicos e conceber programas e instrumentos de ação sóciopolíticos elaborados pela própria realidade. Assim, as instituições não devem ser definidas em detalhe antes que sua articulação prática aconteça, mas devem ter como pressuposto as necessidades e, portanto, a flexibilidade das demandas sociais. O último ponto a enfatizar é o controle social, que deverá incorporar o poder político de decisão com o corpo social, dando origem a uma ação política determinada pelos interesses

Junges, L.S. Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da Saúde: secretária defende sanitarista acusado de improbidade em depoimento a vereadores. A Notícia, Joinville, p. 5, 17 de dezembro, 2003. Leite, F. Governo Lula cria programa de apoio financeiro para os planos de saúde. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C1, 24 de abril, 2005. Martinez, M. Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar repasses ilegais. Folha de São Paulo, Agência Folha Salvador, 20 de maio 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2005.

Neves, A. Perseguição e política. A Notícia, Joinville, Cadernos AN Cidade, p. 8, 13 de dezembro 2003. Pierantoni, C.R. As reformas do Estado, da saúde e recursos humanos: limites e possibilidades. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 341-60, 2001. Radis Dados (Reunião, análise, difusão de informação sobre saúde). Crise da saúde acende alerta no SUS. Jornal do Radis, Rio de Janeiro, 33, p. 10, 2005.

coletivos da sociedade. Weber, B. Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde: desfalque de médicos se arrasta desde dezembro, quando venceram os contratos. A Notícia, Joinville, Cadernos AN Cidade, p. 6, 9 de abril, 2005. Recebido: maio/2008 Aprovado: nov./2008

R E F E R Ê N C I A S

Albuquerque, R. Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 abril 2005. Colluci, C. Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C1, 11 de abril, 2005.

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ARTIGO ORIGINAL

/ ORIGINAL ARTICLE

François Dagognet, por uma nova filosofia da doença François Dagognet, for a new philosophy of disease

Sabira de Alencar Czermak

1

Psicanalista; mestranda em Saúde

RESUMO O texto pretende apresentar o filósofo, psiquiatra e epistemólogo francês

Coletiva no Instituto de Medicina

François Dagognet, ainda pouco conhecido no Brasil apesar de sua vasta obra

1

Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

transdisciplinar que compreende mais de cinqüenta livros com temas diversos e

[email protected]

de grande importância, na atualidade. Aluno de Georges Canguilhem, Dagognet retoma problemáticas tais como normal/patológico, corpo/vivente, distanciando-se em alguns pontos de seu mestre por estar inserido em um novo contexto de progresso científico e tecnológico, com novas pautas de discussões. Sempre atento à aplicação dos saberes (médico, jurídico, filosófico, estético) na realidade, esse pesquisador traz imensa contribuição para o campo da saúde. PALAVRAS-CHAVE: Vitalismo; Normatividade; Epistemologia; Corpo.

ABSTRACT This article aims to present the French philosopher, psychiatrist and epistemologist François Dagognet, still unknown in Brazil despite his transdisciplinary work that includes more than fifty books and a wide variety of important nowadays themes. As he was Georges Canguilhem’s student, Dagognet recovers issues such as normal/pathological, body/living beings, but disagrees with the master for he was in a new context of scientific and technological progress, with new kinds of subjects on the agenda. He turned his attention to the application of knowledges (medical, juridical, philosophical, aesthetical) in the current reality, bringing precious contributions for the health field. KEYWORDS: Vitalism; Normativity; Epistemology; Body.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

I N T R O D U ç ão

de François Dagognet. Filósofo e médico desde os primórdios da psicofarmacologia e da época em que ainda não existia raio X, completa 84 anos de idade e ainda agita o cenário francês com seus elogios ao Prozac, à instrumentação médica, ao transtorno (trouble), com sua

Georges Canguilhem foi, para muitos, um grande

briga pela homoparentalidade e pelo direito à fecundação

mestre, um teórico que deu o que falar em sua época,

post-mortem3. Trata-se de um teórico eclético visto que seu

tecendo críticas severas à tradição filosófica e médica ou

interesse se estende da geologia à química, passando pela

mesmo incentivando atos políticos de importância históri-

epistemologia, neuropsiquiatria, direito, sociologia, psi-

ca. Sua filosofia de vida foi um divisor de águas na tradição

canálise e por onde mais a contemporaneidade exigir.

da medicina. O livro O normal e o patológico, concluído

A proposta deste artigo é apresentar a leitura que

em 1966, é a sua obra mais conhecida e a principal repre-

Dagognet faz do pensamento de Canguilhem, de quem

sentação de seu pensamento. Quase meio século depois, a

se distancia em algum ponto de sua trajetória.

discussão central do livro ainda é um valioso argumento crítico em relação às perspectivas reducionistas que sempre assolaram as velhas discussões no terreno das patologias: como as definir, de onde vêm e o que se faz com elas.

DAGOGNET, ALUNO DE CANGUILHEM

Canguilhem formou um número importante de intelectuais franceses, sobretudo nos anos 1960. Dentre

Georges Canguilhem e François Dagognet são

seus pupilos, esteve Michel Foucault, seu orientando

reconhecidos como dois grandes mestres no domínio

na elaboração de A história da loucura na idade clássica

da filosofia da Medicina. O primeiro, nascido em 1904

(1961). Foucault afirma em um artigo escrito em 19851,

em Castelnaudary, sul da França, lecionou em várias

no qual homenageia o mestre, que, sem Canguilhem,

instituições acadêmicas francesas como filósofo. Sua tese

diversos debates não teriam sido tão bem compreendi-

de doutorado, porém, foi defendida no curso de Medi-

dos. E acrescenta:

cina sob o título O Normal e o patológico, com diversas atualizações de seus argumentos até ser publicada como

Este homem, cuja obra é austera, voluntariamente bem delimitada, e cuidadosamente devota a um domínio particular numa história das ciências que, de todo modo, não se faz passar por uma disciplina de encenação aparatosa, encontrou-se de certa maneira presente nos debates em que ele próprio tomou bastante cuidado de nunca aparecer. (p. 763)2. É nesse sentido, entre outros motivos, que se enfatiza a importância de um pensador com a experiência

a sua obra-prima. Vinte anos mais jovem e nascido em Landres, também no sul da Franca, François Dagognet seguiu os passos do mestre. Assim como Georges Canguilhem, cursou Filosofia e depois Medicina. Trilhou um percurso teórico marcado pela epistemologia de Bachelard, de quem também foi aluno e amigo. Exerceu, durante dez anos (na década de 1950) atividade clínica e reivindica a tradição francesa de René Laennec e René Leriche (Dumas, 2005, p. 261).

1

La vie: l’expérience et la science

2

Tradução da autora.

3

Para mais informações, consultar Questions interdites (2002) e Penser le vivant: l’homme, maître de la vie? (2003) de Dagognet.

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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

É possível perceber a reciprocidade entre os dois a

Ao desacreditar que a vida é redutível a seus proces-

partir das referências mútuas nas obras de um e outro,

sos químico-físicos e acreditar que é algo mais do que

como se vê nos livros La Raison et les Remèdes (1964), de

a soma de todos os seus aspectos, Canguilhem reincide

Dagognet e O Normal e o patológico, dois clássicos escri-

em um vitalismo epistemologicamente contraditório,

tos na mesma época. Em 1983, Canguilhem organizou

mas compreensível, tendo-se em vista os efeitos éticos

o primeiro colóquio sobre a obra ainda em construção

que o objetivismo da época devia engendrar. De alguma

de Dagognet, em Saint-Julien-en-Beaujolais, cidade de

maneira, para ele a vida se tornou inobjetivável. Por

Claude Bernard. Nessa data, Dagognet havia concluído

isso a pretensão da Medicina em objetivar a questão do

treze dos mais de cinqüenta livros que escreveu até hoje.

patológico e do normal deveria ser combatida.

Em 1997, o autor publicou o primeiro estudo sobre o

Vale lembrar que nenhum estudioso da década de

conjunto da filosofia de vida proposta por Canguilhem,

1940 fazia as experiências que atualmente se fazem, na

dando origem ao livro Georges Canguilhem: philosophe

tentativa de manipular a vida. Houve com freqüência,

de la vie.

nesse período crítico da história, experimentos de cunho

Entre suas teorias acerca da normatividade,

eugenista e de efeitos sociais devastadores. Hoje, conhe-

das normas, da máquina, da evolução, de Auguste

cemos o código genético, fazemos experiências entre

Comte, Claude Bernard ou Gaston Bachelard, o eixo

espécies e a Medicina, sem dúvida, foi muito beneficiada

central do legado deixado por Canguilhem é, sem

com tais avanços. A idéia da vida artificial passa a ter

dúvida, o vivente (vivant). Em Georges Canguilhem:

um sentido que na época não existia. Os limites entre

philosophe de la vie, Dagognet retoma a perspectiva

o artificial e o natural hoje estão cada vez mais turvos.

canguilhemiana para expor seu pensamento funda-

Se as idéias de Dagognet parecem mais pragmáticas que

mental, confrontá-lo a novos impasses e, acima de

as de Canguilhem, é preciso que seja lembrada a época

tudo, apontar a busca de Canguilhem pela essência

em que foi escrita a sua obra-mestre. O próprio autor

da vitalidade (Dagognet, 1997, p. 167). Talvez seja

reconhece que suas idéias se modificaram enormemente

nesse ponto que se encontra a crítica mais importante

desde La raison et les remedes (1964).

de Dagognet ao mestre: a tese central de Canguilhem

No prefácio de Georges Canguilhe: philosophe de la

traz os equívocos da tradição médica bem como sua

vie, uma questão importante introduz as discussões do

incapacidade de reconhecimento de situações de fato

livro: por que o jovem filósofo teria escolhido, sem in-

e valor na clínica. Como nos esclarece Dagognet, na

tenção de exercê-la, o domínio da Medicina? Dagognet

denúncia epistemológica a respeito da ambigüidade

sugere que isso tenha se dado pelo interesse inicial do

que acompanha o termo ‘normal’, geralmente dedutí-

mestre por Auguste Comte, pela insatisfação que sentia

vel para o uso do conceito de patologia, Canguilhem

diante das idéias de ordem e progresso que atravessavam

termina deslizando no mesmo erro: parece acreditar

o século 20 e, ainda mais, pela relevância que as inves-

ter encontrado um ‘finalismo’ para a vida, ou seja, um

tigações sobre o corpo vivo tinham para ele. Contra o

princípio que explicaria a organização biológica dos

positivismo da época, Canguilhem defende a concepção

seres vivos por um fim ao qual eles seriam destinados,

de corpo como uma ‘potência criativa’ que contém sua

uma espécie de adaptação a uma ordem universal

normatividade vital. A vida, para ele, tem sua base na

advinda de um princípio ou de uma vontade superior

idéia de normatividade, conceito que usa contra as ins-

à própria vida.

tituições que queriam ‘discipliná-la’ ou contra os saberes

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

objetivistas e reducionistas que tentavam controlá-la. A

mantém suas diferenças ao mesmo tempo em que as

Medicina parece ter sido fundamental para o esclareci-

integra. Dagognet acolhe uma noção semelhante do

mento do positivismo experimental do conhecimento

corpo dialetizado, ou seja, é um todo que não deixa de

(através do hospital e do laboratório) e seus limites, ou

se fracionar para melhor atender ao conjunto e torná-lo

seja, o esquecimento do corpo doente e da experiência

mais rico em sua diferenciação. As partes do corpo, no

da doença à qual o sujeito resiste e através da qual se re-

entanto, só podem funcionar se o conjunto, aquele que

nova. Nessa época, marcada pela tradição positivista, era

as integra e recompõe, não estiver alterado (Dagognet,

como se coubesse apenas ao filósofo lembrar o médico

1997, p. 174).

da questão essencial: interrogar-se sobre o que significa estar doente (Dumas, 2005, p. 263).

