Saúde em Debate
v.32
n.78/79/80
jan./dez. 2008
Cebes
ISSN 0103-1104
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Saúde em Debate
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)
A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)
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EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR
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Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.
This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.
Capa em papel cartão supremo 250 gr
Cover in premium card 250 gr
Miolo em papel kromma silk 80 gr
Core in kromma silk 80 gr
Editora Executiva / Executive Editor Marília Correia CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Sarah Escorel (RJ) Odorico M. Andrade (CE) Lucio Botelho (SC) Antonio Ivo de Carvalho (RJ) Roberto Medronho (RJ) José Francisco da Silva (MG) Luiz Galvão (WDC)
Indexação / INDEXATION
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS) Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe
André Médici (DF) Jandira Feghali (RJ) José Moroni (DF) Ary Carvalho de Miranda (RJ) Julio Muller (MT) Silvio Fernandes da Silva (PR) Sebastião Loureiro (BA)
SECRETARIA / SECRETARIES
Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail:
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Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.
Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos
v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
Rio de Janeiro
ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ISSN
0103-1104
v.32
n.78/79/80
jan./dez. 2008
S U M Á R I O • SUMMARY Editorial / EDITORIAL aPRESENTAÇÃO / PRESENTATION Artigos ORIGINAIS
/ Original articles
Ensaio 9 Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism Alice Hirdes R evisão 18 Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Psychology and Mental Health: three moments of a history João Leite Ferreira Neto Ensaio 27 A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental Eaps : challenge in the practice of the new devices of Mental Health Silvio Yasui, Abilio Costa-Rosa Ensaio 38 Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation of the Mental Health professional in the context of health promotion Walter Ferreira de Oliveira
Ensaio 49 Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate Richard Couto, Sonia Alberti 60 R evisão Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature Tatiana Ramminger Ensaio 72 A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea Ricardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino Ensaio 83 Saúde Mental e cultura: que cultura? Mental Health and culture: what culture? Alexandre Simões Ribeiro Ensaio 92 A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the Companhia Experimental Mu...dança Myrna Coelho
Pesquisa 99 A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva The territorial action of the Centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature Renata Martins Quintas, Paulo Amarante
108 R elato de E xperiência Grupo como dispositivo de vida em um C aps ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintoma Group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms Milena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann 121 Pesquisa Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro Magda Vaissman, Marise Ramôa, Artemis Soares Viot Serra 133 Pesquisa Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família Tick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health Strategy Ionara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares 143 Ensaio Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica Mental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric net Mariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos 150 Pesquisa A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context Katita Jardim, Magda Dimenstein 161 R elato de E xperiência A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro The construction of a territorial base service: the experience of the Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro Alexandre Keusen, Andréa da Luz Carvalho 172 R elato de E xperiência Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte Linking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas Gerais Serafim Barbosa Santos-Filho DocumentoS HISTÓRICOS
/ HISTORICAL DocumentS
182 Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental Comissão de Saúde Mental dos Cebes Artigos ORIGINAIS
/ Original articles
193 Ensaio A crise de dominação no sistema público de saúde The domination crisis in the Brazilian public health system Arlene Laurenti Monterrosa Ayala 200 Ensaio François Dagognet, por uma nova filosofia da doença François Dagognet, for a new philosophy of disease Sabira de Alencar Czermak ARTIGO INTERNACIONAL
/ INTERNATIONAL ARTICLE
207 Ensaio Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado Colombian health model: exportable, depending on the interest of the market Mauricio Torres Tovar
Editorial
A
mbiciosa e revolucionária, a Declaração de Alma-
Mesmo nesse Brasil de tantos avanços não é con-
Ata completou 30 anos sem que seus objetivos
sensual o lugar da atenção primária à saúde, tampouco
fossem totalmente concretizados. O Centro Brasileiro
são uniformes as abordagens em sua implementação.
de Estudos de Saúde (Cebes) dava seus primeiros passos
Vista por alguns gestores como programa seletivo que
quando, em setembro de 1978, a Organização Mundial
oferta uma “cesta” restrita de serviços e por outros,
da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a
meramente como um dos níveis de atenção à saúde,
Infância (Unicef) reuniram no Cazaquistão os represen-
ainda não foi viabilizada em sua concepção descentra-
tantes de 137 países que ungiriam a meta de acesso à
lizada, mais abrangente e integral. Estratégica porta de
saúde digna por todos, no mais tardar até o ano 2000.
entrada do sistema, a atenção primária tem um papel
A promessa era desenvolver ações urgentes baseadas
preponderante no processo de implementação do novo
na participação social e na promoção da atenção básica
modelo assistencial do SUS, desde que superadas a
à saúde. O apelo maior era em relação à necessidade
superposição de redes de assistência, a falta de unifor-
de uma ordem econômica mundial mais justa e mais
midade na execução do Programa Saúde da Família
solidária.
(PSF), as desigualdades no acesso e na utilização dos
A essência da Alma-Ata foi perdida, pois os resul-
serviços, a pouca valorização e formação inadequada dos
tados sanitários nunca foram tão desiguais no mundo,
profissionais, a focalização e seletividade de ofertas do
assim como nunca foi tão precário e injusto o acesso
pronto-atendimento mínimo – incluem-se nesse tópico
à saúde. Hoje, é de mais de 40 anos a diferença na
as Assistências Médicas Ambulatoriais (AMA) na cidade
expectativa de vida entre as nações mais pobres e as
de São Paulo e as Unidades de Pronto-Atendimento
mais ricas. Os gastos públicos com a saúde nesses paí-
(UPA) no município do Rio de Janeiro, alimentadas,
ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dólares por
na verdade, pelo marketing eleitoral.
pessoa e por ano. Muitos Governos deram respostas
Desde que proposta a ‘re-fundação’ do Cebes, tem-se
inadequadas em relação a esse setor, além de terem sido
voltado muito a atenção para a necessidade de retomada
incapazes de antecipar os problemas e impotentes na
do espírito crítico, do debate propositivo que deu origem
busca de soluções.
ao projeto da Reforma Sanitária brasileira. Não se trata
Em ano de efemérides – 20 anos de Sistema Único de Saúde (SUS), 30 anos de Alma-Ata, 60 anos da De-
de insistir na ressurreição da reforma em si, mas de reconhecer o seu grande êxito na construção do SUS.
claração Universal dos Direitos Humanos – O Brasil tem
Da mesma forma, não se trata de reinventar o
bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na
passado, mas de manter o clima dos movimentos que
tentativa de melhoria da saúde de seu povo. O relatório
se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos,
anual da OMS de 2008 voltou a recomendar a adoção da
capazes de exercitar a crítica, de reconhecer as deficiên-
atenção primária à saúde em todos os países e destacou
cias, de reorientar os compromissos institucionais e de
o Brasil como exemplo. Os avanços na construção da
radicalizar a democracia.
política nacional de Saúde Mental, um dos temas desta Saúde em Debate, representam bem essa conquista.
A DIRETORIA NACIONAL Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008
3
4
Editorial
A
mbitious and revolutionary, the Alma-Ata Decla-
Even in Brazil, with so many advances, the placing
ration has completed 30 years, without the total
of primary attention to health is not consensual, and nei-
fulfillment of its objectives. The Centro Brasileiro de
ther are uniform the approaches in its implementation.
Estudos de Saúde (Cebes) was taking its first steps when,
Considered by many managers as a selective program
in September, 1978, the World Health Organization
that offers a restricted “basket” of services and, by others,
(WHO) and the United Nations Children’s Fund (Uni-
as merely one of the levels of attention to health, it hasn’t
cef) brought together in Kazakhstan 137 representatives
been made possible in its decentralized concept, more
of countries that would reach the goal of providing access
extensive and complete. As a strategic front door of the
to a deserving health for all, until 2000, at the latest.
system, primary attention plays a preponderant role
The promise was to develop urgent actions based on
in the process of implementing a new SUS assistance
social participation and on the promotion of basic atten-
model, as long as some issues can be overcome, such
tion to health. The greatest plea was related to the need
as the superposition of assistance networks, the lack
for a fairer and more solidary economic world order.
of uniformity to execute the Family Health Program
The essence of the Alma-Ata was lost, because the
(PSF), the inequalities to access and to use the services,
sanitary results have never been so unequal in the world,
the little importance given to professionals and their
as well as the access to health, which has never been so
inadequate qualification, the focalization and selectivity
precarious and unfair. Nowadays, the difference of life
of minimum emergency room offers – in this topic are
expectation rates between the poorest and the richest
included the Ambulatory Medical Care (AMA), in São
nations is of more than 40 years. Public expenses with
Paulo, and the Emergency Rooms (UPA), in Rio de
health in these countries vary, respectively, from 20 to
Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing.
6 thousand dollars per person and per year. Many Go-
Since the proposal of re-founding Cebes, there has
vernments have given inadequate answers regarding this
been a lot of attention into the need to retake the critical
sector, and have also been incapable of anticipating the
spirit, the preposition debate that originated the Bra-
problems and impotent in the search for solutions.
zilian Sanitary Reform project. It is not about insisting
On an ephemerides year – 20 years of National Health System (SUS), 30 years of Alma-Ata, 60 years of
on the resurrection of the reform itself, but recognizing its great success in constructing SUS.
the Universal Declaration of Human Rights – Brazil has
Also, it is not about reinventing the past, but
good reasons to be proud of the work accomplished in
keeping the atmosphere of the movements that were
the attempt to improve people’s health. The World Health
organized around collective ideas and projects, which
Report 2008 has once again recommended the adoption
were able to exercise the criticism, recognize deficien-
of primary attention to health in all countries, and poin-
cies, reorient institutional commitments and radicalize
ted Brazil as an example. The advances in constructing a
democracy.
Mental Health national policy, one of the subjects of this Saúde em Debate, clearly represent this achievement.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008
THE NATIONAL DIRECTORATE
Apresentação
E
sta revista surge num momento muito especial,
A revista é iniciada com uma série de artigos de
afinal, comemoram-se os 30 anos da Reforma Psi-
natureza conceitual. Aqui se incluem os artigos de
quiátrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos
Alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquiátrica
uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um
e da reabilitação psicossocial a partir do materialis-
hospital psiquiátrico. O objetivo desta imagem provo-
mo dialético, de João Leite Ferreira Neto, com uma
cativa é demarcar a distância histórica, ética e política
análise história de três momentos da psicologia em
entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenário atual
Belo Horizonte, de Silvio Yasui e Abilio Costa-Rosa,
de participação dos usuários na construção da política,
que discorrem sobre a estratégia e os desafios do novo
serviços e estratégias em Saúde Mental.
modelo de atenção psicossocial, de Walter Oliveira
No início deste ano, em meio às comemorações dos
que aborda as bases conceituais da Saúde Mental
30 anos de reforma, foi realizado, no Rio de Janeiro,
e sua relação com a formação dos profissionais no
o II Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde
contexto da promoção da saúde. O artigo de Richard
Mental e Direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas,
Couto e Sonia Alberti apresenta um histórico sobre
militantes das mais diversas áreas da saúde e dos direi-
o conceito de Reforma Psiquiátrica e a tensão entre
tos humanos, participaram desse Fórum debatendo e
clínica e atenção psicossocial e, para finalizar a série,
construindo um novo cenário para a Saúde Mental no
uma importante revisão de estudos brasileiros sobre
Brasil e em várias partes do mundo.
Saúde Mental do trabalhador, de autoria de Tatiana
Para encerrar o ano com chave de ouro, lançamos
Ramminger.
este número especialmente dedicado ao tema da Saúde
A intervenção no campo da cultura tem assumido
Mental, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental,
um papel importante no processo da Reforma Psiqui-
organizado pela recém-criada Associação Brasileira de
átrica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos
Saúde Mental (Abrasme).
é dedicado à relação entre cultura e Saúde Mental.
Há um consenso na área da saúde coletiva sobre a
O texto de Ricardo Aquino trata dos fundamentos e
importante contribuição que o campo da Saúde Mental
princípios da Escola Livre de Artes Visuais do Museu
tem trazido para a saúde de forma geral, problematizan-
Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Alexandre
do a relação instituição-usuário e de institucionalização,
Ribeiro aborda as articulações entre Saúde Mental
destacando a importância do trabalho e do envolvimento
e cultura e Myrna Coelho tece comentários sobre a
da família, bem como a importância do trabalho no
dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica a
território. Enfim, são muitas, e reconhecidas, as contri-
partir das experiências vivenciadas na Companhia
buições. Sabemos que uma revista sobre Saúde Mental
Experimental Mu...dança.
não será consultada apenas por profissionais da área, mas de toda a saúde pública.
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dispositivos estratégicos da política pública de Saúde Mental
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Apresentação brasileira, são objetos de pesquisa no artigo de Renata
Na seção de Documentos Históricos, republicamos
Quintas e Paulo Amarante que discorrem sobre as
uma das primeiras manifestações políticas do processo
características inovadoras e substitutivas de tais dispo-
de Reforma Psiquiátrica no Brasil, um marco da pro-
sitivos. O artigo de autoria de Milena Leal Pacheco e
dução crítica em Saúde Mental no país. Trata-se de um
Luiz Zielgman traz algumas reflexões sobre a terapia em
documento elaborado pelo Comissão de Saúde Mental
grupo em um Caps especializado em dependência quí-
do Cebes, intitulado Condições de assistência ao doente
mica; contemplamos, ainda, uma análise do tratamento
mental que, trazendo uma análise bastante precisa das
dos usuários de drogas no Rio de Janeiro no texto de
características de desassistência e violência institucional
Magda Vaissman et al.
do modelo psiquiátrico de então, foi apresentado no
Outro tema importante diz respeito às relações e
I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos De-
possibilidades entre a área da Saúde Mental e a Saúde
putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpósio,
da Família que, de formas distintas, está presente nas
o Cebes apresentou à sociedade brasileira a proposta
abordagens dos artigos de Ionara Rabelo e Rosana
do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do histórico
Carneiro Tavares, através dos resultados de uma in-
texto A questão democrática na área da saúde. A capa da
tervenção psicossocial em mulheres que faziam uso de
presente edição traz uma das ilustrações desse texto.
ansiolíticos, e de Mariana Dorsa Figueiredo e Rosana
Temos uma pauta bastante ampla e variada, que
Onocko Campos, que traz algumas observações acerca
caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimensão
do apoio matricial à Saúde Mental na atenção básica
do campo da Saúde Mental.
à saúde.
Na seção de temas gerais, publicamos os artigos de
A atenção aos usuários em crise é um dos aspectos
Arlene Laurenti Ayala com uma instigante análise sobre a
mais sérios e que coloca em xeque todo o processo da
crise de dominação ou controle das instituições de saúde
Reforma Psiquiátrica. Três artigos são dedicados a esse
por parte dos trabalhadores de saúde e da população. O
tema: O de Katita Jardim e Magda Dimenstein, que traz
texto de Sabira de Alencar traz as reflexões do filósofo,
um análise das práticas do Serviço de Atendimento Mó-
médico e epistemólogo François Dagognet, o precursor,
vel de Urgência (Samu) em Aracaju e suas articulações
a seu modo, da tradição de seu mestre Georges Cangui-
com a rede de atenção psicossocial; o artigo de Alexandre
lhem. Na seção internacional, Maurício Torres analisa
Keusen e Andréa da Luz Carvalho relata a trajetória de
em seu artigo os aspectos relacionados à estrutura, ao
um centro de atenção em Saúde Mental que atende à
financiamento e funcionamento do modelo de saúde
crise e se baseia na lógica do trabalho territorial. Serafim
colombiano.
Santos-Filho aborda a rica experiência de planejamento e gestão da rede de serviços de saúde e Saúde Mental
Boa leitura!
em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos
Paulo Amarante
para os gestores.
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Editor Científico
Presentation
T
his magazine appears at a very special moment,
The magazine starts with a series of articles of
after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric
conceptual nature. Here are included articles by Alice
Reform in Brazil is commemorated. To celebrate this
Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho-
date, we have selected a strange cover: a picture of prison
social rehabilitation from dialectic materialism; by João
cell bars of a psychiatric hospital. The purpose of this
Leite Ferreita Neto, with historical analysis of three
provocative image is to delimit the historical distance,
moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio
ethics and politics between the initial moment, 1978
Yasui and Abilio Costa-Rosa, who discourse about the
and 1979, and the current scenery of users’ participation
strategies and challenges of the new model of psychoso-
in the construction of Mental Health politics, services
cial attention; by Walter Oliveira, who approaches the
and strategies.
conceptual basis of Mental Health and its relation to
In the beginning of this year, during celebrations
the graduation of professionals in the context of pro-
for the thirty years of the reform, the 2 International
moting health. The article by Richard Couto and Sonia
Forum about Collective Health, Mental Health and
Alberti presents the history of the Psychiatric Reform
Human Rights took place in Rio de Janeiro. More than
concept and the tension between clinic and psychosocial
3 thousand people, militants in different fields of health
attention and, to end the series, an important review of
and human rights, have participated in this Forum,
Brazilian studies about Mental Health of workers, by
debating and constructing a new scenery for Mental
Tatiana Ramminger.
nd
Health in Brazil and around the world.
The intervention in the culture field has been
To end the year with a cherry on top, we have
assuming an important role in the process of the Bra-
released this issue, specially dedicated to the theme of
zilian Psychiatric Reform and, because of that, another
Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental
block of articles is dedicated to the relation between
Health, organized by the recently created Associação
culture and Mental Health. A text by Ricardo Aquino
Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
about the fundamentals and principles of the Escola
There is consensus in the collective health area
Livre de Artes Visuais from the Museu Bispo do Ro-
about the important contribution brought by the
sário de Arte Contemporânea is presented. Alexandre
Mental Health field for health in general, rendering
Ribeiro approaches the articulations between Mental
problematic to the relation institution-user and institu-
Health and culture and Myrna Coelho comments on
tionalization, accentuating the importance of health and
the sociocultural dimension of the Psychiatric Reform
family involvement, as well as the importance of field
from experiences seen in the dancing group Companhia
work. Anyway, there many recognized contributions.
Experimental Mu…dança.
We know that a magazine about Mental Health will
The Psychosocial Care Centers (the so called Caps
not be consulted only by professionals of the field, but
in Brazil), strategic devices from the public policy of
by the whole public health.
Brazilian Mental Health, are objects of research in the
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Presentation article by Renata Quintas and Paulo Amarante, who
the process of Psychiatric Reform in Brazil, a mark of
discourse about the innovative and substitutive charac-
critical production on Mental Health in the country. It
teristics of these institutions. The article by Milena Leal
is a document developed by the Mental Health Com-
Pacheco and Luiz Zielgman brings subjects to reflect
mittee of Cebes, entitled Condições de assistência ao
about group therapy at a Caps that is specialized in
doente mental, that, by bringing a very precise analysis
chemical dependence; we also contemplate an analysis
of the characteristics of unassistance and institutional
of drug users` treatment in Rio de Janeiro, in the text
violence of the early psychiatric model, was presented
by Magda Vaissman et al.
at the 1st Symposium of Health Policies in the Deputy’s
Other important theme argues about the relations
in October, 1979. In this symposium, Cebes presented
and possibilities between the field of Mental Health and
to the Brazilian society the proposal of the Unified
Family Health that, in distinct ways, is present in the
National Health System (the so called SUS in Brazil)
analysis of articles by Ionara Rabelo and Rosana Carnei-
from the historical text A questão democrática na área da
ro Tavares, through results of a psychosocial intervention
saúde. The cover of the present edition has one of the
in women who were on anxiolytics, and by Mariana
illustrations of this text.
Dorsa Figueiredo and Rosana Onocko Campos, that
The subjects are very broad and varied, which cha-
brings some observations about matricial support to
racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension
Mental Health in the primary health care.
of the Mental Health field.
The attention to users in crisis is one of the most
In the general themes section, we have published
serious aspects and jeopardizes the whole process of the
the articles by Arlene Laurenti Ayala with a provoking
Psychiatric Reform. Three articles are dedicated to this
analysis about the domination crisis or the control of the
subject: The one by Katita Jardim and Magda Dimens-
health institutions by the health workers and the popu-
tein, which brings an analysis of practices of the Mobile
lation. The text by Sabira de Alencar brings reflections
Urgency Service (the so called Samu in Brazil) in Aracaju
of the philosopher, doctor and epistemologist François
and its articulations with the net of psychosocial atten-
Dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition
tion; the article by Alexandre Keusen and Andréa da Luz
of his master Georges Canguilhem. In the international
Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care
section, Maurício Torres analyzes the aspects related to
Center that attends to the crisis and is based on the logic
the structure, financing and functioning of the Colom-
of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the
bian health model.
rich experience in planning and managing the net of services of health and Mental Health in Belo Horizonte,
Enjoy your reading!
pointing out important directions for managers. In the section of Historical Documents, we have
Paulo Amarante
republished one of the first political manifestations on
Scientific Editor
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism
Alice Hirdes
1
1
Mestre em Enfermagem pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); docente de Saúde Mental
RESUMO Este estudo traz uma reflexão teórica acerca da utilização do referencial teórico metodológico do materialismo dialético como suporte para interpretação
da Universidade Luterana do Brasil
e discussão do processo de Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial no
(Ulbra).
contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialética e a dialética do
[email protected]
concreto como substrato teórico para analisar os movimentos que se desenvolveram historicamente no campo da Saúde Mental e assim como na área da reabilitação psicossocial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Desinstitucionalização; Marxismo.
ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodological theoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical support to the analysis of the movements that have taken place in the field of mental health as well as in psychosocial rehabilitation. KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization; Marxism.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
I N T R O D U ç ão
Este artigo tem como objetivo realizar uma reflexão teórica sobre o tema da Reforma Psiquiátrica e da reabilitação psicossocial a partir do materialismo dialético. Recorreu-se a autores como Lukács (1979), Konder (1981), Kosik (1995) e Lefebvre (1991), a fim de se resgatarem os princípios e leis da dialética que sustentam uma interpretação dos fenômenos com base materialista. Para tais autores, nada que existe é eterno, fixo, absoluto. Toda vida humana é social e está sujeita a transformações, ou seja, está historicamente condicionada. O sujeito humano é essencialmente ativo e interfere na realidade. Para a história sociológica (ou sociologia histórica), os seres humanos não são apenas objeto de investigação, mas sujeitos em relação ao processo investigatório.
compreender as diferenças numa unidade ou totalidade parcial; buscar a compreensão das conexões orgânicas, isto é, do modo de relacionamento entre as várias instâncias da realidade e o processo de constituição da totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em análise, as determinações essenciais e as condições e efeitos de sua manifestação. (Minayo, 1988, p. 70). Ao abordar a dialética da totalidade concreta, Kosik (1995) dá ênfase à idéia de que esse não é um método que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um panorama total da realidade, mas é uma teoria da realidade e do conhecimento que se tem dela como realidade. É a partir do entendimento da realidade como concretude possuidora de uma estrutura própria que se desenvolvem concepções da realidade. Dessas concepções decorrem conclusões metodológicas que se convertem em princípios epistemológicos para o estudo de temas da realidade ou de práticas relativas à organização da vida humana e da situação social. Kosik enfatiza que a totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. (1995, p. 44).
UMA BREVE VISÃO HISTÓRICA DO MATERIALISMO DIALÉTICO
Pontua, também, que totalidade não significa conhecer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um
A lógica dialética, conforme Minayo (1998),
todo estruturado, dialético, no qual um fato ou conjunto
“introduz na compreensão da realidade o princípio
de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. O
do conflito e da contradição como algo permanente
conhecimento de fatos acumulados da realidade não sig-
que explica a transformação” (p. 68). Outra tese
nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunião
fundamental da dialética é “o caráter total da exis-
de determinados fatos não constitui ainda a totalidade.
tência humana e da ligação indissolúvel entre história
Se compreendidos como partes estruturais de um todo
dos fatos econômicos e sociais e história das idéias”
dialético, os fatos são conhecimentos da realidade.
(p. 69-70).
Konder (1981) também ressalta a característica
A partir do conceito de totalidade, que busca reter
totalizante do conhecimento na dialética marxista. Essa
a explicação do particular no geral e vice-versa, ocorre
teoria decompõe o todo em partes para depois recompô-
o processo de pesquisa. O princípio metodológico da
lo e chegar à totalidade. Entretanto, o autor salienta que
totalidade significa:
tal totalidade não é simplesmente a soma das partes do
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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitação de-
isso é necessário que sejam desveladas as partes, em um
senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis-
constante caminho traçado do concreto ao abstrato
ciplinar, os conhecimentos se entrelaçam e os resultados
e vice-versa. Mas isso não significa, de modo algum,
obtidos certamente serão mais ricos do que o trabalho
deixar de lado a totalidade, a conexão e interligação dos
realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta última,
fenômenos do todo. A complexidade da dialética se dá
o trabalho é realizado em equipe, entretanto os saberes e
pela busca constante da superação, pela não-satisfação
práticas são executados de forma isolada, estanque, cada
com o já atingido, pela busca por formas mais elevadas
um com um papel fixo, pré-determinado. Isso que dizer
de apreensão da realidade e a explicitação que as contra-
que o resultado dessa intervenção será um, ao passo que
dições da realidade e dos fenômenos encerram.
a ocorrência simultânea de várias abordagens articuladas
De acordo com Lukács:
entre si, será outra. Este autor chama atenção para o fato de que a aproximação da realidade não é a realidade, e que a realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem dela. Outra noção diz respeito à visão de conjunto da realidade. Esta visão é sempre provisória, pois a reali-
o conhecimento, que está em condições de apreender dialeticamente as ‘astúcias’ da evolução histórica, só é válido e eficaz quando suas aquisições forem outros tantos expedientes para a ação prática, cujas experiências virão, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma força sempre nova. (1979, p. 237).
dade não é estática, mas dinâmica e em está constante transformação; não se pode pretender o esgotamento
Entendo que o conhecimento deverá ser passível de
da realidade de determinado contexto. Ou seja, nunca
ser traduzido em uma prática; prática essa transforma-
a realidade alcança uma forma definitiva, acabada.
dora e que, se entendida a partir do conceito marxista
A dialética, enquanto conceito grego da arte do
de práxis – união da prática com a teoria – pode levar
diálogo é utilizada cotidianamente pelos profissionais
à emancipação do ser humano. Nessa perspectiva, o
de Saúde Mental nas negociações com os usuários e seus
estudo de outras formas de tratamento e recuperação
familiares, assim como pela interlocução estabelecida
de portadores de transtornos psíquicos emerge como
entre profissionais de equipes interdisciplinares. A dia-
uma força que se empenha na busca de soluções mais
lética enquanto conceito moderno do modo de pensar
completas e complexas, visualizando a totalidade do
as contradições da realidade e modo de compreender
ser humano. Na perspectiva dialética, a transformação
a realidade em constante transformação nos remete
das idéias acerca da realidade e a transformação dessa
à busca constante de novas formas de abordagem da
realidade devem caminhar juntas.
complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por
De acordo com Kosik (1995) o homem não está
formas mais completas nas quais, através da construção
emparedado na subjetividade, mas tem com a sua
de novas possibilidades, o portador de sofrimento psí-
existência a capacidade de conhecer as coisas como elas
quico reencontre e reescreva a sua história.
realmente são. E este conhecimento se dá através da
Por outro lado, dialética, enquanto modo de pen-
práxis. A dialética, para o autor, trata da “totalidade do
sar as contradições da realidade, a história humana e a
mundo revelada pelo homem na história e o homem
transformação da sociedade, nos leva a uma permanente
que existe na totalidade do mundo” (p. 248).
inquietação, porque não se satisfaz com a aparência
O princípio metodológico da investigação dialética
das coisas, está sempre à procura de sua essência. Para
da realidade social é, para o autor anteriormente referido,
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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa
se a atenção nos aspectos sadios e concomitantemente
que cada fenômeno pode ser compreendido como um
busca-se melhorar a vida do ser humano portador de
momento do todo. Ressalta-se que um fenômeno social é
transtornos psíquicos através de práticas de reabilitação
um fato histórico que desempenha dupla função: definir
psicossocial.
a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser
Aos novos serviços deverá corresponder uma clínica
revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con-
renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual
quistar o próprio significado e conferir um sentido a algo
simultânea ou seqüencialmente, sejam desenvolvidos
mais. Essa conexão das partes e do todo demonstra que
projetos terapêuticos que contemplem as necessidades
os fatos isolados são momentos artificiosamente separa-
psicossociais das pessoas envolvidas. Isto é o que poderá
dos do todo, os quais só adquirem verdade e concretude
efetivamente trazer uma pessoa a ser cidadã. Importante
quando inseridos no todo correspondente. Assim como
se faz pontuar que os projetos não podem ser modelos
o todo, se os momentos não forem separados tornam-se
construídos a partir dos profissionais; devem ser cons-
um todo vazio e abstrato (Kosik, 1995).
truídos coletivamente com os maiores interessados: os
Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filósofo
usuários.
alemão e um dos expoentes do pensamento dialético, o trabalho é a mola propulsora do desenvolvimento humano através da qual pode ser compreendida a atividade PRINCIPAIS LEIS
criadora do ser. Hegel introduziu a concepção de superação dialética utilizando a palavra alemã aufheben, que significa suspender. O filósofo emprega três diferentes
Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen-
sentidos à palavra: o primeiro sentido é negar, anular,
to dialético de Hegel ser considerado abstrato, vago,
cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mantê-la
idealista, Marx e Engels reescreveram a dialética dentro
suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a
de uma perspectiva materialista. As três leis da dialética
passagem de alguma coisa para um plano superior. A su-
formuladas por Engels com base em Hegel são: lei da
peração dialética, para Hegel, é a ocorrência simultânea
passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); lei
da negação de uma determinada realidade, a conservação
da unidade e luta dos contrários e lei da negação da
do essencial que existe na realidade negada e a elevação
negação.
dela a um nível superior (Konder, 1981).
Alguns autores contemporâneos como Lefebvre
Abstraindo da concepção dialética a questão
e Konder entendem que as leis da dialética não se
negação-superação para o referencial de reabilitação
deixam reduzir a três. Esse reducionismo, na visão
psicossocial, trago a negação da realidade assistencial
de Konder (1981), é arbitrário, mas isso não significa
dos portadores de transtornos mentais centrado no
que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com
modelo do dano, nos déficits, assim como o resgate
precaução. Lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis
e a centralização do foco nas habilidades e a busca do
do método dialético deverão ser universais e concre-
trabalho para se atingirem os objetivos de reinserção
tas. Para este autor o método representa o universal
social, cidadania e qualidade de vida. Ou seja, nega-se
concreto. E estas leis deverão ser, ao mesmo tempo,
a primeira realidade, a centralização do foco nos sinais
leis do real e do pensamento. Deverão ser concretas
e sintomas; em suma, na doença resgata-se e centraliza-
para atingir toda a realidade, mas não podem subs-
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tituir a investigação e o contato com o conteúdo.
E esta lei encontra-se atrelada à lei do movimento
Através da investigação das realidades particulares,
universal, que reintegra o movimento interno dos fatos
da experiência e do contato com o conteúdo pode-se
e fenômenos e o movimento externo, que os envolve no
chegar à essência, ao conceito e às relações das leis
devir e vir-a-ser universal. A pesquisa dialética considera
particulares. O autor ressalta:
cada fenômeno no conjunto de suas relações com os demais fenômenos e com a realidade. Nessa lei, compre-
o método é alternadamente a expressão das leis universais e o quadro de aplicação delas ao particular; ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular subunir-se ao universal.(1991, p. 237).
endemos a reintegração dos fenômenos – institucionalização/desinstitucionalização/reabilitação psicossocial em seu movimento próprio. Através do movimento destes fenômenos se estabelece o entendimento essencial e a
As grandes leis do método dialético para Lefebvre
conexão entre eles.
são: lei da interação universal (da conexão, da media-
A lei da unidade (interpretação) dos contrários nos
ção recíproca de tudo que existe); lei do movimento
fornece a idéia de que a contradição dialética é uma
universal; lei da unidade dos contrários; transformação
inclusão concreta dos contraditórios um no outro e,
da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de-
simultaneamente, uma exclusão ativa. Diferentemente
senvolvimento em espiral (da superação).
da lógica formal que conserva os dois contraditórios à
A lei da interação universal prevê que nada é
margem um do outro, que estabelece uma relação de
isolado. O isolamento dos fatos e fenômenos significa
exclusão. A contradição dialética se situa no universal
uma privação de sentido, de explicação, de conteúdo.
concreto, enquanto a contradição formal permanece na
A pesquisa dialética considera cada fenômeno no
generalidade abstrata.
conjunto da inter-relação com os demais fenômenos e, também, o conjunto da realidade na qual ele é fenômeno. Essa lei estabelece uma conexão importante dos
O método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. (Lefebvre, 1991, p. 238).
processos de institucionalização/ desinstitucionalização e da discussão da reabilitação psicossocial. Sem o enten-
Nessa lei, situo a institucionalização e a desins-
dimento anterior sobre a conformação do instituciona-
titucionalização em psiquiatria (intrinsecamente
lismo em psiquiatria e dos saberes e práticas que durante
contraditórias), como dois lados opostos um ao
décadas legitimaram essa especialidade, não haverá o
outro, mas com uma unidade em comum: o foco na
entendimento ulterior da reabilitação psicossocial em
abordagem da doença mental. Conforme o contexto,
sua totalidade. A reabilitação psicossocial nasceu de
prevalecerá um ou outro – a institucionalização ou
um conjunto de situações: a diminuição dos pacientes
a desinstitucionalização. As idéias contidas em um
internados em hospitais psiquiátricos a partir dos anos
e em outro modelo entram em choque na realidade
1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes
concreta através das práticas executadas. A realidade
ainda hospitalizados e a evolução dos conhecimentos
da desinstitucionalização não pode ser compreendida
psiquiátricos (Saraceno, 1999). Dessa forma, a rea-
sem o prévio entendimento da institucionalização,
bilitação psicossocial não pode ser tratada como um
assim como a conexão estabelecida com a reabilitação
fenômeno isolado.
psicossocial.
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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
As modificações quantitativas, lentas e graduais
Saúde Mental; em 1990, realizou-se a Conferência para
desembocam em uma modificação qualitativa que apre-
a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica, em Caracas,
senta características bruscas, tumultuosas, expressam a crise e a metamorfose através da intensificação de todas
que resultou na Declaração de Caracas. Finalmente, em 1992, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde
as contradições. É a transformação da quantidade em
Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere
qualidade, também chamada lei dos saltos. O salto
às conferências e à legislação (porque os serviços conti-
dialético implica, simultaneamente, a continuidade e a
nuaram sendo constituídos) até a aprovação, em abril
descontinuidade. Ou seja, o movimento que continua
de 2001, da Lei de Reforma Psiquiátrica. Em 2001, Foi
e o aparecimento do novo. Trago, nesta lei, as mudanças ocorridas com o
estabelecido um novo fórum de discussões por meio da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental.
processo de desinstitucionalização identificadas em
A lei do desenvolvimento em espiral defende que
alguns lugares do mundo a partir da década de 1960 e
há um salto dialético entre a vida e a matéria sem vida,
no Brasil mais tardiamente, após a redemocratização. As
e não uma descontinuidade absoluta. Há uma unidade
transformações políticas, a redemocratização no país, a
sempre renovada entre o individual e o universal, que
Constituição de 1988, a luta pelos direitos humanos e
submete esse individual às leis universais. É na sociedade
o Movimento pela Reforma Sanitária desembocaram
e no pensamento que se revela o movimento em espiral:
em um movimento pela Reforma Psiquiátrica no Bra-
o retorno acima do esperado, para aprofundá-lo e elevá-
sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram
lo em nível, libertando-o de seus limites. É a contradição
mudanças bruscas, o ‘salto’ dialético, através das de-
dialética da negação da negação.
núncias expostas à opinião pública e o surgimento de novas experiências em Saúde Mental, com características desinstitucionalizantes. Observa-se como característica do salto dialético a continuidade, ou seja, o hospital
APLICAÇÃO DO MATERIALISMO
psiquiátrico como realidade ainda presente, os saberes
DIALÉTICO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA E
e práticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda
REABILITAÇÃO
não superados; e a descontinuidade, que compreende o aparecimento de novos serviços respaldados pelas iniciativas das políticas públicas de Saúde Mental.
Considero esta lei fundamental para a compreensão das mudanças e movimentos que o processo de Reforma
Uma característica da lei se refere ao fato de as coisas
Psiquiátrica encerra, pois ela contempla os refinamentos
não mudarem sempre no mesmo ritmo. Transpondo
conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife-
para a questão da Reforma Psiquiátrica, foi possível
renciação entre tratamento e reabilitação, o enfoque do
observar, nas últimas décadas, alguns períodos em que se
trabalho terapêutico sobre os aspectos da história de vida
intensificaram as discussões e o surgimento de novos ser-
das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. No mo-
viços, assim como períodos em que houve uma desace-
delo tradicional biomédico, centraliza-se no diagnóstico,
leração do processo. Historicamente, podemos situar as
nos sinais e sintomas, nos déficits. Através da modificação
décadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas
da centralização do trabalho terapêutico, não no modelo
discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica
da doença, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas,
a
no país. Em 1987, ocorreu a 1 Conferência Nacional de
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permitiu-se aprofundar a questão do sofrimento psíquico,
HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o
de desinstitucionalização. Entretanto, penso que, a des-
usuário/paciente e o profissional desses limites. Ocorre aí
peito de muitos serviços que trabalham sob a égide da
um salto dialético e não uma descontinuidade absoluta, já
Reforma Psiquiátrica em nosso país, há a necessidade de
que o tratamento continua a ser realizado, mas associado
constantemente redimensionarmos o olhar para as práticas
com técnicas de reabilitação psicossocial. A partir da
em curso para que aos novos serviços correspondam as
união tratamento-reabilitação psicossocial a compreensão
balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial
do indivíduo portador de transtorno psíquico torna-se
da Reforma Psiquiátrica italiana. Sabe-se que os projetos
aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais
de reforma não são homogêneos, pois as práticas são exe-
completas. A lei da negação da negação promove refina-
cutadas conforme a concepção teórica dos profissionais
mentos que são introduzidos aos poucos como estratégia
da área. Dessa forma, é possível visualizar a existência de
para se promover a superação dialética.
princípios orientadores gerais, mas que em última análise
Dentro de uma perspectiva mais ampla, de to-
estão subordinados aos settings específicos das práticas.
talidade, considera-se de fundamental importância o
Através da negação da negação, ou seja, a negação de uma
diagnóstico de vida de uma pessoa e o conseqüente
determinada realidade centrada na exclusão (na doença)
estabelecimento de um projeto terapêutico a partir do
para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios,
contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi-
na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento
cientemente flexível para que incorpore mudanças e dê
psíquico, deverá prevalecer a superação dialética.
margem a possíveis redimensionamentos. Ressalta-se
Os serviços se constituem, para Saraceno (1999),
a necessidade de leitura do contexto dentro de uma
como a variável que influi no processo reabilitativo.
mudança de óptica: comumente, tal leitura é realizada
O autor assinala como característica de um serviço de
em cima dos déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar
alta qualidade a capacidade do serviço em se ocupar de
as forças e os aspectos sadios constitui uma transição
todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de
importante no processo de tratamento e reabilitação,
reabilitação. Saraceno pontua, ainda, que os serviços
assim como a noção de indissociabilidade de ambos.
que não oferecem essas possibilidades acabam gerando
Lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialéticas
hierarquias de intervenção, e os menos dotados são
constituem uma análise do movimento e no movimento
excluídos do processo. O autor ressalta que um serviço
real estão implicadas a continuidade e a descontinui-
de alta qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com
dade, o aparecimento e choque de contradições, saltos
alta integração interna e externa:
qualitativos e superação. Encontram-se aí os aspectos do movimento. As leis dialéticas pressupõem uma unidade fundamental, que é encontrada no movimento, no devir universal. O que ocorre, segundo o autor, é a
[...] um serviço onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos prevalece sobre a separação dos mesmos e em que a organização está orientada às necessidades do paciente e não às do serviço.(1999, p. 96-97).
ênfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de estudo realizado.
A integração interna e externa também deverá
A partir desta constatação, utilizo como referência
acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen-
para o processo analítico neste estudo a lei do desenvolvi-
to e a reabilitação psicossocial. Essa integração se fará
mento em espiral, representado pela negação – superação
possível e concreta se os profissionais visualizarem a
dialética. Muitos avanços ocorreram com as experiências
importância da não-dissociação e assumirem ambos,
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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
o tratamento e a reabilitação. A idéia contida nessa
Acrescentam-se aqui as inquietações que Basaglia
proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas
(1985) já enfatizava: não é a redefinição da instituição
vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é execu-
em termos estruturais, através de novos esquemas,
tado por uns e a reabilitação, por outros. Ou seja, há
que garantirá ações terapêuticas, mas as relações
a necessidade de não-separação do trabalho manual do
que se estabelecerão dentro das novas organizações
intelectual reproduzido dentro dos serviços para que
assistenciais. Os novos serviços deverão atentar para
haja a superação dialética.
as possíveis (e concretas) contradições que podem se
Saraceno (1999) alerta que, na integração interna
configurar no seu interior. Uma dessas contradições
de um bom serviço devem ser contempladas estratégias
se refere ao discurso sobre a prática muitas vezes não
organizativas e afetivas. A permeabilidade dos recursos
ser condizente com a prática desenvolvida. Basaglia
e dos saberes deve superar a sua separação. Compreen-
postula que as contradições do real deverão ser
demos que esse patamar deveria se constituir no ideal
dialeticamente vividas. É importante ressaltar que,
a ser alcançado pelos serviços. Os movimentos nos ser-
nessa tentativa de criação de um mundo ideal, se as
viços, quando encaminhados às questões organizativas
contradições não forem ignoradas ou postergadas,
e afetivas concomitantemente, conduzirão à superação
mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se
dialética. Da mesma forma, quando os conflitos e
tornará terapêutica. Para isso, devem existir alterna-
contradições forem dialeticamente trabalhados, e não
tivas, possibilidades.
ocultados, será promovida a descontinuidade; o aparecimento do novo e a explicitação das contradições conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças reais nos serviços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Saraceno, Asioli e Tognoni (1997) destacam a atitude de integração da equipe como uma das muitas
Resgato a lei da dialética, defensora de que a nega-
variáveis que determinam a enfermidade e a eficácia da
ção é a força motriz do progresso. Negação essa, enten-
intervenção. Tais variáveis, relacionadas à organização e
dida como a negação de uma determinada realidade e
ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favoráveis ou
a força, como aquela que se empenha na construção de
desfavoráveis. Os autores conceituam uma equipe inte-
outra realidade mais rica e completa. Essa lei poderá ser
grada com variável favorável e que deve ter as seguintes
empregada no campo da Saúde Mental, mais especifi-
características: distribuição do poder; importância dos
camente na área da reabilitação psicossocial. Resgata-se,
conhecimentos; comunicação clara e não-contraditória;
neste processo, toda a potencialidade para a produção
discussão e planificação do trabalho; socialização dos
de vida significativa ao ser humano. Nesse momento
conhecimentos; autocrítica e avaliação periódica dos
ocorre um salto qualitativo significativo, através de
resultados. Entre os fatores que colcoam obstáculos
uma práxis transformadora que vislumbra todas as
à integração interna, os autores apontam a separação
possibilidades que se descortinam frente ao cuidado à
prática entre os diferentes papéis profissionais, os dife-
pessoa portadora de transtorno psíquico. Isso permite
rentes níveis de capacitação e de aspectos culturais dos
alcançar refinamentos conceituais que, em última análi-
papéis profissionais e os conflitos ou frustrações entre
se, proporcionarão um olhar crítico em relação à práxis
os membros da equipe.
da Reforma Psiquiátrica.
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HIRDES, A. • Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
O foco do trabalho terapêutico sobre a escuta, a validação da identidade dos usuários, bem como a abordagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos serviços pautada na égide da Reforma Psiquiátrica. Esses
Lukács, G. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. Minayo, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/ Abrasco, 1998.
diferenciais que contornam as ações introduzem saltos qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pessoas. A superação dialética é alcançada no momento em que são reunidos, no mesmo sujeito histórico, aspectos subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares de cada pessoa.
Saraceno, B.; Asioli, F.; Tognoni, G. Manual de saúde mental. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. Saraceno, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Te Corá, 1999.
Enquanto as práticas tradicionais objetalizavam o doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora, na qual a subjetividade é reintegrada com o corpo social
Recebido: abr./2008 Aprovado: nov./2008
dos portadores de sofrimento psíquico. Essa tomada de consciência sobre a importância dessas intervenções produz movimentos de superação da objetalização a que foi submetido o doente e, também, a reconstrução de um corpo físico, subjetivo e social.
R E F E R Ê N C I A S
Basaglia, F. (Org.). A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Konder, L. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Primeiros Passos). Kosik, K. Dialética do concreto. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. Lefebvre, H. Lógica formal/lógica dialética. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma história Psychology and Mental Health: three moments of a history
João Leite Ferreira Neto
1
Professor do Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
1
RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde
(PUC Minas); doutor em psicologia da
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas Gerais. O primeiro é aqui
PUC São Paulo.
chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio
[email protected]
matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área. Conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente prática matricial. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial; Apoio matricial; Psicoterapia de Grupo.
ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. The first moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third, matrix support. This paper is examines a literature review and documents of the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand, enables the professional to work with present-day practice in matrix support. KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix support; Psychotherapy, Group.
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I N T R O D U ç ão
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
A polaridade entre abordagens individuais e coletivas, e a composta pela especificidade da Saúde Mental e da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo da saúde geral e reforma sanitária. Além da necessária revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de
Quando a psicologia foi reconhecida como profissão em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote-
dados será um conjunto de documentos produzidos no decorrer da história mineira e da nacional.
rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório, a organizacional e a educacional. A saúde pública ainda não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos essa situação mudou drasticamente. Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psicologia (Spink, 2007). Diversos estudos apontam que a crescente presença dos psicólogos na saúde pública no Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátrica e com a criação do campo chamado de Saúde Mental (Dimenstein, 1998; Ferreira Neto, 2004). O objetivo deste artigo é a apresentação de alguns elementos da história da entrada e do percurso dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde Mental, no município de Belo Horizonte, Minas
Momento ‘implantação’ – anos 1980 O Programa de Saúde Mental foi oficialmente implantado em Minas Gerais, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do governador Tancredo Neves pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (Pmdb). Nesse período, um número expressivo de profissionais de saúde com perfil progressista ocupou postos importantes na Secretaria de Estado de Saúde. É importante lembrar que o período de abertura democrática no país consolidou uma [...] tática desenvolvida inicialmente no seio do movimento sanitário, de ocupação de espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de introduzir mudanças no sistema de saúde. (Amarante, 1998, p. 91).
Gerais. As fontes bibliográficas e documentais pesquisadas indicam que a construção desse percurso nesse
A chamada Nova República tornou-se o apogeu
município ocorreu em três momentos, marcados por
dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário,
características próprias, em que a noção de Saúde
juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu
Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas
com o próprio Estado.
diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua
Os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa
integração no contexto do SUS. Na década de 1980,
Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI
ocorreu o primeiro período chamado de implantação,
Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração
seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial,
entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados
respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa
atendendo em centros de saúde sem ligação com um
análise histórica abordará com maior atenção a pre-
projeto ou programa que organizasse ações em Saúde
sença de duas polaridades que atravessam este campo.
Mental.
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
A proposta do Pisam parte da avaliação de uma
Nos antecedentes à oficialização do Programa
prevalência de transtornos mentais de 18% e uma
de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada
demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem
e genérica do que poderia ser definido como Saúde
ações de prevenção primária, integração da Saúde
Mental na rede pública. Algumas vezes, era entendida
Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de
como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o
leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais
doente grave, como as ações preventivas e a participação
não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção
nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo,
primária era considerada eficaz a realização de “grupos
mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda
operativos de gestantes, mães, professores e o atendi-
pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra.
mento a crises” (Mendonça Filho; Alkimin, 1998, p.
Já no Programa de Ações da Saúde Mental da Re-
25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser
gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do
conduzido por psicólogos.
programa na região metropolitana de Belo Horizonte,
Quanto ao atendimento clínico individual, os
Minas Gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo-
pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos
ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas
graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma
em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços
franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os
de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria
psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico-
com algumas prefeituras. As equipes são estabelecidas
logia. O Pisam teve curta duração devido, entre outras
como referência secundária, ou seja, como atendimento
causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos
especializado. A princípio, o Programa de Saúde Men-
privados (Mendonça Filho; Alkimin, 1998).
tal buscava formular, de modo ainda primário, uma
Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde
concepção integral de saúde – o famoso trinômio do
1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros
bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde
de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro
Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio),
de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram
psicólogo (psico) e assistente social (social). A falta de
as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em
experiência para uma formulação mais sofisticada do
centros de saúde no município. A atuação na época era
que seria um trabalho em equipe multiprofissional e
voltada para a demanda infantil, para a participação em
interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter-
outros programas em andamento nas unidades (pueri-
nativa mais óbvia.
cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação
O documento retoma o histórico anterior do Pisam
junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação
e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com
no documento pela priorização do trabalho em grupos,
muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob-
“por permitir uma melhor resposta a demanda” (Secre-
jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental.
taria Municipal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita
Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à
ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar,
demanda específica (doença mental), apoio aos demais
eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma,
programas dos centros de saúde integrando a Saúde
a expressão Saúde Mental era tomada de um modo
Mental no contexto global da saúde, apoio técnico
genérico, sem relação com as propostas da reforma
ao nível primário, articulação com os recursos das
psiquiátrica.
comunidades (escolas, creches, hospitais e associações
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica
Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra-
do programa. Apenas no primeiro eixo é mencionada a
ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio
necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final-
da psiquiatria. Somente quando Programa de Ações é
mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de
implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar,
‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido
e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a
de evitar ‘internações desnecessárias’ (Secretaria
atuação dos psicólogos aos pacientes graves.
de
Estado de Saúde, 1985, p. 8). Ainda não se falava em substituição do modelo hospitalar.
Nesse momento, é marcante a preocupação da integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde
A ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten-
e a participação de seus profissionais em ações cole-
dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma
tivas com outros profissionais do serviço. As práticas
de abordagem das questões de Saúde Mental” (Secre-
de grupo se constituem numa importante diretriz de
Estado de Saúde, 1985, p. 7). Aponta ainda
trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais
que a intervenção em grupos é um trabalho que exige
agentes. Além disso, é preconizado o apoio técnico ao
constante discussão e aprofundamento por parte dos
nível primário, estratégia que somente se consolidará
profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por
no terceiro momento de ‘apoio matricial’.
taria de
avaliação de seus impactos. A partir desse período os psicólogos continuam envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos serviços, mas também começam a receber a clientela
Momento ‘antimanicomial’ – anos 1990
prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes com transtornos graves e persistentes. Como notificado
A passagem entre os dois primeiros momentos
no documento, a formação em serviço por meio de su-
analisados está atravessada por alguns importantes
pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais
eventos. O primeiro deles, no ano de 1987, foi o II
constante. Além disso, inicia-se o curso de Especializa-
Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental
ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos
em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por
de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede,
uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de
oferecido pela Escola de Saúde de Minas Gerais (Esmig),
maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Os
com forte acento na prática clínica de base psicanalítica
psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores
lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente
presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando
ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se
com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela-
tornará Escola Brasileira de Psicanálise.
borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar
Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por-
a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do
tador de algumas características. Anterior à implantação
movimento em relação ao Estado. As diretrizes apon-
oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais
tavam para um caminho de alargamento das fronteiras
de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse
da luta para uma ação no interior da própria cultura,
campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra-
trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano
mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na
da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade
atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do
puramente assistencial e criava pontes entre as ações no
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu,
centros de referência em Saúde Mental (Cersam, versão
desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou
mineira dos Centros de Atenção Psicossocial – Caps).
da desconstrução/invenção” (Amarante, 1998, p. 93),
Um importante documento que avalia esse período
induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista
foi publicado numa coletânea organizada por técnicos
e sua tática de ocupação da máquina estatal. Desde essa
da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy,
nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade
sobre a gestão da saúde. O capítulo que nos interessa
civil e os movimentos populares e com as associações de
é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de
usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa
Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental
e da opinião pública.
da SMSA (Lobosque; Abou-Yd, 1998). Nesse docu-
Através do segundo evento, em 1989, a reforma
mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o
psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter-
projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão
venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos
marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva
na Casa de Saúde Anchieta e a seqüente criação de dis-
“a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição
positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que
por outro modelo de atenção (p. 244).
inspirou várias experiências posteriormente conduzidas por todo o país (Amarante, 1998, p. 83).
O texto, que possui uma função de relatório da gestão, possui um marcado tom político de ruptura
Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação
comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada
ao Congresso do Projeto de Lei 3.657/89 visando re-
em pelo menos quatro aspectos. O primeiro deles, de
gulamentar o processo de reestruturação da atenção à
cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação
Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal
de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-
Paulo Delgado (Partido dos Trabalhadores de Minas
mento sanitário com seu acento nos cuidados primários,
Gerais, PT/MG).
em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as
Em Belo Horizonte, somente durante a gestão municipal do prefeito Patrus Ananias, do PT (1993
autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário, é estabelecida uma divisão indesejada
a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSA) de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos
[...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas, mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas em geral. (1998, p. 245).
profissionais ficassem comprometidas e congestionadas com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha-
O projeto propõe o abandono do modelo america-
da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com
no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente
quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela
pelo Programa da Região Metropolitana de 1985, com
cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado
seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços
para a SMSA o psiquiatra César Campos, engajado, já
especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma-
de longa data, com os movimentos de luta contra o
nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por
aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos
isso, afirma que os Cersam “não se caracterizam como
substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os
serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
compõem uma rede de assistência que visa substituir
Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,
os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis
antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,
de atenção.
via Distrito Sanitário, com um profissional de Saúde
O segundo tem componentes de gestão de pessoal,
Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. A
uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição
organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta
por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais
ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-
se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes
ternados após nova crise. Garantiu também a chegada
do trabalho” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 253). A
dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o
proposta aponta uma mudança de foco da atenção das
circuito: alta, residência, crise e nova internação.
“crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas
Pacientes e familiares passaram a conhecer uma
clientela majoritária das unidades básicas, para os
nova possibilidade de atenção profissional, próxima de
psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali-
suas casas. Decorridos alguns anos após esse conjunto
ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso
de ações, é possível deduzir que para romper com o cir-
acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo
cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação
ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem
de equipes nas unidades, é necessário uma política de
como a presença em grupos de outros programas, como
organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os
aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246).
profissionais permaneceriam com sua atividade drenada
O tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos
com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se
e da participação em outros programas de promoção da
tornassem parte de sua clientela habitual.
saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse
O quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz
contexto de uma gestão que se compromete com a
respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto
direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente
antimanicomial. De um lado, existe o destaque à psica-
momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia-
nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos
ção entre ações clínicas e de promoção de saúde.
inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não
O terceiro aspecto, de caráter político-adminis-
seriam o que são” (Lobosque; Abou-Yd, 1998, p. 249).
trativo, configurou-se como passo fundamental para
As autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não
garantir a reorganização da assistência a partir das di-
está presente em momentos políticos incisivos, sendo,
retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSA com
portanto esta uma rara articulação. Ainda é necessário
os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos
se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul-
hospitais privados conveniados por parte da Secretaria.
dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo
Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe-
da Saúde Mental (Ferreira Neto, 2008).
tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão
De qualquer modo, a contribuição da psicanálise,
hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados
isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre
ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois
a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade
hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos
presente no despreparo para conduzir uma clínica
hospitalares privados conveniados na central de inter-
sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua
nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para
colagem com a clínica de consultório, uma vez que os
a organização da nova rede de assistência em Saúde
espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc.
atenção à saúde (Brasil, 2004A). É um movimento de
Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que
reorientação do modelo assistencial, operacionalizado
a formação prevalente ainda atende a esse modelo. As
mediante a implantação de equipes multiprofissionais
autoras reconhecem que os profissionais não receberam
em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal
anteriormente este tipo de formação e perguntam:
com uma parcela da população adscrita. Foi formulado
“quem a recebe, aliás?!” (p. 263).
pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser
O texto relata também duas importantes ações extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à
implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome de BH – Vida.
demanda infantil. A primeira foi a criação de fóruns
O documento municipal a ser analisado, datado
regionais de Atenção à Saúde Mental da Criança e do
de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental
Adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como
na assistência básica (Secretaria Municipal da Saúde,
os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de
2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações
Conselhos Tutelares e de outras instâncias comunitárias,
entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu
com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de
contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’
soluções na atenção à infância tanto individual quanto
preconizada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2004B).
coletivamente. A ação dos psicólogos nesse processo foi
Seu diferencial em relação a outros documentos é sua
de suma relevância. O segundo foi o Projeto Arte na
redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e
Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar
as gerências de Atenção à Saúde, ainda que a linguagem
as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários
e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com
com monitores da própria comunidade, desenvolvendo
a Saúde Mental.
atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga de unidade básica.
O documento aponta para o desenvolvimento de ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões
Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi-
relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho,
cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No
da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). Discute
âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor-
também a importância do atendimento na crise, even-
nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o
to que alimenta o sistema manicomial sem a busca
que ocorreu processualmente e não sem dificuldades
apressada da internação. Finalmente, indica o traba-
e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a
lho em equipe como instrumento para superação do
trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e
paradigma médico, “alargando competências comuns,
até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou
desmontando e reorganizando poderes e saberes esta-
contribuições importantes ao projeto.
belecidos” (p. 3). No âmbito da integração das Equipes de Saúde Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família (ESF), o documento preconiza que as primeiras
Momento ‘apoio matricial’ – anos 2000 O Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal estratégia para reorientação do modelo assistencial de
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[...] priorizarão o atendimento aos portadores de sofrimento mental grave e persistente e as ESF se responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta clientela. (p. 4).
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Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
As ESM continuariam acolhendo outras demandas
maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma
mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com
suposta “continuidade ideal” teleológica (Foucault, 1979, p.
apoio das ESM. Os usuários e familiares devem par-
28). Também cerceia a tentação sempre presente da produção
ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do
de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa
controle e planejamento das ações de Saúde Mental. As
uma mitologia construída por um grupo hegemônico.
ações de apoio matricial devem realizar a
O recorte histórico aqui apresentado, que tem por eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de
[...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho concreto, saberes e competências, bem como, progressivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5).
interpretação. Uma delas é que as direções previstas em 1984 na implantação do programa, o ideário de integração na saúde geral de prática de apoio às equipes de saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com
Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou
vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a
a portaria 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da
ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs
Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial,
a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um
através da criação de núcleos multiprofissionais, numa
momento essencial para garantia do projeto de atenção
composição escolhida entre 13 opções profissionais, com
ao paciente grave. O antagonismo ‘clínica versus promo-
ênfase nas ações de planejamento, educação continuada,
ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma
promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da
conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental
Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas.
na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho.
Recomenda também a presença de pelo menos um pro-
Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente
fissional de Saúde Mental em cada Nasf (Diário Oficial
grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de
União, 2008, p. 39). Na portaria são considerados
integração em que ações de promoção caminhem juntas
profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te-
com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. A Saúde
rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais).
Mental é um projeto sempre em movimento, composto
da
Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos, sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um
por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos, têm contribuído para sua contínua reinvenção.
tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação
No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as
muito centrada na diminuição e qualificação da demanda
deficiências de uma formação clínica baseada num modelo
para a Saúde Mental (Sirimim, 2007). Contudo, podemos
liberal-privado de consultório, o que não o preparava para
esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as
a opção prioritária do programa. Sua formação se deu,
ESM e as ESF, terá vários outros desdobramentos.
portanto, em serviço, através das práticas de atendimento aliada às supervisões. Sua entrada no Sus transformou sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas de clínica ampliada (Ferreira Neto, 2008).
Considerações finais
Mais recentemente, a ênfase presente em sua formação para práticas grupais e intervenções psicossociais
Refletir a partir de estudos históricos com enfoques e recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma
pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente prática de apoio matricial.
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Recebido: abr./2008 Aprovado: out./2008
ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental Eaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health
Silvio Yasui 1 Abilio Costa-Rosa
2
Doutor em Saúde Pública pela
RESUMO O processo social complexo da Reforma Psiquiátrica, concretizado
Escola Nacional de Saúde Pública
como Política de Saúde Mental, nas últimas décadas tem levado a uma
1
(ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); docente do Departamento
profunda transformação na prática dos cuidados em Saúde Mental. Isso conduz
de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar
a mudanças no modelo técnico-assistencial que organiza e sustenta as práticas
e do Programa de Pós-graduação em
desses profissionais que, por sua vez, encontram resistência em outros campos.
Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual de São
O objetivo deste trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Instituições
Paulo (Unesp), Assis.
de Saúde Mental, que buscam implantar o novo modelo assistencial, apesar de
[email protected]
se depararem com práticas hegemônicas do paradigma que tentam superar. Foi
2
Doutor em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo (USP); docente do Departamento de Psicologia Clínica do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências
realizado um mapeamento preliminar das características da Estratégia Atenção Psicossocial e possíveis avanços, a partir de sua implantação, são apontados. PALAVRAS-CHAVE: Centros de Atenção Psicossocial; Saúde Mental; Assistência Integral à Saúde; Saúde coletiva.
e Letras da Unesp, Assis. [email protected]
ABSTRACT Once the complex social process of Psychiatric Reformation, materialized in Brazil as Mental Health Policy, involves a deep transformation in mental health assistance and causes several changes in the traditional technical assistance model that organizes professional practices, it finds many resistances inside several fields of knowledge. The main objective of this paper is to think about the everyday challenges of Mental Health Institutions that aim to establish a new model of care but still have problems with the old hegemonic practices that they intend to deny. It has been made a preliminary mapping of Psychosocial Attention Strategy characteristics and some possible advances, which could happen after its deployment, are herein stated. KEYWORDS: Mental Health Services; Mental Health; Comprehensive Health Care; Public health.
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I N T R O D U ç ão
no que diz respeito aos desdobrementos a partir da proposta de ações de matriciamento em implantação nas diretrizes do Ministério da Saúde. Parte-se da hipótese de que esses esclarecimentos poderiam contribuir como importantes fatores de municiamento na luta
A política de Saúde Mental, construída e pactuada
pelos avanços da Eaps.
por diferentes atores sociais desde meados da década de
As mudanças que já se processam, entretanto,
1980, preconiza e almeja profundas transformações da
não se dão sem muitas resistências ou claras oposições
atenção, isto é, o atendimento e os cuidados ao sofri-
advindas de vários setores e direções. Já temos situado
mento psíquico e demais impasses subjetivos.
o processo complexo a partir do qual se desdobram as
Essas transformações apontam para mudanças
lutas pela Reforma Sanitária e pela Reforma Psiquiá-
na concepção do processo saúde-adoecimento, no
trica, sob a égide de uma luta de hegemonia quanto
modelo teórico e técnico-assistencial que organiza e
ao controle dos interesses e valores que se encarnam
sustenta as práticas dos profissionais; que orienta e
também nas instituições de Saúde Mental (Costa-
sustenta o arcabouço jurídico e o universo de práticas
Rosa; Luzio; Yasui, 2003). Um de nós tem realizado
e valores culturais. Mudanças que apontam, tam-
um avanço nos referenciais de análise desse processo
bém, para proposições éticas em relação aos efeitos
de ações e reações, especificando a forma geral dos
e desdobramentos das ações no campo da Saúde
antagonismos em termos de luta paradigmática de dois
Mental (Amarante, 2007; Costa-Rosa, 2000). Al-
paradigmas: o Paradigma Psicossocial e o Paradigma
gumas dessas transformações estão na constituição
Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Costa-
maior do país e regulamentadas em forma de lei
Rosa (2006) propõe que ‘paradigma’ seja entendido
como, por exemplo, a participação da população
como uma agregação dos diferentes vetores das pul-
no planejamento, gestão e controle das práticas de
sações tanto em termos de ação instituinte quanto de
Atenção, e até mesmo na gestão dos dispositivos
resistências do instituído no campo da Saúde Mental.
institucionais.
O termo ‘medicalizador’ é utilizado com o duplo sen-
Esse conjunto amplo de transformações práticas
tido do radical ‘medic’: centrado no discurso e na ação
e proposições teóricas, tanto éticas quanto políticas,
médica (Clavreul, 1983) e orientado pela utilização
incorporado e vivenciado na atual Política de Saúde
da medicação como resposta preferencial às demandas
Mental é suficiente para que possamos falar em Es-
do sofrimento psíquico.
tratégia Atenção Psicossocial (Eaps), assim como foi
Nessa perspectiva, o objetivo principal do presente
proposta a Estratégia Saúde da Família (ESF). Analisar
trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Insti-
os avanços, as resistências e os impasses no campo da
tuições de Saúde Mental que buscam implantar o novo
Saúde Mental atualmente, em termos de Eaps, nos
modelo assistencial, mas ainda se deparam com práticas
ajudará a explicitar algumas das relações atuais entre
hegemônicas do paradigma que buscam superar. Procu-
o Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) e o Am-
raremos, também, realizar um mapeamento preliminar
bulatório de Saúde Mental, bem como entre esses dois
das características da Eaps e indicar possíveis avanços a
e a Atenção Básica. Essas relações se dão, sobretudo,
partir de sua implantação.
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A mudança de modelo e a prática dos
como um poderoso suporte para a valia da próspera
profissionais: desafios do cotidiano
indústria farmacêutica.
dos serviços
A proposta de ação da Eaps exige a superação desse paradigma e sua substituição por um novo que seja capaz
As transformações propostas pelo complexo campo
de se situar de modo afirmativo: um paradigma que
da Reforma Psiquiátrica brasileira apresentam grandes
situe a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva, com-
desafios, especialmente aos profissionais de saúde que
preendendo o processo saúde-doença como resultante
cotidianamente têm a tarefa de expandir e consolidar
de processos sociais complexos e que demandam uma
essa mudança. Para isso, seus principais instrumentos
abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e interseto-
são: sua formação permanente, que faculte a redefini-
rial, com a decorrente construção de uma diversidade de
ção e reorganização de seu processo de trabalho, e a
dispositivos territorializados de Atenção e de cuidado.
articulação das alianças, ou mesmo forças antagônicas,
Mais ainda, para esse novo paradigma, produção de
entre os diferentes setores da sociedade; em suma, que
saúde e produção de subjetividade estão entrelaçadas
viabilize a criação e expansão concretas de uma rede de
e são indissociáveis, o que traz como conseqüência a
atenção e cuidados baseada em um território e pautada
radical superação das relações sociais e intersubjetivas
nos princípios de integralidade e participação popular.
sintônicas com o Modo Capitalista de Produção, que é
Esse processo emergente de trabalho deve pautar
o alicerce do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico
sua organização cotidiana na ruptura com o modelo
Medicalizador (Costa-Rosa, 2006).
tradicional. O modelo tradicional, pois, baseia-se no
Esses desafios se tornam ainda maiores, consi-
princípio doença-cura e compreende de forma pre-
derando que essa mudança de paradigma ainda não
dominantemente orgânica o processo saúde-doença,
está presente na formação básica dos profissionais de
além de ser estratificado e hierarquizado por níveis de
Saúde. Essa formação continua sendo organizada em
Atenção. Suas premissas são concretizadas em estratégias
disciplinas e especialidades, com pouca ou nenhuma
de cuidado centradas na sintomatologia e, em conse-
integração, levando os profissionais em formação a um
qüência, predominantemente medicamentosas; além
olhar fragmentado da realidade, conseqüência do Para-
disso, por causa da herança deixada pelas instituições
digma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador,
da reclusão, essas premissas são também hospitalo-
ainda dominante. Formados e formatados no modelo
cêntricas. As aproximações à clientela e à população
médico-centrado hegemônico e em práticas disciplina-
seguem modelos verticalizados e reproduzem os moldes
res, os profissionais se vêem diante da responsabilidade
socialmente dominantes da subjetividade serializada
de implantar uma proposta de mudança de modelo
do Modo Capitalista de Produção. As ações tendem
assistencial que requer uma ruptura radical da maioria
a ser funcionalistas por proporem uma adaptação de
dos conceitos estudados ao longo dos anos de formação,
indivíduos queixosos, ‘desequilibrados’ ou desajustados.
além de necessitarem rever radicalmente concepções
Um aspecto dessa prática que merece ser explicitado,
ideológicas e éticas. Tal situação assume, por vezes,
por sua importância radical, é a ação medicamentosa
características de um impasse.
como única solução para todos os males e sofrimentos,
Esse conflito entre proposta e prática, intenção e
subsumindo as pulsações instituintes que por ventura
gesto, gera uma tensão permanente no cotidiano insti-
estejam presentes nas queixas e impasses, funcionando
tucional revelando a contradição entre os paradigmas
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que sustentam os diferentes modelos de cuidado. Via de
Nesse contexto cresce a consciência de que a crise
regra, os profissionais foram moldados em cursos nor-
na Saúde nada mais é que uma expressão fenomênica
teados pelo paradigma hegemônico, foram organizados
de causas mais profundas que têm sua raiz no modelo
em torno de disciplinas fragmentadas, compartimenta-
de atenção médica vigente, estruturado pelo paradigma
lizadas, com pouca ou nenhuma articulação entre si.
flexneriano. Sair da crise implica, necessariamente,
Os profissionais são estimulados, por exigência
transitar de um modelo de atenção médica, fruto do
do mercado, a se super-especializarem com o aprendi-
paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à
zado e o domínio de tecnologias pretensamente mais
saúde, expressão do paradigma da produção social da
sofisticadas. Uma vez graduados, estão aptos a agir
saúde (Mendes, 2006). A saúde seria concebida como
de forma específica, a ler fragmentos da realidade. Os
estado geral decorrente do modo de se levar a vida em
médicos aprendem a medicar e a ver na medicação a
todos os aspectos: físicos, psíquicos, sociais, econômicos,
solução primeira para qualquer tipo de situação; os
culturais e ambientais.
psicólogos aprendem a realizar uma terapia centrada
Ao Paradigma da Produção Social da Saúde corres-
no indivíduo e em seu sofrimento privatizado; os tera-
ponde o Paradigma Psicossocial. Há uma sintonia das
peutas ocupacionais aprendem a coordenar atividades,
concepções ideológicas, teóricas e éticas entre a Reforma
etc. No entanto, nenhum desses profissionais aprende
Psiquiátrica e a Reforma Sanitária. Isso torna ainda mais
a lidar com as situações cotidianas que os usuários dos
inadiável a questão da formação de novos trabalhadores
serviços de saúde e Saúde Mental necessitam quando
de Saúde Mental e do redirecionamento de outros que
procuram pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como,
se encontram ainda em práticas típicas dos modelos
por exemplo, impasses na subjetividade das pessoas e seu
vigentes, cuja superação se exige. Nossa experiência tem
sofrimento, na maioria das vezes, desencadeados pelo
demonstrado que, no campo da Atenção ao sofrimento
cotidiano, que se desenrola em duras condições sociais.
psíquico, os avanços na direção da Eaps aparecem como
Esses profissionais são incapazes de ouvir o sujeito e sua
o passo mais apropriado para a superação de uma série
dor além da doença, de forma que articule os sintomas e
de impasses decorrentes dessas heranças do Paradigma
sinais em um quadro mais amplo e complexo; raramente
Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Tais im-
estabelecem diálogos que produzam uma integração
passes apresentam-se tanto na forma direta do modelo
com outros profissionais que trabalham a seu lado; não
asilar como na forma do preventivo-comunitário, cujo
compreendem as dificuldades das pessoas em aderir ao
estabelecimento modelo é o Ambulatório de Saúde
tratamento estruturado dessa forma; estranham e se
Mental.
incomodam com as reivindicações das pessoas a res-
O relatório final da III Conferência de Saúde
peito de seus direitos; apresentam grandes dificuldades
Mental, promovida pelo Ministério da Saúde em 2002,
em construir estratégias que ampliem a participação e
apresenta propostas referentes à política de Recursos
autonomia dos usuários.
Humanos, destacando-se que:
A mudança de paradigma não é uma agenda específica da Saúde Mental. Pelo contrário, ela se inclui no conjunto de transformações práticas que têm como prioridade a construção do SUS no contexto da Reforma Sanitária.
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[...] uma política de recursos humanos deve visar implantar, em todos os níveis, o trabalho interdisciplinar e multiprofissional no campo da Saúde Mental, na perspectiva do rompimento dos ‘especialismos’ e da construção de um novo trabalhador em saúde men-
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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
tal, atento e sensível aos diversos aspectos do cuidado, garantindo que todo usuário dos serviços de saúde seja atendido por profissionais com uma visão integral e não fragmentada da saúde. (Brasil, 2002, p. 68). É importante referir, aqui, as ações do Ministério que, no setor da Saúde Mental, tendo à frente representantes dos interesses diretos da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, empreende preciosas ações politicamente orientadas para essa direção, em termos de formação permanente, análise e supervisão institucional dos Caps. Um passo imprescindível nesse momento é reunir e sistematizar todos os conhecimentos capazes de configurar claramente a Eaps. A partir da sistematização desse corpo de conhecimentos, é possível ampliar as bases de reflexão e análise da práxis, tanto da Atenção Psicossocial quanto da própria formação de trabalhadores em ação. Essa nossa experiência indica que a ‘formação em ação’ é a única estratégia capaz de se contrapor efetivamente aos efeitos desastrosos de uma formação universitária
(UBS), acompanhada de um texto que apresentava uma série de sugestões de organização do trabalho das equipes de Saúde Mental nessas Unidades de Saúde e nos Ambulatórios. A abordagem era designada como bio-psico-social. O trabalho em equipe era uma espécie de terra prometida onde, afinal, seria possível mudar o modelo asilar e exercer uma boa assistência à Saúde Mental. Mas a concretização dessa proposta de trabalho em equipes multiprofissionais fez com que ela se transformasse, ao longo dos anos, em um dispositivo burocrático. Tal organização de assistência hierarquizada, tendo a equipe de Saúde Mental da UBS como porta de entrada, contribuiu para se configurarem novas demandas, sobretudo um conjunto de ações ambulatoriais paralelas às do Hospital Psiquiátrico. No entanto, não foi capaz de produzir qualquer impacto na lógica hospitalocêntrica; pelo contrário, produziu um aumento na demanda de internações ao ampliar o acesso da população às consultas psiquiátricas.
que se referencia mais pelas demandas ideológicas co-
A multiprofissionalidade continua na agenda do
nectadas aos interesses socialmente dominantes e menos
dia da Eaps; por isso é oportuno refletirmos um pouco
pelas exigências éticas concretas da realidade da Atenção
sobre ela.
Psicossocial e da Eaps.
Podemos levantar uma questão referente ao fato de a reprodução da divisão social do trabalho no campo da Saúde gerar uma hierarquização das relações, na qual o saber médico impera sobre outros saberes, que cumprem
O Ambulatório de Saúde Mental
um papel secundário, o que reproduz a divisão típica do
como estratégia que visou contra-
Modo Capitalista de Produção. Isso produz uma espécie
por-se à lógica hospitalocêntrica
de divisão de atividades e tarefas em compartimentos com pouca ou nenhuma relação entre si. Um exemplo
Nos anos 1980, a criação dos Ambulatórios de
desta divisão é uma dada situação em que a consulta
Saúde Mental, constituídos por equipes multiprofis-
do psiquiatra é tomada como a atividade prioritária e
sionais, era apontada como um promissor instrumento
essencial. Isso gera uma agenda repleta, atendimentos de
de mudança na realidade o primeiro passo da Reforma
curtíssima duração e com grandes intervalos de tempo
Psiquiátrica. No estado de São Paulo, a Secretaria de
entre uma consulta e outra, visando uma alta produtivi-
Estado da Saúde elaborou também uma proposta de
dade, medida pelo número de consultas. Há, também,
ação em Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde
a consulta, geralmente individual, com o psicólogo, que
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tem longa lista de espera, repetindo o modelo da prática
lizador que, por sua vez, está em sintonia com a lógica
liberal típica de parte do trabalho desse profissional;
da divisão do trabalho do Modo Capitalista de Produ-
por fim, há os grupos de orientação, coordenados pela
ção (Costa-Rosa, 1987). Não há dúvidas de que, sem
enfermeira ou pela assistente social, sempre pedagógicos
uma crítica radical à divisão do trabalho e ao processo
e geralmente à margem das demandas subjetivas espe-
de produção da Atenção vigente no campo da Saúde
cíficas daqueles indivíduos. Esses encaminhamentos de
Mental, não poderemos obter avanços na superação da
um profissional para outro são feitos mediante preen-
estratégia asilar e preventivista ainda dominantes. A Eaps
chimento de uma guia entregue pela recepção, onde se
exige um modo de organização de divisão do trabalho
agendam as consultas. Todos os profissionais se reúnem
mais coerente com a lógica dos modos de produção de
(com dificuldade) uma vez por mês e discutem questões
cooperação uma vez que, para o Modo Psicossocial,
administrativas. Nos cinco minutos finais, um ou outro
não se distinguem o processo produtivo dos efeitos da
caso mais grave é trazido à atenção da pequena parte da
produção e dos beneficiários de tais efeitos.
equipe que permanece até o final da reunião.
