S Clemente Maria Hofbauer

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SÃO CLEMENTE MARIA HOFBAUER Insigne propagador da CONGREGAÇÃO DO SS. REDENTOR

pelo P. OSCAR CHAGAS AZEREDO C.Ss.R.

1928 Edição da Livraria Nossa Senhora Aparecida Edição PDF de Fl.Castro, abril 2002

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PRÓLOGO Mais uma hagiografia entregue aos católicos da nossa Pátria. Abrindo o livro esperam alguns deleitar-se na leitura empolgante de sensacionais milagres, êxtases contínuos, penitências sobre-humanas, na certeza de que santo só é aquele que opera prodígios estupendos. Julgam que a santidade consiste nos milagres e que o Santo, alheio a este mundo, deve habitar uma altura inacessível e ser dotado do dom da impecabilidade. Quanto mais estupendos os prodígios, maior o Santo. Para eles a santidade é coisa que se admira — e que muitos não crêem — e que se não pode imitar. Extasiam-se ante a vida extraordinária de um S. Geraldo que desde o berço brincava com os milagres e vivia em êxtases contínuos; param perplexos ante a poesia perfumosa de um coração santamente infantil de uma Teresinha, que nas doçuras de uma alma bondosa e calma se desfazia nos sentimentos e arroubos místicos da união íntima com Deus — e sentem certa repugnância daqueles que nos combates se exercem pela prática das mais acrisoladas virtudes sem as exterioridades de fatos extraordinários. É um engano. A santidade não consiste absolutamente nos milagres que Deus opera, quando lhe apraz, e que são apenas a manifestação, nem sempre necessária, da santidade interna. A verdadeira santidade está em executar em tudo e do modo mais perfeito possível a vontade santíssima de Deus. Ela depende não só do socorro do alto mas também — e principalmente — da cooperação do homem, sem a qual não pode haver merecimento nem recompensa. Em São Clemente Maria não encontramos a multidão espantosa dos milagres nem os êxtases continuados; em sua vida não se manifesta um coração convulsionado por violentas paixões internas com os enredos empolgantes que costumam adornar os romances fantásticos. A grande de São Clemente é bem diversa; de coração singelo e pacato sabia conviver com a sociedade sem nela se manchar; era simples, amável, alegre, despreocupado a cantar hinos religiosos e, na intimidade, capaz de gracejos inocentes. Os combates que São Clemente teve de travar em vida são todos de ordem exterior: as perseguições que suportou, os desgostos por que passou, o fracasso dos seus esforços, e o aparente insucesso das suas obras: em tudo isto São Clemente tornou-se modelo da mais inabalável constância e da mais inteira confiança em Deus, esperando qual outro Abraão contra a esperança. Em tudo ele é digno da nossa imitação, e isso é para nós a coisa mais importante na vida dos Santos. Clemente recebera de Deus um papel especial a representar sobre a terra. Nas grandes calamidades e nos cataclismos sociais Deus sempre suscita

NIHIL OBSTAT. S. Pauli, 22 Februarii 1927.

Can. Dor. Joannes Martins Ladeira Censor. IMPRIMI POTEST. Pe. Estevam Maria Vice-Provincial IMPRIMATUR Mons. Pereira Barros Vig. Geral

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um herói que lhes faça frente e lhes possa apresentar remédio salutar. Quando Clemente apareceu reinava na Europa o indiferentismo religioso a par do racionalismo mais declarado, produzido pelas idéias josefinas. Na sua infância Clemente assistira ao espetáculo desolador da guerra dos sete anos; nos anos do seu apostolado presenciou o desmembramento da Polônia, e mais tarde foi vítima das arbitrariedades de Napoleão. A vida agitada da Europa favorecia o torpor e indiferentismo religioso. Clemente, com a sua constância de aço e com o seu coração afogueado de amor à santa religião, conseguiu quebrar o gelo e despertar a vida religiosa não só entre o povo, mas ainda nos professores e alunos da Universidade e, com eles, nas altas rodas sociais. Os nossos tempos são, mais ou menos, como os de São Clemente; vemos o racionalismo dominar as massas, o sentimentalismo avassalar pessoas aliás bem intencionadas. Precisamos de homens que imitem o grande Apóstolo de Viena, inflamados do mesmo zelo e do mesmo amor à Santa Igreja. São Clemente é um Santo moderno, no sentido verdadeiro da palavra. Também hoje podemos dizer como outrora o vigário de Babenhausen: “Dai-me quatro Clementes... que eu converterei impérios”. No nosso meio começa felizmente a despertar-se uma nova vida de piedade sólida e esclarecida. Do terreno putrefato do racionalismo levantam-se flores mimosas de virtude, centros de piedade. Uma árvore frondosa estende seus ramos produzindo os mais saborosos frutos: a “Liga Católica Jesus, Maria, José”. São homens de fé esclarecida que tomaram por lema da sua vida restaurar santamente a família brasileira. Ora, especialmente para os liguistas quisemos escrever esta biografia, onde encontrarão o modelo consumado e o guia seguro na grande obra da restauração social. Que cada liguista manuseie, estude e saboreie, em família, essa vida cheia de peripécias guiada pela luz da fé! É Clemente o propagador insigne da Congregação Redentorista, e quem é que não conhece ainda o redentorista, que com sua batina preta e colarinho branco, e o rosário da Virgem pendente ao lado, percorre as cidades e aldeias de nossa Terra evangelizando e chamando as almas para Deus? Que Ele pois mereça a confiança e o amor do povo brasileiro! *** E agora, livrinho meu, levanta o vôo e percorre o Brasil de Norte a Sul cantando as glórias de São Clemente; faze-o conhecido e amado dos nossos patrícios! Conta às criancinhas a docilidade e a obediência do filhinho do cortador de Tasswitz, e aos operários a humildade do padeiro de Znaim; descreve aos inocentes a pureza virginal de Clemente, e aos pecadores o seu zelo e amor das almas. Penetra os conventos e descreve aos religiosos a vida interior e recolhida do grande Apóstolo do Norte; não receies entrar em todos os lares e falar a todos os corações das virtudes do grande Redentorista. Se caíres nas mãos de um sacerdote, sobretudo nas de um vigário, canta-lhe melodiosamente os trabalhos de S. Beno e de Viena. Não canses, livrinho meu, nem desanimes, corre, voa ganhando os cora3

ções para Jesus! Desejo-te, de coração, a melhor viagem e os maiores triunfos para a glória do teu herói. S. Paulo, Festa do Santíssimo Redentor, 18 de julho de 1926. O AUTOR. Neste trabalho foram utilizadas as mais conhecidas biografias de São Clemente, mormente as seguintes: Hofer, Bauchinger, Innerkofler, Haringer, Pichler, Brunner, Freund, Saint-Omer, autores todos da mais comprovadas competência e dignos de toda a fé.

NA CAPITAL DA POLÔNIA (1787-1808)

ÍNDICE PARTE PRIMEIRA LUTA PELO SACERDÓCIO (1751-1786) CAPÍTULO I No lar paterno A pátria do Santo — Seu nascimento — Os pais de Clemente — Primeiras dores — É Ele o teu pai... — Ocupações prediletas — Passatempos — O futuro Apóstolo. CAPÍTULO II Os primeiros estudos Procura um ofício — Os sentimentos nobres — O São Cristóvão — No convento dos Premonstratenses — A grande carestia — Entre os seminaristas do Convento — Dificuldade nos estudos. CAPÍTULO III Peregrinações O ermitão de Mühlfrauen — As romarias e os romeiros — Abandona o ermitério — Vai à Boêmia e volta a Viena — Romaria à Itália — Volta à Áustria e torna novamente a Roma — Tívoli — Outra vez em Viena — As senhoras von Maul. CAPÍTULO IV Na universidade de Viena Os estudos na Áustria — Na universidade — Contradiz o professor — Encontro com Thadeu Hübl — A fé acima de tudo — As obras de Santo Afonso — Novamente em Roma. CAPÍTULO V O santo Redentorista Em Roma — O Senhor será um deles. Luta entre os dois peregrinos — É recebido na Congregação Redentorista. — O noviciado — O espírito da Congregação — A uva tentadora — Os noviços italianos — Alegria e profecia de Sto. Afonso — Profissão — Ordenação — Transpõe os Alpes. PARTE SEGUNDA

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CAPÍTULO I Os primeiros anos em Varsóvia Em Viena — Estado lamentável da religião na Áustria — Destina-se à Curlândia — Fica em Varsóvia — S. Beno — As primeiras dificuldades — Senhor, agora é tempo — Restaura a igreja — Visita de Sto. Afonso — Um colégio em Roma — Os grandes planos — Recrutamento — O demônio em ação. CAPÍTULO II O apostolado em Varsóvia Polônia e sua história — Finis Poloniae — O comando da Prússia — Os trabalhos apostólicos — Corpus Christi — O confessionário e o púlpito — Vida de convento — As escolas — Os oblatos Redentoristas — Apostolado da imprensa. CAPÍTULO III Viagens de fundação O desejo mais ardente — Mitau — Radzynim — Lutkowka — O Santo em Praga — Lindau — Em Viena — Morte inesperada — Novo recrutamento — Novas dificuldades com o governo — A imagem da Virgem. CAPÍTULO IV Os anos de 1798 a 1802 Os trabalhos do Santo — Uma cura curiosa — Conversões numerosas — A congregação dos Oblatos — Três missões em regra — Os padres de S. Beno — Date et dabitur — Isto foi para mim... — O Pe. Passerat — A direção do Seminário — Escolas paroquiais — Desinteligências e explicações — Os livre pensadores em ação — S. Beno hostilizado. CAPÍTULO V Na diocese da Constância Em Altötting — Monte Tabor — Pe. Passerat Reitor — Ordenação dos clérigos na Itália — As necessidades do novo convento — Clemente em Jestetten — O rico cardápio — Triberg, santuário da Virgem — Uma noite no paiol — Recepção em Triberg — Reanimação da vida de piedade — Raiva do demônio — Triberg abandonada. CAPÍTULO VI Na Suabia Ondas de soldados — Napoleão e Clemente — O manto ou a vida — Em Babenhausen — Weinried — Desejam confessar-se? — O rapaz que ri no sermão — A ferreira apostrofada — O violinista convertido — O rapaz libertino — Quebra vidraças e ganha uma missa — Vítima de calúnias — Montgelas — Perseguições. CAPÍTULO VII O último ano em S. Beno Um jantar depois da oração da noite — Perseguições em Varsóvia — Atentado contra o Pe. Thadeu — O escudo quebrado — Napoleão — A Baviera hostiliza os Redentoristas — Zelo admirável dos padres — Tristes acontecimentos em Varsóvia.

CAPÍTULO VIII A expulsão Verdadeira causa da expulsão — Davoust persegue os Benonitas — Solenidade da Páscoa — Decreto de Napoleão — Aviso do céu — Execução do Decreto — Resignação do Santo. PARTE TERCEIRA O APÓSTOLO DE VIENA (1808-1820) CAPÍTULO I Chegada à Viena e primeiros trabalhos Chega à Viena — Dificuldades com a polícia — O racionalismo na Áustria — Napoleão e Francisco da Áustria — Bombardeio de Viena — Batalha de Aspern — Na igreja dos Italianos — Os Mechitaristas — Trabalhos prediletos — Intimação do governo — Notícias de Valais — Fundação em Friburgo. CAPÍTULO II O primeiro ano em Santa Úrsula Obrigações do Reitor da igreja — Reformas — Santa Úrsula adquire grande nome — Os primeiros trabalhos na cura d’almas. CAPÍTULO III O CONGRESSO DE VIENA Clemente na lista dos bispos — Igreja nacional — O desinteresse pela religião no Congresso — Desunião de vistas — Os três defensores — Atrás dos bastidores — Trabalho depois do Congresso CAPÍTULO IV O sábio pregador Exposição original e simples — O médico subjugado — Um velho funcionário josefino — Rir-se por último — Sua mímica no púlpito — temas prediletos — Apreciações populares — Proibição de pregar... CAPÍTULO V O zeloso auxiliar nas pregações Conversão do poeta — Suas pregações — Trombeta do juízo — O orador dos eruditos — O discípulo do grande Mestre — O poeta e o dramaturgo — Esses moleques... CAPÍTULO VI O Santo ao altar O Serafim ante o tabernáculo — O humilde ajudante de missa — As piedosas traidoras — Cena comovente — O esmagador do josefismo — As quarenta horas. CAPÍTULO VII O devoto da Virgem Devoção combatida — O digno filho de S. Afonso — Invocações prediletas — O rosário sua biblioteca — O rosário à cabeceira dos doentes — A devoção a Maria; uma necessidade — Os Santuários da Virgem. CAPÍTULO VIII O prudente Confessor 5

Confessor procurado — O dia no confessionário — A Irmã Francisca — Luiza Xavier — O caminho mais seguro — Francisco Arrependido — A caixa de rapé — A senhora às margens do Danúbio — O Kraus escrupuloso — Pe. José no altar — A mulher sem pecados — Preparação contínua — Passy confessase sem o saber. CAPÍTULO IX O amigo dos doentes O caridoso enfermeiro — O neo-presbítero enfraquecido — A Religiosa neurastênica — O cão preto — O barão tuberculoso — O lobo convertido em cordeiro — Convertido pela água benta — Dois coelhos de uma cajadada — Um funcionário maçom morre santamente — Esforços de conversão — Conversão estupenda na hora da morte. CAPÍTULO X Sua dedicação aos pobres O pintor em apuros — A mulher esperta — A benfeitora oportuna — Multiplicação milagrosa — A postulante maravilhada — As dívidas das Ursulinas — O peixe pagador — Os sapatos da Irmã — O batalhão dos pobres. CAPÍTULO XI O sábio conselheiro O Espírito Santo lhe dirá — Ler romances — Pequenos presentes — Uma profecia — Interesse pelas vocações — Dedicação paternal. CAPÍTULO XII O Santo Superior Vida interior — Rigor na pobreza — Obediência prática — A vida de simplicidade — Humilhações edificantes — O exemplo escrupuloso — Os defeitos dos Santos — Uma precipitação — O dueto abençoado — A chave do enigma. CAPÍTULO XIII O amigo das crianças Porque amava a infância — O enxame de crianças — Honrosa excepção — Carlito obediente — A criança judia batizada — O mais belo vestido — As alunas das Ursulinas — Lição a um professor — O Colégio dos nobres — Promessas do arquiduque. CAPÍTULO XIV São Clemente e a mocidade O magnete admirável — Pedagogo ideal — Os êxtases do Santo — Os passeios pela cidade — Medonho temporal — As nuvens no jardim — Amor à pureza — Padre novo — Expor dúvidas — José Lobo — O despertador traidor — Os secretas. CAPÍTULO XV O bom pastor Em procura do pecador — Magnífica prece — Interessante diálogo — Frederico Schlegel convertido — Klinkowström e sua família — Os preconceitos — Antônio Pilat renuncia a maçonaria — Schlosser e sua família aos pés do Mestre — O temor da penitência na confissão. CAPÍTULO XVI O sábio Diretor das Ursulinas Que é a Religiosa — Da chácara ao convento — Deus ilumina os confesso-

res — Reforma as Ursulinas — Os trabalhos das religiosas — A Religiosa tíbia — A vontade de Deus — A obediência — A Religiosa nervosa — A vassoura usada — A Irmã tentada — A bruaca velha — As armas da mulher. CAPÍTULO XVII Sua fé profunda A fé profunda — O plano da Providência — O faro católico — O seu tesouro — O terço do Senhor — A boa intenção — Amor à Igreja — A Igreja na história — Os incrédulos — Respeito humano — Um professor — Um professor perigoso —Trabalho pela imprensa — A biblioteca popular. CAPÍTULO XVIII O amante da pobreza Que são as riquezas — O tesouro nas mãos — A cruz de brilhante — O quarto do Santo — A roupa do Servo de Deus — O belo Vigário Geral — As palavras de Jesus. CAPÍTULO XIX O Anjo de pureza A virtude angélica — As portas da impureza — As mulheres santas — Laconismo santo — A mortificação e a pureza — O cardápio de cada dia — Sua bebida usual — Necessárias explicações. CAPÍTULO XX O Coração bondoso Os princípios mundanos — Humildade necessária — O defensor dos oprimidos — O coração grato — Deogratias — Louvores humanos — Humildade de fato — Oculta os dons sobrenaturais — Humilhações na vida — O blasfemador arrependido — O perdão generoso. CAPÍTULO XXI Amor ao clero e à Congregação Amor ao Papa, aos Bispos e Sacerdotes — As pupilas de Deus — O sacerdote francês — Redentorista até a medula dos ossos — Cache-nez de seda — Exemplos de severidade e brandura — Enérgico protesto — Difusão da Congregação — Fundação na Valachia — Saudades da Polônia. CAPÍTULO XXII No combate com os maçons Sabelli imprudente — A causa da perseguição — As acusações — Aqui não é bom estar... — É cidadão austríaco — A busca na residência — A intimação — A palavra do monarca — Esperanças desfeitas. CAPÍTULO XXIII A Congregação na Áustria O Imperador visita o Papa — O memorandum — Começa com os jovens — Eu não o verei — Previsões — Resignação. CAPÍTULO XXIV Suspirando pelo céu O cortejo das Virgens — Sempre a trabalhar — O auxiliar enfermo — Desgraça é só o pecado — Missa por uma benfeitora — Bela profecia — Recebe a extrema-unção — Obediência edificante — Vou para o meu retiro — Morte santa — Na câmara ardente — Sepultamento magnífico. CAPÍTULO XXV 6

Retrato do Servo de Deus Testemunho de um dos discípulos — do Dr. Veith — do cônego Greif — de um amigo do Santo — de Jacoba de Welschenau — de Luiza Pilat — de um exjesuíta — do cardeal Rauscher. CAPÍTULO XXVI O Santo na glória Declaração de João Pilat — de Zacharias Werner — das Irmãs Ursulinas. CAPÍTULO XXVII O bondoso Taumaturgo As profecias do Santo — Conversões miraculosas — Protege nas vocações — Em grande falta de recursos — Mesmo em negócio de cozinha — O padroeiro dos enfermos: Ignez Fiath — Livra da morte — Paralisia e trismo — Chlorose complicado — Hidropisia — Tumores perigosos — Dores de garganta — Artrite — Varizes — Hemorragia — Escrofulas — Artroflogose — Reumatismo — Peritonite. CAPÍTULO XXVIII Na memória da Congregação e da Igreja As reuniões dos rapazes — Os primeiros noviços — Atividade do Pe. Passerat — Difusão da Congregação — A província do Rio — A província de S. Paulo — Aparecida, Campinas, Penha, Perdões, Araraquara, Cachoeira — Quadro sinótico. CAPÍTULO XXIX As Irmãs Redentoristas Em Scala — A Ordem das Irmãs Redentoristas — O seu fim principal — O seu hábito atraente — Sua propagação na Europa — Sua vinda ao Brasil — Seus progressos. CAPÍTULO XXX O seu sepulcro glorioso O seu sepulcro — Exumação — Beatificação — O seu triunfo no mundo — Canonização — O ofício e missa do Santo — Observação final.