De acordo com Dagognet, foi Canguilhem quem introduziu no campo da Medicina a idéia de um corpo que não cessa de emitir todo tipo de sinal. Dagognet o

Esse rebelde escolheu a Medicina porque, de um lado, ele precipita o começo de uma importante cisão entre a saúde e aqueles que dela tratam; de outro, percebe no fundo desse problema a filosofia maior do corpo, da existência e da liberdade. Enfim, essa disciplina lhe permite abordar uma questão que lhe é essencial, a da técnica, da instrumentação e da aplicação real. Ora, o médico valoriza a eficácia. (Dagognet, 1997, p. 51).

chamará de corpo ‘semafórico’. A partir de O Normal e o patológico, os corpos doentes ganham outra importância; o pathos irá preceder o logos e, conseqüentemente, a clínica passará a ser soberana. O autor não só seguiria de modo fiel esse princípio, como o ampliaria afirmando que “ao médico caberá a tarefa de aprender e colher os menores sinais que o corpo entrega. A ele cabe saber questioná-lo e interpretá-lo” (Dagognet,

Como era de se esperar, o livro privilegia esse con-

1997, p. 179).

ceito central do projeto canguilhemiano de normativi-

Provavelmente pelo fato de ter permanecido vivo

dade, mostrando como essa noção tornou-se complexa

ao longo de tantas transformações, o saber clínico

e foi enriquecida ao longo de sua obra (sobretudo com

para Dagognet em muito se beneficia das técnicas que

as contribuições do campo da genética) em oposição a

sofisticam o olhar e a escuta do médico. Dagognet se

outras perspectivas. Trata-se de uma nova filosofia do

preocupa em mostrar o quanto a clínica progrediu com

corpo, como afirma Dagognet, diferente do reducio-

os aparelhos de captura, de gravação e visualização em

nismo da teoria molecular e de toda Medicina clássica,

tela, tornando mais claro aquilo que antes precisava ser

construída sobre três eixos complementares: um corpo

dissecado. Se também para Canguilhem o corpo emite

dialetizado, um corpo semafórico e um corpo rebelde.

sinais que devem ser minuciosamente colhidos e inter-

Canguilhem sugere que o corpo não advém de

pretados, Dagognet escancara um elogio à tecnologia

uma única extensão e, portanto, não pode ser reduzido

médica e à instrumentação que permite dispensar o

a um objeto composto por várias partes que se somam

dilaceramento do corpo para aperfeiçoar a leitura mais

entre si. O corpo só pode ser compreendido em uni-

acurada e objetiva de suas perturbações. Por mais que a

dade e somente através dessa concepção holística é

exteriorização possa parecer objetivação, Dagognet não

possível entender a potência integradora, compensadora

deixar de frisar que a doença cardíaca, por exemplo,

e regeneradora da totalidade que comanda as partes

nunca poderá ser reduzida a um simples traço elétrico,

e as absorve. O teórico parece ter ultrapassado uma

ou a um eletrocardiograma. Mesmo que o laboratório

concepção uniformizada do corpo mostrando que ele

seja indispensável, não há razão para que se exclua a

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

‘subjetividade’. De acordo com a idéia canguilhemiana,

filosofia entre um lado obscuro, irredutível à razão, e o

é exatamente devido à existência de doentes que existe

poder analítico que exige inteligência ou racionalidade

uma doença e não o contrário. O doente é bem mais

para ser alcançado.

do que sua estrutura físico-química. Mas, para equili-

Encantado como é pela química, Dagognet defen-

brar a valorização da instrumentação e retomar a lição

de outra idéia de organismo. O corpo não é, para ele,

do mestre, Dagognet profere um elogio ao periférico,

rebelde à razão, tampouco o corpo doente é inacessível,

acreditando não haver afecção grave que não possa se

pois permanece idêntico em sua impermanência:

projetar na pele. É em relação ao corpo rebelde que o caminho desses dois filósofos parece se bifurcar. Em seus primeiros trabalhos, Canguilhem opõe a potência afirmativa e singular do corpo a tudo aquilo que a captura para,

[...] não só seus principais constituintes oscilam apenas dentro de limites bastante estreitos [...] mas, sobretudo o código matricial, aquele que marca ou sela fundamentalmente o ser, permanece o mesmo. Não mudamos. (Dagognet, 1997, p. 268).

dessa forma, inseri-lo nas normas. Ele se faz advogado da ‘vitalidade transbordante do corpo’ em oposição à lógica

E é por isso que a razão deve ser astuta ao criar meios

corretiva e normalizante dos profissionais da saúde, dos

de, sem trair a si própria, entrar nessa lógica do corpo vi-

educadores e higienistas. A relação de conflito que há

vente que se auto-constitui ao lutar contra os obstáculos.

entre a normatividade não submetida às normas disci-

Isso não significa, para Dagognet, desqualificar a expe-

plinares está, para Dagognet, no centro das contradições

riência do doente. Estar doente é perder a sua liberdade

do campo médico. Ele não compactua com essa idéia,

e viver na dependência. “A doença é a dor, eu percebi

mas defende justamente que as normas disciplinares de

que como filósofo eu não tinha nenhuma idéia da dor,

Canguilhem muitas vezes servem à normatividade, e

da morte e do sofrimento” (Dagognet, 1996, p. 21).

não parece concordar que a Medicina seja uma réplica

Para ele, a enorme adesão às idéias de Foucault acentua

da vida. A fundação da Medicina para Dagognet parece

o vitalismo rebelde da filosofia de Canguilhem.

sim estar na vida, mas não deixa de estar na ciência, na política, no social, na filosofia. Canguilhem toma partido do ser vivo em seu caráter resistente e reativo ao examinador que quer

POR UMA FILOSOFIA DA DOENÇA

compreender as razões do seu comportamento. Ele se posiciona contrário às técnicas de dosagem e aos exa-

Dagognet não se propôs a refletir sobre a doença,

mes numéricos da época em prol de uma singularidade

mas a partir da doença e de seus efeitos. Em Pour une

que transcenderia a qualquer tabela de medidas. Claro

philosophie de la maladie (1996), ele contextualiza o

que ele não se opõe a uma abordagem racional da cor-

campo do saber, criticado na primeira parte de O normal

poreidade, mas à rigidez dogmática de uma razão que

e o patológico. Explica, ainda, que a filosofia da Medici-

submeteria o corpo a teorias pré-existentes. A crítica de

na existe desde Hipócrates, no século 4 antes de nossa

Dagognet é justamente que Canguilhem, como filósofo

era, e que a tradição hipocrática influenciou por muito

da vida, mobiliza a razão, purifica-a de seu positivismo,

tempo pensadores, como Auguste Comte, e clínicos,

mas termina propondo uma espécie de ‘vitalismo racio-

como François Broussais, quanto ao entendimento da

nal’. Esse oximoro reflete bem a tensão presente nessa

doença e quanto à sua filosofia.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008

CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença

Desde o fim do século 19, duas escolas principais

tornava cada vez mais sofisticada e eficaz, os problemas

se desenvolveram. De um lado, a escola de fisiologia

também ganharam complexidade e fizeram com que se

alemã, sintonizada com os trabalhos de François Ma-

repensassem a essência do ato médico e a velha relação

gendie e Claude Bernard, que denunciava a necessidade

médico-paciente. No âmbito da filosofia da doença,

de hospitais e laboratórios, apoiava o diagnóstico e

Dagognet descreve a luta que sempre existiu entre suas

seus instrumentos. A doença aqui é objetivada tanto

correntes de pensamento.

quanto possível. De outro lado está a Medicina hospi-

Ainda nesse livro (1996), o autor descreve Can-

talar, escola dos grandes clínicos (onde se encontram

guilhem como o fortalecedor da tradição francesa

René Laennec e Xavier Bichat), que prioriza o olhar do

neste campo, aquele que mostrou a instrumentação e

médico, a decifração dos sinais, a tomada da história

as análises biológicas da técnica reportadas ao corpo

do doente. Esta última, qualificada como humanista,

do doente. Dagognet posiciona O normal e o patológico

desenvolveu-se com mais força na França após a Revo-

enquanto marca dessa perspectiva humanista e ressalta

lução Francesa (1789-1799) e se manteve até o século

a crítica canguilhemiana dirigida a uma concepção

20, por exemplo, com René Leriche. Segundo Dagognet,

ontológica da doença e da saúde contrapondo-a ao

Leriche revolucionou a cirurgia ao abrir espaço para a

foco sobre a normatividade individual presente tan-

instrumentação sem se afastar do doente (Dagognet,

to no estado patológico quanto no estado de saúde.

1996, p. 12-13).