No campo psíquico há uma indissociabilidade
A propósito do conceito multidisciplinar, do qual
entre produção de saúde e produção de subjetividade.
surgiu o termo multiprofissional, Japiassu (1976) já
Levar em conta a radicalidade dessa proposição conduz
afirmava que a abordagem multidisciplinar estuda um
a uma possível superação do modo de produção comum
objeto sob diferentes pontos de vista, mas sem que tenha
e a um ‘drible’ das diferentes formas do atravessamento
havido um acordo prévio sobre os métodos a se seguirem
capitalístico dessa produção. Para a Eaps, a superação
ou sobre os conceitos a serem utilizados. Há apenas uma
da divisão parcelada do processo de produção (divisão
justaposição de disciplinas sem que fiquem evidentes as
em especialidades), ainda deverá vir acompanhada da
relações que possam existir entre elas.
capacidade de vislumbrar formas para se alcançar a
Na mesma linha de pensamento, Almeida Filho
transdisciplinaridade. A superação do princípio doença-
(2000) descreve a multiprofissionalidade como uma
cura, pois, exige também a superação do modelo sujeito-
justaposição de disciplinas em um único nível, sem
objeto que define as especialidades e ações no paradigma
cooperação sistemática entre os diversos campos disci-
hegemônico.
plinares. Dessa forma, e segundo esses autores, pode-se
A Eaps implica também na superação da raciona-
definir o multidisciplinar como uma somatória de
lidade implícita no modelo médico hegemônico que
diferentes campos que não estabelecem diálogo e não
determina um modo de organização das práticas de
apresentam nenhuma cooperação entre si necessaria-
saúde, caracterizadas por atividades curativas, indivi-
mente, mantendo seus limites e fronteiras e olhando
duais, assistencialistas e organizadas em especialidades.
sob suas perspectivas e a partir de seus lugares para um
O Paradigma da Produção Social da Saúde pressupõe o
mesmo objeto, no caso, o sofrimento psíquico. A equipe
planejamento das ações de Atenção de modo integral,
multiprofissional, por esta caracterização, já está fadada
baseadas no trabalho em equipe e nas práticas coletivas
a ser um apenas um agrupamento de profissionais de
de saúde, superando a atual racionalidade que está
distintas áreas que ocupam o mesmo espaço físico.
pautada numa prática privada e regida por uma lógica
Essa configuração multiprofissional, já analisada e
de mercado. Nessa lógica existe apenas a sociedade
criticada desde muito cedo, está de acordo com a lógica
colocada de modo figurado, ou a parceria, movida a
do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-
interesses comerciais.
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Uma proposta de trabalho em equipe para a Eaps
qual também já se conhecem várias coordenadas e que
precisa reconhecer os processos cotidianos de trabalho
é enunciado como estratégia dominante no discurso
como áreas de tensão e interesses sociais conflitantes
oficial do Ministério da Saúde.
encarnados por distintos atores, para justamente pôr
Um sujeito em crise que se recusa a ir à institui-
a salvo desse conflito maior os interesses imediatos
ção sob pretexto de que lá é lugar de louco; a família
dos sujeitos do sofrimento. Com isso, seria permi-
que exige internação de um de seus membros em um
tido que eles tomassem uma posição nos conflitos e
hospital psiquiátrico, reproduzindo a inércia do hábito
contradições que os atravessam; conflitos esses que se
já instituído; o morador de rua que incomoda os vizi-
expressam no sofrimento que, por sua vez, manifesta-se
nhos por se encontrar em sofrimento psíquico grave;
em sua história. Além disso, remover as conquistas da
o usuário que estabelece uma relação de dependência
Reforma Sanitária sobre a participação dos usuários e
com a instituição. Como resposta da equipe a essas
da população no planejamento, gestão e avaliação dos
situações, ouvimos com muita freqüência as seguintes
dispositivos institucionais não deixa de ser um modo
falas: “O usuário não quer vir? Não é mais de nossa
de abrir a oportunidade para eles de participação na
responsabilidade, então.”; “A família pede internação?
metabolização da contradição maior. Sair da posição de
Pois que interne.”; “Morador de rua? Isso é problema
objeto exigirá um exercício rotineiro nos vários aspectos
da Assistência Social do município.”; “O usuário está
da práxis concernente ao novo paradigma.
em crise no serviço? Chama o psiquiatra para medicar!”; Se o usuário está tendo uma crise no meio da rua, “Chama-se a polícia” Além das características que já foram apresentadas
A permanência micropolítica do hegemônico A prática encontrada em diferentes Caps, principal dispositivo para a implantação da atual política de Saúde Mental, revelam que a lógica ambulatorial ainda está amplamente presente no sistema e de forma aparentemente intacta. Prática essa bem distante daquela idealizada pelo modo da Atenção Psicossocial, cuja ética implica na ousadia de buscar o novo. Isso ocorre ainda com mais freqüência nos lugares em que a implantação do Caps se deu a partir do Ambulatório de Saúde Mental. Os exemplos a seguir demonstram situações desafiadoras que as equipes encontram no cotidiano, nas quais se apresenta a tensão permanente que há entre um paradigma hegemônico de cuidados que já se conhece, e que o discurso oficial pretende superar, e outro paradigma que se pretende construir a partir da prática, do
sobre esse modelo hegemônico, é oportuno apresentar outras características desanimadoramente freqüêntes nas ações realizadas em muitos dos Caps: atos norteados por valores e julgamentos morais como “Não faça mais isso, fulano. É muito feio!”; “Quem não se comportar direito não ganha o ovinho de Páscoa!”; “Quem vai acompanhar os usuários? Eles não podem sair sozinhos!”; “Que gracinha, nem parece que são doentes mentais!” Frases como essas revelam que o sujeito do sofrimento é infantilizado e a atuação da equipe se pauta na ‘correção’ e ‘educação’ de seus comportamentos. Certa vez, um usuário, irritado, afirmou, a respeito do Caps que freqüenta: “Isto aqui parece uma creche para doido!” Sobre esse tema Foucault afirma: [...] a loucura encontra-se inserida no sistema de valores e das repressões morais. Ela está encerrada
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num sistema punitivo onde o louco, minorizado, encontra-se incontestavelmente aparentado com a criança, e onde a loucura, culpabilizada, acha-se originariamente ligada ao erro. (1975, p. 84). A lógica presente nesse modo de atenção à Saúde Mental submete os sujeitos do sofrimento e os próprios trabalhadores a um lugar de sujeição, produção e reprodução de subjetividades enquadradas, conformadas e bem-comportadas: produção de afetos tristes, renúncia à potencialidade criativa, ao desejo, à autonomia. Não há Caps aqui, apenas mais uma instituição de Saúde Mental organizada a partir da mesma lógica hegemônica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Essa persistência micropolítica da lógica paradigmática hegemônica também só poderá ser adequadamente enfrentada com a ampliação dos espaços de formação (formação continuada) e de exercício analisado (análise e supervisão institucional), que já fazem parte das iniciativas de formação dos Trabalhadores de Saúde Mental
sua demanda, e do trabalhador com sua subjetividade e caixa de ferramentas (Merhy, 2002). Ao romper com a visão biológica reducionista e propor a desmontagem dos conceitos basilares da psiquiatria hospitalocêntrica e medicalizadora, a Reforma Psiquiátrica, alinha-se na perspectiva de uma crítica aos fundamentos da racionalidade científica moderna (relação sujeito-objeto, reducionismo, determinismo) e propõe inventar o seu campo teórico-conceitual, estabelecendo um intenso diálogo entre os diferentes campos do saber e conhecimentos acerca do humano. Produz, também, um turvamento entre os limites e fronteiras, constituindo possibilidades diversas para pensar e fazer. Essa é uma perspectiva semelhante à que Passos e Barros (2000) denominam transdisciplinaridade que: subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76). Essa proposta é ousada, de alto risco e, ao ser intro-
(TSM), componentes da atual política de Atenção
duzida na práxis cotidiana, visa à produção do disforme,
Psicossocial do Ministério da Saúde.
à emergência do sem contornos, que mais desorganiza do que orienta, que institui o próprio processo de instituir. Dessa forma, o pensamento corre riscos, assume o perigo de se perder na indiferença e no relativismo, estando
Inventar a transdisciplinariedade
sujeito à inércia do ‘tudo ou nada vale o mesmo’. É um
como meio necessário da Eaps
grande desafio constituir esse saber fazer nos interstícios dos campos disciplinares. Ou, como propõem Passos e
A equipe é o alicerce, o principal instrumento de
Barros (2000), com base em um conceito de Deleuze,
intervenção, invenção e produção dos cuidados em
nos “intercessores”, naquilo que se dá no “entre”, no
Atenção Psicossocial. Produção que se dá no agencia-
momento em que ocorre.
mento das pulsações da demanda social e dos afetos para
Não são apenas diferentes disciplinas que analisam
se produzirem vínculos na negociação de interesses di-
um mesmo objeto; a própria consistência do objeto é
vergentes e se construir a ética da Atenção Psicossocial na
transformada. É preciso se abrir às fronteiras e fazer tran-
pactuação familiar e social para um projeto de cuidado;
sitarem conceitos e categorias, transmudarem os olhares
agenciamento esse, enfim, das relações que emergem no
dos sujeitos em ação, transformarem-se os modos de
encontro que se dá entre o sujeito do sofrimento com
pensar, transformarmo-nos como sujeitos, já que se trata
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YASUI, S.; COSTA-ROSA, A.
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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
de um processo de construção de novas subjetividades.
formas de saída da subjetividade serializada que, mor-
Como diz Edgar Morin (2000), trata-se do desafio do
mente, vem associada ao sofrimento e aos sintomas, para
pensar complexo que remete à dialética e à revisão das
outras subjetividades e subjetivações capazes de escapar
teorias de subjetividade.
ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-
No meio de aparentes desencontros é que reside a
lizador e ao Modo Capitalista de Produção.
estratégia para se produzirem os encontros dos sujeitos do
Conectar-se aos horizontes teóricos, técnicos e
sofrimento com a equipe. Como concretizar, no dia-a-dia
éticos da Atenção Psicossocial significa estar sempre
de trabalho e de produção da atenção, esta transdisciplina-
atento aos riscos de se recair na alienação do que já está
ridade? Aqui, podemos evocar a experiência vivenciada no
instituído. É preciso estarmos sempre atentos para que
Caps Luiz Cerqueira, no qual foi possível realizar um traba-
nas finas teias do cotidiano não sejamos capturados pela
lho que muito se aproximou da proposta transdisciplinar,
lógica do conformismo e da repetição, pois este é um
e que poderia ser sintetizado da seguinte forma: o trabalho
processo que se constrói em um movimento contínuo
em equipe é aquele em que os profissionais adotam uma
de desfazer e fazer, desconstruir e construir. Desconstruir
posição de humildade frente ao sofrimento psíquico, este
conceitos e categorias, redefinir as modalidades dos
nosso objeto complexo, e o existir por ele contextualizado.
vínculos intersubjetivos, inventar novas possibilidades
Apenas uma solidária e despojada atitude de diálogo (in-
semânticas e teóricas, desfazer os limites disciplinares
tenso e complexo), pode começar a sondar e contemplar
para tornar novas as produções. Trata-se aqui de um
a amplitude de tal complexidade (Yasui, 1989).
novo agenciamento de pulsações da demanda social e
Isso se reflete na organização dos processos de traba-
dos afetos, para se produzirem vínculos, que não deixam
lho, construídos como uma criação coletiva, de relações
de ser transferenciais; negociações entre interesses diver-
horizontais, que aspira à transversalidade proposta por
gentes presentes nas dimensões micro e macropolítica do
Felix Guattari (1981), e com uma efetiva participação
território; pactuações para um projeto de Atenção e cui-
dos sujeitos do sofrimento e seus familiares. A concre-
dado, que se fazem a partir das relações e nas relações que
tização desse projeto implica em: considerar e ativar os
emergem no encontro entre as demandas dos sujeitos e
dispositivos existentes no território; na responsabilização
as ofertas de possibilidades transferenciais, ou seja, entre
pela demanda, especialmente nos momentos de crise;
o sofrimento dos sujeitos e a capacidade de continência
na criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado
da equipe. Não há dúvidas de que essa capacidade de
aumentando a responsabilidade de cada profissional, não
agenciamento por parte das equipes também é moldada
apenas nas decisões e nas competências para o projeto de
pela plasticidade de sua subjetividade e pela desenvoltura
cuidados, mas também na gestão dos dispositivos insti-
complexa de sua ‘caixa de ferramentas’.
tucionais. Isso implica, de outra parte, uma flexibilidade na execução de tarefas distintas e intercambiáveis. É necessário reconhecer, e não esquecer, que somos atores de uma prática social, que têm a potencialidade, por
A Estratégia Atenção Psicossocial
meio dos encontros que ensejamos no cotidiano de nossa práxis, de produzir novos processos de subjetivação, de
A seguir são apresentados alguns pontos para um
produzir modos mais autônomos de viver e de fazer a
início de discussão acerca de uma definição possível
diferença. Essa diferença está encarnada em diferentes
da Eaps.
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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
Yasui (2006) apresenta a idéia de compreender o
instâncias aptas a responder à especificidade das demandas
Centro de Atenção Psicossocial como uma estratégia de
que lhes são atribuídas: demandas específicas de sofrimen-
transformação da assistência, concretizada pela organiza-
to psíquico com exigências de intensidade variada, que
ção de uma ampla rede de cuidados em Saúde Mental, e
vão da exigência máxima que define o Caps atual, até as
que não se limita ou se esgota em sua implantação como
intensidades variadas que definem atualmente, de modo
um serviço de saúde.
geral, o Ambulatório. Sobretudo, a Eaps permitirá consi-
Neste texto, nomeamos claramente e E aps ,
derar a atenção a um conjunto importante e numeroso de
definindo-a a partir dos quatro parâmetros do Modo
problemáticas dentro da especificidade da atenção à saúde,
Psicossocial e das transformações nas dimensões epis-
impedindo a medicalização e psicologização, geralmente
temológicas, técnico-assistenciais, jurídico-políticas e
resultantes do modelo atual.
culturais (Costa-Rosa; Luzio; Yasui, 2003; Amarante; 2007). Tal definição deve incluir, ainda, os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária, particularmente a participação popular no planejamento, gestão e controle das instituições de Saúde, bem como a concepção de integralidade das problemáticas de saúde e da ação territorializada sobre elas. Essa realização prática da Eaps se opera pela agregação da tática do Matriciamento, já exercitada em alguns municípios e posta em ação pelo o Ministério da Saúde, conforme a Portaria 154/2008 (Brasil, 2008), que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf). A Eaps é uma lógica que perpassa e transcende as
É necessário ressaltar, também, que na Eaps não interessa mais se as problemáticas são de alta ou baixa complexidade. Nas ações de matriciamento, ou nas ações específicas dos serviços Caps, tudo é considerado de alta complexidade, o que pode diferir é a especificidade do saber e da ação exigidos. Também não se trata apenas de organizar os novos dispositivos institucionais em algum sistema de referência e contra-referência: o sujeito será sempre compreendido como aquele que está inserido no território e, mesmo quando for alvo de ações específicas de Caps ou ambulatoriais, não deixará de estar adscrito à ESF nem de participar das ações simultaneamente
instituições enquanto estabelecimentos, tomando-as
realizadas por ela; por isso a ESF deverá ser sempre a
dispositivos referenciados na ação sobre a demanda
referência maior da Eaps.
social do território, distanciando-se, dessa forma, de um sistema organizado e hierarquizado por níveis de complexidade da Atenção. A Eaps, uma vez operando e concretizando o principio da integralidade na produção da atenção e cuidado, através do matriciamento, da atenção básica e com a Estratégia de Saúde da Família, poderá dar outro sentido
R E F E R Ê N C I A S
aos estabelecimentos Caps e seu atual segmento de ações ambulatoriais. Poderá ajudar, também, na compreensão de que a persistência do Ambulatório, que convive com o Caps em um mesmo território, significa a reincidência no preventivismo, longe, portanto, da lógica da Atenção Psicossocial. Permitirá, ainda, re-configurar os Caps como
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Almeida Filho, N. A ciência da saúde. São Paulo: Hucitec, 2000. Amarante, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
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A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde Reflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation of the Mental Health professional in the context of health promotion
Walter Ferreira de Oliveira
1
Doutor; professor do Departamento
RESUMO Este texto discute algumas bases conceituais da Saúde Mental e aspectos
de Saúde Pública do Centro de Ciências
relativos à inserção do profissional de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde
1
da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
(SUS), na perspectiva da promoção da saúde. Algumas enunciações do conceito de
[email protected]
Saúde Mental são examinadas à luz dos confrontos paradigmáticos proporcionados pela perspectiva multiprofissional. Os temas abordam as necessidades fundamentais da formação em Saúde Mental, fortemente influenciada por fatores culturais, econômicos e sociais. Aponta-se uma necessidade de maior discussão, no campo da Saúde Mental, sobre suas bases conceituais e outros temas inter-relacionados. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Saúde pública; Sistema Único de Saúde.
ABSTRACT This paper brings a discussion about some conceptual bases of Mental Health and aspects related to the insertion of the Mental Health professional in the Single Health System (the so called SUS in Brazil), in the perspective of health promotion. The conceptualization of Mental Health is examined in light of the paradigmatic confrontations propitiated in the multiprofessional context. The themes herein stated respond to a fundamental need in the context of professional formation in Mental Health which is strongly influenced by cultural, economic and social factors. The need of more discussion on the Mental Health concepts and other related themes are herein pointed out. KEYWORDS: Mental Health; Public health; Single Health System.
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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
I N T R O D U ç ão
texto da Reforma Psiquiátrica. Propõe-se um novo olhar sobre e um novo lugar social para a loucura, tomada como referência emblemática; é preciso identificar a Reforma Psiquiátrica a partir desse novo olhar e desse novo lugar social (Amarante, 1995). Mas há outros temas a
Desafios conceituais e
serem explorados na perspectiva do cuidado, da promo-
paradigmáticos em Saúde Mental
ção da saúde e das ações preventivas. Alguns passos têm sido dados nesse sentido, por exemplo, ampliando-se a
O campo profissional da Saúde Mental é vasto,
compreensão de certos estados psíquicos diagnosticáveis
multidimensional e tem grande importância no con-
como possíveis insanidades, para modos diferenciados
texto da saúde coletiva. Encontra-se em um momento
de vivenciar o cotidiano e que traz conseqüências para
histórico de transição paradigmática, que tem como uma
a qualidade da vida de muitos sujeitos estigmatizados
de suas características a força que ganham propostas de
como ‘loucos’ ou ‘anormais’.
reestruturação epistemológica, técnico-assistencial e
Apesar dos avanços, na prática, os profissionais,
político-jurídica, cujo maior impacto reside no desafio
nem sempre conseguem deixar de ter como foco prin-
da psiquiatria hegemônica como dispositivo de máximo
cipal o controle dos sintomas, dos corpos e das vontades
poder na área (Amarante, 1995). O enfraquecimento da
de pessoas diagnosticadas como portadoras de transtor-
hegemonia psiquiátrica favorece abordagens, em Saúde
nos mentais (Rosa, 2006; Scalzavara, 2006; Oliveira;
Mental, a partir de bases conceituais mais diversificadas
Dorneles, 2005). Coloca-se, então, uma questão
e, particularmente, uma visão mais fenomênica, mais
crucial: como desenvolver ações de Saúde Mental na
social e interativa do universo psíquico, que desprivilegia
perspectiva da responsabilidade sanitária exercida efe-
o domínio quase exclusivo do referencial nosográfico da
tivamente em serviços territorializados e promotores da
psiquiatria descritiva tradicional, inclusive no campo
saúde? A questão ressalta a necessidade de se continuar
clínico (Moreira; Sloan, 2002).
com questionamentos, reflexões, problematizações sobre
A Reforma Sanitária brasileira apóia-se em uma
e a busca pela operacionalização dos novos conceitos e
definição ampla de saúde, que procura não usar a doença
paradigmas na prática cotidiana do cuidado sanitário,
como referência primordial. No caso específico da Saúde
bem como na perspectiva das relações interpessoais,
Mental, a busca é por uma definição de sanidade que
interdisciplinares e multiprofissionais, de forma a se
não tome como referência fundamental a patologia sob
construírem e operarem interações promotoras de saú-
a óptica médico-psiquiátrica. Essa idéia não só provoca
de. Além disso, ressalta-se a necessidade de as práticas
novos entendimentos do processo saúde-doença, na
preventivas e reabilitadoras serem repensadas de forma
perspectiva psicossocial, como estrutura o modelo de
que sejam contextualizadas no projeto do SUS.
atenção para a rede de Saúde Mental como um todo.
A formação dos profissionais de Saúde Mental,
O compromisso da responsabilidade sanitária, que
entretanto, ainda se constitui, explícita e, às vezes, sub-
se vem discutindo intensamente no âmbito do Sistema
repticiamente como uma antítese das propostas das
Único de Saúde (SUS), inclui um reexame das posturas
Reformas Sanitária e Psiquiátrica. O profissional está,
éticas profissionais (Campos, 1997). Novas posturas e
via de regra, à mercê de currículos que marginalizam
novas abordagens tornam-se temas importantes no con-
a Saúde Mental e o submetem à psicopatologia tradi-
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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
cional, privilegiam procedimentos clínicos quase que
vés de seus questionamentos. Mas, esse profissional
exclusivamente aplicáveis a consultórios e ambulatórios
também traz consigo contradições inerentes à sua
tradicionais e promovem a medicalização da vida coti-
formação, com sua raiz na literatura psiquiátrica tra-
diana, o que vai além da corriqueira medicamentação,
dicional. Esta, através dos tempos, cristalizou idéias
passando para toda uma postura cultural que transforma
que são assimiladas, repetidas e perpetuadas de forma
condições sociais e culturais em problemas de ordem mé-
ostensiva ou sub-reptícia nos ambientes curriculares e
dica. Além disso, há o currículo oculto, que desfavorece
extracurriculares. O contraponto é dado pela incor-
a autonomia do cidadão usuário dos serviços de Saúde
poração gradativa, ainda que marginal, de um corpo
Mental, fomentando a tutela e as assimetrias de poder
literário que vem surgindo nos últimos 30 anos a partir
que permeiam as relações profissionais e institucionais
do movimento da Reforma Psiquiátrica.
(Oliveira, 2003). A superação dessa situação é um dos
No período de graduação dos cursos da área da
maiores desafios no contexto da Reforma Psiquiátrica.
saúde, embora os níveis de discussão variem de acordo
Nesse sentido, ainda há muito a se debater (sobre a
com o curso, as idéias são em geral apresentadas sem
evolução das bases conceituais e das representações
que se enfatizem os embates epistemológicos travados,
sociais da Saúde Mental, por exemplo) e a se repensar
desde o século 18, em torno dos conceitos de saúde,
como, por exemplo, as idéias que foram se cristalizando
Saúde Mental e doença mental. Na pós-graduação,
no campo da psiquiatria e que estruturam grande parte
esse quadro melhora para os profissionais que aten-
do pensamento dos profissionais de Saúde Mental, no
dem às áreas confluentes da saúde e das Ciências
momento de sua formação acadêmica.
Humanas e Sociais.
Nossa reflexão sobre a evolução do universo con-
Afinal, quais são as idéias, os conceitos e a filosofia
ceitual em Saúde Mental é extremamente limitada, e
da prática que são transmitidas aos estudantes da área
toma por base metodológica uma análise bibliográfica
como verdades inquestionáveis e, além de tudo, em um
focada em obras de autores que se tornaram marcos
ambiente de sala de aula, intimidador, pouco convida-
proeminentes tanto no que se refere à historicidade da
tivo à crítica e perenemente condicionado pelas notas
formação acadêmica como no que diz respeito à for-
obtidas nas avaliações?
mação profissional a partir do que propõe a Reforma
A história da psiquiatria constitui uma rota concei-
Psiquiátrica. Torna-se possível, dessa forma, esboçar
tual que tem como marco o trabalho de Philippe Pinel,
algumas considerações frente às atuais políticas de Saúde
considerado por muitos o pai da psiquiatria e defensor
Mental propostas no contexto do SUS.
dos direitos humanos, conforme os cânones da Revolução Francesa, da qual foi deputado. Pinel era adepto do chamado tratamento moral, baseado na idéia de que a disciplina e a moralização do comportamento, exercidas
VERTENTES FUNDAMENTAIS NA
em ambiente hospitalar, eram os principais elementos
FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL
potenciais de cura das doenças mentais (Alexander; Selesnick, 1980). Isto se coadunava perfeitamente com al-
O profissional de Saúde Mental contribui, com
guns preceitos estabelecidos pela nova ordem capitalista
sua emergente presença nas unidades de saúde geral,
imposta pela burguesia, agora dominante. A organização
para oxigenar o sistema de saúde como um todo atra-
da existência humana nos moldes capitalistas torna de-
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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
sejável que os corpos não abriguem condições limitantes
Um dos legados da nosologia de Kraepelin é a idéia
ao trabalho, condições que podem ser produzidas por
de que não há cura para transtornos mentais graves,
problemas inatos ou por vidas desregradas. É preciso
como as síndromes psicóticas. Existe também a palavra
cuidar dos corpos, atitudes e comportamentos, além de
‘alienado’, oriunda da dicotomia colocada e usada para se
controlá-los e normalizá-los. A noção de normalidade
explicar e descrever a doença mental entre razão e desati-
torna-se importante e a prevenção e reabilitação passa
no. O doente mental, por não dispor da razão, não pode
pelo controle, inclusive moral, das pessoas em todas as
participar adequadamente da comunidade social; sua
suas instâncias (Foucault, 1986; 1999). Surge, desta
própria natureza o aliena da convivência sadia e normal
forma, uma linha de pensamento e ação em saúde, cujo
(Almeida Filho, 1999). As idéias de que os alienados
objetivo é a normalização dos comportamentos e cuja
não são capazes de contribuir produtivamente com a
principal medida é a capacidade de produção.
sociedade e de que apresentam um razoável potencial
A medicina se compromete, concomitantemente,
de periculosidade são, então, estabelecidas. O esquema
com o pensar científico da época, que busca as causas
moral e nosográfico impregnou as páginas dos textos di-
definitivas das doenças em substratos patológicos orgâ-
dáticos utilizados largamente na formação de psiquiatras
nicos subjacentes. No final do século 19 surgiu, como
e, por contingência, de outras disciplinas ligadas à Saúde
resultado, a nosologia de Emil Kraepelin, psiquiatra
Mental. Passou-se a aceitar como verdades absolutas
alemão que se dedicou à descrição minuciosa de todos
essa idéia de que as pessoas com problemas mentais são
os comportamentos apresentados pelos ‘doentes mentais’
desatinadas, improdutivas, perigosas, incuráveis e que
e à definição de síndromes identificadas com estes com-
seu tratamento deve ser feito em regime de estrita tutela,
portamentos, permitindo uma sistematização substancial
baseado no controle cuidadoso de seus comportamentos,
do trabalho semiológico em psiquiatria e conferindo um
normalizando-os e moralizando-os.
status de ciência clínica a esta especialidade, tornando-a mais respeitável no âmbito da medicina geral.
Na contra-hegemonia surge o trabalho de Freud, mas algumas questões importantes pendiam sobre sua
As obras de Pinel e Kraepelin, assim como as de
obra. Primeiro, a psicanálise não se enquadra no restrito
outros psiquiatras como Esquirol e Janet, permitem
esquema experimental que a ciência positivista domi-
que diagnósticos psiquiátricos cada vez mais específicos,
nante aceitava como legítimo; segundo, Freud trabalhou
que levem em consideração os comportamentos (sinais)
com populações restritas, principalmente com a classe
e sentimentos (sintomas) expressados pelos pacientes,
social mais privilegiada da Europa do fim do século 19
sejam estabelecidos. Essa psicopatologia descritiva per-
(embora os estudos das forças hegemônicas também
mite que os médicos psiquiatras estabeleçam ‘verdades
tenham sido, em sua quase totalidade, restritos a sujeitos
científicas’ e mantenham sob controle a determinação
internados em manicômios). Apesar de sua psicologia
do cuidado à doença mental. A verdade sobre a doença
dinâmica ser considerada contra-hegemônica, ainda é
mental, estabelecida pelo esquema nosográfico-compor-
de natureza essencialmente determinista e baseada em
tamental, afirma-se como instrumento de poder médico;
estudos de casos patológicos.
uma vez ensinada sob esta óptica, a psicopatologia passa
Em 1913, Karl Jaspers lançou Psicopatologia geral,
a ser aceita como verdade natural. E ela é apresentada
propondo uma abordagem fenomenológica e existencial do
dessa forma até hoje, tendo como ‘bíblia’ o DSM-IV-
psiquismo. Localizamos três vertentes importantes (psico-
TR® da American Psychiatric Association (2003).
patologia descritiva, psicologia dinâmica e fenomenologia
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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
existencial) para o futuro desenvolvimento do pensamento em Saúde Mental; vertentes essas que até hoje marcam profundamente a formação dos profissionais da área.
mana tem um significado maior e um valor profundo, tem mais resistência à descompensação emocional do que aqueles que têm atitudes e sentimentos que levam à insegurança.(p. 2324). Por outro lado, Ginsburg (1955) privilegia a capacidade de se relacionar com o meio, que se manifesta
DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL EM SAÚDE MENTAL No início do século 20, o movimento higienista ganha grande força na psiquiatria, afirmando o interesse pela anormalidade e a intervenção preventiva da psiquiatria na vida pessoal, comunitária e institucional. A essa altura o repertório psiquiátrico já incluía a noção de impossibilidade de os esquizofrênicos estabelecerem relações adequadas, o grande sintoma da esquizofrenia na visão da nosologia de Kraepelin. Essa característica, aliada àa noções de periculosidade e improdutividade, passou a estereotipar por contraposição as maneiras de ser da normalidade na visão da psiquiatria; visão essa que consolidava a afirmação peremptória do sistema capitalista. Algumas repercussões desse jogo de forças
em três áreas principais: amor, trabalho e prazer. Ele enfatiza como sinais de uma mente sã a habilidade de reter um emprego, ter uma família, manter-se sem problemas com a lei e aproveitar as oportunidades de obtenção de prazer. (p. 2324). A noção de sanidade estava centrada, portanto, na adaptação social e cultural mediada pela segurança pessoal e confiança na vida e no próximo, na participação alegre de um jogo cujas regras eram estabelecidas no contexto de um complexo social e ideológico hegemônico e na habilidade em se adaptar à sociedade como ela é, aproveitando as oportunidades que ela oferece para o encontro da felicidade. Tornam-se automaticamente suspeitos não só aqueles que se encontram em forma radical de alie-
ideológicas no território da epistemologia da Saúde
nação (os chamados loucos), mas também aqueles que
Mental são flagrantes. Em 1947, Karl Menninger (apud
questionam, angustiam-se ou não aceitam as propostas
Brown, 1958, p. 2324), enuncia a seguinte definição
de participação social oferecidas pelo sistema.
de Saúde Mental:
Essas, e outras definições de mesmo tom, tornam-se importantes referências e compõem o universo conceitual
Adaptação dos seres humanos ao mundo e a outros com o máximo de efetividade e felicidade. Não somente eficiência, ou apenas contentamento - ou a graça de obedecer alegremente às regras do jogo. É tudo isto junto, os comportamentos que implicam consideração social, e uma disposição alegre. Também emblemáticos, Ewalt e Fansworth (apud Brown, 1975) definem o indivíduo saudável como sendo aquele: que tem confiança em si mesmo e nos outros, um senso de competência e um sentimento de que a situação hu-
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dos livros-texto de psiquiatria dos países alinhados com o sistema de produção e o modus vivendi capitalista, como o Brasil. Tais definições acabaram por nortear, nas décadas seguintes, os principais textos psiquiátricos, como os de Mayer-Gross (Inglaterra), Kaplan (EUA), Honório Delgado (Espanha) e Henry Ey (França) entre outros; passaram, também, a apresentar ressonância em textos das áreas de psicologia, enfermagem psiquiátrica e terapia ocupacional que, mesmo trazendo eventuais críticas ao modelo biomédico, aceitavam como base as verdades científicas já estabelecidas nos textos psiquiátricos a respeito da loucura.
OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
Essa linha de pensamento, assim como as linhas
temente vinculada a uma epistemologia essencialmente
contra-hegemônicas, continuava abordando a Saúde
positivista, ao discurso da promoção, privilegiando-se
Mental a partir da doença. A Organização Mundial da
a quantificação de procedimentos, a protocolização
Saúde (OMS) problematizou o assunto ao lançar no
de ações e a avaliação por alcance de metas gerenciais
preâmbulo de sua constituição, em 1946, a idéia de que
estabelecidas por planejamentos normativos.
saúde não podia ser considerada apenas como a ausência
A promoção da saúde questiona a atuação dos serviços
de doenças, mas um estado de bem-estar físico, mental
com base na objetividade e na quantificação. Como estabe-
e social. Essa forma de compreender a saúde é simultâ-
lecer medidas efetivas para a Saúde Mental, ou objetivar a
nea ao lançamento de O normal e o patológico (1943),
análise da condição psíquica, sem voltar a privilegiar uma
de Canguilhem, que questiona a epistemologia vigente
nosologia hoje posta sob suspeita do ponto de vista da
até então na saúde e com grandes repercussões na Saúde
eficácia terapêutica? (Moreira; Sloan, 2002).
Mental. Esse filósofo discutiu de forma aprofundada a
Não existem definições claras que nos ajudem a
questão de a saúde poder ou não ser considerada como
elucidar e quantificar a Saúde Mental, para fins de diag-
um conceito dentro dos padrões da ciência. O autor
nóstico e tratamento e as que existem têm sua credibili-
conclui que sim, mas faz uma ressalva: há uma forma
dade em cheque, como é o caso dos testes psicológicos
de encarar a saúde que é subjetiva, pessoal e outra mais
e de muitas escalas diagnósticas baseadas em contagem
objetiva, científica (Canguilhem, 1990). Essa idéia se
de itens sintomáticos. A questão pode ter significados
contrapunha àquelas de alguns autores da escola feno-
diferentes para profissionais que subscrevem uma abor-
menológica, sobretudo os mais radicais, para os quais
dagem fenomenológica, existencial, qualitativa ou dinâ-
a saúde é uma manifestação exclusivamente de caráter
mica, e para gestores e avaliadores que determinam, com
pessoal, absolutamente privado, só podendo ser avaliada
base no desempenho objetivo e quantitativo, a alocação
pela pessoa que a vivencia (Almeida Filho, 1999).
de recursos nos âmbitos público e privado.
Tal problematização epistemológica, tanto quanto a
Na medida em que se acirram, e não se resolvem,
definição da OMS de 1946, trouxe conseqüências para
as tensões entre a hegemonia do modelo tradicional e a
decisões sobre saúde coletiva. A partir desse entendimento
postura de Reforma Psiquiátrica, os profissionais de Saúde
da saúde, como sendo um estado de bem-estar, ou uma
Mental sofrem a ação de fatores estressantes que obstaculi-
manifestação subjetiva, um atributo que se pode obje-
zam seu desempenho profissional, obrigados a fazer, muitas
tivar e até mensurar, fundam-se diferentes maneiras e
vezes, concessões que os desmotivam e os angustiam.
possibilidades de programar, ou não, ações a promovam e reabilitem. Dependendo do conceito de Saúde Mental sobre o qual se fundamenta, é possível pensar em que consiste a sua manutenção, promoção e reabilitação. Embora o discurso da saúde coletiva inclua o objetivo da promoção, as discussões acima colocadas não
CONTRIBUIÇÕES DO MODELO CULTURALISTA, DA ANTIPSIQUIATRIA E DA PSICOLOGIA SOCIAL
são, a nosso ver, suficientemente contempladas nas discussões clínicas, curriculares ou nos processos de gestão
O modelo biomédico segue a tradição hegemôni-
e planejamento. Essa evasão intensifica a confusão que
ca e, portanto, dicotomiza saúde e doença. Na lógica
se instala a partir da contraposição de uma prática, for-
prevalente, o avanço de um lado significa a menor
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OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
ingerência do outro, isto é, quanto mais uma pessoa se
e o termo enfermidade (illness) para as características
encontra doente menos possibilidades há de que seja
culturais da doença. Patologia refere-se à ocorrência ob-
considerada saudável e vice-versa. Essa premissa, aceita
jetiva de funcionamento anômalo dos sistemas orgânicos
com reservas, na clínica médica, torna-se complicada no
ou fisiológicos. Na categoria enfermidade, incorpora-se
terreno mental que contempla a idéia de que um indi-
a experiência e a percepção individual relativas a uma
víduo pode, por exemplo, apresentar sinais de doença
variedade de problemas decorrentes da patologia, bem
mental e, ao mesmo tempo, funcionar de forma saudável
como a reação pessoal e social à enfermidade, ou seja, o
em outros planos existenciais ou temporais. O modelo
significado atribuído pessoal e culturalmente à doença.
tradicional, ancorado na descrição e quantificação de
A Antropologia Médica potencializou um novo olhar
sintomas, se traduz em uma prática institucional que
sobre a apresentação e o curso das doenças mentais. Sob
desconsidera as potencialidades humanas e estigmatiza
sua óptica, as apresentações, percepções, significados e
por meio de diagnósticos que definem uma condição
evolução das doenças não constituem uma realidade ob-
como irreversível, apenas controlável por medicamen-
jetiva e inquestionável, como preconiza a psicopatologia
tos. Por outro lado, essa mesma maneira institucional
descritiva, mas ocorrem de acordo com o sujeito, com o
reforça a promiscuidade terminológica saúde/doença
grupo sociocultural e com a interpretação e significância
como Zusman (1975) ilustra:
que lhe são atribuídas pela sociedade e pelos próprios profissionais da área. Além de se contrapor a uma nosologia
Instituições de ‘saúde mental’ normalmente atendem a “doentes mentais.” Profissionais de saúde mental são especialistas em tratamento de doenças mentais e têm relativamente pouco treino em saúde mental. Muitos questionários aplicados à população com a intenção de medir a saúde mental na verdade focalizam sintomas de doenças mentais. (p. 2324).
que reconhece uma evolução da doença independentemente da subjetividade, a abordagem antropológica tira o foco da doença e o coloca na pessoa que sofre e nos sujeitos que a circundam, inclusive o profissional que a diagnostica e trata. Essa é uma proposta radical para evolução do pensamento sobre a doença mental, embora, como enfatiza Almeida Filho (1999), a doença ainda seja
Para Ronald Laing (1959; 1967) e Thomas Szasz
a referência para se pensar a saúde.
(1974), o diagnóstico é uma construção social e política
A antipsiquiatria, na década de 1960, marcou uma
de base econômica e cultural; essa discussão é retoma-
nova aderência à fenomenologia existencial e uma transi-
da no campo da Antropologia Médica sobretudo por
ção para as definições reformistas contemporâneas, enfa-
Kleinman (1988) e Young (1982). A contribuição epis-
tizando o condicionamento social da construção coletiva
temológica desses autores é suficientemente vasta para
da experiência e das identidades de grupos e indivíduos
merecer uma revisão à parte, trabalho a que se dedicou
(Szasz, 1974). Uma criança, argumenta Laing (1967),
Almeida Filho (1999).
começa já em tenra idade a perpetuar valores, crenças
Limitamo-nos aqui a enfatizar o reconhecimento,
e atitudes aprendidos no contexto da vida familiar e
por Kleinman, das diferenças biológicas e culturais no
por conta dos meios de comunicação. À medida que
estado de doença (sickness). O autor propõe duas cate-
se desenvolve pela socialização que acontece na igreja,
gorias na análise da doença, usando o termo patologia
na escola, nos clubes e em outras instituições nas quais
(disease) para categorizar as alterações biológicas ou
se estabelecem relações, cujo acesso é determinado por
psicológicas, de acordo com a classificação biomédica,
sua classe socioeconômica e pelas oportunidades que
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008
OLIVEIRA, W.F. • Algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
lhe são apresentadas (ou negadas) de acordo com sua
destacando-se a atuação de Franco Basaglia na Itália,
inserção sociocultural. A definição da insanidade mental,
que adicionou à sua visão epistemológica uma prática
aponta Szasz (1974), é produzida a partir dessas normas
política que visava o fim dos manicômios. Vastas
e padrões de desenvolvimento, que obedecem a regras
revisões sobre a Reforma Psiquiátrica, na Itália e no
morais e servem à opressão de minorias socioeconômicas
Brasil, têm sido conduzidas, como na obra de Basa-
e aos interesses de indústrias de serviços e de produção
glia (1985), Amarante (1995) e Rotelli, Leonardis e
farmacológica, que dependem da sistematização da in-
Mauri (2001).
sanidade para o seu sustento econômico e político.
Uma série de definições de Saúde Mental ainda
A fenomenologia existencial, na visão da antipsi-
têm sido propostas, seguindo as várias vertentes que
quiatria, conceitua a experiência humana como experi-
compõem os eixos teórico-conceituais da área. Kaplan,
ência comum, compartilhada socialmente. Lane (1984)
Sadock e Grebb (1997) revisam o conceito e apontam di-
corrobora esta visão, apontando que toda psicologia é
versos fatores considerados nessas definições, entre eles,
psicologia social; não há como dicotomizar ser indivi-
a resistência funcional, a constância da personalidade, a
dual e ser social. A autora trabalha a idéia de ‘indivíduo
disposição pessoal, o crescimento e o desenvolvimento
social’, argumentando que a formação da identidade é
compatíveis com ciclo vital, a auto-afirmação, as atitudes
completamente relacional, que ocorre não só em fun-
com o self, a percepção da realidade, a previsibilidade
ção de fatores pessoais, mas das relações com o mundo
de ações, as formas de reação perante circunstâncias
exterior. Eu sou o que o outro ajuda a definir. Minha
internas e externas, as características adquiridas e
experiência é parte da experiência geral do mundo. Mi-
adaptadas em relação ao meio-ambiente, a habilidade
nha percepção do mundo exterior, meus desejos, atitudes
de se relacionar com o meio ambiente e os graus de
e ambições são fruto do que os outros determinam. Os
autonomia, entendida como uma independência das
‘outros’ são pessoas, grupos e instituições com os quais
influências sociais.
estou envolvido direta e pessoalmente, ou aqueles que
Se pensarmos as tendências a partir do Relatório
nem mesmo suspeito quem sejam, mas que podem in-
Lalonde, um dos marcos da Promoção de Saúde, lan-
fluenciar minha maneira de ser. A idéia de que a Saúde
çado em 1974, teríamos ainda que considerar o estilo
Mental da pessoa depende, além dela mesma, de suas
de vida, a capacitação das comunidades e a oferta de
relações com o outro e com o mundo, também se con-
serviços como fatores condicionantes da saúde. A Saúde
trapõe à radicalidade nosográfica-positivista, já que essa
Mental, nessa perspectiva, depende também da respon-
busca a explicação da determinação da Saúde Mental
sabilidade pessoal e admite a influência dos poderes
primordialmente a partir da genética e da bioquímica.
socioinstitucionais. Finalmente, em 2001 a Organização Mundial de Saúde enunciou uma definição de Saúde Mental, como um:
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE DEFINIÇÃO DE SAÚDE MENTAL A década de 1970 foi marcada pelo desenvolvimento de uma série de movimentos de reforma,
Estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas habilidades, consegue lidar com os estresses normais da vida, pode trabalhar produtivamente e frutiferamente e está em condições de contribuir com sua comunidade. (Organização Mundial de Saúde, 2005).
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Pode-se dizer, ainda, que a evolução conceitual
CONSIDERAÇÕES FINAIS
no campo da Saúde Mental, em seus aspectos mais progressistas, propicia um retorno da filosofia exis-
Frente a um mundo em constante transformação, o
tencial como base interpretativa para a experiência
profissional de Saúde Mental enfrenta questionamentos
subjetiva (Amarante, 2007). A compreensão ampla
sobre temas emergentes e persistentes e, particularmente,
desta evolução nos ambientes curriculares, acadêmi-
sobre o desenvolvimento de seu campo profissional.
cos e clínicos, pode se fortalecer com o fomento de
Uma das formas de definir o campo da Saúde Mental
discussões sobre a natureza da saúde, da doença, da
é como um sistema aberto que pensa a natureza, as
cura, da reabilitação, da promoção e da prevenção;
condições e as interações humanas, contextualizando
assim como discussões sobre temas como a inter e
sua existência cognitivo-intelectual e suas interações
a transdisciplinaridade, o interparadigmatismo, as
simbólicas. Esse sistema funciona em meio a uma
relações de poder e a contratualidade exercida entre
perspectiva sociocultural que constantemente avalia
profissionais, serviços e usuários, direitos humanos,
comportamentos, determinando quais são adequados e
autonomia e cidadania das pessoas com transtornos
quais são inadequados. Nessa perspectiva, o campo da
psíquicos, natureza, missão e funcionamento das
Saúde Mental é um universo no qual constantemente
instituições, institucionalização e desinstituciona-
se elaboram, checam, discutem e restabelecem valores,
lização, determinação multifatorial envolvida nos
símbolos e significados; é um campo que contribui com
processos saúde-doença e, enfim, sobre a natureza
a formação, compreensão e elaboração de atitudes e
essencialmente política da epistemologia em Saúde
comportamentos pessoais, profissionais e institucionais,
Mental (Vasconcelos, 2002; Almeida Filho, 1999).
diretamente influenciadores na qualidade da vida dos
Essas discussões podem viabilizar o exercício de novas
indivíduos e das comunidades por meio do poder que
formas de relação, novas linguagens, novas práticas e
os profissionais detêm sobre os processos privados e
novas tecnologias sociais nos projetos terapêuticos,
coletivos de saúde-doença.
bem como nortear a participação do profissional de Saúde Mental em ações comunitárias.
O avanço neste campo é crucial para uma sociedade mais sadia, mais justa e humanizada e se materializa no
É importante discutir como se efetiva e se cons-
seio de processos sociais complexos, como as Políticas
trói, conceitualmente e na prática, a postura, o olhar,
Públicas. A discussão das bases conceituais em Saúde
do profissional e das instituições em relação ao sujeito
Mental contrasta e dialoga, assim, com um pano de
que procura por seus serviços ou é colocado involun-
fundo social, político e cultural. As maneiras de concei-
tariamente na condição de usuário. O debate entre
tuar ‘saúde’ e ‘Saúde Mental’, transcendem disciplinas
correntes positivistas, biologicistas, fenomenológicas,
científicas e territórios de ação em saúde, colocando
existencialistas, culturalistas, entre outras, tem um po-
em perspectiva a necessidade de o profissional de Saúde
tencial frutífero se exercido como um diálogo no qual
Mental encarar, em sua permanente formação, os papéis
podem emergir livremente as discussões sobre estes e
que exerce frente à realidade da experiência humana da
outros temas relevantes para o avanço do projeto sani-
forma como ela se apresenta no cotidiano de indivíduos,
tário do SUS.
grupos, comunidades e instituições.
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008
ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual* Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate
Richard Couto Sonia Alberti 2 1
1
Mestre em Pesquisa e Clínica em
Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de
RESUMO O presente artigo visa fornecer um breve histórico do que se convencionou denominar Reforma Psiquiátrica, partindo do pressuposto de que a psiquiatria
Janeiro (IP/UERJ).
moderna, como especialidade médica, nasceu com uma reforma que seria, portanto,
[email protected]
um conceito intrínseco a ela. Das várias nuanças do termo, em particular, nos desdobramentos nos anos 1950, na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, visa-
2
Professora adjunta do IP/UERJ;
e pró-cientista da UERJ; Doutora
se depreender o campo instituído da Saúde Mental – dos manuais de Psiquiatria à
em Psicologia pela Universidade de
Psicanálise, passando pelas Políticas da saúde pública –, supondo que o conhecimento
Paris X-Nanterre; pós-doutorada pelo
da história possa trazer instrumentos para uma melhor compreensão do que se
Instituto de Psiquiatria da Universidade
apresenta atualmente como tensão entre clínica e atenção psicossocial.
Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ); pesquisadora do Conselho Nacional
PALAVRAS-CHAVE: Reforma Psiquiátrica; Políticas de saúde; Manuais
de Desenvolvimento Científico e
psiquiátricos; Psicanálise.
Tecnológico (CNPq); psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
ABSTRACT The article proposes a brief history of the so called Psychiatric
[email protected]
Reforms. It begins with the idea that modern Psychiatry was born as a reform which would, in consequence, be intrinsic to psychiatry. Plural nuances of the term are studied, particularly, those arisen from the movements in 1950´s and changes in Psychiatry occurred in France, England, Italy and the United States. The instituted field for Mental Health will then be examined as a derivation from the effects of Psychiatric manuals and Psychoanalysis, as well as public health politics, assuming that the fact of better knowledge of the history may provide instruments for a better comprehension than the actual one, which presents a tension between the clinic work and the psychological and social care. KEYWORDS: Psychiatric Reform; Health politics; Psychiatric manuals; Psychoanalysis.
* Texto que se baseia no primeiro capítulo da dissertação de Mestrado de Richard Couto, orientando da professora Sonia Alberti, que foi defendida e aprovada em 30 de abril de 2008.
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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
I N T R O D U ç ão
quiátrico moderno desde seu nascimento, como uma das muitas especialidades da Medicina. No Brasil, nos últimos 20 anos, no Brasil, é que o termo Reforma Psiquiátrica ganhou ares de grande novidade, principalmente com aprovação da lei federal 10.216, em 6 de abril 2001, con-
Em toda sua história, é a primeira vez, no Brasil, que
solidando a desospitalização gradual dos pacientes psiqui-
a atual Reforma Psiquiátrica tem uma pretensão prática.
átricos e a diminuição dos leitos hospitalares, bem como a
O intuito desta pesquisa não é refazer, em todos os seus
invenção de dispositivos substitutivos. Daí a questão: que
aspectos, a trajetória desta reforma, mas percorrer sua no-
implicação há entre o antigo e os novos dispositivos de
ção, que está intimamente ligada à psiquiatria moderna,
atendimento para os portadores de sofrimento psíquico e
a ponto de se poder levantar a hipótese de que a própria
para os usuários da assistência em Saúde Mental no Brasil,
psiquiatria moderna nasce com uma reforma. Com efeito,
como são denominados pela lei 10.216?
quando Pinel abriu os portões do Hospital de Bicêtre
Com base do que foi apresentado na introdução (a
para a saída dos mendigos, dos órfãos e dos pobres, de
reforma ocorrida no século 18), o intuito desta pesquisa
modo geral, que foram enclausurados devido à grande
é verificar que, com Pinel, a circunscrição dos doentes
mudança dos meios de produção na Europa e que gerou
mentais nos hospitais psiquiátricos (locais onde se pode-
modificações sociais contundentes no século 18, os loucos
ria melhor estudar e tratar os doentes por meio do então
foram mantidos enclausurados (Morrissey, Goldman e
proposto ‘tratamento moral’), se consolidou como uma
Klerman, 1980). Assim, pode-se dizer que a primeira
reforma. Para tal tratamento, considerava-se que a cura
Reforma Psiquiátrica foi empreendida por Pinel, como
das patologias mentais deveria ser conduzida mediante
uma maneira de delimitar os loucos e suas questões no
a atenção integral à mente do doente, partindo da supo-
espaço hospitalar, submetendo-os ao poder psiquiátrico,
sição de que restava algo íntegro da razão perdida com a
sustentado pelo saber médico. Tal observação não data de
doença. Pinel sustentava-se em sua relação com a história
hoje, veja-se, por exemplo, o texto de Tuke (1892). Por
natural e a filosofia para especificar as particularidades
outro lado, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica é, atualmen-
das doenças mentais (Bercherie; 1989).
te, elevada à categoria de conceito, guardando relação com
Em nome do saber científico, a psiquiatria, para con-
os documentos oficiais que regulamentam, viabilizam e
testar Pinel, mais uma vez projeta uma reforma excluindo de
concretizam as propostas engendradas pelo movimento
seu campo o tratamento moral da loucura e visa uma nova
sustentado pela lei 10.216. BRASIL. MINISTÉRIO DA
maneira de tratamento, baseada no empuxo ao cientificismo
SAÚDE. Lei n.º 10216, de 06 de abril de 2001.
presente no século 19, em particular a partir de sua segunda metade (Alberti, 2003). Contudo, o que os historiadores mostram é que por trás dessa reforma está a exigência feita à Psiquiatria de retirar das grandes cidades, tanto na Europa,
AS VÁRIAS NUANÇAS DO TERMO REFORMA
quanto na América do Norte, aqueles que poderiam abalar
PSIQUIÁTRICA
e perturbar a ordem vigente dessas sociedades (Foucault, 1972; Resende, 1987; Candiotto, 2007).
Primeiramente, parte-se da hipótese de que o termo
A massa que ocupou os hospitais psiquiátricos por
Reforma Psiquiátrica está presente no corpo do saber psi-
longos anos, especialmente a partir do início do século
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008
COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
20, e o próprio modelo asilar, somente foram novamente
foram as mesmas: 1) um clima social favorável ao ques-
postos em questão depois da Segunda Guerra Mundial.
tionamento do modelo manicomial, respaldado num
Muitos fatores contribuíram para esse questionamento
consenso técnico, político e social, que permitia a elabo-
e por uma nova argumentação de Reforma Psiquiátrica.
ração de objetivos alternativos ao hospital psiquiátrico; 2)
Dentre os principais fatores que exerceram influência para
a legitimação administrativa, que deveria partir do Estado
a desmobilização das internações psiquiátricas, nos anos
em forma de um compromisso de levar adiante o processo
do pós-guerra estão: o crescimento econômico de alguns
de reforma, auxiliado por um corpo técnico qualificado.
países, a reconstrução social e os movimentos sociais e civis.
Para o autor mencionado, todas as tentativas de Reforma
Há outros fatores importantes: os psicofármacos – apesar
Psiquiátrica são marcadas por estas duas condições.
dos freqüentes questionamentos quanto aos efeitos de sua comercialização –, a entrada da psicanálise nos meios psiquiátricos. Tanto nos hospitais ingleses quanto nos franceses, o número de psiquiatras com formação psicanalítica cresceu consideravelmente, o que gerou uma nova forma de postura diante do paciente psiquiátrico. Nos Estados Unidos, essa influência da Psicanálise gerou a chamada Psiquiatria Psicodinâmica; identificada com uma prática liberal, a Psicanálise que se impôs no campo da Psiquiatria, nos anos 1950, era aquela praticada na American Psychoanalytic Association (APA), restringindo o exercício da Psicanálise aos médicos – apesar das críticas veementes a essa prática levantadas por Freud já em 1926 e 1927.
DA PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL ÀS COMUNIDADES A Psicoterapia Institucional e a Política de Setor, na França, formaram um conjunto de reformas que influenciaram várias regiões da Europa, mas também a América Latina, como o Brasil. A Psicoterapia Institucional foi o braço teórico-clínico da política de setor francesa, aquela que orientava o atendimento aos doentes mentais de forma setorizada. Tal forma de serviço pôde ser verificada depois em outros movimentos de Reforma Psiquiátrica
Tal conjuntura também trouxe, ao campo da do-
que estabeleceram sempre a divisão em zonas para os
ença mental, a reivindicação da participação da saúde
serviços de atendimento. Pode-se dizer que a experiência
pública de competência do Estado, obrigando-o a uma
francesa foi a primeira a pôr, na prática, o atendimento em
maior implicação nessa área. Isso foi de grande relevância
zona. Naquele país, a marca da Psicoterapia Institucional
para os diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica
foi uma forte adesão à Psicanálise, principalmente a de
surgidos a partir da década de 1950, como: a Psicologia
orientação lacaniana. A hipótese inicial da Psicoterapia
Institucional e a Política de Setor, na França; a Psiquia-
Institucional estabelecia que a instituição total, seja ela
tria Comunitária e Antipsiquiatria, na Inglaterra; a
hospital, presídio, entre outros, estava doente. Com
Psiquiatria Antiinstitucional, na Itália, e a Desinstitu-
isso, não só os pacientes ou usuários eram doentes, mas
cionalização, nos Estados Unidos.
também os funcionários e agentes da instituição, e ambos
Segundo Desviat (1999), apesar de haver diferenças
deveriam ser tratados. Assim, o marco da Psicoterapia
entre todos esses movimentos de Reforma Psiquiátrica, as
Institucional e da Política de Setor se fez em razão de sua
condições norteadoras e essenciais para suas efetivações
proposta: ser uma ação de saúde pública1.
Tal proposta da Política de Setor tinham como princípios fundamentais: o princípio da setorização ou zoneamento - delimitaram-se áreas com 50 mil a 100 mil habitantes; o princípio da continuidade terapêutica - uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e pós-cura; o eixo da assistência deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar - o paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade e o efeito cronicizador da instituição deveria ser evitado (Desviat, 1999). 1
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COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
Já a Comunidade Terapêutica forneceu subsídios
ENTRE HUMANIZAÇÃO E ECLETISMO
à Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde da GrãBretanha. As comunidades terapêuticas tiveram seu início
A Psiquiatria Antiinstitucional, que se fez ponto
ainda nos tempos da Segunda Guerra Mundial, principal-
de partida para a Reforma Psiquiátrica italiana, teve
mente pelo trabalho realizado pelo psicanalista inglês W.
seu início na experiência do psiquiatra Franco Basaglia,
Bion, por meio do atendimento em grupo aos soldados
quando, em 1961, ele assumiu a direção do Hospital
que apresentavam problemas quanto ao engajamento na
de Gorizia, província italiana. O movimento basaglia-
guerra. Essa foi a forma que ele encontrou para atender
no se caracterizou pela tentativa de humanização e a
um grande número de pacientes. No entanto, seu trabalho
transformação da instituição psiquiátrica, apoiando-se
diferia o grupo daquele identificado por Freud (1976C)
no modelo de Comunidade Terapêutica. Porém, em se-
na medida em que propunha um grupo sem chefe. Bion
guida, a tentativa era de levar a experiência dos pacientes
trabalhou com a possibilidade da existência:
para fora dos muros do hospital, para a sociedade que os excluiu:
de um grupo que não se baseia no Ideal do Um (como Exército e a Igreja nas célebres análises freudianas), mas que fizesse existir o particular do sujeito promovendo a heterogeneidade inassimilável a qualquer fusão identificatória. (Laurent et al.; 1998, p. 259). Deve-se salientar que as diretrizes da Lei de Saúde
Uma comunidade que se queira terapêutica deve levar em conta esta realidade dupla, a doença e a estigmatização, para poder reconstruir gradualmente o rosto do doente, como devia ser antes de a sociedade, com seus inúmeros atos de exclusão e através da instituição que inventou, agir sobre ele com sua força negativa. (Basaglia; 1967 [1985], p. 124).
Mental britânica não tinham como objetivo abolir do sistema o hospital psiquiátrico ou diminuir leitos
Ao contrário dos movimentos na França e na Ingla-
psiquiátricos nas unidades; o fechamento deveria ser
terra, o movimento de Basaglia realizou uma contestação
tributário do estabelecimento de outras unidades de
incondicional do modelo manicomial. Uma das críticas
assistência aos pacientes e de serviços presentes nas
mais enfáticas ao hospital psiquiátrico, realizadas por
comunidades onde os pacientes se encontravam. A
Basaglia e seu grupo, foi a violência praticada contra
estruturação dos serviços, a partir do seu planejamento
o doente mental, como o choque elétrico, os métodos
em regiões, com a ênfase nos programas de atendimen-
de indução ao desmaio, a contenção e outros. Para o
to parcial e nos serviços residenciais completos nas
psiquiatra italiano, a violência é tributária, direta das ins-
comunidades, logo foi elogiada por órgãos internacio-
tituições, sejam elas a família ou o hospital psiquiátrico,
nais como a Organização Mundial de Saúde (OMS).
além de ser condição essencial para o estabelecimento e a
Finalmente, é notória a modificação do tratamento
efetivação da instituição e tendo uma função meramente
da questão com essa contribuição especificamente
adaptativa maquilada por um discurso respaldado no
inglesa e que tange à designação do campo já não
campo médico a inferir uma causalidade biológica ao
mais chamado de doença, mas de Saúde Mental, pois
sofrimento psíquico. O psiquiatra respalda a objetivação
foi a iniciativa inglesa que adotou este termo em seus
que fica ainda mais acentuada devido ao assujeitamento
documentos, tanto que hoje a privilegia em detrimento
do paciente à instituição e ao saber psiquiátrico. Basaglia
à doença mental.
ainda afirma que o problema não é a doença em si, mas
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008
COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
a relação que se estabelece com ela, pois tanto o psiquia-
a facilidade de acesso pela população aos serviços, que
tra quanto a sociedade sempre tentaram se defender do
incluía uma boa localização e descentralização dos refe-
doente mental.
ridos serviços; informações à população da área sobre os
A Desinstitucionalização norte-americana não
serviços, a assistência e suas características. Além disso,
ofereceu resultados satisfatórios; na verdade gerou um
tais serviços deveriam ser gratuitos e disponíveis a todos.
grande número de abandonados. Até hoje, o estado
Outra marca do projeto implantado por Kennedy foi sua
norte-americano não dispõe de Políticas Públicas de
ênfase na prevenção da doença mental, como também
Saúde, tais como os estados europeus ou como o Brasil.
a tentativa de abrangência das necessidades da comuni-
Salvo o período em que John Kenndy foi presidente, o
dade atendida e não somente dos doentes mentais, que
estado americano pouco fez para se ter uma Reforma
já tinham tratamento.
Psiquiátrica no país. Isso não quer dizer que nos Estados
O método utilizado para realizar o tratamento
Unidos não havia hospitais psiquiátricos públicos. Em
poderia ser considerado eclético ou multidisciplinar:
1955, havia, no país, cerca de 600 mil leitos psiquiá-
psicoterapia de várias orientações, psicofármacos, tera-
tricos e até 1958 houve uma crescente no número de
pia ocupacional, etc. Todavia, a orientação que mais se
internos, sendo que os métodos de tratamento foram
destacou nos centros de Saúde Mental foi a Psiquiatria
questionados tanto pela opinião pública quanto por
Preventiva, de Gerald Caplan, que pode ser considerado
psiquiatras da Associação Norte-Americana de Psiquia-
o seu criador. A concepção de doença mental para a Psi-
tria. Diante desse quadro, em 1963, John Kennedy
quiatria Preventiva residia na postulação de que as várias
realizou um discurso intitulado Mensagem sobre a
formas de doença mental, nas diferentes populações,
doença e o retardo mentais , no Congresso Nacional
eram resultado de fatores contrastantes, fatores positivos,
Norte-Americano, para lançar seu programa de Saúde
denominados subsídios e fatores negativos, denominados
Mental, que chegou a ser considerado uma revolução
práticas de risco. O trabalho da Psiquiatria Preventiva seria
na psiquiatria norte-americana. Depois da mensagem,
identificar tais fatores negativos e tentar corrigi-los de
foi apresentado ao Congresso Nacional, o projeto cujo
maneira positiva, para que eles não viessem a desencadear
título era Community Mental Health Centers Act of
uma doença mental. A teoria da crise, desenvolvida em
1963, que estabelecia a criação de serviços que visassem
1944 por Lindemann, tornou-se a base da Psiquiatria
a prevenção e/ou o diagnóstico das doenças mentais e
Preventiva. Caplan também se valeu das noções de crises
que o atendimento a esses pacientes seria realizado ao
evolutivas e acidentais do psicanalista norte-americano
nível comunitário.
Erik Erikson. O projeto apresentado por Kennedy previa
2
As propostas dos centros de Saúde Mental norte-
a criação de 2.000 centros, mas foram criados somente
americanos a serem estabelecidos, a cada 75 a 200 mil
600. Além disso, na ausência de um sistema nacional de
habitantes, eram de oferecer à comunidade serviços
saúde e o estado crônico de alguns pacientes – e a pouca
essenciais tais como atendimento de emergência e
importância que se deu ao fator da causalidade social tão
hospitalização no período de 24 horas, todos os dias da
enfatizada na Mensagem do Presidente, em 1963 – aca-
semana. Como todo projeto de Reforma Psiquiátrica,
bou por restringir os efeitos originalmente desejados ao
os centros de Saúde Mental tinham como princípios:
funcionamento dos centros de Saúde Mental.
2
Special Message to the Congress on Mental Illness and Mental Retardation.
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A SAÚDE MENTAL COMO CAMPO DE LUTA
[...excluem] toda e qualquer hipótese etiopatogênica,
E DEBATE: OS MANUAIS E A PSICANÁLISE
como também [fazem desaparecer] o próprio conceito de doença” (Quinet, 2006, p. 12).
Logo após as iniciativas de Kennedy, um movimen-
Por que não considerar a criação dos manuais de
to de psiquiatras, surgido da Psiquiatria universitária
diagnósticos ateóricos como uma Reforma Psiquiátrica?
de orientação bioquímica, iniciou uma campanha de
Porque a Reforma Psiquiátrica não é somente movi-
retorno da Psiquiatria aos pressupostos médicos e cien-
mentos que contestam o saber psiquiátrico e visam a
tíficos do século 19, movido pelas pesquisas de cunho
substituição do modelo asilar de reclusão, mas é também
psicobiológico e psicofarmacológico, principalmente
aqueles movimentos que tentam salvar a Psiquiatria, seja
os trabalhos publicados em 1962 por Donald Klein
com propostas de trabalho diferentes das anteriores, seja
sobre a eficácia da imipramina. Esse movimento ficou
instrumentalizando-a com as descobertas do saber médi-
conhecido como a Escola de Saint Louis, que, na dé-
co-científico ou tentando eliminar a confusão conceitual
cada de 1970, deu partida à eliminação, por meio da
entre as diversas disciplinas psiquiátricas. Levantou-se
eficácia do medicamento, da diferença existente entre
a hipótese de que a proposta do DMS de ser ‘ateórico’,
psicose e neurose, iniciando a depreciação das entidades
além de ser um projeto empírico-pragmático, também
clínicas presentes na Psiquiatria clássica e mantidas pela
deve ser examinada como uma proposta de Reforma
Psicanálise, com Lacan, que, na França, conceituou-as
Psiquiátrica. Segundo Pereira, a orientação ‘ateórica’ é
como estruturas clínicas. No lugar da descrição e con-
uma tentativa de não estar “submetido aos pressupostos
ceituação das entidades clínicas como psicose, neurose e
de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes
perversão, preferiu-se uma lógica do conceito descritivo,
no campo da psicopatologia” (1998, p. 4). Tal tentativa
apoiada na noção de transtorno (disorder). As condições
é centrada de maneira enfática no empirismo dos fatos
para estabelecer o DSM-III e suas posteriores edições
clínicos, ou seja, tão somente nos fenômenos clínicos,
estavam dadas:
identificados e sustentados pela chamada Medicina Baseada em Evidências (MBE).
O Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui o resultado melhor acabado das propostas empíricooperacionais da chamada Escola de Saint-Louis, liderada por Feighner, Robins e Guze na década de 70. A criação de um sistema operacional de diagnóstico para pesquisa como o RDC (Research Diagnostic Criteria) e, posteriormente, do DSM-III derivam diretamente das proposições daquele grupo. (Pereira, 1998, p. 4).
A confecção do DSM também se serviu da dimensão sanistarista que sempre esteve subsidiada pela epidemiologia e pela Medicina Social, encontrando, assim, um lugar dentro das políticas de saúde pública. Tendo em vista que o estado considera necessária a intervenção da Medicina no social, no cotidiano, principalmente quando a clínica passa a ser regida por parâmetros normatizados, o DSM acabou sendo bem recebido por se fazer um instrumento para o estado. A
Os manuais que se seguiram pretenderam ser cada
marca dos últimos 30 anos é a busca de um ideal de
vez mais desvinculados do saber psiquiátrico, a ponto
eficácia que a consolidação do DSM visa em garantir
de, atualmente, a própria prática da Psiquiatria neles
a normatização dos usuários, apagando as diferenças
sustentada ser de interesse cada vez menor para os
subjetivas que cada paciente pode ter se lhe é dada a
estudantes de Medicina: “deliberadamente ateóricos
oportunidade de comparecer com sua singularidade.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008
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Não é sem razão que muitos governos, inclusive no
desses médicos era ‘limpar’ a cidade do Rio de Janeiro
Brasil, adotaram como modelo de tratamento, em
do risco de infecção gerada pela falta de saneamento e
muitos hospitais e ambulatórios, as prescrições dadas
planejamento urbanos e da massa de desempregados e
pelos Manuais de Diagnósticos, como a classificação
indigentes que habitavam as ruas (Resende, 1987). Por
diagnóstica e o uso de medicação correspondente; as
meio de Juliano Moreira, criaram-se os hospitais colônia,
fichas de prontuários são a prova disso, tendo em vista
promovendo o uso do trabalho agrícola como instru-
que exigem a sigla do transtorno que se supõem ser os
mento de tratamento global dos doentes mentais. Como
mais adequados ao paciente.
tal projeto não vingou, os hospitais agrícolas acabaram
Numa vertente oposta à eficácia normatizada, à biologização e à medicalização do sofrimento huma-
aderindo a sua verdadeira função, isto é, a exclusão dos doentes mentais em locais geograficamente distantes.
no está a Psicanálise. O rompimento da ortodoxia
A massa presente nos hospitais psiquiátricos, nas
psicanalítica se deu, em parte, mediante o ensino de
colônias e as condições dessas instituições não sofreram
Lacan, na França, que possibilitou o reconhecimento
grandes modificações na era Vargas, no Estado Novo.
da Psicanálise por teóricos do campo da Saúde Mental
Pelo contrário, houve apenas reforma e ampliação das
como um saber que tem contribuições importantes
instalações já existentes e a criação em larga escala de
à Saúde Mental (cf. Figueiredo, 1997). Mas o uso
outros hospitais estaduais, financiados pelo Governo
da Psicanálise nessas iniciativas não deixou de causar
Federal, que obedeciam ao modelo de colônia agrícola.
questões em Lacan, que, em vários momentos de seu
O modelo manicomial sempre foi a mola mestra das
ensino, advertiu seus alunos sobre a extraterritorialida-
Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil. Com o go-
de da Psicanálise em relação à Medicina, aos psicólogos
verno militar na década de 1960, o que se testemunhou
e “outros distintos assistentes terapêuticos” (Lacan,
foi a criação de clínicas e hospitais privados subsidiados
1966[2001], p. 32).
pelo estado, movidos pelos favorecimentos políticos e o enriquecimento de seus proprietários, às custas das diárias pagas pelo estado por cada paciente internado. Em contraposição, durante os anos 1970, o mo-
A CONJUNTURA QUE LEVOU À ATUAL
vimento que resultou nas ‘Comunidades Terapêuticas’
REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
instaladas em alguns hospitais psiquiátricos, passou a apostar na possibilidade de efetivamente sustentar
Em 1852 foi o surgimento da instituição psiquiá-
um trabalho terapêutico em função das propostas que
trica brasileira. O hospital Dom Pedro II, inaugurado
vinham das reformas realizadas em outros países e dos
pelo próprio imperador, destinado aos doentes de todo
investimentos pessoais de alguns psiquiatras. Delgado
o território nacional, tinha uma capacidade para so-
(1998) circunscreve três eventos políticos que desenca-
mente 350 doentes e, no momento de sua abertura, já
dearam o início da contestação e aquilo que se deno-
contava com 144 internos. Uma característica peculiar
minou Reforma Psiquiátrica brasileira: 1. Congresso
da Psiquiatria brasileira foi sua associação à Medicina
Brasileiro de Psiquiatria, entre agosto e setembro de
Higienicista. No governo de Rodrigues Alves (1902-
1977, em Camboriú, Santa Catarina; 2. I Congresso
1906), dois nomes se destacaram na então ciência
Brasileiro de Trabalhadores de Saúde Mental, em São
brasileira: Oswaldo Cruz e Juliano Moreira. A missão
Paulo, em janeiro de 1979; 3. III Congresso Mineiro de
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Psiquiatria, em novembro de 1979, com a presença de Franco Basaglia, que teve uma influência marcante no movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil. A partir do projeto de lei, conhecido como projeto Paulo Delgado, apresentado à Câmara Federal, em 1989, iniciou-se, em nível nacional, um movimento crescente de reformulação das Políticas Públicas de Saúde Mental, que abriu as portas dos hospitais psiquiátricos tanto para a entrada de pesquisadores e técnicos de diversas áreas quanto para a saída de pacientes que, muitas ve-
elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. (Amarante, 1995, p. 91, grifo nosso). No Brasil, associa tal processo à redemocratização do país e à crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação políticosocial que caracteriza essa mesma conjuntura de redemocrtatização. (Amarante, 1995, p. 91)
zes, encontravam-se internados há décadas. Uma das
Três anos depois, Delgado (1998) chamava a aten-
grandes contribuições da primeira versão do projeto de
ção para certa imprecisão do termo Reforma Psiquiátri-
lei foi possibilitar o debate sobre a Lei Federal de Saúde
ca, do qual seria feito uso para designar as modificações
Mental, tendo em vista que a referida lei datava de 1934,
do modelo da assistência pública no serviço psiquiátrico
baseando-se, mormente, na exclusão dos pacientes do
brasileiro, no qual se deu início um diálogo entre a Psi-
convívio social.
quiatria e outras áreas do campo da Saúde Mental:
o conceito de reforma psiquiátrica no Brasil A partir de 1995 Nos textos estudados, deparou-se, algumas vezes, com uma referência à Reforma Psiquiátrica como um conceito (cf. Delgado, 1998; Amarante, 1995). Sua
Reforma psiquiátrica é uma expressão algo imprecisa. Nela temos insistido como recurso de designação para o conjunto de modificações recentes que vêm sendo produzidas ou tentadas, a partir do final da década de 70, interessando ao modelo assistencial psiquiátrico público, sua sustentação teórica e técnica, e as relações discursivas que se vêm estabelecendo entre a Psiquiatria, as demais disciplinas de saúde e do campo social, e as instituições e movimentos sociais. (1998, p. 42, grifo nosso).
formulação como conceito depende de cada autor que o propõe e seu uso é tributário das afinidades intelectuais
Ainda três anos depois, Amarante (2001) apre-
e/ou políticas daquele que escolhe utilizá-lo. É interes-
senta uma outra definição, o que permite depreender
sante acompanhar o desenvolvimento desse conceito
um avanço no próprio uso do termo. O autor mantém
ao longo dos últimos anos e é por isso que se retomam aqui algumas de suas incidências. Em 1995, Amarante identificava a Reforma Psiquiátrica com um importante questionamento e conseqüente elaboração de propostas contrárias ao modelo asilar. Propunha a Reforma Psiquiátrica como um: processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a
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o termo ‘processo’, mas ele deixa de ser histórico e passa a ser ‘social’ e ‘complexo’, tendo uma dimensão epistemológica, técnico-assitencial, jurídico-política e cultural, pois haveria várias dimensões nesse movimento: “sendo um processo, é antes de tudo permanente, não tem fim predeterminado e articula várias dimensões simultâneas e inter-relacionadas” (Amarante, 2001, p. 104).
COUTO, R.; ALBERTI, S. • Breve história da Reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
Nesse momento, lê-se uma primeira tentativa de,
O que fica notório, tanto na idéia central da lei
efetivamente, definir o termo Reforma Psiquiátrica, não
10.216 quanto nas propostas dos dispositivos criados
como um termo cujas incidências históricas podem ser
a partir dela, é a centralização da cidadania e o resgate
buscadas em vários contextos, mas que passou à referên-
da contratualidade social, de modo que não há dúvida
cia do que acontecia no Brasil, no final do século 20, ou
quanto à importância que a lei sustenta no cuidado e
seja, a desinstitucionalização – que estabelece outro mo-
na atenção, ambos em primeiro plano, revertendo um
delo de tratamento, diferente do modelo de isolamento
quadro calamitoso do contexto da institucionalização.
terapêutico – e a mudança – que redefine o conceito de doença mental. O autor defende que debater o conceito de doença é suficiente para transformar as relações das pessoas envolvidas com a questão da Saúde Mental, além
CONSIDERAÇÕES FINAIS
de viabilizar a modificação dos serviços, dos dispositivos e dos espaços na maneira de ver o usuário.