PARTE PRIMEIRA Luta pelo sacerdócio (1751-1786) CAPÍTULO I

No lar paterno A pátria do Santo — Seu nascimento — Os pais de Clemente — Primeiras dores — É Ele o teu pai... — Ocupações prediletas — Passatempos — O futuro Apóstolo. Incontestavelmente um dos mais belos recantos da Europa é o sul da Morávia, cujas campinas sorridentes se cobrem de ondas de trigo e lourejar, e cujos outeiros ostentam os vinhedos carregados, riqueza principal daquela zona. Tão linda e poética é lá a paisagem que um dos melhores trovadores, depois de percorrer o mundo e lhe apreciar as belezas, exclamou como que estático diante dos encantos da Morávia: “Aqui quisera eu morar e passar o resto de minha vida, tão atraente e sedutora me parece esta região, mesmo debaixo da neve”. Ora nesse pedacinho do globo é que, em meados do século XVIII, viviam duas grandes e piedosas famílias, pobres quanto aos bens de fortuna, porém muito ricas dos dons sobrenaturais da virtude. Uma delas era oriunda da Boêmia e a outra, da Áustria. Tasswitz, pequena aldeia não longe de Znaim, era o lugar onde moravam na mais doce paz e harmonia essas abençoadas famílias. Um jovem cortador, eslavo de nascimento por nome de Pedro Paulo Dworak, uniu-se em matrimônio com uma donzela alemã de Tasswitz chamada Maria Steer. Piedosos ambos viviam, no seio da família, mais contentes e satisfeitos do que se foram poderosos monarcas, embora não possuíssem senão a pobre casa, em que moravam, e um pequeno vinhedo com uns campos de trigo, onde derramavam os suores de seu rosto. Deus abençoou essa união com doze filhos, dos quais sete voaram para o céu ainda crianças; dos cinco sobreviventes Clemente foi o mais novo e o mais santo. O sr. Pedro Paulo Dworak, por ocasião do seu casamento, mudou o nome boêmio para o de Hofbauer. Clemente viu a luz do dia pela primeira vez a 26 de dezembro de 1751 sendo batizado no mesmo dia com o nome do evangelista S. João, que deveria dar e que, de fato, deu a seu protegido, junto com a candura virginal do coração, o amor acendrado a Jesus Redentor. Esse nome de João foi mudado para o de Clemente alguns anos mais tarde como veremos adiante. Como o Santo é quase só conhecido com esse segundo nome, nós nesta biografia chamá-lo-emos Clemente e não João. A mãe do pequeno Clemente soube dar-lhe uma educação firme mais pelo exemplo do que por palavras. Em toda a redondeza era ela conhecida como um modelo consumado de virtudes, salientando-se entre todas a sua piedade tão profunda quão esclarecida; a sua ocupação predileta era a oração; gostava de 7

demorar-se na igreja, sempre que suas ocupações domésticas o permitiam; ajoelhada diante de Jesus Sacramentado mais parecia um anjo do que uma criatura mortal. Terminadas as funções do culto, a missa, a reza etc, era ela a última a deixar o recinto sagrado, sentindo sempre dificuldade em abandonar a presença de Jesus no seu Sacramento de amor. Ao chegar e casa depois da missa e da sagrada comunhão, longe de palestrar com os vizinhos para se informar das novidades da cidade ou das famílias, encetava logo o trabalho que se prolongava até a tarde. Em as múltiplas devoções, porém, não se descuidava das obrigações do seu estado; como esposa amava enternecida o marido, e como mãe olhava desvelada para os filhinhos que procurava educar para o céu. O seu predileto era Clemente, porque mais piedoso e de índole mais dócil que os outros. Desvelava-se a boa mãe em desenvolver cautelosamente no coração do filhinho os germes do bem, que Deus nele implantara; ensinou-lhe bem cedo as orações e as devoções, que Clemente conservou até o fim da vida. A boa mãe bem sabia que a piedade não consiste apenas em pronunciar belas orações, baixar a cabeça, virar os olhos e ter uma aparência singular e atraente, mas que ela deve apoderar-se de todo o homem encaminhando para o bem tanto a inteligência como a vontade; eis porque lhe ensinara a abnegação e a mortificação, insistindo com ele para que amasse o jejum e guerreasse a vontade própria. Todas as vezes que o pequeno Clemente se mostrava extraordinariamente bem comportado, a mãe o recompensava permitindo-lhe jejuar ou dar alguma esmola aos pobres. Quando Deus ama alguém, não deixa de visitá-lo com sofrimentos e dissabores para mais o purificar, desprender do mundo e tornar semelhante a seu divino Filho que tomou sobre si as nossas dores. Ora, sendo a família de Clemente agradável a Deus, devia passar desde cedo pelo crisol de duras provações. Contava o nosso Santo apenas sete anos quando perdeu o extremoso e carinhoso pai. Fortemente golpeada sentiu-se a pobre viúva com a morte do esposo que idolatrava ,mas como o seu coração era todo de Deus não se deixou perturbar pelo duro golpe, resignou-se docilmente, beijando com carinho a mão de Deus que a feria, e depositando toda a sua confiança na Providência que tudo dirige com a maior sabedoria e acerto. O pequeno Clemente que, embora criança, já amava seu pai, chorou sentido a perda daquele que tanto o acariciava e tanta ternura lhe mostrava. A pobre mãe tomando-o um dia pela mão levou-o para a igreja onde se achava um lindo e devoto Crucifixo; mãe e filho contemplavam resignados o Redentor pendente da cruz, haurindo conforto e alívio das chagas rubras de Jesus. No auge do fervor e da fé, a mãe sentiu subitamente o coração palpitar-lhe fortemente no peito e toda enlevada disse ao filhinho apontando para o Cristo pregado na Cruz: “Meu filho, de hoje em diante é Ele o teu pai, não te afastes nunca do caminho que lhe agrada”. O pequeno Clemente compreendeu essa palavra saída dos lábios maternos em hora tão solene, e conservou-a profundamente gravada em seu coração. A recordação dessa cena íntima foi para Clemente, mais tarde, como que uma fonte de luz que o conservou no caminho da virtude e o confortou em os penosos transes da sua trabalhosa vida. Clemente recebeu de Deus um coração extraordinariamente propenso para o bem, um coração reto e sincero, que odiava toda hipocrisia. Amava sincera-

mente sua mãe e gostava de falar dela com respeito e veneração. Quando já avançado em anos, agradecia ainda a Nosso Senhor o ter-lhe dado uma mãe tão santa e virtuosa; cada vez que, mais tarde, em suas viagens empreendidas para o bem da Congregação ou das almas, passava por perto do lugar, onde se achava a sepultura de sua querida mãe, fazia uma visita, breve embora, ao seu túmulo, ajoelhava-se respeitosamente umedecendo com suas lágrimas a terra que ocultava o precioso tesouro do seu coração. Para o coração filial de Clemente, em extremo impressionável para o bem, tinham grande valor e importância os exemplos de sua mãe. Como esta, amava Clemente a oração e a casa de Deus; ao vê-lo ajoelhado ao lado da querida progenitora, as mãozinhas postas, o rosto inocente inspirando santa seriedade e os olhos fitos no tabernáculo ou em alguma imagem da Santíssima Virgem, não havia quem não se comovesse tomando-o por um anjinho descido do céu. Sentia viva alegria em aproximar-se o mais possível, de Jesus a quem tanto amava; gostava de servir à missa por se achar assim mais perto do Menino Deus, vivo sobre o altar debaixo das espécies sacramentais. Já nessa idade era o rosário a sua oração predileta; aos sábados, consagrados à Santíssima Virgem, não sossegava enquanto não fizesse alguma devoção especial em louvor de sua mãe celestial. Se, às vezes, recebia alguma gratificação por seus servicinhos ao altar, economizava o dinheiro para depois ir ter com o vigário e mandar celebrar uma missa por intenção dos seus ou das almas do purgatório. A sua vocação de apóstolo do bem, recebeu-a Clemente em seus verdes anos. Um belo dia, acompanhando sua mãe a um lugar um pouco retirado de Tasswitz, encontrou de caminho algumas pessoas de seu parentesco que se distraíam em agradável passeio. Como de costume em tais ocasiões, perguntou-lhes a mãe de Clemente, como iam de saúde, para onde se dirigiam e o que estavam a fazer; a esta última pergunta os parentes responderam: “Estamos passando o tempo”. Clemente não compreendeu bem essa última expressão; feitas as despedidas retiraram-se, mas o menino preocupado puxa de leve o vestido de sua mãe e pergunta-lhe: “Mamãe, que quer dizer isto: ‘estamos passando o tempo’?” Ao receber a explicação encheu-se o pequeno de santa indignação e, com ar de indescritível gravidade disse: “Mamãe, quando a gente não tem o que fazer, deve rezar!” Que bela palavra! que ensinamento salutar para tantos adultos que, esquecidos da eternidade, se preocupam quase que exclusivamente com a terra pensando encontrar nela o paraíso! Essa palavra, pronunciada por Clemente em tão tenra idade, foi a norma de sua vida, como veremos mais tarde; sempre se manifestou inimigo da expressão “passatempos e divertimentos” etc. Bela educação essa, dada por uma mulher simples do meio do povo! e ela soube, segundo os ditames do seu coração reto, desenvolver e educar rica e valorosamente as disposições sobrenaturais colocadas tão prodigamente por Deus no coração de seu filhinho. Já na infância de Clemente se revelaram claramente os traços que o distinguiram mais tarde: a sensibilidade extraordinária para as orações do Espírito Santo, a vida num mundo superior, a clara e profunda compreensão da verdade da fé, o apóstolo da oração, o relacionamento com as grandes e as pequenas questões da vida, o herói da mortificação, o pai dos pobres e dos órfãos. Eis o que vale a educação dada por uma mãe virtuosa e santa. CAPÍTULO II

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Os primeiros estudos Procura um ofício — Os sentimentos nobres — O São Cristóvão — No convento dos Premonstratenses — A grande carestia — Entre os seminaristas do Convento — Dificuldade nos estudos. Clemente havia já entrado nos seus catorze anos. Depois de abandonar o banco escolar onde fora um dos alunos mais aplicados e estudiosos, pôs-se a ajudar sua mãe no cultivo do vinhedo e do campo, alegrando sempre a todos com o seu semblante risonho e com o seu comportamento exemplar; não havia quem não sentisse viva satisfação em se achar na companhia do filho do cortador de Tasswitz. Mas na medida que os anos se iam, mudava-se tudo ao redor de Clemente. Seu pai, já de há muito, havia falecido e junto dele repousavam no silêncio do túmulo quatro irmãs e três irmãos de Clemente. Os outros, pobres também, já se haviam espalhado em direções diversas a cata de negócios ou ocupações que lhes garantissem a subsistência. Era pois tempo de Clemente decidir-se a começar a carreira de sua vida. Um único ideal pairava então ante o seu espírito: sua alma inocente e pura sentia ternas saudades do interior do Santuário do Senhor e ele só desejava alistar-se entre os ministros do Altíssimo pelo Sacerdócio. Clemente queria ser padre para oferecer a Deus o santo Sacrifício dos nossos altares, anunciara do alto do púlpito a palavra divina, converter os pecadores, perdoar as culpas ao pecador contrito depois de investido da dignidade sacerdotal, superior à dos reis e imperadores. Esse era também o sonho dourado da sua mãe, cujo coração estremecia de júbilo só em pressentir a dita de ver um dia o seu filho sacerdote, intermediário das bênçãos celestes entre Deus e o homem! Mas — pobrezinho! — Clemente não dispunha dos meios, sem os quais o estudo se torna impossível e por isso, o coração sangrava-lhe no peito; teve de renunciar, talvez para sempre, à mais querida aspiração de sua alma — não podia ser padre. Não havia outro remédio, era forçoso aprender um ofício qualquer para o sustento da vida. O ofício de seu pai não lhe era simpático, parecia-lhe demasiado cruel; preferiu o ofício de padeiro. Entrou pois como aprendiz na casa de um dos melhores e mais afamados padeiros da cidade, senhor de uma honestidade a toda prova, católico praticante Estava pois bem colocado; seu novo mestre não queria fazer dele somente um bom padeiro mas, sobretudo, um cristão adornado de virtudes, alheio às tabernas, aos divertimentos perigosos e aos princípios subversivos que conduzem o pobre operário ao desprezo da autoridade, ao ouvido de Deus, às blasfêmias e à vida dissoluta. Clemente lá esteve três anos a trabalhar e a exercer-se na prática das virtudes necessárias a um operário piedoso. Trabalhava sim, mas seu

coração não se satisfazia, sentia um vácuo indizível na sua alma, uma voz parecia soar-lhe constantemente aos ouvidos convidando-o a subir os degraus do altar; ah! Clemente tinha saudades pungentes do sacerdócio, e ele, como outrora Abraão, esperando em Deus contra toda a esperança, suplicava ao céu se dignasse abrir-lhe em par as portas do santuário. Entretanto tudo parecia conjurar-se contra ele, mas Clemente não desanimava; ao fabricar o pão material lembrava-se do pão dos anjos, que o padre consagra sobre o altar; ao levar aos fregueses a cesta de pão às costas, pedia a Deus, soluçando, que lhe fosse dado um dia, levar o pão do céu aos pobres moribundos. O mestre tinha um filhinho que contava então seus cinco anos de idade. O pequeno era inocente e, como as almas inocentes logo se conhecem, não tardou a travar com Clemente a mais santa amizade, não o querendo mais deixar nem um instante; acompanhava-o em toda parte, seguia-o em suas voltas pela cidade, pois que Clemente sabia falar tão bem e contar tão lindas coisas do céu, dos Santos e da Virgem Santíssima. Para não perder tempo na entrega dos pães aos fregueses, pediu Clemente à mãe do pequeno, que o retivesse em casa nessas ocasiões; porém debalde, a respeitável senhora não acedeu ao pedido de Clemente, porque não julgava perdido o tempo, em que o distribuidor do pão se retardava nos negócios, a dar tão santas instruções e tão belos exemplos a seu filhinho. Que faz Clemente? Toma a cesta às costas e o menino em seus braços, e assim percorre apressado a cidade. Semelhante cena Tasswitz nunca presenciara; alguns sorriam-se pela novidade do fato, e outros das janelas gritavam: “Olha o São Cristóvão”. Clemente desejoso de ver o Santo que o povo anunciava, olhou, no princípio, para todas as direções; como não visse coisa alguma perguntou admirado onde é que estava S. Cristóvão. Quando lhe disseram que São Cristóvão era ele mesmo, não soube o que pensar; ao chegar em casa contou tudo ao mestre perguntando-lhe porque é que lhe tinham dado esse nome tão interessante. Ao ouvir da mulher do mestre, que S. Cristóvão era um gigante muito santo, que levado da caridade, transportava as pessoas por sobre um rio destituído de ponte, e que um dia Jesus Cristo mesmo lhe apareceu, na forma de um viajante, pedindo o quisesse levar para o outro lado do rio. S. Cristóvão o transportou sobre seus ombros, merecendo depois ver a Jesus e ouvir-lhe as palavras de agradecimento. Clemente não pôde conter-se e exclamou: “Quem me dera ser deveras um S. Cristóvão para levar o Cristo em minhas mãos!” Esse pensamento não o deixava sossegar. Mal havia terminado o tempo de sua aprendizagem, Clemente, numa esperança que ele mesmo não saberia definir, dirigiu-se ao convento dos padres Premonstratenses, apresentou-se ao abade que se mostrou bem impressionado como o moço tão modesto, tão bem vestido e asseado. Clemente conjecturou: “Quem sabe, se lá não será mais fácil remover os obstáculos, superar as barreiras que me impedem de subir os degraus do altar?!” A Europa inteira gemia naquele tempo debaixo das mais duras provações. A guerra dos sete anos era já passada, mas as conseqüências faziam-se sentir profundamente, levando a miséria e a fome a todos os países; as terras ficaram sem cultivo, muitas cidades foram incendiadas. Nesse tempo de desolação e miséria eram os conventos o celeiro que fornecia o alimento a milhares de bocas. O abade dos Premonstratenses, homem de grandes virtu9