Apesar da crítica que faz ao vitalismo de Canguilhem,

Trata-se de um confronto entre a escola instrumen-

esses conceitos continuam sendo centrais em todo o

talista dos técnicos, que desvaloriza o olhar médico e a

seu percurso. Também concorda com a contraposição

escuta do doente em prol de sua objetivação, e a escola

que o mestre sugere à visão puramente quantitativa

semiológica, que prioriza a leitura dos sinais. Dagognet

da doença e sua descentralização em partes do orga-

questiona para que lado é preciso pender para que se

nismo, falando sobre o caráter histórico e singular de

defina e compreenda realmente a patologia. A maior

toda doença. Propõe que o corpo seja colocado entre

parte dos objetivistas se fixou na doença e deixou de

a clínica e a instrumentação, ou seja, considera-se

lado o doente. Observa-se, no entanto, com alguma

partidário da Medicina objetivada, mas sem deixar de

complacência, que foi um momento importante para

reconhecer seus limites.

a anatomia patológica, para a bioquímica e para a

Com relação ao status ontológico da doença,

parasitologia, ainda que o sujeito tanto quanto o seu

questão filosófica que dividiu o pensamento médico

lado social (a maneira de se viver, o meio, os riscos)

desde a Antigüidade, o discurso médico oscilou entre

fossem minimizados. Esse frenesi tecnicista, como ele

duas concepções distintas. Uma que se propunha a

chama, de importância em certo aspecto, atingiu seus

reificar a doença e outra chamada tradicionalmente

limites. Então, foi preciso voltar a atenção ao subje-

de ‘dinâmica’ ou, depois do século 19, de ‘fisiológica’.

tivo. Daí surgem questões fundamentais como: onde

Dagognet acredita que tais concepções não consti-

situar a fronteira entre a irregularidade (a anomalia, a

tuem uma real oposição, mas uma espécie de conluio

singularidade) e a anormalidade (o patológico), assim

entre a idéia segundo a qual o estado de doença é

como outras que giravam em torno da oposição entre

eminentemente individual e a versão científica da

o objetivo e o subjetivo, o resultado cifrado e a dis-

Medicina. Em síntese, o que esse pensador propõe

função. No século 20, à medida em que a Medicina se

é que o estado da doença não seja compreendido

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unicamente a partir da relação da Medicina com o indivíduo doente, visto que a mediação da sociedade será sempre fundamental. Para concluir, vale reforçar que além da riqueza histórica e teórica que as filosofias desses dois grandes pensadores apresentam, a importância de ressuscitar tais discussões está em se pensar o processo terapêutico, seja ele de que ordem for, no sentido de uma recuperação da normatividade, diferente da orientação

Dumas, R. François Dagognet lecteur de Georges Canguilhem. In: Chazal, G.; Salomon, C. (Org.) François Dagognet, médecin et philosophe. Paris: L’Harmattan, 2005. Foucault, M. La vie, l’expérience et la science (1985). In: Dits et écrits 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994. v. 4. ______. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961.

de normalidade que o presente nos traz preponderantemente. A normatividade existe na saúde ou na doença, e esta última não pode mais ser compreendida simplesmente como um mal a ser erradicado. Apesar das contradições apontadas por Dagognet no vitalismo materialista canguilhemiano, não há dúvida de que valorizar a normatividade e não a normatização é a melhor opção para os agentes de saúde, ou melhor, os intérpretes da vida, quanto aos efeitos éticos, morais e clínicos de tal perspectiva.

R E F E R Ê N C I A S

Canguilhem, G. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. Dagognet, F. Georges Canguilhem: philosophe de la vie. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, 1997. ______. Pour une philosophie de la maladie. Paris: Textuel, 1996. ______. La raison et les remèdes. Paris: Presses Universitaires de France, 1964.

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Recebido:abr./2008 Aprovado: out./2008

ARTIGO INTERNACIONAL

/ INTERNATIONAL ARTICLE

Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado Colombian health model: exportable, depending on the interest of the market

Mauricio Torres Tovar

1

1

Médico, Salubrista Ocupacional,

RESUMEN Este artículo describe los aspectos relacionados con la estructura,

Coordinador de la Región Andina

financiación y funcionamiento del modelo de salud colombiano y los resultados

de la Asociación Latinoamericana de Medicina Social (Alames), Vocero

sanitarios que ha producido luego de 14 años de implementación. La información

Político del Movimiento Nacional

presentada es principalmente secundaria, proveniente de fuentes institucionales y

por la Salud y la Seguridad Social de

académicas del país y el análisis hace parte de los procesos de reflexión académica

Colombia.

y política que impulsa el Movimiento Nacional por la Salud y la Seguridad

[email protected]

Social. Se revela la acción devastadora del modelo de salud colombiano sobre las estructuras y funciones públicas de la salud y la violación sistemática del derecho a la salud de la población. PALABRAS-CLAVE: Sistema de Salud; Derecho a la salud; Mercado; Colombia.

ABSTRACT This article describes the aspects related with the structure, financing and operation of the Colombian health model and the sanitary results after 14 years of implementation. The information presented is mainly from secondary institutional and academic sources of the country. The analysis is part of an academic and political reflection which promotes the National Movement for Health and the Social Security, from witch the author is the political spokesman. It will also show the devastating action of the Colombian health model over its public health functions and structures, and the systematically violation of the health right. KEYWORDS: Health System; Right to health; Market; Colombia.

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I N T R O D U ç ão

namentales y d) la descentralización de los servicios gubernamentales. Bajo esta égida Colombia, en su reforma Constitucional de 1991 definió la salud como un servicio público permanente (sin reconocimiento explícito de

Colombia fue una de las naciones latinoamericanas

su condición de derechos humanos), que puede ser

más juiciosas en acoger e impulsar, desde comienzos de

prestado por el Estado o por los particulares; base cons-

los años 1990 del Siglo XX, el conjunto de orientaciones

titucional sobre la que se reestructuró administrativa y

dadas por el Banco Mundial en materia de reformas

financieramente la Seguridad Social en el país a través

económicas, sociales y políticas, en el marco de la glo-

de la Ley 100 de 1993.

balización neoliberal que propuso la liberalización del mercado y el ajuste estructural del Estado.

La imposición de la nueva organización de la salud en Colombia no se dio sin previa lucha. Para avanzar

En este sentido, Colombia impulsó un conjunto de

en este modelo, la tecnocracia colombiana, formada

reformas tanto del aparato estatal (reforma judicial y admi-

principalmente en Harvard y puesta al servicio de la

nistrativa), como del sector económico y social (reformas

política privatizadora de salud, desarrolló una batalla

tributaria, educativa, laboral, de seguridad social y de sa-

de ideas para ganar terreno ideológico en el campo de

lud) y avanzó en una reorientación del Estado llevándolo

la salud, esgrimiendo el argumento de que hay recursos

a un papel más de regulador de mercado que de oferente

insuficientes para grandes demandas de salud, por lo

directo de servicios . Esto produjo cambios profundos en

cual se requería un modelo regulador, y el mejor para

la esfera del mundo del trabajo generando flexibilización

ello es el mercado, en la lógica de la oferta y la demanda

laboral con efectos de precarización de las condiciones de

que regula el consumo, distribuye adecuadamente y con

trabajo, mayor desempleo, crecimiento importante de la

calidad el servicio, y hace uso eficiente de los recursos.

economía informal, arrastre hacia la pobreza y la miseria

Estas tesis permitieron que los empresarios de la

de amplios sectores de la población y pérdida de soportes

salud ganaran en la batalla de ideas un asunto fun-

de protección social con los que se contaba.

damental que ha logrado que el modelo de salud en

1

En el campo específico de la seguridad social en

Colombia continúe incólume luego de 14 años, a pesar

salud, Colombia acogió la orientación de reforma a

de sus efectos devastadores: hacer entender y creer que

este sector propuesta por el Banco Mundial (Banco

la salud es un bien privado de consumo que se resuelve

Mundial, 1993), que tenía como eje central la reforma

individualmente en un mercado de servicios de atención.

del financiamiento de los servicios de salud en cuatro

Así, se despojó a la salud de su condición de derecho

aspectos básicos: a) el cobro de tarifas a los usuarios

humano fundamental, deber de Estado.

de servicios estatales, b) la provisión de seguros frente

Para reafirmar la experiencia como un modelo de

a los riesgos económicos relacionados con la atención

salud que enfrenta adecuadamente los problemas de

médica, c) el empleo eficiente de recursos no guber-

ineficiencia, baja calidad e inequidad, se han adelantado

Esta orientación internacional respondió a la necesidad de la recomposición del modelo de acumulación capitalista, en lo cual los servicios públicos se empezaron a ver como un campo para explorar y explotar por el mercado, lo que implicó reconocer al Estado de bienestar, ya no como un salvador sino como un gran competidor. Tal fue el entendimiento de fondo, que llevó a que de manera específica en el sector Salud, el aseguramiento y la prestación de los servicios de atención a la enfermedad fueran incorporadas en la lógica de mercado. 1

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

diversas estrategias, una de las mas sobresalientes fue la

sabilidad directa de los individuos, quienes acceden

de haber ubicado a Colombia en el informe mundial

a ella a través de un mercado de servicios, en donde

de salud del año 2000 como el país con mayor equidad

el Estado, a través de una política de focalización de

financiera en salud en el mundo (Organización Mun-

subsidios, incorpora a los miembros de la comunidad

Salud, 2000). Si estos son los resultados,

que no tienen capacidad económica. Esta política que

pues es claro que se debe acoger la experiencia exitosa y

ha orientado la salud en el país durante los últimos 14

debe impulsarse en muchos países, como efectivamente

años ha consolidado la concepción de salud como una

viene ocurriendo . El modelo así, ha ganado legitimidad

mercancía, alejando las políticas públicas de la compren-

exportable.

sión de la salud como un derecho humano que debe

dial de la

2

En este escrito y bajo una postura de deber ético, se describe la estructura del modelo de salud colombiano y

ser garantizado por el Estado a todos los ciudadanos (Torres; Paredes, 2005).

sus impactos, que evidencian por que este modelo de salud no debe ser acogido por los pueblos de América Latina y el mundo, dada su acción devastadora sobre las estructuras y funciones públicas de la salud y por su violación sistemática del derecho a la salud de la población.

Organización El Sistema General de Seguridad Social en Salud (SGSSS) se organiza en la lógica de un seguro popular de salud, que implica una vinculación a él vía aseguramiento individual a través de una cuantía que se paga (cotización), bien por lo cual se tiene

EL MODELO DE SALUD COLOMBIANO

capacidad de pago o que se recibe un subsidio para el pago. Esto implicó que el seguro público de salud

En desarrollo del mandato de la Constitución

fue sometido a una desintegración en sus compo-

Política de 1991, se adelantó el proceso de reforma a

nentes de administración y prestación de servicios,

la seguridad social que llevó a la expedición de la Ley

para lo cual se creó un mercado para administrar este

100 de 1993 mediante la cual se creó el Sistema de

seguro y articularlo con el de prestación de servicios.