Nos últimos anos, no entanto, multiplicaram-se os
Esse novo paradigma já traz consigo também
estudos sobre a necessidade de investimento na clínica
o debate da dimensão jurídico-política dos direitos
da Reforma Psiquiátrica, sintagma retomado no título
dos doentes à cidadania, pois exige que se rediscuta e
do livro de Fernando Tenório (2001). Apesar de serem
redefina “as relações sociais e civis em termos de cida-
criados locais de tratamento que têm como objetivo
dania, direitos humanos e sociais” (Amarante, 2001,
sustentar a clínica da Reforma Psiquiátrica, observa-se,
p. 105). Promover o resgate dos direitos de cidadãos
por um lado, que a cidadania e o cuidado são tomados
dos usuários, quase que perdido devido às internações
como referência do tratamento dos usuários, mas, por
forçadas no passado, tornou-se a principal reivindi-
outro, promove-se uma preocupação maior com a es-
cação da Reforma Psiquiátrica, pois o movimento
pecificidade de uma clínica que caminhe paralelamente
entende cidadania como a tentativa de garantir, por
à atenção psicossocial.
meio de meios legais e oficiais, e da apresentação de
Neste âmbito, percebe-se, nos últimos anos, que
projetos e aprovação de leis, os direitos civis e sociais
sem um trabalho clínico que leve em conta o sofrimento
dos portadores de sofrimento psíquico. Além disso, é
psíquico, o próprio resgate da cidadania e da autono-
necessária a implantação de serviços e/ou modificações
mia pode ficar comprometido. Assim, surge uma nova
dos serviços já existentes para que a cidadania possa
tensão: entre clínica e atenção psicossocial, no campo
ser uma conquista diária.
da Saúde Mental. Algumas propostas por uma solução
Com a lei 10.216, por exemplo, a internação passou
sugerem ser preciso sustentar um enfoque multidiscipli-
a ser voluntária ou involuntária; neste caso é obrigatório
nar: “o campo da saúde mental é [...] multidisciplinar,
informá-la, via formulário, ao Ministério Público Esta-
heterogêneo e plural, onde diversos saberes e práticas se
dual, justificando os motivos da decisão. Em sete anos,
entrecruzam” (Rinaldi, 2006, p. 142).
a lei 10.216 promoveu grandes mudanças – os Caps, as
Essa orientação visa o enlaçamento de vários sabe-
residências terapêuticas, o trabalho articulado em rede
res. Mas, seria possível sustentar a clínica propriamente
–, principalmente nos grandes centros. Nas áreas mais
dita sem uma orientação clínico-teórica que tenha con-
afastadas deles, ainda há muita resistência e, freqüente-
sistência para enfrentar os problemas diários de nossa
mente, as coisas avançam muito lentamente.
prática? (Barbosa, 2004) Desde o início da história
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da psiquiatria moderna, com Pinel e Esquirol, não há clínica sem orientação definida (Bercherie, 1989). Por razões que transcendem este artigo e que precisariam ser aprofundadas no futuro, é o campo psicanalítico que mais se ocupa com essa busca na atualidade, o que não deixa de levantar novos questionamentos. Por ora, nota-se que a reação que alguns setores da Reforma Psiquiátrica atual dirigem contra o trabalho de psicanalistas que se instrumentalizam do movimento da reforma e, ao mesmo tempo, procuram instrumentalizá-lo com as contribuições de sua própria formação, relaciona-se com o que já se observou, na década de 1970, nos Estados Unidos, quando da publicação dos manuais como o DSM. Revisitar a história para verificar possíveis incidências anteriores de questões atuais transcende a função da história como registro e permite estudar as determinações – nem sempre conhecidas – de movimentos e resistências com as quais se tem que lidar atualmente.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature
Tatiana Ramminger
1
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Psicóloga; mestre em Psicologia
Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO Neste artigo apresentamos uma revisão dos estudos brasileiros sobre a saúde do trabalhador de Saúde Mental, considerando o processo de implantação
(UFRGS); doutoranda em Saúde
da Reforma Psiquiátrica no país. A bibliografia disponível é recente, datando
Pública pela Escola Nacional de Saúde
de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990 havia um predomínio
Pública da Fundação Oswaldo Cruz
de estudos em torno do conceito de estresse, com profissionais da enfermagem e
(ENSP/Fiocruz).
de hospitais psiquiátricos. Atualmente, sobretudo a partir de 2006, os estudos
[email protected]
não apenas apresentaram um crescimento significativo, como se tornaram mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando, os trabalhadores de Saúde Mental dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). PALAVRAS-CHAVE: Serviços de Saúde Mental; Saúde do trabalhador; Literatura de revisão.
ABSTRACT This paper presents a literature review under the theme “health of Mental Health workers” as considered the introduction of the Psychiatric Reform in Brazil. The available bibliography is recent, with less than a decade. In the end of the 1990’s, studies on the concept of stress carried out with professionals of nursing and in psychiatry hospitals were predominant. Nowadays, mainly since 2006, the studies not only increased significantly, but also became more complex and acquired quality, favouring the workers of Mental Health of the Psychosocial Care Centers (Caps). KEYWORDS: Mental Health services; Workers Health; Review literature.
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RAMMINGER, T. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
I N T R O D U ç ão
concepção de ‘loucura’ e nas formas de tratamento dos usuários (Passos, 2003). Farta bibliografia preocupa-se em (re)discutir a função dos diferentes profissionais nas equipes dos novos serviços de Saúde Mental como, por exemplo,
Neste artigo, procurou-se questionar a formar
a atuação do terapeuta ocupacional (Mangia, 2000;
como o campo Saúde do Trabalhador dialoga com
Ribeiro; Oliveira, 2005), do psicólogo (Bandeira,
a saúde dos trabalhadores de Saúde Mental. Res-
1992; Figueiredo; Rodrigues, 2004), do assistente
saltamos que esse não é um tema muito pesquisado
social (Vasconcelos, 2000), do psicanalista (Figueire-
nem na área de Saúde Mental, que tem priorizado
do,
as discussões em torno das mudanças no cuidado ao
2004) e, sobretudo, dos enfermeiros (Dalmolin, 1998;
portador dos transtornos mentais e no entendimento
Bertoncello; Franco, 2001; Kirschbaum; Paula,
da loucura, nem no campo da Saúde do Trabalha-
2001; Casanova, 2002; Lima; Amorim, 2003; Oliveira;
dor, que acumula estudos em organizações privadas
Alessi, 2003; Silveira, 2003; Silveira; Alves, 2003;
e industriais. Tentando potencializar esse diálogo
Silva; FonsecA, 2005), técnicos e auxiliares de Enfer-
necessário, nosso esforço aqui será reunir e discutir
magem (Maranhão, 2004; Zerbetto; Pereira, 2005).
a produção científica brasileira a respeito da relação
Destaca-se, ainda, a tendência a repetir padrões comuns
entre saúde/adoecimento e trabalho na área da Saúde
ao hospital psiquiátrico, mesmo com severas críticas a
Mental, sobretudo a partir do processo de implantação
esse modelo (Brêda; AugustO, 2001; Campos; Soares,
da Reforma Psiquiátrica no país.
2003; Oliveira; Alessi, 2005A, 2005B; Bichaff, 2006;
Para tanto, foram utilizados os bancos de dados de
2001), do acompanhante terapêutico (Palombini,
Antunes; Queiroz, 2007; Leao; Barros, 2008).
teses e dissertações1 das universidades que disponibilizam
Por outro lado, a bibliografia existente sobre a rela-
este recurso, bem como a base de dados da Biblioteca
ção entre saúde e trabalho em Saúde Mental é recente,
Virtual em Saúde (Bireme, www.bireme.br), que inclui
datando de pouco menos de uma década. Recordemos
Lilacs, Medline, Cochrane e SciELO, com pesquisa feita a
que os estudos sobre a relação entre saúde/adoecimento
partir dos seguintes descritores: Saúde do Trabalhador;
e trabalho, tendem a estar ligados ao que é visível, ou
Saúde Mental; reforma psiquiátrica; trabalhador de Saú-
seja, ao que pode ser medido, examinado ou medicado,
de Mental; trabalhador psiquiátrico; hospital psiquiátri-
estabelecendo-se objetivamente um nexo entre determi-
co. A última consulta foi feita em abril de 2008, sendo
nada situação de trabalho e respectivas conseqüências
que também recorremos, eventualmente, a resumos de
para a saúde do trabalhador (como no caso de uma
congressos científicos e capítulos de livros.
perda auditiva por exposição ao ruído, por exemplo).
Em consulta à literatura que aborda o trabalho na
Dificilmente considera-se, portanto, a mobilização
área da Saúde Mental, principalmente aos textos publi-
cognitiva e afetiva do trabalhador, ambas característi-
cados a partir do processo de implantação da Reforma
cas importantes do trabalho em saúde, especialmente
Psiquiátrica no país, percebemos que os estudos privile-
do trabalho em Saúde Mental. Sendo assim, quase a
giam as mudanças recentes nesse campo, sobretudo na
totalidade dos textos tem caráter qualitativo e poderiam
1
Quando parte das conclusões das dissertações ou teses possuíam publicação em periódicos científicos, privilegiou-se o artigo publicado.
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ser reconhecidos como parte do campo de estudos deno-
apontada como recorrente entre os profissionais da
minado ‘Saúde Mental e Trabalho’. Como este campo
educação, da saúde e da segurança, sobrecarregados em
não é homogêneo, ou seja, não há consenso sobre quais
suas formas de prover cuidado (Codo, 1999). Segundo
seriam suas principais correntes teóricas (Fernandes;
Codo, as principais características dessa síndrome são
Melo; Gusmão et al., 2006; Jacques, 2003), fizemos
a exaustão emocional, a despersonalização da atenção
nossa própria divisão em três blocos, conforme os temas
e a falta de compromisso com o trabalho. As pesquisas
privilegiados em cada estudo.
acerca dos trabalhadores de Saúde Mental que seguem esse referencial apontam um alto índice de esgotamento emocional e estresse crônico entre eles, diretamente proporcional ao tempo e à intensidade do cuidado direto
ESTRESSE, CARGA E SOBRECARGA NO
ao paciente (Fensterseifer, 1999; Rego, 2000; Rosa,
TRABALHO EM SAÚDE MENTAL
2001; Costa; Lima, 2002; Ramminger, 2002; Vianey; Brasileiro, 2003).
Estabelecer a relação entre doença/Saúde Mental e
Por outro lado, Carvalho e Felli (2006), buscaram
trabalho não é tarefa fácil. O processo de adoecimento
analisar o processo saúde-doença vivenciado pela equipe
psíquico é sempre singular e envolve várias dimensões
de enfermagem de um hospital psiquiátrico a partir dos
da vida do sujeito, o que pode dificultar pesquisas quan-
conceitos de carga de trabalho e desgaste, chegando
titativas. Talvez seja essa a explicação para o reduzido
à conclusão que esses trabalhadores apresentam um
número de estudos epidemiológicos encontrados, ainda
intenso desgaste mental muito mais pelas condições de
que sejam fundamentais para nos dar a dimensão deste
trabalho do que pelo convívio com os pacientes. As
‘invisível’ que pode se tornar mais palpável na medida
cargas de trabalho (físicas, químicas, biológicas, fisio-
em que começa a ser reconhecido estatisticamente
lógicas e psíquicas), segundo Laurell e Noriega (1989),
(Tittoni, 1997).
são elementos do processo de trabalho que interagem
Aliás, foi o peso das estatísticas, somado ao esforço
dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador
dos pesquisadores e dos movimentos sociais, que possi-
gerando processos de adaptação e que resultam em
bilitou o reconhecimento legal da relação entre Saúde
desgaste, entendido como uma perda da capacidade
Mental e trabalho no Brasil a partir de 1999, através
potencial e/ou efetiva corporal e psíquica.
do Decreto 3.048 do Ministério da Previdência e As-
Nessa direção, Bandeira, Pitta e Mercier (2000)
sistência Social que discrimina os Transtornos Mentais
validaram, no Brasil, escalas internacionais de avaliação
Relacionados ao Trabalho. Dentre esses transtornos, há
de satisfação (SATIS-BR) e sobrecarga (IMPACTO-BR)
a síndrome do esgotamento profissional, ou burnout,
das equipes técnicas de serviços de Saúde Mental. Tais
descrita pelas teorias do estresse.
escalas passaram a ser utilizadas em pesquisas de ava-
As teorias do estresse, embora tenham como re-
liação, fornecendo importantes subsídios para estudos
ferencial básico a Fisiologia, originaram modelos mais
epidemiológicos. Além disso, os estudos de satisfação
complexos, com a inclusão da perspectiva social e da
vêm crescendo em importância na avaliação da quali-
subjetividade (Seligmann-Silva, 2003). A síndrome
dade dos serviços de Saúde Mental por considerarem
de burnout, mesmo que de início não estivesse ligada
a percepção dos diferentes segmentos envolvidos na
exclusivamente às situações de trabalho, hoje tem sido
atenção (usuários, familiares e trabalhadores), assim
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como a “escala de sobrecarga constitui um preditor
os níveis mais baixos de satisfação e mais elevados de
do estresse apresentado pelos trabalhadores de Saúde
sobrecarga entre os trabalhadores com indicativo de
Mental” (Bandeira; Ishara; Zuardi, 2007, p. 280). No
estresse (Bandeira; Ishara; Zuardi, 2007). As demais
entanto, Reboucas, Abelha, Legay et al. (2008, p. 625)
pesquisas confirmam que quanto maior o grau de so-
ressaltam que, embora os estudos brasileiros sejam rea-
brecarga dos profissionais, menor o seu nível de satis-
lizados com todos estes segmentos, “a pesquisa dirigida
fação no trabalho, assim como a relação inversa entre o
à equipe técnica tem despertado menos interesse do que
nível de escolaridade e satisfação. Em duas pesquisas, a
as que avaliam usuários e familiares”.
satisfação no trabalho esteve relacionada à atuação em
Percebemos que de sua validação (ano 2000) até a
projetos novos e de status diferenciado, à maior idade
publicação das primeiras pesquisas feitas a partir dessas
e ao contrato de trabalho precário. As pesquisadoras
escalas em relação ao trabalho em Saúde Mental, passa-
atribuem tal resultado ao fato de que, provavelmente,
ram-se sete anos. Tivemos acesso a quatro estudos, sendo
os profissionais mais jovens têm menos recursos para
um de validação do construto das escalas, realizado em
lidar com os problemas inerentes ao desempenho das
um município de São Paulo (Bandeira, Ishara; Zuardi,
atividades e quando possuem escolaridade mais elevada,
2007), dois realizados em instituições do município do
maiores expectativas em relação ao trabalho. (Reboucas;
Rio de Janeiro (Reboucas; Legay; Abelha, 2007; Rebou-
Legay; Abelha, 2007; Godoy; Rigotto; Maciel et al.,
cas;
Abelha; Legay et al., 2008) e um que apresenta os
2007). Em relação ao impacto do trabalho, os resultados
resultados preliminares da aplicação do instrumento em
foram diferentes. Enquanto os resultados encontrados
toda rede de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do
no Rio de Janeiro (Reboucas; Legay; Abelha, 2007;
Ceará (Godoy; Rigotto; Maciel et al., 2007). Nesses
Reboucas; Abelha; Legay et al., 2008) não remetem
estudos, a satisfação é considerada um estado emocio-
à associação significativa com a escolaridade, Godoy,
nal que envolve a interação das características pessoais,
Rigotto, Maciel et al. (2007) apontam a relação direta
valores e expectativas dos profissionais em relação ao
entre a baixa escolaridade e o impacto menor do trabalho
ambiente e organização do trabalho. Já o impacto diz
na vida dos profissionais.
respeito às repercussões do trabalho sobre a saúde e o sentimento de bem-estar do trabalhador (Reboucas; Legay; Abelha, 2007). Todas as pesquisas apontam para a predominância significativa das mulheres no trabalho em Saúde Men-
SOFRIMENTO E PRAZER NO TRABALHO EM SAÚDE MENTAL
tal, culminando no caso do Ceará, onde 72,8% dos trabalhadores dos Caps são mulheres (Godoy; Rigotto;
Passemos agora aos estudos que consideram a re-
Maciel et al., 2007). A pesquisa de Reboucas, Legay e
lação entre prazer e sofrimento no trabalho em Saúde
Abelha (2007) destaca que esse segmento concentrou
Mental. A pesquisa de Lanzarin (2003), ancorada na
o menor nível de satisfação com o trabalho e o maior
Psicodinâmica do trabalho, procurou analisar as rela-
impacto sobre a saúde, interpretado pelas autoras como
ções entre trabalho, prazer e sofrimento das auxiliares
conseqüência da ‘dupla jornada’ feminina. No estudo de
de enfermagem de um hospital psiquiátrico. À Luz
validação de construto foi constatada a relação negativa
da Psicanálise, Dejours (1988) entende que, frente às
entre os escores de satisfação e sobrecarga, bem como
vivências de sofrimento, os trabalhadores desenvolvem,
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coletivamente, estratégias defensivas que podem ser
Considerando o referencial da Psicologia Institucio-
muito úteis, pois permitem que as pessoas continuem
nal e da Psicanálise de grupos, Koda e Fernandes (2007)
trabalhando, sobrevivendo à angústia. No entanto:
analisam os conflitos e contradições que se instauram a partir da implantação de um serviço substitutivo à
[...] as estratégias defensivas podem atenuar o sofrimento, mas, por outro lado, se funcionarem muito bem e as pessoas deixarem de sentir o sofrimento, pode-se prever a alienação. (Dejours, 1999).
internação psiquiátrica que exige um contato mais próximo com o paciente e um trabalho mais articulado com profissionais de outras áreas e instituições. Segundo as autoras, isso leva a um “desenraizamento” do trabalha-
Lanzarin (2003) percebeu grande envolvimento
dor, que vê sua identidade profissional posta em questão.
emocional entre as auxiliares de enfermagem e a clien-
Os códigos anteriores, ainda que fossem avaliados como
tela atendida. Segundo a pesquisadora, se por um lado
inadequados, asseguravam um modelo de práticas e re-
essa intensificação do laço afetivo constitui-se fonte de
presentações comuns em relação ao lugar do trabalhador,
gratificação para as auxiliares, e funciona como uma es-
à relação profissional/usuário, à concepção da loucura,
tratégia defensiva frente ao medo e à angústia, por outro
entre outras. A transformação desses códigos leva a um
lado contribui para a exploração do trabalho. Mulheres
momento de fragilidade, muitas vezes vivenciado como
em sua maioria, as auxiliares acabam tomando para si
ameaça contra o sujeito e o grupo ao qual pertence.
algumas responsabilidades que não estão relacionadas
Corroborando esse entendimento, Rabelo e Torres
à função que desempenham. Ao mesmo tempo, esse
(2005) pretenderam avaliar a relação entre a adesão a
cuidado não é reconhecido como uma qualificação ou
determinado paradigma norteador de práticas em Saú-
competência da trabalhadora, mas como a expressão de
de Mental, e a saúde física e psicológica dos profissio-
um instinto maternal inato.
nais da área em Goiânia. As autoras consideraram dois
Ferrer (2007) e Silva (2007) nos apresentam
paradigmas: o biológico e o psicossocial. O primeiro
análises similares de estudos realizados com os pro-
está ligado ao discurso médico psiquiátrico, com ênfase
fissionais dos C aps de Campinas, interior de São
nas causas orgânicas do adoecimento; o segundo, ao
Paulo (Ferrer, 2007) e Goiânia, Goiás (Silva, 2007),
discurso da Reforma Psiquiátrica. Participaram da pes-
embora não utilizem apenas o referencial dejouriano,
quisa, trabalhadores de seis serviços de Saúde Mental
privilegiando as vivências de sofrimento dos traba-
‘substitutivos’ e seis clínicas psiquiátricas. Os resultados
lhadores. Ambas as análises citam como importantes
mostraram que os maiores níveis de bem-estar físico
componentes que contribuem para o sofrimento do
e psicológico não estiveram relacionados ao local de
trabalhador de Saúde Mental a baixa remuneração,
trabalho, mas à adesão ao paradigma biológico que,
os contratos diferenciados e, por vezes, precários de
segundo as autoras, por ser mais legitimado, oferece
trabalho, a má condição física e material dos estabe-
maior segurança ao profissional nesse momento de
lecimentos, a limitação das demais redes de suporte
transição no qual o modelo biológico não foi aban-
e promoção social, a carência de uma política de
donado, nem o modelo psicossocial definitivamente
cuidado aos trabalhadores da saúde e o próprio fato
implantado. No entanto, não podemos deixar de
de haver contato com a loucura. Por outro lado, as
questionar a validade da separação estanque entre esses
duas pesquisadoras também apontam a implicação e
dois paradigmas, bem como das escalas de bem-estar
o prazer desses trabalhadores com sua atividade.
físico e psicológico utilizadas.
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SUBJETIVIDADE, DISCURSOS, PRÁTICAS
discursivas, incluindo desde a crença de que cuidar é
E VIVÊNCIAS DOS TRABALHADORES DE
uma forma de caridade (discurso religioso), a afirma-
SAÚDE MENTAL
ção de que é a ciência que pode falar do tratamento da loucura (discurso científico), até o entendimento de que
Por fim, aqui destacamos os artigos que não tratam
o trabalho em Saúde Mental não pode ser reduzido a
diretamente da relação entre saúde e trabalho em Saúde
um domínio de técnicas, devendo incluir a implicação
Mental, mas que apresentam contribuições para o tema.
política e afetiva com a construção de outro modo de
Considerando a análise do discurso dos trabalhadores,
se relacionar com a loucura (discurso antimanicomial).
encontramos os trabalhos de Bernardes e Guareschi
Em segundo lugar, pela oscilação dos trabalhadores
(2004) e Garcia e Jorge (2006). O primeiro parte do
entre um papel desafiador e criativo, como agentes de
referencial foucaultiano para compreender as formas de
um dispositivo que se pretende inovador, e a constante
subjetivação, ou o modo como os profissionais consti-
desvalorização de sua função enquanto servidor público,
tuem a si mesmos e se reconhecem como trabalhadores
traduzida pela falta de investimentos e ações interseto-
de Saúde Mental. Já Garcia e Jorge (2006) procuram
riais que impõem limites à prática e responsabilizam o
destacar a vivência dos trabalhadores de um Caps à luz
trabalhador individual, excessiva e exclusivamente pela
do pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg
resolutividade dos serviços.
Gadamer. Embora sigam caminhos diferentes, os dois
Da mesma forma, o artigo de Silva (2005) sobre
estudos se valem da figura do ‘humano’ e da ‘humani-
os discursos e práticas em torno da responsabilidade
zação’ para retratar as transformações no cuidado em
no campo da Saúde Mental, aponta para o aumento da
Saúde Mental. A conclusão é que a Reforma Psiqui-
responsabilidade e autonomia do trabalhador de Saúde
átrica, ao reivindicar a humanização do atendimento
Mental em seu processo de trabalho. No entanto, a
em Saúde Mental, não pode deixar de lado o “humano
exigência do trabalhador apto a resolver problemas
que cuida” (Garcia; Jorge, 2006), já que os próprios
complexos não é acompanhada do aumento dos ne-
trabalhadores reconhecem que “a humanização deles
cessários recursos teóricos, financeiros ou emocionais,
[dos pacientes] será a nossa humanização” (Bernardes;
em uma clara tendência à precarizacão do trabalho,
Guareschi, 2004).
somada a expectativas cada vez maiores em relação ao
Em um estudo que privilegiou o ponto de vista dos
trabalhador. Além disso, a ‘tomada de responsabilidade’
trabalhadores de Saúde Mental sobre a relação entre a
– jargão do campo da saúde – não é apenas do serviço
saúde e suas atividades de trabalho (Ramminger, 2006;
(pelo território), mas também do trabalhador (por seu
Ramminger; Nardi, 2007), evidencia-se que a preca-
processo de trabalho), do usuário (por sua condição
riedade das políticas públicas de atenção à saúde do
subjetiva), da família e da comunidade de modo geral
servidor público reflete nos serviços de Saúde Mental. O
(responsabilização social dos atores), em um processo
acolhimento (ou não) das questões relacionadas à saúde
no qual distintas áreas – Saúde Pública, Análise Institu-
no trabalho depende do funcionamento e das diretrizes
cional e Psicanálise – unem-se em torno da convocação
particulares de cada serviço. A análise dos discursos e
à responsabilidade.
práticas possibilita o entendimento de que os trabalha-
Também os estudos que privilegiam as teorias
dores habitam um espaço de tensionamentos e confron-
sobre a representação social corroboram com a com-
tos. Primeiro, pela circulação de diferentes formações
preensão do trabalho em Saúde Mental como uma
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atividade complexa, com a circulação de distintos
A alegria é tomada como indicador da luta contra
discursos e um sobre-encargo do trabalhador, prin-
a tristeza e o sofrimento, sendo necessário um espaço de
cipalmente pelo desinvestimento no trabalho e nos
apoio, para além das supervisões institucionais e clínicas,
serviços públicos (Koda, 2002; Antunes; Queiroz,
que permita retomar a produção de vida, consumida
2007; Leao; Barros, 2008).
em meio ao fazer cotidiano. Essa imagem do consumo
Andrade (2007) propõe, inspirado em Nourodine
da vida pelo trabalho remete à exaustão ou combustão
(2004), considerar o risco no e do trabalho em Saúde
(burnout) do trabalhador e da equipe, pois um coletivo
Mental não apenas como negatividade ou algo que deva
que consome sua própria vida com o objetivo de cons-
ser combatido, mas como positividade e potencialidade,
truir novas possibilidades de vida para outros, se não
um “ato de criatividade necessário e jamais dominado
a produzir o tempo todo, exaure. Da mesma forma, o
para agir, produzir, inventar e realizar” (Andrade, 2007,
segundo analisador proposto por Merhy – o alívio –
p. 85). No entanto, a não ser pelo risco de reproduzir
aponta para a necessidade de alívio também daquele
os modelos manicomiais ou enclausurar-se nas próprias
que se ocupa do alívio dos outros.
defesas frente ao sofrimento do outro, o autor não se aprofunda em relação aos riscos da atividade do trabalhador de Saúde Mental. Merhy (2007), embora sem a pretensão de apresentar um estudo mais sistematizado, compartilha suas
Uma equipe de trabalhadores dos Caps que não possa usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria, de forma implicada, não tem muito a ofertar a não ser exaurir para gerar alívios nos outros, como o manicômio já fazia e faz. (Merhy, 2007, p. 65).
reflexões, a partir de sua experiência como supervisor de um Caps. Ele diz que buscar a produção de cuidados
Aliás, a precarizacão e a falta de condições de tra-
em saúde para além das práticas hegemônicas, é estar
balho em Saúde Mental, bem como o número sempre
no ‘olho do furacão’, sendo necessário construir um
insuficiente de trabalhadores, com excesso de encargos
campo de proteção para aqueles que têm que moldar
e responsabilidades, salientados nos estudos aqui apre-
suas caixas de ferramentas em ato. Descreve o trabalho
sentados, integram uma herança que acompanhou o
nos Caps como algo árduo, com intensa demanda de
hospital psiquiátrico desde a sua fundação e parece ter
múltiplos cuidados, o que faz o trabalhador experi-
se perpetuado nos novos serviços de Saúde Mental2.
mentar sentimentos intensos e antagônicos, cobrando
Esses últimos estudos, já apontam a relação intrín-
de si mesmo e da equipe uma disponibilidade e uma
seca entre a gestão do trabalho e o trabalho como gestão,
abertura difíceis de serem mantidas permanentemen-
ou seja, a indissociabilidade entre as formas de atenção
te, sobretudo para quem oferta seu trabalho vivo
e gestão. O abismo entre um e outro gera sofrimento
para vivificar a vida do outro. São sentimentos de
e adoecimento entre os trabalhadores (Santos-Filho;
tristeza, exaustão e impotência que caminham lado a
Barros, 2007). Jorge, Guimarães, Nogueira et al. (2007)
lado com a exigência de acolhimento e resolução de
trata especificamente da gestão de recursos humanos
problemas complexos de forma criativa e entusiasma-
em três Caps de Fortaleza (CE). Os autores afirmam
da. Assim, o autor propõe a alegria e o alívio como
que os serviços de Saúde Mental enfrentam os mesmos
dispositivos analisadores.
desafios do sistema de saúde geral como, por exemplo,
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A esse respeito, consultar os relatórios dos primeiros hospitais psiquiátricos citados nos trabalhos de Wadi (2002) e Machado et al. (1978).
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a precarização do trabalho em saúde, que pode ser
de loucura e cuidado. O trabalho em Saúde Mental é
definida como a flexibilização ou ausência de direitos
compreendido como uma atividade, ao mesmo tempo
trabalhistas e de proteção social, baixa qualificação
singular e coletiva, criativa e angustiante, gratificante e
profissional e condições de trabalho insatisfatórias. Na
desgastante e que, para além do corpo do trabalhador,
pesquisa, 60% dos trabalhadores manifestaram algum
deve contar com sua capacidade relacional. Os conceitos
desconforto em relação ao processo de trabalho; suas
mais utilizados nesses estudos, mesmo que por vezes mal
queixas compreenderam desde o volume de tarefas e a
definidos, são aqueles relacionados ao campo da Saúde
burocracia excessiva, até a falta de colaboração e apoio
Mental do Trabalhador, tais como: estresse, desgaste,
dos colegas e do próprio gestor. As condições de traba-
sobrecarga, impacto, sofrimento psíquico, modos de
lho relacionadas à estrutura física dos serviços, também
subjetivação e vivência subjetiva.
deixa muito a desejar. No entanto, mesmo com todas essas limitações, 80% dos trabalhadores declararam que seu nível de satisfação, por trabalhar no Caps, é bom ou excelente. Os autores concluem que há um descompasso entre as políticas de recursos humanos implantadas – como a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS e o Programa Nacional de Despreca-
R E F E R Ê N C I A S
rização do Trabalho no SUS – e sua operacionalização no nível local.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando a bibliografia brasileira disponível sobre a relação entre saúde e trabalho na área da Saúde Mental, percebemos que trata-se de um tema recente, que data de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990, predominaram os estudos em torno do conceito de estresse em profissionais da enfermagem e trabalhadores de hospitais psiquiátricos. Atualmente, os estudos não apenas cresceram significativamente, como se tornaram mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando os trabalhadores de Saúde Mental dos Caps. A bibliografia tende a destacar os desafios colocados aos trabalhadores pela proposta “cuidar sem segregar” que exige a redefinição de seu papel como profissional, sua relação com a equipe e os usuários, bem como sua concepção
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
Ricardo Aquino 1 Thiago Ferreira de Aquino Rita Aquino 3
1
Diretor; curador do Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea. [email protected] 2
Músico; mestrando do Programa
de Pós-graduação em Música na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio); professor da Escola Livre de
2
RESUMO É apresentado o modo de funcionamento, princípio ético e os fundamentos da Escola Livre de Artes Visuais, um setor do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea que oferece experiência com a criação artística. O museu define-se pela criação e é constituído como ‘instituição inventada’ na luta da cultura contra a psiquiatria disciplinar. PALAVRAS-CHAVE: Arte; Criação; Museu; Psiquiatria; Terapia artística.
Artes Visuais (Elavi). [email protected] 3
Dançarina; mestre em Dança pela
ABSTRACT One presents the modus operandi, ethical principles and foundations of Escola Livre de Artes Visuais (Elavi). Elavi is a section of Museu Bispo do
Universidade Federal da Bahia (UFBA);
Rosário Arte Contemporânea which offers experience with artistic creation. The
professora da Elavi em 2005-2006.
museum is defined by the creation and stands as an ‘invented institution’ in the
[email protected]
fight of culture against disciplinary psychiatry. KEYWORDS: Art; Creation; Museum; Psychiatry; Art therapy.
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AQUINO R.; AQUINO T.F.; AQUINO R. • A Escola Livre de Artes Visuais do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
I N T R O D U ç ão
a criação artística como uma estratégia de combate à ciência psiquiátrica e aos seus efeitos. Benedetto Saraceno recomenda que:
Neste trabalho é apresentada a Escola Livre de Artes Visuais (Elavi) do Museu Bispo do Rosário
Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessitamos de esquizofrênicos cidadãos, não necessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a cidadania. (Saraceno, 1996, p. 16).
Arte Contemporânea inaugurada em 18 de maio de 2005. A Elavi é o segmento do museu que oferece
De fato, a Elavi enquanto setor do Museu Bispo
a possibilidade de experimentação artística, seu pe-
do Rosário Arte Contemporânea, que oferece experi-
ríodo de funcionamento é de segunda a sexta-feira,
ências com a arte, se coloca no campo da mudança e
matutino e vespertino, nas dependências do museu
do novo, contra o paradigma psiquiátrico clássico e o
localizado no perímetro do Instituto Municipal de
seu positivismo cientificista. O museu coloca em ação
Assistência à Saúde Juliano Moreira, na cidade do
as palavras de Friedrich Nietzsche, as quais sintetizam
Rio de Janeiro, e é aberta a usuários dos serviços de
sua inserção no debate das questões sustentadas pela
saúde mental, técnicos e comunidade. A característica
Reforma Psiquiátrica:
essencial da Elavi decorre do fato de ser um dispositivo sem medicamentos que oferece a possibilidade de experimentar a arte fora do circuito de tratamento, de oficina de terapia ocupacional, da arteterapia, ou
A história e as ciências naturais foram úteis para vencer a Idade Média: o saber contra a crença. Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida! (Nietzsche, 1987, p. 11).
outros. Trata-se de um espaço catalisado por artistas, sem a presença de qualquer profissional relacionado à Saúde Mental. O nome escolhido para a escola tem por referência o trabalho do psiquiatra e psicanalista Osório César
O funcionamento por três anos motivou esta apresentação em que são contemplados os fundamentos e, justificado o recurso da arte contra a psiquiatria.
desenvolvido na Colônia do Juqueri entre 1949 e 1971. O psicanalista denominava de Escola Livre de Artes Plásticas. A escolha da denominação Escola Livre de Artes Visuais foi dada em conformidade com a amplia-
MUSEU E REFORMA PSIQUIÁTRICA
ção do campo das artes plásticas, por intermédio do uso de novas mídias.
A Reforma Psiquiátrica se empenha pela mudança
O nome deste setor transmite a idéia de que os
do paradigma psiquiátrico que foi construído tendo
freqüentadores não são ‘doentes mentais sob trata-
por base o asilo e saber psiquiátrico. A Modernidade foi
mento’, mas sim estudantes ou aprendizes de vivências
construída sobre as bases das instituições e dos saberes de
artísticas. Portanto, a escola desloca o foco da saúde e
matiz disciplinar. A Reforma Psiquiátrica problematiza
doença para o da criação e cultura. Entende-se criação
as bases disciplinares da Psiquiatria: o asilo e o saber, e o
artística como algo inerente ao que todos os homens são
correlato disto na cidadania. Mais do que isto, a Reforma
potencialmente capazes. Desta forma, a Elavi sustenta
Psiquiátrica luta por um novo lugar social na cultura a
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ser ocupado pela loucura e pelos que se encontram na
• o conceito do Museu Bispo do Rosário Arte
condição de sofrimento psíquico. Joel Birman (1992,
Contemporânea se baseia na crítica ao modelo discipli-
p. 72) destaca este como o eixo central da luta do mo-
nar de museu que se estrutura e define sobre a coleção de
vimento. Isto vem ao encontro das seguintes palavras
objetos. A coleção funda o museu disciplinar localizado
de Michel Foucault:
em um edifício, o qual funciona como um pan-óptico, como qualquer instituição disciplinar na qual se dirige
A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história. (Foucault, 2000, p. 157). A desconstrução das instituições e do saber que sustentam a psiquiatria exigiu a construção de novos dispositivos, denominados por Franco Rotelli (1990A) como ‘instituição inventada’. Esta necessidade decorre da mudança do foco do ‘mal obscuro’ (Rotelli, 1990B, p. 91) – os indivíduos recolhidos numa instituição – para ter como objeto as pessoas em situação de sofrimento psíquico. A ‘instituição inventada’ inventa uma nova maneira de cuidar, a partir de um novo olhar, sobre um novo objeto. O Museu Bispo do Rosário
o público a receber passivamente uma narrativa que tem por base uma história mestra, seja na esfera da arte, como da história humana ou natural. Pode-se sintetizar o modelo disciplinar de museu da seguinte maneira: museu = coleção + edifício + público. A crítica a este modelo exigiu do Museu uma nova definição assentada sobre a criação. A criação artística é o que possibilita estabelecer uma linha de fuga do controle do poder psiquiátrico. Como estudou Gilles Deleuze (2003) a criação é a resistência por excelência ao poder, sendo, conseqüentemente, o que funda o Museu. Segundo Deleuze (2003, p. 4), “existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência”. Para ele fazer arte é resistir:
Arte Contemporânea é uma instituição inventada pelas necessidades e especificidades da luta na cultura. O foco de sua atuação é a defesa da cidadania plena da criação artística dos usuários dos serviços de Saúde
[...] Quando dizemos que ‘criar é resistir’, trata-se de uma afirmação de fato; o mundo não seria o que é se não fosse pela arte, (...) as pessoas não agüentariam mais. (Deleuze, 2003, p. 5).
Mental (Aquino, 2004). Com outras palavras, o Museu é uma instituição
A criação pode ocorrer em qualquer lugar denomi-
inventada na dimensão da luta na cultura que tem como
nado conforme Michel de Certau (2002, p. 202) ‘lugar
proposta o empenho em prol da Reforma Psiquiátrica
praticado’. Esta criação que é realizada no lugar pratica-
da criação artística dos usuários, museus e experiências
do e não mais no edifício sede do museu agencia relações
com a arte. Se a Reforma Psiquiátrica luta pela cidadania
em ressonância naqueles pontos da rede do tecido social
dos usuários e por instituições de cuidados em saúde que
que entram em contato com a ação de criação do museu.
respeitem estes direitos, o museu, por sua vez, é uma
Com isto de forma abreviada, o modo de funcionamento
‘instituição inventada’ que luta pela cidadania plena da
do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea é:
criação dos usuários.
museu = criação + lugar praticado + rede. A criação é o
Há três observações que ajudam a contextualizar a Elavi:
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elemento que funda o Museu em todo e cada segmento do seu funcionamento, inclusive na Elavi;
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• quando se fala em luta contra a psiquia-
de epistémê. A epistémê da Modernidade, a terceira
tria deve-se levar em consideração a observação de
e última estudada por Foucault, se alicerçou sobre
Foucault, referente à obra de Robert Castel: “[...]
o historicismo e o deciframento. O historicismo se
a psiquiatria não nasceu no asilo; ela foi, de saída,
apoiou no darwinismo e reservou ao ‘doente mental’
imperialista; ela sempre fez parte integrante de um
o lugar do primitivo, arcaico, não-culturalizado e
projeto social global” (Foucault, 2002, p. 325).
mais próximo ao animal. O deciframento é a atri-
Esta afirmação ganha maior relevo quando focada
buição daqueles racionais, adultos, machos, brancos,
para o fato de que a função de controle das institui-
europeus, de interpretar o sentido oculto das coisas
ções disciplinares tende a se espalhar por todo o corpo
e o último segredo dos fatos humanos. A psicanálise
social. Para Foucault, [...] o esquema pan-óptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. (Foucault, 1977, p. 183). A tendência prevalente é a disseminação das funções, entre elas o controle, exercidas dentro de cada instituição disciplinar pela sociedade, exacerbado a partir de 1945. Com isto, Deleuze (1996) denominou sociedade de controle a nova modalidade do poder de demarcar o tecido social que se observa cada vez mais na contemporaneidade. Assim, o poder psiquiátrico de controle circula pelo tecido social. Na sociedade de controle, sustentar a resistência através da criação artística é sustentar a própria vida, pois, “a vida se torna resistência ao poder quando o poder toma como objeto a vida”. (Deleuze, 1988, p. 99) Com isto, amplia-se a definição: o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea se estrutura tendo
e a etnologia atravessam os saberes da modernidade (Foucault, 1981, p. 396). A crise da sociedade disciplinar é concomitante à crise da epistémê da Modernidade. Para George Yúdice (2004), atualmente na sociedade de controle vive-se sob uma nova epistémê, a contemporânea, que é caracterizada pela ultrapassagem do historicismo e do deciframento: [...] propor uma quarta epistémê baseada na relação entre as palavras e o mundo que resulta das epistémês anteriores – semelhança, representação e historicidade-, mas que, no entanto, as recombina levando em consideração a força constitutiva dos signos. (Yúdice, 2004, p. 53). Este é o patamar para a apresentação da Elavi, enquanto setor do Museu que é uma instituição inventada pela Reforma Psiquiátrica na crítica do museu disciplinar e que se afirma como um museu da criação. A criação organiza e sustenta todos os aspectos do seu
por base a criação para se colocar como uma estratégia
funcionamento: a própria escola livre, as exposições, a
de resistência ao controle do poder psiquiátrico que
ação educativa, etc. O foco é a luta pela cidadania da
se exprime na cultura;
criação dos usuários na cultura. O seu funcionamento se exerce em sintonia com a sociedade de controle –
• a Modernidade foi marcada pela construção
enquanto uma estratégia de resistência ao controle
das instituições disciplinares e por uma nova raciona-
exercido pelo poder psiquiátrico – e também com a
lidade ou maneira de correlacionar as palavras e coisas.
racionalidade contemporânea em contraposição com
Foucault denominou a este arranjo do pensamento
a moderna.
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A RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA
Cooperação contra o comando O exercício do comando é a afirmação do consti-
Antonio Negri e Michel Hardt (2000, p. 453-
tuído, instituído, normatizado e do uniformizado. Ao
458) indicam as características da nova racionalidade.
contrário, cooperação é inovação. As práticas com a
Eles começam por identificar as cinco oposições que
arte na Elavi rompem com o esquema da racionalidade
caracterizam a contemporaneidade: (1) criação contra o
moderna. Isso significa estimular a criação artística, sus-
limite e a medida; (2) procedimento e processo contra o
tentar o procedimento, afirmar a igualdade, pressupor
mecanismo dedutivo; (3) igualdade contra o privilégio;
a diversidade e atuar em cooperação. Portanto, surgem
(4) entre diversidade e uniformidade e (5) cooperação contra o comando.
os três eixos de sustentação da Elavi.
Três eixos de sustentação da Elavi A nova racionalidade da Elavi • Efetiva subjunção da concepção de espaço à Criação contra o limite e a medida
concepção de tempo – Hardt e Negri afirmam que “a
É afirmado o caráter ilimitado e desmedido da
potência constituinte rompe o espaço e o transpõe para
potência de criação. Quando a potência cria, cria a si mesma, alterando todas as relações e colocando-se em um movimento de ultrapassar os limites e medidas, as quais, contra o poder da criação, lutam por reduzi-la. Procedimento e processo contra o mecanismo dedutivo Trata-se da afirmação da liberdade e do processo em luta com os enquadramentos externos da norma, da verdade, da instituição, do saber e da autoridade. Acrescenta-se, entre outros, da instituição e dos saberes psiquiátricos. É a afirmação da criação de novas singularidades agenciadas pela potência da arte. Igualdade contra o privilégio
o tempo” (Hardt; Negri, 2000, p. 439). Esta mudança, no eixo da temporalidade, implica redimensionar o referencial de espaço para o de lugar praticado: o tempo da criação, no presente, é que funda o espaço. • Continuidade da crise instaurada pela potência – Implica na valorização do evento da criação e não do lugar instituído, a Elavi é um lugar praticado pela criação artística que instaura a crise que é a possibilidade de mudança que o acontecimento possibilita. Os acontecimentos ou eventos como define Milton Santos não se repetem, são singulares: “Onde ele se instala, há mudança” (Santos, 2002, p. 146). A definição da Elavi é ampliada com a idéia de ser
O privilégio, por exemplo, dos técnicos ou do saber
um lugar praticado pela criação artística, que institui a
é contraditório ao movimento da potência, ilimitada,
crise permanente, a crise da criação desmedida, susten-
desmedida, não-institucionalizada. O privilégio promo-
tando-se assim enquanto uma clínica da desmedida, da
ve o bloqueio do processo.
criação permanente a provocar crises, ou seja, mudanças tanto externas – no ambiente – quanto internas nos
Entre diversidade e uniformidade
alunos e professores. Esta dinâmica do evento, no caso,
Decorre logicamente da oposição entre igualdade
da criação artística, pode ser alcançada quando este
e privilégio
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evento está catalisado e ocorre levando-se em contas
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as cinco oposições já descritas que levam a superar a racionalidade moderna.
Possibilita-se que os usuários criem o seu fazer artístico, valorizando a cooperação, sem a sugestão ou a cobrança de um saber psiquiátrico. Esta produção
• Mudança da natureza da práxis constitutiva
não está subjugada em seu nascedouro pelo olhar
– Para Hardt e Negri, “sua definição não é dada pela
interpretativo redutor a outra lógica ou saber. Nem
efetividade do êxito, mas pela ação efetiva no sentido
mesmo à concessão que se faz em arteterapia, quando
de tentar sempre um novo êxito” (Hardt; Negri, 2000,
se afirma que possibilitam os pacientes à se exprimir
p. 440). Na Elavi a práxis é sempre re-proposta. A
em outra linguagem, mais próxima daquela que pre-
potência se afirma em cada evento ou acontecimento,
domina no inconsciente, ou seja, por imagens e não
criando novas relações de tempo e espaço. Isto pode
por palavras.
gerar, em cada nível, novas subjetividades que são proporcionadas pela experimentação repetida. O objeto é a memória do ato e o importante é a aposta na criação desmedida através da arte. Na Elavi toma-se a potên-
A Elavi: ÉTICA E FUNDAMENTOS
cia da arte como a possibilidade de criação de novas subjetividades que resistem ao controle. Fica esclareido que o processo de afirmação da potência de criação é mais importante que o produto final – o objeto é a memória do ato. Todo o esforço se dirige à valorização do ato de criação e não do objeto final. A Elavi não quer ‘fabricar artistas’, pois estes são valorizados pelos objetos criados. A afirmação desta produção, enquanto arte é apoiada no fato de que o processo a ser ativado é o da criação artística, sendo o seu produto, o objeto, de natureza artística. Isto é atingido, desde que não se interponha outra lógica, a da razão e do pensamento. A Escola valoriza a produção artística dos pacientes,
Um princípio ético: as três metamorfoses A ilustração do que é a postura ética adotada na Escola Livre pode ser encontrada em Nietzsche (1988, p. 43-44), quando ele menciona as três metamorfoses: do espírito da suportação (camelo) ao espírito de rebeldia (leão) e, deste ao espírito de criação (criança). E indica então qual atitude do espírito que leva verdadeiramente à criação: é o dizer sim à vida. O artista é aquele que vê o mundo com o frescor de uma criança, ou seja, com a total abertura para o novo, aquele cuja postura não é a de ficar aprisionado ao “Sim”, tal qual a postura do camelo, à submissão aos ditames de, por exemplo, uma oficina, em que lhe seria solicitado que este criasse naquele momento, com aquelas pessoas, a partir daquele material, em muitas
não como objeto artístico ou produto final a ser reconhe-
até, que crie determinada forma de objeto, para tal ou
cido como arte de qualidade e o seu produtor, artista,
qual finalidade: a cura; um bazar; uma exposição; para
mas sim, deve-se valorizar a produção artística, no qual
agradar ao profissional, etc.
os usuários se empenham. Pois, nesta produção eles se
A postura de dizer “Sim” o condena ao simulacro e
fazem, constituindo novas subjetividades, segundo Niet-
o afasta da possibilidade de criação, condenando aquele
zsche: “A ‘obra’, aquela do artista, do filósofo, inventa
que a isto se submete a uma falsa identidade, alienado
em primeiro lugar aquele que a criou, que se supõe que
na submissão ao outro. Da mesma forma, a atitude de
a tenha criado” (Nietzsche, s/d, p. 199).
afirmar o “Não”, tal qual na postura do leão. Quando
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alguém se coloca nessa postura, sua identidade é cons-
cos – sejam de sua história pessoal ou institucional – e
truída em referência contrária a este outro.
sem nenhuma expectativa direcionada a uma finalidade,
A postura ética é levar às últimas conseqüências
objetivo, intenção ou projeto. O devir criança é o apaga-
a atitude de criar as condições para que as pessoas se
mento de qualquer sentimento ou ressentimento prévio
outrem, do verbo outrar, qual seja o exercício da capa-
ao processo de criação. Trata-se de promover o encontro
cidade da pessoa poder vir a ser um outro pelo recurso
da sensibilidade consigo mesma sem a interferência de
da arte. Os “outramentos”, ou novas subjetividades de
nenhum pensamento, nenhum traço de identidade ou
um tipo distinto daquelas constituídas pela repetição
referência de papel.
automatizada de padrões podem se afirmar quando
O catalisador não deve olhar o criador a partir de
ocorre um mergulho na criação, quando se afirma a
nenhuma expectativa: de ser artista ou doente; de conti-
desmedida da criação artística. Denomina-se clínica da
nuar o último trabalho; de criar algo para uma exposição;
desmedida a clínica ampliada no sentido definido por
de fazer algo para vender; de se colocar em tratamento;
Maurício Garcia (1996, p. 11) que se calca na criação
de ser um artista plástico; ou seja, a postura deve ser sem
artística, pois a arte não tem medida. Se houver medida
memória e sem desejo; sem nenhuma referência ao que
não há arte, pois esta é disruptiva por natureza, conforme
passou e sem nenhuma expectativa para o futuro.
afirmou Felix Guattari (1986, p. 36).
O silêncio das emoções não se aplica no caso da
Deve-se estar atento para que não se sucumba à ilu-
Escola. Vive-se no cotidiano um ruidoso e radical en-
são de que o fato de uma determinada oficina produzir
volvimento, principalmente, com o processo de criação.
‘produtos’, seria algo interessante sob o ponto de vista
As relações e os afetos circulam entre as pessoas no
da Reforma Psiquiátrica. Assim, até mesmo a realização
cotidiano das práticas. A intensidade dos afetos entre
de uma exposição não deve iludir. Deve-se atentar para
os freqüentadores acontece com as características da-
o fato de esta determinada oficina ou exposição estar
quelas prevalentes dentro de qualquer grupo humano.
fabricando ou não falsas identidades, constituindo ou
É possível definir que o grupo constituído na Elavi é
não falsos selves, mesmo que o de artista. E, refletir se
um grupo homogêneo com todos – alunos e professores
dinamiza a construção de uma nova possibilidade ou
– igualmente irmanados na criação artística. Trata-se
se está condenada ao passado, reproduzindo a lógica
de relações transferenciais, sim, como qualquer outra
disciplinar.
relação humana.
Para que a Elavi sustente as condições de afirma-
A relação transferencial não é operacionalizada,
ção do devir criança, deve-se estar atento para que os
entendida no plano da objetividade das relações
catalisadores também participem criando. Com isto,
humanas. Nem mesmo se coloca a ressalva de que
é eliminada a distância entre um ‘olhar de fora’ – téc-
numa atividade de arteterapia ou terapia ocupacional
nico ou profissional, dotado de um saber artístico ou
a transferência se desenvolve mediada pela imagem ou
de uma verdade psicológica -, no encontro com os
objeto. Na escola, o afeto que catalisa é a paixão de
aprendizes.
criar; a captura que a arte agencia em cada um e esta
A atitude dos catalisadores deve estar pautada pelo recomendado pelo psicanalista Wilfred Bion, ‘sem
paixão não deve ser mediada por nenhuma relação terapêutica ou transferencial.
memória e sem desejo’. Deve-se colocar junto ao aluno
A atitude de se colocar ‘sem memória e sem desejo’
sem ser o portador de nenhum de seus traços biográfi-
implica sustentar as questões surgidas e não obstruí-las
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com alguma verdade, respondendo às solicitações ou
Fundamento primeiro: por uma estética não-
oferecendo respostas, promessas e perspectivas. Trata-se
aristotélica
de não oferecer respostas às questões e sim sustentar
Indica-se sumariamente que o Museu se insere na
a indagação. Busca-se sair da ilusão de verdade, que
luta contra o paradigma clássico da estética concebida
é o ancoradouro da ciência – falsa proteção de um
segundo os mesmos princípios que fundamentam a
saber que lança previsões e que é transcendente – para
ciência para Aristóteles, uma lógica do geral; algo que
se colocar numa relação imanente à sensibilidade.
pode ser entendido e reproduzido por qualquer um,
Localizando-se no aqui e agora da criação, sem certe-
desde que leve em conta as condições de emergência do
zas e verdades, mas com a potência da abertura para
fenômeno e que se assenta na possibilidade de se afirmar
o novo, inesperado, disruptivo, a desmedida, enfim,
os princípios gerais segundo os quais, dado efeito se ex-
a criação artística.
ternaliza. A estética foi concebida tal qual uma ciência.
Outro aspecto derivado da postura ética é o que
A arte, ao contrário, é de natureza singular e individual.
Frieda Fromm-Reichmann (1984, p. 27) postula,
Fernando Pessoa (1986, p. 240) sistematizou a crítica
referindo-se aos profissionais que atuam na Saúde
a esta arte aristotélica, caracterizando que esta tem por
Mental, de que o paciente não deva ser uma fonte de
finalidade a beleza. Também indica os princípios que
satisfação, realização, segurança para o terapeuta, nem
caracterizam uma estética não-aristotélica, apontando
mesmo nas fantasias.
para a idéia de força em contraposição a de beleza. Na
A aposta é no processo de criação e não nos resul-
Elavi não interessa uma estética – aristotélica – que se
tados, benefícios advindos do resultado, uso que vai
baseie na noção de beleza, que vem ao lado da de catarse,
haver do resultado, ou na promoção e gratificação dos
contemplação, acomodação ou adaptação.
profissionais envolvidos. Fromm-Reichmann chama a atenção para a situação em que o profissional inseguro ou insatisfeito não garanta uma transferência positiva
Fundamento segundo: a loucura é ausência de obra
dos usuários, reforçando laços de admiração e de gra-
A Elavi é apoiada no ensinamento de Foucault
tidão, o que estimula uma relação de dependência e
(2000, p. 156), que evidencia a relação de exclusão: a
infantilização. Isto deve ser levado em conta, pois se
loucura é ‘a ausência de obra’ (Foucault, 2000, p. 156).
trabalha com a arte e com produtos que podem vir a
Deleuze (1990) desenvolveu a seguinte tese, o paciente
ser valorizados no mercado repercutindo em ganhos
quando está criando se coloca num devir artista e clinica
financeiros ou de prestígio.
o mundo. Neste momento, o criador se coloca numa
Enfim, na Escola Livre, apostar num devir criança não se resume a uma recomendação técnica. Mais que
postura contrária da compulsão à repetição, prevalente na doença.
isto: trata-se de um princípio ético, visto que se articula
As práticas da Elavi estimulam o processo criativo
com uma postura básica de aposta radical na arte e na
e através deste possibilitam a construção de novas subje-
criação artística. É a afirmação da vontade de alinhar-
tividades. Isto leva a um processo inverso ao da loucura,
se numa postura contra o controle que possa ocorrer
enquanto a ausência de obra entrega à repetição do mesmo,
mesmo em dispositivos extramuros, pois, estas podem
sem diferenciação, sem a afirmação da diferença. A saúde é
reproduzir com a mesma intensidade uma relação de na-
entendida como o fluir do processo de criação e a doença
tureza asilar, como destacou Deleuze (1996, p. 220).
como a interrupção deste processo. O objeto final a que se
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atinge é a memória do ato de criação. O que importa de fato é a criação de novas possibilidades para o criador.
F – Os produtos são deles: o produto final pertence a seus criadores. Os usuários podem dispor de sua criação. G – Eles explicam: os autores ou criadores pro-
Fundamento terceiro: o objeto é a memória do ato A Elavi investe no processo de criação artística:
duzem discursividade sobre suas obras, recebem os visitantes e comentam suas obras.
não importa o objeto ou o produto final originado.
H – Exibir, segundo as correntes: Expõem-se as
Valoriza-se o processo de criação, sendo entendido o
obras segundo as correntes reconhecidas na História
objeto como a memória do ato.
da Arte. O Museu combate o uso das denominações que este segmento da criação humana recebeu no campo psiquiátrico, que as toma como sintoma de
A prática na Elavi: sumário A – Alunos: usuários, técnicos, artistas e comunidade.
doença mental: arte psicótica, psicopatológica, louca, teratológica, degenerada ou imagem do inconsciente. Da mesma forma, combate as denominações que
B – Artistas como catalisadores: artistas oriundos
surgiram no campo artístico conferindo minoridade
do campo da Saúde Mental ou do campo artístico
social à estas obras: arte virgem, bruta, outside art
conduzem os trabalhos. Estes são os propositores ou
ou folk art.
professores, denominados catalisadores. O catalisa-
I – Busca do estilo: Busca-se criar condições para
dor, tal qual na reação química, é o agente que cria
a constituição de novas subjetividades, a afirmação do
as condições para que determinada reação química se
estilo de cada um, numa direção contrária à da psiquia-
processe. Ele não está presente, nem no início nem
tria, de tratamento e cura.
no resultado do processo, sua ação é a de facilitar para que a reação ocorra, de forma mais rápida, mais eficiente. O professor não ‘ensina a fazer arte’, mas sim se coloca como exemplo e estimula a atitude da
CONCLUSÕES
criação. C – Fazer junto: todos os envolvidos nas práticas
Definir o Museu Bispo do Rosário Arte Con-
devem fazer juntos as mesmas atividades para evitar
temporânea, como um museu de criação, implica
o olhar controlador ou decifrador. Rompe-se com a
privilegiar a criação artística na exposição, na ação
prática de deciframento da criação sob qualquer teoria,
educativa, na E lavi , entre outros. São criadas as
escola ou autor.
condições para que o processo da criação se expresse
D – Diferentes linguagens: diferentes linguagens facilitam a livre escolha.
em seu mais elevado grau, na forma mais radical da arte, numa perspectiva que denominada ‘Clínica da
E – Saídas semanais: os alunos são convidados a
Desmedida’, posto que se operacionalize a arte sem
circularem pelos espaços sociais consagrados à arte, a
amarras numa postura de se contrapor à lógica psi-
conhecer outros artistas e seus ateliês, a receberem a
quiátrica, procurando através da criação artística, a
visita de outros artistas interessados em intercâmbio e
criação de novas subjetividades como resistência ao
troca de experiências.
controle do poder psiquiátrico.
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Na Elavi, a criação artística não é usada enquanto terapia e se rompe com o deciframento da obra de arte. Quando se fala em cura, tratamento, terapia e outros a partir do referencial teórico da psiquiatria, diz-se: a Elavi não cura, não trata, não é terapia. Porém, cura, trata, e age no corpo teórico da psiquiatria: a arte contra a ciência. A
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criação é catalisada exclusivamente por artistas. Praticar oficinas com a arte pode implicar na repetição da lógica disciplinar, a qual fundou o saber psiquiátrico e o asilo. Nesse caso, se lança mão da arte – domesticada –, como já se lançou mão da psicanálise, dos grupos, das comunidades terapêuticas, do lazer e do trabalho.
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A Elavi permite a afirmação da obra em contraposição à loucura, ao criar as condições pra que estes gestos sejam reconhecidos, enquanto obra e estas falas são entendidas como linguagem. A prática clínica da Escola Livre é inserida no campo em construção da clínica ampliada que interessa à Reforma Psiquiátrica, no qual o eixo da cidadania é um dos referenciais e o alvo é o indivíduo em situação de sofrimento psíquico.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Saúde Mental e cultura: que cultura? Mental Health and culture: what culture? “Em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos” (Canclini, Culturas híbridas, p. 349)
Alexandre Simões Ribeiro
1
Psicanalista; doutor em filosofia pela
RESUMO A partir de uma crítica às perspectivas mentalistas fortemente presentes
Universidade Federal de Minas Gerais
entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde
1
(UFMG); professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) no
Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de
campus da Fundação Educacional de
cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental
Divinópolis (Funedi).
coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,
[email protected]
enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reforço das concepções mentalistas na Saúde Mental, o que seria um retrocesso para posturas excludentes. Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura. Para tal, são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção e hibridação a partir das análises sobre a cultura empreendidas por Canclini. PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental
ABSTRACT From a critical point of view to the mental perspectives, strongly operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to searching the joint of collective Mental Health with the culture. However, it is put in question what conception of culture would be supporting the advances in the field of the collective Mental Health. There are culture conceptualizations that reestablish reactionary positions and, therefore, are combined with traditional positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding postures. However, the conceptions after-critical of culture are more beneficial. The general lines of descollect concepts and hibridation from the analyses on the culture are herein displayed in the words of Canclini. KEYWORDS: Psychoanalysis; Clinical psychology; Mental Health
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Saúde Mental e cultura: que cultura?
Salas-ao-Lado
de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou
Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo
seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial
um interessante deslocamento nas rotinas e desafios que
em que a presença e a produção de diferenças, bem como
compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for-
a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,
mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias
o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada
propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contudo, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda era um tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais, fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado e consistente. Aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental poderiam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos de outros campos e problemáticas, não só relacionados à doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousarmos visitar, por assim dizer, a ‘sala-ao-lado’.
olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que garantiam a verdade, a ordem e o futuro. É justo sublinhar, porém, a necessária discussão acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em geral) de maneira não restrita às especialidades (a identidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidadefamília etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já devidamente abordada por alguns autores (Lobosque, 2001; Amarante, 2003). De certa forma, essa parece ser a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (CostaRosa; Luzio; Yasui, 2003). Certamente, a articulação das questões suscitadas pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em relação à cultura tem como repercussão a produção de um novo tom ou ânimo e, até mesmo, esperança em meio à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável. Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do que se entende por ‘cultura’, não conseguiremos ir além de
Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando
uma extravagante idolatria do ‘até-então-marginal’ (sob o
potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre-
escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)
cisamente a que se mostra sensível às considerações pós-
ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a
estruturalistas acerca da cultura. Tais circunstâncias e
acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob
resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma,
a forma do louco). Ora, se há de fato uma possibilidade
com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. Silva,
e o desejo de se fazer uma transformação no campo da
2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação,
Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma
conhecimento e cultura face às novas condições dos
hierarquização disfarçada (‘somos tão superiores que acei-
trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela
tamos a diferença!’), trata-se de se produzir a diferença e
bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas
não exatamente aceitá-la piedosamente. Em suma,
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RIBEIRO, A.S.
[...] procuramos deixar claro desde o início que o projeto antimanicomial não se reduz a reformas assistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no âmbito da assistência só adquirem um caráter transformador quando se articulam com uma intervenção na cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figura do louco ao mesmo tempo como objetivo e efeito de sua implementação. (Lobosque, 2001, p. 30). Mas é vital estarmos atentos para a seguinte possibilidade: O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas às quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas. (Guattari; Rolnik, 2000, p. 15). Ou ainda: Atrás da falsa democracia da cultura continuam a se instaurar – de modo completamente subjacente – os mesmos sistemas de segregação a partir de uma categoria geral da cultura. Os Ministros da Cultura e os especialistas dos equipamentos culturais, nessa perspectiva modernista, declaram não pretender qualificar socialmente os consumidores dos objetos culturais, mas apenas difundir cultura num determinado campo social, que funcionaria segundo a lei de liberdade de trocas. No entanto, o que se omite aqui é que o campo social que recebe cultura não é homogêneo. (Guattari; Rolnik, 2000, p. 20).
•
Saúde Mental e cultura: que cultura?
tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentarse-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso isenta de rigor e, muito menos, de vigor. Reflexões desenvolvidas entre nós por Jairo Goldberg (1992), Paulo Amarante (2003), Abílio Costa-Rosa (2003), Ana Pitta (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros, certamente influenciados por uma série de movimentos, tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se impuseram no período pós anos 1950, em muitos países, apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes de um mesmo território; território este que já coloca em xeque a própria noção enrijecida de território, de espaço com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por conseguinte, de diferença). Ao articular essas circunstâncias, promovedoras de descentramentos, com o rápido quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um mundo pós-colonial?
A esfera e a clínica estrita Principalmente através dos diversos discursos e ações que compõem a psicologia, algo se impôs em nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam oficialmente desde a segunda metade do século 19): a apreensão do psíquico como uma interioridade, como algo que se apresenta como posse individualizada e, em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível marca individualizante e, por isso, identitária. O psíquico, como um emaranhado de traços, memó-
O deslocamento
rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem-
Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria
pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos
a freqüentação de salas-ao-lado? Trata-se da migração de
e ações que extrapolam de forma marcante o campo da
uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos
psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença
calcados em prerrogativas mentalistas para uma perspec-
maiores: a psicologização. A constituição de identidades
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Saúde Mental e cultura: que cultura?
calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên-
Para continuarmos a localizar grandes marcos e
cia direta desse homo psychologicus, finamente construído
momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a
ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo
nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de
industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a
Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que
idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista)
ali se produziu, a ampliação da prática da introspec-
enquanto descobridor do inconsciente. Tão recorrente e
ção ao leitor comum como via de prospecção de uma
homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo
idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que
que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido
Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,
de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do
o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no
discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma
homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e
leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que
os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube
Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha
matricialmente chamar atenção para um caminho que
que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição
se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da ‘fala-
de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava
de-si’ para o outro do externo, do dado a ver: o nosso
aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos
interior. A notória frase de Montaigne, “o que sou eu
do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma
sou para mim mesmo importa mais do que eu significo
espécie de ‘servidão voluntária’ para, então, retomar a
para os outros” (1991, p. 47), ilustra precisamente a
incômoda expressão de La Boétie (1999). Essa servidão,
dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne
que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se
ou por ele, mas em seu tempo, desde então.
em mentalismo.
A ampliação desse processo para aqueles que nem
Todavia, é justo frisar que a noção de interioridade
leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor-
psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an-
mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como
tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da
erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe-
psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu
are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a
rastro em Santo Agostinho e em suas reflexões confes-
reconhecermo-nos como dominados por uma profun-
sionais. A partir de outro ângulo, podemos notar que
didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou
com Descartes (1596-1650), a interioridade é elevada
a entreouvir-nos.
a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen-
O projeto de dominação, discernimento e ades-
talização da razão, ou seja, a esta localização da razão
tramento desse insondável não está em Shakespeare;
como ferramenta que moverá, doravante, o mundo.
sejamos justos, pois ele privilegia perspicazmente o
Aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada
paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde
pelo próprio autor: Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu ligar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável. (Descartes, 1979, p. 91).
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então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao mesmo tempo, nos descompletássemos e transformássemos. A colonização do psíquico interiorizado foi, a despeito disso, uma decorrência da modernidade. Curiosamente, debates que parecem ser bipolarizados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas materialistas (hoje, significativamente reerguidas com
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Saúde Mental e cultura: que cultura?
o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente
Esse imaginário que promulga a detenção privada e,
paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu-
em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental
larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao
é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da
que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano:
psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des-
a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos,
vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação
regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria
freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas
o espaço mental e o espaço do mental. A própria idéia
ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância
de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes,
clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir
é um corolário dessas perspectivas.
a posição do psicanalista – “o eu não é senhor em sua
Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia,
própria morada” (1976, p. 178) – não conseguiu le-
sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por
vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa
Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o
ótica esférica acerca de nós mesmos.
‘fantasma na máquina’ (para retomarmos o tropo pro-
Ótica esférica de nós mesmos. O que isso significa?
posto por Gilbert Ryle em 1949, em O conceito de mente;
Essa organização que nos conduz a um pathos dicotô-
cf. Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito
mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que
da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica,
as esferas à semelhança do que Guimarães Rosa (1988)
tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos
propõe acerca dos espelhos1, são muitas.
excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa,
Quão comum é, entre psicanalistas, professores e
e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico
alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos
e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente
a postulação do inconsciente menos como desconti-
em outra forma de essencialismo.
nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como
Certamente, há razões para que essa imagem da mente como espaço internalizado (ou locus privado) seja
‘impossibilidade de totalização’ e mais como duplo que, substancialmente, me habita?
tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como
Essas localizações sempre comportam efeitos clíni-
óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em
cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,
psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica,
somos levados a compreender que na passagem do sé-
ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma,
culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe
adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria
implicações agudas que ultrapassaram em muito seus
em uma forma de behaviorismo radical.
espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a
O estabelecimento de espaços a serem conquistados,
clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos
demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das
outros campos obtiveram seus delineamentos. Tornou-se
importantes decorrências da razão instrumental e da mo-
possível, a partir da medicina, amparada principalmente
dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora,
pelo método anátomo-patológico, estabelecer um saber
produto e processo dessa cena, conforme Dumont (1985),
sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come-
restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço
çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não
interior hipostasiado sob a forma de mente.
se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,
Conto O espelho (Rosa, 1988, p. 65.)
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Saúde Mental e cultura: que cultura?
genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber
Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con-
este que não mais se volta para o estudo das doenças
duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se
tomadas como realidade em si, mas como específicas a
contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de
quem é afetado por elas. A clínica tornou possível uma
platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos
episteme do particular.
o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando
O passo seguinte, no campo das psicologias, foi
não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo
conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as-
que um psiquismo que se coloca no ‘entre-dois’ e não exa-
sim, a clínica do psíquico. Dessa forma, a clínica pôde se
tamente em um in ou out seria uma rota viável e oblíqua
sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem
aos poderes dos discursos essencialistas.
etimológica, fazendo com que o ‘klinos’ implicasse em
Porém, sobretudo a partir da performática concilia-
um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse
ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja
abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade.
a possibilidade de a ciência, através de uma englobante parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os atuais modos de produção, circulação e consumo de
A dobra da esfera Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no início desse texto tem íntima relação com o afrouxamento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados tanto para o melhor quanto para o pior, por um outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fenômenos contemporâneos, que partam de perspectivas solipsistas. O solipsista é aquele que nos propõe que ‘meu mundo é meu mundo’, tamanho o compromisso com essências, apriorismos e categorias universais que independem da história e da política, ou seja, que não se inscrevem em e através de processos contestados. Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se como a medida da vida. Apresento a hipótese de que a crescente reflexão, ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na ‘Saúde Mental coletiva’ como espaço poroso e afeito a uma constante reterritorialização do psíquico, não seria possível sem que se instale uma sincronicidade entre esses processos e as reterritorializações implicadas nos estudos voltados à cultura, desde um viés antiessencialista.
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bens (rapidamente chamados de globalização), temos a inundação de explicações e imagens fisicalistas do funcionamento da vida em todos os seus aspectos e, em especial, de nosso pathos. A exacerbação do espaço individual, e não mais opaco ao organismo, colocou o sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele. Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspicazmente a forma como palavras e processos demarcadores de alguns aspectos de nossa condição, tais como tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à adaptação, tais como ‘depressão’, ‘distimia’, ‘síndrome do pânico’, ‘ansiedade’ e ‘afetivo-bipolar’. Nitidamente, temos o mercado aberto a todos os ‘especialistas do bemestar’ que buscam um patamar de qualidade total, versatilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental. O mal-estar ganha, pois, uma visibilidade performática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de Benilton Bezerra (2002, p. 235): Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito interior ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as
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regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das sensações e do espetáculo, o malestar tende a se situar no campo da performance física ou mental falha, muito mais que em uma interioridade enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos prevalentes parecem atestar isso: fenômenos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar a obtenção de satisfação, que se torna compulsiva pela via das drogas ilícitas, dos medicamentos, do consumo, da ginástica e do sexo), transtornos vinculados à imagem ou á experiência do corpo (bulimias, anorexias, ataques de pânico), depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação, empenho).
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Saúde Mental e cultura: que cultura?
Compreendo que os profissionais atuantes na área da Saúde Mental possam obter uma interessante dobra em seus tecnicismos realizando visitas à sala-ao-lado. Um empolgante espaço de desconstrução de categorias e perspectivas essencialistas vem sendo empreendido nas problematizações acerca da cultura. Dentre diversas possibilidades que participam de um amplo quadro (que poderíamos denominar pós-crítico ou pós-estruturalista a título de uma nomeação um tanto quanto precária), encontramos a argumentação de Nestor García Canclini em seu livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em relação ao tratamento dicotômico e essencialista reservado,
Saúde Mental COLETIVA E CULTURA: ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO Uma das características mais marcantes do campo da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possibilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo-
classicamente, à cultura (suas produções, seus processos, suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só à cultura. Recorrendo a dois conceitos mutuamente implicados – os conceitos de ‘hibridação’ e de ‘descoleção’ – Canclini procura argumentar que não mais podemos compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos (por exemplo, cultura erudita/cultura popular, cultura massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno, tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a partir da suposta segurança dos lugares em que ela é produzida
delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria
ou, a princípio, contida. Trata-se, por conseguinte, de
que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas
se desomogeneizar a cultura.
e dúvidas estão em estado de ‘descoleção’, isto é, estão
Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu-
desterritorializados quando cotejados com a situação
mentação que questiona o estatuto de locais destinados
anterior. Descolecionar leva a ‘deslocar’, ‘decolar’, ‘des-
à cultura e à preservação da história ou do patrimônio
colar’ e, muitas vezes, a ‘des-escolarizar’.
cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se
Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos
dá usualmente com os museus e os monumentos.
muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como
Ao falar em hibridação, isto é, a constante articu-
de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação,
lação entre elementos supostamente puros e discretos,
aqui, não implica em um aparato teórico que conduza
promovendo outros elementos, estruturas, processos
à representação do real em suas minúcias para melhor
que apagam as certezas em relação às fronteiras de-
compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de
marcadoras, conforme Canclini (2006, pxix), somos
dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante
conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.
de tornar a novidade algo transmissível.
Segundo Canclini:
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O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos e os signos em lugares específicos: as mercadorias de uso atual nas lojas, os objetos do passado em museus de história, os que pretendem valer por seu sentido estético em museus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitidas pelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas, e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas e pelos meios massivos de comunicações. Uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de percepção adequados a cada situação2. (2006, p. 300). A descoleção é uma decorrência da hibridação e, enquanto tal, implica em repensar os modos e usos dos poderes: A partir do que viemos analisando, uma questão se torna fundamental: a reorganização cultural do poder. Trata-se de analisar quais são as conseqüências políticas ao passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada, das relações sociopolítica. (Canclini, 2006, p. 345). Talvez tivesse valia a amplificação de uma descoleção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não bem como técnica de revelação do incógnito ou arte interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que instaura descontinuidades e, portanto, devires. Tal como
R E F E R Ê N C I A S
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convidam as palavras de Benilton Bezerra: O que determinará o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será sua capacidade de atualizar aquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação de um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência humana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238).
Descartes, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Dumont, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
Vale ressaltar que o conceito de hibridação se torna mais potente à medida em que a hibridação não implica em junção totalizante, bem como na proporção em que é um processo que implica em perdas e ganhos. Ainda segundo Canclini, “é necessário registrar aquilo que, nos entrecruzamentos, permanece diferente” (2006). 2
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RIBEIRO, A.S.
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Saúde Mental e cultura: que cultura?
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the Companhia Experimental Mu...dança
Myrna Coelho
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1
Psicóloga; coreógrafa; mestre em
Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP);
RESUMO Este artigo trata dos percursos da construção coletiva do espetáculo de dança-teatro das loucuras Da História, pela companhia Experimental Mu...
professora do curso de Psicologia da
Dança, no município de Diadema entre 1999 e 2001, e seus desdobramentos
Universidade Nove de Julho (Uninove);
até 2005. A Companhia Experimental Mu...Dança é um grupo de dança-teatro
[email protected]
formado em 1999 por pessoas com grave sofrimento psíquico e militantes do Movimento da Luta Antimanicomial. Esse espetáculo tem 80 minutos de duração divididos em 16 coreografias criadas coletivamente, a partir de dois eixos definidos pelos participantes: como o grupo vivenciou o processo de enlouquecimento e o conceito de loucura. A partir da interface arte-loucura, essas experiências são definidas como criação de um espaço de participação política. PALAVRAS-CHAVE: Transtorno mental; Aceitação social; Política social.
ABSTRACT This paper presents the construction trajectory of the dance-theater show das loucuras Da História created by the Experimental Company Mu... Dança, in the city of Diadema, São Paulo, Brazil, between 1999 and 2001, as well as its development until 2005. This is a dancing-theater company created in 1999 by people with psychiatric disorders and militants of the antimanicomial movement. The referred show has 80 minutes and presents 16 choreographies that have been developed by the integrants of the group, based on two subjects: how the group experienced the process of becoming “crazy” and the concept of craziness. Supported by the art/craziness interface, these experiences are defined as the creation of a space with political participation. KEYWORDS: Mental disorder; Social desirability; Public policy.
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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
I N T R O D U ç ão
a prática de “oficinas terapêuticas” como “uma das principais formas de tratamento oferecido nos Caps” (Brasil, 2004). Ressalta-se que nessas manifestações artísticas, os dispositivos materiais e institucionais que as atraves-
O presente trabalho tem por objetivo discutir um
sam, isto é, o ambiente onde o indivíduo manifesta sua
dos aspectos principais da Reforma Psiquiátrica brasi-
criação, bem como aqueles de que dispõe para efetuar
leira: a dimensão sociocultural.
sua criação, as referências de sua história de vida, de sua
Segundo Amarante (2007, p. 73), a dimensão
própria subjetividade e da relação de si com a instituição
‘sociocultural’ expressa o objetivo maior da Reforma
à qual está subordinado, marcará as possibilidades de
Psiquiátrica, ou seja, a transformação do ‘lugar social’
sua obra.
da loucura, pois o imaginário social – decorrente da ide-
Mas, infelizmente, o fato de inserirmos práticas
ologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona a
artísticas em Saúde Mental não garante que elas sejam
loucura à incapacidade do sujeito em estabelecer relações
antimanicomiais e, portanto, subordinadas teorica-
sociais e simbólicas. Dessa forma, o aspecto estratégico
mente ao paradigma da Reforma Psiquiátrica, o que
desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que
garantiria sua inserção real na dimensão sociocultural.
visam transformar a concepção de loucura no imaginário
Nesse processo, muitas ações acabam por afirmar o
social, transformando, assim, as relações estabelecidas
pensamento manicomial, reforçando preconceitos e
entre sociedade e loucura.
prestando um não-serviço à população. Por isso torna-se
De acordo com o ideal da Reforma Psiquiátrica, as transformações devem transcender à simples reor-
tão necessário que tais práticas contemporâneas possam ser discutidas.
ganização do modelo assistencial e alcançar as práticas e concepções sociais, intervindo não apenas no funcionamento dos serviços e na formação profissional dos técnicos envolvidos, mas no profundo e complexo
A Companhia EXPERIMENTAL MU...DAN-
fenômeno da ‘representação social da loucura’. Devemos
ÇA E A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA
pensar o campo da Saúde Mental não como um mo-
REFORMA PSIQUIÁTRICA
delo, mas como um processo. Para tanto, a dimensão sociocultural é fundamental.