des, possuía um coração extremamente generoso: novecentas pessoas recebiam diariamente a alimentação à porta do convento. O trabalho de Clemente no convento, consistia em preparar o pão para essa multidão de desditosos, e ele sentia-se realmente feliz por poder prestar seus serviços aos pobres; dia e noite trabalhava para não deixar ninguém sofrer, e muitas vezes tirava o pão da própria boca, afim de matar a fome àqueles infelizes. Mas a carestia não veio só; apareceu acompanhada do tifo e de outras moléstias que dizimavam a população. Centenas de homens arrastavam-se até a porta do convento enfraquecidos pela fome e torturados pela febre, recebiam o pão que, às vezes, não podiam levar à boca, porque a morte os surpreendia naquele momento. Deus não se deixa vencer em generosidade, dá cem por um a todos os que trabalham por amor dele; Clemente pois devia receber a sua recompensa: e esta não foi pequena. Na abadia, onde Clemente se empregara, existia um seminário onde trinta rapazes recebiam instrução e donde já tinham saído sacerdotes exemplares e santos. O pequeno padeiro conteve-se, dezoito meses, a ver calado os meninos que, os livros debaixo do braço, iam às aulas ou brincavam alegres na hora do recreio. As lágrimas corriam-lhe pelas faces, lágrimas de uma santa inveja, que ele não podia reprimir porque eram sinceras, saídas do fundo do coração. As lágrimas de Clemente enterneceram o coração divino que lhe outorgou ânimo e coragem. Foi ter com o abade, abriu-lhe a alma e, o coração nos lábios, suplicou-lhe uma ocupação mais leve na abadia afim de poder dedicar-se aos estudos e assistir às aulas do colégio. O coração bondoso do abade, reconhecendo a vocação sacerdotal do seu padeiro, acedeu ao pedido de Clemente, nomeando-o seu refeitoreiro e copeiro. Clemente podia, pois, mais desimpedido dedicar-se às letras — mas o estudo já não lhe era tão fácil; o pouco de latim que aprendera com o vigário de Tasswitz, já há muito estava esquecido e aos vinte anos, que Clemente não contava, a memória já não é tão fresca e firme para reter tanta coisa. Além disso o estudo era para ele, naquelas circunstâncias, uma coisa secundária. Mas não há o que a aplicação constante não vença. Labor improbus omnia vincit. Em quatro anos completou Clemente as classes ginasiais fazendo os mais brilhantes progressos em todas as matérias: em religião, latim, grego, geografia e história Clemente avantajou-se a muitos outros alunos mais talentosos do que ele. É certo que o nosso Santo, mais de uma vez, teve de ouvir palavras picantes dos colegas que zombavam da sua idade, mas Clemente sabia suportar tudo aquilo com a maior tranqüilidade, agradecendo a Deus a amarga pílula que lhe apresentava.

CAPÍTULO III

Peregrinações O ermitão de Mühlfrauen — As romarias e os romeiros — Abandona o ermitério — Vai à Boêmia e volta a Viena — Romaria à Itália — Volta à Áustria e torna novamente a Roma — Tívoli — Outra vez em Viena — As senhoras von Maul. Os Premonstratenses, também chamados Norbertinos, foram fundados por S. Norberto em 1120 na França. Têm por fim unir a atividade paroquial às ocupações do claustro. A ordem foi aprovada por Honório II em 1126. Dividem-se em sacerdotes Cônegos e leigos conversos. Têm o hábito de lã branca. A ordem espalhou-se rapidamente na Europa, mormente na França e Alemanha. Em 1250 já contava com 1.200 residências. A reforma protestante fechou muitos conventos na Alemanha, e a revolução francesa só poupou algumas residências na Áustria e na Hungria. Desde 1834, porém, recomeçou a Ordem a florescer e em 1900 já possuía 5 províncias com 17 abadias e alguns prioratos. O abade geral é eleito; em 1905 tomavam mais de 182 paróquias e dirigiam 7 ginásios. Terminados os estudos da abadia, achava-se outra vez Clemente em sérias dificuldades. A escola abacial tinha só quatro classes. Para entrar na Ordem dos Premonstratenses, não sentia vocação; para continuar os estudos fora, não possuía os meios necessários. Que fazer em semelhantes conjunturas? Deus mostrou-lhe um caminho inteiramente novo. Clemente será ermitão. Sem mais hesitar atravessou o rio e no meio da floresta construiu uma ermida pequena e simples, não longe da povoação da Mühlfrauen. De manhã ia todos os dias à cidade ouvir a missa, recebia a santa comunhão, e depois voltava ao trabalho, à oração ou à leitura de algum livro piedoso; um pedaço de pão com alguns poucos legumes constituía a sua refeição cotidiana. Aos domingos, porém, e dias santos, Clemente quase não se ausentava da igreja; sentia-se lá tão feliz parecendo-lhe achar-se na antecâmara do paraíso. Na solidão da floresta sua alma expandia-se tranqüila aos encantos da natureza, cantava com os passarinhos, com as águas e as árvores sacudidas pelo vento, os louvores e as magnificências de Deus; e quando a natureza repousava nas trevas que envolviam a terra, Clemente ainda rezava, até que o sono lhe abatesse as pálpebras sobre os olhos. A vida da floresta, porém, não era sempre assim tão poética; dias chuvosos umedeciam-lhe, por vezes, a pobre choupana e as tempestades com seus trovões desencadeavam-se sobre as árvores, curvando os possantes troncos, e não raramente os furacões furiosos das tentações oprimiam-lhe violentamente a alma: Clemente, então, humilhava-se, abraçava a cruz alegre por poder 10

sofrer alguma coisa por Nosso Senhor. As grandes virtudes do ermitão já não podiam permanecer ocultas; espalharam-se pelos arredores e atraíram bem depressa a atenção e a admiração dos moradores da cidade e das circunvizinhanças, e em geral de todos quantos iam visitar a Igreja de Nossa Senhora de Mühlfrauen. Os peregrinos, depois de satisfeita a devoção ao pé do altar da Virgem, iam procurar o ermitão, levandolhe presentes, o que Clemente agradecia retribuindo tão finas gentilezas com bons conselhos, úteis admoestações e santos pensamentos. Nas horas vagas, Clemente confeccionava cruzes de madeira extraída da floresta; com esse trabalho mostrava aos peregrinos sua gratidão, exortando-os a carregarem sempre e com verdadeiro amor e espírito de sacrifício a cruz que Deus lhes impunha sobre os ombros. Não raras vezes ele mesmo tomava uma cruz grande e pesada, que se conservava encostada à porta, e carregava-a acompanhado dos peregrinos, cada um com sua cruz às costas, até ao santuário do Bom Jesus atado à coluna. Nessa romaria piedosa cantavam e rezavam edificando a todos e despertando neles sentimentos de santa compunção e arrependimento. Eram tempos de fé e de simplicidade; que contraste com a vida moderna! Hoje em dia, em vez do Santuário, visitam-se em geral os lugares de divertimentos; em vez da cruz carregam-se os jovens de perfumes; em vez da penitência procuram a sensualidade. Mas, que contraste também no interior da alma! Clemente e os seus romeiros sentiam-se felizes no meio das mortificações, porque gozavam a paz da consciência, enquanto que os modernos não se sentem bem nas ondas dos prazeres, porquanto a paz da alma só se encontra nos corações inocentes e puros, e a inocência não medra nos divertimentos que enervam, mas na mortificação que eleva o coração. Apenas um ano pôde Clemente gozar as doçuras da solidão. Naquele tempo, como agora, os governantes não tinham compreensão da vida de sacrifício e de devoção; a oração era sinônimo de ociosidade, e o ermitão passava por mandrião e preguiçoso. Entretanto os ermitães eram os melhores cidadãos, que nas horas vagas se dedicavam ao cultivo da terra, empregando assim o seu tempo melhor do que centenas ou milhares de ricaços que vivem a custa dos pobres, e do que numerosos escritores que envenenam milhares de corações com seus escritos heréticos ou imorais. Um decreto imperial proibiu na Áustria a vida eremítica, como já havia proibido também os conventos. Clemente, que nada se simpatizava com a visita importuna da polícia, abandonou a pobre choupana e disse adeus à doce solidão. Indeciso vai, sem saber bem porque, à cidade onde nascera seu pai. Era o dedo da Providência que para lá o guiava, pois que destinando-o para o apostolado da Polônia, queria que lá aprendesse a língua necessária para a sua futura atividade em prol das almas. Pobre Clemente! as portas do sacerdócio continuavam-lhe fechadas; a vida solitária tornara-se-lhe impossível; que fazer? Não havia outro expediente senão voltar ao ofício antigo, à vida de padeiro. Homem de resoluções firmes, não trepidou; afivelou a mochila, tomou a bengala e a pé caminhou até Viena, que ainda não conhecia. Nem por sonhos lhe passava pela mente, que um dia os vienenses haveriam de pronunciar com respeito o seu nome, gloriando-se de tê-lo por apóstolo e protetor. Não tardou a encontrar colocação numa padaria A

pera de ferro em frente à Igreja das Ursulinas, onde passou três anos; sempre que lhe era possível, ajudava a missa na Catedral ou na Igreja das Ursulinas, que freqüentava com assiduidade. Era esse o seu procedimento e o seu recato em Viena, porque estava convencido de que um moço não se conserva inocente e puro numa cidade grande a não ser por meio da oração e da freqüência dos sacramentos. Nesse lapso de tempo, Clemente havia lido muita coisa edificante sobre Roma, a cidade dos papas, onde tantos mártires derramaram o seu sangue pela fé, a cidade das belas igrejas, onde se conservam preciosas relíquias. O seu coração sentiu saudades da cidade eterna e Clemente resolveu viajar até lá. Se tantos jovens visitam as grandes capitais, onde se perdem e pervertem, porque é que ele não poderia também satisfazer a esse seu desejo ardente e derramar o coração sobre os tumultos dos santos Apóstolos e dos grandes papas? Manifesta esse seu intento a um dos seus melhores e mais fiéis amigos, Pedro Kunzmann e convida-o para a viagem; faz por um tempo as maiores economias possíveis, e juntos parte para Roma, vencendo a distância toda a pé. Era uma verdadeira romaria de penitência; rezando em voz alta o rosário, que repetiam muitas vezes, cantavam também as ladainhas e outras orações à Nossa Senhora, e os hinos devotos que sabiam de cor. A impressão causada sobre as pessoas à beira da estrada, por onde os nossos romeiros passavam, era naturalmente diversa e, às vezes oposta; uns sacudiam a cabeça em sinal de desaprovação, outros, porém, edificavam-se com tamanha devoção; os peregrinos, porém, pouco ou nada se importavam com os comentários que se faziam. Eles só procuravam glorificar o Senhor e tornar-se dignos das bênçãos divinas na cidade eterna. Cansados de cantar e rezar, punham-se, às vezes, a contemplar a natureza, que se abria belíssima a seus olhos sob o sol encantador da Itália. Dos vinhedos admiráveis, dos campos ondulados de trigo, por entre as alcantiladas montanhas dos Alpes e dos Apeninos, seus olhos levantavam-se até Deus, autor dessas maravilhas estupendas, dessas belezas encantadoras. Se uma ou outra vez lhes faltava agasalho, à noite, para descansarem seus membros fatigados, lembravam-se do Redentor e sobre a palha, ao relento, dormiam mais tranqüilos do que os reis em seus ricos palácios. Itália, paraíso da Europa! os nossos peregrinos exultaram quando, pela primeira vez, sentiram as auras perfumadas e quentes da península. Era Deus que os abençoava do alto do céu; embora não conhecessem a língua italiana, nada lhes faltou e nenhum incidente menos agradável veio perturbar-lhes a paz e a tranqüilidade. Ao passo que se avizinhavam da Cidade Santa, os corações pulsavam-lhes com mais rapidez e calor dentro do peito. Mal avistaram, da última colina, a magnífica cidade com suas quatrocentas igrejas e inúmeros santuários, pareceu-lhes entrar no paraíso. Clemente não resiste, cai de joelhos, reza e chora de alegria. Apenas chegados, põem-se a percorrer com devoção os santuários mais conhecidos implorando, em toda a parte, a força na fé, o amor sincero a Jesus e a perseverança no caminho do céu. Ah! eles não tinham ido a Roma em excursão científica para estudarem os estilos das igrejas e as galerias artísticas, mas só com o fim de desabafarem os corações e haurirem mais profundos sentimentos de fé. Depois de satisfeita a devoção, voltaram para a Áustria alegres e conten11

tes, e com razão, pois que o coração humano precisa de quanto em vez, dessas emoções íntimas que lhe servem de desabafo e ao mesmo tempo de animação. Chegados a Viena, entram novamente na “A pera de ferro”; mas que contraste de vida! Roma com suas festas pomposas, com suas igrejas magníficas e seus altares suntuosos, com suas procissões solenes, impressionara os visitantes e ficara para sempre gravada em seus corações — e em Viena era tudo tão frio, as igrejas tão vazias, a vida religiosa tão diminuta; as irmandades e as ordens religiosas abolidas e o culto desprovido de seu esplendor antigo: em vez dos sermões substanciosos de outrora, ouviam-se agora do alto do púlpito somente palavras de humanidade e quejandas expressões de filantropia que não satisfazem o coração. Clemente e Kunzmann sentiam-se mal em Viena; não podendo habituar-se com a vida monótona da Capital austríaca pensavam em voltar outra vez para o Sul, afim de darem expansão a seus sentimentos de piedade. E quiçá, ser-lhesia possível lá consagrar-se a Deus na solidão; na Itália não se considerava crime a vida de ermitão. Deixando a conversa cair repetidas vezes sobre o assunto, animaram-se por fim e tomaram a resolução de voltar para a Itália, desta vez provavelmente para sempre. Chegada a hora da partida foram levar suas despedidas a “A pera de ferro”. Houve lágrimas e protestos do velho mestre que os não queria deixar partir; disposto a tudo para impedir a perda dos dois amigos, ofereceu a Clemente grande soma de dinheiro e sua única filha em casamento. Tudo porém em vão; Clemente aspirava a coisas mais elevadas. Um último abraço e o sacrifício estava completo. Clemente, sempre generosos, caritativo e de mãos abertas, não possuía recursos para a viagem, mas, em compensação, o companheiro mais econômico do que ele, conseguira ajuntar uma quantia não desprezível. Como da primeira vez seguiram a pé, renovando as cenas comoventes da primeira viagem. Chegados em Roma, peregrinaram e rezaram a vontade, pois que já não havia pressa como da primeira vez; entretanto não podiam nem deviam esquecer que tinham ido em procura da solidão. Seis léguas distante de Roma salientava-se uma cidade célebre, mais antiga do que a cidade dos papas, de nome Tívoli com um ermitério de conhecido nome na Europa. Vão a Tívoli onde visitam o bispo Gregório Chiaramonti, Beneditino, futuro papa com o nome de Pio VII. Como o bispo era dotado de insignes virtudes e de uma grande prudência, não deixou de colocar ante os olhos dos dois alemães as dificuldades da vida solitária, que geralmente se enche de cruzes e sacrifícios, onde a alma sente muitas vezes a fúria das tempestades e os assaltos freqüentes dos inimigos, segundo as palavras do Espírito Santo. “Filho, quando entrares no serviço de Deus... prepara a tua alma para a tentação, vida de trabalhos, de oração, de desprendimentos e de contemplação. A resposta dos dois postulantes foi: “por amor de Jesus estamos dispostos a tudo”. Foi o próprio bispo quem lhes deu o hábito e lhes mudou os nomes para que se esquecessem completamente do século; João recebeu o nome de Clemente, e Pedro Kunzmann o de Manoel. É dessa ocasião em diante que o futuro Redentorista começou a assinar-se sempre Clemente, tendo por protetor São Clemente de Ancyra na Ásia, o qual derramou intrepidamente o seu sangue em defesa da santa fé, e cuja festa a Igreja comemora no dia 23 de novembro. Revestidos do