Seguridad Social Integral, con cuatro componentes:

A su vez, implicó la generación de mecanismos de

pensiones, salud, riesgos profesionales y servicios

regulación de mercado para facilitar un desarrollo

sociales complementarios. Este sistema optó por un

armónico de tales mercados (Grupo Economía De

modelo de aseguramiento individual como vía para

La Salud, 2002).

alcanzar la universalización de los servicios de salud y

Para esto, el SGSSS generó una organización de la

por la creación de un mercado de servicios de atenci-

oferta de los servicios del aseguramiento y de la prestaci-

ón para superar los problemas de calidad y eficiencia,

ón de los servicios de atención con criterios de mercado

bajo la lógica de regulación de mercado vía oferta y

y separó las funciones de afiliación, administración, pres-

demanda.

tación y regulación. Esto implicó el surgimiento de un

A la Ley 100 de 1993 subyace una comprensión de la salud como un bien de consumo privado, respon2

conjunto de actores o agentes de mercado responsables de estas funciones:

El caso de República Dominicana y recientemente México.

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

• las aseguradoras denominadas Empresas

• por el régimen contributivo, si se tiene capa-

Promotoras de Salud (EPS), bien del Régimen Con-

cidad de pago, bien como trabajador formal, servidor

tributivo (EPS-C) o del Régimen Subsidiado (EPS-S)

público, pensionado o trabajador independiente,

quienes están encargadas de realizar la afiliación de los

afiliándose a las EPS-C, recibiéndose un paquete de

asegurados, administrar los recursos del aseguramiento

servicios del régimen contributivo (POS-C) a través

y contratar la prestación de los servicios de atención. En

de las IPS;

este sentido las EPS hacen una función de articulación entre los usuarios que se aseguran con las instituciones que les prestan los servicios;

• por el régimen subsidiado, a través de las EPS-S (antes denominadas Administradoras del Régimen Subsidiado – ARS), mediante el subsidio del

• las Instituciones Prestadoras de Servicios de

Estado (subsidio a la demanda) que se recibe por la

Salud (IPS), quienes prestan los servicios de salud defini-

condición socioeconómica de pobre, atribuido por

dos en un paquete denominado POS (Plan Obligatorio

un sistema de identificación de beneficiarios (Sisben),

de Salud), según grados de complejidad de la atención

subsidio que puede ser completado si clasificado en

(desde el primer nivel el menos complejo, hasta el cuarto

el nivel 1 o 2 del Sisben o si un subsidio parcial esta

el más complejo);

clasificado en el nivel 3 de Sisben. Reciben un paquete de servicios de régimen subsidiado (POS-S) si es sub-

• las Empresas Sociales del Estado (ESE), hos-

sidio completo o reciben atención a las enfermedades

pitales de carácter público que debieron convertirse

crónicas (denominadas enfermedades de alto costo) a

en empresas autosostenibles financiera y administra-

través de las IPS y ESE;

tivamente, para lo cual como cualquier IPS venden servicios y compiten en el mercado por los contratos.

• cuando las personas no pueden acceder al régi-

Cuando muchas de ellas no resistirán a la competencia,

men contributivo por su incapacidad de pago y han sido

se quebraron, por lo que el patrimonio público que el

identificados como beneficiarios por el Sisben pero no

Estado y la sociedad conservaban en salud, han venido

alcanzan los subsidios para cobijarlos, quedan en con-

pasando a manos privadas (Paredes, 2000);

dición de población pobre no asegurada (inicialmente llamada vinculada) y son atendidos por los municípios

• al Estado se le asignó la función de coordinación

a través de las Empresas Sociales del Estado (ESE) o por

y modulación del sistema, de promover la incorporación

IPS privadas que tengan contrato con los municípios,

de las personas que no pueden pagar su seguro y de realizar

con los recursos del subsidio a la oferta en salud (subsi-

acciones de impacto colectivo que poseen externalidades

dios dados directamente por el Estado a los municipios

(es decir aspectos que no controlan el propio sector sa-

para los contratos con los hospitales públicos);

lud), inmersas en el Plan de Salud Pública (anteriormente conocido como Plan de Atención Básica, PAB).

• hay un grupo de personas que pertenecen a regimenes de excepción, es decir que cuentan con

La incorporación al SGSSS se hace vía afiliación al

su propio sistema de seguridad social. Estos sectores

aseguramiento según la condición socioeconómica de

son de las fuerzas militares y el sector público de la

la persona a través de varias vías:

educación.

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

Hay una franja poblacional que el SGSSS no tiene en cuenta, que en el lenguaje popular se le ha denomi-

degenerativas, que demandan altos recursos para su atención).

nado población ‘sandwich’, por no tener capacidad

Las EPS reciben un pago por la garantía del POS al

adquisitiva para vincularse al régimen contributivo,

asegurado denominada unidad de pago por capitación

pero que no son lo suficientemente pobres para obtener

(UPC), que es un pago anual por persona dependiente

el subsidio, y por lo tanto no reciben ningún tipo de

del ciclo vital de ella, siendo mayor, por ejemplo, cuando

beneficio por parte del SGSSS, a no ser que lo paguen

hay mayor riesgo de enfermar como en el caso de la

completamente de su bolsillo. Esta población es com-

población infantil, de la población adulta mayor, o de

puesta principalmente por personas de clase media

las en mujeres en edad fértil.

desempleadas, grupo que viene creciendo dado las

En este aspecto de beneficios del SGSSS se expresa

reestructuraciones laborales y los cambios en el mundo

de manera clara parte de las inequidades que genera,

del trabajo en Colombia.

en tanto a la población afiliada al régimen contribu-

En relación al componente de beneficios que brin-

tivo le brinda un paquete de servicios que es mayor

da el SGSSS, el cotizante y su núcleo familiar reciben

en comparación al que recibe la población afiliada al

un paquete de servicios en salud denominado POS, lo

régimen subsidiado, y ni que decir en relación al que

cual es diferenciado, siendo más amplio para el régimen

recibe la población con subsidio parcial (que recibe

contributivo que para el subsidiado y más restringido

un pequeñito POS como popularmente se le viene

para los que reciben el subsidio parcial.

diciendo).

El contenido del POS se define teniendo como

Hay otro conjunto de acciones que las EPS deben

criterio el perfil epidemiológico de la población co-

garantizar relacionadas con promoción de la salud y pre-

lombiana, el ciclo de vida, la disponibilidad tecnoló-

vención de la enfermedad (PyP), acciones no relaciona-

gica para su atención y el costo de efectividad de los

das directamente con la atención de la enfermedad y que

tratamientos.

buscan precisamente mantener la salud de las personas.

El POS incluye servicios de promoción, pre-

Estas acciones han entrado en la lógica de mercado, por

vención, atención de la maternidad y la enfermedad

lo cual son reconocidos que lo desarrollado en PyP es

general, diagnóstico, tratamiento, rehabilitación física

muy débil y lo pago por ello se convierte más bien en

y provisión de medicamentos esenciales en su presen-

un rubro de ganancias para las EPS, como lo mostró la

tación genérica. Para el régimen contributivo incluye

Defensoría del Pueblo al evidenciar el incumplimiento

intervenciones en los tres niveles de atención en salud,

de las Aseguradoras en estos aspectos (Defensoría del

mientras que el POS para los afiliados al régimen sub-

Pueblo, 2003).

sidiado sólo incluye intervenciones del primer nivel de

Para garantizar la prestación del POS, las EPS

atención, excepto para mujeres embarazadas y niños

contratan con las IPS o ESE a través de mecanismos de

menores de un año cuyas intervenciones incluyen todos

mercado. Entonces, se establecen relaciones contractu-

los niveles de complejidad. Para aquellos que reciben

ales entre ellas, en las cuales se observa una lógica, por

subsidio parcial el POS se restringe a la atención a un

la cual las EPS buscan sacar el mejor partido. En ese

grupo de enfermedades de alto costo (enfermedades

sentido las EPS han incorporado variantes para la con-

catastróficas como las denomina la Ley 100, referidas a

tención de costos como la contratación por capitación

un conjunto de enfermedades principalmente crónico

(se contrata la atención de un número determinado

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

de personas por un monto fijo de dinero, mecanismo

respondiente a cada uno de sus afiliados y son los que

a través del cual le traslada el riego a las instituciones

administran el plan de salud para estos mediante la

prestadoras de servicio); glosan los servicios, es decir

prestación directa o la contratación de servicios con otros

no aceptan las condiciones en que las prestadoras han

agentes. Las EPS actúan en el marco de un contrato

brindado un servicio y por lo tanto no le reconocen el

público, son delegadas por el Fondo de Solidaridad y

pago; lentifican el flujo de pago (pueden pasar más de

Garantía (Fosyga) y hacen parte de un mercado alta-

seis meses para que se les pague los servicios prestados

mente regulado en el cual lo producto (POS), el precio

a las IPS y ESE). Esto lleva a su vez a que las IPS y ESE

(UPC) y ciertas pautas de la entrada y operación en

generen barreras de acceso para contener costos y evitar

el sistema están determinadas por normas (Grupo

asumir el riesgo3.