Mesmo sendo Política Ministerial, as oficinas artís-
Nesse processo, novas práticas surgem constante-
ticas dentro de um Caps não são unanimidade teórica.
mente, em especial aquelas que fazem uso das linguagens
Os saberes do campo da Saúde Mental não são únicos, há
artísticas. Com o advento e a proliferação, especialmente
muitas divergências que se colocam especialmente entre
nas duas últimas décadas, de serviços substitutivos ao
dois paradigmas. De um lado, o manicomial baseia-se,
manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a
como nos adverte Foucault (2000), em uma invenção da
ser amplamente utilizadas e, com isso, estudadas par-
loucura como doença mental que pede um tratamento
ticularmente no campo da Saúde Mental. Inclusive, a
fundamentado na moralidade e na medicamentação,
legislação brasileira que regulamenta o funcionamento
propondo, num processo de banalização do sofrimento
dos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps) insere
e da natureza humana, que qualquer investimento de
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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
cuidado em Saúde Mental seja um investimento voltado
da região nordestina, tornou-se interessante a criação de
para a ‘doença’, nunca para os sujeitos da experiência.
um projeto que resgatasse, a partir das danças populares,
Já o paradigma antimanicomial, desenvolve várias ações
histórias culturais das pessoas que estavam no Capsi, das
que buscam transformar o imaginário social em relação
origens de suas famílias, de antigos costumes e rituais.
à loucura, à doença mental, à anormalidade e que se
Iniciamos o projeto como grupo aberto e, com o
referem a um conjunto de práticas sociais que possam
passar do tempo, pudemos perceber que nossa proposta
construir solidariedade, a inclusão dos sujeitos em des-
de trabalho não fazia sentido: o grupo queria dançar seu
vantagem social, a diferença e a diversidade (Amarante,
encontro com a loucura, suas histórias de vida e enlouque-
1999, p. 51).
cimento. A partir daí, mudamos os objetivos do grupo.
Temos o relato de uma experiência paradigmática
Num processo coletivo de discussão e decisão, inventamos
da dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica,
a Companhia Experimental Mu...Dança e construímos seu
possibilitada pelo trabalho iniciado em 1999 no Centro
primeiro espetáculo, das loucuras Da História.
de atenção Psicossocial (Capsi) de Diadema (município
Decidimos, em primeiro lugar, coreografar coleti-
da periferia de São Paulo), época em que trabalhávamos
vamente um espetáculo que problematizasse as histórias
com arte na tentativa de encontrar novas formas de con-
de enlouquecimento dos participantes com o objetivo
vivência respeitosa e digna com as pessoas que buscavam
de apresentá-lo o máximo possível para militarmos na
auxílio em Saúde Mental, coisa que o pensamento mani-
reinserção social da loucura, ou seja, travar debates
comial não leva em conta. Como estagiária de psicologia,
com as platéias sobre a loucura e o Movimento da Luta
uma das atividades propostas pela ‘comissão de ensino’
Antimanicomial, divulgando-o e contribuindo para
da instituição a serem cumpridas era a realização de
modificar o lugar social do louco. As apresentações eram,
um projeto que unisse a experiência de coordenação de
portanto, um norteador fundamental do trabalho sem o
grupo com um desejo pessoal do estagiário. Por conta
qual o mesmo não se justificaria. A construção coletiva
de minha história pessoal como bailarina, eu e minha
surgia em nosso trabalho a partir de Hannah Arendt
supervisora de estágio, Patrícia Villas-Boas Valero, de-
(2003) e sua distinção entre trabalho e labor, distinção
cidimos montar um ‘grupo de dança’ .
esta gerada por uma sociedade da produção. A idéia do
1
A princípio, esse grupo se preocupava em recontar
trabalho está comumente ligada ao suor e à supressão,
as histórias culturais familiares dos participantes através
mas Arendt chama nossa atenção para o quanto estes
das danças populares brasileiras, pois hipotetizávamos que
aspectos relacionam-se com a idéia de ‘labor’, conceito
um dos causadores do enlouquecimento é a vivência da
que expressa ciclos repetitivos, de longa duração. Já no
aculturação. Segundo Redko (1998), tanto a incidência
‘trabalho’, transcendemos nosso próprio universo na
quanto a evolução de graves sofrimentos psíquicos estão
medida em que, necessariamente, nos identificamos com
ligados aos conflitos psíquicos inescapáveis ligados à
nossa produção criativa, diferindo-a da natureza. Isso faz
questão da imigração, à vivência pessoal ou familiar, ao
do ‘trabalho’ uma atividade tipicamente humana, que
distanciamento de elementos de sua cultura tradicional.
nos possibilita construir histórias. É a diferença entre
Sendo a população de Diadema composta em sua maioria
fabricar bens duráveis e não duráveis, produzir fruição
por migrantes, especialmente naturais de Minas Gerais e
de beleza e produzir escravidão.
Esta experiência está descrita e analisada em nossa dissertação de mestrado das loucuras Da História: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social, apresentada ao programa de pós-graduação Iterunidades em Estética e História da Arte da USP, 2007. 1
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008
Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
O segundo ponto fundamental do trabalho da
repetição, mas a usa consistentemente para subverter
Companhia Experimental Mu...Dança era que, além
seu próprio processo de dominação corporal, no aspecto
de recontar as próprias histórias de enlouquecimento,
estético, cognitivo e social, para dançarinos e para o
pudéssemos questionar o conceito de ‘loucura’ estabe-
público. Através da repetição, sua companhia, o Wu-
lecido em diferentes culturas e épocas históricas. Para
ppertal Dança-Teatro, transforma estáveis polaridades.
tanto, montamos um horário de ‘grupo de estudos’ que
Simultaneamente natural e linguístico, experiencial e
ocorriam por meio de visitas à biblioteca e à videoteca
automático, pessoal e social, o corpo ‘reconta’ e ‘redança’
municipais e discussões acerca de livros como História
sua própria história de fragmentação, ausência e domi-
da loucura, de Michel Foucault e Dom Quixote de La
nação, repetindo e transformando constantemente, ou
Mancha, de Miguel de Cervantes. Esse segundo ponto
seja, ‘redefinindo’ a dança (Fernandes, 2000).
viabilizava a construção de uma visão crítica a respeito da
Vale lembrar que durante todo o processo de cons-
própria loucura, e foi proposto pelos bailarinos do grupo
trução de Pina Bausch, as preocupações coreográficas
no momento em que deixaram de olhar apenas para o
centram-se na valorização e reapropriação da gestua-
próprio sofrimento e despertaram para os fenômenos
lidade individual. Assim, na Companhia Experimental
que contribuíram com a construção social da loucura.
Mu...Dança, construímos pontes destas preocupações
Um terceiro ponto do trabalho foi a definição de
coreográficas com o grupo, ampliando as possibilidades
que, como militantes e aspirantes da divulgação da
criativas (Castro, 1992).
nossa causa, deveríamos ocupar a cidade, “levando o
Em nossa Companhia entendemos que na contem-
delírio à praça pública” (Pelbart, 1990, p. 134), ou
poraneidade estamos muito distantes de nosso corpo e, no
seja, não deveríamos ensaiar no ambulatório, mas em
caso de pessoas que tiveram histórias de confinamento em
espaços dedicados a atividades culturais da cidade, onde
instituições psiquiátricas, a relação com o corpo fica ainda
se encontrava nosso público-alvo. Assim, ensaiamos no
mais prejudicada. O corpo é visto como meio para a ob-
Centro Cultural Okinawa em dois momentos: quando
tenção de lucro (Weil, 1990), tornando-se visível apenas
funcionava como um centro cultural, e quando abrigou
no binômio trabalho-consumo, distante do que Keleman
a guarda municipal. Ensaiamos, também, no Centro
(2001) chama de experiência da corporificação.
Poliesportivo da cidade, no Teatro Municipal (Centro
Partindo dos pilares apresentados, as pesquisas do
Cultural Clara Nunes) e na sala de dança do Centro
grupo levaram a construção do espetáculo por três eixos
Cultural Serraria.
norteadores: histórias/experiências de enlouquecimento
Nosso último ponto fundamental do trabalho foi
dos bailarinos, histórias de tratamento dos bailarinos,
a definição da técnica artística utilizada: a dança-teatro,
estudo sobre a história da loucura e sua inserção em
em especial sua expressão contemporânea desenvolvida
algumas culturas. Assim, o espetáculo das loucuras Da
pela bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch.
História conta com 16 coreografias distribuídas em 80
As obras de Bausch não apenas utilizam-se da re-
minutos, criadas a partir das biografias dos próprios
petição como método ou artifício coreográfico, mas a
bailarinos e pesquisadas a partir de três temas escolhidos
incorporam como um tema a ser criticamente retalhado
pelo grupo: O que é loucura? No decorrer da história
e decomposto, até gerar o inesperado e, supostamente,
da civilização, ela recebe o mesmo significado? Esse(s)
o oposto: a diferença, a transformação. A dança-teatro
significado(s) existe(m) independentemente da cultura
de Bausch não rejeita nem serve à força disciplinária da
e da época em que o fenômeno está inserido?
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Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
Em nossa dissertação, concluímos que a Companhia
foi proposta e construída, tornou-se um facilitador
Experimental Mu...Dança possibilitou aos bailarinos
para que o grupo pudesse despir-se do manicômio
‘desgrudarem-se’ das experiências de enlouquecimento
mental (Pelbart, 1990). Apesar de todos nós sermos
e deixá-las no passado, saindo do lugar de ‘troca-zero’ da
militantes do Movimento da Luta Antimanicomial e,
loucura para a descoberta de outros lugares do mundo.
ainda, apesar dos Caps serem instituições baseadas na
A metodologia de construção desse espetáculo tornou-se
lógica da Reforma Psiquiátrica, é comum percebermos
visível. A partir da análise do espetáculo apontamos e
que as relações estabelecidas nessas instituições ainda
refletimos sobre as mudanças despertadas nos bailarinos.
são baseadas em relações de saber-poder, ou seja, os
A possibilidade de sair de um lugar de ‘troca-zero’ para
profissionais ‘psi’ têm uma posição privilegiada sobre os
um lugar de criação abriu caminho para que outras
sujeitos acometidos de sofrimento psíquico. Enquanto
potencialidades fossem exploradas por eles. Sair do
os profissionais são bombardeados desde o início de sua
papel social do louco é abrir-se para a possibilidade de
formação com uma verdade paradigmática que institui
ocupar múltiplos papéis sociais. A apropriação de uma
as relações de certo e errado, profissional e paciente,
nova linguagem, a vivência de uma construção grupal,
doente e são, louco e arrazoado, os pacientes, em suas
a ampliação da percepção sobre si e dos outros e a luta
histórias de tratamento (ou tentativa de tratamento)
pela mudança do imaginário social a respeito da loucura
são bombardeados com informações a respeito de certa
trouxeram ao grupo uma vivência do trabalho como
doença incurável, da dependência do saber profissional
construção de linguagem.
e mesmo da subordinação a ele. Mudar essa relação é
A transformação do ‘sintoma’ do sujeito em uma
mudar a si mesmo.
característica de estilo da personagem que ele repre-
Assim como a Companhia Experimental Mu...
sentaria apresentou-se durante todo o trabalho como
Dança, muitos outros projetos inseridos na dimensão
um método bastante significativo. Uma saída para a
sociocultural da reforma se tornaram paradigmáticos.
construção da tarefa e das personagens, mas também
Portanto, torna-se necessário que pesquisas sejam
uma maneira diferenciada de trabalhar com aquelas
feitas de modo a sistematizar tais experiências para
pessoas. Percebemos que ao transformar o ‘sintoma’ em
que seja possível compreender os procedimentos me-
‘estilo’ fornecíamos um novo sentido do ‘sintoma’ para
todológicos comuns que garantiriam uma verdadeira
o sujeito, que poderia, a partir de então, entendê-lo
inserção na dimensão sociocultural e a facilidade de
como algo que fosse além dele mesmo. Com o passar
novas experiências.
do tempo, pesquisando e estudando as personagens, o sintoma ‘desgrudava’ minimamente dos bailarinos, que assumiam novas possibilidades de identidade produzindo algo além da loucura: a arte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a valorização da formação do vínculo como intermediário da tarefa, todos puderam perceber que
No momento em que a Secretaria Nacional de
para que o objetivo do grupo fosse alcançado com êxito
Identidade e Diversidade Cultural criou uma política
era necessário que todos se empenhassem e expressas-
específica para financiar projetos culturais no campo
sem sincera opiniões. Esse fato sustenta o paradigma
da Saúde Mental, é veemente que esse financiamento
antimanicomial na medida em que essa tarefa, tal como
seja direcionado pela qualidade dos trabalhos realizados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008
Coelho, M. • A dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
e efetivo apoio às pessoas com sofrimento psíquico,
idéias e opiniões, pois o trabalho realizado é de todos
promovendo uma política de cura que garanta a disse-
e diz respeito aos processos de subjetivação e interação
minação do Movimento da Luta Antimanicomial na
de todo o grupo, ao passo que cria uma concretude
cultura.
para esse processo, tornado visível justamente no fazer
Sabemos que no atual estágio do capitalismo, no
artístico, na arte.
qual técnica e razão se sobrepõem à subjetividade e ao
Assim, hipotetiza-se, a partir da experiência da
sentimento, as artes podem transformar essa situação em
Companhia Experimental Mu...Dança que, além da qua-
criação para a autodeterminação. Nesse contexto a arte
lidade técnica dos trabalhos realizados na dimensão so-
se mostra um meio de conhecimento, instrumentos de
ciocultural da reforma, o que garante a essas experiências
aprendizado e, por ser uma ‘ação’ coletiva, possibilita o
seu verdadeiro envolvimento pelos ideais da Reforma
encontro e a atitude.
Psiquiátrica é, justamente, a existência da ‘ação’.
Ao falar em ‘ação’, somos remetidos ao conceito proposto por Arendt (2003). Para a autora, a ‘ação’ é a única atividade exercida diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. Para que ela ocorra, é necessário que exista um ‘espaço público’, ou seja, um espaço correspondente à condição humana da pluralidade. Um espaço em que ‘iniciativa’ e ‘palavra’
R E F E R Ê N C I A S
circulem, conferindo a todos o mesmo direito de expressar suas diferenças na construção coletiva. A ‘ação’ é a condição para a vida política, a condição necessária para que os sujeitos sejam protagonistas de seus papéis como zoon politikon2 na construção coletiva de transformações das realidades humanas. A ‘ação’ se consolida, então, como a condição humana fundamental. Se pensarmos que a construção do ‘espaço público’ é justamente proporcionada por um espaço horizontal e criativo onde as subjetividades circulam, podemos afirmar que a experiência de criação artística coletiva pode ser uma tentativa de construção de ‘espaço público’, ou seja, de experimentação da ‘ação’, a principal característica dos homens. A criação artística coletiva proporciona aos envolvidos a experiência da ‘ação’. Todos sabem que podem tomar a ‘iniciativa’ da ‘palavra’ para colocarem suas
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Animal Político
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva The territorial action of the Centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature
Renata Martins Quintas Paulo Amarante 2
1
Psicóloga; mestre em Saúde Pública
RESUMO Tomou-se como campo de investigação um Centro de Atenção
pela Escola Nacional de Saúde Pública
Psicossocial (CAPS), situado no município do Rio de Janeiro, para verificar como
1
da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/ Fiocruz).
se organiza o seu cotidiano, investigando as possibilidades de suas ações tanto no
[email protected]
seu interior quanto em relação ao território. Foram eleitas como categorias de análise: a responsabilidade pela demanda, a porta aberta, a atenção às situações
2
Doutor em Saúde Pública, pesquisador
titular da Ensp /Fiocruz. [email protected]
de crise e o trabalho territorial, por estas características se articularem em um serviço substitutivo. Utilizou-se de observação participante e de entrevistas semiestruturadas com profissionais do serviço. A investigação ressalta a importância de chegar ao cotidiano deste dispositivo um entendimento das transformações que pode operar. PALAVRAS-CHAVE: Território; Serviço substitutivo; CAPS; Reforma Psiquiátrica.
ABSTRACT The Psychosocial Attention Center (Caps) in the state of Rio de Janeiro, Brazil, was taken as a field of investigation in order to verify how its everyday praxis is organized, investigating the possibilities of its actions, either inside the institution or in relation to the territory. It was elected as analysis category the responsibility towards demand, the open door, the attention to crises situations and the territorial work, for these characteristics are articulated to a substitutive service. A participant observation was used as well as semi-structured interviews with some professionals who work in the CAPS. The investigation emphasizes the importance of making the everyday work reach an understanding of the transformations it can operate. KEYWORDS: Territory; Substitutive services; CAPS; Psychiatric Reform.
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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
I N T R O D U ç ão
A capacidade do Caps em substituir o manicômio deve estar articulada ao modo com que a sociedade lida com a diferença e como representa a loucura na era da supremacia da razão. Trata-se, portanto, da quantidade de forças que o Caps pode mobilizar, e que o torna capaz
A Reforma Psiquiátrica, no Brasil, constitui-se de
de operar uma revolução na forma como que se lida com
processos com características locais, envolvendo lutas
a loucura na atualidade. Portanto cabe aqui a pergunta:
sociais pela transformação do modo de concepção da
do que se trata ao se constituir um Caps? E, uma vez que
loucura e como lidar com o dito louco. Luta-se tam-
é no território onde essas forças configuram o imaginário
bém, para transformar o modo como a Psiquiatria, em
e concretizam relações, torna-se estratégico indagar a
nome da razão, permite-se categorizar, trancar e tratar
cerca do que pode um Caps em relação ao território.
a loucura, em relação à articulação e invenção de possi-
O objetivo da pesquisa foi caracterizar o funcio-
bilidades de inserção social para as pessoas que sofrem
namento do Caps no que diz respeito às novas práticas
com transtornos mentais. Além disso, compreende,
assistenciais, verificando sua capacidade de articular
ainda, um processo permanente de utilização de jogos
ou não às características do território, como indicativo
de forças que engendram saberes e poderes, e configuram
de sua capacidade de promover uma transformação na
a sociedade em que se vive.
relação da sociedade com a loucura. Não se propôs uma
O referencial teórico fornecido pela Psiquiatria De-
avaliação do Caps, mas contribuir com a compreensão
mocrática Italiana e pela experiência santista de Saúde
da noção de serviço substitutivo, a partir do conjunto
Mental introduz serviços que atuam como substitutivos
de ações que sua atuação territorial possibilita.
ao modelo manicomial, por promoverem rupturas em relação ao modo de funcionamento centrado do hospital psiquiátrico. Enquanto conjunto de referências sociais, de códigos de funcionamento intrapessoais
DESENHO METODOLÓGICO
que conformam um imaginário e uma realidade social que inclui ou exclui o diferente, o território é palco de
Trabalhou-se com a abordagem qualitativa, que de
exercício para a transformação cultural em relação ao
acordo com Minayo (1993, p.10), possibilita “incorpo-
fenômeno da loucura.
rar a questão do significado e da intencionalidade”, per-
No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS),
mitindo evidenciar importantes questões que se fazem
o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) surge como
presentes na construção cotidiana do Caps e definem sua
promessa de composição de uma assistência mais
tomada de posição em relação ao território.
articulada ao território (Portaria 336 de 19/02/02),
Após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesqui-
virtualmente capaz de conhecê-lo em suas peculia-
sa, foi obtida permissão para realizá-la tanto no serviço
ridades, de lidar com as necessidades de seus usu-
de Saúde Mental pesquisado quanto na Coordenação
ários, com as demandas que se produzem, enfim,
da Área Programática.
de compor com as forças do território em favor da
Para caracterizar o funcionamento do Caps em
autonomia, a fim de que se encontrem soluções ao
relação às práticas assistenciais, foi necessária a inserção
sofrimento psíquico.
em campo, tendo como instrumentos de coleta de dados
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
a observação participante e as entrevistas realizadas com os profissionais do serviço.
A partir dos dados obtidos na observação, foram elaboradas perguntas que permitiram colher dos entre-
A estada no serviço ococrreu por um período de
vistados suas opiniões acerca dos temas pretendidos.
quatro meses. Neste intervalo de tempo, buscou-se
Para isso, utilizaram-se perguntas disparadoras, no
adentrar gradativamente nos espaços de atuação dos
intuito de deixar que os entrevistados discursassem
profissionais, na medida em que havia consentimento.
livremente sobre os temas de interesse, expondo, por
A observação foi guiada por um roteiro que con-
meio das associações de idéias, os sentidos que dão às
templava aspectos como: a estrutura física do serviço;
suas práticas no Caps.
seu funcionamento rotineiro; a dinâmica de equipe; as
Foram realizadas seis entrevistas, no período de
relações construídas no interior do Caps, com demais
agosto a novembro de 2005, concedidas no local de
atores e instituições do território.
trabalho dos entrevistados. Os entrevistados, pela Re-
Procurou-se, também, desenvolver o hábito de
solução 196/96, concederam livre e esclarecidamente
estar no Caps de diversas maneiras, isto é, ao expe-
seus depoimentos, conforme o termo de consentimento
rimentar o lugar de alguém na sala de espera, nas
livre esclarecido.
discussões da equipe de profissionais no espaço de su-
As categorias de análise foram retiradas de Nicácio
pervisão, ao observar as interações entre os profissionais
(2003), que entende a proposta de um serviço substi-
e destes com a clientela, nas oficinas, assembléias, e em
tutivo como “serviço no/do território”, quando nele se
atividades e reuniões fora do Caps. No entanto, foi
articulam características, como a responsabilidade pela
possível perceber que havia um limite para a presença
demanda, a porta aberta, a atenção às situações de crise
em alguns espaços.
e o trabalho territorial, que levam a uma relação com
As entrevistas fizeram-se necessárias tanto para
as pessoas que nele vivem, quais sejam. Estes princípios
abrir o campo de explanação sobre situações não
expressam e compõem a transformação da prática tera-
acompanhadas como para aprofundar o nível de in-
pêutica e efetivam a substituição da lógica manicomial,
formações e opiniões quanto à construção do serviço
ao constituírem serviços fortes.
(Minayo, 1993).
Para Rotelli (2001), o serviço torna-se ‘forte’,
As anotações feitas no diário de campo foram
territorial ou substitutivo, ao reconhecer o usuário
separadas por categorias, as quais foram entrecruzadas,
em sua complexidade, mas também considerando sua
promovendo uma sistematização que permitiu a formu-
singularidade e sua diversidade, elaborando respostas
lação de alguns temas principais, que, no final, compu-
dinâmicas e individualizadas que tentam preservar e
seram a análise dos resultados, além do levantamento
ampliar a riqueza da vida das pessoas.
de hipóteses esclarecidas nas entrevistas. Optou-se por entrevistas abertas, por possibilitarem aos entrevistados discorrer livremente sobre os temas de interesse para a pesquisa, favorecendo a elaboração
A PORTA ABERTA
de um discurso em que pudessem expressar suas idéias, crenças, maneiras de atuar e de conceber o Caps. As
A porta aberta delineia novas bases na relação com
entrevistas foram realizadas após algum tempo de par-
o usuário, em que a acessibilidade e a permeabilidade
ticipação no dia-a-dia do Caps.
do uso do serviço, por parte de qualquer pessoa, tra-
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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
duzem uma flexibilidade em sua organização. Manter
era autorizado ou não a participar, o que evidencia
a porta aberta implica, na capacidade plástica, de aco-
que o serviço não funcionava segundo a dinâmica da
lher a demanda, de forma a garantir atenção a todas
porta aberta.
as pessoas que chegam ao serviço, oferecendo uma possibilidade de resposta a sua questão, mesmo que seja sua escuta apenas. Na experiência santista, a ‘porta aberta’ traduz um conjunto de relações institucionais, num movimento contínuo de questionar e eliminar a contenção concreta e simbólica das instituições asilares, pelas quais se dava o controle do paciente, que: [...] requer uma dinâmica de trabalho que distante de concepções burocráticas seja capaz de operar no movimento de ordem-desordem, instituinte-instituído na qual as ações são construídas, desmontadas, reconstruídas a partir das necessidades dos usuários em seu contexto de relações [...]. (Nicácio, 2003, p.221).
Esse paciente foi indo por conta própria. Ele sabia que tinha oficina do papel tal dia, ele vinha na oficina do papel. E aí, quando a gente se deu conta, ele tava freqüentando várias atividades no Caps. Até ele levou a criar uma regra na equipe, de que paciente de recepção não poderia participar das atividades ainda, só depois que já tivesse cadastrado, que tivesse projeto terapêutico que podia participar, porque meio que fugiu das nossas rédeas. (T2). A porta aberta também significa a abertura para o outro, no reconhecimento e acolhimento dos usuários e ao responsabilizar-se pelos problemas de saúde da região, numa relação em que Campos (1994) estabelece entre um “coeficiente de acolhida” e a “plasticidade” do modelo de atenção, quando se trata
O dia-a-dia do serviço evidenciou a falta da com-
de acessar, junto com o paciente, toda uma variedade
preensão da noção de porta aberta. Observou-se, por
de problemas da demanda, que incluem questões
meio da fala de um entrevistado, um ritmo ambulato-
sociais, econômicas, culturais, além da inconstância
rial de funcionamento, com uma freqüência maior de
dos recursos disponíveis.
técnicos trabalhando nos consultórios ou em oficinas: “a gente ainda tá preso a esse modelo do atendimento, da consulta, os grupos” (T3). Poucas pessoas freqüentavam o serviço de forma
RESPONSABILIDADE PELA DEMANDA
diária e as diversas atividades funcionavam com poucos, sendo quase sempre com os mesmos pacientes. A
A tomada de responsabilidade aponta para a
presença das famílias restringia-se ao grupo familiar ou
ação no território da vida dos pacientes, a partir da
ao acompanhamento às consultas, e não foi observada
necessidade de assumir uma interação ampla e direta
a presença de pessoas da comunidade, mesmo em mo-
com a condição do paciente e das suas relações, e
mentos mais coletivos, como em festas.
chegando aos seus ambientes de vida (Dell’acqua,
A dinâmica do serviço deixava pouco espaço para
1991). O serviço não é o único local de exercício da
a invenção de ações por parte dos pacientes (mesmo
tomada de responsabilidade, pois a prática terapêu-
aquelas requeridas para cada caso), funcionando com
tica é orientada para o enriquecimento da existência
atividades padrão: consultas e psicoterapias individuais,
global, complexa e concreta dos usuários, que os faz
oficinas, visitas domiciliares, assembléia e supervisão.
sujeitos ativos nas relações dentro e fora do serviço
Havia uma repartição dos espaços em que o paciente
(Rotelli, 2001).
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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
Ao contrário da direção da prática em relação aos
depende da disponibilidade da equipe para situações que
ambientes de vida dos usuários dos serviços substituti-
desafiam novas formas de comunicação entre os envolvi-
vos, observou-se uma tendência na dinâmica do Caps
dos, “sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou
de trazer para o serviço as situações de trabalho com
mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção” (Dell’acqua,
seus pacientes. No caso de uma paciente, a falta de um
1991, p.61). Lidar com a crise requer a permissão de
trabalho mais articulado com a vizinhança e os fami-
entrada em cena de todos que participam do contexto
liares resultou em ela ser vista como ‘monstro’ por uma
relacional dos usuários.
pessoa próxima, que exigiu que a tirassem dali e que a
Segundo os discursos dos profissionais, a forma
internassem. A dificuldade em conviver com a diferença
de o serviço lidar com a crise era ruim, acentuada pela
de seu comportamento tornou-se insuportável para sua
falta de condições materiais. Evidenciava-se o mau fun-
mãe, que optou por sua internação já na primeira reação
cionamento em equipe e o medo dos profissionais em
de agressividade da filha.
lidar com o paciente em crise e articular possibilidades
Assim como o olhar de estranhamento da mãe,
de atuação que substituíssem a internação.
o olhar do serviço enxergava a doença, algum retardo mental a junto à psicose, deixando de encontrar soluções terapêuticas que ampliassem a rede de relações para a aceitação e promoção da diferença. A hospitalidade oferecida pelo serviço deixou de mobilizar “uma quantidade maior de energia humana e recursos institucionais” (Dell’acqua, 1991, p.65).
A ATENÇÃO DO Caps ÀS SITUAÇÕES DE CRISE A capacidade de responder de forma diversa às situações de crise se insere nas práticas dos serviços substitutivos como capacidade cotidiana de sustentar a atenção à crise, pelo exercício do trabalho em equipe, e ao articular tutela, direitos e responsabilidade (Nicácio, 2003). A complexidade envolvida nas situações de crise
Precisava não a mesma estrutura que o hospital tem, mas o mínimo de estrutura pra poder ficar com uma pessoa que está de fato agitada. Porque assusta, né?, ameaça de bater, fica falando sem parar.[...] As pessoas chamam logo a ambulância. Muito rapidamente, é a 1ª coisa que se pensa. Você pode tentar fazer outras coisas, você pode chamar a ambulância e paralelamente ir tentando abordar essa pessoa.[..] Tem situações com colegas onde a gente ficou lá embaixo e as pessoas olhando da escada de cima. (T3). A resposta às situações de crise está relacionada à organização das práticas do serviço, em sua capacidade de acolhimento e reconhecimento que se constitui como alternativa à internação psiquiátrica: Depende de cada equipe, de como o serviço se organiza. (...) Acho que essa é a questão da relação com o território, o cara ao invés de ir pra emergência, vem pro serviço porque ele sabe que pode ser resolvido ali ou acolhido, esse sofrimento foi acolhido e foi conduzido de alguma forma. (T4).
demanda a criação de estratégias de contato, pautados na possibilidade de transformação da intervenção vio-
Evidenciou-se que a forma como o Caps lida com
lenta, ressignificando os conflitos em direção à invenção
a crise guarda relações com a orientação teórica que
de saúde. A base para tais possibilidades constitui-se na
organiza suas práticas e com o movimento de sair para
relação de contrato e de reciprocidade com o usuário, e
atuar nos espaços de vida dos usuários.
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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
A RELAÇÃO COM O TERRITÓRIO
localizadas no território, estabelecendo parcerias para venda de trabalhos confeccionados pelos pacientes: “É
O território é o local onde deságuam todas as transformações ocorridas no interior do serviço. A interven-
algo que tá no projeto, mas que na prática precisa de disponibilidade pra isso.” (T2).
ção precisa chegar às instâncias reais e imaginárias para
O questionamento de que o Caps possui de fato
se disseminar a norma e a exclusão, e passar ao âmbito
um trabalho no território se deve ao fato de que a ação
da política, do direito, das legislações, do trabalho e da
no território é mais do que a presença física do serviço
cultura. Colocar-se assim em movimento, articulando-
na região. O discurso de um profissional chama atenção
se no convívio entre as pessoas, é o que Santos (1988)
para uma necessidade de entender o trabalho fora do
chama de “território da vida”, território onde se dão as
Caps, a partir da ótica da inserção social, e reconhece que
trocas materiais e simbólicas e as relações sociais.
uma atuação nesse sentido ainda é incipiente no Caps.
Para Nicácio (1994), o trabalho territorial é construído na articulação de ações diretas e indiretas, abrindo espaços para a ressignificação do fenômeno da loucura e o reposicionamento sociopolítico do paciente na sociedade. A incorporação da noção de território e o alcance das questões que ela implica indicam a assimilação de mudanças concretas ao mesmo tempo na sua dinâmica e em relação à sociedade. O entendimento que traz a relação do Caps com o
O fato de você estar lá fora com eles não significa que eles estejam integrados. Se a gente só coloca eles pra vender, não incentiva uma crítica a respeito disso, por exemplo, só vai vender nos fóruns de saúde mental, a gente não pode achar que isso é o externo propriamente dito. O externo é o cara poder pôr a barraquinha dele, ou ser um ambulante como um outro, com as dificuldades que ele tem. A gente tendo que ajudar da forma que ele precisa, mas não estar tão dependente de situações como essas. (T3).
território é apontado na fala de um profissional quando diz que “A gente tá tentando fazer esses trabalhos mais
O trabalho territorial precisa avançar mais, para
externos” (T1). Existe a consciência de que o trabalho
chegar à possibilidade de convívio social, fora da pro-
do Caps em articulação com outros atores pode mudar a
teção institucional. Trabalha-se para a construção de
percepção que se tem do sofrimento mental, a começar
um novo pacto social, que cria campos de troca entre
da própria família. No entanto, é freqüente, nas falas da
os diversos segmentos da sociedade, e interfere nos
maioria dos entrevistados, a menção à carência de recursos,
processos de exclusão social, além de possibilitar uma
que lhes dificulta sair do ambiente de trabalho, apesar do
nova ética, “em cujo espaço seria possível reciclar tudo
reconhecimento de que o Caps deve atuar no território:
aquilo que seria descartável na lógica de uma sociedade excludente” (Barros, 1994, p.103).
É uma cilada também, que os Caps têm que ter o cuidado de sair, porque o trabalho te toma, né? Tem casos muito graves que se deixar você fica só dentro do Caps! E a idéia é estar ocupando espaço no território. Então esse é um desafio. (T1).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação com o exterior, no entanto, ainda se
Percebe-se, por meio da observação participante,
reduz às iniciativas pessoais de alguns poucos profissio-
assim como pelas falas dos profissionais entrevistados,
nais, que procuram trabalhar com algumas instituições
que o serviço pesquisado tem-se utilizado tanto de
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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
iniciativas diretas como indiretas. São realizadas visitas
mentalmente, a luta contra o que fundamenta a insti-
domiciliares, acompanhamento aos pacientes internados
tuição, seja ela psiquiátrica ou não. Trata-se de dar voz
em instituições psiquiátricas, viabilização de atendimen-
àqueles que tradicionalmente encontram-se na posição
to na rede de saúde, além de passeios, e negociações com
de inferiorizados, e lutar pela sua liberação, uma vez que
instituições de lazer, educação, trabalho, e da rede de
a desinstitucionalização é, em última instância, “a luta
saúde, como ambulatórios de Saúde Mental da região,
pela liberação do homem” (Venturini, 2003, p.165). A
nos casos de referência e contra-referência.
desinstitucionalização é o questionamento dos lugares de
No entanto, no Caps pesquisado, a temática da atu-
produção de valores da sociedade, é uma luta política.
ação territorial é pouco presente nas discussões dos técni-
Faz-se necessário colocar em questão a própria
cos, no cotidiano do serviço, fruto de uma dinâmica insti-
normalização do espaço que constitui o Caps enquanto
tucional no qual as atividades encontram-se centradas na
instituição. Na grande maioria das vezes, este dispositivo
clínica tradicional. Ao mesmo tempo, algumas atividades
vem funcionando como um espaço organizado, de ma-
e críticas ensaiam movimentos de questionamento desse
neira procedimento-centrado, de forma em que as práticas
funcionamento. No entanto, não há um envolvimento
e as relações interpessoais se localizam no seu interior,
suficiente dos profissionais para criar uma participação
numa dinâmica centrada na intervenção medicamentosa
da equipe nos contextos reais de vida da clientela, e que
e psicoterapêutica, que tende a produzir uma cronicidade
mobilizem pessoas diversas na articulação de redes sociais,
dos próprios profissionais dentro do serviço.
responsabilidades e potenciais de ação. Para Basaglia, o território:
Apesar do tempo de Reforma Psiquiátrica empreendida no país, entende-se que a superação do manicômio não se reduz a uma modernização da assistência, mas se
[é o] lugar da expressão plena das contradições de classe, espaço real que tornaria mais clara a própria colocação e mais natural o resultado das alianças. (2005, p.242).
trata de uma luta contra os mecanismos de controle da população, que precisa ser melhor trabalhado no cotidiano dos atores da Reforma Psiquiátrica. Essa percepção acerca da capacidade de invenção que um serviço precisa
A partir de então, coloca-se como serviço que convive com o manicômio e o realimenta, quando suas práticas não alcançam a reprodução social de sua clientela. É justamente essa discussão política e estratégica da relação com o território que se encontra ainda pouco presente no entendimento do lugar do Caps, conforme observado, instituindo um serviço que se coloca como intermediário na relação com o hospital psiquiátrico. A gente não quer ser chamado de um serviço substitutivo. A gente tá longe disso. A gente ainda é uma coisa mais ou menos alternativa, no sentido que a gente não substitui o hospital, a gente recorre à internação com muita freqüência. Então não há essa coisa da apropriação do espaço. (T3).
ter para substituir a lógica psiquiátrica ainda não chegou ao ponto de transformar suas práticas e construir serviços de Saúde Mental que se coloquem como substitutivo. Para Venturini, a presença de usuários, familiares, diversos cidadãos e a construção de um clima de cooperação social “constituem-se em indicadores rigorosos da eficácia da desinstitucionalização” (2003, p.173). Desse ponto de vista, o serviço precisa redefinir sua prática, flexibilizar-se no exercício de seu poder, ao abrir-se para permitir o conflito dos atores e incorporar uma capacidade de negociação que considere as necessidades de sua clientela. A penetração no território acontece quando os ser-
A desinstitucionalização não se restringe à retirada
viços se organizam para acolher e trabalhar a pessoa em
de pacientes da instituição psiquiátrica. Ela é, funda-
sua existência concreta, o que impulsiona a um trabalho
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permanente de inscrição na dinâmica do território, ao identificar os atores que estão relacionados às ações de reconstrução de relações com a loucura e ultrapassando iniciativas isoladas, como sair em busca de determinada parceria para alguma ação pretendida. Da arquitetura hospitalar, que exerce seu poder de controle e de formação de corpos dóceis pela anulação das possibilidades de existência própria, ao espaço aberto do território, o tema ainda é a convivência com um poder invisível e onipresente, e a ampliação da
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capacidade de singularização1 de pessoas e de grupos. Trata-se mesmo de facilitar rebeldias cotidianas, revoluções moleculares, de refazer territórios de resistência e existência, não totalmente imunes à ordem dominante,
Giovanella, L.; Amarante, P. O enfoque estratégico do planejamento em Saúde Mental. In: Amarante, P. (Org.). Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. p. 113-149
mas poder ampliar a função de autonomização dos grupos, tornando-os mais hábeis quanto à capacidade de operar seu próprio trabalho de semiotização, de cartografia, de se inserir em níveis de relação de força local, de fazer e desfazer alianças, etc. (Guattari; Rolnik, 1986, p. 46). Em relação a isso, há perseguição dos operadores dos serviços substitutivos, chamando de invenção de saúde e de vida.
Guattari, F.; Rolnik, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. Minayo, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1993. Nicácio, F. Utopia da realidade: contribuições da desinstitucionalização para a invenção de serviços de Saúde Mental. 2003. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 2003. __________. O processo de transformação da Saúde Mental em Santos: desconstrução de saberes, instituições e cultura. 1994. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – PUC-SP, São Paulo, 1994.
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Por singularização Guattari e Rolnik (1986) entendem a capacidade de captar os elementos da situação, de construir as próprias referências práticas e teóricas, saindo da dependência total em relação ao poder global, para ler a própria situação e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criação e de autonomia.o e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criaç, e de ter a capacidadestmento dos tles atores que dele se util 1
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QUINTAS, R.M.; AMARANTE, P. • A ação territorial do Centro de Atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintoma Group of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms
Milena Leal Pacheco Luiz Ziegelmann 2
1
Psicóloga com Residência Integrada
RESUMO A dependência química envolve aspectos sociais, ocupacionais,
em Saúde (RIS) com ênfase em Saúde
econômicos, políticos e psíquicos, e necessita, portanto, de diferentes olhares
1
Mental no Grupo Hospitalar Conceição (GHC).
sobre a vida dos sujeitos para que haja uma aproximação de um cuidado
[email protected]
integral. Entretanto, durante muito tempo, os modelos de atenção em Saúde Mental centraram-se na atenuação de sintomas, deixando em segundo plano
2
Médico psiquiatra do Hospital Nossa
Senhora da Conceição (HNSC) do
outras questões vinculadas à existência. Neste artigo, objetivou-se refletir sobre
GHC.
as possibilidades existentes para a clínica de grupos, dentro de um Centro de
[email protected]
Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (Caps ad), por meio do relato de experiência com um grupo terapêutico. Utilizaram-se os conceitos de produção de subjetividade, clínica, desejo, saúde, cuidado, integralidade e grupo dispositivo para problematizar alguns relatos dos participantes. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Centro de atenção psicossocial; Psicoterapia de grupo
ABSTRACT Chemical dependency encompasses social, occupational, economic, political and psychical aspects and, therefore, it demands numerous views of people’s life in order to provide full care, as much as possible. However, for a long time, attention on Mental Health standards focused on diminishing symptoms, while other issues concerning existence were lagged behind. In this paper, we have aimed at reflecting on opening up opportunities for group clinic at a Center of Psychosocial Alcohol e drugs (Caps ad) by means of the report of an experience with a therapeutics group. We considered the concepts of subjectivity production, clinic, desire, health, care, integrity and groups of devices with the purpose of questioning some participants’ speech. KEYWORDS: Mental Health; Psychosocial care center; Psychotherapy, group
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Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
I N T R O D U ç ão
usuárias de álcool e outras drogas e a seus familiares. Por intermédio de cuidados de atenção diária, os Caps ad possibilitam cuidados integrais à saúde, propondo uma nova abordagem, ligada ao social, do sofrimento psíquico, distinta do modelo manicomial, que acaba sendo
Este estudo é fruto de uma experiência clínica com
gerador de exclusão e estigma social (Brasil, 2004B).
um grupo de adultos que se encontrava em tratamento
Embora historicamente a problemática do uso, do
para dependência química1 em um Centro de Atenção
abuso e da dependência de substâncias psicoativas tenha
Psicossocial Álcool e Drogas (Caps ad) de Porto Alegre,
sido abordada por um modelo médico-centrado, em 2003,
em 2006, durante meu primeiro ano de Residência In-
a Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool
tegrada em Saúde (RIS) com ênfase em Saúde Mental
e Outras Drogas foi apresentada pelo Ministério da Saúde.
no Grupo Hospitalar Conceição (GHC)2.
Esse documento assinala a necessidade de se facilitar o
O Caps ad do Hospital Nossa Senhora da Conceição
acesso de usuários ao tratamento, de se ampliar o olhar dos
(HNSC) surgiu com o objetivo de oferecer um cuidado
profissionais, bem como considerar os processos subjetivos,
contínuo às pessoas, com idade a partir de 12 anos, que
as heterogeneidades, as multiplicidades e as particularidades
apresentassem graves problemas decorrentes do uso de
e diferenças dos sujeitos (Brasil, 2004A).
substâncias psicoativas e/ou do comprometimento sócio
Em março de 2006, eu e um colega, psicólogo e
familiar tais quais: intenso sofrimento psíquico, dificul-
residente em Saúde Mental, fomos convidados pela
dades no convívio social e familiar, escassez de recursos
equipe do Caps ad para coordenar o chamado Grupo de
sociais, políticos e econômicos, entre outros. Inscrito
Sentimentos. Com abordagem centrada nos sujeitos e
na proposta de descentralização e territorialização do
suas relações, a proposta foi a de criar um espaço coletivo
Sistema Único de Saúde (SUS), esse serviço é destinado
onde os usuários pudessem refletir sobre suas vidas além
à população das regiões Norte/Eixo Baltazar, Nordeste
do uso dessas substâncias, buscando outros sentidos em
e Noroeste de Porto Alegre/RS, e fornece atendimento
suas experiências. O Grupo de Sentimentos foi iniciado
individual e grupal aos dependentes e seus familiares, por
com oito homens e quatro mulheres, mas alguns pa-
intermédio de equipes multidisciplinares composta por
cientes optaram por deixar o espaço e permanecer nos
profissionais das áreas de Medicina, Psiquiatria, Psicologia,
atendimentos individuais em outros grupos de apoio ou,
Serviço Social, Terapia Ocupacional e Enfermagem.
mesmo optaram por se desvincularem do Caps.
3
Os Caps ad são considerados a principal estratégia
As falas apresentadas neste artigo são de seis adultos:
da Reforma Psiquiátrica para o desenvolvimento de ser-
cinco homens e uma mulher, com idade entre 35 e 60 anos,
viços substitutivos em Saúde Mental. Esses serviços são
pertencentes a camadas populares e, com exceção de um dos
voltados às pessoas portadoras de sofrimento psíquico,
integrantes, que não estavam empregados no momento.
Considera-se dependente químico uma pessoa que faz uso abusivo de álcool e/ou drogas, que apresenta problemas sociais, psíquicos, familiares, ocupacionais, econômicos e políticos recorrentes e que sente dificuldade em reduzir ou suspender tal uso (Brasil, 2004A). 1
O GHC é uma instituição federal considerada eminentemente pública, uma vez que a população atendida é, em sua totalidade, usuária do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, possui quatro núcleos hospitalares: Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor e Fêmina, mais doze Postos de Saúde Comunitária (Brasil, 2007). 2
O território não é (apenas) o bairro do sujeito ou uma área geográfica, mas o conjunto de referências socioculturais e econômicas que permeiam o cotidiano do sujeito. É constituído, sobretudo, pelas pessoas que o habitam, com seus conflitos, interesses e relações (Brasil, 2004B). 3
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No primeiro dia de encontro, após nos apresen-
oportunidades durante a vida. Benevides e Joseph-
tarmos, solicitamos que cada um dos presentes fizesse
son (2006) localizam, nesse período, o surgimento
o mesmo. Todos os participantes revelaram o nome e
de um paradigma enraizado na individualização, no
o tipo de droga que utilizavam. Dissemos a todos que
autocentramento e na totalização, denominado modo-
a forma como eles haviam se apresentado “não nos
indivíduo. Marcado por uma oposição entre indivíduo
contava quase nada a respeito de suas vidas” e apenas
e sociedade, esse modo-indivíduo visa corpos úteis,
mostrava que a existência deles se restringia a uma de-
produtivos e objetos de cuidado, determinando certas
terminada substância. Apresentando-se dessa forma,
formas de estar, sentir, pensar, desejar e viver o mundo
(re)afirmavam a idéia de que suas identidades eram
(Benevides, 1994).
constituídas predominantemente pela dependência de
Diferentemente dessa idéia da subjetividade centra-
determinada substância. O grupo ficou surpreso com
da no “eu”, as produções de subjetividades, ou modos
tal afirmação, já que, segundo um dos integrantes,
de subjetivação, são fabricadas e modeladas no registro
“isso é tudo o que as pessoas querem saber da gente
social (Benevides, 1995). Essas produções se iniciam
[...] a única coisa que importa é se eu bebi ou não, às
no nascimento e envolvem tudo aquilo que produz
vezes isso acontece até mesmo aqui no Caps”.
sentido, como o contato com o ambiente familiar,
A partir dessa experiência e de trechos das falas,
a relação com amigos, afetos, música, arte, cinema,
verifiquei o modo como um cuidado que aborda as-
política, ou seja, expressam-se através do modo como
pectos além dos sintomas de dependência contribui no
os indivíduos pensam, sentem e agem em relação a si,
tratamento, refletindo sobre as aberturas produzidas na
ao outro e ao mundo. É tudo aquilo que singulariza
clínica de grupos. Assinalam-se momentos em que o
e diferencia e são processadas no encontro do sujeito
grupo buscou compartilhar diferentes situações vividas,
com o ambiente social, resultando tanto em marcas
produzir outras subjetividades e desmitificar alguns
singulares como em valores compartilhados na cultura,
modos de ser e viver. Este estudo foi fundamentando
na história, na política e no coletivo. Segundo Benevides
em idéias, de autores como Birman, Rolnik, Benevides,
(2001), tal noção de subjetividade, não-dicotomizante,
Brasil, Naffaf Neto, Foucault, entre outros, que dizem
impossibilita uma separação entre o que é do indivíduo
respeito a produções de subjetividade, clínica, cuidado,
e o que é do social.
desejo, integralidade na atenção e grupo dispositivo.
Miranda (2000) afirma que é possível conceber as produções subjetivas a partir de dois pólos. No primeiro, os indivíduos apresentam certa passividade em relação às instituições produtoras de subjetividade como
PRODUÇÕES DE SUBJETIVIDADE
a família, o Estado, o trabalho, o sofrimento psíquico, repetindo suas formas de agir e pensar. No segundo,
O surgimento do Estado moderno, oriundo de
os indivíduos e os grupos criam “processos múltiplos e
conjunturas investidoras na anulação das diferenças
heterogêneos, que engendram relações livres e criativas”
entre os sujeitos, como o Iluminismo, a Revolução
(p. 41) assumindo, dessa maneira, suas existências de
Francesa, a Revolução Industrial e a Psicologia Com-
forma singular, criando diferentes valores, novas formas
portamental, inseriu na sociedade a idéia de que
de pensar e agir e tornando, por fim, a produção de
todos os indivíduos são iguais e possuem as mesmas
subjetividade singularizada.
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Grupo como dispositivo de vida em um Caps ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
Para Benevides (1994) o corpo-indivíduo tornou-
vestir, tratar” (Bezerra Júnior, 2001, p. 29) aqueles
se objeto de controle e vigilância, impulsionando a
que eram considerados loucos, marginais, bêbados
busca de um cuidado de si. Inspirada em pensamen-
e indesejados pela sociedade. Ou seja, nssa época, as
tos foucaultianos, a autora afirma que os modos de
intervenções serviam apenas para impedir novas pro-
subjetivação tanto constroem determinados objetos
duções subjetivas.
de interesse, como afirmam formas de existir:
No caso da Psicologia, Medeiros, Bernardes e Guareschi (2005) afirmam que ela surgiu com o intuito
a cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem sujeitos-objetos, necessidades e desejos. (p. 28). Guatarri e Rolnik (1986) assinalam que as subjetividades são produzidas também pelas Ciências Humanas, porque são elas que criam, juntamente com a Medicina, a possibilidade de investimento em formas de viver a partir do modo-indivíduo. Essas ciências podem tanto incentivar a manutenção de processos subjetivos homogeinizados sem criar saídas para a singularização, como investir em modos de subjetivação heterogêneos. No caso do uso nocivo do álcool e outras drogas, mesmo com a implementação da Reforma Psiquiátrica e da
de “descobrir o que tornava os seres humanos sujeitos da razão.” (p. 265), criando uma série de recursos para o indivíduo governar a si mesmo. Esses recursos – avaliações, exercícios comportamentais, falar de si – eram (e ainda são) utilizados, muitas vezes, para que o indivíduo soubesse (saiba) quem ele é e entendesse (entenda) como e por quê age em determinadas circunstâncias: “tudo para atentar para as próprias condutas, controlar os excessos, responsabilizar-se por seus atos.” (Medeiros; Bernardes; Guareschi, 2005, p. 266). Nesse caso, o foco não está na saúde e sim na materialização de uma interioridade do indivíduo para subsidiar, segundo Bernardes (2007), formas de poder sobre a vida.
Política Ministerial, o sujeito, nesse caso dependente quí-
Para Foucault (1992), a invariância da clínica
mico, é inserido em um registro social que o individualiza
aparece na história à medida que os modos de ver e de
– ‘Eu sou alcoolista’ – e o circunscreve em um determinado
sentir são mudados, assim como a própria objetividade
território de existência ainda marcado pelo estigma, pelo
da doença.
preconceito e pela exclusão. Assim, serviços de atenção à
A clínica atual ainda apresenta:
saúde, como os Caps, podem funcionar tanto como mecanismos de controle e vigilância, como de auxílio na criação de subjetividades mais livres, criativas e autônomas. Afinal, como pensar uma clínica produtora de subjetividades?
[...] posturas clínicas que reproduzem, acriticamente, as clássicas dicotomias interior/exterior, consciente/ inconsciente, sujeito/objeto, clínica/política, e tantas outras, porém procurando ajustá-las aos novos tempos. (Neves; Josephson, 2001, p. 99). De acordo com Coimbra (2002), essa clínica se depara com:
CLÍNICA, CUIDADO E INTEGRALIDADE Durante muito tempo as práticas terapêuticas foram utilizadas para “remover, excluir, abrigar, alimentar,
[...] histórias e trajetórias que falam de experiências, aventuras, desventuras, sonhos, utopias, massacres fraquezas, cumplicidades, omissões, convivências. (p. 19).
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Tudo isso envolve os mais diversos processos sub-
As novas concepções de saúde e doença vão ao en-
jetivos. Assim como a contemporaneidade, a clínica é
contro da proposta de integralidade, na qual o principal
atravessada pela complexidade e pela desestabilização
interesse já não é o sintoma, mas o sujeito e seu contexto
e deve ser entendida, segundo Deleuze (1992) como
biopsicossocial. Para Mattos (2001), a integralidade
experiência de desvio, de desestabilização e de crise uma
está relacionada ao ideal de uma sociedade mais justa
vez que acompanha a criação de territórios existenciais,
e solidária, pois sua atenção diz respeito ao cuidado às
através de um caráter processual. Envolve, também,
pessoas, aos grupos e à coletividade em seus contextos
questões individuais e coletivas que interpelam o sujeito
históricos, sociais, políticos, econômicos, culturais e
e seus modos de subjetivação. Esses atravessamentos
também subjetivos.
ocorrem através de movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização do desejo.
Nesse sentido, os espaços terapêuticos podem possibilitar que os sujeitos encontrem novas formas
Desejo, de acordo com Rolnik e Guatarri (1986)
para resolver seus conflitos a partir de outras leituras
é uma potência de criação de vida, capaz de inventar e
de sua própria vida. Naffah Neto (1994) utiliza o ter-
transformar modos enrijecidos de ser, sentir e pensar.
mo “psicoterapia-genealógica” (p. 20) para destacar a
Todo desejo é um devir, que constrói e reconstrói objetos
importância de o terapeuta denunciar tudo aquilo que
e seus correspondentes modos de subjetivação (Rolnik,
empobrece a vida das pessoas, produzindo, juntamente
2006). Na clínica, a manifestação do desejo se dá no
com o paciente, pequenas revoluções no cotidiano. Se-
corpo, é ele que comunica.
gundo o autor, psicoterapia significa, etimologicamente,
O surgimento do SUS e seus princípios (uni-
o “cuidado pela vida” (p. 21), capaz de desenvolver o
versalidade, eqüidade, hierarquização, integralidade,
que Nietzsche chamou de “vontade de potência” (p.
descentralização e participação comunitária) colocou
21): uma “potência autônoma, nos seus movimentos
no cenário da saúde pública outros olhares em relação
de expansão/retração, construção/destruição, enchentes,
ao sofrimento e ao sujeito, abrindo possibilidades para
contração/consonância” (p. 110). Segundo o autor, a
se dar espaço ao que vem do corpo, ao desejo, ao afeto
vida doente é:
e ao impulso para a vida, aspectos esses que, muitas vezes, são capturados pelas convenções que enrijecem e doutrinam certos modos de vida ‘indesejados’ para a sociedade. Além disso, a partir da 8a Conferência Nacional de Saúde, a saúde passa a ser vista não apenas
[...] enredada por valores que a intoxicam, obstruem, empobrecem, necessitando desenvolvimento, soltura, liberdade, para recuperar a sua potência criadora e produzir novas formas. (Naffah Neto, 1994, p. 23).
como ausência de doença ou esbatimento de sintomas, mas como um encadeamento de interações em vários
Assim, tudo aquilo que vem do corpo, os afetos, as
níveis de complexidade interdependentes (Giordan,
intensidades, os desejos, as vontades, os movimentos, é
1998). Sendo assim, saúde e doença passaram a não ser
reprimido e a vida se torna limitada.
conceitos definitivos ou opostos, pois “dizem respeito à
A concepção de clínica acima descrita nos oferece
sobrevivência, à qualidade de vida ou à própria produção
uma abertura para o conceito de cuidado proposto por
de vida” (Ceccim, 2000, p. 28), estando relacionados às
Boff (2000). O autor assinala que o cuidado contri-
condições físicas, psicológicas e sociais; ou seja, o indiví-
bui para a reinvenção. Aquele que cuida, no entanto,
duo torna-se um ser tridimensional e biopsicossocial.
deve considerar a liberdade do sujeito, sua liberdade e
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capacidade de escolha e seu potencial para estabelecer
O uso abusivo de álcool e outras drogas está,
normatizações próprias. Pautado na integralidade, e
portanto, relacionado às produções da atualidade:
não na seleção, aquele que cuida de outrem percebe que
narcisismo, consumismo e imediatismo. O indivíduo
cada sujeito possui necessidades que atravessam campos
busca desesperadamente atingir a plenitude narcísica
múltiplos e singulares; sendo assim, seu olhar precisa ser
através de uma poção mágica que inviabilize o reco-
deslocado da doença, atingindo um conjunto de fatores
nhecimento de sofrimentos e desilusões inerentes
que envolvem a vida.
ao ser humano. Nesse “pacto de morte o valor que direciona o sujeito é um antivalor” (Birman, 2005, p. 23), pois é o não-saber sobre sua existência, alienando-se da vida e do outro por meio de um objeto que
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA
satisfaz e mortifica ao mesmo tempo. Ao encontrar
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
na substância um alívio imediato (e passageiro) para angústias, sofrimentos, desilusões, tristezas, entre
A compreensão ampliada do sujeito oferece, de acordo com Birman (2005), instrumentos para a for-
tantos outros sentimentos despertados, o sujeito se volta para si.
mulação de um pensamento crítico sobre o mal-estar da
No contexto da dependência química, em que os
contemporaneidade e sua forma de expressão: o narcisis-
destinos do desejo ficam autocentrados no indivíduo, é
mo. Segundo o autor, para entender os processos subje-
oferecida uma abertura para a discussão do trabalho com
tivos, é necessário investigar os destinos do desejo.
grupos como uma possibilidade de produção de modos
Nas últimas décadas, no Ocidente, o ‘eu’ passou a assumir uma posição privilegiada na construção de subjetividade. O autocentramento do sujeito no eu, oriundo das noções de interioridade e reflexão construídas no início da modernidade, conjugou-se ao valor da exterioridade e a subjetividade, por sua vez, acabou tendo uma configuração
de vida, como propõe Benevides (1995): Às portas do século XXI, quando observamos o crescente processo de individuação e privatização das práticas sociais e psíquicas, pensar o grupo nos aparece como uma possibilidade de colocar em questão a problemática da economia do desejo, dos processos de subjetivação e, quem sabe, chamar a atenção para a urgência de se criarem laços de solidariedade e alianças de cidadania. (p. 143).
estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica. (Birman, 2005, p. 23). Com isso, o exibicionismo e o autocentramento
O DISPOSITIVO GRUPO
atingiram o valor da solidariedade/alteridade, impedindo que os sujeitos reconhecessem os outros em suas
Os espaços grupais foram utilizados na saúde
diferenças e singularidades. Desse modo, o narcisismo
pública durante muito tempo com o objetivo único
torna-se uma forma de subjetivação tributária de uma
de atender um maior número de pacientes através da
organização social que incita o consumo desenfreado, o
otimização dos recursos humanos. De fato, em um
autocentramento e a necessidade de prazer imediato.
grupo abrangemos um maior número de pacientes. No
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entanto, é preciso refletir sobre a riqueza desses espaços
GRUPO DE SENTIMENTOS:
quando tomados como dispositivos para a saúde.
OUTRAS POSSIBILIDADES
Conforme Benevides (1994) o termo dispositivo indica algo capaz de acionar um processo de decompo-
A proposta de trabalho com o Grupo de Sentimentos
sição, produzir novos acontecimentos e romper com o
já aparece no campo da Saúde Mental há muitas décadas.
que se encontra impedido de criar, por meio de tensio-
Entretanto, em grande parte, apresenta uma conotação vol-
namentos, movimentos e novos agenciamentos. A clí-
tada para a individualização do sintoma, o que é recorrente
nica de grupos tem caráter processual. Esse processo de
em modelos psiquiátrico-psicológicos voltados para aquilo
mudança não se restringe a uma tomada de consciência,
que nós, enquanto coordenadores/facilitadores, questio-
pois essa, muitas vezes, é capturada por sentimentos de
návamos. A nossa idéia era intervir tanto no grupo como
culpa e valores morais. Para funcionar como provocador
no Caps, problematizando alguns modos de subjetivação
de inquietações, esse tipo de cuidado precisa provocar
acerca do tratamento de dependência química.
inquietações, suscitar perguntas e trazer respostas novas
Sentávamos em círculo a fim de visualizarmos uns
(Brasil, 1995). Essa experiência pode tirar o olhar do
aos outros, em encontros semanais com duração de uma
sujeito de si, de seu lugar. Naffaf Neto (1994) afirma que
hora. Entramos em acordo a respeito de as faltas serem
as relações em um grupo terapêutico podem estabelecer
comunicadas. A ausência de algum membro, quando
tanto identificações ligadas às representações, ou “formas
não notificada anteriormente, geralmente fazia os ou-
extensivas, circunstanciais, históricas, que transpassam
tros pensarem que o colega havia tido uma recaída: “O
todos e os fazem sentir no mesmo barco” (p.104), como
fulano não está vindo faz tempo. Será que ele recaiu?”.
singularizações.
Em relação à abstinência, o único critério colocado
Passos (2005) utiliza-se de Guatarri (1981) para fa-
pelo grupo era de que não se deveria comparecer aos
lar das diferenças entre grupo-sujeitado e grupo-sujeito.
encontros sob efeito de álcool ou outras drogas. Porém,
O primeiro é o grupo dos estereótipos, da hierarquia, da
em duas ocasiões, um paciente compareceu alcoolizado
autoconservação, da exclusão, da unificação, da totaliza-
e os demais participantes disseram que aquilo era “uma
ção e verticalização e que estabelece formas específicas
falta de respeito com a gente que está levando a sério” e
de ser e de viver. O segundo abre-se para os processos
enfatizaram que nós, os coordenadores, deveríamos bar-
criativos de outrem e para a alteridade porque precisa
rar a participação dos usuários naqueles dias. Embora os
do diferente; é suporte para diversos modos de expressão
pacientes fizessem uma crítica dizendo que “a sociedade
emergentes e diferentes enunciados.
só aceita quem não bebe”, eles mesmos esperavam que
Frente a uma situação de conflito trazida por al-
cada integrante mantivesse a abstinência. O simples fato
gum dos participantes, perguntávamos com freqüência
de eles relacionarem a ausência à uma recaída reforça
para os demais: “Alguém já passou por uma vivência
essa idéia. Essa visão da abstinência e da recaída está de
parecida?”. Buscávamos, como aponta Ziegelmann
acordo com as idéias de Moraes (2008), que, em um
(2005), outros modelos de saúde que não reduzissem
estudo realizado em um Caps ad, concluiu que, tanto
os sujeitos a categorias diagnósticas, mas tomassem as
para os usuários como para os profissionais, a abstinên-
formas de viver e os processos de composição de si como
cia é o principal objetivo do tratamento e a recaída é
construções coletivas.
entendida como um mau comportamento:
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Talvez a abstinência seja a expressão máxima de que alguém se encontra em condições de ajustamento e purificação, necessários para serem aceitos socialmente. Mesmo assim, parece que o caráter de vigilância sobre essas pessoas se manterá permanente [...] uma vez alcoolista, sempre uma pessoa diferente, em que não se pode confiar por estar sujeita permanentemente a recaídas e crises. (Moraes, 2008, p.128). No início, os participantes se restringiam aos sintomas: “É tudo por causa da maldita da cachaça”. Desconheciam que o grupo “pelo potencial criativo que insere a partir das transversalizações de idéias, sentimento e experiências do outro” (Ziegelmann, 2003, p. 9), oferece outras subjetivações e territórios existenciais capazes de ressignificar vidas. Aos poucos, o grupo foi trazendo outras inquietações: “Eu queria que vocês me ajudassem com o meu casamento. Eu tenho vontade de sair de casa, mas fico com pena das crianças”. Percebíamos que essas pessoas tinham uma necessidade de falar sobre diferentes aspectos de suas vidas e não apenas aos sintomas relacionados à dependência química e buscavam outras respostas
de seus sintomas repetitivamente na tentativa de se sentirem aliviadas, por outro, reproduzem certas práticas hegemônicas tradicionais que direcionam seu olhar à doença e não ao sujeito e sua complexidade. O uso abusivo de substâncias psicoativas juntamente com a sociedade e seus valores morais que determinam o que é certo e errado, o que é bom ou ruim inibem a produção subjetiva do sujeito, bem como o surgimento de outras formas de ser, estar e sentir. A pessoa passa a se subjetivar principalmente através da droga: “Meu nome é fulano e o meu problema é a bebida”. Se por um lado a tomada de consciência faz com que o sujeito reconheça a dependência química como um problema, ela também o captura. Nesse caso, a produção subjetiva é marcada pelo estigma, preconceito, culpa, tristeza e alienação: “Lá em casa eu não posso opinar porque eu sou o bêbado”. Apresentavam-se ‘escravos(as)’ do álcool e das drogas, enxergando a dependência química como uma marca de sua identidade e a substância, como uma marca de si e um meio de se relacionar socialmente: “Eu sou o Fulano, eu bebo”. Benevides (1994) afirma que devemos buscar a desnaturalização:
através de uma experiência coletiva para desconstruir aquilo que há anos se repete: “Eu lembro do primeiro dia em que a gente conversou. Todo mundo só falava na droga, como se aquilo fosse a gente”. Aos poucos, o grupo passou a desnaturalizar seu território existencial: No início achei que aqui só me perguntariam se eu tinha bebido ou não. Vi que nesse grupo a gente pode falar do que quiser e se não quiser falar nada pode ficar quieto também, só escutando o outro. De um modo em geral, as pessoas procuram os serviços público de saúde acreditando que devem manifestar somente a queixa de seus sintomas, que não podem falar de si, de suas vidas. O tempo de atendimento é curto. No entanto, se por um lado essas pessoas falam
[...] tentar ver historicamente como se produzem determinados efeitos de verdade nos discursos e práticas, efeitos estes que não são, em si, nem verdadeiros, nem falsos. (p. 24). Ao questionarmos o modo como cada participante se apresentava, tentávamos também provocar o surgimento de outros territórios, desejos e modos de vida. A auto-identificação dos sujeitos como ‘dependentes’ parece estar em consonância com um imaginário que a própria sociedade criou, através dos dispositivos de tratamento que reforçam sua postura de impotência diante do controle do uso de drogas [...] como se a partir do momento em que esses sujeitos assumissem a posição de impotência perante a droga, dizendo ‘eu sou adicto’, isso tornasse sua condição inquestionável e natural. (Santos, 2007, p. 195).
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De acordo com Brasil (1995), a troca de experiên-
Luz (2001) assinala que as relações de solidariedade
cias com o outro propicia a criação de diversos sentidos,
renovam a sociabilidade e podem restaurar o tecido
o questionamento de estruturas duras, e a desnatura-
social, formando
lização de modos estereotipados de viver, oferecendo mudanças objetivas e subjetivas. O entrecruzamento de idéias e a coletivização de ações, afetos e pensamentos, algumas vezes, promovem o rompimento das estereo-
pequenos e múltiplos pontos de resistência ao individualismo dominante, colocando a amizade e a cooperação no lugar do valor dominante da competição. (p. 41).
tipias paralisantes que dificultam o viver: “Cada um de vocês é uma força que me ajuda. É um reforço que eu
O restabelecimento da confiança no outro faz com
levo comigo”. O confronto com as diferenças facilita
que o isolamento seja substituído pela convivência, gerando
o rompimento com as habituais dicotomias existentes
otimismo e esperança nos sujeitos. Por outro lado, Naffaf
entre o pensar, o sentir e o fazer, agindo criativamente
Neto (1994) escreve que o termo amizade não condiz com
sobre os conflitos e inovando as relações através da
a realidade de um grupo terapêutico: “mesmo as grandes
criação de novos vínculos: “Às vezes eu estou em casa
amizades sempre preservam um certo pudor, um certo reca-
e me lembro do que um de vocês falou e aí paro de
to” (p. 103). Os grupos são mais como laboratórios da vida
pensar bobagens”.
social, pois reúnem pessoas que nunca se encontrariam ou
No grupo, os participantes compartilhavam a experiência da solidão e do empobrecimento dos vín-
criariam vínculos um com o outro, mas que nesses espaços aprendem a compartilhar experiências fundamentais.
culos: “Os amigos de bar não são amigos de verdade”.
Proposto como dispositivo analítico, o grupo serviu
Falavam de intenso sofrimento psíquico proveniente de
para descristalizar posições e papéis a partir dos quais esses
sentimentos de desvalia, solidão, tristeza e exclusão.
sujeitos construíram suas identidades: “Antes era tudo por
Eu queria falar para vocês que eu ando me sentindo muito sozinho. A família não tem me procurado mais, procuram muito pouco. Lá na comunidade o pessoal é gente boa, mas não é a mesma coisa.
causa da maldita cachaça”. Quando pensamos os grupos em geral com dispositivos, sem separá-los por objetivos clínicos ou ligados à re-socialização, poderemos habitar em outro regime de enunciação, no qual clínica e política formariam um espaço de mútuo engendramento. Transversalizamos,
Ao oferecer um espaço de escuta e de reflexão, o grupo permitiu que os sujeitos vivenciassem outros sentimentos,
com isso, as questões ditas sociais e políticas bem como as chamadas subjetivas ou “íntimas” (Benevides, 2001):
significados, pensamentos, valores, fazeres: “Eu acho que a gente mesmo acaba fugindo dos amigos de verdade, da família. Hoje eu sei dar valor para a minha velha”. A proposta de clínica grupal dá oportunidade para que se formarem laços e solidariedade, aliviando sentimentos de vazio,
Depois que eu comecei a participar desse grupo eu vi que eu tenho que ir atrás das minhas coisas. Não posso ficar só me queixando, querendo que os outros mudem. O tempo está passando e eu vou fazer o que da minha vida?
solidão e desesperança: “Aqui a gente tem cumplicidade e confiança”. Por terem vivido anos ou décadas escondidos
O espaço pode ser visto como um “aprendizado.
atrás de um sintoma, as relações consigo e com o outro
A gente precisa de novas idéias, novas experiências para
encontram-se desgastadas, desacreditadas.
se reciclar”. Isso ocorre na medida em que trabalhamos
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sob a perspectiva da integração social e da produção de
Outro ponto importante foi a percepção de que os
autonomia, incentivando os próprios sujeitos a buscarem
resultados alcançados vão além do espaço grupal: “O que
outros modos de existência: “É como eu já disse para
a gente vive aqui, leva para lá fora. Quando eu estou
vocês uma vez: não adianta mudar os caminhos, mas
em casa eu penso naquilo que a gente conversou aqui”.
sim o jeito de caminhar”.
A vivência pode servir para “descristalizações de lugares
Em um dos encontros, um participante do grupo
e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói
comunicou seu afastamento devido a uma cirurgia de
em suas histórias” (Benevides, 1995, p. 152): “Antes eu
redução de estômago que sofreria:
pensava que o meu problema era o maior de todos, só pensava em mim”.
Eu queria dizer para vocês que eu terei que me afastar do grupo. Eu fui chamado para fazer uma cirurgia de redução de estômago e agora é isso que está me faltando. Eu quero poder caminhar, andar de ônibus, hoje eu não caibo nas poltronas do ônibus. Eu quero poder comprar roupas, sair, dançar, voltar a trabalhar. Eu tenho só 35 anos e quero mais é viver. Escutar o desejo desse participante e percebê-lo como responsável por sua própria vida é cuidar de forma integral, é tomá-lo como sujeito capaz de ter autonomia para fazer suas próprias escolhas. O rompimento com o paradigma tradicional desloca o objeto de cuidado da doença para o sujeito em sua existência-sofrimento (Alves, Guljor, 2006). Através de trocas, os participantes transformam suas questões em problemas e realizam novas ações, na tenta-
Ver o grupo como disparador de novos modos de subjetivação, é considerar que as diferenças, e não as igualdades, possibilitam novas formas de existir e significar a vida. Em grupo são desenvolvidas as habilidades interpessoais, o desempenho de papéis designados pela cultura, a participação nos processos coletivos e as soluções para os problemas. “Esse grupo é forte porque aqui a gente fala a verdade. Eu venho aqui porque me faz bem”. Essa força à qual o membro do grupo se refere mostra que poder falar do cotidiano e de seus diferentes atravessamentos é saudável e produz autonomia. O cuidado para além do sintoma da dependência incentiva o sujeito a buscar outras respostas, a dar novos sentidos aos seus desejos e às suas relações libertando-se, assim, dos sintomas. E aí que reside a sua força.
tiva de solucioná-los. A fala de cada um pode convidar
Em nossos encontros, os participantes procuravam
o outro a novos entendimentos, ampliando os domínios
outras maneiras de viver a vida. Ao invés de usar drogas
de significação: “Ao escutar as outras histórias, eu pude
para ‘aliviar’ sentimentos, pensavam na companhia da
rever a minha própria história”. O grupo possibilita a
família, dos amigos e, muitas vezes, na companhia de
experiência genuína da alteridade como valor orienta-
si mesmo.
dor de vida. Estamos mergulhados em uma sociedade
Na metade do ano, os participantes começavam
centrada no indivíduo, onde o outro serve como objeto
a chegar um pouco antes do horário do grupo para
de usufruto de cada um. O contato com o coletivo pode
conversar entre eles dentro do Caps, sem a presença dos
despertar novos posicionamentos frente a esse modo de
‘doutores’. Era uma conversa informal, ‘mais livre’, de
individualização dominante que perpassa as formas do
‘amigo’. Nos grupos, os participantes mencionavam que
sujeito se relacionar consigo e com os outros: “No início
gostariam de se encontrar: “fora do Caps, a gente poderia
eu achava que os meus problemas eram maiores e mais
marcar um churrasquinho”. Nesse momento, o grupo
importantes do que os dos outros”.
passou a caminhar com mais autonomia ou, segundo
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Maturana e Varela (1997), a partir de um andar auto-
duziu pequenas rupturas nos modos de subjetivação
poiético. Ainda de acordo com esses autores, o grupo
do coletivo em relação ao sofrimento, às relações e às
já funcionava como dispositivo para o desenvolvimento
histórias individuais. O desenvolvimento desses atri-
de duas características básicas do viver: a potência de
butos produziu nos sujeitos um aumento de algumas
criação de si e sua capacidade de autonomia, produzin-
potências criativas e da autonomia, construindo novas
do o aumento progressivo das potências criativas e de
composições de si.
autonomia na busca de novas composições de si.
PARA FINALIZAR Este trabalho, escrito por vários outros além de
R E F E R Ê N C I A S
mim, buscou contribuir com a criação de campos de atuação que reivindiquem a singularidade, a multiplicação de modos de subjetivação, o resgate da criatividade, tomando a clínica como desvio. Tivemos como objetivo abrir reflexões acerca de cuidados em Saúde Mental,
Alvez, D.; Guljor, A. O cuidado em saúde mental. In: Pinheiro, R.; Mattos, R. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/Abrasco, 2001. p. 221-240.
incentivando mais pesquisadores a criar problematizações e construir outros saberes. Não tenho a pretensão de fechar a discussão e nem de afirmar que a clínica de grupos voltada para a produção de subjetividade seja melhor ou pior do que outras modalidades de grupo ou da individual, mas procurei mostrar que o modelo de
Benevides, R.D.B. Dispositivos em ação: o grupo. In: Lancetti, A. (Org.). Saúde e loucura 6. São Paulo: Hucitec, 1997. ______. Grupo e produção. In: Lancetti, A. (Org.). Saúde e loucura 4. São Paulo: Hucitec, 1995.
atenção integral e o espaço grupal possibilitam que os sujeitos não fiquem tão fragmentados em sua escuta. A ação terapêutica proposta foi a de cuidar da pessoa a partir da escuta de sua vida, com a intenção de produzir outros modos de existência, potencializando, dessa froma, a saúde, a autonomia e a liberdade, mesmo que isso se mostrasse desafiante. Foi preciso pensar em uma clínica integral voltada para outras produções subjetivas; um cuidado que considerasse a complexidade de vida dos sujeitos, tomando o sofrimento psíquico, no caso o consumo de álcool e drogas, não apenas como algo provocado pelo indivíduo, mas como algo decorrente de uma produção social. No desenrolar dessa experiência, pude perceber que o grupo funcionou como dispositivo quando pro-
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008
ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro An overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro “É muito antes do ópio que minh’alma é enferma” Fernando Pessoa Magda Vaissman 1 Marise Ramôa 2 Artemis Soares Viot Serra
3
Mestre e doutora em Psiquiatria pelo
RESUMO Este artigo reflete sobre a construção de uma rede de assistência
Instituto de Psiquiatria da Universidade
em álcool e outras drogas no Rio de Janeiro durante 1980 a 2004, mediante
1
Federal do Rio de Janeiro (IPUB/ UFRJ); coordenadora da Unidade de
movimento da Reforma Psiquiátrica e os primórdios da formulação de políticas
Problemas Relacionados ao Uso de
públicas no campo. Utiliza-se de abordagem qualitativa, baseada na história
Álcool e outras Drogas (UNIPRAD) do
de vida de atores sociais, e sua relação com a implantação de instituições e
Hospital Escola São Francisco de Assis
serviços ligados a este cuidado especializado. Apesar da implantação de um
(HESFA) da UFRJ; médica psiquiatra desta unidade.
modelo de assistência baseado nos Centros de Atenção Psicossociais, neste período
[email protected]
permaneceram várias contradições e dicotomias, como se o modelo da Reforma Psiquiátrica passasse ao largo das práticas efetivamente propugnadas.