burel escuro de ermitão, viam as suas esperanças em parte realizadas. Os corações a transbordar de contentamento, não se demoram na cidade de Tívoli, transpõem o Anjo das águas turbulentas e dirigem seus passos para o convento e a igreja, construídos na encosta da montanha, circundados de todos os lados, por magníficas oliveiras que adornavam a montanha inteira. Que bela igreja a da Madona coroada com o diadema de ouro, tendo o Menino Deus em seus braços! Era a Madona de Quintiliolo, conhecida e venerada em toda a redondeza. Os novos ermitães foram fraternalmente recebidos pelos quatro irmãos que lá se santificavam na solidão. O coração de Clemente, tão sensível aos encantos da natureza e tão susceptível de emoções, quase não podia conter-se de contentamento aos pés da Virgem, na paisagem incomparável do Tívoli, no silêncio da sua cela, na misteriosa tranqüilidade do olival. Foi Clemente quem se incumbiu de adornar a igreja e o altar da Virgem Santíssima. Depois de dedicar diariamente algumas horas ao cultivo do terreno que lhe coube por sorte, corria à igreja, que desejava sempre asseada e limpa, percorria o olival ou o jardim, em procura de flores frescas, para com elas mimosear o altar de sua querida Mãe. Acendia com cuidado a lâmpada da Virgem, e no meio das flores e das luzes ofertava à sua Rainha o fogo do seu amor e as flores frescas, para com elas mimosear o altar de sua querida Mãe. Acendia com cuidado a lâmpada da Virgem, e no meio das flores e das luzes ofertava à sua Rainha o fogo do seu amor e as flores das suas virtudes. Se de quando em quando alguém pela estrada solitária passava perto da igreja e do convento, Clemente batia com a mão na janelinha de sua cela, e quando o viandante, sem saber donde vinha a saudação, perguntava quem é que o chamava, Clemente respondia: “É a Virgem de Quintiliolo”, e o viandante entrava na Igreja onde saudava a Virgem implorando sua bênção para a viagem. Quando os romeiros iam ao ermitério para homenagear a Virgem, Clemente recebia-os, acendia-lhes as velas rezando e cantando com os peregrinos. Assim escoavam-se os dias; Clemente rezava continuamente e tinha deveras para quem rezar. Se olhava para a direita, divisava ao longe através da espessa neblina a cúpula do grande Domo, a cobrir os restos mortais do pobre pescador da Galiléia, que com as armas da graça divina esmagara o paganismo romano, e ele de joelhos agradecia a Jesus o grande benefício da fé; se olhava para a esquerda, os seus olhos contemplavam o Anio que de rochedo em rochedo se precipitava espumante, formando cachoeiras e despenhando no abismo, e ele recordava-se dos infelizes irmãos separados da verdadeira Igreja, que do alto da verdade se haviam precipitado no abismo da heresia. E ele temia também por sua própria alma, que não estava livre dos perigos, era também homem, e por isso com santo temor e indizível humildade se recomendava encarecidamente à Virgem, para que lhe conservasse a fé tão firme como os rochedos que contemplava batidos do caudaloso rio; e quando, à noite, a lua projetava sobre a cidade os seus meigos raios, cobrindo-a de um manto de prata, ele lá no jardim se ajoelhava meditando na dor imensa que oprimira o coração do Redentor, quando na véspera da sua morte, no jardim das Oliveiras, oferecia o seu sangue pela redenção do homem, implorando o perdão para o mundo culpado. Essas cenas eram tão gratas ao seu coração e impressionavam tanto o seu espírito que, mesmo em sua avançada idade, ainda se recor12

dava com saudades do doce tempo da solidão do Tívoli. “Se soubésseis quão belo é o Tívoli! — dizia ele a seus discípulos mais tarde — lá podia-se rezar com o coração aberto, a alma sentia-se desprendida do mundo e abismava-se toda em Deus”. Seis meses durou o noviciado de Clemente em Tívoli. Embora tudo ali lhe satisfizesse o coração e lhe fizesse gozar a mais doce paz da alma, uma coisa havia a realizar-se e cumprir-se a qual, dia a dia, fazia maiores exigências a seu coração: era o desejo do sacerdócio, da vida ativa, do apostolado, que converte as almas e as conduz ao Redentor. Clemente contava já 26 anos e o seu coração, ainda lhe fazia sentir, que ele seria um padre e que faria grandes coisas para Deus. Mas como? Deus o haveria de providenciar. Num belo dia, deixa Clemente na cela o hábito de ermitão e sem se despedir de ninguém, a não ser do bispo que ele acatava, desaparece e põe-se a caminho confiando na Providência e no bom coração dos que haveria de encontrar em seu trajeto. Em Viena voltou ao emprego antigo de padeiro, esperando que Deus lhe mostrasse o caminho do presbitério, e — oh! prodígio da bondade divina! — desta vez o Senhor iria recompensar a confiança de seu fiel servo, tanto é certo que quem põe no Senhor a sua confiança, não será confundido eternamente. — Como no tempo anterior à sua ida a Tívoli, também agora, aos domingos, ajudava uma ou mais missas na Catedral de Santo Estevam em Viena com o recolhimento e a devoção de um anjo diante dos augustos mistérios dos nossos altares. Não havia na cidade quem não se edificasse com tão exemplar procedimento de um jovem de vinte e poucos anos, idade essa que costuma ser fatal para quase todos os moços, mormente nos grandes centros. Entre os maiores admiradores de Clemente contavam-se três senhoras solteiras de bastante idade, pertencentes à nobreza e possuidoras de grande fortuna e de maior piedade ainda; pertenciam à família von Maul. Aconteceu que um dia, quando as três senhoras solteiras de bastante idade, pertencentes à nobreza e possuidoras de grande fortuna e de maior piedade ainda; pertenciam à família von Maul. Aconteceu que um dia, quando as três senhoras saiam da igreja, depois de findas as sagradas funções, começou a chover a cântaros e com tal abundância que as ruas ficaram alagadas, obrigando as nobres damas a esperar na porta da igreja. Clemente pelo mesmo motivo não pôde sair e como era um tanto acanhado, recostou-se a um canto da parede e esperou que o aguaceiro passasse. A hora já ia um tanto adiantada e o céu não cessava de derramar torrencialmente as águas. Compreendendo o embaraço das nobres senhoras, Clemente aproximou-se delas com todo o respeito e depois de saudá-las atenciosamente, perguntou-lhes se não desejavam um carro para voltar à casa; as damas aceitaram a oferta e Clemente imediatamente se pôs a correr debaixo da chuva torrencial em procura de cocheiro. Gratas àquela amabilidade, convidam o moço a tomar assento no carro, e entretém com ele familiar palestra, perguntando-lhe por seus desejos e intenções; uma delas chegou a indagar, se Clemente por acaso nutria desejos de ser sacerdote, pois que ajudava a missa com tanta devoção. Radiante de satisfação o humilde padeiro abriu o coração, manifestou-lhes a sua pobreza e completa falta de recursos, e em seguida narrou-lhes toda a sua vida desde o banco escolar de Tasswitz e a sua estada em Tívoli até aquele momento, em que esperava tudo da Providência. As ricas damas sentiram-se

comovidas e ofereceram-se a cobrir as despesas. Ao ouvir tão lisonjeira oferta Clemente parecia sonhar; tinha já 32 anos de idade e nunca ninguém ainda lhe havia falado assim. Ao voltar para a casado mestre sentiu-se tão fora de si que queria abraçar a todos, tão grande era a alegria e o contentamento da sua alma. Clemente iria pois estudar, seria padre, veria realizado o sonho de sua infância. Debulhado em lágrimas de satisfação íntima despediu-se de seu mestre e foi à universidade.

CAPÍTULO IV

Na universidade de Viena Os estudos na Áustria — Na universidade — Contradiz o professor — Encontro com Thadeu Hübl — A fé acima de tudo — As obras de Santo Afonso — Novamente em Roma. Deus dispusera tudo do melhor modo em favor de Clemente; o encontro com as três senhoras von Maul dera-se no outono, justamente no início do ano letivo da Universidade de Viena. Embora houvessem já decorrido sete anos que Clemente não abria livros escolares, ainda conservava na memória o que aprendera com tanto afã e a custo de tanto suor, de sorte que lhe foi possível começar logo o estudo da filosofia com as matérias anexas, a saber: o grego, a história universal, as matemáticas e a física. Felizmente não tinha Clemente de preocupar-se com o sustento, porque as nobres damas, suas benfeitoras se esmeravam em auxiliá-lo e faziam questão que nada lhe faltasse. Mas Clemente já não era criança, a memória estava já cansada e a inteligência perdera muito da agudeza e perspicácia antiga; e estudar filosofia é um trabalho penoso, e, naquele tempo, cheio de dificuldades; os professores de então entendiam da matéria, muitas vezes, tão pouco como os estudantes, o compendio escolar distinguia-se pela confusão das noções e das divisões e não apresentava aos alunos a ciência clara e verdadeira, mas um sistema confuso sem precisão e sem ordem. Faltando as explicações dos professores, ficava o estudo à mercê dos estudantes; Clemente era aplicado e queria seriamente progredir não só para se mostrar grato às suas generosas benfeitoras, mas principalmente por ser o estudo a condição necessária para o estado sacerdotal; estudava, investigava, examinava e quando julgava descobrir algum sentido nas imensas lucubrações do compendio, abanava a cabeça com asco, achando que aquilo não era católico. De dia Clemente folheava os livros procurando a dar a sua vida; a clarividência e a firmeza de convicção em sua crença tinham sido, desde a infância, a força carismática de seu ser, de sorte que mais tarde ele mesmo afirmou, não esperar de Deus nenhuma recompensa por causa da fé, visto que nunca sentira tentações contra ela. Desde cedo familiarizara-se Clemente com as obras ascéticas e dogmáticas de Sto. Afonso Maria, obras essas ditadas pela mais profunda fé e convicção, repletas de santa e celestial unção; o jovem estudante via nelas a mais completa e a melhor refutação dos erros que então se espalhavam na Europa; e de fato eram elas que reconfortavam a fé já vacilante ou prestes a se extinguir, e que em sua simplicidade e clareza retratavam em quadros magníficos a formosura divina da religião. Traduzidas para o alemão tornaram-se o remédio salutar para 13

aqueles tempos abismados no indiferentismo e racionalismo, e o antídoto poderoso contra outros erros funestos. Essas obras, maximé o livrinho das Visitas a Jesus Sacramentado, encheram o coração de Clemente de veneração e amor para com o bispo de Sta. Agueda, que na Itália acabava de renunciar a seu honroso cargo. Para uma alma assim preparada era impossível freqüentar os seminários da Áustria; Clemente queria ser padre, mas um padre virtuoso, trabalhador, segundo o coração de Deus. Era pois forçoso dizer adeus à Áustria, que tanto amava, e despedir-se dela, talvez para sempre, pois não podia prever até onde chegaria a impiedade em sua pátria; ele estava pronto ao sacrifício e fê-lo de boa vontade. Procurou seu amigo Thadeu Hübl, informou-o dos seus novos planos convidando-o a que o acompanhasse. Hübl jazia enfermo no hospital e, irresoluto como era, admirou-se da súbita e brusca resolução do amigo. Doente e sem recursos, como empreender semelhante viagem? Como em sua resolução Clemente era inabalável, não pôde nem quis admitir as escusas e os pretextos do amigo; quando ao dinheiro, ele mesmo se incumbiria de arranjá-lo, quanto à saúde, Deus providenciaria. E assim foi. Thadeu Hübl restabeleceu-se e acompanhou Clemente a Roma. CAPÍTULO V

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O santo Redentorista Em Roma — O Senhor será um deles. Luta entre os dois peregrinos — É recebido na Congregação Redentorista. — O noviciado — O espírito da Congregação — A uva tentadora — Os noviços italianos — Alegria e profecia de Sto. Afonso — Profissão — Ordenação — Transpõe os Alpes. Os dois amigos chegaram a Roma, sem novidade, no mês de setembro de 1784. Clemente, nesse interim, havia tomado a resolução firme de ingressar em uma Ordem religiosa: mas por prudência diferiu a entrada para ter mais tempo de examinar primeiro o fim particular das diversas Congregações, o fervor da observância regular e outras particularidades que haveriam de influir na sua resolução definitiva. Em companhia de Thadeu percorreu a cidade, visitou as igrejas célebres de Roma, observando sempre os religiosos, e indagando de várias pessoas, o que sabiam das diversas Ordens e Congregações que lá havia. Coisas edificantes ouviam eles sobre grande número de Congregações cujos membros aspiravam seriamente à perfeição, mas nenhuma delas conseguiu entusiasmar-lhes os corações. Foi o próprio Deus que se encarregou de indicar a Clemente o lugar, onde o queria. Numa tarde, depois das visitas feitas aos grandes santuários conferiu com o amigo as impressões recebidas durante o dia, e junto compuseram o programa das visitas para o dia seguinte. Clemente teve subitamente uma idéia: “Thadeu, disse ele, a primeira igreja a que iremos amanhã, será aquela cujo sino ouvirmos primeiro”. Thadeu concordou. Na manhã seguinte era ainda escuro, quando ouviram o som melancólico de um pequeno sino, que os convidava à igreja; levantaram-se depressa e foram. Era a pequena Igreja de São Julião, perto da Vila Caserta; entraram, pé por pé, e ouviram rezar; eram sacerdotes desconhecidos para eles, batinas pretas com colarinhos brancos e salientes; rezavam imóveis como se fossem estátuas de mármore; de joelhos, mãos postas, olhos baixos pareciam imersos em profunda contemplação; os padres estavam fazendo a meditação da manhã. Os dois amigos caíram também de joelhos pedindo a Deus, se dignasse manifestar-lhes sua santíssima vontade. Terminada a meditação, Clemente também se levantou com o coração a bater-lhe fortemente no peito. Ao sair da igreja deu com um rapazinho, coroinha da Igreja de S. Julião, e perguntou-lhe: “Menino, que padres são esses que acabam de rezar agora nessa igreja?” — “São padres Redentoristas, disse o pequeno, e o senhor também será um deles”. Essas palavras do menino abalaram o coração do Servo de Deus e bani-

ram-lhe a tranqüilidade; a todo instante parecia-lhe ouvir: “o senhor será também um deles”. Não encontrando mais sossego, volta, essa mesma tarde ainda, à Igreja de São Julião, chama o Reitor ao locutório e informa-se da Congregação dos Redentoristas. Quando ouviu que foram fundada por Santo Afonso, cujas obras tanto apreciava, e que tem por fim evangelizar os povos por meio de missões e retiros, dedicando-se de um modo todo particular ao povo abandonado nos sítios, sentiu que para ela Deus o chamava; não hesitou, relatou ao Reitor os estudos que já tinha feito, a idade que então contava, pediu admissão e o Reitor recebeu-o na Congregação: ei-lo o Redentorista. A alegria de Clemente Maria foi indescritível: achara enfim a sua vocação, e isso de um modo tão extraordinário, sabia onde é que Deus o queria, e não encontrava na língua humana expressões com que pudesse agradecer dignamente ao Senhor de tê-lo chamado à Congregação do grande Apóstolo e eminente Teólogo Santo Afonso Maria, cujas “visitas” afogueadas de amor divino tantas vezes recitara na Igreja de Santo Estevam. Além de tudo isso seria missionário para salvar as almas mais abandonadas e levá-las ao céu; seria o imitador de Jesus na sua vida oculta e no seu apostolado. Contente como quem encontra um tesouro, corre ao encontro de Thadeu para fazê-lo participante da sua indizível felicidade e anuncia-lhe que fora admitido na Congregação dos Redentoristas. Thadeu porém, que absolutamente não esperava tal resolução, indignouse, lançou-lhe em rosto sua precipitação e imprudência, exprobrou-lhe sua falta de caridade, perguntando se era para abandoná-lo e deixá-lo só que o trouxera da Áustria para a Itália, cuja língua não conhecia; Thadeu ficaria só num país desconhecido, sem recursos para continuar os seus estudos. Isso era, na opinião de Thadeu, uma traição vergonhosa. Por mais que se esforçasse, Clemente não conseguiu abrandar o coração do amigo, cujas palavras pesadas lhe traspassaram a alma como uma espada de dois gumes; e entretanto a intenção de Clemente era a melhor do mundo, queria fazer feliz o amigo levando-o consigo ao convento; este porém obstinava-se em não querer acompanhá-lo. Mas não há como um dia depois do outro; caiu a noite e Thadeu Hübl foi repousar das fadigas do dia, e mais ainda do dissabor que o prostrara. Clemente porém compreendendo que, em semelhantes apuros, só Deus pode ajudar, ajoelhou-se em terra junto do leito do amigo, e rezou a noite inteira pedindo ao céu se dignasse iluminar o companheiro, aliás tão virtuoso e dócil. Ao amanhecer estava ele ainda ajoelhado em oração a lutar com Deus como outrora o patriarca Jacó com o anjo na solidão da Palestina. Quando Thadeu acordou, volveu os olhos para o leito do amigo, como que a despertá-lo; mas com grande surpresa verificou-o intacto, tal qual o deixara na noite anterior; mais surpreendido ainda ficou ao contemplar Clemente ajoelhado em terra, os olhos a nadar em lágrimas; compreendeu imediatamente o motivo daqueles preces e sentiuse comovido, mas não disse palavra. Levantou-se e com o companheiro dirigiuse a Maria Maggiore atravessando em silêncio as ruas desertas e taciturnas. Os corações de ambos sentiam-se torturados e vazios como as ruas ermas que atravessavam. À graça por fim venceu e Thadeu interrompendo o silêncio disse: “Clemente, eu entrarei contigo na Congregação dos Redentoristas”. Um abraço forte foi a resposta de Clemente, que não pôde conter as lágrimas; amplexou-o 15