Economía de la Salud, 2002).

de

Complementario a las acciones del POS se define

Es claro que el SGSSS es un modelo de asegu-

un conjunto de acciones establecidas en el Plan de Salud

ramiento público, lo cual separa las funciones de

Pública (antes PAB). Este plan aborda un conjunto de

aseguramiento, prestación y regulación, que genera un

intervenciones dirigidas a la colectividad o a los indivi-

conjunto de actores de mercado para estas funciones

duos pero que tienen altas externalidades, o sea asuntos

y que establece un conjunto de mecanismos de regu-

que no son de exclusivo control del sector salud, tales

lación del mercado, establecidos por el aseguramiento

como la información pública, educación y fomento de la

obligatorio, el POS, la UPC, el Fosyga, la prohibición

salud, el control de consumo de sustancias psicoactivas,

de la selección del riesgo por parte del asegurador; la

complementación nutricional, planificación familiar,

prohibición de la selección adversa por parte del paciente

control de vectores, entre otras.

por medio de los tiempos mínimos para beneficios; y el

La organización del SGSSS en Colombia descrita

control del riesgo moral por parte de los usuarios por

respondió a un enfoque llamado pluralismo estructurado

medio de las cuotas moderadoras denominados Copagos

o como otros mencionan de competencia o mercado

(Hernández, 2003A).

regulado, bajo el precepto y la comprensión que la salud

Bajo esta concepción y modelo se asume entonces

es un bien privado de consumo que debe regularse en

que el mercado regulado distribuye eficientemente la

una oferta de mercado, lo que garantiza su distribución

provisión de servicios individuales, mientras el Estado

adecuada, su calidad y el uso eficiente de los recursos.

incorpora a los pobres al mercado a través de los subsi-

Producto de este modelo se organizó el SGSSS en tor-

dios, vigila el cumplimiento de las reglas de mercado y

no a cuatro funciones básicas: articulación, prestación,

dispensa los servicios estrictamente públicos, es decir,

financiación y modulación, por lo cual se procura la

con altas externalidades ubicados en el denominado

integración de todos los agentes en torno al suministro

Plan de Salud Pública (Hernández, 2003B).

del plan único de salud (POS), financiado con un pago por capitación UPC (Frenk; Londoño, 1997).

Tal separación, sustentada en la teoría económica neoclásica, deja a los servicios de atención de enferme-

En este modelo, las EPS son el centro financiero

dades en calidad de bienes privados (los individuos están

al recaudar la cotización, descontar la capitación cor-

dispuestos a pagar por ellos ya que satisfacen sus necesida-

Tal situación en gran medida es responsable por el denominado paseo de la muerte, en donde una persona en una condición crítica de salud solicita atención y empieza a ser llevada de una a otra institución, que niegan el servicio por que no demuestra quien paga o que lo que se paga por ella no es suficiente para cubrir la condición clínica que se debe atender, hasta que se presenta una atención tardía o simplemente no se da, y la persona fallece. Paseos de la muerte que no son situaciones aisladas, y sí vueltos constantes, y son otros indicadores de la lógica mercantil de la política de salud. 3

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

des particulares) y a las acciones colectivas de salud como

El régimen subsidiado se financia mediante cuatro

bienes públicos (son bienes que satisfacen necesidades de

fuentes de recursos que fueron definidos por la Ley 60

muchas personas al mismo tiempo, es decir, tienen altas

de 1993 y luego ajustado por la Ley 715 de 2001, el

externalidades y las personas no están dispuestas a pagar

sistema general de participaciones (que incluye la suma

por ellos, por lo cual deben ser financiados con recursos

del situado fiscal y la participación de los municípios en

públicos y ejecutados por el estado descentralizado), lo

los ingresos corrientes de la nación), los recursos de soli-

que genera un proceso estructural de fondo impidiendo

daridad del Fosyga, el esfuerzo propio de las entidades

una acción integrada e integral del SGSSS y lleva a que

territoriales y los recursos de las cajas de compensación

no se garantice la salud como derecho humano para todas

familiar.

y todos (Hernández, 2003B).

Lo dinero del régimen subsidiado es administrado bajo un esquema de subsidio a la demanda, que se concreta vía una política de focalización, la cual identifica

Financiación En el SGSSS coexisten articuladamente, para su

al beneficiario y le asigna el subsidio que le da ingreso a la EPS-S y recibe un POS-S.

financiamiento y administración, un régimen contributivo de salud y un régimen de subsidios en salud, con vinculaciones mediante el Fosyga. El financiamiento del régimen contributivo se basa

CONSOLIDACIÓN DE INEQUIDADES E

en un esquema de aporte obrero patronales debiendo

INJUSTICIAS EN SALUD PROPIAS DEL MER-

cubrir los costos del POS para todos los afiliados y sus

CADO

beneficiarios, y, además, realizar una contribución solidaria para la financiación del régimen subsidiado. El

En términos de los resultados sanitarios y sociales

monto actual de la cotización, ajustado por la Ley 1.122

que ha ocasionado este modelo neoliberal de salud

de 2007, es del 12.5% del ingreso base de cotización

durante estos 14 años de implementación, se eviden-

(IBC); en el caso de los trabajadores dependientes, el

cian un conjunto de efectos entre los que se destacan

8.5% lo paga el patrón y el 4% el trabajador; y en el

(Torres, 2003):

caso de los independientes, éstos pagan el 12.5% del IBC que declaren. El manejo de los recursos financieros está a cargo

No se logró la Universalidad

del Fosyga, el cual esta adscrito al Ministerio de la

La ley 100 de 1993 estableció que para el año 2001

Protección Social y se maneja mediante un encargo

existiría cobertura en salud para toda la población, con

fiduciario. Posee cuatro cuentas: compensación, solida-

igualdad de benefícios.

ridad, promoción y eventos catastróficos. En la cuenta

Según las cifras de aseguramiento presentadas por

de compensación se administra el régimen contributivo

el Concejo Nacional de Seguridad Social en su informe

y su saldo se determina por la diferencia entre los apor-

de 2007 al Congreso de la República, se refiere que

tes de los cotizantes, descontando 1.5 que se trasfiere

hay 37.3% de la población total asegurada al régimen

al régimen subsidiado, y el valor de la UPC que debe

contributivo, 46.9% asegurada al régimen subsidiado,

reconocerse a las EPS por todos los afiliados.

4.5% en regímenes especiales y 11.3% de la población

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

no tiene aseguramiento. Cabe distinguir que del por-

dificultades económicas para la mayoría de estas insti-

centaje de población asegurada en régimen subsidiado,

tuciones, llevando a muchas de ellas incluso al cierre

el 9.4% son subsidios parciales (Concejo Nacional de

(por mencionar como ejemplo vergonzoso el cierre del

Seguridad Social en Salud, 2007).

hospital emblemático de mayor nivel de formación

Hay una diferencia ostensible entre cobertura

académica en el país, el Hospital San Juan de Dios de

de aseguramiento y acceso real a los servicios. Estar

Bogotá), desestructurando de esta manera la red hospi-

asegurado no es garantía de acceder a los servicios, por

talaria pública, base de la protección social en salud para

el conjunto de barreras que el sistema ha desarrollado

extensos sectores de la población colombiana.

de carácter administrativo, geográfico, económico y de información (Restrepo; Echeverry; Vásquez; Rodrí-

La salud de la gente se deterioró

guez,

La situación de salud debe ser la manera adecuada

2006).

Parte del problema de no lograr la cobertura uni-

para medir los impactos de una política de salud. Aun-

versal obedece a que el aseguramiento se soporta sobre

que al modelo se le pueden atribuir el mejoramiento en

el empleo formal y Colombia tiene un escenario de

indicadores tradicionales, como el de mortalidad mater-

desempleo del 13.6% (Dane, 2007) y de informalidad

na y infantil de manera global4, el énfasis del modelo en

y subempleo que supera el 60%.

la atención a la enfermedad ha reducido el componente de salud pública, dejándolo contenido a un plan (PAB,

Lo privado se ha favorecido a costa de lo público

ahora plan territorial de salud pública), que esta en la

Uno de los efectos positivos más destacado por los

misma lógica del paquete de servicios.

defensores del modelo está en relación con el incremen-

Esto ha llevado a debilitar programas de promoción

to de los recursos financieros para el sector salud, que

y prevención tan importantes como los relacionados con

sin lugar a dudas es cierto; pero también es cierto que

la prevención y atención a la fiebre amarilla, la tubercu-

estos recursos han servido para enriquecer las arcas de

losis y la malaria, enfermedades estas que han tenido un

las intermediadoras (EPS).

crecimiento importante en el país (entre 1995 a 2000

Es claro que hay un incremento de los recursos para

la fiebre amarilla reportó un total de 21 casos; la tasa

el sector salud, lo cual no redunda en aumentos suficien-

promedio anual de tuberculosis pulmonar fue de 12 por

tes de la cobertura de salud, ni en resultados positivos

100.000 y el promedio anual de casos de malaria llegó

para la salud, lo que esta en relación con la evidencia de

casi a los 100.000).

que 30% de estos recursos quedan en la administración

El componente de inmunización se ha debilitado

de la intermediación que hacen las aseguradoras y 5%

completamente, según información del Ministerio de la

va para infraestructura (Leguizamón, 2007).

Protección Social en 2003, 15 de los 32 departamentos

El cambio central del esquema de financiamiento

en el país no lograron alcanzar las coberturas promedios

pasando del subsidio de oferta al subsidio a la demanda

del 90% para ninguna de las vacunas del plan ampliado

exigió a los hospitales públicos a generar sus propios

de inmunizaciones; en 2006 la cobertura en vacunación

recursos para sostenerse económicamente a partir de

fue de 86.5% para polio, 86.1% para DPT, 88.2% para

la venta de servicios, lo que acarreó un aumento de las

BCG, 86.1% para HEPb; 86% para HiB y 88.3% para

Si, por que en quinquenio 2000 a 2005 la tasa de mortalidad infantil nacional fue de 19 por 1.000 nacidos vivos, pero en el área rural fue de 24, de madres con educación superior fue 14, en madres sin educación fue 43, en estratos ricos 14 y en estratos pobres 32 (Encuesta Nacional de Demografía y Salud, 2005). 4

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

TV (Ministério de la protección Social/ OrganizaSalud, 2007). Coberturas

tigación de tutela en salud de la Defensoría del Pueblo

no útiles de vacunación, lo que ha generado la reemer-

que arrojó un resultado impactante revelando que en

gencia de enfermedades infectocontagiosas. Para citar

el país se presentan 60.000 tutelas en salud anuales.

un ejemplo, en estos momentos en Colombia se vienen

La mayoría de acciones de tutela fueron interpuestas

presentando casos de rabia humana, un indicador que

por negación de servicios, por falta de oportunidad

evidencia que la salud pública con este modelo de salud

en el tiempo para la atención y por la no entrega de

entro en la debacle.

medicamentos, aspectos del POS por el que las EPS

ción

Panamericana

Asunto que se constata con el resultado de la inves-

de la

reciben pago a través de la UPC; lo que evidencia la gran Las inequidades en salud se incrementaron

vulneración general del derecho a la salud ocurriendo

Los datos muestran que el sistema colombiano

en Colombia, con sus obvias consecuencias para la sa-

aumentó las inequidades en salud, es decir que quienes

lud, la vida y la integridad de la población colombiana

más necesitan menos reciben y quienes más tienen más

(Defensoria del Pueblo, 2007).