2
Mestre e doutora em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade
PALAVRAS-CHAVE: Assistência à Saúde Mental; Dependência química;
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio);
Reforma dos serviços de saúde.
supervisora do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS ad) Mané Garrincha, do Rio de
ABSTRACT This article deals with the reflexion, concerning the installation of
janeiro.
a service for the assistance of alcoholics and drug-addicts in Rio de Janeiro, during
[email protected]
the period of 1999 to 2004, by means of the Psychiatric Reform movement which
3
Mestre em Serviço Social pela Escola
anticipated the public policy of treatments in the field. It covers a qualitative
de Serviço Social (ESS) da UFRJ;
approach based on the history of the social actors and its relations with the
assistente social da UNIPRAD/HESFA/
introduction of services and instructions devoted to this specialized care. Despite
UFRJ.
the implantation of an assistance model based on the psychosocial scope centers,
[email protected]
during the period it was verified a lot of contradictions and dichotomies, like the Psychiatric Reform model would navigate far from the effectively supported practices. KEYWORDS: Assistance to Mental Health; Drug addiction; Health services reform.
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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
I N T R O D U ç ão
O paralelo entre o campo da Saúde Mental e a organização de serviços de drogas, teve o objetivo de contribuições para conscientização da necessidade de consolidação e desenvolvimento de políticas públicas na área em nosso estado. Em 1980 surgiram os Centros
O estudo é sobre a construção de uma rede de aten-
de Atenção Psicossocial (Caps), dispositivos usados
ção ao uso de drogas no estado do Rio de Janeiro. Nos
para psicóticos e neuróticos graves, como resposta à
últimos vinte anos foi observada uma discrepância entre
ineficácia do sistema ambulatorial em reduzir o núme-
as propostas e implementações de serviços pautados no
ro de internações em hospitais psiquiátricos. Mas os
movimento da Reforma Psiquiátrica1, no que se refere
dependentes de drogas que se encontravam internados
à assistência à loucura e dependência de drogas.
em hospitais psiquiátricos ou que já estavam sendo
O objetivo foi desenvolver um histórico dessa as-
atendidos em ambulatórios, com várias reinternações,
sistência e da situação dos dispositivos de tratamento.
não foram beneficiados por tal política, a não ser no
Utilizou-se uma abordagem qualitativa com entrevistas
caso de comorbidade.
com profissionais representativos do campo e análise
O termo ‘dependência química’ apareceu freqüente-
de cadastros de serviços. Neste período, prevaleceu a
mente nas falas dos entrevistados referentes a serviços neste
iniciativa privada na oferta de serviços e no treinamen-
período estudado. Ressaltando a noção de doença, valori-
to de recursos humanos, devido à ausência de política
zando o produto em si e confundindo as várias formas de
pública. Mas, a partir de 2002, o Ministério da Saúde
relação do usuário com as drogas, como o uso, abuso e a
estabelece política para o setor2.
dependência. A ‘dependência química’ apresenta-se como
Nos primórdios da estruturação deste campo, os
objeto dos campos dos saberes médico e jurídico, numa
serviços ambulatoriais ou hospitalares eram privados e
ênfase dada à droga, o que pode levar a ações repressivas,
inspirados em experiências pessoais3. Tinham a hipótese
com caráter de ‘guerra às drogas’ e à manutenção do
de que a vivência pessoal construiu uma prática bastante
desaparecimento do sujeito. No campo do saber médico
solidária4, mas, pouco teorizada, com influências norte-
o dependente de outras drogas é visto como doente que
americanas e metodologia pragmática. Nesse período,
requer cuidados especializados e no campo jurídico como
existia um profundo debate entre profissionais da Saúde
doente e criminoso5. Deve-se pensar em uma assistência ao
Mental, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, referente
usuário de drogas que não o remeta sempre à sua impotên-
às noções de doença, de periculosidade e da internação
cia e sim a sua potência de vida, pois é justamente isso que
como exclusão social entre outras.
o paciente busca em seu afã por um grande êxtase.
No contexto de Reforma, a Psiquiatria difere da Saúde Mental. De acordo com Saraceno (1999, p. 144-145), a primeira se refere ao trato da doença mental e a segunda coloca no centro da intervenção a dinâmica da saúde-doença, em que, além de tratar o trabalho de prevenção e promoção de saúde também são imprescindíveis para o desenvolvimento do bem-estar das pessoas. 1
Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, 2003. Portaria 816/GM (30/04/2002) e em maio dispõe sobre as normas para funcionamento e cadastramento de Caps ad. 2
“na criação de serviços e unidades de tratamento de dependentes químicos sempre estiveram presentes vários atores que têm em comum uma história escrita de muito suor, sofrimento e sangue”. (Freire, E., comunicação oral). 3
4
Porém, segundo Richard Rorty (1993), as pessoas são solidárias quando aceitam as diferenças, o que não ocorreria, portanto, num grupo de iguais.
A legislação a respeito (1976 a 2001) sempre foi muito confusa, pois um usuário e traficante eram criminalizados e penalizados, pois sempre houve graves dificuldades de se avaliar essa distinção, visto que muitos usuários, em função da situação de violência nas ‘bocas de drogas’ optam por comprarem grandes quantidades de substância para uso, mas seriam enquadrados como traficantes, pois o critério usado pela Justiça é o de quantidade. 5
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Mas o que houve historicamente para que o campo
Paralelamente, realizou-se um levantamento das
tenha se organizado isoladamente da Saúde Mental
instituições disponíveis no estado do Rio de Janeiro
e das propostas de políticas públicas, até o final dos
até agosto de 2004, a partir de dados organizados pelo
anos 1990?
Conselho Estadual Antidrogas, e do cadastro orga-
Um setor da medicina tentou preencher a falta de
nizado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade
políticas específicas na área, com iniciativas privadas,
Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ) em parceria
marcadas pelo isolamento, entendendo a internação
com o Nepad/UERJ.
como medida terapêutica ou como o tratamento. Pensou-se na organização de serviços para usuários de drogas no campo da Saúde Mental e a possibilidade de articulação de diversos saberes para a construção de
ALGUNS ASPECTOS CONJUNTURAIS
uma prática com os usuários, que se baseie em uma assistência de âmbito territorial6, na prática possível dos Caps ad e na constituição de uma rede.
Atualmente vive-se uma pandemia de drogas com a explosão do consumo, da criminalidade e da violência a elas relacionadas a partir da década de 1980. Se anteriormente, nos anos 1970, o uso de drogas estava aliado a um enfrentamento político, jovens protestavam
METODOLOGIA
contra a política militarista norte-americana no bojo da guerra do Vietnã e manifestavam seu apoio a Martin
Utilizamos a abordagem de pesquisa social em
Luther King pela paz, hoje a relação do sujeito com a
saúde como apreensão da realidade e a estratégia de
droga é outra, sendo a droga representada por um ob-
‘história de vida’ (Minayo, 1996, p. 126-129) por ser
jeto de consumo, em uma busca desenfreada por prazer
apropriada para ser traçada uma história dos primeiros
individualista (Ramoa, 1999).
serviços para dependentes de drogas no Rio de Janeiro
O resultado da política de repressão ao tráfico de
e conseqüentemente, sobre impasses e possibilidades de
cocaína dos países sul-americanos, estabelecida pelos
construção de uma rede para atendimento de usuários
Estados Unidos e Europa, o Brasil torna-se importante
de drogas.
rota e parte considerável da produção passa a ser destina-
Foram realizadas seis entrevistas com atores que identificamos a partir de nossa vivência no campo da assistência, como importantes, os quais atuaram no período inicial de 1980 a 1990.
da ao consumo interno, com conseqüente agravamento da violência urbana. A partir da década de 1990, o uso de drogas, sua produção e comercialização passaram a representar um
Posteriormente, procedemos à análise qualitativa
problema mundial ao lado da Aids, fome, violência e
das histórias de vida contidas nestes depoimentos e foi
corrupção. Torna-se conseqüentemente motivo de posi-
desenvolvida uma análise do discurso, o que possibilitou
cionamento da Organização das Nações Unidas (ONU)
o levantamento de algumas questões.
na 20ª Sessão Extraordinária da Assembléia Geral das
Território entendido não apenas como região, mas no sentido de um pulsar das relações entre horizontalidades e verticalidades. As horizontalidades serão dos domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. (Santos, M.; Silveira, M., 2002.) 6
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Nações Unidas em 12 de dezembro de 1996, quando
existência em sofrimento (Procópio: 1999, p. 70-94;
foram propostas medidas de cooperação internacional
Rotteli; Leonardis; Mauri,1990, p. 17-59). A Reforma
no enfrentamento do problema das drogas.
Psiquiátrica traz a preocupação não só com a doença,
Houve também neste colóquio o reconhecimento do princípio de ‘redução de demanda’, essencial no
mas com o sujeito que sofre e foi influenciado pelo movimento de Reforma Sanitária na sua constituição7.
enfrentamento do problema, com o compromisso de introduzir programas e estratégias nacionais pretendendo-se obter resultados significativos e mensuráveis até 2008 (Brasil/Senad, 2001). Assim, em 2001 o Brasil
OS SERVIÇOS PARA USUÁRIOS DE DROGAS E
adota em âmbito nacional uma Política Antidrogas que
SUA PERIODIZAÇÃO
representa um avanço, ao aderir as diretrizes da ‘redução da demanda’, ao invés de priorizar somente ações de
Há pouco tempo no setor público só havia a re-
cunho repressivo e de segurança e um retrocesso, no
clusão nos hospitais psiquiátricos como proposta de
que se refere ao que já vinha acontecendo em termos de
‘tratamento’ para usuários de álcool e outras drogas. Os
política de redução de danos. Em 1998, a Casa Militar
serviços psiquiátricos encontravam-se8, em sua grande
da Presidência da República assume a coordenação da
maioria, altamente despreparados tecnicamente para
Secretaria Nacional Antidrogas (Ramos, 1998).
enfrentar esta questão. Não havia centros de atenção
A proposta de redução da demanda corre o risco de
psicossocial especializados, ambulatórios, hospitais-dia,
ser atrelada à idéia de criminalizar o usuário e/ou depen-
leitos hospitalares, etc. O primeiro centro de tratamento
dente de drogas e responsabilizar tal parcela da população
especializado para usuários de drogas foi o Centro de
pela existência do tráfico de drogas, ao invés de questionar
recuperação de dependentes químicos – Credeq9, con-
a necessidade de descriminalização da droga.
veniado com o Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu
Porém, a institucionalização e a globalização do
na década de 1980 e havia dificuldade para ter acesso ao
narcotráfico na contemporaneidade devem ser levadas
mesmo, cujo período de internação era de cem dias, o
em consideração como questões que apontam para a
que implicava em baixa rotatividade do leito hospitalar.
necessidade de uma assistência ao usuário de drogas, que
Em meados dos anos 1980, a conjuntura epidemioló-
seja pautada em uma prática territorial, visto que deve
gica do uso abusivo de drogas era evidente e com isso
pensar em criar condições de enfrentamento do tráfico
surgiu uma demanda de atenção médica e psicológica
de drogas a partir de alternativas de lazer, de trabalho
mais especializada, visto que o atendimento em hospi-
etc., para que o usuário de drogas e que muitas vezes
tais psiquiátricos, desde seu surgimento, trouxe como
se introduz no tráfico para obter a droga, adquira de
herança dos hospitais gerais, a visão de filantropia e de
fato e de direito seu lugar de cidadão na sociedade, não
atendimento leigo-religioso.
sendo visto como doente ou criminoso, mas como uma Amarante (1995, p. 93-99) apud Silveira da Silva (2000) destaca três momentos da estruturação da Reforma Psiquiátrica Brasileira: 1-Trajetória Alternativa (de meados de 1970, no movimento contra a ditadura militar); 2-Trajetória Sanitarista (no início dos anos 1980, profissionais reformistas da saúde incorporam-se ao aparelho de Estado); 3-Trajetória da desinstitucionalização (desconstrução/invenção), que surge na I Conferência Nacional de Saúde Mental, abrindo o caminho para a mudança do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental para o da Luta Antimanicomial. 7
8
Ainda hoje a situação não é muito diferente.
9
Credeq – instituição da Assistência Social evangélica.
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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Logo, no Rio de Janeiro, até a década de 1980, ou
fundamental e médio no estado. No entanto, em face de
se tinha uma alta quantia para custear um tratamento
sua perspectiva filosófica baseada no modelo francês de
especializado ou ia-se para o hospício. Naquele momen-
toxicomania na atuação clínica, o Nepad passou a ficar
to era predominante a filosofia de tratamento baseada na
solitário em relação a outros núcleos, pois sua área de
exclusão do usuário do contexto social, laboral e familiar.
atuação restringia-se às drogas ilícitas, sendo os usuários
A internação em clínica especializada constituía-se como
de álcool encaminhados a outros serviços.
a única alternativa de tratamento.
Se por um lado o setor público não apresentava
Surgem, então, os primeiros serviços de atenção
alternativas ou condições de acesso ao dependente de
a dependentes de drogas na cidade do Rio de Janeiro,
drogas, por outro a assistência psiquiátrica mostrava-se
cuja historiografia encontra-se sintetizada no Quadro
inadequada e despreparada. Diante deste panorama, o
1 (em Anexo 1)10.
setor privado vislumbra a possibilidade de um grande
Nos depoimentos levantados e já mencionados
negócio na área da saúde, sem concorrentes. Todavia,
anteriormente é bastante relevante que a história pessoal
assume um papel importante e propõe como estratégia
destes precursores com a droga, funcione como um me-
de tratamento o modelo chamado Modelo Minne-
canismo propulsor de criação de serviços, podendo levar
sota, inspirado nos passos e tradições dos Alcoólicos
a uma posição de maior solidariedade ou de maior difi-
Anônimos e que fomentou o surgimento de toda uma
culdade de suporte teórico para as referidas práticas.
geração de profissionais e instituições seguidoras de seus
O motivo em se envolver no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas deve-se à existência de algum
ensinamentos, a partir de um centro de tratamento para dependentes químicos chamado Vila Serena.
membro com este problema na própria família ou por
Esta instituição teve um papel fundamental de
vivência pessoal com esta problemática. A única ex-
formação de uma ideologia de tratamento aos usuários
ceção até 2001 é o Núcleo de Estudos e Pesquisas em
de álcool e outras drogas e de articulação de uma política
Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado
privatista de atenção, não somente no Rio de Janeiro
do Rio de Janeiro (Nepad/UERJ), pois a equipe de
como em todo o Brasil. Vila Serena, cujo berço foi no
profissionais que criou este núcleo buscou na psicanálise
Estado de São Paulo, se tornou após alguns anos uma
subsídios para sua metodologia de trabalho em atenção
‘franchising’, a primeira no Brasil em termos de trata-
às toxicomanias seguindo o modelo francês em sua fun-
mento de ‘dependentes químicos’, e exportou seu mode-
damentação prática e teórica, inclusive sob supervisão
lo de atendimento a várias capitais brasileiras e cidades
do psicanalista francês Claude Olievenstein do Centro
do interior; sendo inicialmente financiada por grandes
Marmotan de Paris.
empresas multinacionais como McDonald’s e a Johnson
Esta instituição foi a primeira de caráter univer-
& Johnson para a internação de seus executivos.
sitário no estado, sendo responsável pela formação de
Fundada em l983 pelo ex-padre John Burns, o qual
inúmeros pesquisadores deste campo de saber. Desen-
trouxe ao Brasil o modelo de tratamento de abordagem
volveu os primeiros levantamentos epidemiológicos
norte-americana do confronto com a realidade do adicto
sobre o consumo de drogas entre estudantes do ensino
e de práticas psicopedagógicas através de dinâmicas e
Cabe ressaltar que na retrospectiva não foi feita uma separação clara entre os setores públicos e privados, pois se sabe que são complementares dentro do SUS, cabe ao poder público: a regulamentação, normalização, auditoria e controle do sistema como já vigora para o funcionamento de comunidades terapêuticas, segundo o modelo psicossocial (Resolução - RDC /Anvisa, nº 101 de 30 de maio de 2001). 10
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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Quadro 1 - Principais serviços na área de álcool e outras drogas de 1971 a 2005 no Rio de Janeiro. 19711980 19801985 1985 1990
19901995 19952000
2001 2005
2001 2005
Instituição Comunidade S8 1971 Hospital Pedro Ernesto 1980 Vila Serena 1983 Hospital Pinel UTA 1985 Hospital Estadual Pedro II * (Santa Cruz) Credeq 1985* Nepad (UERJ) 1985 OPJ 1987 Clínica Contexto 1989 Hospital da PM 1988 Fundação Osvaldo Cruz 1988 Clínica Jorge Jaber 1989 Clínica Aldeia 1991 Casa do Caminho Cepral/UFRJ 1995 Projad/UFRJ 1996 Unidade Certa* 1996 (Casa de Saúde Dr. Eiras) Centro Vida 1996 Projeto Bem-Te-Vi* 1997-1999 Santa Casa da Misericórdia (RJ) 1998 NAAD 1998 Integrarte Petrópolis 1998 Celeiro da Saúde 1999 Caps ad Estadual Centra-Rio 1999 Rede FIA-1998 1. Criaa UFF (Niterói) 1998 2. Resgate (Campos) 1998 3. Ceata (Duque de Caxias) 1998 4. AADEQ* (Jacarepaguá)* 2000-2005 5. CASA DO LINS* Fundação Simonton IBMR 1999-2005 6. Reencontro Casa da Vila (S. João do Meriti) 1998 7. Gaia (Volta Redonda) 8. Amai (Campos) 9. Casa de Guaratiba* (Rio de Janeiro) 1998-2000 Cead/Deprid (SEAS)1998 Clínica Michelle de Morais 2000 Projeto Nossa Casa (Degase) 2000 Cepuad/UFRJ 2001-2005* Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (Degase) 2001 REVIVA (Barra Mansa) 2001 Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 Uniprad/UFRJ 2005 Caps ad Raul Seixas 2003 Transformando Viver (FIA) 2005 Semente do Amanhã (FIA) 2003 Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001 Cepuad/UFRJ 2001-2005* Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (Degase) 2001 REVIVA (Barra Mansa) 2001 Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 Uniprad/UFRJ 2005 Caps ad Raul Seixas 2003 Transformando Viver (FIA) 2005 Semente do Amanhã (FIA) 2003 Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001
Modelo Comunidade Terapêutica Psicossocial Minessotta Psicossocial Psicossocial
Tipo Filantrópica
Minessotta Psicanalista Day-Top Minessotta Minessotta Psicossocial Minessota Minessota Minessota Psicossocial Psicossocial Minessota Minessota Minessota Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Psicossocial
Tipo de Atenção Internação e Pós-tratamento Universitário Privada Ambulatório Pública Internação Pública (SES) Internação Internação Filant. (SUS) Internação Universitária Ambulatório Filantrópica Internação Privada Corporativa Ambulatório Universitária Internação Ambulatório Privada Internação Privada Internação Filantrópica Internação Universidade Ambulatório Universidade Ambulatório Privada (SUS) Internação Filantrópico Centro-dia Filantrópico Ambulatório Universidade Ambulatório Público (SMS) Ambulatório Filantrópico Centro-dia Filantrópico Centro-dia Público Hospital-dia
Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Psicossocial Minessota Minessota Psicossocial Minessota Minesota Minessota Psicossocial Psicossocial Minessota Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Minessota Minessota Minessota Psicossocial Minessota Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Psicossocial Minessota Minessota Minessota Minessota
Universitário ONG ONG ONG ONG ONG ONG ONG ONG Público ONG (SEAS) Público Universidade Deprid-SEJ Público ONG ONG Universidade Público (SMS) ONG ONG Público (SEAS) Público (SEAS) Universidade Deprid-SEJ Público ONG ONG Universidade Público (SMS) ONG ONG Público (SEAS) Público (SEAS)
Centro-dia Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Ambulatório Internação Ambulatório Internação Ambulatório Ambulatório Ambulatório Internação Internação Internação Ambulatório Hospital-dia Centro-dia Internação Internação Internação Ambulatório Ambulatório Internação Internação Internação Ambulatório Centro-dia Internação Internação Internação
*Não realizam mais esse tipo de assistência. O Hospital Estadual Pedro II, após participação em curso de atualização na área de álcool e outras drogas, para a zona oeste, promovido em 2007 pela coordenação de saúde mental do município do Rio de Janeiro, tenta reativar atendimento a dependentes de drogas. Fonte: Catálogo de Serviços para Dependência Química, 4ª edição, Conselho Municipal de Entorpecentes (Comen), Prefeitura do Rio de Janeiro; Catálogo de Serviços Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nepad/UERJ/UFRJ)
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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •
Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
palestras baseadas na filosofia dos grupos de mútua-
ajuda, seriam justamente os que estariam aptos a tratar
ajuda. Outra forma de atuação deste grupo preconizava
dos dependentes – surgem, então, os conselheiros em
a intervenção específica para ‘dependência química’ nas
dependência química.
empresas, mais conhecidos como Programas de Assis-
Vila Serena trouxe a prática do aconselhamento14,
tência ao Empregado (PAE), através de treinamento
ofereceu cursos e palestras a leigos e profissionais inte-
de assistentes sociais e supervisores, que ao identificar
ressados em temas de dependência de drogas. Baseada
casos de ‘usuários pesados’11, deveriam encaminhá-los
na metodologia da Fundação Halzenden/Minnesota, a
para tratamento interno em Vila Serena. Após a alta da
qual valorizava a ponte com os Alcoólicos Anônimos,
internação de 28 dias, em média, os trabalhadores se-
o grupo dirigente de Vila Serena sai fortalecido por
riam acompanhados pelas assistentes sociais no setor de
membros dos movimentos de mútua-ajuda. Nesse pe-
trabalho nas empresas, sendo que estes grupos nos locais
ríodo, com a valorização profissional da metodologia dos
de trabalho foram chamados de pós-tratamento .
12 passos, há uma estimulação também de criação de
12
Em Vila Serena também era ofertado um grupo de
Grupos de Narcóticos Anônimos e de familiares (Na-
reflexão e acompanhamento para ex-residentes e que
ranon), já que se iniciava o grande ‘boom’ de consumo
fazia parte do chamado pós-tratamento (Burns, 1995,
das drogas ilícitas.
p. 25-27). Isto implica na idéia de que ‘tratamento’ se
Neste cenário de ambientes de tratamento percebe-
faz sob regime de internação e que o seguimento não
se o surgimento de um novo ator na figura do ex-depen-
é tratamento e sim pós-tratamento, ou seja, posterior
dente, o qual se prontifica a contar seu drama pessoal a
à exclusão social, em que pese ficar marcada como
outro, ainda em fase de recuperação, possibilitando, a
instrumento terapêutico à semelhança do tratamento
princípio, que o internado ou residente realize a iden-
moral dado aos loucos de toda sorte dos primórdios da
tificação a partir de suas vivências pessoais. Estes conse-
psiquiatria pineliana.
lheiros passam a atuar junto da equipe de saúde como
Naquela época, havia uma carência de profissionais
agentes de motivação e em certas unidades até mesmo
aptos para o atendimento aos dependentes. Médicos e
como figura central em programas de recuperação sob
outros profissionais estavam distantes desta realidade;
regime de internação, conforme ainda hoje é adotado
não havia elo de identificação, além da sabida falta
na grande maioria das comunidades terapêuticas15 que
total de preparo de profissionais da área de saúde e da
oferecem tratamento ‘leigo’ e sem a necessidade da pre-
Saúde Mental. Surge então como proposta de atenção
sença de pelo menos um médico clínico/psiquiatra na
aos usuários: utilizar-se daqueles que vivenciaram o
equipe, conforme a Portaria Anvisa 101/2001.
processo de uso de drogas e que saíram do ‘pesadelo
Esta modalidade de atuação, ‘aconselhamento’,
das drogas’13, através da ajuda de grupos de mútua-
até então não existia no escopo de atuação da equipe
11
Termo utilizado por entrevistado.
Esta abordagem compreende a questão das drogas como sendo uma doença de caráter exclusivamente orgânico e moral, sendo necessário o reconhecimento e a reparação do mal cometido a outros pelo uso da droga. O cunho religioso evangélico esteve presente desde a fundação dos Alcoólicos Anônimos (Ramoa, 1999). 12
13
Termo utilizado por entrevistado.
14
Ocupação muito consagrada nos Estados Unidos e desconhecida até então no Brasil.
No estado do Rio de Janeiro, a experiência das comunidades terapêuticas teve pouco êxito. No entanto, a Comunidade S8 em Niterói, criada em 1971, bastou para formar posteriormente uma forte tradição evangélica de atenção a dependentes. Esta comunidade leiga e de caráter filantrópico foi a pioneira e se mantém hoje como a mais antiga instituição de tratamento de dependentes . 15
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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
de Saúde Mental. Foi e continua sendo mal interpre-
Enfim, em todos os centros (com orientações meto-
tada e sem maiores aportes técnicos e teóricos ou de
dológicas diversas) abandonava-se uma postura clínica
representação profissional. Verificou-se, assim, que o
baseada na forma hierárquica de cuidado e passava-se
aperfeiçoamento e o treinamento foram desde o início
a uma atuação mais horizontal contando-se com uma
uma grande preocupação do pessoal que atuava nesta
equipe multidisciplinar.
área. No caso de aconselhamento, contudo, houve um
Até 1995, o modelo predominante no Rio de
verdadeiro ‘boom’. Todos se arvoraram de cuidadores de
Janeiro foi centrado no hospital e totalmente desar-
dependentes de drogas e houve uma vasta proliferação
ticulado com o sistema ambulatorial. Em termos de
de pequenos treinamentos, de modo geral capitaneados
seguimento, existia o que se chama ainda hoje de pós-
pelas clínicas privadas para atender a qualquer interessa-
tratamento, geralmente um atendimento semanal em
do, sem quaisquer requisitos acadêmicos prévios.
grupo, pelo prazo de 12 meses, o mesmo ocorria nos
No período de 1980 a 1989, o papel da equipe de
programas financiados pelas empresas. Estas encami-
Saúde Mental e do profissional de saúde ainda tinha
nhavam seus empregados às clínicas particulares, que
pouca relevância. Esta situação perdurou até 1990,
realizavam um acompanhamento, geralmente dentro
quando se se constataram inúmeros casos de comorbi-
da empresa, em grupos de empregados que passaram
dade psiquiátrica .
por internação em clínica particular. O próprio ter-
16
Exceto a necessidade premente de utilização de téc-
mo ‘pós-tratamento’ já mostra o quanto se enfatiza
nicas específicas de terapia de família e de outros suportes
que o tratamento do dependente de drogas se dá via
psicoterapêuticos, os psiquiatras assumiram naquela
internação em um centro de tratamento e em regime
época a liderança de muitas equipes. Mas, começava a
de exclusão. Não se falava ainda em reabilitação psi-
se delinear uma psiquiatria diferente na relação com o
cossocial e reinserção social, pois pela metodologia dos
poder médico, em que o cuidado é obrigatoriamente
12 passos a abstinência e sua manutenção eram a única
compartilhado com o restante da equipe, frente por um
meta no tratamento.
lado, ao pobre arsenal psicofarmacológico disponível, e
Outro modelo de assistência aos usuários foi a
por outro, à magnitude do problema ‘drogas’ com suas
comunidade terapêutica, mas praticamente não existiu
múltiplas causas e a necessidade de atuação multidisci-
modelo de assistência em nosso estado, exceto pela pre-
plinar, assumindo-se, assim, o compartilhamento das
sença da Comunidade S8. No entanto, foi largamente
decisões em grupo, seja com relação ao diagnóstico ou
adotado em vários estados brasileiros, principalmente
para traçar, em conjunto, as estratégias terapêuticas no
por comunidades ligadas às entidades religiosas católicas
plano de trabalho. Negociam-se metas com o próprio
e evangélicas17. Realizava acompanhamento de pós-in-
paciente que assume um papel ativo no seu tratamento.
ternação por nove meses, o qual envolvia o ambulatório
Estudos americanos em epidemiologia de comorbidade de transtornos relacionados ao álcool, drogas e outras desordens psiquiátricas como o Epidemiologic Cathment Area (ECA) Study mostram que mais da metade dos usuários de álcool e/ou de drogas teriam, pelo menos, uma comorbidade associada. No caso da cocaína, 76% dos usuários teriam um transtorno psiquiátrico adicional. Assim, existiriam as seguintes prevalências: 15,7% no último mês, 19,5% nos últimos seis meses e 32,7% ao longo da vida. Em outro estudo importante, o National Comorbidity Survey (NCS) de 1994, estima que 48% de 8.098 entrevistados entre as idades de 15 a 54, reportaram abuso de substâncias e de álcool e/ou de transtornos psiquiátricos ao longo da vida. Dos 26,6% que possuíam algum transtorno ligado ao uso de substância, a metade seria devido ao álcool. Quadro de ansiedade (24,9%) e doenças afetivas (19,3%) respondem pela maioria destes transtornos. (apud Beeder, A.B; Millman, R.B, 1997) 16
A comunidade terapêutica baseia-se num modelo que busca integrar diversas abordagens: a médica (psiquiatria e clínica médica), a psicossocial (o modelo de base psicanalítica, terapia familiar) e a cultural (atividades de caráter espiritual, recreativo e intelectual), preconizando um regime de internação muito longa, em torno de nove meses, com fortes características de incentivo a mudanças comportamentais. 17
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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •
Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
de dois meses e a freqüência a grupos de mútua-ajuda. E
o setor publico filantrópico e de ONGs (organizações
os trabalhos da Clínica Day Top e Synanon18 dos Estados
não-governamentais) consignados no Programa de
Unidos são adotados como sistema de tratamento.
Atenção a Criança e ao Adolescente Usuário de Drogas,
No período de 1995 a 2000 inicia-se a inclusão de
da Fundação para a Infância e Adolescência, ligada a
novos atores no panorama de assistência aos usuários de
Secretaria de Ação Social e Cidadania do estado permi-
álcool e outras drogas no estado, até então dominado
tindo uma ampla cobertura a outras cidades do estado
por iniciativas lucrativas. Houve um importante avanço
do Rio de Janeiro. Totalizam sete unidades ambulatoriais
e inicia-se o processo de especialização dos serviços em
e de internação e três instituições ligadas à prevenção
nossa área, com a criação na Universidade Federal do Rio
instaladas e que mantém convênios com a FIA. Os
de Janeiro (UFRJ) do Centro de Estudos e Reabilitação
modelos de tratamento são os mais diversos, desde
do Alcoolismo (Cepral) no Instituto de Neurologia
serviço universitário como o da Universidade Federal
(INDC) e do Programa de Assistência ao Usuário de
Fluminense, aos de cunho religioso e são oferecidos
Drogas (Projad) do Instituto de Psiquiatria (Ipub), bem
programas a adolescentes ‘infratores ou não’, na área de
como, a implantação na Santa Casa da Misericórdia dos
prevenção, internação e ambulatorial.
Programas de Tabagismo e de Alcoolismo.
Neste momento histórico surgem duas novas
Finalmente, inicia-se neste período, no âmbito da
instituições que trazem um novo paradigma para o
universidade, a consecução de sua missão primordial
panorama da assistência pública no estado: o Centro
que é a de treinamento, ensino e pesquisa. São defen-
de Recuperação de Adictos (Centra-RIO), o primeiro
didas as primeiras teses universitárias no Rio de Janeiro
hospital-dia público na zona sul da cidade criado no final
neste campo de saber. Consolida-se, no Rio de Janeiro,
de 1998, que apresentou um crescimento vertiginoso no
uma nova geração de professores e pesquisadores sobre
volume de atendimentos aos usuários de álcool e drogas,
dependência de drogas e com grandes perspectivas de
atualmente conta com cerca de cem casos novos/mês
criar novas linhas de pesquisas no futuro. No âmbito
o que confirma a nosso ver a previsão de que ainda há
privado de ensino criam-se as primeiras pós-graduações
uma grande demanda reprimida de pessoas com estes
em dependência química na Universidade Estácio de Sá
transtornos que necessitam de ajuda.
e no Instituto Brasileiro de Reabilitação (IBMR) para
O segundo momento foi com a implantação do
formar, capacitar e oficializar novos profissionais da área
setor de atendimento ao usuário de álcool e outras drogas
de Saúde Mental e afim, desejoso de atualizarem um
junto ao Conselho Estadual Antidrogas (Cead). O Cead
conhecimento algumas vezes previamente adquirido na
logo assumiu a tarefa do estabelecimento de diretrizes
suas práticas, mas sem a sistematização de um ensino
políticas na área de assistência a dependência de drogas.
formal acadêmico.
As recomendações preconizadas durante o I Fórum Esta-
Ocorre um verdadeiro boom nesta área, até então,
dual Antidrogas, realizado pelo Cead, cuja tarefa foi de
tão carente. Viu-se a instalação maciça de novos serviços
organizar as políticas de atuação no setor de prevenção,
e mesmo de novas formas de financiamento do setor
tratamento e reabilitação de dependentes, desenhadas
público e foi aberto um amplo leque de parcerias entre
naquele encontro. O Cead, através do Deprid, assume
Segundo Saád (2001, p. 18), por volta de 1953, surge na Califórnia uma nova modalidade de tratamento, a comunidade terapêutica denominada Synanon. Seu fundador utilizou conceitos de comunidades terapêuticas psiquiátricas da medicina militar e conceitos de Alcoólicos Anônimos, mas a comunidade terapêutica estava mais compatível com os conceitos de reabilitação psicológica da visão criminal do uso de drogas, exceto que estava empenhada em construir uma comunidade policialesca como um passo para a redenção dos adictos. 18
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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
a missão de operacionalizar uma política de assistência
1999, localizada no bairro de Santa Cruz no espaço
aos usuários de drogas em nosso estado. Deixa de ser
arquitetônico asilar, onde funcionou o Hospital Psiqui-
um órgão meramente consultivo, passando a ocupar um
átrico Raimundo Nonato. Em 2001 é implementada
espaço político de ponta, em termos da formulação de
a segunda clínica de regime de internação, a clínica
políticas de saúde pública na área de alcoolismo e outras
Ricardo Iberê Gilson, em Valença, na qual funcionou
drogas e na assistência ao usuário de drogas. Naquele
um reformatório para adolescentes infratores. E a
momento político o governo do estado do Rio de Janeiro
terceira clínica Nise da Silveira em Barra Mansa. Tais
assumiria através do Cead uma política de assistência
unidades (perfazem o número de três, com proposta de
aos usuários enfatizando o seu vetor social no estado.
expansão, tendo cada uma 90 leitos disponíveis) estão
Assim, ao assumir a função de assistência e acolhimento
ligadas à Secretaria de Ação e Desenvolvimento Social
aos usuários de drogas e à suas famílias, favorecendo a
e relegam ao SUS/Secretaria de Estado da Saúde um
eqüidade e acessibilidade ao cuidado, de forma universal,
papel secundário na formulação e implementação desta
modifica drasticamente o panorama da assistência que
política, o que tenta ser modificado a partir de uma
no início da década passada estava restrito às clinicas
política de Saúde Mental implantada pelo Ministério
privadas, a algumas obras filantrópicas ou ao hospital
da Saúde e que privilegia a implantação dos Caps ad.
psiquiátrico. Não se pode deixar de ressaltar o fato de
a partir de 2001.
que durante esse período vinham sendo pensadas formas
O Ipub/UFRJ, ao criar o Programa de Estudos e
de implantação de uma política pública para o setor,
Assistência a Usuários de Drogas (Projad/UFRJ), faz no
no campo da Saúde Mental e que a iniciativa do Cead
contexto de tornar-se um centro de referência formador
de implantar um espaço de assistência ocorre de forma
de recursos humanos junto ao Ministério da Saúde no
totalmente desarticulada com as propostas divulgadas
tocante ao treinamento e capacitação de profissionais
pelas Conferências Nacionais de Saúde Mental, estando
do setor público que atuarão nos Centros de Atenção
inclusive, na ‘contramão’ de tal proposta, que privilegia
Psicossocial para Álcool e outras Drogas (Caps ad), os
uma assistência pautada no modelo de reabilitação psi-
quais seriam implementados a partir de 2003.
cossocial, não se baseando na internação como elemento primordial de uma assistência.
No campo da Saúde Mental não foi traçado até 2001, alguma política oficial específica para a depen-
Na virada do século, ou seja, de 1999 para 2000,
dência de drogas ainda que por parte do SUS houvesse
assiste-se a um crescimento de 300% nos atendimentos
previsão orçamentária para recuperação dos ‘viciados’19.
no Cead. Pelas estatísticas divulgadas no ano de 2001,
Pelo contrário, no Brasil, o foco das políticas públicas de
observou-se um aumento de mulheres dependentes de
álcool e outras drogas saíram do âmbito do Ministério
drogas procurando ajuda, a maioria associada ao uso
da Saúde e foi para o âmbito do Ministério da Justiça,
indiscriminado de tranqüilizantes. Diante do enorme
inicialmente com a criação do Conselho Federal de
incremento de seu ambulatório, o Cead propõe ao
Entorpecentes (Confem) em 1987, o qual pautou o
Governo do Estado a implementação da primeira
momento de sua atuação no plano governamental nos
clínica popular de internação pública especializada no
últimos anos no estabelecimento de políticas ligadas à
estado, a Clínica Michelle de Morais, em dezembro de
ações de repressão aos entorpecentes.
Artigo 32 § 1ºque diz que metade da receita de que trata o inciso I do artigo um deste artigo, apurada mensalmente, a qual será destinada à recuperação de viciados. 19
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Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Em 2001, o Brasil adota em âmbito nacional uma
partir do saber da mesma e não que estejam defendidos
Política Antidrogas que representa um grande avanço ao
em posições rígidas apoiadas em saberes pré-estabelecidos.
aderir às diretrizes da Redução de Demanda, no lugar
Ou seja, a criação dessa rede é algo extremamente novo e
de priorizar somente as ações de cunho eminentemente
na contramão de propostas como Justiça Terapêutica ou
repressivo e de segurança. Opera a partir de quatro dimen-
práticas centradas na internação como modelo de inter-
sões da ação antidrogas: prevenção, repressão, tratamento
venção. Foram propostas articulares práticas novas, tais
e recuperação, reinserção social e a redução de danos.
como internação domiciliar a programas já existentes de
O Ministério da Justiça ao assumir a liderança na
Saúde Mental e de saúde da família, para que se possa a
questão álcool e outras drogas, torna uma questão de
partir de demandas produzir mudanças efetivas na vida
estado por força de pressões internacionais. Posterior-
de quem sofre ou de quem compartilha do sofrimento
mente, após a 20ª Reunião das Nações Unidas em l998, a
associado ao uso indevido de drogas.
Presidência da República extingue o Confem e transfere suas atribuições ao Gabinete Militar da Presidência da República com a criação da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) e fomenta seus desdobramentos aos níveis estaduais e municipal na luta antidrogas. Ou seja, o ‘combate’ às drogas passa a ser visto como uma política de capital importância para a preservação e manutenção
R E F E R Ê N C I A S
do estado brasileiro. É a partir desse contexto histórico apresentado que se deve entender os impasses para a implantação de uma nova política para álcool e outras drogas, como proposta pelo Ministério da Saúde quando lança o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos
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Usuários de Álcool e outras Drogas (Portaria 816/GM, 30/04/2002) e quando dispõe sobre as normas para funcionamento e cadastramento de Caps ad, bem como sobre o Programa Permanente de Capacitação para a Rede de Caps ad (Portaria 305/SAS de 03/05/2002). Para que se crie uma rede de atenção ao usuário de drogas é preciso efetivar a atual legislação em Saúde Mental, articular os diversos setores produtivos da sociedade, para que a mesma possa ser de fato uma sociedade solidária, na qual cuidar do diferente torne-se uma conduta ética por parte de todos. Para tal é preciso que ideologias sejam desconstruídas e para isso nada melhor do que fazer com que os profissionais de Saúde Mental estejam inseridos nas comunidades e que possam atuar a
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Vaissman, M.; Ramôa, M.; Serra, A.S.V. •
Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
______. Gabinete de Segurança Institucional. Secretaria Antidrogas. Política Nacional Antidrogas. Brasília, 2001. Disponível em:. Acesso em: 24 nov. 2008. ______. Gabinete de Segurança Institucional. Secretaria Antidrogas. O Sistema Nacional Antidrogas e a Redução de Demanda. Brasília, DF, 2001. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2008. ______. Ministério da Saúde. Secretária Executiva. Secretária de Atenção a Saúde. Coordenação Nacional DST/Aids. A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: 2003. ______. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada n. 101, de 30 de Maio de 2001. Burns, J. O caminho dos doze passos: tratamento de dependência de álcool e outras drogas. São Paulo: Loyola, 1995. Costa, J.F. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Taurus, 1988. Minayo, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 4. ed. Rio de Janeiro: Hucitec/ Abrasco, 1996.
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
Recebido: abr./2008 Aprovado: nov./2008
ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família Tick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health Strategy
Ionara Vieira Moura Rabelo Rosana Carneiro Tavares 2
1
Psicóloga do Centro de Apoio
Psicossocial (Caps) Beija Flor – SMS Goiânia; doutoranda em Psicologia
1
RESUMO Este trabalho apresenta os resultados de uma intervenção psicossocial planejada para atender mulheres que estavam usando medicação ansiolítica. Esta
pela Universidade Estadual Paulista
intervenção foi organizada por uma equipe de profissionais do Centro de Atenção
(Unesp).
Psicossocial (Caps ii) em conjunto com equipes de saúde da família (ESF). Ao todo
[email protected]
foram realizados dez encontros com diferentes dinâmicas de grupo, desenvolvidas
2
Psicóloga do Caps Beija Flor – SMS
para o grupo de mulheres e ESF com o objetivo de problematizar o papel da
Goiânia; mestre em psicologia.
mulher em conjunto com o significado do remédio na construção desta identidade.
[email protected]
Constatou-se que o grupo ajudou estas mulheres a entenderem seu sofrimento para além do sintoma, uso racional, bem como a retirada da medicação. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Gênero; Programa Saúde da Família.
ABSTRACT This paper presents the results of a psychosocial intervention planned to attend women who were taking anxiolytic medicines. This intervention was carried out by a professional team from the Mental Health Services (Caps ii) along with professional groups of the family health strategy. In total, ten weekly meetings using different group dynamic techniques were accomplished developed for women and professionals from the family health strategy. These meetings aimed at discussing the women’s role, together with the meaning of the medicine in the construction of a identity. It was found that the group helped the participants to understand their suffering beyond the symptoms, the rational use and the withdrawal of the medication. KEYWORDS: Mental Health; Gender; Family Health Program.
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RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.
I N T R O D U ç ão
da especialização, e, portanto, ampliam para fora do hospital psiquiátrico todas as estratégias de atenção em Saúde Mental. A partir destas considerações coloca-se a relevância deste trabalho, a qual propõe relatar uma experiência realizada no município de Goiânia a partir
A Reforma Psiquiátrica coloca-se como um desa-
do ano de 2006, entre a equipe de um Caps II que
fio às ações de Saúde Mental na atenção básica, pois
atende a usuários com transtorno mental e duas equipes
confronta a lógica do encaminhamento, bem como
de saúde da família.
reafirma a comunidade como o locus para o atendimento
Este trabalho iniciou-se a partir de um levanta-
aos transtornos metais. É a partir deste princípio que
mento realizado pela equipe de mulheres atendidas
os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) se propõem
nesta comunidade que faziam uso continuado de
a trabalhar em conjunto com as equipes de atenção à
ansiolíticos. A proposta de busca apenas por mulhe-
saúde da família, atualmente nomeadas como Estratégia
res ocorreu em função de estudos que indicam uma
Saúde da Família (ESF), através de diferentes estratégias
prevalência de pessoas do sexo feminino como sendo
de atuação em cada região do país.
o público que mais faz uso abusivo de ansiolíticos.
Desde as primeiras oficinas propostas pelo Mi-
Sendo assim, justificam-se a relevância e a contempo-
nistério da Saúde, realizadas no ano de 2001, para se
raneidade deste estudo por avaliar que a consolidação
avaliar a inclusão de ações de Saúde Mental na atenção
de novos paradigmas de atenção em Saúde Mental
básica, houve a discussão tanto dos principais proble-
depende das possibilidades de reinvenção da atuação
mas e situações de risco em Saúde Mental, bem como,
em comunidades.
o direcionamento para estratégias de intervenções comunitárias conjuntas, estudos de caso, construção de projeto terapêutico individualizado, evitando assim a lógica do encaminhamento. Percebe-se que a
OS ENCONTROS POSSÍVEIS: SAÚDE MEN-
princípio o Governo Federal optou por uma lógica
TAL E ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
nomeada como matriciamento (ou apoio matricial) para a atuação de equipes de Saúde Mental em conjunto com as ESF.
O compromisso com a intervenção nos processos de adoecimento, através de ações localizadas na comuni-
O apoio matricial é uma estratégia que busca co-
dade, tem sido um eixo norteador da política de atenção
nhecer e interagir com as equipes de atenção básica em
básica em saúde que se fortaleceu com a implantação
seu território; procura estabelecer iniciativas conjuntas
da Estratégia Saúde da Família (ESF), anteriormente
de levantamento de dados relevantes sobre as demandas
nomeada como Programa de Saúde da Família (PSF).
em Saúde Mental no território; atender conjuntamente
Até o ano de 2007, estas equipes totalizaram aproxima-
situações complexas, realizar visitas domiciliares acom-
damente 29 mil em todo o território nacional, atingindo
panhadas da equipe e atender casos complexos em
cerca de 90 milhões de brasileiros.
conjunto (Brasil, 2007).
Porém, percebe-se que essas equipes apresentam
É importante ressaltar que tais estratégias confron-
deficiências quanto às atuações em Saúde Mental visto
tam o modelo manicomial, pois rompem com a lógica
a hegemonia do modelo biomédico (Filho; Rocha;
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008
RABELO, I.V.M, TAVARES, R.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.
França, 2006). Dessa forma, nota-se a importância na
janeiro de 2008. Tal portaria cria os Núcleos de Apoio
reflexão e pesquisa sobre estas novas práticas que se inse-
à Saúde da Família (Nasf), compostos por profissionais
rem no processo da reforma sanitária brasileira, elegendo
de diferentes áreas de conhecimento com o objetivo
neste instante o núcleo familiar como possibilidade de
de apoiar, atuar em conjunto e compartilhar com a
intervenção e manejo do processo saúde e doença.
ESF, práticas em saúde nos territórios sob responsabi-
Simultaneamente à implantação e implementação
lidade das mesmas. A portaria recomenda a presença
das equipes de saúde da família, o Ministério da Saúde
de pelo menos um profissional de Saúde Mental na
totalizou a implantação de aproximadamente 1.100
implementação das equipes dos Nasf, porém, não há
Caps em todo Brasil.
exigência que este profissional esteja lotado nos Caps
Para detectar a necessidade de expansão da rede de
do território, mas apenas que esteja lotado em uma
Saúde Mental, a proposta do Ministério da Saúde (Bra-
das unidades de saúde do território. Tal fato deve ser
sil,
2005) é de um Caps para cada 100 mil habitantes,
objeto de discussão dentro de cada município, pois
porém o critério populacional não deve ser o único para
ficará a critério do gestor local a escolha da composição
se planejar a rede de Saúde Mental, cabendo ao gestor
e lotação das equipes dos Nasf. Esta proposta fomenta
local junto a outras instâncias planejar os dispositivos
novos debates, e propõe que profissionais dos Caps
que melhor atendam à população local. Ao avaliar-se
fiquem atentos para que as Nasf e os Caps não passem
apenas os Caps direcionados para o atendimento aos
a desenvolver atividades paralelas, mas que possam
usuários com transtornos mentais, considera-se que os
funcionar em rede para a atenção em Saúde Mental
Caps I dá resposta efetiva a 50 mil habitantes, os Caps
no mesmo território.
II dá cobertura a 100 mil habitantes, e os Caps III a 150
Ao mesmo tempo em que novos dispositivos são
mil habitantes, sendo assim, de acordo como Ministério
criados, os trabalhadores de Caps e equipes de saúde da
da Saúde, há déficit em todas as regiões brasileiras, pois
família já têm construído experiências muito ricas em
atualmente os Caps estão assim distribuídos: região
Saúde Mental, mesmo que nomeadas diferente, mas que
Norte com 0,19 Caps; região Nordeste com 0,28 Caps;
mantém entre si a lógica do matriciamento, onde são
região Centro-Oeste com 0,27 Caps; região Sudeste
priorizadas a supervisão, o atendimento compartilhado
com 0,34 Caps e região Sul com 0,41 Caps por 100
e a capacitação em serviço, com o objetivo de aumen-
mil habitantes.
tar a capacidade resolutiva das ações de Saúde Mental
Mesmo ao se considerar um mapa com tantas
naquele território.
deficiências, para um país de dimensões continentais,
A atuação de forma compartilhada permite a
é importante ampliar o debate sobre a Saúde Mental,
integralidade das ações e favorece o trabalho de ques-
pois a lógica do território como espaço de relações e
tões de forma transversal como o conceito de gênero,
trocas, que permeiam os princípios do Caps e da Saúde
o qual é capaz de interligar situações de exploração,
da Família, terminam por contribuir para a conver-
discriminação, violência, salientando determinantes
gência de ações apoiadas por um mesmo paradigma
sociais e culturais que interferem na saúde de mulheres.
em saúde.
Para melhor especificar como o conceito de gênero se
A integração prevista entre os Caps e a ESF passa
inscreve de maneira importante no cotidiano de Saúde
a ser discutida sob um novo enfoque quando, o Minis-
Mental, são discutidos alguns estudos que abordam
tério da Saúde (2008) publica a Portaria 154 em 24 de
esta temática.
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INTERFACES SAÚDE MENTAL E GÊNERO
de depressão, 78% queixavam-se de sintomas de ansiedade e insônia, 39% confirmavam ideação suicida e 24%
Para confrontar o cotidiano excludente das re-
iniciaram o uso de medicação ansiolítica após as situa-
lações em sociedade é necessário pensar as relações
ções de agressão. Mesmo que tal estudo seja norteado
historicamente construídas de exploração da mulher,
pela semiologia psiquiátrica, ele é válido no sentido de
pobre, negra, analfabeta, louca, desempregada que mora
apontar como a rede de conflitos sociais que, em alguns
longe e sofre violência física por parte do parceiro. Dar
casos configuram-se também como violência intrafami-
nome, cor, sentido, data e hora para o sofrimento, pode
liar, é constituinte do campo da Saúde Mental.
possibilitar aos trabalhadores e usuários dos serviços
A situação de violência familiar constrói diferentes
construírem reflexões sobre o que estão vivenciando,
processos e resistências, porém, pode-se avaliar o quanto
possibilitando a transformação desta identidade nome-
crianças, adolescentes e mulheres (mães de crianças,
ada como vítima-doente, podendo ser reposicionada
vítimas de abuso sexual) também apresentam conflitos
e não só ceder à mera repetição de uma identidade
e sofrimento diante da lei do silêncio imposta pelas
pressuposta pelo outro (Ciampa, 2001).
relações de poder (Araújo, 2002).
Ao se procurar estudos que tentam compreender as
Pode-se também, encontrar discussões como as rea-
trajetórias e pontos de aproximação e afastamento das
lizadas por Maragno; Goldbaum, Gianini e Novaes, em
categorias Saúde Mental e gênero, percebem-se duas
que se detectaram diferenças significativas na prevalência
grandes bases teóricas: abordagens epidemiológicas com
de transtornos mentais comuns em determinados grupos
base no modelo biomédico e abordagens sociológicas
populacionais, sendo maior entre mulheres, idosos e
que tentam compreender os determinantes sociais e as
pessoas com menor renda ou de menor escolaridade.
representações compartilhadas que estão presentes no
Este estudo foi realizado em regiões periféricas da ci-
fenômeno.
dade de São Paulo e demonstra o quanto os processos
Os estudos de base epidemiológica (Nunes Filho; Bueno; Nardi, 2000) afirmam que a prevalência de
que envolvem o sofrimento psíquico conectam-se aos indicadores de vulnerabilidade social.
transtornos mentais leves é maior entre mulheres,
Neste cenário de turbulência das relações de violên-
principalmente em áreas urbanas. Com relação ao
cia e exploração sociais, é necessário salientar o conceito
transtorno depressivo, ele ocorre três vezes mais em
de gênero como categoria que se afasta dos princípios
mulheres que em homens, tais dados avaliam de forma
essencialistas ao tentar explicar o ser humano, e tenta
essencialista a Saúde Mental, transformando sofrimento
investigar a realidade de maneira plural, histórica e
em adoecimento.
cultural (Guacira,1997). Neste sentido, pode-se pensar
Por outro lado, as abordagens sociológicas irão
como as experiências vivenciadas por mulheres, que
enfatizar os estudos sobre como as situações de vio-
não se igualam sob esta nomenclatura, podem produzir
lência, exploração e gênero interferem no processo
‘sofrimentos psíquicos’ (reforça-se aqui o plural porque
saúde-doença. Como exemplo pode-se citar o estudo de
também plural será o sofrer) diante da significação que
Adeodato; Carvalho; Siqueira e Souza (2005), no qual
dão e recebem sobre seu cotidiano.
em uma amostra de 100 mulheres que foram agredidas
Como exemplo desta perspectiva, cita-se o estudo de
por seus parceiros e fizeram denúncia na Delegacia da
Alves (2002) no qual o sofrimento descrito por mulheres
Mulher do Ceará, 72% apresentaram quadro sugestivo
idosas, ao narrarem suas histórias de vida, é nomeado
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como ‘nervoso’, ou seja, relatam como uma vida vinculada
O Caps E A ESF:
à pobreza e violência gerando experiências de fragilização,
CO-AUTORIA EM SAÚDE MENTAL
e tais experiências são objetivadas num sofrimento culturalmente compartilhado, como relatos do nervoso.
O trabalho desenvolvido foi planejado em conjunto
A partir da concepção de que Saúde Mental e gêne-
com as enfermeiras de duas equipes de saúde da família
ro tecem fios que podem ser tocados nas relações entre
e com os agentes comunitários destas equipes. O pla-
profissionais de saúde e comunidade, pode-se pensar em
nejamento em conjunto teve como principal objetivo
tais fios que ao mesmo tempo em que produzem sentidos
possibilitar a aproximação da equipe do Caps com as
para as mulheres, também constroem barreiras entre
equipes de saúde da família e romper com o estigma de
profissionais e pacientes, na medida em que existam
que trabalhar a Saúde Mental é ação restrita de unidades
trabalhadores que não conseguem mais ouvir o sofrer e
de Saúde Mental, cuja compreensão coloca a atuação do
o transformam em dor ou querelância, e a resposta para
ESF na lógica de encaminhamentos quando se detecta
este problema será a coisificação-medicalização.
problemas de ordem psíquica.
Com base no que foi exposto acima, pode-se refletir
O planejamento deu-se por meio de reuniões com
o grande investimento que o Brasil tem feito a fim de
as equipes de Saúde da Família, a fim de fazer levanta-
criar novos dispositivos de atenção em Saúde Mental.
mento da demanda, de quais seriam os problemas viven-
Dessa forma, torna-se essencial que os trabalhadores de
ciados pela população do bairro que pudessem indicar a
Saúde Mental estejam envolvidos nesse processo, trans-
existência de sofrimento psíquico. Buscou-se nesta fase
versalizando o aparato biomédico com possibilidade de
priorizar a atenção à população feminina que estivesse
intervenções que possam enriquecer não só o referencial
fazendo uso continuado de ansiolítico ou que estivesse
teórico, mas também as estratégias utilizadas.
solicitando à equipe de saúde o uso da medicação. Para
Sendo assim, fundamenta-se a discussão de gênero
este levantamento foram feitas buscas em todos os
como um dos prismas que pode transversalizar este ema-
prontuários das duas equipes, a fim de detectar aquelas
ranhado, pois esta temática é capaz de tocar diferentes
famílias que tivessem mulheres em uso de ansiolíticos
experiências, ao mesmo tempo em que desencadeia
e/ou de antidepressivos. Com este levantamento foram
reflexões pertinentes ao viver em comunidade.
encontradas nas duas equipes, 53 mulheres com este
A conectividade do sofrimento psíquico às questões
perfil (27 de uma equipe e 26 de outra).
transversais da vida em sociedade, como por exemplo, as
Após este primeiro levantamento foram planejadas
questões de gênero, torna-se a principal referência para a
visitas domiciliares a todas essas mulheres, a fim de
atuação em Saúde Mental. Nessa perspectiva, destaca-se
conhecer a história de vida e uso de ansiolíticos. Tais
o trabalho desenvolvido por um Caps de Goiânia, em
visitas foram realizadas pelos agentes comunitários de
conjunto com duas equipes de saúde da família, cujo
saúde (ACS) e tiveram importante papel para a capaci-
principal objetivo foi retomar o sofrimento psíquico pelo
tação em serviço dos ACS, pois constituíram elementos
viés do sofrimento sócio-afetivo relacionado às questões
de re-significações do que é adoecimento psíquico e
de gênero, e proporcionar aos profissionais de saúde
de como os sintomas aparecem no curso de vida das
da família a ampliação das possibilidades de reflexão e
pessoas. Todos os casos visitados foram discutidos em
compreensão do adoecimento psíquico para além dos
equipe e propiciaram aos ACS trabalhar com crenças,
aspectos biomédicos dos sintomas.
tais como, ‘usam remédio porque não conseguem dor-
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mir’; e reelaborar novos significados que permitissem
vo do grupo e motivá-las para a participação nos encon-
compreender os sintomas como não desconectados da
tros. Foi desenvolvida uma dinâmica de apresentação,
vida e da realidade dessas mulheres. Com os estudos de
com gravuras de conteúdos diversos e solicitou-se que
caso a equipe de saúde da família pôde conectar, por
cada uma das mulheres escolhesse a gravura que melhor
exemplo, a insônia com a realidade de vida das mulheres,
representasse o seu jeito de ser e que permitisse a sua
com relações de poder e com questões sociohistóricas
apresentação por meio desta gravura. Essa dinâmica foi
de gênero.
suficiente para uma significativa mobilização de algumas
O passo seguinte foi planejar quais seriam as
mulheres e permitiu a reflexão quanto à necessidade de
intervenções a serem realizadas. Decidiu-se, assim, or-
propor vivências e dinâmicas menos complexas e mais
ganizar reuniões semanais e convidar essas mulheres a
lúdicas, a fim de evitar a auto-exposição desnecessária,
participarem. O planejamento das reuniões era realizado
mas muitas vezes inevitável, dadas as poucas oportuni-
semanalmente com as equipes de saúde da família. As
dades de fala e reflexões que essas mulheres têm no seu
reuniões semanais com as mulheres ocorriam com a par-
cotidiano;
ticipação de duas psicólogas do Caps, de uma enfermeira da equipe de saúde da família e de uma ACS. Após cada
• complementação de um pensamento: foi solici-
reunião com o grupo de mulheres foram realizadas reu-
tado que cada mulher do grupo completasse a seguinte
niões com todo o restante dos ACS, a fim de apresentar
frase: ‘Se eu pudesse, eu trocaria meu remédio por...’.
os conteúdos trabalhados, avaliar o desenvolvimento do
O objetivo era possibilitar a reflexão do sentido do uso
grupo de mulheres e planejar o que seria trabalhado na
do remédio na vivência de cada mulher, ou seja, buscar,
semana seguinte.
minimamente, conectar o sintoma gerador do uso da
Os encontros semanais com as mulheres tinham
medicação à realidade vivenciada por cada mulher. Nesta
como objetivo problematizar o papel da mulher na re-
dinâmica foi possível emergir conteúdos relativos ao
alidade histórico-social, em conjunto com o significado
desejo por estabilidade financeira, à vontade de sentir-se
do remédio na construção da identidade feminina. Fo-
feliz, ao desejo de ter novamente a alegria de antes e de
ram desenvolvidas dinâmicas e vivências que pudessem
retomar vínculos com familiares, o qual foi colocado por
transportar as mulheres ao núcleo de seus sentimentos
algumas como tendo sido perdido, em função do casa-
e sofrimento, como meio de fazer a junção entre os
mento, das dificuldades financeiras (muitos familiares
sintomas (que exigiam o uso da medicação) e a realidade
moravam em outras cidades ou o marido as impedia de
vivenciada (opressora e impeditiva de rompimentos).
vê-los, etc). Foram expressos conteúdos de identidade
De todas as experiências realizadas destacam-se al-
de gênero e sua relação com o casamento, o sofrimento
gumas mais provocadoras de reflexões e importantes para
de algumas mulheres pelo fato de serem obrigadas a
a compreensão da efetividade do trabalho ora apresenta-
romper com o seu núcleo familiar primário e ter de se
do. São descritas a seguir algumas destas dinâmicas:
adaptar à cultura imposta pelo esposo;
• apresentação com figuras: no primeiro encontro
• recortes de nomes e características: tal dinâmica
foi realizada uma dinâmica de apresentação, cujo objeti-
foi planejada, em função dos conteúdos emergentes
vo foi conhecer as mulheres que estavam participando,
na dinâmica anterior com relação ao afastamento do
propiciar o conhecimento entre elas, esclarecer o objeti-
núcleo familiar primário. Foi solicitado que cada mu-
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lher escrevesse o seu nome e sobrenome em uma folha,
e assim sucessivamente. Com essa dinâmica surgiram
destacando cores diferentes para cada nome/sobrenome
elementos que possibilitaram trabalhar questões de
e características que pudessem definir cada nome. O
gênero relativas ao papel da mulher no casamento, no
objetivo foi trabalhar a construção da identidade destas
qual ficou marcado um modelo idealizado de casamen-
mulheres em cada eixo familiar (mãe, pai e esposo).
to perfeito e o sofrimento advindo da realidade, ou
Foram emersos conteúdos relativos à formação da iden-
seja, da impossibilidade de realização de uma relação
tidade no seio familiar, como por exemplo, a família
homem/mulher plena. Foram trabalhados ditados
materna e paterna produzindo preconceito de raça; e
como: ‘Quem faz o casamento é a mulher’; ‘por trás
a construção da identidade familiar se contrapondo à
de um grande homem há sempre uma grande mulher’.
identidade construída com o casamento. Ou seja, foram
Foi constatada a dificuldade das mulheres em abando-
conteúdos que marcaram as contradições vivenciadas
narem as escolhas de forma ativa, de sair de relações
por essas mulheres, que ao se casarem renunciavam
infelizes sem necessitar ‘fugir’, os rompimentos relata-
a identidade construída em seu núcleo familiar e se
dos eram todos sem autonomia. Os conteúdos foram
rendiam à exigência de uma aceitação incondicional da
trabalhados buscando refletir a necessidade de que as
identidade da família construída com o esposo (esposa,
mulheres construam recursos pessoais e sociais que
mãe, cuidadora). Para o desenvolvimento desta dinâmica
permitam os rompimentos necessários ao bem-estar
houve um problema: algumas mulheres não sabiam ler
e à Saúde Mental. Dificuldade de lidar com a própria
e escrever. Na reunião de avaliação deste encontro com
sexualidade foi outro elemento que emergiu com essa
todos os ACS, estes avaliaram que o ambiente familiar
dinâmica e permitiu que fossem, minimamente, dis-
dessas mulheres é opressor e dificulta que os agentes
cutidos aspectos relacionados a gênero e sexualidade.
possam intervir. Os ACS refletiram também sobre as
Na avaliação com os ACS muitos se identificaram com
especificidades do bairro: distante, tem alto índice de
os relatos das mulheres, pois a maioria eram mulheres,
criminalidade que gera preconceito e dificulta o acesso
e neles elas puderam refletir suas próprias vidas. Foi
da população masculina a empregos, fazendo com
evidente a coincidência do início do uso da medicação
que as mulheres tornem-se arrimo de família. Foram
com o confronto e a realidade do casamento infeliz.
reflexões feitas pela equipe de saúde da família que, concretamente, retiraram o sofrimento como sendo
A realização da dinâmica da linha da vida durou três
apenas o sintoma (‘não dorme e por isso toma remédio’)
encontros e permitiu amplas reflexões, ressalta-se que o
e possibilitou sua compreensão pelo viés do sofrimento
conteúdo mais homogêneo que emergiu dos encontros
sócio-psico-afetivo.
entre todas as mulheres que freqüentaram o grupo é a condição histórico-social da identidade feminina cons-
• linha da vida: foi trabalhada a dinâmica da
truída para o casamento perfeito, no qual a mulher se
linha da vida, iniciando-se aos 15 anos e utilizando
incumbe do papel de fazer tudo o que o homem solicita
intervalos de cinco anos. Foi solicitado que cada
ou deseja; nunca dizer não ao homem; e sempre permitir
mulher representasse em um papel pardo (por meio
que o marido sugue todas as energias. Uma condição
de escrita ou qualquer outra expressão gráfica, como
que coloca na mulher a posição de impossibilitada de
desenhos ou símbolos) cada período de sua vida,
romper com uma relação infeliz e na qual muitas vezes
iniciando-se aos 15 anos e passando pelos 20, 25, 30,
não há, inclusive, percepção dessa infelicidade, visto que
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culturalmente se o casamento não está bom é porque a
anos utilizando a medicação em função de prescrições
mulher está agindo errado.
anteriores, requisitavam a continuidade da medicação
Esta condição histórica da mulher de se colocar
apenas porque entendiam que este tratamento era o mais
como principal responsável pela felicidade do casamen-
adequado, até o momento que perceberam, no grupo
to, aliada à condição do homem de não fazer concessões
realizado, que sua relação necessitava de algo mais que
na relação marital impõe à mulher, principalmente
abafar quimicamente seu sofrimento. Após estudo de caso
àquela que se encontra em desvantagem socioeconômica
com equipe do Caps, os médicos das ESF fizeram novas
e educacional uma postura de não conseguir romper
avaliações para hipótese diagnóstica e, contando com
com uma relação infeliz e nem superar os estigmas socio-
o apoio do grupo, foi possível a retirada do ansiolítico
culturais. Houve relatos de mulheres que se percebiam
em alguns casos, uso racional e troca de medicação em
infelizes na relação, mas não tinham recursos pessoais
outros. Algumas mulheres que foram ao grupo em busca
para superar suas dificuldades e romper com essa relação,
do medicamento encerraram o processo compreendendo
assim, algumas vezes, sentiam-se obrigadas a conviver
melhor os mecanismos geradores de sofrimento e as ha-
com um ‘homem-carrapato’.
bilidades sociais para lidar com os mesmos, sem que para
A expressão ‘homem-carrapato’ foi utilizada por
isso precisassem silenciar-se com o medicamento.
uma dessas mulheres e é retomada no presente artigo como sendo a forma mais fidedigna de expressar sua condição de vida ao lado de um homem que a massacra e que a impede de viver a própria vida, um homem cuja
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ação se limita a sugar o sangue da uma mulher presa a uma situação, cuja condição histórico-social a impede de se libertar.
O trabalho desenvolvido entre o Caps e as equipes de saúde da família, como capacitação em serviço por
Assim, possibilitar a essas mulheres momentos de
meio de estudos de caso e realização de grupos de gênero
reflexão e compartilhamento de todo o seu sofrimento,
possibilitou às ACS e às enfermeiras das equipes de saúde
advindo muitas vezes de sua própria condição sociohis-
da família a compreensão do sofrimento psíquico para
tórica, cria possibilidades de re-significação do sofrimen-
além do sintoma, pois inicialmente a associação feita
to e de ampliação de recursos pessoais e afetivos para
por esses profissionais era de que o uso de ansiolítico
lidar com o seu sofrimento. Fornece condições, mesmo
era devido e justificado por um sintoma específico: a
que minimamente, de reelaborar o papel da mulher na
insônia. Ao final, todos os profissionais da equipe de
formação do ‘homem-carrapato’, pois se ela procura de
saúde da família demonstraram novas compreensões
todas as formas atender a todos os desejos ou exigências
a respeito da insônia como indicando a existência de
do homem, obviamente ele se sentirá muito tranqüilo na
um sofrimento socioafetivo, mesmo que ainda não
relação e utilizará de todos os seus potenciais masculinos
totalmente declarado.
para manter-se nessa condição.
O trabalho em conjunto com as equipes de saúde
Após seis meses, foi realizada avaliação das atividades
da família permitiu não só a aproximação das equipes,
no grupo, e encerramento do mesmo. Neste período
mas também, a garantia da capacitação em serviço,
foram realizadas reuniões para estudo de caso de algumas
haja vista que no decorrer desta atividade, não só as
mulheres que participavam do grupo e estavam há vários
mulheres acompanhadas no grupo foram re-avaliadas
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com a possibilidade de se beneficiarem tanto das temá-
desta medicação para as usuárias do grupo em
ticas trabalhadas no grupo, bem como, da utilização do
acompanhamento na ESF, pois tais medicações não
uso racional da medicação. Por outro lado, entende-se
existem nestas unidades. Também com relação ao
que estes estudos de caso funcionam como capacitação
prontuário, foi estabelecido que haveria a evolução
em serviço, pois o conhecimento compartilhado entre
do prontuário da família (ESF), como forma de pri-
todos os profissionais ultrapassa os casos estudados e
vilegiar uma comunicação única, e mesmo que os/as
serve de apoio para manejos em outras situações que se
usuários(as) também estivessem em atendimento no
configurem demandas em Saúde Mental.
Caps, a equipe de Saúde Mental teria um prontuário
Pode-se considerar que o trabalho em equipe, com
na unidade, mas manteria atualizado o prontuário na
relação à estratégia saúde da família, propicia a re-signi-
ESF. Tal conduta facilitou o monitoramento do uso
ficação do sofrimento e a ampliação das ações do Caps,
de medicamentos, pois o ACS passou, a saber, por
rompendo com a lógica do encaminhamento. Tal ação
exemplo, o projeto terapêutico do usuário e apoiá-lo
traz para o profissional da unidade de atenção à família a
na implementação do mesmo, seja no uso diário da
condição de ser capaz de intervir efetivamente na Saúde
medicação, seja na busca por escolas e atividades de
Mental das pessoas da comunidade de sua abrangência,
geração de renda da região.
sem necessitar encaminhar a um serviço especializado
Como parte do protocolo, também com relação
uma possibilidade que se dá pela transversalidade das
às visitas domiciliares dos técnicos dos Caps, passou-
temáticas trabalhadas em Saúde Mental, como a pro-
se a agendá-las com antecedência para que fossem
posta aqui relatada de inserção da categoria gênero para
sempre realizadas com ACS e enfermeiras da ESF.
a compreensão do sofrimento psíquico.
Tal procedimento fez com que novas redes de suporte
É importante ressaltar que houve uma mudança
social começassem a interagir com as famílias com
significativa na percepção dos ACS, pois durante este pro-
pessoas com sofrimento psíquico grave. Tal fato foi e
cesso eles começaram a trazer casos novos de pessoas em
é crucial na diminuição das internações psiquiátricas
grave sofrimento psíquico, que se encontravam isoladas
e manejo das situações de crise, pois a família passa
em casa há vários anos. Este fato chama atenção, pois,
a contar com vários atores, e, portanto, não mais
por mais que os ACS já soubessem e trabalhassem com o
recorre à lógica crise-doença-internação. Também a
Caps nesta região, ainda assim não conseguiam enxergar
equipe de saúde da família passou a compreender o
como situações de Saúde Mental os casos de isolamento
sofrimento psíquico conectado com as experiências
como o do exemplo acima. Até mesmo a descrição de
vividas, e, sentindo-se mais próxima da equipe do
casos novos quando precisavam solicitar visitas domi-
C aps passou a evitar o uso da ambulância (tanto
ciliares com a equipe do Caps, passou a ser detalhada,
no sentido literal como no figurado), acreditando e
contextualizada e já com as nuances de vulnerabilidade
reinventando estratégias para atender ao sofrer sem
social típicas das vivências em Saúde Mental.
necessariamente encaminhá-lo.
A experiência de trabalho em apoio à ESF
Novas estratégias para a compreensão do sofri-
também foi essencial para a criação de alguns pro-
mento psíquico também foram viabilizadas para a
tocolos para o funcionamento da atenção em rede.
equipe do Caps, que na interlocução com a atenção
Com relação à dispensação de alguns medicamentos
básica tem conseguido aliar não só novos atores para
psicotrópicos, o Caps passou a garantir a entrega
confrontar a lógica asilar, mas também tem encon-
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trado suporte para a criação de projetos terapêuticos individualizados de usuários de Saúde Mental, que sem nunca colocar os pés no Caps já começam a estabelecer laços contratuais na comunidade, graças ao empoderamento construído pelos trabalhadores e trabalhadoras das ESF.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica Mental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric net “En medio de la maraña, Dios, la araña”. Mariana Dorsa Figueiredo Rosana Onocko Campos 2
1
Alejandra Pizarnik
1
Mestre; doutoranda em Saúde
RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Básica
Coletiva pelo Departamento de
como uma das necessidades atuais para a continuidade da Reforma Psiquiátrica,
Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da
considerando que a atenção em Saúde Mental deve ser feita dentro de uma rede
Universidade Estadual de Campinas
ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usuários. Em
(DMPS/ FCM/ Unicamp).
seguida, é problematizado o apoio matricial como arranjo de gestão para organizar
[email protected]
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica e sua potencialidade como disparador
2
Doutora em Saúde Coletiva;
professora do DMPS/FCM/Unicamp. [email protected]
da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde. PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção básica à saúde; Apoio matricial.
ABSTRACT In this article, it is argued the insertion of Mental Health in the basic system, as one of the current necessities for the continuity of the Psychiatric Reform, considering that the attention to Mental Health must be made inside an ample and linked net of cares. After that, the matrix support is analyzed as a powerful management arrangement to organize the actions of Mental Health in the basic attention and as a trigger for the amplification of the clinic in the health teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system. KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix support.
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I N T R O D U ç ão
disciplinar, por meio de uma rede interligada de serviços de saúde, a qual permita a articulação das ações que, em Saúde Mental, é uma necessidade inquestionável.
Uma rede ou um emaranhado? Durante as últimas duas décadas, a implementação
UMA REDE MULTICÊNTRICA
do modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) tem sido o principal investimento da política de Saúde
Considerando a complexidade das demandas em
Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura
Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão
desses serviços demonstra a crescente e intensiva difusão
sobre a necessidade de articular a assistência prestada
da rede substitutiva de Saúde Mental pelo país, numa
nos Caps com outros serviços de saúde, equipamentos
trajetória frutífera de reversão do modelo assistencial cen-
sociais e a rede social nos territórios, na construção de
trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no
uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,
restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na lógica sanitária hegemônica (Amarante, 2001), o modelo dos Caps ganhou grande visibilidade no decorrer da Reforma Psiquiátrica brasileira, ocupando um lugar de destaque na reorganização da assistência em Saúde Mental. Porém, essa rede de atenção à doença mental grave, ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo
desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos vínculos sociais. Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses graves esteja baseada em cuidados intensivos de especificidade de equipamentos como os Caps (Tenório, 2002), a Atenção Básica tem um importante papel no processo de reinserção social, já que está imersa nos territórios e é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e
de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica
é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos
à saúde, resultando num certo descompasso entre as
principais problemas de saúde. A questão mencionada
práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua
aqui vai além da definição de qual serviço deveria se
acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra-
incumbir das demandas de maior gravidade, se os Caps
mentos importantes para o SUS, enquanto sistema
ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser
unificado e integral, assim como para a eficácia tanto da
construída entre os dois tipos de serviços.
Atenção Básica, quanto dos Caps, devido a dificuldade de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção
O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define que um Caps deve:
resolutiva em Saúde Mental. Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, só poderá ser alcançada através da troca de saberes, práticas e de profundas alterações nas estruturas de poder estabelecidas, instituindo uma lógica do trabalho inter-
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responsabilizar-se [...] pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território e [...] desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial. (Brasil, 2004, p. 126).
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
Ora, se os Caps forem considerados ordenadores da
miséria em que se encontra a maior parte da população
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando
brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação
traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto
dades afetivas, emocionais e relacionais.
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
com o conceito e imagem de uma rede multicêntrica,
os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
em que o Caps pode funcionar como agenciador das
carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro
Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos
ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
na atenção se destacam, em determinado momento, de
cuidados contínuos, intensivos (específicos dos Caps).
acordo com o andamento do Projeto Terapêutico de cada
Nove por cento da população apresenta transtornos
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento
mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se
correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
movimente para dar sustentação às necessidades dos
pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente
(Brasil, 2003).
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar
Existe, ainda, um componente subjetivo associado
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses
ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
usuários possuem.
entrave ao tratamento, à adesão as práticas preventivas e
Assim, destaca-se a necessidade da integração dos
até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
serviços, há casos comuns entre os serviços, ou situações
uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
que dizem respeito tanto aos Caps quanto à Atenção
se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
Básica. Seria o caso do usuário do Caps, aquele da
ou o paciente com câncer que não encontra resistência
região de abrangência de determinada equipe da UBS
para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento
ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é
(Campos, G.W.S., 2003).