como se já a muitos anos o não tivesse visto; entraram ambos na igreja e dali a pouco, os dois austríacos eram recebidos definitivamente na Congregação do Santíssimo Redentor. De acordo com a Regra da Congregação, passaram eles uns dias, como candidatos, em suas vestes seculares na casa do noviciado, preparando-se para o retiro de quinze dias que precede à tomada de hábito. Aos 24 de outubro de 1784 foram revestidos do hábito de Santo Afonso Maria e começaram o noviciado sob a sábia e firme direção do Pe. Landi, Reitor da casa, o qual há anos havia bebido o espírito da Regra, tendo por mestre o próprio santo Fundador. Foi Esse o momento da maior importância e relevância para a Congregação transalpina. Nos planos divinos denotava esse momento um movimento espantoso de salvação, de trabalho, de suores em benefício das almas; a entrada dos dois estrangeiros na Congregação era o princípio da propagação do instituto Redentorista além dos Alpes, os limites da Congregação já não seriam coarctados pelas divisas da Itália, mas iriam de oceano a oceano, estendendose pelo mundo inteiro. Clemente olhando para o seu novo hábito sentia-se outro homem; a batina preta, o cíngulo tosco com o rosário à cintura, a cruz oculta ao peito enlevavam o seu espírito pela alta significação que tinham. Como noviço fervoroso procurava familiarizar-se com as Regras, ou antes, refundir em si o espírito da Congregação. A consecução desse nobre ideal não lhe causava a menor dificuldade; ouvira do mestre dos noviços que o espírito da Congregação Redentorista consiste, sobretudo, no espírito de oração, de humildade e de abnegação própria; ora tudo isto era-lhe familiar desde os primeiros anos de sua vida: a oração fora sempre o divertimento favorito da sua alma, desde os seus mais verdes anos, a humildade aprendera ele, de sobre, na casa paterna e na oficina do padeiro; a abnegação da vontade própria fora sempre o seu pão cotidiano; não lhe era pois necessário transformar muita coisa na sua nova vida, mas só continuar e aperfeiçoar o que praticara no século. E com a graça divina Clemente não foi nada remisso no cumprimento desse dever. A oração tornou-se a alma da sua vida religiosa; orava não só quando prostrado ante o altar de Jesus Sacramentado ou a imagem da Virgem, mas sempre que andava pelos corredores do convento e pelas ruas da cidade. Reconhecia de boa mente na Regra do Instituto a expressão da vontade divina. Rijo por natureza e temperamento, fugia da moleza, amando a mortificação e procurando conseguir o domínio completo sobre as suas paixões. No noviciado de São Julião quis Deus que lhe não faltassem ocasiões para mortificações de todo o gênero. Filho do norte levara ao sul um apetite não insignificante, aumentado ainda pela força de uma constituição robusta, e a cozinha italiana do convento de S. Julião era tão parca e tão mesquinha. “A coisa mais difícil para mim na Itália, disse ele mais tarde, foi o não poder eu nunca matar completamente a fome”. O seu maior pecado no noviciado foi ter mandado vir uma fez algumas uvas sem a necessária licença dos Superiores. Isso porém deu-se uma única vez, pois que mesmo nesse ponto Clemente sempre se mostrou forte; junto à janela da sua cela, do lado de fora, havia uma parreira, que estendia seus ramos até a altura do quarto e dum dos ramos pendia um cacho grande, maduro e apetitoso, que lhe sorria tentadoramente:

Clemente gostava das uvas doces da Itália; mas não sucumbiu à tentação, foi mais forte do que Eva no paraíso, venceu-se e lá deixou ficar o cacho para ter cada dia mais ocasião de se mortificar. Nos companheiros de noviciado não podia o Servo de Deus suportar moleza nem falta de mortificação. — Com franqueza austríaca — e Clemente era de franqueza rude — não raramente dizia aos italianos: “Os estrangeiros que vêm à Itália esperar e querem que os italianos sejam santos; prestam atenção a tudo para depois contarem lá fora quanto viram e observaram na Itália”. Os noviços italianos tinham o costume de, no tempo do calor, levar consigo, nos passeios, alguma roupa limpa, para quando estivessem suados. Clemente estranhou semelhante hábito e uma vez não podendo conter-se foi ter com o mestre de noviços e disse-lhe: “Sr. padre, eu que aqui estou, vim da Áustria com uma camisa, um paletó, um par de calçar, um chapéu e uma bengala caminhando 400 horas de Viena até Roma, e nem por isso vi abalada a minha saúde; e aqui em Roma para um passeio de duas horas vejo tantos preparativos, porque tudo isso? O mau costume foi, desde então, abolido no noviciado de São Julião. Clemente costumava dizer que os meses do seu noviciado oram os mais belos da sua vida. O conselho que Santo Afonso dava aos seus, de serem cartuxos em casa e apóstolos fora, condizia inteiramente com a sua inclinação. O impulso para a solidão e o desejo ardente do apostolado haviam até então lutado em sua alma, e agora via esses dois sentimentos harmoniosamente unidos em sua Congregação. Tornou-se Redentorista de corpo e alma, entregando e consagrando à Congregação o amor robusto do seu coração, tomando por lema da sua vida trabalhar por ela, e por ela dar até a última gota do seu sangue. Eis porque mal entrando na Congregação do Santíssimo Redentor já sonhava com a propagação desta no Norte da Europa; queria levá-la à sua Pátria, fazê-la conhecida e amada de todos: disso nunca fez segredo durante o noviciado. As circunstâncias, porém, não pareciam favoráveis aos dois noviços austríacos. Os próprios companheiros de noviciado sacudiam a cabeça achando até atrevimento, o quererem dois pobres padeiros, que não conheciam ainda a fundo a teologia, implantar a Congregação na Áustria numa época em que tudo se conjurava contra os conventos. Essa notícia transpôs os limites dos Estados Pontifícios e chegou aos ouvidos do Santo Fundador, que residia em Nápoles. O velhinho também sorriu-se ao ouvir falar do desejo de dois austríacos, mas o seu sorriso foi a expressão da alegria e do contentamento. Essa foi uma das maiores consolações, que Deus lhe mandara em sua velhice e no meio das mais rudes provações por que ele tinha de passar nos últimos anos da sua laboriosa vida. Deus iluminou-lhe o espírito, como outrora ao velho Simeão no templo, e extremamente consolado quis, ele também, pronunciar o seu “Nunc dimittis”. Em tom profético disse Santo Afonso aos seus filhos espirituais: “Não duvideis, a Congregação há de persistir até o dia do juízo, porque não é obra minha, mas de Deus; enquanto eu viver ela continuará na obscuridade e nas humilhações; depois da minha morte, porém, ela estenderá suas asas, mormente nos países do Norte”. Para Santo Afonso eram Clemente Maria e o seu companheiro os dois homens da Providência, enviados pelo céu para consolidarem a Congregação e levarem-na para além dos Alpes. “Esses padres, acrescentou Afonso, farão muito pela glória de Deus, mas necessitam de uma luz 16

especial do céu”. E o grande bispo resignatário de Santa Agueda dos Godos, que amava a Congregação, por ele fundada, como a pupila dos seus olhos, viveu ainda três anos depois da tomada de hábito dos dois austríacos a rezar e sacrificar-se pelos dois noviços; e se Clemente Maria se tornou um grande Santo e a pedra fundamental da Congregação transalpina, deve-o em grande parte às orações que por ele fez o velhinho Fundador do seu leito de dores em Pagani. Tão grande e extraordinário foi o zelo e fervor dos dois noviços que o Superior Geral achou que podia abreviar o tempo da provação. No dia de S. José, a 19 de março de 1785, cinco meses depois da tomada de hábito, os dois austríacos fizeram a profissão religiosa, sendo logo em seguida enviados para Frosinone, que era a casa de estudos, não longe das divisas do reino de Nápoles. A sua estada nessa nova residência não devia, contudo, prolongar-se por muito tempo; em atenção à idade de Clemente e em vista dos estudos feitos na Universidade de Viena e da premente necessidade de dar início, quanto antes, à fundação além dos Alpes, julgaram os Superiores poder realizar o mais ardente desejo do coração de Clemente. Dez dias depois da profissão religiosa receberam os dois austríacos a ordenação sacerdotal na cidade de Alatri, duas horas distante de Frosinone. Debaixo de uma chuva torrencial voltaram os neopresbíteros para casa, jubilosos pela graça extraordinária que Deus lhes concedera. Segundo o costume na Áustria, esperavam uma recepção festiva e solene, um banquete opíparo, um dia de recreio, adornos em todos os quartos e corredores, em sinal de alegria da comunidade. Mas, ó decepção! O Superior de Frosinone, que bem conhecia a virtude de ambos, quis pô-la em prova já no primeiro dia. Logo que chegaram em casa, em vez desses sinais externos de regozijo, um deles teve de ler no refeitório enquanto os outros tomavam a refeição, e o outro foi auxiliar do irmão copeiro. Nada pois de banquete, de recreio, de distinções. São Clemente mais tarde, lembrando-se desse episódio de sua vida, gracejava narrando com vivas cores como ao voltar de Alatri com apetite devorador e desejo de sentar-se à mesa junto com os confrades — o Reitor, para o mortificar, mandou-lhe que servisse à comunidade e almoçasse depois. Mas isso tudo pouco importava; Clemente era padre, o pobre filho do cortador de Tasswitz podia subir ao altar, chamar do céu o próprio Deus às suas mãos. Como soe acontecer em tais circunstâncias, a vida parecia um sonho a Clemente, que não cansava de repetir: “Sou padre, ministro de Deus, para conduzir as almas ao céu”. A mãe de Clemente sobreviveu a esse acontecimento, soube que seu Joãozinho era sacerdote do Altíssimo, mas não lhe foi dado abraçá-lo depois dessa grande ventura, porque em junho desse mesmo ano veio a falecer em Tasswitz. Clemente contava 34 anos de idade quando, pela primeira vez, subiu aos degraus do altar para o santo sacrifício; era justamente a metade da vida, que Nosso Senhor lhe iria conceder. Ainda um ano passaram eles em Frosinone, ocupados com o estudo da teologia, e de um modo especial, da moral composta pelo Santo Fundador da Congregação. Os Superiores tomaram seriamente a peito a fundação redentorista na Áustria, chamaram a Roma os dois austríacos, que receberam ordens de partir logo depois do encerramento do Capítulo de Scifelli. Devido às enormes dificuldades que iriam ter na Áustria, e às circunstâncias especiais desse país, que se achava nas mãos dos “iluminados” e josefinos, receberam eles plenos poderes

com carta branca para tudo; a própria Regra sofreu pequenas modificações acidentais, devendo provisoriamente amoldar-se às lamentáveis circunstâncias do Norte, onde não se podia mencionar a palavra “missão” que se detestava como sinal de atraso; era, pois, necessário fundar — contra a Regra — escolas e colégios, aceitar paróquias, dirigir institutos etc. Clemente foi nomeado Superior, e dele esperavam todos o maior êxito possível para a glória de Deus e a salvação das almas.

PARTE SEGUNDA Na capital da Polônia (1787-1808) CAPÍTULO I

Os primeiros anos em Varsóvia Em Viena — Estado lamentável da religião na Áustria — Destina-se à Curlândia — Fica em Varsóvia — S. Beno — As primeiras dificuldades — Senhor, agora é tempo — Restaura a igreja — Visita de Sto. Afonso — Um colégio em Roma — Os grandes planos — Recrutamento — O demônio em ação. Em vestes de sacerdotes seculares Clemente e Thadeu Hübl tomaram o caminho mais breve em direção a Viena; ao avistarem as primeiras casas da grande Capital sentiram os corações palpitar de contentamento, e prostrados agradeceram à Providência, que lhes fizera ver novamente a cidade onde tantos anos haviam labutado pela existência com saudades do sacerdócio; visitaram as pessoas da sua amizade, maxime as insignes benfeitoras von Maul, o antigo mestre e amigo da “A pera de ferro”, e em geral a todos a quem deviam algum favor especial. Depois de cumprindo esse primeiro dever de gratidão, o Pe. Clemente Maria começou a ocupar-se seriamente da missão que lhe fora confiada, de introduzir na grande cidade do Danúbio a sua querida Congregação do Santíssimo Redentor. Dificuldades de todo o gênero impediam-lhe os passos e baldavam-lhe os esforços. O racionalismo e o jansenismo haviam já escravizado a Áustria levando tudo a ferro e fogo e procurando abafar e extinguir todo e qualquer sentimento católico. O imperador José II, instigado pelos ministros e pela política contrária, baixava decretos e mais decretos que suprimiam os conventos, perseguiam os religiosos e impediam o exercício livre do culto divino. No espaço de apenas cinco anos suprimira nada menos de sessenta e quatro conventos na Boêmia e trinta na Áustria, bem como todas as Ordens mendicantes, não excetuando as irmãs de caridade. Os governantes precisavam de quartéis para os soldados — e para isso os conventos prestavam-se admiravelmente; os religiosos foram expulsos, as bibliotecas saqueadas, as obras de arte despedaçadas e os próprios esquifes preciosos, que guardavam os restos mortais dos antigos fidalgos, foram postos em hasta pública. A par de todas essas injustiças, forjavam-se ainda contra os religiosos as maiores calúnias, como se quisessem assim justificar seu nefando procedimento. S. Clemente considerando tudo isso sentiu a espada traspassar-lhe a alma; não era possível, em tais circunstâncias, nem sequer pensar em fundações de conventos em Viena, e muito menos de uma residência de Redentoristas que ninguém ainda conhecia, uma Congregação estrangeira, emissária talvez do papismo que os governantes detestavam. Além disso S. Clemente havia pecado gravemente contra o decreto de José II, recebendo o sacerdócio fora da 17

Áustria, sem passar pelo seminário organizado pelo governo. De tudo isto S. Clemente informou o Superior Geral em Roma, mas convencido de sua missão e movido do desejo de não privar sua Pátria dos benefícios da religião, pôs-se à disposição da Propagação da fé com a licença do Superior Geral. O Núncio de Varsóvia acabava de pedir sacerdotes alemães para a província da Curlândia na Rússia por conselho da imperatriz Catarina II, que embora má em sua vida particular, compreendia que só pela proteção outorgada à religião poderia ganhar para si os católicos da nova província, que lhe ficou cabendo na divisão da Polônia. O Superior Geral autorizou os dois Redentoristas a trabalhar na Curlândia, fundar casas e aceitar noviços. Sem mais detença aprontam a mala e põem-se a caminho, dispostos a transpor a pé as 200 léguas que vão de Viena a Varsóvia. Já se achavam fora da cidade, quando deram com um pobre ermitão, vestido pobremente com o capuz cinzento às costas e um bordão na mão: era o velho eremita de Tívoli, Manoel Kunzmann, amigo de S. Clemente, o qual se achava em viagem de visita às relíquias dos Santos Reis Magos em Colônia. S. Clemente o convidou a entrar na Congregação e a acompanhá-lo à Curlândia. Manoel aceitou gostosamente o convite e tornou-se assim o primeiro noviço, admitido por S. Clemente na Congregação. S. Clemente, ao partir de Viena, passando por perto de Znaim fez uma pequena volta a fim de visitar os seus parentes e amigos; de Znaim foi a Tasswitz, sua cidade natal, onde sentiu renascerem em sua alma as mais gratas recordações da infância: conhecia ainda tudo, a igrejinha era a mesma de outrora sem nenhuma modificação, os prédios não apresentavam nenhuma alteração considerável; ao chegar à casa, onde nascera, bateu à porta e radiante de satisfação abraçou sua boa irmã, que já não via há muitos anos; dirigiu-se em seguida ao cemitério, e diante do túmulo de sua mãe ajoelhou-se e, as lágrimas a correrlhe pelas faces, rezou por intenção de sua santa mãe, agradecendo-lhe os benefícios, sobretudo a boa educação cristã que dela recebera. Entretanto o tempo urgia e Clemente não podia demorar-se muito; a obediência chamava-o à Curlândia, onde tantas almas sedentas da verdade e ávidas do pão da palavra divina reclamavam seu suor e suas fadigas. Como o Núncio Apostólico, D. Fernando Salluzo, nobre napolitano e íntimo amigo de Sto. Afonso, se achava em Varsóvia nessa ocasião, resolveram os missionários passar por lá afim de receberem a necessária jurisdição para a Curlândia e as ordens do Superior Geral. Mons. Salluzo, porém, não os quis deixar ir adiante, reteveos em Varsóvia confiando-lhes a cura espiritual dos alemães, antigamente entregue aos cuidados dos padres jesuítas, e há treze anos já sem pastor. Depois dos necessários entendimentos com a Congregação da Propaganda Fide e o Superior Geral dos Redentoristas, e com a permissão de Poniatowski, rei da Polônia, receberam eles a Igreja de S. Beno, construída sobre uma colina no ponto extremo da cidade de Varsóvia. Essa igreja, embora não muito vasta, comportava cerca de mil pessoas e possuía três altares. Na capela-mor, abaixo da estátua de S. Beno achava-se o quadro milagroso de Nossa Senhora Auxiliadora, venerada com amor pela população de Varsóvia; dos outros altares um era dedicado a S. José e o outro a Jesus preso à coluna na flagelação; invocações essas que condiziam admiravelmente com as devoções de S. Cle18