reciben. Según estudio hecho por el Observatorio de la Seguridad Social de la Universidad de Antioquia en

Precarización de las condiciones laborales de los

junio de 2003 al desagregar la distribución porcentual

trabajadores del sector salud

del subsidio en salud por condiciones socioeconómicas

El modelo de salud llevó a que el ejercicio de las

se encontró que el decil 1 (los más pobres) recibían el

profesiones del área de la salud se rija por la lógicas de

de 4.8%, mientras que para el decil 9 era del 12.8%

mercado, por lo cual las aseguradoras y las prestadoras

y para el decil 10 (los más ricos) era del 14%. Al ob-

interpretan el acto terapéutico como un componente

servar los denominados gastos de bolsillo se observó

del negocio y por lo tanto ejercen sobre él las técnicas

también discriminaciones de índole económica ya

administrativas para que sea lo más rentable posible

que mientras los hogares donde los jefes pertenecían

(Torres, 2006A).

a regímenes especiales gastan el 5.7% de su ingreso,

El sector de la salud también entró en el proceso de

los del régimen subsidiado gastan el 14% y los que no

flexibilización laboral. Miles de trabajadores despedidos

están afiliados el 12.4% (Grupo

por la liquidación y reestructuración de las instituciones

de

Economía

de la

Salud, 2003).

públicas de salud, contratación temporal que se hace a

En relación con el uso efectivo de los servicios de

través de cooperativas intermediadoras precarizando

salud las razones más frecuentes para no acudir a éstos

las condiciones de trabajo y disminuyendo el monto

tiene que ver con los costos que generan, bien por las

salarial. La situación es tan grave que para cientos de

cuotas moderadoras y los Copagos en el régimen con-

trabajadores formales del sector público se ha vuelto

tributivo, o por el pago porcentual que se deben hacer

común que pasen meses sin recibir salario. Esta situación

del costo de los servicios en el régimen subsidiado.

es reflejo de la lógica de mercado que contiene costos y aumenta ganancias también por la vía del manejo de

Quejas, reclamaciones y tutelas en salud por doquier

lo laboral.

Son miles de casos de violación al derecho a la salud,

Un alto porcentaje de la fuerza de trabajo de salud

muchos de los cuales se evidencian en el conjunto de tu-

pasó a ser contratado por las aseguradoras y prestadoras

telas (recurso de amparo) para proteger este derecho.

en modalidades temporales y de subcontratación (en ge-

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

neral a través de una figura perversa llamada cooperativas

quidadas. Por supuesto se entiende claramente que lo

o asociaciones de trabajo que desvirtúa la esencia del

que acá ha primado son los grandes flujos de capital

cooperativismo) y desde esta relación laboral subordi-

que atraviesan a estos sectores y que el sector privado

nada se imponen condiciones en aspectos básicos de la

se los viene apropiando. No es gratuito que algunas

relación del profesional de la salud con el paciente.

de las EPS privadas estén ranqueadas dentro de las

Esta situación ha implicado que las aseguradoras

100 empresas más grandes de Colombia, con un

y las prestadoras definan la forma como se contrata el

crecimiento financiero para el año 2003 del 18.26%,

talento humano de salud, la manera como debe trabajar

cinco veces superior al promedio nacional que fue del

en términos de tiempos y ritmos, que tipo de conductas

3.74% (Informe Especial, 2004).

terapéuticas pueden o no pueden desarrollar y el monto de pago de sus honorarios. Esto explica la imposición sobre la mano de obra médica de ver un volumen alto de

Ruptura del tejido social

paciente por hora (por lo cual los tiempos de consulta se

El modelo esta fijado sobre una base de focalización

redujeron, sin tener en cuenta los estándares internacio-

de subsidios para incorporar sectores pobres de la po-

nales) y de imponer ahorro de gastos por diversas vías:

blación al aseguramiento, y ha generado disputas entre

solicitud del mínimo de exámenes clínicos y prescripción

sectores sociales por el acceso a estos subsidios llevando a

del menor número de medicamentos.

rupturas dentro de las comunidades e incluso al interior

Esto a su vez ha llevado a un deterioro de la calidad

de organizaciones sociales, asunto que ha sido denun-

de los servicios asistenciales. Los casos de iatrogenia

ciado por las propias organizaciones, especialmente del

ahora son múltiples.

campo y del sector indígena.

Degradación de la institucionalidad pública de la seguridad social Este modelo desestructuró la institucionalidad pública en seguridad social con que contaba el país. La

LOS AJUSTES DE TUERCA A LA POLÍTICA PRIVATIZADORA DE SALUD

Caja Nacional de Previsión (Cajanal) que cubrió la seguridad social de los trabajadores oficiales fue liquidada

Durante estos años de implementación de la políti-

hacia finales del año 2000. El Instituto de los Seguros

ca de estado en salud en Colombia a través de la puesta

Sociales (ISS) se fue desmontando paulatinamente y en

en escena de la Ley 100 de 1993, los gobiernos de turno

el año 2003 solo tenía tres millones de afiliados estando

han buscado profundizar el modelo privatizador, que

en 1996 con diez millones, asunto que fue inverso para

de entrada no lograron, dada la resistencia de sectores

las EPS privadas (Torres, 2006B) y en 2007 se le dio la

progresistas en el país.

estocada final a partir de separar sus áreas administrativas

Como estrategias para avanzar en esta vía se han

de las de prestación y empezarse a liquidar esas áreas de

utilizado principalmente tres herramientas. De un lado,

prestación. En este año de 2008 se dará el proceso de

la orientación del Banco Mundial de impulsar la nueva

liquidación completo del ISS.

concepción de protección social derivada del deno-

Al caso de Cajanal y el ISS, se suma al caso de

minado manejo social del riesgo, que lleva a impulsar

otras empresas del Estado que fueron vendidas o li-

programas de transferencias en efectivo condicionadas

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

para los más pobres, junto con reformas estructurales

ciudadanos demostrar capacidad de pago para acceder

de los sistemas de salud hacia sistemas de aseguramien-

al aseguramiento, definiendo un conjunto mínimo de

to individual con subsidio a la demanda para pobres.

intervenciones en salud (POS), cambiando la concepción

Modelo acogido por Colombia y que viene impulsando

de salud pública al restringirla al desarrollo de acciones de

el país a través del programa de familias en acción y del

bajo costo y alto impacto a partir de la lógica de factores de

régimen subsidiado de salud.

altas externalidades y un cambio en los subsidios estatales

De otro lado, la suscripción de un tratado de libre

pasando de los de oferta a los de demanda, entregados

comercio con Estados Unidos, que busca en el compo-

a través de una política de focalización que incorpora al

nente de salud profundizar la privatización del sector al

aseguramiento a sectores sociales marginales (Carmona;

ahondar la concepción de la salud como bien privado

Molina; Casallas, 2003).

de consumo, ampliar el mercado de servicios de salud

La implementación de este modelo de salud de

a las multinacionales farmacéuticas, de aseguramiento

corte neoliberal ha venido instalando un conjunto de

y de prestación de servicios tanto de atención, como de

conceptos y procesos en el país en contra vía de la ga-

educación en salud, alejando a la salud de su realización

rantía del derecho a la salud, entre los que se destacan

como derecho humano y bien público. Este Tratado de

(Hernández, 2003A; Carmona, 2006):

Libre Comercio (TLC) de ser firmado (afortunadamente se detuvo su firma en el Congreso de Estados Unidos),

• se naturaliza que la salud es un bien privado de

será sin lugar a duda un ajuste de tuerca en el proyecto

consumo al satisfacer necesidades individuales por las

neoliberal de privatización de sectores como el de la

que se esta dispuesto a pagar;

seguridad social y la salud (Torres, 2006C). Por último, por las presiones políticas de diversos

• se separa la atención individual de la enfermedad

sectores se impulso una reforma a la Ley 100 dada sus

de la atención colectiva. Los campos de la salud pública y

limitaciones y efectos negativos, la cual quedo normada

la promoción de la salud son marginados y disminuidos

en la Ley 1.122 de 2007, la cual mantuvo el modelo de

en su potencial transformador de la situación de salud. En

aseguramiento e intermediación, garantizando el juego de

esta lógica de mercado promocionar y prevenir la salud

los actores privados tanto en el componente de asegura-

no es rentable, el negocio esta en la venta de servicios

miento como de prestación de servicios a la enfermedad,

individuales de atención a la enfermedad;

sin resolver los problemas de fondo que derivan de una política con este tipo de orientación (Torres, 2007).

• se producen exclusiones e inequidades propias del mercado: hay una salud para ricos (medicina privada); una salud para sectores asalariados (aseguramiento) y una salud para pobres (redes públicas de salud);

CONCLUSIONES • se produce una serie de barreras administrativas, La Ley 100 de 1993 instauró en Colombia un siste-

económicas, geográficas y culturales para el acceso a los

ma de aseguramiento individual en salud que modificó el

servicios, como mecanismos de contención de costos

papel del Estado en la prestación de estos servicios dando

para el aumento de las utilidades del actor de mercado

mayor participación al sector privado; imponiendo a los

más beneficiado: las aseguradoras (EPS) privadas;

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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado

• el modelo de salud es homogenizador, no reconoce las diferencias en términos de territorio, clase, etnia, género, diversidad sexual; • el modelo se entroncó perfectamente con la nueva orientación de comienzo de milenio del Banco Mundial denominada manejo social del riesgo, que promueve el enfrentamiento y resolución de las diversas contingencias sociales, sanitarias y económicas a que están expuestas las personas desde el ámbito individual y familiar, reforzando que la protección social es un asunto de mercado donde el Estado es regulador de este y asignador de subsidios. Las orientaciones y resultados del modelo de salud en Colombia que se han descrito, permiten decir que no puede ubicarse como un modelo exitoso y con legitimidad exportable y que más bien se ve la urgente necesidad de establecer una política que coloque el bienestar y la promoción de la salud en el centro y razón de ser del modelo de salud, en una perspectiva universal y pública, y no como un asunto subordinado a la lógica de los intereses particulares del mercado, lo que debe permitir concretar

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AGRADECIMENTOS

/ ACKNOWLEDGEMENTS

A revista Saúde em Debate agradece a cooperação dos Consultores ad hoc que colaboraram no processo editorial das revistas n.76/75/77 e n.78/79/80 AMÉLIA COHN