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do
Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
caso comum e o envolvimento dos diversos atores no
Atenção Básica vem tencionando a incorporação das
caso em questão.
dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde
do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já
do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos
aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
transtornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos
se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
geralmente sob a forma de queixas somáticas e ‘nervosas’,
Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio-
que 56% das equipes de PSF referem realizar ‘alguma
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do
ação de Saúde Mental’ (Brasil, 2003), ainda que essas
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos,
equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
são diversos os problemas advindos das faltas concretas
esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
na vida, geradas pela ordem socioeconômica vigente. A
com as famílias e as comunidades, elas se constituem
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FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
num recurso estratégico para o enfrentamento do
Ministério da Saúde (Brasil, 2008) aprovou a criação
sofrimento psíquico.
dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Similar
Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti-
ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos
nasf
são compostos por profissionais de diferentes áreas
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori,
especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
uma demanda específica que justifique a necessidade
Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
de uma atenção especializada (Brasil, 2003). É o caso
resolutividade dessas equipes.
da senhora que se costuma denominar ‘poli-queixosa’, e que representa uma demanda freqüente para a Atenção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar com sua existência pobre de sentido, com a ausência de
O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos,
E SAÚDE MENTAL
o empreendimento de longos processos psicoterápicos e a administração de antidepressivos são insuficientes como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros dispositivos de atenção, disparadores de produção de vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade
“Onde a brasa mora e devora o breu Como a chuva molha o que se escondeu O seu olhar melhora o meu” Arnaldo Antunes e Paulo Tatit
(Campos; Nascimento, 2003). Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica
Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
e para propiciar maior consistência às intervenções
mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver
com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental
balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O
na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre
autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi-
que os antigos departamentos especializados (outrora
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção
verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o
especializado às equipes interdisciplinares.
conjunto de relações sociais que determinam desejos,
Essas equipes, denominadas pelo autor como
interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de
Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-
Souza Campos (2000; 2003).
ção de clientela, garantindo um sistema de referência
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da
e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado
A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse-
tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
rir a Saúde Mental e outras áreas especializadas na Atenção
Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador
é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata-
mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
se de uma importante discussão na atualidade, já que a
intervenção (Campos, 1999). Gradativamente, isto es-
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada
timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
em nível nacional a partir da Portaria nº 154, na qual o
quando o usuário passa a ter um nome e uma história,
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FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
a implicação da equipe tende a aumentar e as respostas
ciplinar. A transdisciplinaridade que, no sentido dado
profissionais a serem menos estereotipadas. As Equipes
por Passos e Barros (2000) é uma das grandes apostas
de Referência, portanto, seriam responsáveis por realizar
do apoio matricial.
os projetos terapêuticos, promovendo, assim, o vínculo e a responsabilização. Dessa forma, o apoio matricial seria uma ferramenta para agenciar a indispensável instrumentalização das
A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização [...] da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76).
equipes na ampliação da clínica1, subvertendo o modelo médico dominante que se traduz na fragmentação do
A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
trabalho e na produção excessiva de encaminhamentos,
a compor a rede matricial de apoio. Constitui uma linha
muitas vezes desnecessários, às diversas especialidades,
de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
segundo Rosana Onocko Campos (2003).
lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
O apoio matricial se configura como um suporte
romper com o sistema de referência e contra-referência,
técnico especializado (Campos, 1999) que é ofertado a
que produzem encaminhamentos consecutivos para as
uma equipe interdisciplinar de saúde, a fim de ampliar
diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
seu campo de atuação e qualificar suas ações. Ele pode
sabilização pela produção de saúde (Campos, 1999).
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia-
A partir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
lizadas, mas estamos tomando aqui a especificidade da
a construção de projetos terapêuticos ou mesmo inter-
Saúde Mental, considerando que as questões subjetivas
venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser
visitas domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
abordadas em toda relação terapêutica.
ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
A proposta é que os profissionais possam aprender a
resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção
lidar com os sujeitos em sua complexidade, incorporan-
ampliada em saúde que contemple a complexidade da
do as dimensões subjetiva e social do ser humano, mas
vida dos sujeitos.
que estejam acompanhados por alguém especializado
Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
que lhes dê suporte para compreender e intervir neste
tricial têm uma importante função pedagógica, já que as
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe-
equipes podem aprender in loco a intervir no campo da
cimentos e ações, historicamente reconhecidos como
Saúde Mental e se autorizar nas ações que nem sempre
inerentes à área ‘psi’, são ofertados aos profissionais de
cabem nos protocolos, lidando com situações de exclu-
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar
são social, violência, luto, as mais diversas perdas, que
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimento psí-
não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria
própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um
uma oferta do núcleo profissional ‘psi’ ao campo dos
usuário de referência do Caps que está em tratamento na
profissionais de saúde (Campos, 2000), na construção
Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
de um novo saber, um saber que se pretende transdis-
inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com
Campos, G.W.S. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para centrá-la num sujeito concreto e singular, portador de certa enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeitos em sua totalidade, considerando o biológico como determinante do processo saúde e doença, mas também incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e cultural como outros determinantes. 1
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quadros psiquiátricos mais graves e o atendimento
Segundo Campos (1999), essa reordenação do
conjunto com o apoiador matricial pode proporcionar
desenho institucional da rede de Atenção Básica per-
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e
mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
da doença mental, ajudando a diminuir o preconceito
necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
e a segregação da loucura.
enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi-
a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns
subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela
transdisciplinaridade.
Equipe de Referência e por outros recursos sociais do
No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma
da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida
não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais
automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade,
lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
pelo Caps da região de abrangência. Pretende-se, com
à reflexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de
que possam ser continentes aos problemas na relação
Referência e profissionais matriciais, de modo que o
entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito
à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
de forma dialogada.
do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso,
a pobreza e a violência. Todas essas questões podem
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as
dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa-
fissionais não tiverem espaços de reflexão e formação
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção
permanentes para processá-las, que sejam capazes de
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a
realimentar constantemente a potencialidade do apoio
articulação entre os profissionais na elaboração de proje-
matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
tos terapêuticos pensados para cada situação singular.
hegemônicas na saúde.
O apoio matricial, portanto, provoca e explicita
Assim, afirmamos a importância de espaços
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos
coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando
saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos
cias interligadas e complementares. Uma rede que,
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais,
sobretudo, incite o movimento de acordo com as
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas
necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente
ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e
usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação
fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
de fluxo, evitar práticas que levam à ‘psiquiatrização’ e à
desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
‘medicalização’ do sofrimento humano.
de captura e impotência.
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FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica The crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context
Katita Jardim 1 Magda Dimenstein
1
2
Psicóloga; mestre em Psicologia
pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal
RESUMO Esta pesquisa investigou as práticas dos profissionais do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) no que diz respeito aos atendimentos
do Rio Grande do Norte (UFRN);
psiquiátricos na cidade de Aracaju (SE) e suas possíveis articulações com a Rede de
supervisora clínico-institucional
Atenção Psicossocial (Raps). A primeira etapa da pesquisa foi realizada através de
do Centro de Apoio Psicossocial
entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do Samu. Os resultados indicam
(Caps) Irmã Augustinha; Membro da
que a concepção de urgência psiquiátrica deles se baseia no conceito de agressividade
coordenação pedagógica da Escola Técnica do SUS de Sergipe.
e que o tempo gasto nas ocorrências psiquiátricas e a falta de capacitação em
[email protected]
Saúde Mental dificultam o transcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa, participamos das reuniões de construção do protocolo psiquiátrico do Samu.
2
Psicóloga; doutora em Saúde Mental
pelo Instituto de Psiquiatria da
PALAVRAS-CHAVE: Crise; Urgência; Saúde Mental.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ); docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN.
ABSTRACT This research investigated the professional practices from Samu
[email protected]
(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city of Aracaju (SE), Brazil, and its possible articulations to psychosocial services network. Fieldwork first step was made with Samu workers by semi-structured interviews. The results indicate that their urgency psychiatric conception is based on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol for Samu. KEYWORDS: Crisis; Urgency; Mental Health.
Apoio financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
I N T R O D U ç ão
serviços substitutivos. Tais serviços passam a operar como meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de passagem, visto que no momento de maior necessidade ‘devolvem’ o louco ao manicômio. Por isso, se faz necessária uma discussão acerca da atenção à crise não somente pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões
Com o avanço da luta pela consolidação da Refor-
inter-redes, envolvendo também a Reue e outras.
ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi-
da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor-
gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da
tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial.
Política Nacional de Atenção às Urgências, o Serviço
Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de
de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), frente às
Luta Antimanicomial (MNLA) e da Reforma Psiquiá-
ocorrências psiquiátricas, bem como as articulações desse
trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os
serviço com a Raps do município de Aracaju (SE).
caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise. Se o intuito da Reforma Psiquiátrica é questionar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o
Algumas definições
hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença,
Antes de começarmos a falar sobre o histórico do
preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral
Samu, é importante conceituarmos urgência e emergên-
e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual
cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo
posicionamento adotamos diante de uma pessoa em
serviço. As várias definições destes termos ainda não são
crise. É importante mencionar que as situações de crise
claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as
são um dos principais motivos de internação psiquiátrica
usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,
no Brasil atualmente (Jardim, 2008).
vamos delimitar o sentido em que estamos utilizando
Isso porque, nesses momentos, a Rede de Atenção
esses termos para fins de esclarecimento do leitor.
Psicossocial (Raps) que deveria se responsabilizar também
Urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à
pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à Rede
saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador
de Urgência e Emergência (Reue). A Reue é uma das
necessita de assistência imediata” (Fernandes, 2004, p. 2).
mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da
Portanto, a urgência se caracteriza por uma situação em
estrutura de rede pensada para organizar o Sistema Único
que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem
de Saúde (SUS), a Raps e a Reue têm linguagem, timing e
risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con-
aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos,
siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica
chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo.
da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com
Assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências
necessidade de imobilização e crises de asma. É no âmbito
(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem
da Urgência que se localiza o atendimento psiquiátrico.
regular a demanda diretamente para dentro dos grandes
Já a emergência é definida como a constatação de
hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou
condições de agravo à saúde que implicam em risco
comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera-
de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,
damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos
normalmente caracterizadas por declaração do médico
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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
assistente. Os exemplos seriam as hemorragias, ataques
segundo regulação médica concernente à gestão dos
cardíacos, amputamentos etc. (Fernandes, 2004). A
fluxos de ofertas de cuidados médicos, triando as ocor-
escolha dos conceitos foi feita mediante comparação
rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos
de algumas definições de urgência e emergência (Con-
públicos (Brasil, 2002; Brasil, 2003). É a regulação
selho
Federal
de
Medicina, 1995; Sterian, 2002;
Fernandes, 2004 e Campos, 2005), que nos levaram
médica que interliga o Atendimento Pré-hospitalar (APH) ao hospital. A função do médico é:
à constatação de que, salvo algumas divergências, elas convergem para o exposto. Em 1986, foi criado no Rio de Janeiro o Grupo de Socorro e Emergência (GSE) que finalmente contava com uma equipe composta por médico e enfermeiros da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros.
julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar os recursos necessários ao local, monitorar e orientar o atendimento realizado por outro profissional de saúde [...] ou [...] por um popular. Define e aciona o hospital de referência ou outro meio ao atendimento necessário. (São Paulo, 2001 apud Campos, 2005, p. 16).
Foi nesse contexto que o Samu foi instituído no Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, através de
A partir do recebimento de uma chamada na central
um acordo bilateral com a França. O Samu brasileiro é
reguladora, atendida por um Tarm, que deve acalmar o
estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se
solicitante e preencher um formulário eletrônico com a
em muitos conceitos do modelo americano para seus
localização da vítima, dados detalhados do local, pontos
treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma
de referência e o motivo da chamada. A partir de então,
Life Suport (PHTLS)1.
o Tarm passa a ligação para o médico regulador que
Só em 2002, com a instauração da Política Nacional
avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de
de Atenção às Urgências, que o Samu deixou de ser um
mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação
serviço opcional existente em algumas cidades, passando
médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a
a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo
ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já
pré-hospitalar de urgência. O serviço foi regulamentado
que há dois tipos de ambulância no Samu: as Unidades
através da Portaria 1864 GM de 29 de setembro de 2003
de Suporte Básico (USBs), que contam com uma equipe
(Brasil, 2002; Brasil, 2003).
de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as
Deste modo, conta com uma equipe composta por
Unidades de Suporte Avançado (USAs) com uma equipe
médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma-
formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor
gem, condutores veiculares e aqueles responsáveis pelo
veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de
suporte na central de regulação2, Técnicos Auxiliares de
Tratamento Intensivo (UTI). Depois disso, o médico
Regulação Médica (Tarms) e rádio operadores. O Samu
decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será
atende urgências e emergências clínicas, traumáticas,
direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para
gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona
receber o usuário.
Prehospital Trauma Life Support Committee and the National Association of Emergency Medical Technicians in cooperation with the Committee on Trauma of the American College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospital trauma life support. 4a ed. St. Louis. 1
A regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de Atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, qualificando o fluxo dos pacientes no Sistema e gerando uma porta de comunicação aberta ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos, avaliados e hierarquizados. (Brasil, 2001, p. 1). 2
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
Hoje em dia, a rede nacional do Samu conta com
Reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men-
112 unidades implantadas. No total, 924 municípios
tal e as capacitações realizadas no serviço. O segundo
são atendidos pelo Samu, cerca de 92,4 milhões de
roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de
pessoas. Algumas das capitais brasileiras que possuem a
enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam-
estrutura do Samu são: Aracaju, Belém, Belo Horizonte,
bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional
Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, For-
de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica, além da
taleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá,
formação técnica e das participações nos atendimentos
Natal, Palmas, Porto Alegre, Porto Velho, Recife, Rio
psiquiátricos. Neste momento, abriu-se espaço para
Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, São Paulo,
relatos de experiências.
Teresina e Vitória3.
Levando-se em consideração que o funcionamento do Samu se dá através de protocolos nos quais são circunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada
UM ENSAIO METODOLÓGICO
tipo de ocorrência atendida, o fato de o Samu não possuir um protocolo psiquiátrico constitui um problema.
A pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira
Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos
em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro
serviços responsáveis pelo atendimento às urgências
do mesmo ano. A primeira etapa teve como corpus de
psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo
análise dez profissionais vinculados ao Samu de Aracaju,
operativo, o que fazer com essa situação. Geralmente,
sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade
quem lida com isso tende a colocar a ‘crise do paciente’
entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de
como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar
quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi-
as necessidades e demandas excessivas da clientela que
pe eram auxiliares de enfermagem, três eram médicos
o próprio serviço pode estar colapsando (Dell’Acqua;
reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções
Mezzina, 2005). Nesse ínterim, o Samu decidiu lidar
de coordenação: um enfermeiro também coordenador
com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:
e uma assistente social gerente (contabilizando quatro
criando um protocolo específico, uma normatização, que
gestores). Escolhemos informantes de influência direta
serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que
nos atendimentos psiquiátricos4, na gestão das capa-
não é de todo negativo, pois é necessária a construção de
citações e na regulação médica, pontos fundamentais
um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria
para a prática. A coleta de dados foi realizada através
problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas
de entrevistas semi-estruturadas gravadas.
e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimento
Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro
técnico e, por fim, mortificando as relações.
deles, feito para os médicos e gestores, era composto
Assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de
por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/GM
maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha-
e às Urgências Psiquiátricas. Abordava, além disso, a
mento das reuniões para a construção do protocolo psi-
3
Boletim: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=23745&janela=1. Acesso em 6 de março de 2007.
Tendo em vista que os profissionais que realizam o atendimento às ocorrências psiquiátricas no Samu de Aracaju são os médicos (indiretamente, por telefone), os auxiliares de enfermagem e os condutores veiculares (diretamente, no local). 4
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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos
A concepção de urgência psiquiátrica foi associada
junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo,
de forma unânime pelos entrevistados a ‘agressividade’.
abordaremos somente as reuniões de protocolo.
É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos
As reuniões intersetoriais contaram com uma psi-
de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com
cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental,
alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva
dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do
às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que
serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o
serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de
coordenador clínico do Samu de Aracaju e da Urgência
defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma
Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São
postura de medo, que acaba gerando omissão do cui-
José, órgão responsável pela regulação da demanda de
dado. Assim, ambas as posturas geralmente progridem
Saúde Mental na Reue, e o coordenador clínico do
para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,
Samu estadual. Nas reuniões foram observados a relação
o Samu conta com o auxilio do Corpo de Bombeiros,
entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava
cordas e muitas ataduras.
para idealizar esse instrumento. Além disso, a nossa
Além das práticas in loco, a concepção da urgência
participação constituiu uma intervenção, tendo em
psiquiátrica ligada à agressividade também influencia
vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos
diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,
pelas ambulâncias do Samu, geramos discussões a partir
organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou
dos casos assistidos e da literatura esquisada. Além da
não uma ambulância para o caso e é responsável pelo
nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de
encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde
2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns
fixo. Dessa forma, os reguladores acabam por selecionar
dos participantes: uma médica sanitarista, responsável
a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti-
pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na Atenção
lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos
Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento
pelo Samu são aqueles que não podem ser transportados
de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro-
num carro comum, ou seja, os casos que precisam de
fissionais do Samu, quanto a sua regulação e abordagem
um aparato específico para imobilização. Com isso, o
no local de ocorrência, o coordenador clínico do Samu
Samu reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento
de Aracaju e do UCM e a psicóloga representante da
psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais
coordenação de Saúde Mental.
em seus atendimentos. Outra questão importante é a do tempo. Os serviços de urgência têm de funcionar da maneira mais
A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência,
breve possível. Quando falamos em casos referentes à
tempo, capacitações e o protocolo
Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um
A primeira etapa da pesquisa de campo foi cons-
dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os
tituída por intermédio de entrevistas. Os dados mais
atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro
relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a
vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a
concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a
tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam
questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação
resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em
e a ausência do protocolo psiquiátrico.
realizar os atendimentos; entendem que uma garota com
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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
asma precisa muito mais de uma USB do que um louco
se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um
surtando e isso acaba fortalecendo o estigma.
grande problema do que de uma solução.
Apesar de o Samu ter um Núcleo de Educação Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é
Configurar um serviço dessa forma não seria emperrar os fluxos?
ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte-
Será que, em lugar de enxergarmos esse ‘não saber
ceram em 2004. Os gestores afirmaram que a falta de
o que fazer’ como uma grande questão a ser extirpada o
capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação
quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade
sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta
de afirmação vital?
de interesse dos profissionais. Muitos técnicos afirmaram
Ao final dessa primeira experiência, percebemos que
que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri-
somente entrevistas focadas na legislação5, na concepção
cos; quando perguntamos o motivo, responderam não
de urgência psiquiátrica e nas capacitações não levariam
saber como agir nesses casos. É importante ressaltar
a discussão muito longe, porque poderia desvelar pro-
que o Samu é um serviço que funciona com base em
blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções
protocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são
práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade
eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as
à pesquisa de campo com a segunda etapa, que problema-
ocorrências. Por isso, a falta de protocolo psiquiátrico
tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi-
foi apontada como um item negativo, um agravante
quiátricas realizadas pelo Samu de Aracaju, mas também o
desestabilizador do funcionamento do serviço.
movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo
Atualmente, está sendo desenvolvido o protocolo da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de Ara-
psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de 2007 e não chegou à sua conclusão até então).
caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM
Tendo em vista essa proposta, o espaço do Samu,
e com a gestão clínica dos Samus estadual e municipal.
como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões
Esse protocolo busca delinear quais critérios deverão
levantadas, configurando o ponto de partida para se dis-
ser usados na regulamentação para guiar os médicos
cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento
a respeito dos procedimentos que devem ser seguidos
dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade
no caso de ocorrências psiquiátricas. Delinear esses
premente de se organizarem estratégias que dêem conta
procedimentos é importante para o funcionamento do
da atenção à Saúde Mental, o Samu decidiu construir o
Samu no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra
protocolo psiquiátrico. Assim, a nossa análise foi feita
o paciente psiquiátrico definitivamente no hall dos casos
a partir do acompanhamento das reuniões do grupo
atendidos e com alta resolutividade.
operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação
Entretanto, há a necessidade de segurança e, por
do atendimento aos casos que entram nesse circuito pelo
isso, busca-se o controle em tudo que se faz. A estabili-
Samu e desembocam na Urgência Clínica e Mental do
dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba
São José. Escolhemos esse destino com base na conexão
por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. A
entre os dois serviços: o Samu como a porta de entrada
saúde é a fluidez desse processo. Assim, a formatação de
da demanda e a UCM de São José como regulador do
prática rígidas, como as propagadas pelo Samu quando
fluxo das urgências psiquiátricas na rede.
5
A Portaria 2048/GM e a Política Nacional de Saúde Mental.
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Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões
que fazia parte da equipe, deixou de ser plantonista e
de construção do protocolo psiquiátrico
passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia
Em maio de 2007, o Samu fervilhava em meio a
e checar todos os internos. O caso é preocupante. Alguns
uma crise decorrente de um processo que se arrastava
pacientes com diagnóstico prévio de transtorno psiquiátri-
desde a abertura do serviço, quando a Portaria 1864/
co com intercorrências clínicas que foram encaminhados
GM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada
para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a
(Brasil, 2003). A Portaria, que institui o Samu como
óbito graças à falta de estrutura do serviço.
dispositivo móvel da Política Nacional de Atenção às
Geralmente, nos casos em que o solicitante atesta
Urgências (Brasil, 2002), estrutura um serviço capaz
que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui-
de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o
átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não
mal-estar nos lugares mais distantes, ainda que houvesse
existe conexão direta ou indireta nem encaminhamentos
a necessidade de os profissionais ficarem pendurados
para a Raps ou para um núcleo de Atenção Básica: o
numa corda de rappel para um salvamento vertical
atendimento delegado à Reue começa e termina em si
ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. Os
mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um
técnicos do Samu devem se tornar agentes preparados
circuito mortificado.
para enfrentar qualquer situação, com ‘nervos de aço’ construídos sob um considerável alicerce identitário.
O primeiro passo para o ‘tratamento’ da crise em ambos os serviços foi programado para ser a construção do
Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um
protocolo. No entanto, o que poderia dar, de fato, corpo
serviço como o Samu, mas a comoção gerada pelas ur-
à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói
gências psiquiátricas levantava questões todos os dias. Os
ao longo desse processo: a aproximação dos gestores a fim
médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia-
de se formar uma rede de apoio social, a familiarização
res de enfermagem tinham medo de serem assassinados
com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes
durante os atendimentos, o relacionamento com a UCM
de dar suporte aos trabalhadores e aos usuários.
era complicado e com os Caps, inexistente. Surgiu, então,
Problemas de articulação da rede surgiram aos mon-
a necessidade de se idealizar um protocolo psiquiátrico.
tes. O Samu não entendia porque os Caps têm carros
Nesse sentido, ficou decidido que o delineamento
próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um
desse protocolo seria feito em conjunto pela Saúde
de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. A
Mental e pela UCM, o que contribuiria para conectar
prioridade do Samu é atender pessoas que estejam nas
a rede. Entretanto, estavam sempre lidando com uma
ruas, pacientes encaminhados de algum outro serviço
linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar
ficam em segundo lugar na escala de prioridade. A gestão
na simples criação de uma normalização para diminuir
do Samu justifica que pacientes nos serviços estão mais
a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços
bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,
inquietos com as suas incertezas.
podendo, dessa forma, esperar para serem transportados.
Não era só o Samu que estava em crise. A UCM tam-
Quando, em uma das reuniões, os representantes dos
bém dava seus sinais. A sua atribuição de urgência clínica
Caps compareceram, a questão de que eles não têm como
foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso,
atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com
todos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento
urgência da ajuda do Samu, pois nem sempre seus carros
foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral,
estariam à disposição ou mesmo funcionando.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
Surge, então, uma questão crucial: a falta de res-
Raps se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da Reue
posta aos episódios de crise dos usuários dos Caps e de
que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente
outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos
medicalizada. Tendo em vista que tanto a Raps quanto
principais fatores que contribuem para o fortalecimen-
a Reue compõem o SUS, mas, não conversam muito
to da lógica manicomial, exatamente por direcionar
entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível
essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda
vira uma agressão à vida da pessoa.
se mantêm fortes por serem consagrados pela própria
A construção do protocolo será muito eficaz para
rede substitutiva como o serviço indicado para atender
o Samu funcionar, mas em nenhum momento foi ques-
prontamente a crise do usuário por meio de internações
tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen-
e intervenções medicamentosas.
temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de
Enquanto ambulatório que acompanha longitudi-
um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios
nalmente um usuário constante, essa realidade do Caps
tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma
pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu-
simplificação diante da complexidade da vida. A crise,
niões de construção do protocolo, de que o médico é o
vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações
profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto
de supressão: a medicação e a internação compulsórias.
que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias
Tendo isso em vista, questionamos: a quem serve
se sustenta na grande maioria das vezes por conta das
esse protocolo? O que significa um protocolo nesse
crises. Da mesma forma, a falta de preparo dos profis-
contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças
sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento
em protocolos?
intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar
O trabalho na urgência requer uma sensibilidade do
na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso
técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir
fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se
sentido para o que está acontecendo, buscar informações
fazer é conter o paciente.
do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades
Essa posição centrada no médico, principalmente
dele. Apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,
no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta
nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,
os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos
estamos lidando com pessoas em momentos de intenso
principais argumentos utilizados como justificativa para
sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua
a não-atenção à crise nos Caps é a falta de psiquiatras na
diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela
rede. Muito ainda gira em torno do psiquiatra quando
identidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça
nos reportamos à crise. Apesar disso, nós já tivemos vá-
a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma
rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem
norma, favorecendo a violência simbólica.
psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde Mental (Lancetti, 2006). 6
Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS (integralidade, eqüidade e humanização), importantes
Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen-
norteadores de uma prática ampla. A ‘integralidade’ con-
tral da captura da loucura. A crise é o momento em que a
siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas
Para um maior aprofundamento sobre isso consultar Lancetti, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005; Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001. 6
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as suas necessidades e, para isso, é importante que haja
A acomodação e convencionalização de uma verdade,
integração das ações, pressupondo a articulação da saúde
a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz
com outras políticas públicas que tenham repercussão na
voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.
área e na qualidade de vida dos indivíduos. A ‘eqüidade’
Esse imperativo por constantes criações e movimen-
tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se
tações é a grande inspiração dos movimentos antimani-
em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de-
comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e
siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem
propiciem uma fluidez da vida em todas as direções, e não
precisa de menos (Cunha; Cunha, 1998). A ‘humaniza-
a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e
ção’ é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no
precipitadas. Por isso, o nosso campo de atuação tende a
processo de produção de saúde (Brasil, 2004).
se expandir e a se reinventar todos os dias.
Com base nisso e nos princípios da Reforma
Assim, focar o Samu, um serviço altamente medica-
Psiquiátrica é que defendemos uma flexibilização do
lizado que, para alguns, não é compatível em nada com
protocolo, que deve servir como um dispositivo para
os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização
disparar ações consoantes com a necessidade imediata do
da Reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que
sujeito, transformando-o em agente ativo no processo,
nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali-
fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à
dades ainda não exploradas. A nossa pesquisa, em suas
própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado.
inúmeras idas e vindas, percorreu caminhos inter-redes
O Samu, em vez de servir como um mero transporte
para conhecer o trabalho dos técnicos do Samu, pensar
com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva
em suas possíveis articulações a fim de problematizar a
e que contemple as diretrizes da Reforma Psiquiátrica.
atenção e a resposta à crise na cidade de Aracaju.
Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun-
Apesar de o Samu ter um histórico de hesitações no
cionar com uma lógica oposta a que está acostumado.
atendimento a casos psiquiátricos, o que inclui uma falta
Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam
de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,
se constituindo enquanto analisadoras do Samu de uma
de acordo com atribuição da Portaria 2048/GM de 5 de
maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi-
novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará
mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por
chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de
que não pensarmos em estratégias que humanizem o
aproximarem-se da Raps a fim de construir o protocolo.
Samu de forma que todas as ocorrências possam seguir,
Esse momento é especialmente importante, a despeito
de maneira palpável, as diretrizes do SUS?
de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa a gerar frutos; na última reunião para a construção do protocolo, realizada em meados de novembro, alguns gestores da Raps e da Reue decidiram que, após quase
À GUISA DE UMA CONCLUSÃO
um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de compartilharem essas questões com todos os trabalha-
A Reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por
dores de ambas as redes.
buscar a descontrução de uma instituição secular, como
Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte-
é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez
ceu o I Encontro Inter-Redes de Atenção à Pessoa em
mais estratégias de guerra e um caminhar constante.
Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-
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JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do
político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico-
protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de
mial. Por isso, impera um incômodo, um movimentar
se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni-
incessante e criativo que rodopia no caos da vida. As
cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro
certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades
encontro de muitos outros já planejados.
que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade
Além disso, o Samu se mostrou um serviço com pos-
de essência podem conferir um território confortável
sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que
e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo-
os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento,
vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à
o que viabiliza a inclusão da família no processo, bem
própria morte. Vivemos numa guerra constante contra
como a rapidez no atendimento que, feito no momento
a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera
propício, pode evitar internações e permitir encaminha-
uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.
mentos mais eficazes e potentes.
Deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades
O acolhimento se mostrou a principal força para o estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em
que podem ser criadas com o intuito de despertarmos para a transitoriedade potente e criativa da vida.
crise na produção de sentido. Assim, a crise pode ser rein-
A necessidade de preparar os técnicos de ambas
ventada como potência transformadora, momento para
as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum
engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu-
é necessário. As oficinas virão com esse propósito, mas
tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a
não podem ser a única tentativa. Além da programa-
comunicação como fundamento e os afetos como direção,
ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria
ele se torna ‘improtocolável’, aberto, totalmente flexível
significativo intercambiar os profissionais para que
para se adequar às situações que se apresentarem.
conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da
Isso nos remete a uma discussão que já começa a
rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é
se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os
importante haver prudência ao aproximá-los. No que
gestores da Saúde Mental: o papel dos Caps na atenção
diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,
à crise. Com a recusa dos Caps ao atendimento à crise
seria interessante que pessoas fossem estrategicamente
e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos
plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis-
vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio-
sionais serviriam como aproximadores, disseminadores
nalização dos serviços mais emblemáticos da Reforma
de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam
Psiquiátrica. A estratégia que deveria abrir caminho
incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar
para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado
alguns fluxos previamente estabelecidos.
demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos
Precisamos nos aventurar em outros mundos
para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um
possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter-
serviço fechado cheira a manicômio.
nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica
Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e
manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é
sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida
a questão da crise e de quais significados ela pode as-
e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e
sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos
passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra-
nos responsabilizar. Os movimentos antimanicomiais
balho que procuramos realizar são atos de forte cunho
ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios
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160
JARDIM, K.; DIMENSTEIN, M. • A crise na rede: o SAMU no contexto da Reforma Psiquiátrica
de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e cabe a todos nós levá-las a diante. Este trabalho é uma convocação, um chamado para uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um convite à experimentação e à invenção de outros mundos possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto pessoas e profissionais.
R E F E R Ê N C I A S
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
trabalho (Samu). Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) – Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005. Conselho Federal De Medicina. Resolução nº 1451 de 10 de março de 1995. Define Urgência e Emergência, equipe e equipamentos para os primeiros socorros. Diário Oficial da União. Seção I, p. 3666. Brasília, 1995. Disponível em http://www.cremesp.org.br/library/modulos/legislacao/versao_impressao.php?id=2989. Acesso em 16 out. 2008. Cunha, J.P.P.; Cunha, R.E. Sistema Único de Saúde: princípios. In: Campos, F.E.; Tonon, L.M.; Oliveira Júnior, M. (Org.). Planejamento e gestão em saúde. Cadernos de Saúde, n. 2. Belo Horizonte: Coopmed, 1998. Dell’acqua, G.; Mezzina, R. Resposta à crise: estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: Amarante, P. (Org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial 2. Rio de Janeiro: Nau, 2005. p. 161-194. Fernandes, R.J. Caracterização da atenção pré-hospitalar móvel da Secretaria de Saúde do Município de Ribeira Preto – SP. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, 2004. Jardim, K. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) no contexto da reforma psiquiátrica: em análise a experiência de Aracaju – SE. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Centro de Ciências do Homem, Letras e Artes da UFRN, Natal, 2008. Lancetti, A. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005. Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001. Sterian, A. Emergências psiquiátricas: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. Recebido: abr./2008 Aprovado: ago./2008
ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro The construction of a territorial base service: the experience of the Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
Alexandre Keusen 1 Andréa da Luz Carvalho
1
2
Médico psiquiatra; doutor em
Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de
RESUMO O artigo relata a trajetória do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ), centro de atenção à saúde mental pertencente à Secretaria Estadual de
Janeiro (UFRJ); diretor do Centro
Saúde do Rio de Janeiro, no atual contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ) de
A partir das políticas estaduais e municipais de Saúde Mental, que orientam a
1998 a 2006; atualmente funcionário do
substituição de hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços de saúde mental
setor de Terapia de Família do Instituto
de base comunitária, o CPRJ vem se transformando em um serviço territorial
de Psiquiatria da UFRJ. [email protected]
cada vez mais voltado a atender às necessidades da clientela do seu território de forma complexa, incluindo o desafio de acompanhar clinicamente pacientes com
2
Psicóloga sanitarista; mestre em Saúde
Coletiva pelo Instituto de Medicina
transtornos mentais graves e moradores de rua.
Social da Universidade Estadual do
PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria Comunitária; Reforma Psiquiátrica; Saúde
Rio de Janeiro (IMS/UERJ); analista
Mental; Política de Saúde; Serviços de Saúde Mental; Reforma dos Serviços
de Gestão em Saúde da Diretoria de
de Saúde.
Planejamento Estratégico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). [email protected]
ABSTRACT The article states the trajectory of the Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, a center of attention to mental health belonging to the State Clerkship of Health of Rio de Janeiro in the current context of the Brazilian Psychiatric Reform. Starting from the state and municipal politics of Mental Health, that gives orientation to a replacement of psychiatric hospitals for a net of services of Mental Health of community base, Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro have been transformed throughout years into a territorial service of complex assistance focused on the needs of the patients, including the challenge of following-up patients with serious mental disorders and homeless people.
KEYWORDS: Community Psychiatric; Psychiatric Reform; Mental Health; Health Policy; Mental Health Services; Reformulation of Health Services.
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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
I N T R O D U ç ão
a experiência das modificações ocorridas na assistência de um hospital psiquiátrico que procurou aproximá-lo cada vez mais dos modelos comunitários atualmente preconizados pela política de Saúde Mental.
A partir do final da década de 1970, um movimento político que questionou o tratamento hospitalocêntrico de doentes mentais (Amarante, 1995) e criou as bases
BREVE HISTÓRICO DO CENTRO
das políticas e técnicas na área da Saúde Mental do
PSIQUIÁTRICO RIO DE JANEIRO
final da década de 1980 e da década de 1990, ajudou a fundar o conceito de Reforma Psiquiátrica atualmente
O Centro Psiquiátrico Rio De Janeiro (CPRJ) é
já absorvido no dia-a-dia de gestores, profissionais da
um centro de atenção integrado de Saúde Mental sob a
Saúde Mental e usuários.
administração da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de
A Reforma Psiquiátrica1 consiste em um conjunto
Janeiro (SES/RJ). Criado em agosto de 1998, a partir da
teórico e prático de transformações nas áreas da política
transferência do Posto de Atendimento Médico (PAM)
de saúde, da clínica e da cultura, que tem como pres-
Psiquiátrico localizado na Avenida Venezuela (antiga
suposto e critério ético a inclusão do doente mental
emergência psiquiátrica que, nos anos 1970, centralizava
na sociedade, bem como o seu tratamento em serviços
todas as internações dos pacientes segurados do Instituto
de base comunitária e a sua inscrição social como um
Nacional de Previdência Social, INPS), caracteriza-se
cidadão de direitos2.
por um serviço com emergência psiquiátrica que conta
A redução dos leitos psiquiátricos e a expansão
com uma Enfermaria, dispõe de 18 leitos psiquiátricos
de uma rede de serviços comunitários têm sido uma
(oito femininos, sete masculinos e três extras), um am-
das estratégias implantadas pelo Ministério da Saúde a
bulatório e um hospital-dia.
partir da década de 1990, que visa à inclusão social do
A missão do CPRJ tem sido desenvolver projetos e
doente mental e o seu tratamento prioritário em servi-
ações voltados à clientela com transtornos mentais, em
ços abertos como, por exemplo, os Centros de Atenção
especial àqueles com quadros mais graves e dificuldades
Psicossociais (Caps).
nas relações sociais. De 1998 a 2006, foi concebido
Este artigo pretende relatar a história da transforma-
em adequação às Políticas Públicas voltadas para a
ção de um hospital psiquiátrico em um Centro Integrado
Reforma Psiquiátrica desenvolvidas pelo Ministério
de Saúde Mental. Hoje, considerando-se a política que
da Saúde (MS), SES/RJ e pela Secretaria Municipal de
privilegia a implantação de uma rede comunitária, é de ex-
Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ). Atuando de forma
trema importância se pensar no que pode ser feito com os
integrada, os serviços do CPRJ buscavam atender essa
equipamentos hospitalares psiquiátricos públicos. É nesse
clientela em situações de crise e de acordo com suas
sentido que o artigo pretende acrescentar algo: relatando
demandas cotidianas.
O conceito de reforma psiquiátrica no Brasil sofreu a influência dos movimentos de reforma psiquiátrica na Europa e EUA, mas principalmente teve como inspiração o modelo de reforma italiano (ver Desviat, 2001 e Rotelli; Leonardis; Mauri, 1990). 1
A lei 10.216/2001 (Brasil, 2004A) regulamenta os direitos dos doentes mentais e os tipos de internação. As repercussões clínicas e políticas desta legislação são analisadas por Delgado (2001). 2
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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
No início, em 1998, era como um hospital psiquiátrico; possuía 15 leitos para curta permanência nos
família devem ser considerados relevantes para o tratamento dos transtornos mentais.
quais era feita a avaliação da internação psiquiátrica e,
É nesse sentido que a sua clientela alvo, prioritária
quando necessário, o encaminhamento de pacientes
para acompanhamento no ambulatório e hospital-dia,
para clínicas privadas contratadas do SUS. Possuía,
é a residente na área do centro do município do Rio de
também, um ambulatório predominantemente de
Janeiro e adjacências (área programática 1.0). No entan-
psiquiatras e um hospital-dia incipiente. Seu papel era
to, ele ainda permanece como um dos quatro pólos de
ser mais um hospital psiquiátrico que concentrasse os
emergência psiquiátrica da cidade do Rio de Janeiro5,
recursos e a clientela de todo o município e estado do
oferecendo atendimento 24 horas e sendo responsável
Rio de Janeiro. Com o avanço das Políticas Públicas
pela avaliação da necessidade de internação. Seus leitos
voltadas à abertura de serviços territoriais que dessem
são regulados desde maio de 2003 pela Central de Re-
conta das demandas da clientela em seu entorno, como
gulação da SMS/RJ.
os Centros de Atenção Psicossociais (Caps), a política de
É importante destacar, ainda, os projetos voltados
controle e regulação dos leitos psiquiátricos3 bem como
a especificidades de determinadas clientelas. O aten-
o início das discussões entre os serviços do entorno do
dimento à população de rua com transtornos mentais
hospital através do Fórum de Saúde Mental da Área
realizado no hospital-dia, em parceria com o Instituto
Programática 1.0 (a partir do segundo semestre de
de Psiquiatria/UFRJ, e o projeto Pater, desenvolvido
2006), o CPRJ realizou transformações em seu projeto
no ambulatório e voltado para a população idosa tam-
terapêutico institucional no sentido de caminhar para
bém portadora de transtornos mentais, são exemplos
o perfil de uma unidade assistencial em Saúde Mental
desses projetos.
4
mais engajada em responder às necessidades e demandas da população adscrita ao hospital.
Ressalta-se que o projeto terapêutico da instituição é oferecer serviços (internação, atendimento
É preciso ressaltar que, na área de Saúde Mental, a
mutiprofissional na emergência e consultas em diversas
oferta de recursos mais próximos do local de moradia dos
especialidades tais quais: psiquiatria, psicologia, assis-
pacientes e o sentido de responsabilização das equipes
tência social, enfermagem, terapia ocupacional, oficinas
pelo seu acompanhamento é o modelo que traz melhores
terapêuticas, atendimento à família, grupos terapêuticos
resultados em relação à diminuição na necessidade de se
e atividades artísticas) para a clientela com transtornos
utilizar a internação, que geralmente é um recurso que
mentais, levando-se em consideração o quadro clínico
onera o sistema de saúde e não deve ser utilizado como
e a situação social dos pacientes. O desafio do CPRJ é
único recurso terapêutico. Outro ponto importante a
criar projetos que respondam às diversas necessidades
ser destacado, é que os contextos do paciente e da sua
de sua clientela.
A partir de maio de 2003, a SMS Rio de Janeiro passou a regular todos os leitos psiquiátricos públicos e privados contratados da Cidade do Rio de Janeiro. O CPRJ, junto com os outros três pólos de emergência psiquiátrica (Hospital Municipal Jurandyr Manfredini (HMJM), Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP) e Instituto Municipal Nise da Silveira), passou a integrar esse processo de regulação, configurando-se como avaliadores da internação psiquiátrica da cidade (solicitantes e executantes de internação psiquiátrica). Seus leitos eram preferencialmente reservados à sua clientela. 3
O CPRJ está localizado na Praça da Harmonia, no bairro Saúde, na área programática 1.0. Essa área possui uma projeção da população para 2007 de 228.549 habitantes, segundo dados do Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro). Os bairros oficiais que compõem esta AP são: Centro, Saúde, Gamboa, Rio Comprido, São Cristóvão, Santa Tereza, Mangueira, Paquetá, Santo Cristo, Cidade Nova e Caju. 4
5
Os outros três pólos psiquiátricos são o HMJM, o PAM Rodolpho Rocco e o IMPP, sendo que o HMJM e o IMPP são também hospitais psiquiátricos.
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164
KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
Na época da mudança do antigo PAM Venezuela,
O ambulatório é aberto preferencialmente aos
o centro se encontrava em clara decadência, sendo des-
pacientes que residem na área programática 1.0 do
crito como uma ‘pocilga’ pelo coordenador de saúde
município do Rio de Janeiro, mas mantém assistência
do Ministério da Saúde em 1987. Já o seu processo de
a todos os pacientes de outras regiões do município e
transformação foi avaliado duas vezes pelo Programa
Estado do Rio de Janeiro que já se encontravam em
Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar (PNASH)
acompanhamento na Unidade.
(Brasil, 2004A) como a melhor unidade do Estado do Rio de Janeiro.
O hospital-dia acompanha preferencialmente novos pacientes, moradores da área programática 1.0
Neste texto relataremos a evolução desta experi-
do município do Rio de Janeiro, e pacientes antigos de
ência, avaliando o ano de 2006 em comparação com
outras regiões do município e Estado do Rio de Janeiro.
o período de 2000 a 20056, através da compilação
Esse é um dos poucos serviços no Estado que possuem
de indicadores da assistência e outros relatos sobre as
um projeto terapêutico para o acompanhamento de
mudanças dos serviços que objetivavam construir um
população de rua.
serviço de Saúde Mental de base territorial.
As equipes realizam reuniões semanais internas para discussão dos casos e dos problemas dos serviços; seus coordenadores reúnem-se semanalmente com a Direção para que haja maior integração entre os vários
O FLUXO DE PACIENTES NO CPRJ
serviços. As equipes também fazem reuniões entre si para discutir casos.
Como já dito anteriormente, o CPRJ se configura como um dos quatro Pólos de Emergência Psiquiátrica no Município do Rio de Janeiro, responsável pela avaliação da necessidade de internação. A porta de entrada
INDICADORES DA ASSISTÊNCIA
para os seus diversos serviços como enfermaria, ambulatório e hospital-dia é a emergência que funciona 24 horas, sete dias por semana. Caso haja necessidade do paciente permanecer in-
Emergência e enfermaria
ternado, ele é encaminhado à enfermaria, onde a equipe
Houve um aumento nos atendimentos feitos na
realiza uma avaliação sobre a sua permanência ou solicita
emergência e no ambulatório no período de 2000 a
à Central de Regulação um leito para a sua transferência.
2005, sendo que registrou-se uma diminuição no nú-
Essa decisão é feita com base em diversas variáveis como
mero de atendimentos na emergência nos anos 2000
o local de moradia do paciente, acompanhamento do
e 2001, enquanto no ambulatório manteve-se um
paciente por algum serviço do CPRJ e, sobretudo, sua
aumento em todo o período. Em 1999, o ambulatório
situação clínica.
realizava 14.996 atendimentos; em 2005 esse número
O CPRJ começou a desenvolver um sistema próprio de registro de informações desde a sua inauguração, em 1998. Todos os pacientes que entram na emergência são registrados nesse sistema. No decorrer desses oito anos, foram feitas discussões com as equipes dos diversos serviços nas reuniões semanais de Direção visando integrar suas informações, ou seja, que o registro do paciente poderia ser visualizado em todas os departamentos de ações terapêuticas no hospital. Tal sistema permitiu também a realização de estudos sobre a reinternação dos pacientes para uma melhor formulação dos projetos terapêuticos das equipes. A partir do ano 2000, o sistema passou a ser alimentado com informações mais contínuas. 6
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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
cresceu em 95% (29.257 atendimentos). Já no ano
relação aos números anteriores, que variavam entre
2006, houve uma diminuição de 12% nos atendimentos
10.000 e 12.500 atendimentos anuais. Em 2004, houve
de emergência em relação a 2005 (Gráfico 1).
16.059 atendimentos e em 2005 esse número subiu
Dentre os fatores para a diferença no desempenho
para 17.125. Destacamos que no segundo semestre de
da emergência e do ambulatório, destacam-se: a análise
2005, houve a transferência de uma das Emergências
da demanda que chega ao CPRJ e que, em grande parte,
Psiquiátricas do Instituto Municipal Nise da Silveira para
reflete a oferta ainda insuficiente de serviços de saúde
o PAM Rodolpho Rocco. Esse acontecimento causou
mental na Cidade do Rio de Janeiro; as dificuldades de
alguns transtornos para a clientela, já acostumada ao
articulação entre os diversos serviços em uma cidade
atendimento feito pelo Instituto Médico Nise da Silveira
de aproximadamente seis milhões de habitantes e com
já que foi feita uma distribuição desta clientela entre os
uma história marcada pela presença maciça de hospitais
outros três pólos de emergência.
psiquiátricos na resolução dos problemas de quem sofre
A diminuição no número de atendimentos em
de alguma desordem psíquica.
2006 pode estar relacionada a alguns fatores internos
O desafio da implantação da Reforma Psiquiátrica
e externos ao funcionamento do CPRJ. Os fatores ex-
na Cidade do Rio de Janeiro está não só no aumento
ternos dizem respeito a uma tendência, que se iniciou
de serviços extra-hospitalares que se responsabilizam
em 2003 e acelerou durante esse ano, dos serviços a se
pelo acompanhamento de determinada clientela, mas
responsabilizarem preferencialmente por suas clientelas
também na elaboração de processos de trabalho que
mais adscritas, visando o seguimento desses pacientes
estejam mais direcionados à necessidade da clientela
inclusive com ações em seu território de moradia; ou-
de ser considerada em sua integralidade e no fato de o
tro fator importante foi a ação da Assessoria de Saúde
recurso da internação ser utilizado com critério técnico
Mental da SES/RJ no auxílio aos municípios do Estado
definido por uma equipe multidisciplinar.
do Rio de Janeiro para organizar suas portas de entrada.
De 2004 a 2005, houve um aumento significativo
Já os fatores internos dizem respeito à rigorosa avaliação
dos atendimentos feitos pela emergência do CPRJ em
dos pacientes no CPRJ pela equipe que, neste período
Gráfico 1 - Distribuição de atendimentos na emergência e no ambulatório no CPRJ de 1999 a 2006 60000 50000 40000
Emergência
30000
Ambulatório Total
20000 10000 0 1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 1999-2006
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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
de oito anos, tornou-se multidisciplinar, inibindo cada
Como já constatado, esses leitos foram inseridos na
vez mais a distribuição de receitas (prática usual nas
Central de Regulação da SMS/RJ em maio de 2003,
emergências em geral) fazendo com que, dessa forma, o
quando os leitos psiquiátricos começaram a ser regu-
paciente se engajasse em um tratamento contínuo.
lados na cidade do Rio de Janeiro. O CPRJ é uma das
Um dos indicadores que ajuda a acompanhar o
quatro portas de entrada que avaliam a necessidade de
desempenho das equipes de emergência é o percentual de
internações psiquiátricas sendo que os 18 leitos da Enfer-
atendimentos na emergência que se tornam internações.
maria de Curta Permanência são disponibilizados para o
Como já foi dito anteriormente, esse indicador reflete
próprio CPRJ; quando há necessidade de transferência,
o esforço do CPRJ em tornar mais complexo o atendi-
o hospital solicita um leito à Central de Regulação.
mento em sua porta de entrada, de forma que a decisão
Segundo dados do Datasus/MS, o faturamento das
acerca da internação seja um critério técnico consentido
internações em um período de seis anos (2000 a 2005)
pelo médico juntamente com o psicólogo e o assistente
têm sido em média R$ 95.638,83, o que representa uma
social. Os dados apresentados no Quadro 1 mostram a
média de 836 Autorizações de Internações Hospitalares
relação entre o número de atendimentos na Emergência
(AIH) por ano. Chamamos a atenção para o fato de que
Psiquiátrica do CPRJ e o número de internações.
o faturamento da AIH corresponde ao pagamento das
Nesse período, a média percentual de internações girou em torno de 16%. A partir de 2002, houve uma
internações de 24 horas e que muitas vezes o paciente tem alta em menor período.
tendência de queda mais expressiva com estabilização
Na enfermaria, há um esforço da parte da equipe em
entre 2004 e 2005 e nova queda em 2006. Analisando-se
tornar essa internação o mais breve possível com a finali-
os números absolutos de atendimentos na emergência e
dade de inserir o paciente em serviços extra-hospitalares.
o número de internações, percebemos, no entanto, que
A enfermaria conta com uma equipe multidisciplinar
houve uma queda significativa das internações em com-
formada por médicos psiquiatras, enfermeiros, técnicos
paração aos anos de 1999 e 2006 (com uma diferença
em enfermagem, auxiliares de enfermagem, terapeutas
de 943 internações, ou seja, queda de 41%).
ocupacionais e assistentes sociais. A estada do paciente
Chama-se atenção para o fato de o CPRJ ter uma
no CPRJ não se limita à permanência no leito e à ad-
enfermaria dispondo de leitos de curta permanência.
ministração de medicamentos; a equipe multidisciplinar
Quadro 1 - Percentual de atendimentos da emergência psiquiátrica do CPRJ que se tornaram internações de 1999 a 2006 Anos
Número de atendimentos
Número de internações
%
1999
12.050
2.295
19,05
2000
10.130
2.205
21,77
2001
10.572
2.114
20,00
2002
11.956
2.051
17,15
2003
12.679
1.881
14,84
2004
16.059
1.967
12,25
2005
17.125
2.106
12,30
2006
11.882
1.352
11,38
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 1999-2006
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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
deve qualificar a assistência, oferecendo atividades no
vidas em projetos de atividades, houve a possibilidade de
pátio interno da enfermaria, e realizar grupos diários
oferecer a toda a clientela do CPRJ, independentemente
com as famílias dos pacientes internados. Dessa forma,
do local do atendimento, a possibilidade de envolvê-la
acredita-se que o que faz diminuir o tempo de interna-
com programas de atenção específica, seja em termos
ção é a interlocução da equipe multidisciplinar com os
de terapia ocupacional, musicoterapia, arte-terapia,
recursos apresentados para cada paciente visando, em
projetos vocacionais, entre outros. Isso, juntamente
muitos casos, a sua intensificação e articulação.
com as transformações pelas quais a enfermaria passava,
O caminho para o setor é assumir integralmente
apontava para o encaminhamento do projeto do CPRJ
toda a clientela de seu território, tendo-se inclusive
como uma unidade de atenção territorial no campo da
ampliado o número de leitos voltados ao atendimen-
Saúde Mental.
to, e não à transferência dos pacientes do território, e
De acordo com os dados apresentados no Quadro 2,
procurar encaminhar os pacientes de outras localidades
as médias dos indicadores hospitalares (taxa de ocupação
para os outros pólos. Durante o ano de 2006, a equipe
e tempo médio de permanência) aumentaram no
da enfermaria começou a dar prioridade ao atendi-
período de 2000 a 2005. Esses valores (principalmente
mento a essa clientela, não mais transferindo aqueles
o tempo médio de permanência) expressam, em parte,
que morassem na região, fortalecendo os laços com
resultados do incremento das atividades na enfermaria
o hospital-dia e com ambulatório. Uma dificuldade
nesse período.
evidente, em função da limitação de recursos para se
O Quadro 2 mostra, também, uma diferença
lidar com os pacientes de outras regiões, ocorria espe-
de 23 pontos entre as médias na taxa de ocupação de
cialmente em relação à clientela feminina que possuía
2000 e 2006. Esse aumento pode estar relacionado às
poucas alternativas de leitos disponíveis na cidade do
dificuldades de obtenção de leitos femininos na cidade
Rio de Janeiro.
do Rio de Janeiro. Principalmente em 2005, houve uma
Em 2005, iniciamos um processo de discussão no
drástica combinação de suspensão e redução de leitos
CPRJ que resultou em uma nova organização denomi-
devido aos vários processos de auditoria e interdições
nada de Setor de Atividades. O hospital-dia foi dividido
em hospitais psiquiátricos privados contratados pelo
em um setor de atividade e um setor terapêutico, com
SUS realizados pela Vigilância Sanitária da SES/RJ e
o objetivo de se organizar a demanda dos projetos tera-
SMS/RJ. Em 2006, houve a suspensão de internações
pêuticos da clientela. Na enfermaria a equipe do ‘pátio’,
na Clínica Valência, que oferecia 200 leitos ao sistema.
desde 2003, iniciara atividades no ambulatório com a
Essa medida resultou na modificação dos leitos psiqui-
clientela da sala de espera e com atendimentos progra-
átricos públicos que passaram a atender mais mulheres
mados. Em 2006, com a fusão de todas as equipes envol-
do que homens, já que há uma oferta maior de leitos
Quadro 2 - Taxa de ocupação e tempo médio de permanência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias Indicadores hospitalares
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Taxa de ocupação
71%
79%
82%
80%
89%
85%
94%
2
2
2
2
3
2,3
3,9
Tempo médio de permanência (dias)
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 2000-2006
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008
167
168
KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
masculinos nas clínicas privadas contratadas pelo SUS
estrutura e funcionamento dos hospitais psiquiátricos,
na cidade do Rio de Janeiro.
o CPRJ deve ter uma estrutura de pouca complexida-
Em 2006, o CPRJ registrou em cinco meses (ja-
de atender às ocorrências clínicas. Observa-se que a
neiro, março, abril, maio e setembro) taxas de ocupação
maior parte das causas de morte esteve relacionada à
maiores que 100%. Os tempos médios de permanência
dificuldade de tal paciente ser inserido e acompanhan-
nos leitos femininos (6,6 dias) sempre foram, em média,
do clinicamente pela rede de saúde em geral e não à
maiores do que os masculinos (1,6 dias).
desordem psiquiátrica.
No entanto, ao analisar as altas dadas no período (com exceção daquelas devido a óbito, transferência e Ambulatório e hospital-dia
evasões), percebe-se que este indicador vem aumentando gradativamente, podendo estar relacionado, mais uma
O ambulatório do CPRJ oferece atendimento indi-
vez, ao trabalho da equipe da enfermaria. O Quadro 3 de-
vidual e em grupo por médicos psiquiatras, psicólogos e
monstra que a média percentual de altas dadas pela equipe
assistentes sociais, para pessoas maiores de 18 anos. Nos
da enfermaria em relação à média do total de internações
últimos quatro anos, definiu-se que a clientela de primeira
no período aumentou significativamente, havendo uma
vez deveria ser moradora dos bairros localizados na área
diferença de 15 pontos entre 2005 e 2006.
programática 1.0 do Município do Rio de Janeiro, mas
Houve apenas 11 óbitos no período de 2000 a
há ainda pacientes de outras áreas programáticas do mu-
2006: dois no ano de 2000, um em 2001, um em
nicípio e da Baixada Fluminense que são acompanhados.
2002, dois em 2003, dois em 2004, três em 2005 e um
Essa escolha se deu devido a um grande número de faltas
em 2006. Segundo portaria do Ministério da Saúde n
o
às consultas marcadas de pacientes de áreas mais distantes
251/2002 do Programa Nacional de Avaliação do Siste-
e, também, para que o serviço pudesse utilizar melhor
ma Hospitalar (PNASH) (Brasil, 2004B) que orienta a
toda sua capacidade. De acordo com o Quadro 4, houve
Quadro 3 - Internação e alta hospitalar no Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias Indicador hospitalar
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Internação
187
176
176
158
159
175
113
36
36
43
42
43
39
42
19%
20%
24%
27%
27%
22%
37%
Altas hospitalares %
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Censo Hospitalar 2000-2006
Quadro 4 - Atendimentos de primeira vez e subseqüentes no Ambulatório do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – período 2000 a 2006 Tipo de atendimento
2000
2001
2002
2003
2004
Inicial
1.651
1.565
2.545
1.839
1.782
1.300
1.012*
Subseqüente
18.901
19.705
22.768
28.577
28.832
30.523
27.736*
Total
20.552
21.270
25.313
30.416
30.614
31.823
28.748*
* Não está contabilizado o mês de janeiro Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Boletim de Atendimento Ambulatorial 2000-2006
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008
2005
2006
KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
um aumento de 55% nos atendimentos do ambulatório
arte, marcenaria e culinária. Esse serviço oferece
no período de 2000 a 2005.
alimentação para pacientes que freqüentam o serviço
O ambulatório do CPRJ desenvolve um projeto
em regime integral. O hospital-dia do CPRJ possui,
especial voltado para a população idosa (projeto Pater),
também, uma associação de familiares, a Associação dos
que realiza avaliação neuropsicológica de pacientes com
Familiares, Usuários, Amigos e Funcionários do Centro
suspeitas de demência e Mal de Alzheimer; dessa forma,
Psiquiátrico do Rio de Janeiro (Afaucep), que apóia as
projetos terapêuticos específicos para estas clientelas
famílias e pacientes do hospital-dia. O Quadro 5 mostra
podem ser elaborados.
o aumento de 22% nos atendimentos feitos no hospital-
Outro projeto desenvolvido no ambulatório foi a
dia do CPRJ, comparando-se os anos 2000 e 2006.
formação do núcleo de Psicanálise, com reuniões dos
Segundo dados do Datasus/MS apontados no Quadro 6
técnicos de vários setores semanalmente. Essa equipe
houve também um crescimento no faturamento do
ampliou de forma significativa o atendimento psico-
hospital-dia no período 2000 a 2005.
terápico na Unidade e, com sua discussão, influenciou projetos na emergência e no hospital-dia.
O hospital-dia ainda realiza parcerias com as áreas sociais da SES/RJ, da SMS/RJ e com o Instituto de Psi-
O hospital-dia do CPRJ é voltado ao atendimento de
quiatria da UFRJ para o cuidado e acompanhamento de
pacientes com transtornos mentais graves e persistentes
pacientes com transtornos mentais graves e persistentes
cujos laços sociais encontram-se esmaecidos. É também
em situação de moradores de rua, em especial aqueles
composto por uma equipe multidisciplinar: psicólogo,
que moram no centro da cidade e adjacências. Essas
médico psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente
parcerias implicam no abrigamento desses pacientes em
social, auxiliares de enfermagem e oficineiros. Além das
albergues e hotéis; a contrapartida dada pelo CPRJ é o
tradicionais consultas realizadas por profissionais de nível
tratamento destes pacientes. Esse projeto foi incluído
superior, o hospital-dia oferece atividades que visam à
entre as dez experiências bem sucedidas na III Confe-
reinserção psicossocial de pacientes como oficinas de
rencia Nacional de Saúde Mental.
Quadro 5 - Número de atendimentos de pacientes e familiares no hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – período de 2000 a 2006 Clientela atendida
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Pacientes
8.626
10.523
10.006
11.135
12.656
11.852
11.799
Familiares
1.227
849
698
592
420
270
271
Total
9.853
11.372
10.704
11.727
13.076
12.122
12.070
Fonte: Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – SES/RJ. Boletim de Atendimento Hospital-dia 2000-2006
Quadro 6 - Valores totais anuais, em reais, de faturamento do hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro – Período 2000 a 2005 Unidade CPRJ
2000
2001
2002
2003
2004
2005
180.421,7
205.837,4
222.553,6
172.012,8
210.219,4
195.396,5
Fonte: DATASUS/Ministério da Saúde. Sistema de Informações Hospitalares 2000-2005
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170
KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM SERVIÇO DE
também, serviços terapêuticos para moradores de rua
SAÚDE MENTAL TERRITORIAL NO MEIO
com transtornos mentais graves e persistentes e que
DO CAMINHO7
não têm onde morar. Analisando-se o modelo assistencial desenvolvido
Destacamos que, ao final desses quase dez anos,
pelo CPRJ de 1998 até o momento, pode-se dizer que
o CPRJ têm ampliado sua produção em todos os seus
esse modelo está em processo de transição, ou seja,
serviços, procurando qualificar a assistência em Saúde
ao longo deste período o hospital foi agregando à sua
Mental de acordo com os princípios da Reforma Psi-
função de avaliação da internação psiquiátrica outros
quiátrica, ou seja, garantir os direitos dos pacientes e
serviços como ambulatório e hospital-dia, serviços que
um tratamento humanizado, inserindo-o no social para
se responsabilizam pelo acompanhamento de clientelas
romper preconceitos.
e tornam o CPRJ uma instituição mais complexa vol-
A arte adquiriu um papel especial como instrumento terapêutico e elemento de enfrentamento do
tada ao seguimento da população residente nas áreas próximas ao hospital.
processo de exclusão e da luta contra o estigma dessa
Esta apresentação de uma experiência vivenciada
clientela. Destacamos o projeto, chamado Convivendo
no CPRJ destaca que seu atual modelo assistencial se
com a Música, que gerou o grupo musical Harmonia
aproxima mais das funções de um Caps tipo III8 (Bra-
Enlouquece composto pela clientela e técnicos da
sil,
Unidade, que já lançou dois CDs e vem se apresen-
voltada à população com transtornos mentais graves e
tando em eventos públicos de importância social e
persistentes e que tenham dificuldade em estabelecer
Casas de Espetáculos no projeto Loucos por Música e
laços sociais. A grande diferença é o fato de que o CPRJ
outros, no Rio de Janeiro, Salvador, Santos, Brasília e
ainda possui uma emergência psiquiátrica e ainda cum-
Porto Alegre. No projeto Convivendo com a Música,
pre a função de avaliação da internação psiquiátrica
semanalmente, a clientela se reúne para ouvir e tocar
para a cidade do Rio de Janeiro.
2004C), ou seja, uma unidade de Saúde Mental
música; pelo menos uma vez por mês eles recebem um
Isso nos permite demarcar a possibilidade de haver,
músico convidado: já foram recebidos um violinista da
nas grandes cidades, um desenvolvimento de serviços
Sinfônica de Sttugart, uma banda punk de meninas
que possam atuar de forma integral e ser integrado à
do Rio de Janeiro, uma banda de forró entre outras
rede, atendendo de forma territorial a clientela, seja
participações. Além da música as artes plásticas, poesia,
na crise, em sua demanda cotidiana ou no processo
teatro e outras expressões artísticas foram vivenciadas
de reabilitação.
durante este período no CPRJ.
Por fim, ressalta-se que as modificações realizadas
Em 2006, o hospital começou a desenvolver pro-
em seu modelo assistencial relacionam-se às necessi-
jetos de visitas domiciliares sistemáticas para pacientes
dades e negociações junto às Secretarias Estadual e
que residem da área do entorno do hospital, mas que
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro com o intuito
não conseguem aderir a nenhum dos seus serviços e,
de se implantar a política da Reforma Psiquiátrica.
Este título se deve ao fato de que o CPRJ, apesar de todas as modificações apresentadas o aproximarem de um serviço territorial, sua posição no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde ainda é de hospital psiquiátrico. 7
Um Caps tipo III se constitui como um serviço de atenção psicossocial de base territorial que funciona 24 horas e possui no máximo cinco leitos para internação psiquiátrica exclusiva de seus pacientes em acompanhamento. 8
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KEUSEN, A.; CARVALHO, A.L. • A construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
Ao mesmo tempo, todo o processo de construção da diversidade de atividades só foi possível por causa do engajamento de técnicos, usuários e seus familiares que, através de debates públicos, assembléias e reuniões de
Rotelli, F.; Leonardis, O.; Mauri, D. Desinstitucionalização, uma outra via: a Reforma Psiquiátrica italiana no contexto da Europa e dos ‘países avançados’. In: Nicácio, F. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 17-59.
equipe, procuraram encontrar soluções para a melhoria da assistência dada pelo CPRJ.
Recebido: abr./2008 Aprovado: ago./2008
R E F E R Ê N C I A S
Amarante, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ ENSP, 1995. Brasil. Ministério da Saúde. Lei n. 10216 de 6 abril de 2001. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, DF, 2004A. p. 17-19. _______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 251, de 31 de janeiro de 2002. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, DF, 2004B. p. 118-124. _______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 336, de 19 de fevereiro de 2002. In: Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5. edição ampliada. Brasília, DF, 2004C. p. 125-136. Delgado, P.G.G. No litoral do vasto mundo: lei 10.216 e a amplitude da reforma psiquiátrica. In: Cavalcanti, M.T.; Venâncio, A.T.A. (Org.). Saúde mental: campo, saberes e discursos. Rio de Janeiro: Edições IPUBCUCA, 2001. p. 283-290 Desviat, M. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte Linking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas Gerais Serafim Barbosa Santos-Filho
1
Médico sanitarista; mestre em
saúde pública e epidemiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais
1
RESUMO Neste artigo aborda-se a experiência de articulação de um conjunto de instrumentos de gestão subsidiando a organização dos serviços substitutivos
(UFMG); consultor do Ministério
de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) de Belo Horizonte, Minas
da Saúde, atualmente realiza
Gerais há cerca de dez anos. Enfatiza-se o modo de aporte das diretrizes do
acompanhamento/apoio aos Serviços
planejamento e dispositivos agregados, para avançar num modelo de co-gestão dos
de Saúde Mental do Sistema Único
processos locais de trabalho. Além da utilidade na organização interna dos serviços,
de Saúde (SUS) em Belo Horizonte e Região Metropolitana na área de
explicita-se o potencial dessas ferramentas de gestão na organização da rede e no
planejamento e gestão.
desenvolvimento de ações articuladas. O aprofundamento dessas aproximações
[email protected]
pode contribuir para a consolidação dos processos coletivos de trabalho em Saúde Mental e potencializar a integração da rede. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Planejamento; Gestão; Rede.
ABSTRACT In this article it is approached the articulation experience of a set of management tools subsidizing the organization of substitutive Mental Health services of the Single Health System (SUS) of Belo Horizonte (Minas Gerais), in about ten years. The emphasis is in the mode of intake of the planning guidelines and aggregated tools to improve a model of participating management. In addition to the utility in the services internal organization, it is clear that these tools potential for managing the organization’s network and development of coordinated actions. It is suggested that these approaches deepening can do much to the consolidation of the collective work processes’ in Mental Health and to enhance the network integration. KEYWORDS: Mental Health; Planning; Management; Network.
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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
I N T R O D U ç ão
ao que tem sido apontado por Campos (2000, 2003, 2006) como inovações nos modelos de gestão, atualmente enfatizando-se a metodologia de ‘apoio institucional’, como estratégia de assessorar os coletivos na discussão e enfrentamento de situações, compartilhando e fazendo
Historicamente, no âmbito dos serviços tradi-
ofertas, inclusive de ferramentas.
cionais de Saúde Mental não eram utilizados recursos
Nesse eixo, trabalhar com ferramentas de planeja-
de planejamento focados nos processos de trabalho e
mento e de avaliação abre caminhos para repensar per-
organização da atenção. A aproximação das diretrizes
manentemente ‘o quê’ (metas) está sendo alcançado, com
e instrumentos de planejamento estratégico e outras
quais ‘estratégias’, em quais ‘direções’, atinando-se para
ferramentas de gestão no campo da Saúde Mental é algo
um acompanhamento avaliativo das ‘mudanças’ propostas
que vem ocorrendo recentemente, a partir das mudanças
e esperadas com o serviço. Esse processo ajuda na refle-
no paradigma da atenção, especialmente com a Refor-
xão contínua sobre a proposta de desinstitucionalização,
ma Psiquiátrica e proposta dos serviços substitutivos
sobre o que ela traz como objetivos e quais componentes
(Amarante, 1992).
(‘indicadores’) realmente delimitam o caráter ‘substitutivo’
A apropriação dos referenciais do planejamento, atrelados à uma concepção de gestão participativa, con-
dos serviços, isto é, faz pensar sobre os objetivos e o que está efetivamente sendo posto em prática.
tribui não somente para articular a dinâmica dos serviços
No presente artigo, esses e outros aspectos são
em torno de sua missão e metas, mas sobretudo para
levantados e analisados, tendo-se por base um ‘projeto
fomentar o exercício da construção coletiva de objeti-
de intervenção/apoio’ que começou com uma série de
vos, processos e viabilidade para os projetos desejados.
oficinas de planejamento ocorridas em um Cersam/
O planejamento pode, portanto, ser exercitado em um
Caps do SUS/BH, no início de seu funcionamento,
caráter pedagógico, de aprendizagem coletiva.
em meados dos anos 1990. Essas oficinas propiciaram
Nesse sentido, nossa aproximação sistemática em
a orientação do processo de trabalho no serviço, avan-
curso há cerca de 10 anos, inicialmente com um dos
çando em discussões que extrapolam a tessitura do seu
Centros de Referência de Saúde Mental (Cersam/Caps)
modus operandi, abrigando importantes questões nessas
do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS/
direções que acabamos de mencionar, no sentido de fo-
BH), pautou-se exatamente por essa linha, fomentando
mentar o protagonismo da equipe na co-construção do
a perspectiva de um ‘jeito’ compartilhado de conduzir
‘sentido’ daquele serviço substitutivo que se inaugurava.
serviços, marcando a importância do envolvimento efe-
A pergunta que sempre levantamos para inquietar: ‘a
tivo de todos os atores na produção do seu próprio fazer
que viria um serviço substitutivo?’ E, quais ‘frentes de
e das práticas de atenção, jeito que sugeria a importância
ação’ poderiam ser construídas para corresponder à nova
da atitude de co-responsabilização em torno de ‘planos
missão que se colocava.
de ação’, planos sempre cuidadosamente revistos, e vistos
A seguir, são sintetizadas algumas reflexões sobre
não numa perspectiva burocrático-protocolar, mas como
os movimentos desencadeados com o serviço que foi
norteador dos movimentos considerados necessários
mencionado, agregando também nossas outras experi-
para a consolidação dos serviços. Essa sistemática de
ências, estendidas aos demais serviços da rede do SUS/
aproximação e acompanhamento dos serviços alinha-se
BH e outros municípios mineiros.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008
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174
Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
A demanda pelo ‘planejamento’ e os rumos da
e adesão ao modelo proposto; (III) os relacionados ao
interlocução estabelecida
processo de trabalho, mostrando a inexistência ou insu-
O primeiro serviço que nos foi demandado para
ficiência de definição ou clareza de papéis, atribuições,
contribuir com a organização no início de sua estru-
arranjos para o trabalho em equipe, rotinas operacionais
turação foi o Cersam/Caps Noroeste. Esse Cersam foi
e fluxos; (IV) as dificuldades de viabilizar algumas pro-
criado no final de 1995, a partir da reestruturação de
postas previstas no modelo, especialmente as do âmbito
um ‘grande’ serviço ambulatorial ligado ao Instituto
da reabilitação psicossocial; (V) e as questões estruturais
Nacional de Previdência Social (Inamps), no processo
inicialmente trazidas como uma percepção de limitação
de municipalização de serviços. Os gestores do Sistema,
de recursos materiais e humanos.
no qual o Serviço estava inserido, articularam um grupo
Seguindo na problematização das situações, mais
de apoio à sua reorganização, incluídos como assessores
do que ações sistemáticas para superação dos problemas
para a discussão de seu planejamento. A participação
levantados, o planejamento passou a ser uma estratégia
deu-se, então, desde o ‘planejamento’ das estratégias para
da equipe para a construção de um ‘projeto diretor’
‘desconstruir’ o serviço instituído (Inamps), caminhando
do Cersam/Caps. Clareou-se para a equipe a dimen-
para ajudar em todas as etapas de sua estruturação como
são político-instrumental implicada no planejamento
Cersam/Caps.
estratégico, possibilitando entender a necessidade de
No Cersam/Caps em sua nova missão e organização
uma permanente atitude de participação e negociação,
como serviço substitutivo seria um serviço de curta per-
não somente na definição de uma ação/projeto, mas
manência, devendo estar articulado a uma rede ambula-
principalmente para assegurar a sua operacionalização.
torial para acompanhamento após o período de crise.
Vislumbrou-se a dimensão político-decisória implica-
Após o início de funcionamento, a equipe do ‘novo’
da no ato de planejar, envolvendo interesses, desejos,
serviço manifestou interesse em discutir sistematicamen-
recursos físicos e mobilização de poderes dos diversos
te os problemas que estavam sendo observados, expressos
atores implicados.
no processo de trabalho, nos resultados das atividades
As principais ações propostas englobaram aspectos
e principalmente nas insatisfações que começavam a
que contemplavam desde a necessidade de discussões
despontar no grupo.
continuadas e ampliadas em torno do projeto institu-
A partir de uma reunião inicial e co-validação da
cional da Saúde Mental, até a estruturação de rotinas ad-
demanda que se apresentava, delinearam-se os pos-
ministrativas para o serviço. Permeando esses extremos,
síveis movimentos a serem disparados, enfatizando e
o processo de trabalho foi o alvo central do enfoque,
explorando especialmente o interesse e mobilização
criando-se critérios e fluxos organizadores do trabalho da
dos envolvidos na construção de um possível ‘projeto’
equipe e para articulação com outros órgãos e serviços,
para o serviço.
problematizando-se a idéia de rede.
Como grandes grupos de problemas pode-se citar:
Os momentos da construção das matrizes operacio-
(I) aqueles que tocavam na dificuldade de compreensão,
nais concluíram uma primeira fase do planejamento do
de forma coletiva, das diretrizes centrais do projeto ins-
Cersam/Caps, desenhando o que era preciso ser explo-
titucional da Saúde Mental dentro de um novo modelo
rado mais minuciosamente. A conclusão dessa fase foi
assistencial; (II) os relacionados a recursos humanos,
ligada diretamente ao estabelecimento de cronogramas
principalmente quanto ao desenvolvimento, qualificação
de trabalho, constando de subprojetos e atividades a
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008
Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
serem desenvolvidas no âmbito interno e nas articulações com órgãos externos.
E nesses movimentos, o serviço/equipe foi crescendo em seu potencial de inventar rumos e buscar a consolidação dos apoios considerados necessários como desafios. Do ponto de vista do planejamento, havia que
Para além de uma abordagem instrumental de
se exercitar esse apoio com direcionamento cuidadoso
planejamento: contribuição das oficinas e movimentos
dos problemas levantados, principalmente para não
de planejamento na ampliação das discussões
correr o risco de enviesar ou supervalorizar as dimensões
Vale ressaltar uma dimensão de ações que naquele
mais ‘aparentes’ dos problemas ou as que apareciam
momento foi de vital importância para o Serviço, ou
como ‘sintomas’ mais diretos, a exemplo das situações
seja, a preocupação em se demarcar como uma das
de ‘demanda excessiva’ ou das ‘várias faltas estruturais’,
pautas prioritárias a discussão da (nova) clínica que
queixas que já naquele momento eram largamente
se desejava fazer e que já se experimentava no próprio
manifestadas.
exercício de um aprendizado coletivo. Na medida
Portanto, a necessidade de ajudar a tratar dos
em que foram se desenvolvendo as oficinas de plane-
problemas trazendo-os para o âmbito do ‘processo de
jamento, inicialmente no âmbito da exploração dos
trabalho’, processo complexo por se pretender como
problemas gerais (‘organizacionais’) e, depois como
inovador e em ruptura (ou superação) com os modelos
desdobramento dessas, outros assuntos emergiam do
tradicionais de fazer. Por outro lado, o cuidado também
próprio cotidiano de experiências, vivências, desafios
na perspectiva propositiva, ajudando a equipe a encon-
que se apresentavam em meio a muitas inquietações,
trar rumos, mas sem passar a idéia de que as soluções dos
inclusive, pela própria novidade e intensidade do
problemas passavam por um eixo de ‘total organização’,
que estava sendo construído. As oficinas, portanto,
de modo acrítico, com o risco de se criar uma visão ‘dura’
contribuíram funcionando como um cenário no qual
de um processo de planejar; risco de tentar responder
se acolhia e provocava a discussão das demandas e
com estruturas rígidas, ‘protocolos’ e ‘fluxos’ inflexíveis
ofertas do Serviço – a ‘clientela-alvo’, os ‘produtos’ a
às situações que na verdade eram revestidas de outros
lhes serem ofertados, o ‘modo de ofertar’, as marcas
desafios e necessidades.