mente. A casa que lhe serviria de convento era mais do que modesta; além de muito pequena, era úmida e desprovida de tudo; uma mesinha e algumas cadeiras velhas constituíam a única mobília da nova residência e do primeiro convento dos Redentoristas além dos Alpes; não havia livros, nem relógio, nem estampas, nem camas, nem utensílios de cozinha e — o que era ainda pior — nem dinheiro para comprá-los. A igreja participava inteiramente da sorte do convento: Não possuía um vintém, nem título algum de rendas, de sorte que se tornava difícil obter o azeite para a lâmpada, a cera para o altar e o vinho para a missa. Os dois padres encetaram logo sua atividade apostólica na igreja, celebrando, ouvindo confissões e pregando em alemão. Fr. Manoel servia de cozinheiro e porteiro; de alfaiate não se precisava, porque cada um remendava o que lhe pertencia. A cozinha, porém, era lastimável em toda a extensão da palavra, pois que Fr. Manoel, que nunca exercera o ofício de cozinheiro em sua vida, por força das circunstâncias, tornara-se o cozinheiro-mor da nova comunidade; de uns pedaços de madeira improvisou os talheres para a cozinha; pratos e caçarolas recebeu-as de presente de umas pessoas caridosas, que se apiedaram dos pobres religiosos. O mais difícil era digerir o preparado na cozinha do Irmão Manoel; não poucas vezes foi necessário ao Pe. Superior, ao sair do confessionário ou ao descer do púlpito, ir à cozinha, cingir o avental e preparar a refeição. O fazer as camas não fatigava ninguém; Irmão Manoel estendia-se sobre o banco e os dois padres procuravam o repouso sobre a dura mesa. O Pe. Clemente, embora amante apaixonado da pobreza, sentia, ver seu caro confrade sofrer tantas privações; não tinha a quem recorrer senão ao melhor de todos os benfeitores; nos momentos mais penosos, quando faltava o necessário em casa, ia à Igreja, ajoelhava-se diante do sacrário e, sentindo-se com coragem, subia os degraus do altar, batia à porta do sacrário e, cheio de confiança, parecia acordar a Jesus como outrora os Apóstolos, e dizia-lhe: “Senhor, agora é tempo”. E — ó prodígio! — muitas vezes, depois dessas cenas tocantes, batiam à porta do convento; eram benfeitores que traziam alguma coisa para os padres de S. Beno. Um dos primeiros trabalhos de S. Clemente em Varsóvia, como ele mesmo narra em uma carta, consistiu em fundar e dirigir escolas alemãs, que eram lá desconhecidas até então. O trabalho tornou-se em breve exaustivo pela enorme afluência de alunos alemães, polacos e russos; até meninos protestantes pediram admissão na escola de S. Beno. Os livros escolares compravam-se todos em Viena; o local comportava cerca de 200 crianças, não contando os órfãos, que eram numerosos. O serviço da igreja, no princípio, não tomava muito tempo aos sacerdotes. Depois de feita a necessária limpeza das paredes e dos altares, os missionários puseram-se a trabalhar no confessionário e no púlpito, mas a assistência era diminuta; no primeiro ano distribuíram apenas 2.000 comunhões. Os alemães eram frios e indiferentes para as coisas da religião, enquanto que os polacos fugiam ou evitavam propositalmente os Benonitas, aos quais desprezavam como a estrangeiros e mais ainda como alemães, que o povo considerava luteranos. O fato de que em S. Beno se pregava em alemão e se davam aulas nessa língua, foi interpretado como um ensaio de germanização dos polacos. A tudo

isso ajuntava-se ainda a desesperada situação financeira, a pobreza mais que franciscana. A pobre comunidade só tinha o conforto do céu, que felizmente não faltava. Deus conhecia a virtude daqueles heróis, a sinceridade e a boa vontade de seus corações, e como os queria para instrumento na realização de seus divinos planos na restauração moral da Europa, aprouve-lhe aperfeiçoálos na prática da mais completa abnegação. Sem abrirem os lábios para a menor queixa, suportaram tudo resignados — e Deus mostrou-se contente e satisfeito com eles de um modo visível. Como que para aprovar a nova fundação, Clemente teve um dia um aviso do céu. Era o dia 1 de agosto de 1787, e não fazia ainda um ano que os padres tinham aberto a residência de S. Beno. Depois do meio-dia, estando os dois missionários a recrear-se no Senhor e a conversar sobre as dificuldades, que se multiplicavam de dia para dia em Varsóvia, ouviram subitamente um ruído inexplicável, que os fez estremecer nos bancos. Clemente dirigindo-se a Thadeu Hübl disse-lhe: “Com certeza este é o sinal de que o nosso Fundador acaba de falecer”. E com efeito, tomaram nota do dia e da hora e, meses depois, souberam ter passado à melhor vida justamente naquela data, o grande Sto. Afonso, que, desejoso de conhecer seus filhos e de abençoá-los, foi visitá-los no momento em que subiu ao céu. S. Clemente, depois dos primeiros meses em Varsóvia, quase se decidira a voltar para a Itália. Quem conhece bem os grandes planos do Santo não estranha esse resolução, que à primeira vista, parece um tanto precipitada, e fruto de um espírito indeciso, fraco e volúvel. O desejo de S. Clemente não era achar para si e para o Pe. Thadeu um campo qualquer de trabalho; a missão, de que ele se sabia incumbido, era de formar nas terras do Norte um ramo viçoso da Congregação Redentorista, e isso o mais breve possível, pois que não podiam nem queriam viver longe de uma comunidade completa, onde pudessem observar a Regra e executar todos os seus preceitos com a maior exatidão e pontualidade. É o próprio Superior Geral que lhe escreve: “Se não houver esperança de se fundar ai um convento, o melhor é voltar para Itália”. Apenas chegado em Varsóvia, dera S. Clemente os primeiros passos para a realização dessa grandiosa missão, mas sem resultado; as circunstâncias declararam-se contra ela, e as experiências feitas fracassaram tristemente. Da Itália não lhe podiam mandar reforços de pessoal nem de dinheiro, e dois alemães, que entretanto pediram admissão no Instituto, abandonaram logo a Congregação. Uma idéia grandiosa reanimou-lhe ainda a esperança: a fundação de um grande colégio na Itália, quanto possível em Roma, com o fim de educar e formar os alemães para a Congregação e para o Norte; chegou a expor essa idéia ao Núncio e ao Superior Geral, que aplaudiram e aprovaram o grandioso plano. Mas onde levantar esse colégio? O Superior Geral ofereceu S. Julião, como único local menos mau para isso. — Em vista da estreiteza da casa e da impossibilidade de encontrar outro lugar, teve S. Clemente de desistir desse grande plano, que entretanto o preocupou até os últimos anos da sua vida. S. Clemente, porém, depositando toda a sua confiança na Providência, pôs-se a trabalhar, na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Deus haveria de ajudá-lo na realização da missão que o céu lhe dera. Conhecedor profundo das almas quis começar seu plano de reforma pelo clero, que não pecava por 19

exagero de piedade, mas Dalberg e Wessenberg embargaram-lhe os passos; dirigiu seus olhares para os protestantes da Alemanha e da Suíça para convertêlos; chegou a envolver em seus gigantescos planos a América e a Ásia, na convicção de que Deus não o poderia abandonar na grandiosa empresa, que visava tão somente a glória divina e o bem das almas. Seus planos eram vastos e ilimitados, porque imenso era o zelo pela salvação das almas, e ardente o desejo de difundir o reino de Deus em toda parte; não era apenas fantasia ou sonho de uma natureza doentia, pois que, onde Clemente punha os pés, brotava a vida de piedade e floresciam as virtudes. Em toda parte, porém, colheu desilusões bem amargas; se todos os planos de S. Clemente se tivessem realizado, a sua biografia seria uma das mais interessantes, mais variadas pela multiplicidade e variedade dos pontos de vista com que ele encarava as coisas, sabendo dar a tudo, com admirável precisão, a unidade de ação. É sob esse aspecto que se compreendem as palavras do grande poeta Zacharias Werner, que afirmava, serem Napoleão e Clemente os maiores gênios, os mais abalizados talentos do seu século. Embora não nos seja dado o prazer de contemplar, admirados, a realização dos intentos grandiosos de S. Clemente, curvemo-nos ante as suas virtudes excepcionais, sua humildade, seu desprendimento, sua confiança em Deus e sua fortaleza inabalável. Para Clemente não havia outro remédio, senão contentar-se provisoriamente com o movimento localizado na Igreja de S. Beno e ai receber os noviços que Deus lhe mandasse, e viver da esperança de um futuro mais favorável na mais inteira confiança em a Providência. Aprouve a Deus consolar seu humilde Servo que, batido das adversidades, colocara sob a proteção do Altíssimo a sua pessoa e os seus maravilhosos planos. Além de um Irmão leigo pediu admissão no convento de S. Beno, logo no ano seguinte, um saxônio, alto no corpo e grande no coração, de um temperamento pacato e sisudo: O Pe. Jestersheim que mais tarde se tornou uma das colunas da comunidade de Varsóvia. As esperanças de Clemente readquiriram novo vigor com a entrada desse esperançoso jovem. Para maior facilidade no desempenho do seu cargo o Superior Geral nomeou Clemente seu representante com todas as faculdades e poderes além dos Alpes, delegação essa que se tornara necessária, porquanto Clemente se achava, em S. Beno, sobrecarregado de trabalhos: era o mesmo tempo Superior de Varsóvia, vigário, mestreescola, mestre de noviços e pai dos órfãos. Em 1791 existia já em São Beno uma respeitável comunidade de cinco padres e dois irmãos leigos, com um noviciado de quatro clérigos, que faziam entrever um belo futuro e davam as maiores e as mais consoladoras esperanças. Ao ser informado desse estado florescente da Congregação transalpina, o Superior Geral escreveu a Clemente: “Congratulo-me convosco pelos muitos trabalhos que tendes; quem me dera poder, também eu, ir batalhar ao vosso lado! Coragem, não desanimeis na missão sublime que Jesus vos confiou; eus dar-vos-á, pelos vossos trabalhos, a recompensa que esperais”. As dificuldades financeiras, porém, continuavam sempre mais prementes, e se não fosse um adjutório de cem escudos oferecidos gentilmente pela Propaganda para cobrir as grandes e forçadas despesas da comunidade e do culto, bem como as palavras reconfortantes do Núncio, que apreciava imensamen-

te os trabalhos dos Redentoristas, Clemente teria voltado à Itália, e a grande obra da reforma dos costumes da Polônia e na Áustria ficaria por fazer, Deus sabe até quando. O demônio, que não estava nada contente com a piedade sempre crescente em S. Beno, envidou os maiores esforços para destruir a obra começada com tão belos auspícios e tão brilhantes êxitos espirituais para as almas. Por intrigas e má vontade de um dos padres, que logo depois abandonou a Congregação, começaram a surgir certas desinteligências entre Varsóvia e Roma, de sorte que o Procurador Geral dos Redentoristas julgou necessário pedir ao Núncio Apostólico que verificasse, se de fato Clemente havia falsificado a Regra, e o Superior Geral, desconfiado pela falta de cartas que explicassem a situação, perguntou a Clemente, se os padres de S. Beno planejavam uma ruptura de relações com a Congregação, pretendendo declarar-se independentes. Essas suspeitas cresciam, dia a dia, por causa da desorganização dos correios e em conseqüência das guerras e outras perturbações sociais, que tornavam difícil, para não dizer quase impossível a comunicação epistolar com Roma. A correspondência era feita ou por portadores especiais ou, então, por intermédio da Nunciatura. Devido a tudo isso a questão entre S. Beno e Roma azedou-se de forma que Clemente chegou a pedir ao Superior Geral a exoneração do pesado cargo de Vigário Geral da Congregação, pedido esse que ficou sem efeito. O ano de 1790 começou alvissareiro para a Congregação Redentorista; às casas do reino de Nápoles, que por decreto real não podiam antes seguir o regulamento aprovado pelo Papa, foi permitido pelo rei seguir a Regra antiga sem falsificações, operando-se assim a união delas aos conventos dos Estados Pontifícios; o Capítulo Geral reunido elegeu Reitor-mor o padre Paulo Blasucci, cujo governo abrangia então as dezoito casas da Congregação, existentes nos Estados Pontifícios, na Sicília, em Nápoles e em Varsóvia. São Clemente foi confirmado pelo Superior Geral no campo de Vigário Geral e de representante do Reitor-mor para todos os efeitos, além dos Alpes. Clemente, para se tornar menos impedido no desempenho de seu cargo, procurou dividir um pouco o peso da responsabilidade imediata, nomeando o padre Thadeu Hübl Reitor da casa e o Pe. Jestersheim ministros do convento. A coisa ia pois desenvolvendose admiravelmente a contento de todos e com a garantia da proteção do Rei que também se dignou de reconhecer, aprovar e admitir em toda a Polônia, de uma vez para sempre, a Congregação dos Redentoristas.

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CAPÍTULO II

O apostolado em Varsóvia Polônia e sua história — Finis Poloniae — O comando da Prússia — Os trabalhos apostólicos — Corpus Christi — O confessionário e o púlpito — Vida de convento — As escolas — Os oblatos Redentoristas — Apostolado da imprensa. Nos primeiros anos, a contar de 1790, S. Clemente pouco se preocupou com os trabalhos de fundações, que se tornaram impossíveis devido às numerosas guerras encetadas e realizadas nesse lapso de tempo. Varsóvia não foi poupada nesses tempos calamitosos; antes parecia ter sido escolhida para teatro principal e mais doloroso das graves perturbações européias de então. Desde o primeiro desmembramento a Polônia não conseguiu mais levantar-se da sua ruína. Catarina II da Rússia, de há muito, planejara-lhe a ruína completa; de nada valeu a brilhante vitória conquistada com bravura por Cosciusko em Cracóvia. Varsóvia passou a pertencer ao domínio da Prússia. A prepotente imperatriz da Rússia impôs ao reino da Polônia a Estanislau Poniatowski, seu favorito, rei sem energia e sem amor à Pátria, dado às letras e à estética, porém sem caráter e sem força moral “rei das mulheres e não rei dos heróis”. A nobreza da Polônia, outrora tão forte e poderosa, acabara de enfraquecer-se nos combates contra a Rússia; a flor da fidalguia polaca sucumbira, em parte, nos combates sangrentos empreendidos em defesa sagrada da Pátria, e em parte, sob o ferro desapiedado dos carrascos. Dentre os nobres restaurantes, quase todos preferiam comer o pão do exílio e mendigar o sustento longe da Pátria, a curvar-se ante o domínio humilhante da Rússia. Entre os poucos nobres, que se deixaram ficar na Polônia, reinava a mais degradante desunião; porque, enquanto uns se prontificaram a derramar o sangue pela Pátria, outros venderamse vergonhosamente à Rússia, cuja devassidão procuravam imitar. Infelizmente também alguns prelados seguiram em tudo a nobreza; os que com heroísmo cristão se levantaram contra os ataques do cisma russo e da violência do domínio estrangeiro, foram deportados para a Sibéria e outros pontos da Rússia. Os seus substitutos não passavam de humildes criaturas da imperatriz Catarina e juntamente com a nobreza degenerada puxavam o carro triunfante da Czarina. O baixo clero, em grande parte ignorante, deixava-se guiar quase em tudo pelos seus prelados. O comércio achava-se todo nas mãos dos judeus, que se enriqueciam explorando escandalosamente os cristãos enquanto que a indústria pertencia exclusivamente a estrangeiros. Nas guerras de 1764 e 1772 foram arrasadas aldeias, vilas e cidades inteiras pelos cossacos russos, sendo os seus habitantes, homens e mulheres, velhos e crianças, trucidados com a mais