MAGDA DIMENSTEIN

ANA LUIZA STIEBLER VIEIRA

MAGDA VAISSMAN

ANA MARIA COSTA

MÁRCIA CAR

ANA MARIA MALIK

MARIA HELENA MACHADO

ANDRÉA GUERRA

MARIA HELENA MENDONÇA

ANNA CHIESA

MARIA ISABEL BALTAR DA ROCHA

ÁQUILAS MENDES

MARIA LUIZA HEILBORN

ASSIS MAFORT

MARIA TERESA S. SOARES DE BRITO E ALVES

CÉLIA MARIA DE ALMEIDA

MARIANA BARCINSKI

DULCE MARIA SENNA

MARTA MARIA ALVES DA SILVA

ELIANE GONÇALVES

MYRNA COELHO

EMIKO EGRY

NINA ISABEL SOALHEIRO

ESTELA AQUINO

PATRÍCIA DORNELLES

EVERARDO DUARTE NUNES

RENATO VERAS

FÁTIMA CORRÊA OLIVIER

ROBERTO PASSOS NOGUEIRA

FERNANDO FREITAS

ROSANA ONOCKO CAMPOS

GREICE MENEZES

SARAH ESCOREL

GUILHERME CASTELO BRANCO

SILVIO YASUI

IANNI REGIA SCARCELLI

SIMONE GONÇALVES

IZABEL PASSOS

SIMONE MONTEIRO

JOSÉ AUGUSTO C.BARROS

SONIA BARROS

JOSÉ JUSTO STERZA

SONIA FLEURY

JOSÉ LUIS TELLES

TERESA SEABRA

JUAN STUARDO ROCHA

THOMAS JOSUÉ SILVA

JUAREZ PEREIRA FURTADO

TÚLIO FRANCO

KAREN GIFFIN

VICTOR VALLE

KATHIE NJAINE

VOLNEI GARRAFA

LUCIA C. DOS SANTOS ROSA

WALTER OLIVEIRA

LUCIENE KANTORSIKI

WANDA ESPIRITO SANTO

LYGIA MARIA FRANÇA PEREIRA

WILZA VILLELA

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 220, jan./dez. 2008

Associe-se ao Cebes e receba as nossas revistas O Cebes tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril, agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular.

QUEM SOMOS Desde a sua criação em 1976 o Cebes tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 31 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nas instituições ou no parlamento. Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o Cebes continua empenhado em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobre as questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade mais justa. A produção editorial do Cebes é resultado do trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação. A ficha abaixo é para você tornar-se sócio ou oferecer a um amigo! Basta enviar a taxa de associação (anuidade) de R$ 150,00 (institucional), R$ 100 (profissional) ou R$ 50,00 (estudante) em cheque nominal e cruzado, junto com a ficha devidamente preenchida, em carta registrada, ou solicitar, nos telefones ou e-mail abaixo.

CORRESPONDÊNCIAS DEVEM SER ENVIADAS PARA Cebes – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4.036 – Sala 802 – Manguinhos – 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141 – Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br / www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] / [email protected]

 FICHA DE INSCRIÇÃO (preencher em letra de forma) Valor: R$ 100,00 Para efetuar depósito: Caixa Econômica Federal – Agência: 1343 C/C: 0375-4 Operação: 003 CNPJ: 48.113.732/0001-14 Pagamento de Anuidade

Nome:

Nova Associação

Endereço:

Atualização de Endereço

Complemento: Bairro:

CEP:

Cidade:

UF:

Tel.: (

)

Cel.:

Fax.: ( E-mail:

Local de Trabalho: Profissão: Data de Inscrição: Assinatura:

)

INSTRUÇÕES AOS AUTORES - SAÚDE EM DEBATE A revista Saúde em Debate, criada em 1976, é uma publicação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), voltada para as Políticas Públicas na área da saúde. Publicada quadrimestralmen-

Documentos e depoimentos Serão aceitos trabalhos referentes a temas de interesse histórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial.

te nos meses de abril, agosto e dezembro, é distribuída a todos os associados em situação regular com a tesouraria do Cebes.

SEÇÕES DA PUBLICAÇÃO

Aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos originais, resenhas de livros de interesse acadêmico, político e social e

A revista está estruturada com as seguintes seções:

depoimentos.

Editorial

Os textos enviados para publicação são de total e exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desde que identificada a fonte e a autoria. A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres

Apresentação Artigos Temáticos Artigos de Tema Livre Artigos Internacionais Resenhas

do Conselho Editorial Ad-Hoc estabelecido para cada número

Depoimentos

da revista. Eventuais sugestões de modificações da estrutura ou

Documentos

de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações

APRESENTAÇÃO DO TEXTO

depois que os trabalhos forem entregues para a composição. Seqüência de apresentação do texto MODALIDADES DE TEXTOS ACEITOS PARA PUBLICAÇÃO

Os artigos podem ser escritos em português, espanhol ou inglês. Os textos em português e espanhol devem ter título

Artigos originais

na língua original e em inglês. Os textos em inglês devem

1. Pesquisa: artigos que apresentem resultados finais de

ter título em inglês e português e o título, por sua vez, deve

pesquisas científicas, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

expressar claramente o conteúdo do artigo.

2. Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema

A folha de apresentação deve trazer o nome completo

específico de relevante interesse para a conjuntura das políticas

do(s) autor(es) e, no rodapé, as referências profissionais (con-

de saúde no Brasil, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

tendo filiação institucional e titulação) e o e-mail para contato.

3. Revisão: artigos com revisão crítica da literatura sobre um tema específico, com tamanho entre 10 e 15 laudas.

Quando o artigo for resultado de pesquisa com financiamento, citar a agência financiadora.

4. Relato de experiência: artigos com descrições de expe-

Apresentar resumo em português e inglês (abstract)

riências acadêmicas, assistenciais e de extensão, com tamanho

ou espanhol e inglês, no qual fique clara uma síntese dos

entre 10 e 15 laudas.

propósitos, métodos empregados e principais conclusões do trabalho com o mínimo de três e máximo de cinco descrito-

Resenhas

res (keywords), não ultrapassando o total de 700 caracteres

Serão aceitas resenhas de livros de interesse para a área de

(aproximadamente 120 palavras). Para os descritores, utilizar

políticas públicas de saúde, a critério do Conselho Editorial.

os termos apresentados no vocabulário estruturado (DeCS),

Os textos deverão apresentar uma noção do conteúdo da obra,

disponíveis no endereço http://decs.bvs.br. Caso não sejam

de seus pressupostos teóricos e do público a que se dirige em

encontrados descritores relacionados à temática do artigo, po-

duas ou três laudas.

derão ser indicados termos ou expressões de uso conhecido.

Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito: a. as marcações de notas de rodapé no corpo do texto

Declaração de autoria e de responsabilidade Segundo o critério de autoria do International Commit-

deverão ser sobrescritas. Ex.: Reforma Sanitária1

tee of Medical Journal Editors, os autores devem contemplar

b. para as palavras ou trechos do texto destacados a critério

as seguintes condições: a) Contribuir substancialmente para

do autor, utilizar aspas simples. Ex.: ‘porta de entrada’.

a concepção e planejamento, ou análise e interpretação dos

c. quadros e gráficos deverão ser enviados em impressão de

dados; b) Contribuir significativamente na elaboração do

alta qualidade, em preto-e-branco e/ou escala de cinza, em

rascunho ou revisão crítica do conteúdo; c) Participar da

folhas separadas do texto, numerados e intitulados correta-

aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é neces-

mente, com indicações das unidades em que se expressam

sário que se assine a seguinte Declaração de Autoria e de

os valores e fontes correspondentes. O número de quadros

Responsabilidade:

e gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por artigo. d. os autores citados no corpo do texto deverão estar escritos

“Certifico que participei de forma suficiente na concep-

em caixa-baixa (só a primeira letra maiúscula), observando-

ção deste trabalho para tornar pública minha responsabilidade

se a norma da ABNT NBR 10520:2001 (disponível em

pelo seu conteúdo. Certifico que o manuscrito representa

bibliotecas). Ex.: Conforme Mario Testa (2000).

um trabalho original e que nem este manuscrito, nem outro

e. as referências bibliográficas deverão ser apresentadas,

com conteúdo substancialmente semelhante de minha au-

no corpo do texto, entre parênteses com o nome do

toria foi publicado ou submetido a apreciação do Conselho

autor em caixa-alta seguido do ano e, em se tratando

Editorial de outra revista, quer seja no formato impresso ou

de citação direta, da indicação da página. Ex.: (Miranda

no eletrônico.”

Netto, 1986; Testa, 2000, p. 15). Conflitos de interesse As referências bibliográficas deverão ser apresentadas

Os trabalhos encaminhados para publicação deverão

no final do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR

conter informação sobre a existência de algum tipo de con-

6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exemplos:

flito de interesse entre os autores. Os conflitos de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao

Carvalho, A.I. Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do

financiamento direto da pesquisa, mas também ao próprio vínculo empregatício.

Estado. In: Fleury, S.M.T. (Org.). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.

Ética em pesquisa

Cohn, A.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular

No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de 1997

e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do

e que envolvam seres humanos nos termos do inciso II da

município de São Paulo. Saúde em Debate, Londrina (PR),

Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (pesquisa

n. 38, p. 90-93, 1993.

que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de

Demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.

forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais) deverá ser

Extensão do texto

encaminhado um documento de aprovação da pesquisa pelo

O artigo deve ser digitado no programa Microsoft®

Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada.

Word, ou compatível, em página padrão A4, com fonte

No caso de instituições que não disponham de um Comitê

Times New Roman tamanho 12 e espaçamento entre linhas

de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada a aprovação pelo

de 1,5.

CEP onde ela foi aprovada.