(‘qualidade’) a serem impressas nessas ofertas/ações,
Na verdade, o mais importante era provocar e
e as ‘respostas’ esperadas com esses ‘investimentos’.
inquietar a equipe para perceber o processo de plane-
Como isso era efetivamente o cerne do trabalho, na
jamento e organização atrelado à perspectiva da clínica
medida em que se ia aprofundando a discussão sobre
que é o caminho pelo qual se apresentam, e são reveladas
o ‘fazer’ e conduzir os ‘casos’, foi sendo observado
as necessidades reais dos sujeitos/usuários.
ou reforçado a necessidade de tratar dessas questões
Portanto, é no âmbito da clínica que se conhece
também em outra esfera, ampliando os loci de sua
a necessidade e se direciona a ação; e é nesse contexto
problematização. Nesse momento, despontou e
que essa necessidade e essa ação poderiam ser debati-
fortaleceu-se na própria equipe a demanda por ati-
das, ‘organizadas’, sistematizadas, direcionadas, à luz
vidades de supervisão clínica. É interessante lembrar
de um planejamento – planejamento que viria ajudar
que essa demanda se apresentou como uma operação
a pensar critérios, prioridades, fluxos, constituição de
colocada em um dos planos de ação da equipe, a partir
equipes, papéis, etc, mas tudo em torno de um objeto
das primeiras oficinas de planejamento.
claro/esclarecido (necessidades, demandas, prioridades).
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Evidentemente, a potência do planejamento se estende
situações (baseadas nos ‘casos’ e na vida do serviço)
quando se pensa que tudo isso está na perspectiva de
que, ora podem ser da ordem de discussão em fóruns
rede, uma vez que os ‘casos’ (as necessidades, demandas)
‘específicos’ (supervisão), ora devem ser ampliadas, na
circulam em vários pontos de uma rede, para tal carecen-
ótica da gestão (também em sentido ampliado), para
do de bons (e pactuados) arranjos e fluxos. Mas, tudo
resultar em revisão dos modos de funcionamento e
na perspectiva do que são exatamente as necessidades
em intervenções e respostas mais eficazes e satisfatórias
(compreendidas no âmbito da clínica ampliada) dos
(tanto para usuários quanto para os trabalhadores/
sujeitos-usuários da saúde mental. Pode-se notar que o
equipe, e para a instituição/gestão). É importante
que se nomeia como dispositivo de ‘projetos terapêu-
observar o quão interessante (e coerente) tem sido a
ticos’, em um sentido, ocupam esse lugar de necessária
pauta dos seminários regulares que o Cersam Noroeste
indissociação entre ‘clínica’ e ‘planejamento’ e entre
vem fazendo bianualmente, cujos temas vêm a refletir
1
‘atenção’ e ‘gestão’ . Ressalta-se a importância atual dessas reflexões,
exatamente essa interlocução entre clínica e eixos de planejamento/gestão.
inclusive porque não é incomum os serviços/equipes de
Acredita-se, e há esse retorno a partir de nossas
Saúde Mental em início de funcionamento ou em fases
atividades de acompanhamento, que a máxima amplia-
de reorganização ‘solicitarem’ planos/intervenções em
ção de espaços de discussão possibilita não somente a
certa dureza na concepção de organização, como que
ampliação de alternativas, mas também gera ‘desesta-
‘sufocados’ por problemas e ‘crentes’ em sua solução, por
bilizações’ interessantes, provocativas. As discussões
meio de arranjos apenas estruturais, formais, ‘externos’,
ampliadas ajudam a não cristalizar a prática, a não se
como que externos à clínica, ao objeto mais central
colocar apenas em função da demanda, a refletir sobre
nesses/desses serviços.
uma série de pontos críticos do processo e relações de
Ainda no rastro dessa reflexão enfatizada é pertinen-
trabalho, enfim, fazendo aparecer e/ou fortalecer estra-
te a perspectiva de um desenho de ‘apoio’ aos serviços,
tégias que têm coerência com as práticas substitutivas.
compondo-se de momentos regulares de supervisão
Possibilitam, com diferentes olhares e questionamentos,
clínica (realizadas por um supervisor específico) e de
tocar em ‘indicativos’ que estariam refletindo a eficácia
momentos de ‘oficinas’ em uma ótica mais ampliada
na gestão e resultados dos serviços.
de planejamento. Observa-se que em determinados
Esses novos serviços de caráter substitutivo (ao
momentos isso é benéfico para os serviços. Essa alter-
modelo manicomial), na medida em que se consolidam,
nância de espaços de problematização, cada um com
acenam cada vez mais a desafios em torno do processo e
suas especificidades e jeitos próprios, foi experimentada
metas para o enfrentamento dos modelos tradicionais.
no Cersam Noroeste e também vivenciada ou sugerida
Por um lado, podem ser elencados vários indicadores
em outros serviços. Deve ser vista não exatamente como
de resultados satisfatórios, como por exemplo, os casos
uma complementaridade de abordagens, mas como
progressivos de desospitalização dos pacientes, a redução
espaços de levantamentos, explorações e condução de
nos índices de reinternação ou de primeiras internações,
O aprofundamento dessa discussão, em diferentes direções, tem sido feito por Gastão Wagner Sousa Campos (Campos, 2000, 2003, 2006) e tem sido retomada suas bases na formulação das diretrizes e dispositivos do Humaniza SUS/Política Nacional de Humanização. Para maior conhecimento sobre o marco teóricopolítico do Humaniza SUS, bem como seus dispositivos, recomenda-se uma consulta aos materiais disponibilizados no site do Ministério da Saúde: www.saude. gov.br/humanizasus 1
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a ampliação de acesso e outros. Por outro lado, no coti-
em prol da legitimidade dos planos’ (Onocko, 2003).
diano dos serviços, os profissionais têm convivido com
Isto implica,
problemas de diferentes ordens, de âmbito estrutural e de processos de trabalho, resultando em desgastes com múltiplos fatores em seu entorno – vêm acarretando uma sobrecarga diária aos profissionais, traduzida no
assumir uma perspectiva mais descentralizada de mundo, trazendo à tona o mundo social dos atores para além da fria compreensão do planejamento enquanto tecnologia (Onocko,2003),
desgaste que é vivido para se conseguir levar adiante o projeto proposto. Essas questões acenam para a necessidade de apro-
o que potencializa sua relevância enquanto ação comunicativa.
fundar a discussão da organização dos serviços nesse
Considerando as dimensões técnica e política do
momento de consolidação. E para isso é importante o
planejamento e da atuação intersetorial, deve-se enfatizar
aporte de referenciais que ajudem a problematizá-los,
o seguinte:
isto é, dando visibilidade aos resultados (indicadores quanti-qualitativos), evidenciando as falhas no processo e sugerindo caminhos para correção de rumos e viabilização de novas frentes. A apropriação de ferramentas de planejamento e de avaliação assume relevância especial no âmbito do movimento e desempenho dos gestores (e equipes), que muitas vezes expressam a sua limitação quanto a habilidades em
O trabalho não se restringe, portanto, a um simples preenchimento de planilhas e corresponde a uma verdadeira análise do ‘estado da arte’ em termos do conhecimento e da tecnologia disponível para o enfrentamento do problema selecionado, ao tempo em que liberta a imaginação dos participantes para que possam pensar em formas inovadoras de organização das atividades previstas, com os recursos disponíveis. (Teixeira; Paim, 2002).
conduzir os processos cotidianos. Mais do que um caráter instrumental, esses aportes são um arsenal
Se tais princípios valem para o setor saúde em geral,
importante para efetivar o processo coletivo da ges-
destaca-se aqui sua pertinência na área da Saúde Mental,
tão, ampliando e consolidando dispositivos de gestão
considerando os desafios para ampliação e consolidação
participativa, como os colegiados/fóruns de decisão e
dos seus novos serviços e práticas (serviços e práticas
condução dos serviços.
inovadoras) e a estruturação de projetos intersetoriais.
Ilustrando o potencial do planejamento participativo O PLANEJAMENTO PERMEANDO A AÇÃO INTERSETORIAL EM SAÚDE MENTAL
na ampliação de ações intersetoriais em Saúde Mental À luz do planejamento participativo, as ‘situações’ que se apresentam como situações-problema – objetos de
A intersetorialidade pode ser vista como ‘estra-
intervenção – são realidades a serem conhecidas, reconhe-
tégia de reorganização das respostas aos problemas,
cidas e exploradas pelos diversos sujeitos que as vivenciam.
necessidades e demandas sociais dos diversos grupos da
O ponto central que se destaca nesse eixo é o reconhe-
população’ (Teixeira, 2002), refletindo em projetos e
cimento dos ‘outros’ atores na articulação desejada para
planos efetivos de ação; e o planejamento como meio de
propostas de solução (construção de alianças para atuação
‘revalorizar as estratégias de negociação e de cooperação,
e solução). No atual momento da Reforma Psiquiátrica,
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tanto no plano mais ‘macro’, como na esfera local de
Em um seminário da rede de serviços de Saúde
implementação de ações, é indiscutível a necessidade
Mental da criança e do adolescente, tendo como tema
de potencializar a ‘reunião’ dos diversos sujeitos/agentes
central a Intersetorialidade, foi possível contribuir
envolvidos nesse ‘assunto’, no intuito de possibilitar a
no aprofundamento da discussão sobre a construção
manifestação de suas diferentes percepções e interesses, e
de ações articuladas com diferentes atores sociais. Os
disparar movimentos de intervenção. No plano local, por
desdobramentos desse seminário levaram à revisão
exemplo, deve-se refletir sobre até que ponto se avançou
dos marcos de organização da atenção à criança e do
no envolvimento do ator ‘família/familiares’ na dinâmica
adolescente, sendo um dos produtos desse movimento
dos novos serviços; indo mais longe: até que ponto foram
a elaboração de um documento/projeto de construção
disparadas ações para envolvimento da comunidade local.
compartilhada, envolvendo a coordenação, equipes de
Por outro lado, deve-se refletir permanentemente sobre o
trabalhadores e gestores locais (dos serviços), abrindo-se
grau de articulação que se tem conseguido efetivar entre
para o envolvimento de outras áreas. Reafirma-se com
os próprios serviços de saúde, buscando sempre manter
isso a potência do trabalho construído em parcerias.
em pauta a discussão sobre ‘rede’.
O esforço para a realização de um trabalho con-
De outro lado, numa perspectiva bastante am-
junto é por si mesmo um indicador de aprendizagem
pliada, exemplos recentes da Saúde Mental podem
na perspectiva da atuação integrada, desafio que deve
ser tomados para ilustrar experiências efetivamente
levar em conta as diferenças reais existentes (de objetos,
inovadoras no âmbito de um plano intersetorial. É o
de saberes, de momentos, de gerência, etc.) entre os
caso da iniciativa de propiciar aos usuários atividades
diferentes serviços que compõem a rede, o que torna
como visitas/entradas nos cinemas da cidade, mobili-
fundamental a premissa de ‘flexibilidade’ para buscar
zando, para isso, diferentes setores, incluindo a rede de
integração, inclusive numa perspectiva que pode ser
empresas de cineclubes. Isso demonstra a incorporação
chamada político-pedagógica. Especialmente o ‘momen-
e intercâmbio de desejos, interesses, saberes e recursos
to estratégico’ do planejamento deve ser terreno fértil,
distintos, bem como de operações táticas desencadeadas
como salienta Onocko (2003), para, nesses contextos, a
para viabilizar essas ‘intenções’, essas ações. E, é um
‘equipe se confrontar com as perguntas: Quem somos?
exemplo de situação que deve ser colocada em análise,
Quem são os outros? Estamos imaginando o mesmo
nos espaços do cotidiano de trabalho, para delas serem
futuro? Desejamos as mesmas coisas?’. Desponta nesse
extraídas as ‘lições’ como experiência pedagógica, de
contexto uma importante problematização de ‘sentidos’,
aprendizado no aporte de habilidades e instrumentos
de interesses e de espaços de governabilidade, que pode
de planejamento/negociações. Certamente essa é uma
apontar para desafios maiores, como reflexão sobre a
dentre várias outras experiências, e foi aqui destacada
(re)construção coletiva de objetivos, produtos esperados
por permitir demarcar de forma muito pertinente à
e processos de trabalho, estimulando a mobilização,
‘coerência entre o que se propõe como projeto inovador
motivação, criatividade e assunção de responsabilida-
(âmbito da inclusão social efetiva dos sujeitos), o exer-
des, como a atitude política. A implicação no processo
cício de uma clínica ampliada (contemplando recursos
passa a ir além da assunção ou delegação de funções e
ampliados nos projetos terapêuticos) e a perspectiva
competências restritas ao plano técnico. Acredita-se que
organizativa (do planejamento) contribuindo para isso’.
a democratização das relações e intensificação das ações
(Comentário do autor)
comunicativas (entre dirigentes, técnicos e usuários, e
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interserviços em rede) deve-se constituir como um dos
Cersams e Coordenação de Saúde Mental. O início
produtos dos instrumentos de gestão, firmando espaços
desse processo deu-se a partir de uma nova série de
para mudanças das práticas institucionais (Campos,
oficinas chamadas pelos próprios serviços (gestores)
2000; Teixeira; Paim, 2002).
e coordenação, para discussão de problemas gerais
No momento atual da Saúde Mental, a exploração
no funcionamento dos serviços e articulação da rede.
de todas essas perspectivas pode potencializar em muito
Ao serem levantadas coletivamente algumas questões,
o desenho, abrangência e ‘invenção coletiva’ de ações.
foi proposta a continuação do debate canalizando-o
Vale ressaltar que alguns dos serviços substitutivos,
de forma a apontar e direcionar, coletivamente,
como os centros de convivência, vêm demonstrando,
metas e estratégias de ação (para enfrentamento dos
segundo sua própria percepção, que não há limites
problemas identificados), definindo e negociando as
para disparar experiências inovadoras, muito para além
metas possíveis de serem alcançadas, considerando a
de abordagens tecnicistas. E quanto mais sistemáticas
realidade de cada serviço e dentro de prazos julgados
forem as interlocuções, subsidiadas por arranjos/planos
pertinentes. Assim seriam trabalhados com metas
político-instrumentais é possível aumentar o alcance e
que norteariam o acompanhamento e avaliação de
qualidade dessas iniciativas e seus resultados.
desempenhos, conforme acordos firmados entre partes (Coordenação e Gestores Locais). Os próprios instrumentos avaliativos seriam negociados e definidos de forma compartilhada. Apesar de terem
AVANÇANDO NO APORTE DE FERRAMENTAS
sido envolvidos cerca de seis meses nesses primeiros
DE GESTÃO: APOSTANDO NOS
movimentos (de problematização, definição e pactu-
DISPOSITIVOS DE CONTRATUALIZAÇÃO,
ação de metas), esse processo foi apenas iniciado e,
‘CONTRATOS DE GESTÃO’, PARA
aqui, é importante ressaltar tal movimento enquanto
CONSOLIDAR A REDE DE SAÚDE MENTAL
potencial que se apresenta para ajudar na consolidação da rede de Saúde Mental do SUS/BH. Destacam-se
Até a presente discussão, foi enfatizada a aborda-
duas vertentes capazes de abrigar a riqueza desse
gem dos instrumentos de planejamento e organização
processo de contratualização e o que efetivamente
de serviços em seu potencial de abrir campo para pro-
ele pode potencializar.
blematizações e negociações. E na intenção de explorar ao máximo essa perspectiva do compartilhamento dos processos, das metas e do fazer cotidiano, pautam-se
Quanto ao alcance do método/dispositivo
agora os chamados ‘contratos de gestão’, dispositivos
A perspectiva da ‘contratualização’ está atrelada à
que têm sido enfatizados a partir da Política Nacional de
efetivação de um processo de ‘co-gestão’, extrapolando
Humanização (PNH) (Brasil, 2006) e que possibilitam
uma compreensão de ‘contrato’ no sentido formal,
avanços nos modos de definir coletivamente os modos
normativo ou mesmo jurídico. No âmbito que mais
de fazer e os rumos de um projeto, serviço ou da rede.
interessa ao presente artigo, contratar significa, então,
Parte-se de uma situação concreta que começou
a capacidade de estabelecer contato, criar conexões,
a se experimentar na rede de Saúde Mental do SUS/
redes – uma estratégia de pôr as ações, os serviços,
BH mais recentemente, envolvendo todos os Caps/
para funcionar de outro modo; para alterar os modos
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de relação e os modos de gerir o/no trabalho. Em
Quanto aos conteúdos previstos nos contratos e seu
termos instrumentais, os contratos devem-se compor
‘acompanhamento avaliativo’
de metas discutidas e definidas coletivamente, pelas
As metas que foram contempladas nos ‘contratos
partes envolvidas no processo, co-construindo pro-
internos de gestão’ refletem pautas ampliadas, nas quais
jetos, encadeando-se co-análises e co-elaboração de
se pode observar o avanço do projeto de Saúde Mental
propostas viáveis. Em sua metodologia, é importante
no SUS/BH, sobretudo dando passos para ajudar a
serem desencadeados movimentos simultâneos em
ampliar/consolidar um trabalho em rede, com esforços e
duas direções: em uma, o movimento de oficinas en-
instrumentos mais sistemáticos para viabilizar e sustentar
volvendo gestores dos serviços e coordenação central;
articulações e pactuações entre os serviços. Por outro
em outra, um desdobramento e aprofundamento de
lado, e ao mesmo tempo, mostram-se claros os diferentes
discussões entre gestores e suas equipes, não somente
momentos de cada serviço/Cersam, cada um apontando
repassando ‘informes’, mas criando-se espaços efetivos
suas metas específicas, seus ‘jeitos’ e seus tempos para
de atualização das diretrizes dos projetos, propiciando
desencadear processos (para isso podendo-se proceder a
sua apropriação pelo conjunto dos trabalhadores e
uma ‘decomposição’ das metas a serem programadas de
ajustamento coletivo de metas no nível local.
forma gradativa num cronograma de implementação).
Em ambas as direções, o eixo fundamental é
O respeito aos diferentes perfis, momentos e especifi-
o de abertura a processos de pactuação, com co-
cidades de cada serviço é uma diretriz cara ao âmbito
responsabilidade em torno de metas não-definidas de
dos contratos de gestão. É um dos seus diferenciais de
modo apenas externo, mas de forma compartilhada.
outros instrumentos de definição de metas, comumente
Nesse eixo, deve-se valorizar também a perspectiva de
estabelecidas de modo prescritivo e unilateral. O que
formação dos gestores quanto à capacidade de gestão
poderia parecer apenas um processo de programação,
baseada na escuta; quanto ao aprimoramento de uma
ganha outra relevância, de âmbito político e de rede de
das funções do gestor como apoiador institucional, a
compromissos.
de fazer ‘ofertas’, provocando e estimulando inovações
Uma estratégia fundamental do processo de contra-
no trabalho, sustentando os processos e movimentos.
tualização é instituir um método de ‘acompanhamento
A essa ótica atrela-se a perspectiva pedagógica de forta-
avaliativo’, cuidando para que as metas sejam aferidas
lecimento dos gestores (e da gestão) quanto ao aporte
(em seu cumprimento), não no sentido de uma ‘fiscali-
de conceitos, ferramentas e instrumentos de gestão,
zação de seu alcance absoluto’, mas no que se concebe
que podem ser mais sistematicamente utilizados no
como ‘avaliação formativa’, capaz de ir ‘incluindo’ as ra-
dia-a-dia, envolvendo os trabalhadores em práticas
zões que explicam seu maior ou menor êxito, subsidian-
institucionais de planejamento, avaliação, contratua-
do ‘regulações’ no processo e repactuação de metas.
lizações (com base em metas), ampliando a capacidade
Vale destacar as metas/iniciativas que foram aponta-
de intervenções de toda a equipe. Esse aspecto ‘for-
das, buscando-se cada vez mais efetivar o funcionamento
mativo’, na própria prática, é um aspecto que deve ser
dos serviços na perspectiva de uma atuação transdisci-
ressaltado inclusive pela necessidade e compromisso
plinar, crescendo em sua proposta de se constituir como
institucional com a atualização dos gestores, alguns
serviço inovador, produtor de conhecimento, de uma
novos na rede, e com pouco conhecimento das áreas
‘clínica feita por muitos’ (utilizando uma expressão da
de planejamento, gestão e avaliação.
área e que serviu como mote de um dos grandes seminá-
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Santos-Filho, SB. • Articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
rios bianuais que se organizou com o Cersam Noroeste). Tudo isso vai de encontro ao que se quer enfatizar no âmbito da missão dos serviços de saúde, marcando seu compromisso com a produção de serviços (âmbito da atenção), mas também com a produção de sujeitos, conhecimento, aprendizagem no coletivo (âmbito da gestão) (Campos, 2000; 2003; 2006). A democratização das relações e intensificação das ações comunicativas entre dirigentes, técnicos e usuários deve-se constituir como um dos produtos desses instrumentos de gestão,
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instituindo-se como espaço para mudança das práticas institucionais.
Recebido: abr./2008 Aprovado: out./2008
R eferências
Amarante, P.D.C. A trajetória do pensamento crítico em Saúde Mental no Brasil: planejamento na desconstrução do aparato manicomial. In: Kalil, M.E.X. (Org.). Saúde Mental e cidadania no contexto dos sistemas locais de saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. p.103-119. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Campos, G.W.S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos, G.W.S.; Minayo, M.C,S.; AkermaN, M.; Júnior, M.D.; Carvalho, Y.M. (Org.).Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006. ______. Saúde paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.
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Documento Histórico
/ Historical Document
SAÚDE MENTAL Condições de assistência ao doente mental* Comissão de Saúde Mental dos C e b e s
O quadro sabidamente distorcido da assistência médica no Brasil, com a perversa tendência à privatização e ao abandono pelo Estado da responsabilidade pela assistência médica da população, delegando essa obrigação social aos grupos privados, é consideravelmente mais grave na área de cuidados ao doente mental. Se é verdade que a tendência à privatização é um fenômeno geral atingindo os mais variados segmentos da assistência médica, ou fora dela, não é menos verdadeiro que a previdência conta com alguns hospitais de conhecida eficiência técnica, não raro os mais procurados nas diferentes especialidades por seu reputado padrão de qualidade e que, se não atendessem ao universo de segurados, devido ao seu número aquém do mínimo necessário num Estado estruturado para atender às necessidades mínimas de todos os setores sociais, constituir-se-iam um serviço modelo, a partir do qual os particulares seriam medidos, num sistema em que o controle de qualidade sobre os serviços contratados fosse efetivo. Essa possibilidade, todavia, nem mesmo é possível na psiquiatria, especialidade da sem nenhuma unidade hospitalar oferecida pela Previdência, deixando a totalidade da assistência entregue aos hospitais particulares através da compra de serviços. Não resta, pois, à Previdência, a possibilidade de controlar a qualidade dos serviços comprados, medida por comparação com a assistência diretamente prestada, como é exeqüível noutras especialidades. Desse modo, é de se estranhar que a psiquiatria seja o setor da assistência médica onde as denúncias sobre as distorções, a eficiência e o baixo padrão tenham se tornado lugar comum, motivo que faz dela assunto permanente * Texto extraído de: “Condições de assistência ao doente mental”. In: Assistência psiquiátrica no Brasil: setores públicos e privados. Revista Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n.10, p. 49-55, abr./jun. 1980.
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Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
nas páginas dos jornais. Uma nota oficial do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, em setembro de 1978, já apontava a necessidade de: 1. Denunciar que o modelo assistencial psiquiátrico em funcionamento é ineficaz, cronificador e elitista. Ineficaz, já que o índice de recuperação é insignificante e a prevalência de doença mental na população só tem aumentado. Cronificador porque elege métodos que, usados isoladamente, provam ser francamente nocivos, como a segregação de doentes em hospitais, com internações repetidas. E elitista, porque deliberadamente exclui o acesso das camadas mais amplas da população a técnicas mais eficazes, como a psicoterapia. 2. Denunciar que tal distorção permite florescer uma verdadeira “indústria da loucura”, constituída por gigantescos hospitais, os quais têm na eterna reinternação de doentes mentais, tornados crônicos, uma fonte inesgotável de lucro, financiada principalmente pela previdência Social. Temos razão para acreditar que a alarmante situação, denunciada há cerca de um ano, não mostra sinal algum de mudança. Pelo contrário, a desativação dos próprios da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), o incremento da política de credenciamento, o vertiginoso crescimento do setor privativo e a diminuição das oportunidades de preparação de recursos humanos pintam com cores mais sombrias a situação do setor. A seguir, serão feitas considerações sobre o quadro atual da atenção ao doente mental com base na cidade do Rio de Janeiro, observando-se como se articulam a atuação do Ministério da Saúde, da Previdência Social e o setor privado.
A atuação do Ministério da Saúde A Dinsam, órgão do Ministério da Saúde, antigo Serviço Nacional de Doenças Mentais, foi criada com o objetivo de prestar assistência médica ao doente mental e ditar a política de saúde do setor. Uma das poucas áreas em que o Ministério da Saúde ocupa-se de parte do atendimento médico assistencial às pessoas, a Dinsam parece passar por um processo irreversível de deterioração. Criada em 1941, essa Divisão orientou as políticas do setor e estimulou a construção de frenocômios por todo o país, sendo que o setor público deteve a responsabilidade maior por essa parte especializada da assistência. Além da fixação das políticas e da parte normativa, a Dinsam desincumbiu-se da prestação direta da assistência no antigo Distrito Federal através da Colônia Juliano Moreira, do Centro Psiquiátrico Pedro II, do Engenho de Dentro, do Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, e, posteriormente, do Hospital Pinel. Com a transferência da Capital para Brasília e com a criação do Estado da Guanabara, os hospitais permaneceram sob a administração do Ministério da Saúde, situação diferente das verificadas nas demais unidades da federação. Embora devesse oferecer um atendimento de padrão modelar, próprio para uma instituição que normatiza a assistência, a verdade é que a assistência prestada se caracterizou, com breves e escassas exceções, como retrógrada, ineficaz e aquém do padrão mínimo aceitável. O Hospital Pinel, talvez por estar localizado na Zona Sul carioca e prestar pronto-socorro a uma camada socialmente privilegiada da população, funcionou desde a sua criação em moldes mais modernos, oferecendo uma assistência de melhor qualidade. Tanto foi assim que logo se transformou em um dos principais centros de formação de recursos
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Comissão de Saúde Mental dos Cebes • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
humano, acolhendo estagiários de todo o país; essa situação perdurou até o último ano. No Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no curto período de 1972 a 1974 ocorreram experiências bastante interessantes tanto do ponto de vista técnico, com a introdução de novas formas de tratamento, quanto do ponto de vista de formação profissional, com a instituição da residência médica e o incremento das possibilidades de aperfeiçoamento técnico para as diversas categorias profissionais que atuam nos programas de atenção ao doente mental. Tais experiências não tiveram, porém, longo fôlego. Experiências promissoras em seu início, dotando a Dinsam de atividade acadêmica, propulsora de melhorias no padrão de atendimento, elevando o conceito dos profissionais e da população beneficiaria dos hospitais do Engenho de Dentro, não foram adiante. Injunções políticas, interferências na orientação técnica adotada e mmacartismo fizeram com que esses hospitais regredissem a uma época que se acreditava estar ultrapassada. As técnicas mais liberais e eficazes de tratamento, com psicoterapia, o atendimento familiar, a comunidade terapêutica, e mesmo o internacionalmente conhecido Museu do Inconsciente, considerados subversivos pela maior liberdade e participação que propiciavam ao interno e foram substituídos pelo encarceramento sumário e pela brutal opção do eletrochoque, além das altas doses de medicamentos. Deve-se lembrar, a bem da verdade, que o padrão de atendimento do Hospital Pinel relativamente razoável – por comparação – e esses fugazes ventos inovadores no Engenho de Dentro em nenhum grau transportaram as sementes modernizantes à Colônia Juliano Moreira com seus milhares de internos, insignificante número de técnicos, deixados ao longo do caminho, entregues à própria sorte. Para se ter uma vaga idéia do desamparo a que foram relegados esses infelizes, um grupo de médicos, assistentes sociais e psicólogos, contratados em 1974 como estagiários, foram encarregados de fazer um levantamento sobre o número e a situação dos pacientes ali internados2. Para a perplexidade desses técnicos, dentre os inúmeros absurdos constatados, descobriu-se que o número real de internos era bem maior do que a capacidade a instituição, doentes (?) sem registro, sem prontuário nem tratamento. Para citarmos apenas mais um dado, tendo em vista o número exaustivo de problemas apontados, boa parte dos pacientes não via um médico havia mais de dez anos, o que da indícios do descaso da instituição em relação à recuperação dos pacientes. Isso nos permite, ainda, fazer uma dramática interferência sobre os índices de recuperação naqueles hospitais, posto que a Dinsam não divulga dados sobre período de internação e índice de altas. O fim da residência médica no Engenho de Dentro e a repressão às formas mais modernas de tratamento, não sustaram os programas de estágio, que prosseguiram no Hospital Pinel, foram estendidos ao Engenho de Dentro e, em menor grau, à Colônia e ao Manicômio Judiciário. Entende-se isso, em primeiro lugar, pela dramática carência de profissionais nesses hospitais, o que poderia ser minimizado pela ampliação do número de estagiários não remunerados ou bolsistas sub-remunerados, mas se tornaria mais oneroso com a utilização de profissionais regularmente contratados; em segundo lugar porque, com o afastamento da direção que implementara inovações, estimulando a participação de técnicos e pacientes na condução do tratamento, novos técnicos foram então admitidos para trabalhar “com rédeas curtas” e mantendo o mesmo controle sobre os pacientes. Os técnicos que para ali se dirigiram, em geral recém-formados e em busca de aprimoramento e experiência, acharam-se usados como mão-de-obra substitutiva, farta e barata, nem ao menos recebendo em troca a especialização procurada. Estiolou-se a formação, subverteu-se a experiência, e o estágio para profissionais e estudantes foi oficializado através de concursos para as “bolsa de saúde mental”, com verbas da Campanha Nacional de Saúde Mental, expediente que ao mesmo tempo sub-remunerava o profissional utilizado como mão-de-obra para sanar a crônica deficiência
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de técnicos (o último concurso para o provimento de cargos data de 1957), e mascarava o processo de exploração existente por não reconhecer o vínculo trabalhista, expediente típico de lesão aos direitos do trabalhador assalariado, perpetrado por instituições públicas ou privadas nesses 15 anos de regime autoritário. A partir de então, o peso maior da responsabilidade com a assistência caiu predominantemente nos ombros de estudantes e profissionais denominados estagiários ou “bolsistas”, fórmula mágica através da qual o Ministério da Saúde desconhecia os direitos trabalhistas de mais de duas centenas de trabalhadores. Para evitar discussões estéreis, julgamos relevante ressaltar que não se tratava, absolutamente, de cursos de especialização ou de estágios de treinamento profissional, como demonstravam a inexistência de um programa de ensino, a falta de supervisão e, até mesmo, a assunção de cargos com responsabilidade de chefia por esses trabalhadores que, ademais, cumpriam função de ensino ao orientar a prática dos estudantes que faziam Internato no Hospital Pinel. Não restam dúvidas, pois, tratar-se de uma forma de velar a relação de emprego, escamotear a legislação trabalhista e lesar os direitos desses trabalhadores3. Naturalmente, a progressiva mobilização de amplos setores da sociedade civil e dos trabalhadores, em particular, em prol da reconquista dos direitos usurpados a partir de 1964, teve forte ressonância entre os profissionais da Dinsam4. Alargada a tomada de consciência do esbulho aos seus direitos e criadas as condições para sua organização e mobilização, com a criação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, esses trabalhadores, após insistirem na regularização de sua situação trabalhista e na melhoria da assistência, razões pelas quais se viram acuados por ameaças e punições diversas, até a concretização de demissões, paralizaram suas atividades; foi única maneira encontrada para deixar clara a discordância da parte deles com o tipo de atendimento que vinham sendo obrigados a prestar, especialmente no Engenho de Dentro e na Colônia Juliano Moreira, e exercer legítima pressão no sentido de ver tal situação regularizada. Na ocasião, foi enviado um documento à direção da Dinsam e ao Ministro da Saúde, Sr. Almeida Machado, do qual, entre outras reivindicações, destacamos: 1. Reconhecimento do vínculo trabalhista conforme prevê o cap. V – decreto 60.252, que cria a Campanha Nacional de Saúde Mental, para os técnicos funcionalmente denominados “bolsistas” [...] 2. Regularização da situação trabalhista, conforme determinada a Lei 3.999 de 15 de dezembro de 1961, para os técnicos funcionalmente caracterizados como estagiários, que cumpram carga horário semanal mínima de 20 horas e que tenham tempo de serviço superior a 6 meses. O art. 3º da referida Lei dispõe sobre a remuneração para os médicos ditos estagiários e acadêmicos internos após cumprido esse prazo. 3. Regularização da situação trabalhista dos demais técnicos em saúde mental, em conformidade com o disposto na CLT. 4. Criação da Residência Médica em Psiquiatria, oficializada junto ao MEC, e de acordo com as normas da Associação Nacional dos Médicos Residentes.5 Na realidade, em sua “luta pela dignidade profissional e melhores condições de atendimento à população”6, esses trabalhadores exigiam tão somente o cumprimento da legislação em vigor, tornada letra morta pelo próprio poder público. Data daí o ritmo acelerado de deterioração, até agora irreversível, do atendimento psiquiátrico prestado pela Dinsam, bem como a paralisação dos programas de aperfeiçoamento de recursos humanos levados a cabo, principalmente no Hospital Pinel, e que deixaram seqüelas de extrema gravidade mesmo com a contratação de alguns profissionais pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), pequeno número, considerada a popu-
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lação de internos e o volume de atendimentos outrora prestados nos ambulatórios que até hoje continuam à mostra, desafiando uma solução. Essas seqüelas, conseqüências da irresponsabilidade da direção da Dismam e do Ministério da Saúde, podem ser assim resumidas: 1. Extinção do atendimento psicoterápico à população infanto-juvenil, sem recursos para tratamento particular; 2. Extinção do Ambulatório de Crise do Hospital Pinel, para prevenção de suicídios e atendimento a problemas emocionais prementes; 3. Paralisação do Centro de Informação Toxicológica (CIT) do Bloco Médico – Cirúrgico do Engenho de Dentro; 4. Comprometimento da qualidade do trabalho assistencial dos demais setores, pela sobrecarga de trabalho sobre os trabalhadores que permaneceram incapazes de arcar com as duas centenas de serviços que, mesmo contando com as duas centenas de demitidos, era demasiado7. Não é à toa que o Ministério da Saúde, órgão normativo da assistência médica e que deveria prestá-la em nível modelar, oferece à população uma assistência que, para evocarmos uma palavra que designava certo tipo de doente mental, é sórdida. A Colônia Juliano Moreira, com seus 4.000 internos, parece estar situada fora do tempo, cuja marcha parece ignorar, e cumprir seu inexorável destino de campo de concentração8. O Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro está com seus ambulatórios desativados, pavilhões semi-abandonados e internos assistidos por um número insuficiente de técnicos. O Hospital Pinel, outrora disputado campo de treinamento profissional e dotado de serviços de conceituada reputação, encontra-se semi paralisado. Os hospitais do Ministério da Saúde são hoje, mais do que nunca, baluarte da psiquiatria mais retrógada. Brioche para os ideólogos da privatização; prova da incapacidade da privatização; prova da incapacidade do poder público em prestar assistência médica à população.
A Previdência Social e a solução asilar Ao contrário do que ocorre na área do Ministério da Saúde, onde a assistência é prestada diretamente através da Dinsam, na área previdenciária, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) arca com apenas parte do atendimento ambulatorial, oferecendo a grupos privados, e outros, toda a assistência hospitalar. O destaque, para efeito de exposição, da assistência previdenciária privativista, por equívoco, não marca como poderia uma oposição ao Ministério de Saúde. Pelo contrário, somos levados a acreditar em uma complementaridade entre as duas áreas: na medida em que parece ocorrer uma progressiva e intencional atrofia do Ministério da Saúde, tem-se como conseqüência a retração de sua área de atuação na assistência psiquiátrica direta, ocorre simultaneamente, grande crescimento da oferta de atenção médica por terceiros, através da venda de serviços à Previdência. Ou seja, a retratação do Ministério da Saúde na prestação de serviços, no Rio de Janeiro, coincide com a hegemonia absoluta da atenção previdenciária, entregue a terceiros. Faz-se necessária a pergunta: quem lucra com essa política de saúde?
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Parece que a resposta está diante dos olhos de quem quer enxergar. Isso não quer dizer (desfaçamos logo qualquer equívoco) que apoiemos ou façamos apologias à psiquiatria asiliar prestada pelo Ministério da Saúde ou por quem quer que seja. O problema é que a progressiva desmobilização dos próprios do Ministério da Saúde, longe de representar uma diminuição no índice de reinternação no Rio de Janeiro, apenas mudou o locus, situado agora no hospital privado, cujo objetivo é o lucro e onde o paciente é apenas um meio para isso, uma mercadoria. Bem entendido, a retração da atenção psiquiátrica pelo Ministério da Saúde determinou apenas um repasse do paciente ao lucrativo setor privado. Esse modelo assistencial adotado pela Previdência, entregando a terceiros a responsabilidade pela assistência, proporcionou um verdadeiro boom psiquiátrico, representado pelo vertiginoso crescimento do número de leitos psiquiátricos e, em seu rastro, da população asilar. Seria o resultado do surgimento de demanda reprimida, constituída por pessoas até então sem acesso aos hospitais? Parece tratar-se de algo diferente, todavia. Não temos notícia, pelo menos neste século, de pacientes psiquiátricos sem tratamento por ausência de vagas em hospital. Ao contrário de outras especialidades, em que existem até mesmo filas de pacientes aguardando vagas para tratamento clínico ou cirúrgico em regime de internação, na psiquiatria, os leitos existentes, já no período anterior à adoção da linha privatizante, davam conta da assistência a ser prestada. Apesar disso, entretanto, o credenciamento de leitos foi crescente, fazendo-nos supor que isso era realizado sempre diante da demanda. Coloca-se, então, a pergunta: Qual a natureza dessa demanda? Pergunta difícil de ser respondida, dada a inexistência de estudos mais aprofundados nesse campo; dificuldade essa, acrescida inclusive pela imprecisa delimitação do conceito de doença mental. Isso, porém, não nos impede de adiantar a seguinte hipótese, plausível a nosso ver: o sistema político e econômico, implantado neste país nos últimos 15 anos, pelo que vem provocando de opressão, exploração e miséria, constitui-se como um fator permanente de exclusão do tecido social ao elevar a criminalidade, a morbidade e a marginalização em geral a índices inimagináveis. As instituições de saúde, a psiquiátrica em especial, ao tomarem para si esses marginalizados, enquanto doente, exime a sociedade da responsabilidade de sua produção. Ou seja, o processo de desenvolvimento adotado no país, alienante e excludente, deixa à sua margem uma parcela de indivíduos que não suportaram o peso da marcha. A instituição médica, ao medicar o problema, psiquiatrizá-lo ao inseri-lo nas classificações nosográficas, esconde a relação causal existente, prestando-se ao papel ideológico de escamotear a questão da produção social da doença. A contrapartida da dissimulação ideológica oferecida ao sistema está representada nos ganhos que aufere, em decorrência da linha privatizante adotada, tendo o Estado abandonado sua função de produtor de direto aos serviços de saúde. Para que não restem dúvidas: estamos falando da cumplicidade entre o Estado, que deveria representar a todo heterogêneo da sociedade, e a parcela dominante desse todo, representada aqui, nesse setor específico do sistema, pelos empresários da saúde. De um lado, o Estado ao adotar um modelo político-econômico marginalizador de mais de 70% da população em relação aos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico, possibilita um aumento econômico, possibilita um aumento dos índices de morbidade e, com ele, de doenças mentais, ao mesmo tempo em que privatiza a assistência; de outro, esses setores privados, beneficiados pela linha privatizante e que, em contrapartida, isenta a organização social imprimida pelo Estado, pela responsabilidade da produção das doenças, ao medicar ou psiquiatrizar o problema.
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Para se ter uma idéia a respeito da produção desse tipo especial de marginalizados9, o doente social e o papel ideológico de encobrimento da medicalização, vale consultar o ensaio Assim enlouquecem nossos operários10, publicado recentemente, que aponta como alternativa para fugir da fome e da miséria, “a loucura como estatuto”, isto é, uma condição que permite ao trabalhador receber o benefício doença da Previdência e fugir da exploração do trabalho. Ainda sobre a natureza desse tipo de marginalização continuam ou autores: Ele está alienado do controle social e do controle da produção, produz sem prazer e sem nenhum outro ganho secundário de origem psicológica, só é motivado pela permanente necessidade imediata de sobrevivência. É máquina submetida a stress contínuo, a desgaste oriundo das massacrantes jornadas de trabalho, o que ganha não dá nem para a alimentação e, portanto, não há a mínima possibilidade de lazer, as férias são vendidas em troca de um salário extra, a vida é um imenso e doloroso cansaço. Insistindo ainda na caracterização dessa demanda, para que não pairem dúvidas sobre a cumplicidade que denunciamos, entre Estado e empresários da saúde, citamos uma matéria, publicada no último boletim informativo do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro11, sobre a região de Paracambi (RJ) que, diante do fechamento de sua maior indústria e o aumento extraordinário do índice de desemprego e miséria: assiste à expansão de um hospital psiquiátrico, que lentamente vai absorvendo, no seio acolhedor da medicina mental, os desempregados e suas famílias: o hospício substitui a fábrica; o desemprego e a miséria se acomodam no diagnóstico psiquiátrico. Considerada assim a natureza da demanda12, entende-se o que significa o crescimento do número de leitos psiquiátricos enquanto pólo de atração para essa massa de marginalizados sociais, feitos doentes, e que encontram no Estatuto do Doente Mental uma forma de subsistência, através do benefício-doença. A internação representa, para o paciente, a prova da gravidade de seu estado de saúde e a garantia do recebimento do auxílio e, para o hospital, lucro certo e garantido no ato do credenciamento com a Previdência. Acusada a linha privatista vigente e caracterizada a demanda, faz-se mais claro o predomínio asilar em detrimento do tratamento ambulatorial, implantado nos últimos anos, embora sabiamente ultrapassado e mais oneroso. Ultrapassado porque, ao invés de contribuir para o ponto restabelecimento do paciente, contribui justamente para institucionalizá-lo ao cronificar as suas mazelas; e oneroso porque comparado ao custo do tratamento realizado em caráter ambulatorial (mais eficaz inclusive e, por isso, menos interessante do ponto de vista econômico) é o que conta dentro da lógica capitalista para as empresas médicas13. Estas exercem, através da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), uma influência na fixação das linhas políticas para a saúde, sem a contrapartida da influência do segurado. Daí a orientação vigente, nitidamente privativista e empresarial, autocrática e antipopular, no sentido que, se atende às pressões dos setores empresarias, não responde às necessidades de saúde da população. O próprio Ministério da Saúde aponta o quadro da assistência psiquiátrica no Brasil da seguinte forma: 1. O sistema assistencial brasileiro, baseado na solução custodial, que consiste na internação em massa dos pacientes em hospitais psiquiátricos, está inteiramente superado, pois seu abandono vem sendo preconizado há cerca de trinta anos.
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2. As internações em hospitais psiquiátricos do país são feitas, em proporção apreciável, de modo indiscriminado sem a devida triagem especializada. 3. As despesas com hospitais psiquiátricos alcançam 90% dos custos operacionais totais, havendo Estados que não utilizam recursos em serviços estra-hospitalares.14 O Ministério da Saúde reconhece, pois, a natureza anômala e indefensável da tendência asilar da assistência psiquiátrica ao privilegiar o asilo, em detrimento do ambulatório e ao estimular o uso abusivo do leitor hospitalar. Dessa forma, o índice de internação em relação ao número de consultas efetuadas superam qualquer estimativa técnica. Para se ter uma noção em números, prova irrefutável de que o interesse do segurado ou de que os parâmetros ditados por estudos idôneos ficam em segundo plano diante da lógica empresarial, confrontamos a estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual “o percentual de admissão hospitalar deverá atingir 3% das consultas psiquiátricas”, com a estimativa da Previdência que calcula em 13,7% as consultas psiquiátricas que resultaram em internações em 1975 e em 36% o cálculo referente apenas ao Estado de São Paulo em 197315. Ao menos no que diz respeito a discursos, publicações, mensários estatísticos, etc, não têm o Ministério da Saúde ou a Previdência como negar a índole perversa de um modelo voltado exclusivamente a interesses alheios à recuperação da saúde do segurado. No que diz respeito à prática, entretanto, aliam-se na cumplicidade ao estimularem a medicina de mercado, omitirem-se na apuração das denúncias às distorções apontadas e propiciarem o credenciamento de crescente número de leitos hospitalares construídos com financiamento do Fundo de Apoio Social, recurso público, portanto. Em dados de 1973, tímidos para refletir a aberração de hoje, as ações de saúde do Ministério da Previdência, quanto a gastos, se realizam em mais de 90% através do setor privado, dos quais 80% em hospitalização16. Atualizem-se esses dados, considerando a privatização crescente e, ademais, considere-se que nessa área especializada a Previdência não conta com nenhum próprio e teremo, na devida dimensão, o caráter perverso, anacrônico e cúmplice, que os setores público e empresarial conferem ao modelo assistencial. Essa característica, nesse setor especializado, reflete e complementaridade e adequação entre o sistema político-econômico alienador-enfermizante e a prática médica psiquiatrizante. Não seria acaso necessário perguntarmos: a existência de instituições que acolham em seu seio esse marginalizado social, diagnosticado como doente mental, encobrindo com o manto de seu reconhecimento científico e a reivindicação da propriedade de sua intervenção técnica, os mecanismos socioeconômicos da marginalização? Não integrará, organicamente, um sistema calcado na defesa de interesses particularistas e na repressão e marginalização daqueles que se lhes opõem? É justamente a confirmação da existência da organicidade dessa relação, que estivemos discutindo, que faz do modelo assistencial o que ele é hoje. Indicada a inclinação estrutural da assistência – perversão estrutural – e de como se dá nele a inserção da instituição psiquiátrica, faz-se necessária, ainda que em rápidas pinceladas, uma observação sobre o papel desempenhado pelos técnicos de saúde mental e suas condições de trabalho. Como se sabe, o modelo capitalista de desenvolvimento impôs não apenas uma alienação do trabalhador em relação aos instrumentos de produção e ao produto de seu trabalho, mas também determinou um rumo na evolução das relações de produção, no sentido de uma socialização cada vez mais ampla da atividade produtiva. Ora, julgando ter ficado claro o exposto até aqui, se a prática médica é organizada em termos empresariais e obedecendo à lógica
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do mercado, nenhuma estranheza deve causar a verificação de que uma evolução no mesmo sentido tenha ocorrido na medicina17. De fato, o predominante no cenário da assistência médica são as clínicas, hospitais, etc, geridos como empresas, voltadas para o lucro como qualquer empresa capitalista, transformando o médico e demais técnicos em trabalhadores assalariados. Empregado, trabalhará cumprindo orientação da empresa, atribuindo prioridade ao lucro financeiro do patrão, o que significa aumentar o período de internação, efetuar internações desnecessárias e outros expedientes, sem contar aqueles que correm o risco de serem sumariamente dispensados18. Não é por outra razão que o total de intervenções em psiquiatria no país, na área previdenciária, chegou a 305 mil quando a estimativa da Previdência ficava em 105 mil, calculando-se em bilhão o gasto desnecessário, no ano de 197719. Como desvincular esse tipo de distorção do processo de aviltamento da dignidade do profissional acuado diante da pressão dos empresários, sob a angustiante necessidade de garantir o emprego? Assim se explicam as condições de exploração a que os profissionais estão submetidos e que, por sua vez, está intimamente relacionada com o tipo da assistência prestada: 1) o empresário, dispondo de forças de trabalho em excesso, sustentado pela proliferação indiscriminada de escolas médicas, impõe sua lei ao mercado, explorando o médico e interferindo em seu trabalho. Impõe critérios de admissão, altas, tratamentos e etc, que visam ao lucro e não à cura; 2) o padrão de atendimento, em conseqüência, é o pior possível, com o tratamento sofrendo a intervenção de fatores extra técnicos, não raro danosos ao paciente; 3) o médico, impotente, é aviltado: primeiro, na sua autonomia técnica, ao se ver constrangido a adotar critérios com os quais não concorda, cassada sua liberdade de escolha do tratamento adequado, independentemente do fato de a empresa receber mais ou menos por ele; segundo, em sua condição de trabalhador, ao ver freqüentemente desrespeitados os direitos trabalhistas elementares. Quando o profissional mostra discordância com o papel que lhe obrigam exercer, invariavelmente perde o emprego. E os casos de demissão, sobretudo nesses dias em que, depois de anos de severa repressão, os médicos e demais técnicos voltam a discutir a questão da assistência psiquiátrica e a reivindicar melhores condições de trabalho, são cada vez mais freqüentes. Situam bem o problema das demissões e ameaças diversas, aqueles que as consideram como: investida dos empresários da loucura contra aqueles que se negam a compactuar com as condições vergonhosas de trabalho e com o precário atendimento dispensado aos pacientes.20 Diante desse quadro sombrio, onde se combina o desrespeito aos direitos e à dignidade do profissional, o tratamento repressivo aos pacientes e o super-faturamento das empresas, a Previdência cruza os braços, abdicando à sua responsabilidade, a não ser que atribuamos seriedade e eficácia aos relatórios que locupletam as gavetas dos burocratas, ou as prosaicas ‘incertas’ do atual titular da pasta. O mal de que sofre o modelo médico assistencial e, em particular, a assistência psiquiátrica, é estrutural. Não se trata apenas de evitar distorções, recuperar ou aperfeiçoar o atual modelo. A perversão estrutural que denunciamos tem seu ponto de partida na abdicação, pelo Estado, à prestação de um serviço básico: o serviço de saúde, direito inalienável do homem. Ao delegar sua prestação a terceiros, o Estado mostra, na área específica da saúde, a feição particularista que vem assumindo nos últimos quinze anos.
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NOTAS*
1. Jornal do Brasil, 2/9/78. 2. Dados obtidos com profissionais que fizeram parte desse grupo de trabalho. O relatório final desse levantamento foi arquivado pela Dinsam. 3. Para melhor caracterização da situação dos profissionais denominados “bolsistas”, consultar o artigo Subemprego na Dinsam, publicado no Sinmed, abril de 1978. p. 6 (RJ). 4. Ver documento enviado pelos “bolsistas” e estagiários, datado de 6/6/78, ao Diretor da Dinsam, exigindo a readmissão de três colegas demitidos, por denunciarem as precárias condições da assistência e a irregularidade do vínculo trabalhista. A resposta a este documento foi a demissão imediata de mais 80 profissionais. 5. Documento enviado ao Ministro da Saúde em julho de 1978. 6. Idem. 7. Nota oficial do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental do Rio de Janeiro, em O Globo, setembro de 1978. 8. Jornal do Brasil, 23/9/79. 9. A marginalização social gerada pelo modelo de desenvolvimento a que o país vem sendo submetido a partir de 64 se manifesta ao aumento da criminalidade, dos menores abandonados, uso de drogas, etc. A doença mental representa apenas uma das formas de marginalização. 10. Revista Rádice, pág. 21, nº 10, ano II, jul-agost, 1979. 11. Boletim Informativo do M.T.S.M., nº 5, agosto de 1979. 12. A caracterização da demanda, feita aqui superficialmente, está a exigir estudos mais aprofundados. Tornado doente mental pelo trabalho ou excluído do processo de produção, marginalizado e acolhido numa instituição psiquiátrica, essa diferença não tira a validade da nossa argumentação. 13. “Que o setor privado mantenha a situação pela recusa em investir em ambulatórios compreende – se facilmente porque a consulta médica que irão vender ao Inamps custa Cr$ 86.00 e o leito hospitalar 5.000 ao mês. Apesar disso, em alguns Estados como Pernambuco e São Paulo, um sistema ambulatorial privado começa – se a estruturar, Talvez nesses casos o ambulatório e hospital psiqiátrico estejam se retro alimentando não tem que prove aos empresários que os ambulatórios podem ser lucrativo”. Santana, S. A Situação da Assistência Psiquiátrica no Brasil. III Encontro Nacional de Assessores de Psiquiatria do Inamps/MPAS, Porto Alegre, RS, outubro de 1978, mimeografado. 14. Brasil, MS. Política Nacional de Saúde, Brasília, 1973. 15. Gentile de Mello, C. A Irracionalidade da Privatização da Medicina Previdenciária. Revista Saúde em Debate, nº 3, 1977, SP. 16. Gentile de Mello, C. Perspectivas de Medicina da Previdência Social, Ver. Paulista de Hospitais, 21(12):54046, dez. 1973, SP.
* As citações do presente documento foram mantidas na formatação da publicação original.
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17. Na psiquiatria a socialização do trabalho é favorecida ainda mais por ser a assistência desempenhada por uma equipe multidisciplinar. 18. Sinmed, jun-jul., 79, pág. 13, RJ.1 19. Gentile de Mello, op. Cit., 1973. 20. B. I. do M.T.S.M., op. Cit., nº 5.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
A crise de dominação no sistema público de saúde The domination crisis in the Brazilian public health system
Arlene Laurenti Monterrosa Ayala
1
Mestre em Saúde Pública pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); enfermeira da Secretaria
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RESUMO A crise atual das instituições públicas de saúde é evidenciada pela freqüência sempre crescente com que surgem notícias, veiculadas na imprensa
Municipal de Saúde de Joinville,
escrita, manifestações de insatisfação dos usuários e trabalhadores da saúde.
(SMS).
Procurando compreender melhor essas manifestações, este artigo examina o
[email protected]
enfraquecimento dos mecanismos de dominação/controle dessas instituições sobre os trabalhadores de saúde e população. Em segundo lugar, apontam-se as formas de coerção adotadas por essas instituições em situação de oposição e conflito. E, finalmente a necessidade de um controle verdadeiramente democrático sobre o setor é reafirmada. Foram utilizadas como prova da situação atual de crise no setor, notícias de jornais de difusão nacional e regional. PALAVRAS-CHAVE: Dominação-subordinação; Participação social; Sistemas de saúde; Setor público.
ABSTRACT The current crisis in the Brazilian public health institutions becomes evident through the users’ and healthcare workers’ manifestations of dissatisfaction shown in the increasing number of news in the press. Aiming at understanding those manifestations, this paper analyzes the institutions’ weakening of the control/ domination mechanisms over healthcare workers and the population. The ways of coercion adopted by some institutions in situations of conflict and opposition are herein pointed out. Finally, this paper also reinforces the need of a true democratic control over the health sector. As a means of highlighting the current situation, news printed in both local and national newspapers were used. KEYWORDS: Dominance-subordination; Social participation; Health systems; Public sector.
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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde
I N T R O D U ç ão
escrita às quais, muitas vezes, não damos nenhuma importância e sequer percebemos as manifestações de uma crise ali explicitadas.
Como pode a 8ª Conferência Nacional de Saúde e o movimento pela Reforma Sanitária dos anos 1970 e 1980 ter tido sucesso em identificar um modelo teórico de atenção à saúde com base em premissas e diretrizes da universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação da sociedade, mas não nas formas e modalidades de transição para que tais premissas e diretrizes fossem alcançadas? É tarefa de uma teoria de transição articular as questões específicas do processo social em andamento,
O trajeto problemático do setor de saúde Durante o percurso de organização do setor saúde no Brasil, a função da participação na definição das políticas de saúde foi alienada dos setores da sociedade e transferida para as instituições públicas. Assim, essas instituições adquiriram o poder de aglutinar os trabalhadores de saúde e setores da sociedade num padrão hierárquico estrutural e funcional segundo um critério que define a maior ou menor participação no controle e definição dessas políticas.
identificando com precisão suas limitações. Desse modo,
A centralização do poder de decisão nos níveis
as restrições da teoria da Reforma Sanitária com relação
centrais de comando e a arrogância dos especialistas em
aos problemas da transição hoje se afirmam, primor-
planejamento e gestão em saúde não têm sido capazes de
dialmente, pela ausência de uma estrutura organizativa,
imprimir a eficácia, no sentido de controlar o número de
composta por indivíduos livremente associados capaz
pessoas que vêm adoecendo e morrendo diariamente.
não só de negar a ordem dominante, mas também de
Práticas determinadas em tais bases têm privado os
exercer as funções de participação na efetivação dos ide-
trabalhadores do setor e usuários, de participar efetiva-
ais da Reforma Sanitária. A participação, como resultado
mente na definição das políticas de saúde, o que vem
de tradições culturalmente estabelecidas na sociedade
ampliando consideravelmente a incapacidade do setor
no intercurso material, é o elemento estratégico para
em responder às necessidades básicas de saúde dos indiví-
a reestruturação dos rumos da tão desejada Reforma
duos e da coletividade. A prova disso é a crise estrutural
e retomada do compromisso com os valores de uma
da saúde, que já vem ocorrendo há algum tempo e, a
sociedade produzida na própria realidade.
cada dia, aprofundando-se, ainda que sua intensifica-
Hoje, somos testemunhas da atual crise pela qual
ção não assuma a forma de “grandes confrontações”. A
o setor público de saúde vem passando. Tal crise, nem
seguir, mostraremos trechos de manchetes publicadas
preciso dizer, vem violando o direito mais elementar dos
em jornais que explicitam a crise.
indivíduos: decidir sobre sua própria existência. A leitura de jornais com informações sobre o nosso dia-a-dia pode constituir uma fonte importante para a explicitação da crise e dos embates políticos contemporâneos do setor da saúde. Nessa perspectiva, procurou-se mostrar um olhar sobre o nosso cotidiano e uma leitura mais atenta das informações veiculadas pela imprensa
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008
Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidos A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro fechou, ontem de manhã, a Maternidade Leila Diniz, em Jacarepaguá, onde um bebê morreu no início do mês e outros três foram contaminados, supostamente por uma bactéria. [...]. Há um ano, outros cinco bebês também adoeceram por causa de uma bactéria e três
AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde
deles morreram, após inundações na maternidade (Albuquerque, 2005). Outra notícia veiculada no Jornal Folha de São Paulo expõe a gravidade da situação atual. Em nome da necessidade de racionalização, estuda-se de que forma poderá
Ironicamente, porém, a padronização do trabalho intelectual ‘no topo’ das hierarquias técnicas, o monopólio da informação e decisão à ‘democracia representativa’ através da institucionalização e cooptação dos Conselhos Municipais de Saúde, entre outras questões e o acesso limitado dos indivíduos ao acesso universal,
ser negado aos pacientes com quadro clínico grave o
trazem consigo uma ‘bomba social’ em forma de uma
acesso a tratamentos que poderiam salvar suas vidas.
constante insatisfação da parte dos usuários em gran-
Constata-se que, na tentativa de resolver o problema do
de escala, à medida em que o sistema não consegue
déficit do número de leitos de UTI, o governo propõe a
absorver as demandas por serviços e que as formas de
restrição do acesso aos pacientes, sem que em momento
organização, saídas da lutas autônomas, começam a se
algum faça referência às reais necessidades de ampliação
submeter às formas de organização da classe gestora,
do número de leitos. Segundo o presidente da Associação
sendo os representantes do corpo social transformados
de Medicina Intensiva Brasileira (Amib):
em novos gerentes da instituição. A contradição é estabelecida entre a forma vigente
existe oferta de 21,5 mil leitos de UTI em todo país, no entanto, seriam necessários no mínimo 26 mil vagas, embora o número ideal, segundo recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de no mínimo 44 mil. (apud Colluci, 2005, p. C1). Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação O Ministério da Saúde vai criar normas que permitam selecionar o tipo de paciente que ocupará um leito de UTI. A idéia é que entrem e permaneçam nas unidades de terapia intensiva das redes públicas só pacientes com chances reais de recuperação. Para isso, serão estabelecidos indicadores de prognóstico, baseados em evidências científicas, utilizadas tanto na internação como na alta [...] (Colluci, 2005, p. C1).
de controle e a perda dos comandos centrais do setor do controle e da dominação, dado o funcionamento problemático do setor, que produz um padrão de atendimento desumano e com baixa resolutividade aos grupos populacionais. A prática de dominação do setor saúde vem encontrando resistência da população, que mostra sua insatisfação através da imprensa, em função do difícil acesso às tecnologias em saúde, desde as mais simples até as mais complexas; do outro lado, há uma resistência por parte dos trabalhadores de saúde, em conflito com as formas de organização do trabalho impostas pela estrutura central de comando, que exigem vários pressupostos operacionais e técnicos; destaca-se, sobretudo, o
O absurdo, na notícia acima referida, é a delega-
pressuposto de perseguição de eficiência, num contexto
ção de responsabilidade, imposta pelos burocratas aos
de pouca valorização dos trabalhadores e sobrecarga de
médicos, de condenar à morte. Essa delegação desloca
trabalho.
a responsabilidade do setor de salvar ou melhorar a
O insucesso dos programas de saúde reflete na
vida para os profissionais médicos. Desses exemplos,
prática das unidades de saúde responsáveis pelo atendi-
que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente
mento aos indivíduos e à coletividade. A superlotação
que não se poderia chegar a outra conclusão que não
dos prontos atendimentos dos hospitais e os agravos à
a da possibilidade de esta crise ser posta como o limite
saúde dos portadores de doenças crônicas que poderiam
da própria vida.
ser prevenidos, e exigem tratamentos mais agressivos,
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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde
podem ser um indicativo da baixa resolutibilidade desses
nal de saúde, a responsabilidade pela ‘leviandade’ ao
programas.
afirmar que o mesmo só presta concurso público para
Igualmente significativo é o modo persistente com
‘testar seus conhecimentos’, distorcendo a verdade. Essa
que esses gestores acreditam que novos programas de
resposta não pode identificar as reais causas do não-
saúde, contempladores dos efeitos dissociados de seus
preenchimento das vagas disponibilizadas. Uma delas,
determinantes, possam resolver os problemas de saúde
a falta de atratividade pela remuneração do trabalho, já
da população sem que sejam consideradas as dimensões
é vista como resultado da política de não-priorização
geradoras do adoecimento: a econômica, a política e a
da saúde nas ações dos governos. Assim, se evita não
social. Ou ainda, como se pode constatar na manchete
apenas enfrentar as causas, mas simultaneamente essa
a seguir, atribuir a culpa da ineficácia do sistema ao
evasiva torna-se uma conveniente ‘justificada’ perante
fato de os especialistas médicos realizarem concursos
a população.
em instituições públicas simplesmente para testar suas capacidades profissionais, ignorando que, para esses profissionais, os salários oferecidos pelo sistema público
Repressão ao dissenso
estão aquém do mercado. Para Pierantoni (2001), essa
Quando o setor de saúde não consegue enfrentar
remuneração desloca esses profissionais para setores
manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, impor sua
ligados à assistência supletiva à saúde.
‘tolerância repressiva’, entra em cena a defesa deliberada da repressão. A concretude dos fatos evidenciados nos
Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde [...] A mãe de Pablo, de um ano e um mês, deveria levar o filho a cada 30 dias no médico para acompanhar a doença do filho, que sofre de sopro no coração. Desde janeiro, porém, ela não consegue vaga no posto de saúde da Vila Nova.[...]. Desde o início do ano, apenas uma especialista está atendendo a população do bairro na parte da manhã. Gerente se justifica Por lei, não podemos renovar os contratos, temos de chamar médicos aprovados no concurso público de 2004. A gerente complementa: ‘Há quem faça o concurso só por fazer, da mesma maneira que prestam vestibular para testar a própria capacidade’ [...] (Weber, 2005, p. 6).
leva a abordar com especial atenção uma pequena parte da história dos trabalhadores de saúde da instituição na qual a autora trabalha há tantos anos, sobretudo em razão de práticas dessa instituição pública, que têm como base uma determinada forma de resposta ao dissenso na qual a dominação deve sempre prevalecer. A atitude de expor a situação, de certa forma representa uma fonte de dados e, espera-se que, com esse procedimento, seja possível esclarecer que o episódio ocorrido no final do ano de 2003 e durante o ano de 2004 teve substancial importância no que diz respeito ao estudo do tema proposto. As manchetes de jornal a seguir, ilustram muito bem o que hoje vivenciamos
Vista de outra forma, a justificativa explicitada acima no jornal do município de Joinville, Santa Catarina, A Notícia, deixa claro que o setor público de saúde nem sempre representa uma alternativa profissional atrativa e, por isso, não logra sucesso no preenchimento de seus quadros. A resposta dada pela gerente dissimula a falta de atratividade, jogando, mais uma vez, ao profissio-
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no setor: Perseguição e política Uma das fiscais que prestou depoimento ontem na CEI que investiga denúncias contra o setor de vigilância sanitária, da Secretaria de Saúde de Joinville, disse que foi vítima de perseguição por parte do chefe hierárquico, Domingos Alacon [...] (Neves, 2003, p. 8).
AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde
Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da saúde [...] A secretária municipal de saúde, Tânia Eberhardt, admitiu ontem ter conhecimento de que o ex- chefe da vigilância à saúde, engenheiro Domingos Alacon, era sócio de uma empresa que poderia ter afinidade com o setor que ele dirigia [...]. Nos depoimentos anteriores, dois fiscais disseram sentir-se constrangidos ao autuar empresas que eram clientes do Centro de Assistência Integral ao Trabalhador (Cait), empresa de Alacon. ‘Todos sabemos que as pessoas, às vezes, procuram diretamente as instâncias superiores, mas isso não é nenhum crime’, disse a secretária, sobre o fato de empresários não quererem falar com os fiscais, mas diretamente com o ex-chefe do setor [...] (Junges, 2003, p. 5).
trabalhadores de saúde1, relaciona-se à legitimação de
Os fatos ocorridos na Secretaria Municipal de Saúde
da, por intermédio das instituições de direito privado,
de Joinville despertaram na autora uma profunda inquie-
denominadas de Organizações Sociais (OS). Portanto,
tação a respeito das questões dos interesses explicitados
a política atualmente nada mais é que a aplicação de
pelos gestores de saúde, indignação com a injustiça e a
medidas utilizadas como instrumento de manipulação
opressão para com os trabalhadores de saúde que tive-
do corpo social em detrimento de seu desenvolvimen-
ram a coragem de denunciar o uso da estrutura pública
to, sendo também de sua responsabilidade responder
pelos setores privados e, tristeza em relação aos 1.700
sistematicamente às crises do sistema.
tais práticas por meio da sujeição desses trabalhadores a processos disciplinares.
Ação política como expansão do setor privado As matérias jornalísticas a seguir expõem, de forma reveladora, que as formas de controle indireto das decisões são obrigadas, em função dos grandes interesses de expansão dos setores privados, a permitir um controle direto, através de representantes de grandes empresas aos mais elevados postos políticos do executivo, ou ain-
trabalhadores de saúde e Conselho Municipal de Saúde
Vejamos outra manifestação da mídia na qual as
que se omitiram, permanecendo em silêncio e alheios
estratégias de ocupação privada das macroestruturas
perante os acontecimentos da época.
afinada com os princípios de expansão encontram seu
Tais acontecimentos sugerem uma análise inquietante, primeiro por tratar-se de uma tentativa de colocar as instituições públicas a serviço dos setores privados e, segundo, por tornar-se evidente que o fato foi totalmente ignorado pelos setores representantes da população, principalmente pelo Conselho Municipal de Saúde e pela Comissão Municipal de Saúde do Trabalhador, esta última composta por sindicatos de trabalhadores. Isso nos leva a concluir que esses setores não possuem um projeto político voltado para o interesse coletivo, ou talvez que não possuam projeto político nenhum ou po-
equivalente também nas microestruturas. Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar repasses ilegais [...] o prefeito de Itabuna, Geraldo Simões (PT), foi acusado pelo Ministério Público de efetuar repasses ilegais (no total, R$ 7 milhões) para a Aias (Associação Itabunense de Apoio à Saúde). [...] ‘As transferências são ilegais e configuram, em tese, ato de improbidade administrativa, que causa prejuízo ao erário’, escreveu o procurador [...]. Segundo o promotor, a irregularidade está no fato de uma entidade privada, sem fins lucrativos, gerir recursos do governo [...] (Martinez, 2003, online).
dem estar sendo cooptados pelos interesses dominantes no poder. Por último, pode-se constatar que a defesa da
O modo como a ação política tem sido utilizada
intolerância institucionalizada, na forma de punição dos
para a expansão do setor privado é ainda mais revelador,
Os três trabalhadores de saúde que denunciaram as irregularidades na Secretaria Municipal de Saúde foram transferidos e respondem ou responderam por processo administrativo interno. Um deles sofre de distúrbios psiquiátricos e se encontra em tratamento. 1
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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde
mesmo quando tais ações são desvirtuadas e apresentadas
A necessidade de um controle social
como interesse da sociedade. Na manchete a seguir cons-
Se há necessidade de retornar aos princípios origi-
tatamos esta revelação, à medida que o atendimento das
nais da Reforma Sanitária é imprescindível uma análise
reais e prioritárias necessidades da população não se cons-
da forma como se instituiu o controle social do Sistema
titui pré-condição para o financiamento das empresas do
Único de Saúde (SUS). A lei 8.142 de 28 de dezembro
setor privado, prestadoras de atendimento em saúde.
de 1990 instituiu os conselhos e as conferências como instâncias de controle social do SUS (Radis Dados,
Governo Lula cria programa de apoio financeiro para os planos de saúde O governo Luiz Inácio Lula da Silva prepara medidas de socorro financeiro para as empresas de planos e seguros de saúde, o polêmico setor que reúne 1.797 operadoras e responde pela assistência a 40,1 milhões de brasileiros. A intenção é criar duas linhas de crédito, ambas com recursos do mercado financeiro, a princípio de duas instituições estatais[...]. Uma das linhas servirá para estimular fusões e aquisições. [...] Se aprovada, ela poderá criar monopólio no mercado, diz Arlindo de Almeida, presidente da Abramge[...]. Segundo Cardoso, os principais grupos de setor, o de operadoras e seguradoras de saúde, perderam clientes nos últimos quatro anos, [...] (Leite, 2005, p. C1).
2005). Ao analisar esse importante aspecto da proposta, deparamo-nos com grandes dificuldade por entendermos que a instituição de uma entidade jurídica não garantirá o controle social, e pela completa transformação dos ideais da Reforma Sanitária em uma realidade que substitui a participação coletiva dos indivíduos livremente associados pela participação forçada de homens governados por uma força política que lhes é alheia, na forma dos Conselhos Municipais e Locais de Saúde. Sob tais circunstâncias, cabe ao movimento pela Reforma Sanitária refletir se a institucionalização do controle social tem levado à sustentação e legitimação das aspirações da sociedade ou do sistema. Estamos
A medida acima, proposta pelo atual governo, visa
convictos de que as aspirações do corpo social só podem
equilibrar as enormes perdas do setor privado. Conse-
ser plenamente estabelecidas se as condições para sua
qüentemente, ela prescreve a transferência de subsídios
realização forem expressas concretamente, na própria
públicos a esses setores. Essas medidas políticas têm
realidade.
servido, portanto, para responder às crises das instituições privadas e aos ditames do Capital Monopolista, numa freqüência crescente. Não há dúvidas de que no sistema atual se desenvolve uma crise estrutural em sua
CONSIDERAÇÕES FINAIS
totalidade, hoje manifestada através do crescente e contínuo distanciamento entre os interesses da maioria da
Quando a sobrevivência dos indivíduos está ame-
população e das estruturas do sistema, de maneira que
açada, e de fato está, pela estrutura pública ineficiente,
as perturbações acentuam-se e a observação a ser feita
ineficaz, corrupta e pela administração, das instituições
refere-se ao fracasso evidente das instituições públicas e
públicas e privadas, inadequada e descomprometida com
privadas no enfrentamento dos problemas da socieda-
o bem-estar da sociedade, a saída é a mudança das regras
de. E isso nos faz evidenciar a necessidade urgente de
do jogo social; é colocar os indivíduos no controle dos
um controle social que garanta uma maior eficácia do
seus interesses. Reconhecer essa necessidade significa
sistema público de saúde e, portanto, a melhoria das
não ser condescendente com as políticas atualmente
condições de vida dos indivíduos e da coletividade.
praticadas pelas instituições, que privilegiam o capital e
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AYALA, A.L.M. • A crise de dominação no sistema público de saúde
utilizam medidas manipuladoras e repressivas, além de imporem a penúria, a falta de alternativas, a humilhação e a miséria aos indivíduos, descumprindo, com rigor, o seu objetivo. E isso nos faz retornar ao corpo de nosso trabalho. Caracteriza-se aqui que no passado, os defensores da Reforma Sanitária discursaram em prol de uma política antiliberal. Agora, precisam retomar,com o mesmo vigor a análise da conjuntura atual. Deve-se considerar aspectos que nos limitamos a simplesmente mencionar, como, por exemplo, emancipar as ações coletivas dos interesses econômicos e conceber programas e instrumentos de ação sóciopolíticos elaborados pela própria realidade. Assim, as instituições não devem ser definidas em detalhe antes que sua articulação prática aconteça, mas devem ter como pressuposto as necessidades e, portanto, a flexibilidade das demandas sociais. O último ponto a enfatizar é o controle social, que deverá incorporar o poder político de decisão com o corpo social, dando origem a uma ação política determinada pelos interesses
Junges, L.S. Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da Saúde: secretária defende sanitarista acusado de improbidade em depoimento a vereadores. A Notícia, Joinville, p. 5, 17 de dezembro, 2003. Leite, F. Governo Lula cria programa de apoio financeiro para os planos de saúde. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C1, 24 de abril, 2005. Martinez, M. Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar repasses ilegais. Folha de São Paulo, Agência Folha Salvador, 20 de maio 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2005.
Neves, A. Perseguição e política. A Notícia, Joinville, Cadernos AN Cidade, p. 8, 13 de dezembro 2003. Pierantoni, C.R. As reformas do Estado, da saúde e recursos humanos: limites e possibilidades. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 341-60, 2001. Radis Dados (Reunião, análise, difusão de informação sobre saúde). Crise da saúde acende alerta no SUS. Jornal do Radis, Rio de Janeiro, 33, p. 10, 2005.
coletivos da sociedade. Weber, B. Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde: desfalque de médicos se arrasta desde dezembro, quando venceram os contratos. A Notícia, Joinville, Cadernos AN Cidade, p. 6, 9 de abril, 2005. Recebido: maio/2008 Aprovado: nov./2008
R E F E R Ê N C I A S
Albuquerque, R. Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 abril 2005. Colluci, C. Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação. Folha de São Paulo, São Paulo, p. C1, 11 de abril, 2005.
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ARTIGO ORIGINAL
/ ORIGINAL ARTICLE
François Dagognet, por uma nova filosofia da doença François Dagognet, for a new philosophy of disease
Sabira de Alencar Czermak
1
Psicanalista; mestranda em Saúde
RESUMO O texto pretende apresentar o filósofo, psiquiatra e epistemólogo francês
Coletiva no Instituto de Medicina
François Dagognet, ainda pouco conhecido no Brasil apesar de sua vasta obra
1
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
transdisciplinar que compreende mais de cinqüenta livros com temas diversos e
[email protected]
de grande importância, na atualidade. Aluno de Georges Canguilhem, Dagognet retoma problemáticas tais como normal/patológico, corpo/vivente, distanciando-se em alguns pontos de seu mestre por estar inserido em um novo contexto de progresso científico e tecnológico, com novas pautas de discussões. Sempre atento à aplicação dos saberes (médico, jurídico, filosófico, estético) na realidade, esse pesquisador traz imensa contribuição para o campo da saúde. PALAVRAS-CHAVE: Vitalismo; Normatividade; Epistemologia; Corpo.
ABSTRACT This article aims to present the French philosopher, psychiatrist and epistemologist François Dagognet, still unknown in Brazil despite his transdisciplinary work that includes more than fifty books and a wide variety of important nowadays themes. As he was Georges Canguilhem’s student, Dagognet recovers issues such as normal/pathological, body/living beings, but disagrees with the master for he was in a new context of scientific and technological progress, with new kinds of subjects on the agenda. He turned his attention to the application of knowledges (medical, juridical, philosophical, aesthetical) in the current reality, bringing precious contributions for the health field. KEYWORDS: Vitalism; Normativity; Epistemology; Body.