requintada barbaridade. Em última análise todas essas calamidades e misérias recaíam sobre os pobres lavradores e operários, oprimindo-os e esmagandoos. Apesar de tudo isso, o reino conseguiu recolher ainda as últimas forças para se levantar de tamanha ruína. O próprio rei colocou-se à frente do povo, restabelecendo assim a ordem e a tranqüilidade pública. Catarina, que ambicionava para si a Polônia, não podia ver com bons olhos esse estado de coisas; sob pretexto de tutelar a ordem expediu para a Polônia os militares que, desde a paz com a Turquia em 1792, estavam à disposição da Czarina. Os Polacos, em justa defesa, pediram auxílio em toda a parte, porém debalde; a Saxônia achava-se demasiado enfraquecida, a Áustria estava ainda ocupada com a França; a Turquia não se restabelecera bastantemente de última guerra; restava ainda a Prússia, que anciava por receber um bom pedaço da Polônia depois de feita a divisão. No auge do desespero os polacos pegaram em armas, prontos e dispostos a todas as eventualidades; o rei amedrontado passou vergonhosamente ao lado dos russos e o general polaco traiu o seu exército. Cosciusko, o último herói da Polônia, com seu exército diminuto embora composto só de heróis, não pôde resistir ao número colossal dos soldados russos, e assim em 1793 efetuou-se o segundo desmembramento da pobre Polônia. NO ano seguinte, ao receber-se a ordem do desarmamento completo dos polacos organizou-se em Cracóvia um levantamento com Cosciusko à frente; o povo parecia eletrizado pelo entusiasmo e pela esperança da vitória, porquanto a sorte das armas estava a sorrir-lhe favoravelmente; os russos foram esmagados em Varsóvia, e em geral, em todos os pontos do país. O ódio e a indignação popular contra os inimigos da Pátria era tal, que em Varsóvia se improvisaram forcas onde pereceram todos os grandes amigos dos russos; durante o último combate contra os súditos da Czarina os polacos penetraram nas prisões e trucidaram os prisioneiros prussianos e russos. Em meados de julho apresentou-se o exército prussiano às portas de Varsóvia, onde se travou um sangrento combate, enquanto os russos avançaram pelo lado oposto; indignados e exasperados os polacos formaram um novo exército para debelá-los, e em um só combate, os russos perderam 9.000 homens. Em 10 de outubro o próprio Cosciusko comandou em pessoa o exército polaco, composto de 10.000 heróis; o combate foi tão renhido que, em seis horas, as forças polacas ficaram reduzidas a 2.000 homens caindo 8.000 gloriosamente no campo de batalha; Cosciusko atingido por uma espada inimiga exclamou: Finis Poloniae. O caminho para Varsóvia estava pois aberto; em novembro entraram os russos em Praga, que serve de arrabalde a Varsóvia, em cujas ruas os polacos, homens e mulheres, se defendiam como leões; mas como o exército inimigo era demasiado grande, a vitória declarou-se a favor dos russos, cujo general Suwarow, indignado e enfurecido, mandou passar a fio da espada a população inteira, correndo o sangue em torrentes pelas ruas da cidade; os que tentaram fugir foram afogados no Vistula. Varsóvia lutou, porém, debalde; a 13 de junho de 1795 passou a ser uma possessão prussiana. O assédio da cidade pelos russos S. Clemente o descreve a seu Superior Geral: “Mal libertados do assédio prussiano presenciamos o dos russos, o qual, embora não demorasse muito, teve um resultado horrível: mais de 16.000 homens, 21

mulheres e crianças foram trucidados barbaramente; a nós coube a infelicidade de ser testemunhas dessas cenas horrorosas que se deram em frente da nossa casa à margem do Vistula; graças a Deus nada sofremos dos milhares de armas de fogo russas; os tiros passaram por sobre o telhado da igreja e da nossa residência, estando nós sempre em gravíssimo perigo de morte”. Foi nessa ocasião que S. Clemente fez o voto de ir em romaria a S. João Nepomuceno em Praga, se Varsóvia fosse poupada. Vinte meses esteve Varsóvia sob o domínio russo, o que lhe foi de grande vantagem. O governo verificando serem pequenas as acomodações escolares, destinadas aos pobres, ofereceu generosamente os meios para a construção de escolas mais espaçosas. O convento de S. Beno foi aumentado e as suas necessidades providas pelo governo. Esse estado de coisas, porém, não durou muito tempo, pois que em 1796 Varsóvia foi entregue oficialmente à Prússia, que lá governou durante dez anos. Os tempos normalizaram-se, mas Varsóvia decaiu consideravelmente, baixando de 120.000 habitantes a apenas 68.000. S. Beno lucrou muito com a chegada dos Prussianos, que viam nos padres Redentoristas um reforço do elemento alemão, embora os Redentoristas se conservassem sempre neutros, distribuindo seus benefícios indistintamente a alemães e polacos. De um documento daquele tempo temos a seguinte notícia: “Atualmente sustenta o Instituto (de S. Beno) 40 crianças e fornece instrução a 200; esta ramifica-se no ensino do alemão, polaco, latim, religião, história, geografia, história natural...; os professores são homens de talento”. A atividade espiritual desenvolvida por S. Clemente e seus padres na Igreja de S. Beno excede a qualquer descrição; foi coisa nunca vista na Europa. O povo, compreendendo que os Benonitas — assim chamavam os Redentoristas — longe de qualquer pretensão política apenas procuravam a glória de Deus e o bem das almas, mormente entre a mocidade, escolheu a Igreja de S. Beno para centro de edificante piedade. Desde o dia do assalto de Varsóvia em 1794 a igreja começou a apinhar-se de povo, mais de polacos que de alemães, porque aqueles se deliciavam em ouvir as pregações polacas do Pe. Podgorski, que possuía um exterior angélico e a eloqüência de um João Crisóstomo. O número das comunhões distribuídas é a prova mais evidente e incontestável do progresso consolador e sempre crescente da vida de piedade na Igreja dos Benonitas; quando os padres lá chegaram havia 2.000 comunhões anuais, em 1800 já houve 100.000. Nas funções religiosas a aglomeração era tanta, que não cabendo na igreja, que comportava só mil pessoas, os fiéis ficavam a rezar no cemitério e ao longo das ruas para ao menos de longe ouvirem missa aos domingos. Com a introdução de novas devoções e exercícios, como novenas, tríduos etc. não passava um dia sem pregações, missas solenes etc. Isso foi um sucesso extraordinário, porque Polacos se sentem bem quando as missas e as funções religiosas se prolongam por muito tempo e são realizadas com pompa. Em 1800 já todos os moradores de Varsóvia e das imediações conheciam e estimavam a Igreja de S. Beno, onde se pregava uma missão contínua. É o próprio S. Clemente quem nos dá a seguinte descrição dos seus trabalhos em S. Beno: “Aos domingos e dias santos, às 5 horas da manhã há instrução para os operários e empregados, que não podem ouvir, em outra hora, a palavra divina, havendo em seguida uma missa para eles; nos dias úteis omite-se essa

pregação. Todos os dias á uma missa às 6 horas com exposição do Santíssimo, durante o qual o povo canta, havendo em seguida uma instrução ao povo em polaco; durante a instrução celebram-se missas para aqueles que não compreendem alemão nem polaco. Às 8 horas, missa cantada a cantochão com uma pregação em polaco, e logo em seguida uma outra em alemão. Terminada essa instrução os meninos da escola vão à igreja, onde começa a missa solene a grande orquestra: assim encerra-se o culto da manhã. Depois no meio-dia: aos domingos e dias santos há catecismo para as crianças às 2 horas, às 3 h. as irmandades cantam o ofício parvo de Nossa Senhora, às 4 h. há pregação para os alemães, seguida de vésperas solenes; terminadas estas, uma pregação em polaco e enfim a visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora segundo o método do venerável Servo de Deus, Afonso de Ligório. Nos dias úteis os exercícios pomeridianos começam só depois da aula. Todos os dias às 5 horas da tarde há pregação em alemão, visita ao Santíssimo e em seguida outra pregação em polaco, via sacra e cânticos sacros em louvor de Jesus Sacramentado e da Santíssima Virgem; rematando tudo faz-se com o povo o exame de consciência, rezam-se os atos cristãos, procede-se à leitura da vida do Santo, cuja festa a igreja celebra no dia seguinte, e por fim a ladainha de Nossa Senhora, findo o que fecha-se a igreja”. Essa era a vida em S. Beno no longo período de dez anos! Cada dia cinco pregações: três em polaco e duas em alemão, aos domingos ainda duas aulas de catecismo; diariamente três missas solenes e tantos outros exercícios. E como tudo isso não se fazia para o mesmo público, mas para diversas classes de pessoas que se revezavam, era aquilo uma missão contínua de dez anos. Alguns talvez sintam tentação de pensar, ser essa atividade um exagero e quiçá, um abuso. Quem porém conhece o estado deplorável em que se achava Varsóvia em matéria de fé e de costumes, certamente se convencerá da grande sabedoria e prudência, que nesse particular guiaram a S. Clemente, cujo desejo sincero era a reforma radical e a restauração da sociedade tão decaída. “Escândalos, vícios”, escreve ele, “atingiram aqui o seu auge e é difícil encontrar o caminho mais seguro e o modo mais eficaz de melhorar a situação; desde o clero até o mais miserável mendigo está tudo corrompido; é para se temer que Deus afaste o candelabro do seu lugar”. E S. Clemente não exagerava. Varsóvia possuía mais ou menos o caráter e as qualidades das grandes cidades modernas, a saber: frivolidade a descrença nas altas rodas sociais, e ignorância e imoralidade no povo baixo. Um outro escritor, conhecedor profundo daquele tempo, descreve a alta sociedade de então: “Varsóvia da alta aristocracia, que se revolvia e remexia atrás do carro triunfal da revolução francesa, corroída nas orgias do rei Estanislau pela depravação da sensualidade, a Varsóvia de então com seus palácios, com seus adultérios nos salões, com suas profanações do matrimônio pelo dinheiro vil, não queria saber de Deus nem do bem da Pátria, contanto que lhe fosse dado gozar e divertir-se”. S. Clemente ainda supunha pouco o que se fazia então, não pela falta de sacerdotes e conventos da cidade, que contava 400 padres seculares e 15 regulares, mas pela falta de atividade no clero. “Fora da igreja dos Lazaristas e dos Reformados”, escreve ele, “só se prega uma vez por semana nas outras igrejas de Varsóvia e isso mesmo de modo incompreensível para o povo, sem 22

entusiasmo e sem espírito”. Para necessidades supremas remédios extraordinários: eis a lógica natural e simples que organizou a missão contínua de S. Beno. Além disso, era essa também a única missão que se podia pregar naqueles tempos calamitosos. É necessário notar que, com esses trabalhos múltiplos e constantes, S. Clemente não se mostrava cruel para seus padres martirizando-os, porque o Santo cuidava sempre para que o serviço fosse bem dividido os diversos sacerdotes da comunidade. O povo, em extremo satisfeito e contente com as solenidades pomposas e os esforços aturados dos Redentoristas, não hesitava em ofertar o necessário para o sustento do culto e as despesas da igreja, e São Clemente não conhecia limites em sua generosidade em se tratando da glória de Deus e dos Santos. De um modo todo especial fazia o Servo de Deus revestirem-se de solenidade e pompa as procissões do Santíssimo Sacramento, mormente na festa de Corpus Christi, em que a Igreja presta publicamente a Jesus as homenagens de sua gratidão pelos tesouros de graças recebidas da Eucaristia no altar e especialmente na mesa da comunhão. Nesse dia adornava a igreja com as mais lindas flores que encontrava na cidade, não se preocupando com o preço delas. Como a procissão só se podia fazer ao redor da igreja, providenciava para que esta e o largo se achassem profusamente ornamentados de luzes e flores; doze coroinhas caminhavam com turíbulos fumegando, enquanto que uma multidão de meninos, adornados de prata e ouro, espargiam flores diante do Santíssimo; os sacerdotes compareciam paramentados de pluviais riquíssimos; sendo o palio, mais suntuoso ainda, carregado pelos seis senhores mais nobres da cidade; senhoras da mais alta nobreza e até príncipes faziam questão de trabalhar, cada ano, no adorno do palio no qual pregavam flores e emblemas, da Eucaristia; só o ouro no palio avaliava-se em 3.000 escudos perto do ostensório formavam a guarda nobre do Santíssimo numerosos rapazes, em cujas vestes reluziam a prata e o ouro, com asas douradas, simbolizando os querubins que rodeiam o trono do Altíssimo no céu. Na frente da procissão caminhavam as Associações e Irmandades com seus respectivos estandartes, símbolo da vitória de Jesus sobre o mundo, e logo em seguida, centenas de virgens, vestidas de branco, empunhando velas acesas e entoando, sem cessar, piedosos hinos a Jesus Sacramentado, enquanto que os sinos de S. Beno, como se quisessem cantar também, faziam ecoar ao longe os sentimentos de fé e o entusiasmo do povo católico. Atrás de Jesus Sacramentado ia a banda de música, prestando homenagens ao Rei dos reis, e logo em seguida os milhares de fiéis que cantavam e rezavam em voz alta. Terminada a procissão, São Clemente subia ao púlpito e com seu verbo afogueado e empolgante falava do amor imenso do Prisioneiro dos nossos tabernáculos. Terminada a alocução do Santo o Pe. Blumenau, orador arrebatado, ascendia à tribuna sagrada e discorria, em polaco, sobre o mesmo assunto, arrancando lágrimas aos ouvintes. Com essas solenidades externas queria S. Clemente, além de prestar publicamente as homenagens de adoração que competem a Jesus, chamar a atenção do povo e guiá-lo para Deus; “as solenidades públicas”, dizia ele, “atraem por seu esplendor e aos poucos cativam o povo, que ouve mais com os olhos do que com os ouvidos”.

No ministério apostólico a coisa principal para S. Clemente não eram essas exterioridades, mas sim o púlpito e o confessionário; durante as longas solenidades religiosas, tão queridas dos Polacos, os confessionários achavam-se constantemente assediados de penitentes. De longe, até de vinte léguas de distância, iam pessoas a S. Beno para recuperar a paz do coração e da consciência. No púlpito um dos temas prediletos de S. Clemente, em essas ocasiões extraordinárias, era a sublimidade da fé. Nessas pregações mostrava-se incansável e inesgotável, realizando à risca as palavras de S. Paulo: praedica verbum, insta opportune et importune (2 Thim. 4, 2). Em S. Beno faziam-se anualmente cerca de duas mil pregações, em que S. Clemente e os seus padres esgotavam, nas duas línguas, todas as verdades do símbolo e do decálogo. Tantos esforços não podiam ficar frustrados e sem resultado; a palavra divina, pronunciada por lábios tão santos, devia necessariamente mover os corações e ilustrar os espíritos. E de fato; o povo de Varsóvia transformou-se completamente, de sorte que as pessoas, que freqüentavam a Igreja de S. Beno, começaram a levar uma vida de piedade, que se podia quase chamar uma vida de convento: faziam todos os dias o exame de consciência e a meditação, e por ocasião das têmporas recolhiam-se à solidão do retiro espiritual; essas pessoas piedosas, guiadas por tão sábios e prudentes Diretores, tornavam-se apóstolos para os pobres extraviados, não só pelo bom exemplo que davam, mas sobretudo pelos conselhos, boas palavras que prodigalizavam e pelas orações que, na Igreja de S. Beno, dirigiam ao céu pela conversão dos pecadores. Dessa forma a atividade desenvolvida no tempo por S. Clemente irradiava-se por toda a cidade e até para mais longe com grande proveito de inúmeras almas. A atividade religiosa de Varsóvia ficará sendo sempre o modelo clássico de uma paróquia bem organizada nas grandes cidades modernas, onde não é lícito cingir-se ao costume patriarcal das aldeias, mas onde os vigários devem ter em vista as necessidades espirituais não só das classes abastadas, mas também dos operários, dos empregados e em geral de todos os que precisam sacrificarse, o dia inteiro, a fim de ganhar o sustento para si e para os seus. É claro que esses exercícios de piedade dentro do templo não absorviam toda a atividade de S. Clemente; constituíam apenas uns pontos de seu vasto programa, pois que S. Clemente era reformador em grande estilo, de idéias largas e vastos horizontes; no momento, porém, não podia fazer muito mais por fora porque todas as portas lhe estavam fechadas e a sua ação tolhida. Suas vistas e sua atenção achavam-se também voltadas para a escola, para a mocidade, para a organização da imprensa etc. De todos esses meios pretendia ele servir-se afim de restaurar o reino de Deus nos corações dos homens. A escola, por ele fundada para as crianças pobres, auxiliava poderosamente sua ação pastoral: as meninas e os meninos convertiam-se em apóstolos junto de seus parentes; era edificante e comovente ver muitas delas ajoelhar-se diante dos pais, as mãos postas e os olhos, não poucas vezes, banhados em lágrimas, a pedir-lhes que se confessassem, fossem à igreja e ouvissem a palavra de Deus. O método seguido por S. Clemente na educação da infância, como veremos adiante, era todo dele e ditado por uma fé profunda e uma experiência de muitos anos. “No princípio das aulas”, dizia ele, “basta que se leia, todos os dias, para as crianças alguma pericope do Evangelho, isso 23