Fluxo dos originais submetidos à publicação

Caso haja divergência de pareceres, o artigo será encami-

Todo original recebido pela secretaria do Cebes é

nhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho

encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação da

Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer).

pertinência temática e observação do cumprimento das

No caso de solicitação de alterações no artigo, poderão ser

normas gerais de encaminhamento de originais. Uma vez

encaminhados em até três meses.

aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a dois membros do quadro de revisores (pareceristas) da revista. Os pareceristas serão escolhidos de acordo com o tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros que não sejam do mesmo estado da federação que os autores. Os conselheiros têm um prazo de 45 dias para emitir o parecer. Ao final do prazo, caso o parecer não tenha sido enviado, o consultor será procurado e a oportunidade de

Ao fim desse prazo, e não havendo qualquer manifestação dos autores, o artigo será considerado como retirado. O modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico está disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br Envio do artigo Os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial devem ser enviados através do site da revista: www.saudeemdebate.org.br.

encaminhamento a outro conselheiro será avaliada. O formulário para o parecer está disponível para consulta no

Endereço para correspondência

site da revista na Internet. Os pareceres sempre apresenta-

Avenida Brasil, 4.036, sala 802

rão uma das seguintes conclusões: aceito para publicação;

CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ)

aceito para publicação (com sugestões não impeditivas);

Tel.: (21) 3882-9140

reapresentar para nova avaliação após efetuadas as modi-

Fax: (21) 2260-3782

ficações sugeridas; recusado para publicação.

E-mail: [email protected]

INSTRUCTION FOR AUTHORS - SAÚDE EM DEBATE The magazine Saúde em Debate, created in 1976, is a

Documents and declarations

publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),

Papers referring to themes of historical or conjectural

directed to Public Policies in the health field. Published every four

interest will be accepted under the criteria of the Editorial

months, in April, August and December, it is distributed to all of

Board.

the associates in regular situation with Cebes’ treasurer’s office. It receives unpublished works under the form of original

SECTIONS OF THE PUBLICATION

articles, book reviews of academic, political and social interest and declarations. The texts that are sent for publication are of total and exclusive responsibility of the authors. The total or partial reproduction of the articles is permitted, as long as identified the source and authorship. The publication of papers is conditioned to the opinions

The magazine is structured with the following sections: Editorial Presentation Thematic articles Free theme articles

of the Editorial Board Ad-Hoc established for each issue of the

International Articles

magazine. Occasional suggestions of alterations in structure

Reviews

or content, from the Board, will be previously resolved with

Declarations

the authors. Additions or modifications will not be admitted

Documents

once the works have been delivered for composition. TEXT PRESENTATION MODALITIES OF TEXTS ACCEPTED FOR PUBLICATION

Sequence of text presentation The articles may be written in Portuguese, Spanish or

Original articles Research: articles that present final results of scientific researches, between 10 and 15 sheets. Assays: articles containing a critical analysis about a specific subject of relevant interest for the health policies conjuncture in Brazil, between 10 and 15 sheets. Review: articles with a critical review of literature about a specific subject, between 10 and 15 sheets. Experience report: articles containing descriptions of academic, attendance and extension experiences, between 10 and 15 sheets.

English. The texts in Portuguese and Spanish must contain the title in the original language and in English. The texts in English must contain the title in English and in Portuguese, and it must express the content of the article clearly. The presentation sheet must have the author’s full name and, at the footnote, the professional references (containing institutional affiliation and title) and e-mail for contact. When the article is a result of financed research, cite the financing agency. Present the abstract in Portuguese and English, or Spanish and English, so that a summary of the purposes, methods

Reviews

used and main conclusions of the paper is clear with the

Book reviews of interest for the health public policies

minimum of three and maximum of five keywords, without

field will be accepted under the criteria of the Editorial Board.

exceeding the total of 700 letters (approximately 120 words).

The texts must present a notion about the content of the

For the keywords, use the terms presented in the structured

paper, of its theoretical purposes and of the public to which

vocabulary (DeCS), available on http://decs.bvs.br. In case the

it is directed in two or three sheets.

keywords related to the theme of the article are not found, it

Text extension

is possible to indicate terms or expressions commonly used.

The article must be typed on Microsoft® Word software,

After, the article itself is presented: a. the footnote markings must be superscribed. Ex: Sani-

or compatible, in pattern page A4, font Times New Roman, size 12 and 1,5 between lines.

tary Reform1 b. for words or extracts of the text that stand out under the author’s criteria, use simple quotation marks. Ex: ‘front door’.

Declaration of authorship and responsibility According to the criteria of authorship of the International Committee of Medical Journal Editors, the authors

c. boards and graphs must be sent in high quality print-

must contemplate the following conditions: a) to contrib-

ing, black and white and/or gray scale, in sheets that

ute substantially for the conception and planning, or data

are apart from the text, numbered and correctly en-

analysis and interpretation; b) to contribute considerably for

titled, containing indications of the units in which are

the elaboration of the draft or critical review of the content;

expressed the correspondent values and sources. The

c) to participate in the approval of the final version of the

number of boards and graphs must be, at most, five per

manuscript. For that, it is necessary to sign the following

article.

Declaration of Authorship and Responsibility:

d. the authors that are cited in the text must be written in small letters (only the first one is capital), observing the

“I certify that I have participated sufficiently for the

ABNT NBR 10520:2001 norm (available in libraries).

conception of this paper to make public my responsibility

Ex: According to Mario Testa (2000).

for its content. I certify that the manuscript represents an

e. bibliographical references must be presented in the text,

original paper and that not this manuscript nor any other

in parenthesis, with the name of the author in capital

with a substantially similar content of my authorship has been

letters followed by the year and, in the case of a direct

published or submitted to the analysis of an Editorial Board

quotation, the indication of the page. Ex: (Miranda

from another magazine, printed or electronic”.

Netto, 1986; Testa, 2000, p. 15). Conflicts of interest Bibliographical references must be presented at the end

The texts sent for publication must contain information

of the article, observing the ABNT NBR 10520:2001 norm

on the existence of any kind of conflict of interest among the

(available in libraries).

authors. The conflicts of financial interest, for instance, are not only related to the direct financing of the research, but

Examples: Carvalho, A.I. Conselhos de saúde, responsabilidade

also to the employment bond itself. Ethics in research

pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do

For researches initiated after January 1997 that involve

Estado. In: Fleury, S.M.T. (Org.). Saúde e democracia: a luta

human beings under the terms of the incise II, Resolution

do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.

196/96 of the Health Councils (research that individually

Cohn, A.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular

or collectively involves the human being, directly or indi-

e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do

rectly, in its totality or partially, including the management

município de São Paulo. Saúde em Debate, Londrina (PR),

of information or materials), a document of approval of the

n. 38, p. 90-93, 1993.

research by the Committee of Ethics in Research from the

Demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.

institution where it was developed must be sent. In the case

of institutions that do not have a Committee of Ethics in

In case there is a divergence in reports, the article will

Research, an approval by the Post Office Region where it has

be sent to a third counselor to decide (the Editorial Board is

been approved must be presented.

allowed, under its criteria, to emit a third report). In the case of alteration requirements in the article, they can be sent in

Flow of originals submitted to publication

up to three months.

Every original received by Cebes’ office is forwarded to the

At the end of this deadline, and if there is no mani-

Editorial Board for the evaluation of thematic pertinence and

festation from the authors, the article will be considered as

the observation of the fulfillment of general rules for directing originals. Once they have been accepted for analysis, the originals are forwarded to two members of the reviewer’s board (reporters) of the magazine. The reporters will be chosen according to the expertise and the theme of the article, giving priority to counselors who are not from the same State of the federation as the authors. The counselors have 45 days to emit the report. On the deadline, if it has not been sent, the consultant will be

cancelled. The model of the report used by the Scientific Council is available on http://www.saudeemdebate.org.br. Sending the article The work to be analyzed by the Editorial Board must be sent by the magazine’s website: www.saudeemdebate.org.br.

informed and the opportunity to forward it to another counselor will be analyzed. The form for the report is available for consulta-

Mail address

tion in the website of the magazine in the internet. The reports

Avenida Brasil, 4.036, sala 802

will always present one of the following conclusions: accepted

CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ)

for publication; accepted for publication (with non restraining

Phone: (21) 3882-9140

suggestions); present again for new evaluation after making the

Fax: (21) 2260-3782

suggested modifications; refused for publication.

E-mail: [email protected]

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)

Saúde em Debate

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)

A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)

Diretoria Executiva



Presidente

Sonia Fleury (RJ)



1O Vice-Presidente

Ligia Bahia (RJ)



2O Vice-Presidente

Ana Maria Costa (DF)



3O Vice-Presidente

Luiz Neves (RJ)



4O Vice-Presidente

Mario Scheffer (SP)



1O Suplente

Francisco Braga (RJ)



2O Suplente

Lenaura Lobato (RJ)



Diretor Ad-hoc

Nelson Rodrigues dos Santos (SP)

Gastão Wagner Campos (SP)



Diretor Ad-hoc

Rodrigo Oliveira (RJ)

Ligia Giovanella (RJ)

EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR

REVISÃO DE TEXTO, CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Zeppelini Editorial

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

Paulo Amarante (RJ)

Corbã Editora Artes Gráficas TIRAGEM 2.000 exemplares

CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL

PROOFREADING COVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING Zeppelini Editorial

PRINT AND FINISH Corbã Editora Artes Gráficas NUMBER OF COPIES 2,000 copies

Jairnilson Paim (BA)



Edmundo Gallo (DF) Francisco Campos (MG) CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL

Paulo Buss (RJ)



Áquilas Mendes (SP)

Eleonor Conill (SC)



José da Rocha Carvalheiro (RJ)

Emerson Merhy (SP)



Assis Mafort (DF)

Naomar de Almeida Filho (BA)



Sonia Ferraz (DF)

José Carlos Braga (SP)



Maura Pacheco (RJ)



Gilson Cantarino (RJ)



Cornelis Van Stralen (MG)

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.

This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.

Capa em papel cartão supremo 250 gr

Cover in premium card 250 gr

Miolo em papel kromma silk 80 gr

Core in kromma silk 80 gr

Editora Executiva / Executive Editor Marília Correia CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Sarah Escorel (RJ) Odorico M. Andrade (CE) Lucio Botelho (SC) Antonio Ivo de Carvalho (RJ) Roberto Medronho (RJ) José Francisco da Silva (MG) Luiz Galvão (WDC)

Indexação / INDEXATION

Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS) Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe

André Médici (DF) Jandira Feghali (RJ) José Moroni (DF) Ary Carvalho de Miranda (RJ) Julio Muller (MT) Silvio Fernandes da Silva (PR) Sebastião Loureiro (BA)

SECRETARIA / SECRETARIES

Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]

Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.

Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos

v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES

CDD 362.1



Saúde em Debate

v.32

n.78/79/80

jan./dez. 2008

Cebes

ISSN 0103-1104

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