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008
CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença
I N T R O D U ç ão
de François Dagognet. Filósofo e médico desde os primórdios da psicofarmacologia e da época em que ainda não existia raio X, completa 84 anos de idade e ainda agita o cenário francês com seus elogios ao Prozac, à instrumentação médica, ao transtorno (trouble), com sua
Georges Canguilhem foi, para muitos, um grande
briga pela homoparentalidade e pelo direito à fecundação
mestre, um teórico que deu o que falar em sua época,
post-mortem3. Trata-se de um teórico eclético visto que seu
tecendo críticas severas à tradição filosófica e médica ou
interesse se estende da geologia à química, passando pela
mesmo incentivando atos políticos de importância históri-
epistemologia, neuropsiquiatria, direito, sociologia, psi-
ca. Sua filosofia de vida foi um divisor de águas na tradição
canálise e por onde mais a contemporaneidade exigir.
da medicina. O livro O normal e o patológico, concluído
A proposta deste artigo é apresentar a leitura que
em 1966, é a sua obra mais conhecida e a principal repre-
Dagognet faz do pensamento de Canguilhem, de quem
sentação de seu pensamento. Quase meio século depois, a
se distancia em algum ponto de sua trajetória.
discussão central do livro ainda é um valioso argumento crítico em relação às perspectivas reducionistas que sempre assolaram as velhas discussões no terreno das patologias: como as definir, de onde vêm e o que se faz com elas.
DAGOGNET, ALUNO DE CANGUILHEM
Canguilhem formou um número importante de intelectuais franceses, sobretudo nos anos 1960. Dentre
Georges Canguilhem e François Dagognet são
seus pupilos, esteve Michel Foucault, seu orientando
reconhecidos como dois grandes mestres no domínio
na elaboração de A história da loucura na idade clássica
da filosofia da Medicina. O primeiro, nascido em 1904
(1961). Foucault afirma em um artigo escrito em 19851,
em Castelnaudary, sul da França, lecionou em várias
no qual homenageia o mestre, que, sem Canguilhem,
instituições acadêmicas francesas como filósofo. Sua tese
diversos debates não teriam sido tão bem compreendi-
de doutorado, porém, foi defendida no curso de Medi-
dos. E acrescenta:
cina sob o título O Normal e o patológico, com diversas atualizações de seus argumentos até ser publicada como
Este homem, cuja obra é austera, voluntariamente bem delimitada, e cuidadosamente devota a um domínio particular numa história das ciências que, de todo modo, não se faz passar por uma disciplina de encenação aparatosa, encontrou-se de certa maneira presente nos debates em que ele próprio tomou bastante cuidado de nunca aparecer. (p. 763)2. É nesse sentido, entre outros motivos, que se enfatiza a importância de um pensador com a experiência
a sua obra-prima. Vinte anos mais jovem e nascido em Landres, também no sul da Franca, François Dagognet seguiu os passos do mestre. Assim como Georges Canguilhem, cursou Filosofia e depois Medicina. Trilhou um percurso teórico marcado pela epistemologia de Bachelard, de quem também foi aluno e amigo. Exerceu, durante dez anos (na década de 1950) atividade clínica e reivindica a tradição francesa de René Laennec e René Leriche (Dumas, 2005, p. 261).
1
La vie: l’expérience et la science
2
Tradução da autora.
3
Para mais informações, consultar Questions interdites (2002) e Penser le vivant: l’homme, maître de la vie? (2003) de Dagognet.
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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença
É possível perceber a reciprocidade entre os dois a
Ao desacreditar que a vida é redutível a seus proces-
partir das referências mútuas nas obras de um e outro,
sos químico-físicos e acreditar que é algo mais do que
como se vê nos livros La Raison et les Remèdes (1964), de
a soma de todos os seus aspectos, Canguilhem reincide
Dagognet e O Normal e o patológico, dois clássicos escri-
em um vitalismo epistemologicamente contraditório,
tos na mesma época. Em 1983, Canguilhem organizou
mas compreensível, tendo-se em vista os efeitos éticos
o primeiro colóquio sobre a obra ainda em construção
que o objetivismo da época devia engendrar. De alguma
de Dagognet, em Saint-Julien-en-Beaujolais, cidade de
maneira, para ele a vida se tornou inobjetivável. Por
Claude Bernard. Nessa data, Dagognet havia concluído
isso a pretensão da Medicina em objetivar a questão do
treze dos mais de cinqüenta livros que escreveu até hoje.
patológico e do normal deveria ser combatida.
Em 1997, o autor publicou o primeiro estudo sobre o
Vale lembrar que nenhum estudioso da década de
conjunto da filosofia de vida proposta por Canguilhem,
1940 fazia as experiências que atualmente se fazem, na
dando origem ao livro Georges Canguilhem: philosophe
tentativa de manipular a vida. Houve com freqüência,
de la vie.
nesse período crítico da história, experimentos de cunho
Entre suas teorias acerca da normatividade,
eugenista e de efeitos sociais devastadores. Hoje, conhe-
das normas, da máquina, da evolução, de Auguste
cemos o código genético, fazemos experiências entre
Comte, Claude Bernard ou Gaston Bachelard, o eixo
espécies e a Medicina, sem dúvida, foi muito beneficiada
central do legado deixado por Canguilhem é, sem
com tais avanços. A idéia da vida artificial passa a ter
dúvida, o vivente (vivant). Em Georges Canguilhem:
um sentido que na época não existia. Os limites entre
philosophe de la vie, Dagognet retoma a perspectiva
o artificial e o natural hoje estão cada vez mais turvos.
canguilhemiana para expor seu pensamento funda-
Se as idéias de Dagognet parecem mais pragmáticas que
mental, confrontá-lo a novos impasses e, acima de
as de Canguilhem, é preciso que seja lembrada a época
tudo, apontar a busca de Canguilhem pela essência
em que foi escrita a sua obra-mestre. O próprio autor
da vitalidade (Dagognet, 1997, p. 167). Talvez seja
reconhece que suas idéias se modificaram enormemente
nesse ponto que se encontra a crítica mais importante
desde La raison et les remedes (1964).
de Dagognet ao mestre: a tese central de Canguilhem
No prefácio de Georges Canguilhe: philosophe de la
traz os equívocos da tradição médica bem como sua
vie, uma questão importante introduz as discussões do
incapacidade de reconhecimento de situações de fato
livro: por que o jovem filósofo teria escolhido, sem in-
e valor na clínica. Como nos esclarece Dagognet, na
tenção de exercê-la, o domínio da Medicina? Dagognet
denúncia epistemológica a respeito da ambigüidade
sugere que isso tenha se dado pelo interesse inicial do
que acompanha o termo ‘normal’, geralmente dedutí-
mestre por Auguste Comte, pela insatisfação que sentia
vel para o uso do conceito de patologia, Canguilhem
diante das idéias de ordem e progresso que atravessavam
termina deslizando no mesmo erro: parece acreditar
o século 20 e, ainda mais, pela relevância que as inves-
ter encontrado um ‘finalismo’ para a vida, ou seja, um
tigações sobre o corpo vivo tinham para ele. Contra o
princípio que explicaria a organização biológica dos
positivismo da época, Canguilhem defende a concepção
seres vivos por um fim ao qual eles seriam destinados,
de corpo como uma ‘potência criativa’ que contém sua
uma espécie de adaptação a uma ordem universal
normatividade vital. A vida, para ele, tem sua base na
advinda de um princípio ou de uma vontade superior
idéia de normatividade, conceito que usa contra as ins-
à própria vida.
tituições que queriam ‘discipliná-la’ ou contra os saberes
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008
CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença
objetivistas e reducionistas que tentavam controlá-la. A
mantém suas diferenças ao mesmo tempo em que as
Medicina parece ter sido fundamental para o esclareci-
integra. Dagognet acolhe uma noção semelhante do
mento do positivismo experimental do conhecimento
corpo dialetizado, ou seja, é um todo que não deixa de
(através do hospital e do laboratório) e seus limites, ou
se fracionar para melhor atender ao conjunto e torná-lo
seja, o esquecimento do corpo doente e da experiência
mais rico em sua diferenciação. As partes do corpo, no
da doença à qual o sujeito resiste e através da qual se re-
entanto, só podem funcionar se o conjunto, aquele que
nova. Nessa época, marcada pela tradição positivista, era
as integra e recompõe, não estiver alterado (Dagognet,
como se coubesse apenas ao filósofo lembrar o médico
1997, p. 174).
da questão essencial: interrogar-se sobre o que significa estar doente (Dumas, 2005, p. 263).
De acordo com Dagognet, foi Canguilhem quem introduziu no campo da Medicina a idéia de um corpo que não cessa de emitir todo tipo de sinal. Dagognet o
Esse rebelde escolheu a Medicina porque, de um lado, ele precipita o começo de uma importante cisão entre a saúde e aqueles que dela tratam; de outro, percebe no fundo desse problema a filosofia maior do corpo, da existência e da liberdade. Enfim, essa disciplina lhe permite abordar uma questão que lhe é essencial, a da técnica, da instrumentação e da aplicação real. Ora, o médico valoriza a eficácia. (Dagognet, 1997, p. 51).
chamará de corpo ‘semafórico’. A partir de O Normal e o patológico, os corpos doentes ganham outra importância; o pathos irá preceder o logos e, conseqüentemente, a clínica passará a ser soberana. O autor não só seguiria de modo fiel esse princípio, como o ampliaria afirmando que “ao médico caberá a tarefa de aprender e colher os menores sinais que o corpo entrega. A ele cabe saber questioná-lo e interpretá-lo” (Dagognet,
Como era de se esperar, o livro privilegia esse con-
1997, p. 179).
ceito central do projeto canguilhemiano de normativi-
Provavelmente pelo fato de ter permanecido vivo
dade, mostrando como essa noção tornou-se complexa
ao longo de tantas transformações, o saber clínico
e foi enriquecida ao longo de sua obra (sobretudo com
para Dagognet em muito se beneficia das técnicas que
as contribuições do campo da genética) em oposição a
sofisticam o olhar e a escuta do médico. Dagognet se
outras perspectivas. Trata-se de uma nova filosofia do
preocupa em mostrar o quanto a clínica progrediu com
corpo, como afirma Dagognet, diferente do reducio-
os aparelhos de captura, de gravação e visualização em
nismo da teoria molecular e de toda Medicina clássica,
tela, tornando mais claro aquilo que antes precisava ser
construída sobre três eixos complementares: um corpo
dissecado. Se também para Canguilhem o corpo emite
dialetizado, um corpo semafórico e um corpo rebelde.
sinais que devem ser minuciosamente colhidos e inter-
Canguilhem sugere que o corpo não advém de
pretados, Dagognet escancara um elogio à tecnologia
uma única extensão e, portanto, não pode ser reduzido
médica e à instrumentação que permite dispensar o
a um objeto composto por várias partes que se somam
dilaceramento do corpo para aperfeiçoar a leitura mais
entre si. O corpo só pode ser compreendido em uni-
acurada e objetiva de suas perturbações. Por mais que a
dade e somente através dessa concepção holística é
exteriorização possa parecer objetivação, Dagognet não
possível entender a potência integradora, compensadora
deixar de frisar que a doença cardíaca, por exemplo,
e regeneradora da totalidade que comanda as partes
nunca poderá ser reduzida a um simples traço elétrico,
e as absorve. O teórico parece ter ultrapassado uma
ou a um eletrocardiograma. Mesmo que o laboratório
concepção uniformizada do corpo mostrando que ele
seja indispensável, não há razão para que se exclua a
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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença
‘subjetividade’. De acordo com a idéia canguilhemiana,
filosofia entre um lado obscuro, irredutível à razão, e o
é exatamente devido à existência de doentes que existe
poder analítico que exige inteligência ou racionalidade
uma doença e não o contrário. O doente é bem mais
para ser alcançado.
do que sua estrutura físico-química. Mas, para equili-
Encantado como é pela química, Dagognet defen-
brar a valorização da instrumentação e retomar a lição
de outra idéia de organismo. O corpo não é, para ele,
do mestre, Dagognet profere um elogio ao periférico,
rebelde à razão, tampouco o corpo doente é inacessível,
acreditando não haver afecção grave que não possa se
pois permanece idêntico em sua impermanência:
projetar na pele. É em relação ao corpo rebelde que o caminho desses dois filósofos parece se bifurcar. Em seus primeiros trabalhos, Canguilhem opõe a potência afirmativa e singular do corpo a tudo aquilo que a captura para,
[...] não só seus principais constituintes oscilam apenas dentro de limites bastante estreitos [...] mas, sobretudo o código matricial, aquele que marca ou sela fundamentalmente o ser, permanece o mesmo. Não mudamos. (Dagognet, 1997, p. 268).
dessa forma, inseri-lo nas normas. Ele se faz advogado da ‘vitalidade transbordante do corpo’ em oposição à lógica
E é por isso que a razão deve ser astuta ao criar meios
corretiva e normalizante dos profissionais da saúde, dos
de, sem trair a si própria, entrar nessa lógica do corpo vi-
educadores e higienistas. A relação de conflito que há
vente que se auto-constitui ao lutar contra os obstáculos.
entre a normatividade não submetida às normas disci-
Isso não significa, para Dagognet, desqualificar a expe-
plinares está, para Dagognet, no centro das contradições
riência do doente. Estar doente é perder a sua liberdade
do campo médico. Ele não compactua com essa idéia,
e viver na dependência. “A doença é a dor, eu percebi
mas defende justamente que as normas disciplinares de
que como filósofo eu não tinha nenhuma idéia da dor,
Canguilhem muitas vezes servem à normatividade, e
da morte e do sofrimento” (Dagognet, 1996, p. 21).
não parece concordar que a Medicina seja uma réplica
Para ele, a enorme adesão às idéias de Foucault acentua
da vida. A fundação da Medicina para Dagognet parece
o vitalismo rebelde da filosofia de Canguilhem.
sim estar na vida, mas não deixa de estar na ciência, na política, no social, na filosofia. Canguilhem toma partido do ser vivo em seu caráter resistente e reativo ao examinador que quer
POR UMA FILOSOFIA DA DOENÇA
compreender as razões do seu comportamento. Ele se posiciona contrário às técnicas de dosagem e aos exa-
Dagognet não se propôs a refletir sobre a doença,
mes numéricos da época em prol de uma singularidade
mas a partir da doença e de seus efeitos. Em Pour une
que transcenderia a qualquer tabela de medidas. Claro
philosophie de la maladie (1996), ele contextualiza o
que ele não se opõe a uma abordagem racional da cor-
campo do saber, criticado na primeira parte de O normal
poreidade, mas à rigidez dogmática de uma razão que
e o patológico. Explica, ainda, que a filosofia da Medici-
submeteria o corpo a teorias pré-existentes. A crítica de
na existe desde Hipócrates, no século 4 antes de nossa
Dagognet é justamente que Canguilhem, como filósofo
era, e que a tradição hipocrática influenciou por muito
da vida, mobiliza a razão, purifica-a de seu positivismo,
tempo pensadores, como Auguste Comte, e clínicos,
mas termina propondo uma espécie de ‘vitalismo racio-
como François Broussais, quanto ao entendimento da
nal’. Esse oximoro reflete bem a tensão presente nessa
doença e quanto à sua filosofia.
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CZERMAK, S.A. • François Dagognet, por uma nova filosofia da doença
Desde o fim do século 19, duas escolas principais
tornava cada vez mais sofisticada e eficaz, os problemas
se desenvolveram. De um lado, a escola de fisiologia
também ganharam complexidade e fizeram com que se
alemã, sintonizada com os trabalhos de François Ma-
repensassem a essência do ato médico e a velha relação
gendie e Claude Bernard, que denunciava a necessidade
médico-paciente. No âmbito da filosofia da doença,
de hospitais e laboratórios, apoiava o diagnóstico e
Dagognet descreve a luta que sempre existiu entre suas
seus instrumentos. A doença aqui é objetivada tanto
correntes de pensamento.
quanto possível. De outro lado está a Medicina hospi-
Ainda nesse livro (1996), o autor descreve Can-
talar, escola dos grandes clínicos (onde se encontram
guilhem como o fortalecedor da tradição francesa
René Laennec e Xavier Bichat), que prioriza o olhar do
neste campo, aquele que mostrou a instrumentação e
médico, a decifração dos sinais, a tomada da história
as análises biológicas da técnica reportadas ao corpo
do doente. Esta última, qualificada como humanista,
do doente. Dagognet posiciona O normal e o patológico
desenvolveu-se com mais força na França após a Revo-
enquanto marca dessa perspectiva humanista e ressalta
lução Francesa (1789-1799) e se manteve até o século
a crítica canguilhemiana dirigida a uma concepção
20, por exemplo, com René Leriche. Segundo Dagognet,
ontológica da doença e da saúde contrapondo-a ao
Leriche revolucionou a cirurgia ao abrir espaço para a
foco sobre a normatividade individual presente tan-
instrumentação sem se afastar do doente (Dagognet,
to no estado patológico quanto no estado de saúde.
1996, p. 12-13).
Apesar da crítica que faz ao vitalismo de Canguilhem,
Trata-se de um confronto entre a escola instrumen-
esses conceitos continuam sendo centrais em todo o
talista dos técnicos, que desvaloriza o olhar médico e a
seu percurso. Também concorda com a contraposição
escuta do doente em prol de sua objetivação, e a escola
que o mestre sugere à visão puramente quantitativa
semiológica, que prioriza a leitura dos sinais. Dagognet
da doença e sua descentralização em partes do orga-
questiona para que lado é preciso pender para que se
nismo, falando sobre o caráter histórico e singular de
defina e compreenda realmente a patologia. A maior
toda doença. Propõe que o corpo seja colocado entre
parte dos objetivistas se fixou na doença e deixou de
a clínica e a instrumentação, ou seja, considera-se
lado o doente. Observa-se, no entanto, com alguma
partidário da Medicina objetivada, mas sem deixar de
complacência, que foi um momento importante para
reconhecer seus limites.
a anatomia patológica, para a bioquímica e para a
Com relação ao status ontológico da doença,
parasitologia, ainda que o sujeito tanto quanto o seu
questão filosófica que dividiu o pensamento médico
lado social (a maneira de se viver, o meio, os riscos)
desde a Antigüidade, o discurso médico oscilou entre
fossem minimizados. Esse frenesi tecnicista, como ele
duas concepções distintas. Uma que se propunha a
chama, de importância em certo aspecto, atingiu seus
reificar a doença e outra chamada tradicionalmente
limites. Então, foi preciso voltar a atenção ao subje-
de ‘dinâmica’ ou, depois do século 19, de ‘fisiológica’.
tivo. Daí surgem questões fundamentais como: onde
Dagognet acredita que tais concepções não consti-
situar a fronteira entre a irregularidade (a anomalia, a
tuem uma real oposição, mas uma espécie de conluio
singularidade) e a anormalidade (o patológico), assim
entre a idéia segundo a qual o estado de doença é
como outras que giravam em torno da oposição entre
eminentemente individual e a versão científica da
o objetivo e o subjetivo, o resultado cifrado e a dis-
Medicina. Em síntese, o que esse pensador propõe
função. No século 20, à medida em que a Medicina se
é que o estado da doença não seja compreendido
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unicamente a partir da relação da Medicina com o indivíduo doente, visto que a mediação da sociedade será sempre fundamental. Para concluir, vale reforçar que além da riqueza histórica e teórica que as filosofias desses dois grandes pensadores apresentam, a importância de ressuscitar tais discussões está em se pensar o processo terapêutico, seja ele de que ordem for, no sentido de uma recuperação da normatividade, diferente da orientação
Dumas, R. François Dagognet lecteur de Georges Canguilhem. In: Chazal, G.; Salomon, C. (Org.) François Dagognet, médecin et philosophe. Paris: L’Harmattan, 2005. Foucault, M. La vie, l’expérience et la science (1985). In: Dits et écrits 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994. v. 4. ______. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961.
de normalidade que o presente nos traz preponderantemente. A normatividade existe na saúde ou na doença, e esta última não pode mais ser compreendida simplesmente como um mal a ser erradicado. Apesar das contradições apontadas por Dagognet no vitalismo materialista canguilhemiano, não há dúvida de que valorizar a normatividade e não a normatização é a melhor opção para os agentes de saúde, ou melhor, os intérpretes da vida, quanto aos efeitos éticos, morais e clínicos de tal perspectiva.
R E F E R Ê N C I A S
Canguilhem, G. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. Dagognet, F. Georges Canguilhem: philosophe de la vie. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond, 1997. ______. Pour une philosophie de la maladie. Paris: Textuel, 1996. ______. La raison et les remèdes. Paris: Presses Universitaires de France, 1964.
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Recebido:abr./2008 Aprovado: out./2008
ARTIGO INTERNACIONAL
/ INTERNATIONAL ARTICLE
Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado Colombian health model: exportable, depending on the interest of the market
Mauricio Torres Tovar
1
1
Médico, Salubrista Ocupacional,
RESUMEN Este artículo describe los aspectos relacionados con la estructura,
Coordinador de la Región Andina
financiación y funcionamiento del modelo de salud colombiano y los resultados
de la Asociación Latinoamericana de Medicina Social (Alames), Vocero
sanitarios que ha producido luego de 14 años de implementación. La información
Político del Movimiento Nacional
presentada es principalmente secundaria, proveniente de fuentes institucionales y
por la Salud y la Seguridad Social de
académicas del país y el análisis hace parte de los procesos de reflexión académica
Colombia.
y política que impulsa el Movimiento Nacional por la Salud y la Seguridad
[email protected]
Social. Se revela la acción devastadora del modelo de salud colombiano sobre las estructuras y funciones públicas de la salud y la violación sistemática del derecho a la salud de la población. PALABRAS-CLAVE: Sistema de Salud; Derecho a la salud; Mercado; Colombia.
ABSTRACT This article describes the aspects related with the structure, financing and operation of the Colombian health model and the sanitary results after 14 years of implementation. The information presented is mainly from secondary institutional and academic sources of the country. The analysis is part of an academic and political reflection which promotes the National Movement for Health and the Social Security, from witch the author is the political spokesman. It will also show the devastating action of the Colombian health model over its public health functions and structures, and the systematically violation of the health right. KEYWORDS: Health System; Right to health; Market; Colombia.
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I N T R O D U ç ão
namentales y d) la descentralización de los servicios gubernamentales. Bajo esta égida Colombia, en su reforma Constitucional de 1991 definió la salud como un servicio público permanente (sin reconocimiento explícito de
Colombia fue una de las naciones latinoamericanas
su condición de derechos humanos), que puede ser
más juiciosas en acoger e impulsar, desde comienzos de
prestado por el Estado o por los particulares; base cons-
los años 1990 del Siglo XX, el conjunto de orientaciones
titucional sobre la que se reestructuró administrativa y
dadas por el Banco Mundial en materia de reformas
financieramente la Seguridad Social en el país a través
económicas, sociales y políticas, en el marco de la glo-
de la Ley 100 de 1993.
balización neoliberal que propuso la liberalización del mercado y el ajuste estructural del Estado.
La imposición de la nueva organización de la salud en Colombia no se dio sin previa lucha. Para avanzar
En este sentido, Colombia impulsó un conjunto de
en este modelo, la tecnocracia colombiana, formada
reformas tanto del aparato estatal (reforma judicial y admi-
principalmente en Harvard y puesta al servicio de la
nistrativa), como del sector económico y social (reformas
política privatizadora de salud, desarrolló una batalla
tributaria, educativa, laboral, de seguridad social y de sa-
de ideas para ganar terreno ideológico en el campo de
lud) y avanzó en una reorientación del Estado llevándolo
la salud, esgrimiendo el argumento de que hay recursos
a un papel más de regulador de mercado que de oferente
insuficientes para grandes demandas de salud, por lo
directo de servicios . Esto produjo cambios profundos en
cual se requería un modelo regulador, y el mejor para
la esfera del mundo del trabajo generando flexibilización
ello es el mercado, en la lógica de la oferta y la demanda
laboral con efectos de precarización de las condiciones de
que regula el consumo, distribuye adecuadamente y con
trabajo, mayor desempleo, crecimiento importante de la
calidad el servicio, y hace uso eficiente de los recursos.
economía informal, arrastre hacia la pobreza y la miseria
Estas tesis permitieron que los empresarios de la
de amplios sectores de la población y pérdida de soportes
salud ganaran en la batalla de ideas un asunto fun-
de protección social con los que se contaba.
damental que ha logrado que el modelo de salud en
1
En el campo específico de la seguridad social en
Colombia continúe incólume luego de 14 años, a pesar
salud, Colombia acogió la orientación de reforma a
de sus efectos devastadores: hacer entender y creer que
este sector propuesta por el Banco Mundial (Banco
la salud es un bien privado de consumo que se resuelve
Mundial, 1993), que tenía como eje central la reforma
individualmente en un mercado de servicios de atención.
del financiamiento de los servicios de salud en cuatro
Así, se despojó a la salud de su condición de derecho
aspectos básicos: a) el cobro de tarifas a los usuarios
humano fundamental, deber de Estado.
de servicios estatales, b) la provisión de seguros frente
Para reafirmar la experiencia como un modelo de
a los riesgos económicos relacionados con la atención
salud que enfrenta adecuadamente los problemas de
médica, c) el empleo eficiente de recursos no guber-
ineficiencia, baja calidad e inequidad, se han adelantado
Esta orientación internacional respondió a la necesidad de la recomposición del modelo de acumulación capitalista, en lo cual los servicios públicos se empezaron a ver como un campo para explorar y explotar por el mercado, lo que implicó reconocer al Estado de bienestar, ya no como un salvador sino como un gran competidor. Tal fue el entendimiento de fondo, que llevó a que de manera específica en el sector Salud, el aseguramiento y la prestación de los servicios de atención a la enfermedad fueran incorporadas en la lógica de mercado. 1
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
diversas estrategias, una de las mas sobresalientes fue la
sabilidad directa de los individuos, quienes acceden
de haber ubicado a Colombia en el informe mundial
a ella a través de un mercado de servicios, en donde
de salud del año 2000 como el país con mayor equidad
el Estado, a través de una política de focalización de
financiera en salud en el mundo (Organización Mun-
subsidios, incorpora a los miembros de la comunidad
Salud, 2000). Si estos son los resultados,
que no tienen capacidad económica. Esta política que
pues es claro que se debe acoger la experiencia exitosa y
ha orientado la salud en el país durante los últimos 14
debe impulsarse en muchos países, como efectivamente
años ha consolidado la concepción de salud como una
viene ocurriendo . El modelo así, ha ganado legitimidad
mercancía, alejando las políticas públicas de la compren-
exportable.
sión de la salud como un derecho humano que debe
dial de la
2
En este escrito y bajo una postura de deber ético, se describe la estructura del modelo de salud colombiano y
ser garantizado por el Estado a todos los ciudadanos (Torres; Paredes, 2005).
sus impactos, que evidencian por que este modelo de salud no debe ser acogido por los pueblos de América Latina y el mundo, dada su acción devastadora sobre las estructuras y funciones públicas de la salud y por su violación sistemática del derecho a la salud de la población.
Organización El Sistema General de Seguridad Social en Salud (SGSSS) se organiza en la lógica de un seguro popular de salud, que implica una vinculación a él vía aseguramiento individual a través de una cuantía que se paga (cotización), bien por lo cual se tiene
EL MODELO DE SALUD COLOMBIANO
capacidad de pago o que se recibe un subsidio para el pago. Esto implicó que el seguro público de salud
En desarrollo del mandato de la Constitución
fue sometido a una desintegración en sus compo-
Política de 1991, se adelantó el proceso de reforma a
nentes de administración y prestación de servicios,
la seguridad social que llevó a la expedición de la Ley
para lo cual se creó un mercado para administrar este
100 de 1993 mediante la cual se creó el Sistema de
seguro y articularlo con el de prestación de servicios.
Seguridad Social Integral, con cuatro componentes:
A su vez, implicó la generación de mecanismos de
pensiones, salud, riesgos profesionales y servicios
regulación de mercado para facilitar un desarrollo
sociales complementarios. Este sistema optó por un
armónico de tales mercados (Grupo Economía De
modelo de aseguramiento individual como vía para
La Salud, 2002).
alcanzar la universalización de los servicios de salud y
Para esto, el SGSSS generó una organización de la
por la creación de un mercado de servicios de atenci-
oferta de los servicios del aseguramiento y de la prestaci-
ón para superar los problemas de calidad y eficiencia,
ón de los servicios de atención con criterios de mercado
bajo la lógica de regulación de mercado vía oferta y
y separó las funciones de afiliación, administración, pres-
demanda.
tación y regulación. Esto implicó el surgimiento de un
A la Ley 100 de 1993 subyace una comprensión de la salud como un bien de consumo privado, respon2
conjunto de actores o agentes de mercado responsables de estas funciones:
El caso de República Dominicana y recientemente México.
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• las aseguradoras denominadas Empresas
• por el régimen contributivo, si se tiene capa-
Promotoras de Salud (EPS), bien del Régimen Con-
cidad de pago, bien como trabajador formal, servidor
tributivo (EPS-C) o del Régimen Subsidiado (EPS-S)
público, pensionado o trabajador independiente,
quienes están encargadas de realizar la afiliación de los
afiliándose a las EPS-C, recibiéndose un paquete de
asegurados, administrar los recursos del aseguramiento
servicios del régimen contributivo (POS-C) a través
y contratar la prestación de los servicios de atención. En
de las IPS;
este sentido las EPS hacen una función de articulación entre los usuarios que se aseguran con las instituciones que les prestan los servicios;
• por el régimen subsidiado, a través de las EPS-S (antes denominadas Administradoras del Régimen Subsidiado – ARS), mediante el subsidio del
• las Instituciones Prestadoras de Servicios de
Estado (subsidio a la demanda) que se recibe por la
Salud (IPS), quienes prestan los servicios de salud defini-
condición socioeconómica de pobre, atribuido por
dos en un paquete denominado POS (Plan Obligatorio
un sistema de identificación de beneficiarios (Sisben),
de Salud), según grados de complejidad de la atención
subsidio que puede ser completado si clasificado en
(desde el primer nivel el menos complejo, hasta el cuarto
el nivel 1 o 2 del Sisben o si un subsidio parcial esta
el más complejo);
clasificado en el nivel 3 de Sisben. Reciben un paquete de servicios de régimen subsidiado (POS-S) si es sub-
• las Empresas Sociales del Estado (ESE), hos-
sidio completo o reciben atención a las enfermedades
pitales de carácter público que debieron convertirse
crónicas (denominadas enfermedades de alto costo) a
en empresas autosostenibles financiera y administra-
través de las IPS y ESE;
tivamente, para lo cual como cualquier IPS venden servicios y compiten en el mercado por los contratos.
• cuando las personas no pueden acceder al régi-
Cuando muchas de ellas no resistirán a la competencia,
men contributivo por su incapacidad de pago y han sido
se quebraron, por lo que el patrimonio público que el
identificados como beneficiarios por el Sisben pero no
Estado y la sociedad conservaban en salud, han venido
alcanzan los subsidios para cobijarlos, quedan en con-
pasando a manos privadas (Paredes, 2000);
dición de población pobre no asegurada (inicialmente llamada vinculada) y son atendidos por los municípios
• al Estado se le asignó la función de coordinación
a través de las Empresas Sociales del Estado (ESE) o por
y modulación del sistema, de promover la incorporación
IPS privadas que tengan contrato con los municípios,
de las personas que no pueden pagar su seguro y de realizar
con los recursos del subsidio a la oferta en salud (subsi-
acciones de impacto colectivo que poseen externalidades
dios dados directamente por el Estado a los municipios
(es decir aspectos que no controlan el propio sector sa-
para los contratos con los hospitales públicos);
lud), inmersas en el Plan de Salud Pública (anteriormente conocido como Plan de Atención Básica, PAB).
• hay un grupo de personas que pertenecen a regimenes de excepción, es decir que cuentan con
La incorporación al SGSSS se hace vía afiliación al
su propio sistema de seguridad social. Estos sectores
aseguramiento según la condición socioeconómica de
son de las fuerzas militares y el sector público de la
la persona a través de varias vías:
educación.
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
Hay una franja poblacional que el SGSSS no tiene en cuenta, que en el lenguaje popular se le ha denomi-
degenerativas, que demandan altos recursos para su atención).
nado población ‘sandwich’, por no tener capacidad
Las EPS reciben un pago por la garantía del POS al
adquisitiva para vincularse al régimen contributivo,
asegurado denominada unidad de pago por capitación
pero que no son lo suficientemente pobres para obtener
(UPC), que es un pago anual por persona dependiente
el subsidio, y por lo tanto no reciben ningún tipo de
del ciclo vital de ella, siendo mayor, por ejemplo, cuando
beneficio por parte del SGSSS, a no ser que lo paguen
hay mayor riesgo de enfermar como en el caso de la
completamente de su bolsillo. Esta población es com-
población infantil, de la población adulta mayor, o de
puesta principalmente por personas de clase media
las en mujeres en edad fértil.
desempleadas, grupo que viene creciendo dado las
En este aspecto de beneficios del SGSSS se expresa
reestructuraciones laborales y los cambios en el mundo
de manera clara parte de las inequidades que genera,
del trabajo en Colombia.
en tanto a la población afiliada al régimen contribu-
En relación al componente de beneficios que brin-
tivo le brinda un paquete de servicios que es mayor
da el SGSSS, el cotizante y su núcleo familiar reciben
en comparación al que recibe la población afiliada al
un paquete de servicios en salud denominado POS, lo
régimen subsidiado, y ni que decir en relación al que
cual es diferenciado, siendo más amplio para el régimen
recibe la población con subsidio parcial (que recibe
contributivo que para el subsidiado y más restringido
un pequeñito POS como popularmente se le viene
para los que reciben el subsidio parcial.
diciendo).
El contenido del POS se define teniendo como
Hay otro conjunto de acciones que las EPS deben
criterio el perfil epidemiológico de la población co-
garantizar relacionadas con promoción de la salud y pre-
lombiana, el ciclo de vida, la disponibilidad tecnoló-
vención de la enfermedad (PyP), acciones no relaciona-
gica para su atención y el costo de efectividad de los
das directamente con la atención de la enfermedad y que
tratamientos.
buscan precisamente mantener la salud de las personas.
El POS incluye servicios de promoción, pre-
Estas acciones han entrado en la lógica de mercado, por
vención, atención de la maternidad y la enfermedad
lo cual son reconocidos que lo desarrollado en PyP es
general, diagnóstico, tratamiento, rehabilitación física
muy débil y lo pago por ello se convierte más bien en
y provisión de medicamentos esenciales en su presen-
un rubro de ganancias para las EPS, como lo mostró la
tación genérica. Para el régimen contributivo incluye
Defensoría del Pueblo al evidenciar el incumplimiento
intervenciones en los tres niveles de atención en salud,
de las Aseguradoras en estos aspectos (Defensoría del
mientras que el POS para los afiliados al régimen sub-
Pueblo, 2003).
sidiado sólo incluye intervenciones del primer nivel de
Para garantizar la prestación del POS, las EPS
atención, excepto para mujeres embarazadas y niños
contratan con las IPS o ESE a través de mecanismos de
menores de un año cuyas intervenciones incluyen todos
mercado. Entonces, se establecen relaciones contractu-
los niveles de complejidad. Para aquellos que reciben
ales entre ellas, en las cuales se observa una lógica, por
subsidio parcial el POS se restringe a la atención a un
la cual las EPS buscan sacar el mejor partido. En ese
grupo de enfermedades de alto costo (enfermedades
sentido las EPS han incorporado variantes para la con-
catastróficas como las denomina la Ley 100, referidas a
tención de costos como la contratación por capitación
un conjunto de enfermedades principalmente crónico
(se contrata la atención de un número determinado
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
de personas por un monto fijo de dinero, mecanismo
respondiente a cada uno de sus afiliados y son los que
a través del cual le traslada el riego a las instituciones
administran el plan de salud para estos mediante la
prestadoras de servicio); glosan los servicios, es decir
prestación directa o la contratación de servicios con otros
no aceptan las condiciones en que las prestadoras han
agentes. Las EPS actúan en el marco de un contrato
brindado un servicio y por lo tanto no le reconocen el
público, son delegadas por el Fondo de Solidaridad y
pago; lentifican el flujo de pago (pueden pasar más de
Garantía (Fosyga) y hacen parte de un mercado alta-
seis meses para que se les pague los servicios prestados
mente regulado en el cual lo producto (POS), el precio
a las IPS y ESE). Esto lleva a su vez a que las IPS y ESE
(UPC) y ciertas pautas de la entrada y operación en
generen barreras de acceso para contener costos y evitar
el sistema están determinadas por normas (Grupo
asumir el riesgo3.
Economía de la Salud, 2002).
de
Complementario a las acciones del POS se define
Es claro que el SGSSS es un modelo de asegu-
un conjunto de acciones establecidas en el Plan de Salud
ramiento público, lo cual separa las funciones de
Pública (antes PAB). Este plan aborda un conjunto de
aseguramiento, prestación y regulación, que genera un
intervenciones dirigidas a la colectividad o a los indivi-
conjunto de actores de mercado para estas funciones
duos pero que tienen altas externalidades, o sea asuntos
y que establece un conjunto de mecanismos de regu-
que no son de exclusivo control del sector salud, tales
lación del mercado, establecidos por el aseguramiento
como la información pública, educación y fomento de la
obligatorio, el POS, la UPC, el Fosyga, la prohibición
salud, el control de consumo de sustancias psicoactivas,
de la selección del riesgo por parte del asegurador; la
complementación nutricional, planificación familiar,
prohibición de la selección adversa por parte del paciente
control de vectores, entre otras.
por medio de los tiempos mínimos para beneficios; y el
La organización del SGSSS en Colombia descrita
control del riesgo moral por parte de los usuarios por
respondió a un enfoque llamado pluralismo estructurado
medio de las cuotas moderadoras denominados Copagos
o como otros mencionan de competencia o mercado
(Hernández, 2003A).
regulado, bajo el precepto y la comprensión que la salud
Bajo esta concepción y modelo se asume entonces
es un bien privado de consumo que debe regularse en
que el mercado regulado distribuye eficientemente la
una oferta de mercado, lo que garantiza su distribución
provisión de servicios individuales, mientras el Estado
adecuada, su calidad y el uso eficiente de los recursos.
incorpora a los pobres al mercado a través de los subsi-
Producto de este modelo se organizó el SGSSS en tor-
dios, vigila el cumplimiento de las reglas de mercado y
no a cuatro funciones básicas: articulación, prestación,
dispensa los servicios estrictamente públicos, es decir,
financiación y modulación, por lo cual se procura la
con altas externalidades ubicados en el denominado
integración de todos los agentes en torno al suministro
Plan de Salud Pública (Hernández, 2003B).
del plan único de salud (POS), financiado con un pago por capitación UPC (Frenk; Londoño, 1997).
Tal separación, sustentada en la teoría económica neoclásica, deja a los servicios de atención de enferme-
En este modelo, las EPS son el centro financiero
dades en calidad de bienes privados (los individuos están
al recaudar la cotización, descontar la capitación cor-
dispuestos a pagar por ellos ya que satisfacen sus necesida-
Tal situación en gran medida es responsable por el denominado paseo de la muerte, en donde una persona en una condición crítica de salud solicita atención y empieza a ser llevada de una a otra institución, que niegan el servicio por que no demuestra quien paga o que lo que se paga por ella no es suficiente para cubrir la condición clínica que se debe atender, hasta que se presenta una atención tardía o simplemente no se da, y la persona fallece. Paseos de la muerte que no son situaciones aisladas, y sí vueltos constantes, y son otros indicadores de la lógica mercantil de la política de salud. 3
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
des particulares) y a las acciones colectivas de salud como
El régimen subsidiado se financia mediante cuatro
bienes públicos (son bienes que satisfacen necesidades de
fuentes de recursos que fueron definidos por la Ley 60
muchas personas al mismo tiempo, es decir, tienen altas
de 1993 y luego ajustado por la Ley 715 de 2001, el
externalidades y las personas no están dispuestas a pagar
sistema general de participaciones (que incluye la suma
por ellos, por lo cual deben ser financiados con recursos
del situado fiscal y la participación de los municípios en
públicos y ejecutados por el estado descentralizado), lo
los ingresos corrientes de la nación), los recursos de soli-
que genera un proceso estructural de fondo impidiendo
daridad del Fosyga, el esfuerzo propio de las entidades
una acción integrada e integral del SGSSS y lleva a que
territoriales y los recursos de las cajas de compensación
no se garantice la salud como derecho humano para todas
familiar.
y todos (Hernández, 2003B).
Lo dinero del régimen subsidiado es administrado bajo un esquema de subsidio a la demanda, que se concreta vía una política de focalización, la cual identifica
Financiación En el SGSSS coexisten articuladamente, para su
al beneficiario y le asigna el subsidio que le da ingreso a la EPS-S y recibe un POS-S.
financiamiento y administración, un régimen contributivo de salud y un régimen de subsidios en salud, con vinculaciones mediante el Fosyga. El financiamiento del régimen contributivo se basa
CONSOLIDACIÓN DE INEQUIDADES E
en un esquema de aporte obrero patronales debiendo
INJUSTICIAS EN SALUD PROPIAS DEL MER-
cubrir los costos del POS para todos los afiliados y sus
CADO
beneficiarios, y, además, realizar una contribución solidaria para la financiación del régimen subsidiado. El
En términos de los resultados sanitarios y sociales
monto actual de la cotización, ajustado por la Ley 1.122
que ha ocasionado este modelo neoliberal de salud
de 2007, es del 12.5% del ingreso base de cotización
durante estos 14 años de implementación, se eviden-
(IBC); en el caso de los trabajadores dependientes, el
cian un conjunto de efectos entre los que se destacan
8.5% lo paga el patrón y el 4% el trabajador; y en el
(Torres, 2003):
caso de los independientes, éstos pagan el 12.5% del IBC que declaren. El manejo de los recursos financieros está a cargo
No se logró la Universalidad
del Fosyga, el cual esta adscrito al Ministerio de la
La ley 100 de 1993 estableció que para el año 2001
Protección Social y se maneja mediante un encargo
existiría cobertura en salud para toda la población, con
fiduciario. Posee cuatro cuentas: compensación, solida-
igualdad de benefícios.
ridad, promoción y eventos catastróficos. En la cuenta
Según las cifras de aseguramiento presentadas por
de compensación se administra el régimen contributivo
el Concejo Nacional de Seguridad Social en su informe
y su saldo se determina por la diferencia entre los apor-
de 2007 al Congreso de la República, se refiere que
tes de los cotizantes, descontando 1.5 que se trasfiere
hay 37.3% de la población total asegurada al régimen
al régimen subsidiado, y el valor de la UPC que debe
contributivo, 46.9% asegurada al régimen subsidiado,
reconocerse a las EPS por todos los afiliados.
4.5% en regímenes especiales y 11.3% de la población
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
no tiene aseguramiento. Cabe distinguir que del por-
dificultades económicas para la mayoría de estas insti-
centaje de población asegurada en régimen subsidiado,
tuciones, llevando a muchas de ellas incluso al cierre
el 9.4% son subsidios parciales (Concejo Nacional de
(por mencionar como ejemplo vergonzoso el cierre del
Seguridad Social en Salud, 2007).
hospital emblemático de mayor nivel de formación
Hay una diferencia ostensible entre cobertura
académica en el país, el Hospital San Juan de Dios de
de aseguramiento y acceso real a los servicios. Estar
Bogotá), desestructurando de esta manera la red hospi-
asegurado no es garantía de acceder a los servicios, por
talaria pública, base de la protección social en salud para
el conjunto de barreras que el sistema ha desarrollado
extensos sectores de la población colombiana.
de carácter administrativo, geográfico, económico y de información (Restrepo; Echeverry; Vásquez; Rodrí-
La salud de la gente se deterioró
guez,
La situación de salud debe ser la manera adecuada
2006).
Parte del problema de no lograr la cobertura uni-
para medir los impactos de una política de salud. Aun-
versal obedece a que el aseguramiento se soporta sobre
que al modelo se le pueden atribuir el mejoramiento en
el empleo formal y Colombia tiene un escenario de
indicadores tradicionales, como el de mortalidad mater-
desempleo del 13.6% (Dane, 2007) y de informalidad
na y infantil de manera global4, el énfasis del modelo en
y subempleo que supera el 60%.
la atención a la enfermedad ha reducido el componente de salud pública, dejándolo contenido a un plan (PAB,
Lo privado se ha favorecido a costa de lo público
ahora plan territorial de salud pública), que esta en la
Uno de los efectos positivos más destacado por los
misma lógica del paquete de servicios.
defensores del modelo está en relación con el incremen-
Esto ha llevado a debilitar programas de promoción
to de los recursos financieros para el sector salud, que
y prevención tan importantes como los relacionados con
sin lugar a dudas es cierto; pero también es cierto que
la prevención y atención a la fiebre amarilla, la tubercu-
estos recursos han servido para enriquecer las arcas de
losis y la malaria, enfermedades estas que han tenido un
las intermediadoras (EPS).
crecimiento importante en el país (entre 1995 a 2000
Es claro que hay un incremento de los recursos para
la fiebre amarilla reportó un total de 21 casos; la tasa
el sector salud, lo cual no redunda en aumentos suficien-
promedio anual de tuberculosis pulmonar fue de 12 por
tes de la cobertura de salud, ni en resultados positivos
100.000 y el promedio anual de casos de malaria llegó
para la salud, lo que esta en relación con la evidencia de
casi a los 100.000).
que 30% de estos recursos quedan en la administración
El componente de inmunización se ha debilitado
de la intermediación que hacen las aseguradoras y 5%
completamente, según información del Ministerio de la
va para infraestructura (Leguizamón, 2007).
Protección Social en 2003, 15 de los 32 departamentos
El cambio central del esquema de financiamiento
en el país no lograron alcanzar las coberturas promedios
pasando del subsidio de oferta al subsidio a la demanda
del 90% para ninguna de las vacunas del plan ampliado
exigió a los hospitales públicos a generar sus propios
de inmunizaciones; en 2006 la cobertura en vacunación
recursos para sostenerse económicamente a partir de
fue de 86.5% para polio, 86.1% para DPT, 88.2% para
la venta de servicios, lo que acarreó un aumento de las
BCG, 86.1% para HEPb; 86% para HiB y 88.3% para
Si, por que en quinquenio 2000 a 2005 la tasa de mortalidad infantil nacional fue de 19 por 1.000 nacidos vivos, pero en el área rural fue de 24, de madres con educación superior fue 14, en madres sin educación fue 43, en estratos ricos 14 y en estratos pobres 32 (Encuesta Nacional de Demografía y Salud, 2005). 4
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
TV (Ministério de la protección Social/ OrganizaSalud, 2007). Coberturas
tigación de tutela en salud de la Defensoría del Pueblo
no útiles de vacunación, lo que ha generado la reemer-
que arrojó un resultado impactante revelando que en
gencia de enfermedades infectocontagiosas. Para citar
el país se presentan 60.000 tutelas en salud anuales.
un ejemplo, en estos momentos en Colombia se vienen
La mayoría de acciones de tutela fueron interpuestas
presentando casos de rabia humana, un indicador que
por negación de servicios, por falta de oportunidad
evidencia que la salud pública con este modelo de salud
en el tiempo para la atención y por la no entrega de
entro en la debacle.
medicamentos, aspectos del POS por el que las EPS
ción
Panamericana
Asunto que se constata con el resultado de la inves-
de la
reciben pago a través de la UPC; lo que evidencia la gran Las inequidades en salud se incrementaron
vulneración general del derecho a la salud ocurriendo
Los datos muestran que el sistema colombiano
en Colombia, con sus obvias consecuencias para la sa-
aumentó las inequidades en salud, es decir que quienes
lud, la vida y la integridad de la población colombiana
más necesitan menos reciben y quienes más tienen más
(Defensoria del Pueblo, 2007).
reciben. Según estudio hecho por el Observatorio de la Seguridad Social de la Universidad de Antioquia en
Precarización de las condiciones laborales de los
junio de 2003 al desagregar la distribución porcentual
trabajadores del sector salud
del subsidio en salud por condiciones socioeconómicas
El modelo de salud llevó a que el ejercicio de las
se encontró que el decil 1 (los más pobres) recibían el
profesiones del área de la salud se rija por la lógicas de
de 4.8%, mientras que para el decil 9 era del 12.8%
mercado, por lo cual las aseguradoras y las prestadoras
y para el decil 10 (los más ricos) era del 14%. Al ob-
interpretan el acto terapéutico como un componente
servar los denominados gastos de bolsillo se observó
del negocio y por lo tanto ejercen sobre él las técnicas
también discriminaciones de índole económica ya
administrativas para que sea lo más rentable posible
que mientras los hogares donde los jefes pertenecían
(Torres, 2006A).
a regímenes especiales gastan el 5.7% de su ingreso,
El sector de la salud también entró en el proceso de
los del régimen subsidiado gastan el 14% y los que no
flexibilización laboral. Miles de trabajadores despedidos
están afiliados el 12.4% (Grupo
por la liquidación y reestructuración de las instituciones
de
Economía
de la
Salud, 2003).
públicas de salud, contratación temporal que se hace a
En relación con el uso efectivo de los servicios de
través de cooperativas intermediadoras precarizando
salud las razones más frecuentes para no acudir a éstos
las condiciones de trabajo y disminuyendo el monto
tiene que ver con los costos que generan, bien por las
salarial. La situación es tan grave que para cientos de
cuotas moderadoras y los Copagos en el régimen con-
trabajadores formales del sector público se ha vuelto
tributivo, o por el pago porcentual que se deben hacer
común que pasen meses sin recibir salario. Esta situación
del costo de los servicios en el régimen subsidiado.
es reflejo de la lógica de mercado que contiene costos y aumenta ganancias también por la vía del manejo de
Quejas, reclamaciones y tutelas en salud por doquier
lo laboral.
Son miles de casos de violación al derecho a la salud,
Un alto porcentaje de la fuerza de trabajo de salud
muchos de los cuales se evidencian en el conjunto de tu-
pasó a ser contratado por las aseguradoras y prestadoras
telas (recurso de amparo) para proteger este derecho.
en modalidades temporales y de subcontratación (en ge-
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
neral a través de una figura perversa llamada cooperativas
quidadas. Por supuesto se entiende claramente que lo
o asociaciones de trabajo que desvirtúa la esencia del
que acá ha primado son los grandes flujos de capital
cooperativismo) y desde esta relación laboral subordi-
que atraviesan a estos sectores y que el sector privado
nada se imponen condiciones en aspectos básicos de la
se los viene apropiando. No es gratuito que algunas
relación del profesional de la salud con el paciente.
de las EPS privadas estén ranqueadas dentro de las
Esta situación ha implicado que las aseguradoras
100 empresas más grandes de Colombia, con un
y las prestadoras definan la forma como se contrata el
crecimiento financiero para el año 2003 del 18.26%,
talento humano de salud, la manera como debe trabajar
cinco veces superior al promedio nacional que fue del
en términos de tiempos y ritmos, que tipo de conductas
3.74% (Informe Especial, 2004).
terapéuticas pueden o no pueden desarrollar y el monto de pago de sus honorarios. Esto explica la imposición sobre la mano de obra médica de ver un volumen alto de
Ruptura del tejido social
paciente por hora (por lo cual los tiempos de consulta se
El modelo esta fijado sobre una base de focalización
redujeron, sin tener en cuenta los estándares internacio-
de subsidios para incorporar sectores pobres de la po-
nales) y de imponer ahorro de gastos por diversas vías:
blación al aseguramiento, y ha generado disputas entre
solicitud del mínimo de exámenes clínicos y prescripción
sectores sociales por el acceso a estos subsidios llevando a
del menor número de medicamentos.
rupturas dentro de las comunidades e incluso al interior
Esto a su vez ha llevado a un deterioro de la calidad
de organizaciones sociales, asunto que ha sido denun-
de los servicios asistenciales. Los casos de iatrogenia
ciado por las propias organizaciones, especialmente del
ahora son múltiples.
campo y del sector indígena.
Degradación de la institucionalidad pública de la seguridad social Este modelo desestructuró la institucionalidad pública en seguridad social con que contaba el país. La
LOS AJUSTES DE TUERCA A LA POLÍTICA PRIVATIZADORA DE SALUD
Caja Nacional de Previsión (Cajanal) que cubrió la seguridad social de los trabajadores oficiales fue liquidada
Durante estos años de implementación de la políti-
hacia finales del año 2000. El Instituto de los Seguros
ca de estado en salud en Colombia a través de la puesta
Sociales (ISS) se fue desmontando paulatinamente y en
en escena de la Ley 100 de 1993, los gobiernos de turno
el año 2003 solo tenía tres millones de afiliados estando
han buscado profundizar el modelo privatizador, que
en 1996 con diez millones, asunto que fue inverso para
de entrada no lograron, dada la resistencia de sectores
las EPS privadas (Torres, 2006B) y en 2007 se le dio la
progresistas en el país.
estocada final a partir de separar sus áreas administrativas
Como estrategias para avanzar en esta vía se han
de las de prestación y empezarse a liquidar esas áreas de
utilizado principalmente tres herramientas. De un lado,
prestación. En este año de 2008 se dará el proceso de
la orientación del Banco Mundial de impulsar la nueva
liquidación completo del ISS.
concepción de protección social derivada del deno-
Al caso de Cajanal y el ISS, se suma al caso de
minado manejo social del riesgo, que lleva a impulsar
otras empresas del Estado que fueron vendidas o li-
programas de transferencias en efectivo condicionadas
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
para los más pobres, junto con reformas estructurales
ciudadanos demostrar capacidad de pago para acceder
de los sistemas de salud hacia sistemas de aseguramien-
al aseguramiento, definiendo un conjunto mínimo de
to individual con subsidio a la demanda para pobres.
intervenciones en salud (POS), cambiando la concepción
Modelo acogido por Colombia y que viene impulsando
de salud pública al restringirla al desarrollo de acciones de
el país a través del programa de familias en acción y del
bajo costo y alto impacto a partir de la lógica de factores de
régimen subsidiado de salud.
altas externalidades y un cambio en los subsidios estatales
De otro lado, la suscripción de un tratado de libre
pasando de los de oferta a los de demanda, entregados
comercio con Estados Unidos, que busca en el compo-
a través de una política de focalización que incorpora al
nente de salud profundizar la privatización del sector al
aseguramiento a sectores sociales marginales (Carmona;
ahondar la concepción de la salud como bien privado
Molina; Casallas, 2003).
de consumo, ampliar el mercado de servicios de salud
La implementación de este modelo de salud de
a las multinacionales farmacéuticas, de aseguramiento
corte neoliberal ha venido instalando un conjunto de
y de prestación de servicios tanto de atención, como de
conceptos y procesos en el país en contra vía de la ga-
educación en salud, alejando a la salud de su realización
rantía del derecho a la salud, entre los que se destacan
como derecho humano y bien público. Este Tratado de
(Hernández, 2003A; Carmona, 2006):
Libre Comercio (TLC) de ser firmado (afortunadamente se detuvo su firma en el Congreso de Estados Unidos),
• se naturaliza que la salud es un bien privado de
será sin lugar a duda un ajuste de tuerca en el proyecto
consumo al satisfacer necesidades individuales por las
neoliberal de privatización de sectores como el de la
que se esta dispuesto a pagar;
seguridad social y la salud (Torres, 2006C). Por último, por las presiones políticas de diversos
• se separa la atención individual de la enfermedad
sectores se impulso una reforma a la Ley 100 dada sus
de la atención colectiva. Los campos de la salud pública y
limitaciones y efectos negativos, la cual quedo normada
la promoción de la salud son marginados y disminuidos
en la Ley 1.122 de 2007, la cual mantuvo el modelo de
en su potencial transformador de la situación de salud. En
aseguramiento e intermediación, garantizando el juego de
esta lógica de mercado promocionar y prevenir la salud
los actores privados tanto en el componente de asegura-
no es rentable, el negocio esta en la venta de servicios
miento como de prestación de servicios a la enfermedad,
individuales de atención a la enfermedad;
sin resolver los problemas de fondo que derivan de una política con este tipo de orientación (Torres, 2007).
• se producen exclusiones e inequidades propias del mercado: hay una salud para ricos (medicina privada); una salud para sectores asalariados (aseguramiento) y una salud para pobres (redes públicas de salud);
CONCLUSIONES • se produce una serie de barreras administrativas, La Ley 100 de 1993 instauró en Colombia un siste-
económicas, geográficas y culturales para el acceso a los
ma de aseguramiento individual en salud que modificó el
servicios, como mecanismos de contención de costos
papel del Estado en la prestación de estos servicios dando
para el aumento de las utilidades del actor de mercado
mayor participación al sector privado; imponiendo a los
más beneficiado: las aseguradoras (EPS) privadas;
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Tovar, M.T. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
• el modelo de salud es homogenizador, no reconoce las diferencias en términos de territorio, clase, etnia, género, diversidad sexual; • el modelo se entroncó perfectamente con la nueva orientación de comienzo de milenio del Banco Mundial denominada manejo social del riesgo, que promueve el enfrentamiento y resolución de las diversas contingencias sociales, sanitarias y económicas a que están expuestas las personas desde el ámbito individual y familiar, reforzando que la protección social es un asunto de mercado donde el Estado es regulador de este y asignador de subsidios. Las orientaciones y resultados del modelo de salud en Colombia que se han descrito, permiten decir que no puede ubicarse como un modelo exitoso y con legitimidad exportable y que más bien se ve la urgente necesidad de establecer una política que coloque el bienestar y la promoción de la salud en el centro y razón de ser del modelo de salud, en una perspectiva universal y pública, y no como un asunto subordinado a la lógica de los intereses particulares del mercado, lo que debe permitir concretar
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AGRADECIMENTOS
/ ACKNOWLEDGEMENTS
A revista Saúde em Debate agradece a cooperação dos Consultores ad hoc que colaboraram no processo editorial das revistas n.76/75/77 e n.78/79/80 AMÉLIA COHN
MAGDA DIMENSTEIN
ANA LUIZA STIEBLER VIEIRA
MAGDA VAISSMAN
ANA MARIA COSTA
MÁRCIA CAR
ANA MARIA MALIK
MARIA HELENA MACHADO
ANDRÉA GUERRA
MARIA HELENA MENDONÇA
ANNA CHIESA
MARIA ISABEL BALTAR DA ROCHA
ÁQUILAS MENDES
MARIA LUIZA HEILBORN
ASSIS MAFORT
MARIA TERESA S. SOARES DE BRITO E ALVES
CÉLIA MARIA DE ALMEIDA
MARIANA BARCINSKI
DULCE MARIA SENNA
MARTA MARIA ALVES DA SILVA
ELIANE GONÇALVES
MYRNA COELHO
EMIKO EGRY
NINA ISABEL SOALHEIRO
ESTELA AQUINO
PATRÍCIA DORNELLES
EVERARDO DUARTE NUNES
RENATO VERAS
FÁTIMA CORRÊA OLIVIER
ROBERTO PASSOS NOGUEIRA
FERNANDO FREITAS
ROSANA ONOCKO CAMPOS
GREICE MENEZES
SARAH ESCOREL
GUILHERME CASTELO BRANCO
SILVIO YASUI
IANNI REGIA SCARCELLI
SIMONE GONÇALVES
IZABEL PASSOS
SIMONE MONTEIRO
JOSÉ AUGUSTO C.BARROS
SONIA BARROS
JOSÉ JUSTO STERZA
SONIA FLEURY
JOSÉ LUIS TELLES
TERESA SEABRA
JUAN STUARDO ROCHA
THOMAS JOSUÉ SILVA
JUAREZ PEREIRA FURTADO
TÚLIO FRANCO
KAREN GIFFIN
VICTOR VALLE
KATHIE NJAINE
VOLNEI GARRAFA
LUCIA C. DOS SANTOS ROSA
WALTER OLIVEIRA
LUCIENE KANTORSIKI
WANDA ESPIRITO SANTO
LYGIA MARIA FRANÇA PEREIRA
WILZA VILLELA
Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 220, jan./dez. 2008
Associe-se ao Cebes e receba as nossas revistas O Cebes tem duas linhas editoriais. a revista Saúde em Debate, que o associado recebe quadrimestralmente em abril, agosto e dezembro, e a Divulgação em Saúde para Debate, cuja edição tem caráter temático, sem periodicidade regular.
QUEM SOMOS Desde a sua criação em 1976 o Cebes tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 31 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, em movimentos sociais, nas instituições ou no parlamento. Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o Cebes continua empenhado em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas políticas e nas práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobre as questões de saúde; e, em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade mais justa. A produção editorial do Cebes é resultado do trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação. A ficha abaixo é para você tornar-se sócio ou oferecer a um amigo! Basta enviar a taxa de associação (anuidade) de R$ 150,00 (institucional), R$ 100 (profissional) ou R$ 50,00 (estudante) em cheque nominal e cruzado, junto com a ficha devidamente preenchida, em carta registrada, ou solicitar, nos telefones ou e-mail abaixo.
CORRESPONDÊNCIAS DEVEM SER ENVIADAS PARA Cebes – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4.036 – Sala 802 – Manguinhos – 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140 e 3882-9141 – Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br / www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] / [email protected]
FICHA DE INSCRIÇÃO (preencher em letra de forma) Valor: R$ 100,00 Para efetuar depósito: Caixa Econômica Federal – Agência: 1343 C/C: 0375-4 Operação: 003 CNPJ: 48.113.732/0001-14 Pagamento de Anuidade
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INSTRUÇÕES AOS AUTORES - SAÚDE EM DEBATE A revista Saúde em Debate, criada em 1976, é uma publicação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), voltada para as Políticas Públicas na área da saúde. Publicada quadrimestralmen-
Documentos e depoimentos Serão aceitos trabalhos referentes a temas de interesse histórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial.
te nos meses de abril, agosto e dezembro, é distribuída a todos os associados em situação regular com a tesouraria do Cebes.
SEÇÕES DA PUBLICAÇÃO
Aceita trabalhos inéditos sob forma de artigos originais, resenhas de livros de interesse acadêmico, político e social e
A revista está estruturada com as seguintes seções:
depoimentos.
Editorial
Os textos enviados para publicação são de total e exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desde que identificada a fonte e a autoria. A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres
Apresentação Artigos Temáticos Artigos de Tema Livre Artigos Internacionais Resenhas
do Conselho Editorial Ad-Hoc estabelecido para cada número
Depoimentos
da revista. Eventuais sugestões de modificações da estrutura ou
Documentos
de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações
APRESENTAÇÃO DO TEXTO
depois que os trabalhos forem entregues para a composição. Seqüência de apresentação do texto MODALIDADES DE TEXTOS ACEITOS PARA PUBLICAÇÃO
Os artigos podem ser escritos em português, espanhol ou inglês. Os textos em português e espanhol devem ter título
Artigos originais
na língua original e em inglês. Os textos em inglês devem
1. Pesquisa: artigos que apresentem resultados finais de
ter título em inglês e português e o título, por sua vez, deve
pesquisas científicas, com tamanho entre 10 e 15 laudas.
expressar claramente o conteúdo do artigo.
2. Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema
A folha de apresentação deve trazer o nome completo
específico de relevante interesse para a conjuntura das políticas
do(s) autor(es) e, no rodapé, as referências profissionais (con-
de saúde no Brasil, com tamanho entre 10 e 15 laudas.
tendo filiação institucional e titulação) e o e-mail para contato.
3. Revisão: artigos com revisão crítica da literatura sobre um tema específico, com tamanho entre 10 e 15 laudas.
Quando o artigo for resultado de pesquisa com financiamento, citar a agência financiadora.
4. Relato de experiência: artigos com descrições de expe-
Apresentar resumo em português e inglês (abstract)
riências acadêmicas, assistenciais e de extensão, com tamanho
ou espanhol e inglês, no qual fique clara uma síntese dos
entre 10 e 15 laudas.
propósitos, métodos empregados e principais conclusões do trabalho com o mínimo de três e máximo de cinco descrito-
Resenhas
res (keywords), não ultrapassando o total de 700 caracteres
Serão aceitas resenhas de livros de interesse para a área de
(aproximadamente 120 palavras). Para os descritores, utilizar
políticas públicas de saúde, a critério do Conselho Editorial.
os termos apresentados no vocabulário estruturado (DeCS),
Os textos deverão apresentar uma noção do conteúdo da obra,
disponíveis no endereço http://decs.bvs.br. Caso não sejam
de seus pressupostos teóricos e do público a que se dirige em
encontrados descritores relacionados à temática do artigo, po-
duas ou três laudas.
derão ser indicados termos ou expressões de uso conhecido.
Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito: a. as marcações de notas de rodapé no corpo do texto
Declaração de autoria e de responsabilidade Segundo o critério de autoria do International Commit-
deverão ser sobrescritas. Ex.: Reforma Sanitária1
tee of Medical Journal Editors, os autores devem contemplar
b. para as palavras ou trechos do texto destacados a critério
as seguintes condições: a) Contribuir substancialmente para
do autor, utilizar aspas simples. Ex.: ‘porta de entrada’.
a concepção e planejamento, ou análise e interpretação dos
c. quadros e gráficos deverão ser enviados em impressão de
dados; b) Contribuir significativamente na elaboração do
alta qualidade, em preto-e-branco e/ou escala de cinza, em
rascunho ou revisão crítica do conteúdo; c) Participar da
folhas separadas do texto, numerados e intitulados correta-
aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é neces-
mente, com indicações das unidades em que se expressam
sário que se assine a seguinte Declaração de Autoria e de
os valores e fontes correspondentes. O número de quadros
Responsabilidade:
e gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por artigo. d. os autores citados no corpo do texto deverão estar escritos
“Certifico que participei de forma suficiente na concep-
em caixa-baixa (só a primeira letra maiúscula), observando-
ção deste trabalho para tornar pública minha responsabilidade
se a norma da ABNT NBR 10520:2001 (disponível em
pelo seu conteúdo. Certifico que o manuscrito representa
bibliotecas). Ex.: Conforme Mario Testa (2000).
um trabalho original e que nem este manuscrito, nem outro
e. as referências bibliográficas deverão ser apresentadas,
com conteúdo substancialmente semelhante de minha au-
no corpo do texto, entre parênteses com o nome do
toria foi publicado ou submetido a apreciação do Conselho
autor em caixa-alta seguido do ano e, em se tratando
Editorial de outra revista, quer seja no formato impresso ou
de citação direta, da indicação da página. Ex.: (Miranda
no eletrônico.”
Netto, 1986; Testa, 2000, p. 15). Conflitos de interesse As referências bibliográficas deverão ser apresentadas
Os trabalhos encaminhados para publicação deverão
no final do artigo, observando-se a norma da ABNT NBR
conter informação sobre a existência de algum tipo de con-
6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exemplos:
flito de interesse entre os autores. Os conflitos de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao
Carvalho, A.I. Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do
financiamento direto da pesquisa, mas também ao próprio vínculo empregatício.
Estado. In: Fleury, S.M.T. (Org.). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.
Ética em pesquisa
Cohn, A.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular
No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de 1997
e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do
e que envolvam seres humanos nos termos do inciso II da
município de São Paulo. Saúde em Debate, Londrina (PR),
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (pesquisa
n. 38, p. 90-93, 1993.
que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de
Demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.
forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais) deverá ser
Extensão do texto
encaminhado um documento de aprovação da pesquisa pelo
O artigo deve ser digitado no programa Microsoft®
Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada.
Word, ou compatível, em página padrão A4, com fonte
No caso de instituições que não disponham de um Comitê
Times New Roman tamanho 12 e espaçamento entre linhas
de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada a aprovação pelo
de 1,5.
CEP onde ela foi aprovada.
Fluxo dos originais submetidos à publicação
Caso haja divergência de pareceres, o artigo será encami-
Todo original recebido pela secretaria do Cebes é
nhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho
encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação da
Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer).
pertinência temática e observação do cumprimento das
No caso de solicitação de alterações no artigo, poderão ser
normas gerais de encaminhamento de originais. Uma vez
encaminhados em até três meses.
aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a dois membros do quadro de revisores (pareceristas) da revista. Os pareceristas serão escolhidos de acordo com o tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros que não sejam do mesmo estado da federação que os autores. Os conselheiros têm um prazo de 45 dias para emitir o parecer. Ao final do prazo, caso o parecer não tenha sido enviado, o consultor será procurado e a oportunidade de
Ao fim desse prazo, e não havendo qualquer manifestação dos autores, o artigo será considerado como retirado. O modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico está disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br Envio do artigo Os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial devem ser enviados através do site da revista: www.saudeemdebate.org.br.
encaminhamento a outro conselheiro será avaliada. O formulário para o parecer está disponível para consulta no
Endereço para correspondência
site da revista na Internet. Os pareceres sempre apresenta-
Avenida Brasil, 4.036, sala 802
rão uma das seguintes conclusões: aceito para publicação;
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ)
aceito para publicação (com sugestões não impeditivas);
Tel.: (21) 3882-9140
reapresentar para nova avaliação após efetuadas as modi-
Fax: (21) 2260-3782
ficações sugeridas; recusado para publicação.
E-mail: [email protected]
INSTRUCTION FOR AUTHORS - SAÚDE EM DEBATE The magazine Saúde em Debate, created in 1976, is a
Documents and declarations
publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),
Papers referring to themes of historical or conjectural
directed to Public Policies in the health field. Published every four
interest will be accepted under the criteria of the Editorial
months, in April, August and December, it is distributed to all of
Board.
the associates in regular situation with Cebes’ treasurer’s office. It receives unpublished works under the form of original
SECTIONS OF THE PUBLICATION
articles, book reviews of academic, political and social interest and declarations. The texts that are sent for publication are of total and exclusive responsibility of the authors. The total or partial reproduction of the articles is permitted, as long as identified the source and authorship. The publication of papers is conditioned to the opinions
The magazine is structured with the following sections: Editorial Presentation Thematic articles Free theme articles
of the Editorial Board Ad-Hoc established for each issue of the
International Articles
magazine. Occasional suggestions of alterations in structure
Reviews
or content, from the Board, will be previously resolved with
Declarations
the authors. Additions or modifications will not be admitted
Documents
once the works have been delivered for composition. TEXT PRESENTATION MODALITIES OF TEXTS ACCEPTED FOR PUBLICATION
Sequence of text presentation The articles may be written in Portuguese, Spanish or
Original articles Research: articles that present final results of scientific researches, between 10 and 15 sheets. Assays: articles containing a critical analysis about a specific subject of relevant interest for the health policies conjuncture in Brazil, between 10 and 15 sheets. Review: articles with a critical review of literature about a specific subject, between 10 and 15 sheets. Experience report: articles containing descriptions of academic, attendance and extension experiences, between 10 and 15 sheets.
English. The texts in Portuguese and Spanish must contain the title in the original language and in English. The texts in English must contain the title in English and in Portuguese, and it must express the content of the article clearly. The presentation sheet must have the author’s full name and, at the footnote, the professional references (containing institutional affiliation and title) and e-mail for contact. When the article is a result of financed research, cite the financing agency. Present the abstract in Portuguese and English, or Spanish and English, so that a summary of the purposes, methods
Reviews
used and main conclusions of the paper is clear with the
Book reviews of interest for the health public policies
minimum of three and maximum of five keywords, without
field will be accepted under the criteria of the Editorial Board.
exceeding the total of 700 letters (approximately 120 words).
The texts must present a notion about the content of the
For the keywords, use the terms presented in the structured
paper, of its theoretical purposes and of the public to which
vocabulary (DeCS), available on http://decs.bvs.br. In case the
it is directed in two or three sheets.
keywords related to the theme of the article are not found, it
Text extension
is possible to indicate terms or expressions commonly used.
The article must be typed on Microsoft® Word software,
After, the article itself is presented: a. the footnote markings must be superscribed. Ex: Sani-
or compatible, in pattern page A4, font Times New Roman, size 12 and 1,5 between lines.
tary Reform1 b. for words or extracts of the text that stand out under the author’s criteria, use simple quotation marks. Ex: ‘front door’.
Declaration of authorship and responsibility According to the criteria of authorship of the International Committee of Medical Journal Editors, the authors
c. boards and graphs must be sent in high quality print-
must contemplate the following conditions: a) to contrib-
ing, black and white and/or gray scale, in sheets that
ute substantially for the conception and planning, or data
are apart from the text, numbered and correctly en-
analysis and interpretation; b) to contribute considerably for
titled, containing indications of the units in which are
the elaboration of the draft or critical review of the content;
expressed the correspondent values and sources. The
c) to participate in the approval of the final version of the
number of boards and graphs must be, at most, five per
manuscript. For that, it is necessary to sign the following
article.
Declaration of Authorship and Responsibility:
d. the authors that are cited in the text must be written in small letters (only the first one is capital), observing the
“I certify that I have participated sufficiently for the
ABNT NBR 10520:2001 norm (available in libraries).
conception of this paper to make public my responsibility
Ex: According to Mario Testa (2000).
for its content. I certify that the manuscript represents an
e. bibliographical references must be presented in the text,
original paper and that not this manuscript nor any other
in parenthesis, with the name of the author in capital
with a substantially similar content of my authorship has been
letters followed by the year and, in the case of a direct
published or submitted to the analysis of an Editorial Board
quotation, the indication of the page. Ex: (Miranda
from another magazine, printed or electronic”.
Netto, 1986; Testa, 2000, p. 15). Conflicts of interest Bibliographical references must be presented at the end
The texts sent for publication must contain information
of the article, observing the ABNT NBR 10520:2001 norm
on the existence of any kind of conflict of interest among the
(available in libraries).
authors. The conflicts of financial interest, for instance, are not only related to the direct financing of the research, but
Examples: Carvalho, A.I. Conselhos de saúde, responsabilidade
also to the employment bond itself. Ethics in research
pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do
For researches initiated after January 1997 that involve
Estado. In: Fleury, S.M.T. (Org.). Saúde e democracia: a luta
human beings under the terms of the incise II, Resolution
do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p. 93-112.
196/96 of the Health Councils (research that individually
Cohn, A.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular
or collectively involves the human being, directly or indi-
e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do
rectly, in its totality or partially, including the management
município de São Paulo. Saúde em Debate, Londrina (PR),
of information or materials), a document of approval of the
n. 38, p. 90-93, 1993.
research by the Committee of Ethics in Research from the
Demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.
institution where it was developed must be sent. In the case
of institutions that do not have a Committee of Ethics in
In case there is a divergence in reports, the article will
Research, an approval by the Post Office Region where it has
be sent to a third counselor to decide (the Editorial Board is
been approved must be presented.
allowed, under its criteria, to emit a third report). In the case of alteration requirements in the article, they can be sent in
Flow of originals submitted to publication
up to three months.
Every original received by Cebes’ office is forwarded to the
At the end of this deadline, and if there is no mani-
Editorial Board for the evaluation of thematic pertinence and
festation from the authors, the article will be considered as
the observation of the fulfillment of general rules for directing originals. Once they have been accepted for analysis, the originals are forwarded to two members of the reviewer’s board (reporters) of the magazine. The reporters will be chosen according to the expertise and the theme of the article, giving priority to counselors who are not from the same State of the federation as the authors. The counselors have 45 days to emit the report. On the deadline, if it has not been sent, the consultant will be
cancelled. The model of the report used by the Scientific Council is available on http://www.saudeemdebate.org.br. Sending the article The work to be analyzed by the Editorial Board must be sent by the magazine’s website: www.saudeemdebate.org.br.
informed and the opportunity to forward it to another counselor will be analyzed. The form for the report is available for consulta-
Mail address
tion in the website of the magazine in the internet. The reports
Avenida Brasil, 4.036, sala 802
will always present one of the following conclusions: accepted
CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ)
for publication; accepted for publication (with non restraining
Phone: (21) 3882-9140
suggestions); present again for new evaluation after making the
Fax: (21) 2260-3782
suggested modifications; refused for publication.
E-mail: [email protected]
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Saúde em Debate
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)
A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)
Diretoria Executiva
Presidente
Sonia Fleury (RJ)
1O Vice-Presidente
Ligia Bahia (RJ)
2O Vice-Presidente
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3O Vice-Presidente
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2O Suplente
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Diretor Ad-hoc
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Diretor Ad-hoc
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EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR
REVISÃO DE TEXTO, CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Zeppelini Editorial
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
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Corbã Editora Artes Gráficas TIRAGEM 2.000 exemplares
CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL
PROOFREADING COVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING Zeppelini Editorial
PRINT AND FINISH Corbã Editora Artes Gráficas NUMBER OF COPIES 2,000 copies
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Edmundo Gallo (DF) Francisco Campos (MG) CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL
Paulo Buss (RJ)
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Assis Mafort (DF)
Naomar de Almeida Filho (BA)
Sonia Ferraz (DF)
José Carlos Braga (SP)
Maura Pacheco (RJ)
Gilson Cantarino (RJ)
Cornelis Van Stralen (MG)
Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.
This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.
Capa em papel cartão supremo 250 gr
Cover in premium card 250 gr
Miolo em papel kromma silk 80 gr
Core in kromma silk 80 gr
Editora Executiva / Executive Editor Marília Correia CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL Sarah Escorel (RJ) Odorico M. Andrade (CE) Lucio Botelho (SC) Antonio Ivo de Carvalho (RJ) Roberto Medronho (RJ) José Francisco da Silva (MG) Luiz Galvão (WDC)
Indexação / INDEXATION
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS) Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe
André Médici (DF) Jandira Feghali (RJ) José Moroni (DF) Ary Carvalho de Miranda (RJ) Julio Muller (MT) Silvio Fernandes da Silva (PR) Sebastião Loureiro (BA)
SECRETARIA / SECRETARIES
Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Fax.: (21) 2260-3782 Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]
Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.
Apoio A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos
v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
Saúde em Debate
v.32
n.78/79/80
jan./dez. 2008
Cebes
ISSN 0103-1104