causa grande impressão nos pequenos”. Depois da aula conduzia as crianças à igreja, cantava com elas e rezava algumas das orações que haviam decorado na escola. Assim a teoria unia-se à prática, e mais indelevelmente se imprimia na memória das crianças. Maior caridade dedicava às meninas, que corriam perigo de se perderem devido à grande imoralidade, que campeava livre e soberana na cidade em todos os cantos e direções; S. Clemente esmerava-se em preservá-las da sedução por meio da instrução e da piedade. Em 1795 fundou para as meninas uma escola profissional a fim de assim habituá-las ao trabalho e garantir-lhes no futuro a honesta subsistência; para as donzelas mais piedosas e dedicadas formou-se uma Associação com vida comum, dando-lhes uma Regra própria, por ele esboçada; as Associadas receberam o nome de “irmãs de São José”. O fim que as donzelas se propunham nessa nova Instituição era, instruir gratuitamente as meninas pobres nos rudimentos das ciências e nos ofícios próprios de sua idade e sexo, e sobretudo educá-las e formá-las para moças piedosas e puras. Terminado o tempo da instrução as irmãs procuravam interná-las em casas de boas famílias. O bem que essas escolas produziam naquele tempo, pode-se perfeitamente deduzir do número de meninas que nelas se educavam em Varsóvia: era nada menos de 300 todos os anos. No tempo em que S. Clemente era ainda estudante em Viena, inscreverase na Ordem Terceira de São Francisco, e achava ser essa instituição providencial e de magníficos resultados para a conservação da fé e da piedade entre os jovens; procurou fundar também para a sua Congregação uma coisa semelhante, e essa idéia ele acalentou desde os primeiros dias da sua chegada em S. Beno. Aos poucos foi aparecendo a realização desse desejo numa espécie de ordem Terceira também para os Redentoristas: eram os Oblatos, entre os quais se achavam sacerdotes e pessoas virtuosas de ambos os sexos e de todas as classes sociais. Não viviam juntos, como no convento, mas cada um ficava em sua casa, comprometendo-se todos a tomar parte em atos determinados de vida ascética, v. g. nas meditações diárias, exame de consciência etc. O objetivo de S. Clemente, ao instituir a Associação dos Oblatos, era de promover e secundar o apostolado leigo, a defesa da Igreja, da fé e da moralidade, bem como a santificação pessoal dos membros; a essa Instituição de Oblatos deve S. Clemente grande parte dos resultados magníficos que conseguiu as simpatias de muitas famílias, às quais nunca teria podido chegar por outros meios. Como se ainda não bastasse tudo isso, S. Clemente lançou mão de um outro apostolado, talvez mais importante ainda: a imprensa. É certo que sempre se pregava em S. Beno, mas que era pequena a Igreja de S. Beno para poder conter a população da cidade que ultrapassava o número de 128.000 habitantes? E quantos havia ainda fora de Varsóvia, que não chegavam a ouvir a palavra de Deus e a instruir-se nas verdades da religião! E quantas pessoas instruídas em diversos ramos da ciência ficavam privadas da instrução religiosa por não quererem no templo ouvir a linguagem desataviada e apostólica, preferindo entreter-se com as obras melífluas e benesonantes dos jansenistas e enciclopedistas1 franceses com seus palavrões de filantropia, fraternidade, liberdade etc.! ou então deliciando-se com as obras perniciosas dos maçons e “iluminados” da Alemanha, que além de acariciar o orgulho e a sensualidade

eram escritas em linguagem elegante, poética e atraente, que mais parecia doce música e delicioso aroma que encantava os leitores e deixava as leitoras enlouquecidas e apaixonadas, mormente quando nada ainda haviam ouvido de Deus ou da religião! Eram desse quilate os livros que se espalhavam então em toda a Europa, passando de mão em mão e enervando com seu doce veneno, o pobre povo. A S. Clemente não podia passar despercebida a desgraça, sempre crescente, produzida por esses livros perniciosos; compreendendo que do púlpito não lhe era possível por um dique a esses males, recorreu à imprensa. Embora não pertencesse ele mesmo ao número dos escritores fecundos, tornou-se o maior propagandista dos livros bons já existentes e o instigador quase importuno de pessoas competentes, para que publicassem outros livros novos e instrutivos. De um modo especial dedicou-se em propagar e difundir em toda a parte os livros de S. Afonso de Ligório, que Deus suscitara como um Doutor clássico contra Jansenio e a maçonaria; essas obras obtiveram na Polônia uma aceitação tal, que bastava constar serem elas da pena de S. Afonso para terem rápida extração. Os Redentoristas de S. Beno tornaram-se heróis da pena por ordem de S. Clemente; o Pe. Thadeu Hübl traduziu para o alemão as obras de S. Afonso, que ainda faltavam, e diversas outras obras ascéticas; o Pe. Podgorski fez o mesmo para o polaco, enquanto que os padres franceses se dedicaram à tradução dessas mesmas obras para o francês. Para facilitar o trabalho da impressão S. Clemente tentou montar uma máquina tipográfica em ponto pequeno, e para a mais rápida difusão dessas obras serviu-se da Congregação mariana, cujos Associados assumiam solene compromisso de trabalhar em benefício da boa imprensa. Desejoso de consolidar para sempre o seu trabalho, não hesitou S. Clemente e, fundar Associações para todas as classes de pessoas, porém, em particular para a juventude, porque estava convencido de que baldados são todos os trabalhos em prol do povo, quando não se ganha para o bem a mocidade, de um modo duradouro, e isso com maior razão ainda porque, em geral, a mocidade costuma ser preterida e desprezada por católicos de certa categoria e até por sacerdotes, ao passo que os inimigos de Deus não se cansam de lhe proporcionar, por todas as formas, meios de perversão. Só Deus sabe, a quantos jovens de ambos os sexos a Congregação mariana dos rapazes e a Associação S. José das donzelas preservaram da corrupção, mormente naqueles tempos em que tudo parecia conspirar para a perversão da mocidade. Muitos dentre eles — mormente entre as donzelas — consagraram-se a Deus no estado religioso.

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CAPÍTULO III

Viagens de fundação O desejo mais ardente — Mitau — Radzynim — Lutkowka — O Santo em Praga — Lindau — Em Viena — Morte inesperada — Novo recrutamento — Novas dificuldades com o governo — A imagem da Virgem. Com o fim de consolidar a obra começada em Varsóvia com tanto benefício espiritual para as almas S. Clemente não saiu da cidade nos primeiros oito anos de seu apostolado na Polônia. Percebendo, porém, que sua presença em Varsóvia já não era de absoluta necessidade, e vendo, de outro lado, que o número de seus padres se aumentava dia a dia, sentiu chegada a hora de expandir o seu zelo e de tratar na execução dos seus grandes planos; era tempo de pensar em outras fundações para assim levar a graça da conversão a todos os povos. S. Clemente não ignorava ser esse o seu dever principal, essa a missão que Deus lhe confiara, pois que para isso fora mandado ao Norte. Cheio de coragem e de confiança em Deus encetou suas grandes viagens pela Europa em procura de lugares para a querida Congregação, de campos de atividade para seus filhos espirituais; o seu desejo imediato era encontrar uma residência espaçosa e vasta para acomodar os noviços, e outra não menor para os estudantes de filosofia e teologia; assim a Congregação poderia desenvolver-se e ramificar-se na Europa para regenerar a sociedade tão decaída, levantar o espírito de fé e arrebanhar as almas para o grêmio da Santa Igreja, fora da qual não há salvação. Mas para onde ir? Onde teria ele esperança de ver seus trabalhos coroados de êxito? Certamente não podia contar com o norte da Alemanha, com a Inglaterra etc. onde tudo estava eivado de protestantismo; esses países deveriam ser missionados, porém só mais tarde, quando a Congregação tivesse já conseguido firmeza e garantias de existência em outras partes. As suas vistas dirigiram-se, em primeiro lugar, para os países católicos no sul da Alemanha e na Suíça. Deus, porém, em seus planos divinos dispôs que as primeiras tentativas de fundação se fizessem na Curlândia, para onde já desde o princípio, teria ido Clemente com seu companheiro P. Thadeu Hübl, se o Núncio Apostólico não o tivesse detido em Varsóvia, ainda mais que a Curlândia acabava de ser incorporada à Rússia em virtude do terceiro desmembramento da Polônia. No princípio S. Clemente mostrou-se indeciso e um tanto sem vontade de aceitar essa fundação, apesar dos pedidos reiterados do bispo da Curlândia, que lhe punha ante os olhos a grande falta de padres na sua diocese, pois que das quarenta e duas paróquias alemãs quase todas estavam vagas, enquanto que nas outras providas os vigários já eram de idade muito avançada. O Superior Geral, Pe. Blasucci, veio tirar-lhe toda a dúvida mostrando-lhe numa carta ser a

vontade divina que se fundassem residências no Norte, ainda mais que ele esperava da Curlândia inúmeras conversões. São Clemente destacou para essa missão dois padres e um clérigo, que se dirigiram a Mitau, capital da Curlândia, e tomaram por residência o antigo convento dos padres jesuítas; poucos anos depois fundou ainda as residências de Radzynim e de Lutkowka, e mais outras teria aceito, se não fossem tão maus os tempos, porquanto se achava pronto a fazer o bem onde quer que fosse, mesmo nos países mais longínquos. De Mitau não tardaram a chegar as mais consoladoras notícias sobre a atividade dos padres e sobre o resultado obtido; os padres conseguiram cativar o povo, que neles depositava inteira confiança; os próprios luteranos, vindos de longe, iam receber a bênção dos missionários. Tudo isso fez com que S. Clemente se comprometesse, por um contrato, a enviar para lá mais sete padres, contanto que o aumento dos Redentoristas em Varsóvia correspondesse a seus cálculos; desejava que Mitau fosse para o Norte e que S. Beno era para Varsóvia e para a Polônia. Já em 1792 um nobre cavalheiro fôra da Suíça a Varsóvia para pedir a S. Clemente que se dignasse fundar em sua Pátria uma residência, expondo-lhe as belezas da Suíça e mais ainda o abandono em que se achava o povo sedento de ouvir, naqueles regiões, a palavra de Deus; por absoluta falta de pessoal teve S. Clemente de indeferir, embora muito contra a vontade, o pedido do nobre senhor; essa oferta, porém, tanto o impressionou que não lhe saiu mais da lembrança. Três anos mais tarde o convento de Varsóvia contava já maior número de religiosos. Um belo dia Clemente, havendo descido do púlpito, dirigiase à sacristia a fim de paramentar-se para o santo Sacrifício, quando recebeu de alguém uma carta; terminada a missa pôs-se o Santo a ler a escrita assinada por um cônego Lindau na Alemanha, a pedir-lhe que se lembrasse da Suabia com a fundação de um convento, e a prometer auxiliá-lo nos primeiros anos. São Clemente viu nisso o dedo da Providência e alegrou-se com o antegozo da realização de seus mais lisonjeiros intentos; iria encontrar um convento para seus noviços e assim garantir a existência dos Redentoristas além dos Alpes. S. Beno teria que sofrer, provisoriamente, com a perda dos padres, dos quais dois já tinha ido ao Norte e agora mais quatro sairiam em procura de novas casas, pois que também de Constança tinha chegado insistente pedido para uma nova fundação. Os três que deviam ficar em Varsóvia, porém, eram fortes e corajosos, podendo com facilidade desempenhar-se do serviço da Igreja já bem organizado e consolidado. Clemente toma o bordão do viandante, apronta a sua pequena mala, e tendo por companheiro o Pe. Thadeu Hübl, diz adeus aos que ficavam, e depois dos paternais conselhos e necessárias recomendações põese a caminho para a bela Suíça. A Europa achava-se então mais ou menos tranqüila; a França e a Prússia acabavam de entrar em acordo em Basiléia e a Áustria estava já entabolando as negociações para a paz. São Clemente aproveitou nessa ocasião o ensejo de cumprir o voto feito a S. João Nepomuceno no assédio de Varsóvia. Em Praga permaneceu nove dias em visita ao túmulo do grande Taumaturgo e às relíquias dos célebres Santos Padroeiros da cidade: São Norberto, Sta. Ludmila, São Wenceslau e São Vito; de lá dirigiu-se a Lindau passando por Ratisbona. As suas esperanças, porém, foram baldadas; não conseguiu nada por causa da revolução que acabava de rebentar outra vez; levou 25

somente para casa a mais viva impressão das necessidades espirituais do povo e o desejo, ainda mais ardente, de socorrer os infelizes. Em uma carta ao Superior Geral escreve: “Entre os católicos do Norte é grande a fome do pão da palavra divina a distribuir-se pelos operários evangélicos; o estado em que se acham as igrejas é mais triste do que se possa crer; em toda a parte reina incalculável ignorância a respeito das mais importantes verdades da salvação. Na Boêmia é tão sensível a falta de sacerdotes, que muitas paróquias estão desprovidas de vigários, os quais, em os dias santificados, devem ir de um lugar para o outro afim de celebrar a santa missa; os escândalos estão na ordem do dia e não há quem lhes possa dar remédio; em todos os lados há falta de fé e os inimigos da religião difundem os erros da heresia, não havendo que os possa rebater”. Na volta de Lindau visitou Viena, que já não vira há mais de nove anos. Francisco II, católico fervoroso, inimigo dos “iluminados” governava a Áustria; mas o espírito josefino, que tudo perturbara, dirigia a burocracia; aos bispos continuava ainda proibida toda e qualquer influência na formação dos teólogos, e nas preleções das universidades ensinavam-se os princípios falsos e heréticos do josefismo. S. Clemente, pois, não podia pensar em fazer tentativas da fundação na Áustria. Felizmente não faltavam homens de talento, peso e nobreza que quisessem levantar o espírito da época. Diversos desses sacerdotes distintos trabalhavam em Viena para a regeneração religiosa do povo, porém, sempre às ocultas e com medo das perseguições; faziam, entretanto, constantemente suas conferências pela restauração da fé e empenhavam-se na difusão de livros católicos e morais. Nos poucos dias que S. Clemente lá esteve, relacionou-se com esses sacerdotes, aumentando assim seus conhecimentos e deixando em tão distintos ministros de Deus a mais indelével e a melhor impressão, como veremos mais tarde. Não havia entre eles quem não reconhecesse em Clemente um homem superior, pois que de outra forma não se poderia explicar como um religioso sem nome, sem fortuna, sem distinção de família e sem maiores sucessos conhecidos, pudesse exercer tanta atração e força sobre aqueles espíritos inteligentes e experimentados da grande Capital. Por Tasswitz, sua cidade natal, dirigiu-se para Varsóvia acompanhado de quatro meninos que pediram a admissão no colégio de S. Beno; depois de três meses de ausência São Clemente e Pe. Thadeu Hübl chegaram a Varsóvia em meados de dezembro. Entretanto, na Curlândia as coisas não corriam nada bem; o novo governo começava a imiscuir-se nos negócios da Igreja. Os padres podiam, sim, trabalhar e desenvolver sua atividade, mas a comunicação com os Superiores tornara-se-lhes quase impossível. De outro lado, em Roma não compreendiam bem as intenções de S. Clemente em seus novos empreendimentos. Fundar casas em tantos lugares ao mesmo tempo parecia exagero aos Superiores de Roma, que viam, em tudo isto, possível enfado de Varsóvia, ou saudades da Pátria austríaca por parte de Clemente e seus companheiros. Em uma longa carta explica São Clemente as suas intenções, manifesta a vontade que sempre nutrira de morrer, talvez, em Roma junto dos caros confrades, e declara ser o desejo do seu coração em todos esses trabalhos, empreendimentos e viagens, abrir novos horizontes para a Congregação. Corrigindo, com alguma ironia, o

pouco conhecimento de geografia lá em Roma, acrescenta, fazendo alusão às palavras do Superior Geral, i.é que ele desejava ir à Suíça por amor à Pátria: “A Suíça dista da minha terra mais ou menos como Roma dista da Suíça”. A Suíça pairava-lhe constantemente aos olhos como o país das suas esperanças; de fato não tardou a vir nesse sentido, mais um convite por intermédio do Embaixador de Varsóvia; São Clemente despachou-o com as melhores esperanças. Preparava-se já para enviar reforço à Curlândia, onde os padres arcavam sob o peso dos trabalhos apostólicos quando, num só dia, vê morrer três de seus padres mais novos e três dias depois o quarto, talvez em conseqüência de algum envenenamento. O choque foi tremendo. Ficando a comunidade reduzida à metade, S. Clemente não podia já pensar na Curlândia e muito menos na Suíça. Deus, porém, não abandonou seu Servo; uma semana antes daquela morte inesperada, a Providência mandara-lhe quatro noviços franceses de vastos e profundos conhecimentos; Passerat, Lenoir, Vannelet e Mercier, que durante a revolução havia fugido de sua terra para completar os estudos na Alemanha; ao rebentar a guerra de 1795, não se sentindo seguros lá, passaram a Varsóvia, onde, depois de breve noviciado na Congregação, fizeram a profissão religiosa no dia de Sto. Estanislau Kostka. Dentre eles destaca-se o Pe. José Constantino Passerat que teve um papel sobremaneira saliente na vida do nosso Santo, como veremos mais adiante. Em fins de 1796 S. Beno contava três padres, catorze clérigos professores, quatro noviços e dois aspirantes. S. Clemente estava satisfeito com a sua comunidade, mormente com o Pe. Passerat, em quem notara disposição declarada para uma perfeição não comum. Em abril de 1797 Napoleão assinou os preliminares da paz com a Áustria. No Sul, pois, o caminho estava aberto: era necessário aproveitar a ocasião. Clemente toma, pela segunda vez, o bordão do viandante e parte para o Oeste; as coisas porém tornaram-se ainda piores que dois anos atrás; a revolução francesa precipitara-se, qual furacão violento, contra o Este ameaçando subverter a ordem em toda a Europa. Não sabemos, se São Clemente, desta vez, chegou até a Suíça; o certo é, que ele esteve em Ratisbona em visita ao santo bispo Wittmann e também na Áustria, onde ainda medrava o josefismo. A Áustria pôs-se em guerra com Napoleão que marchara da Itália contra Viena. Não era, pois, tempo de fundar conventos. Entretanto a viagem não foi totalmente perdida para ele nem para a Congregação, porque teve outra vez o prazer de visitar sua irmã e as alegres crianças bem como seu irmão em Bratelsbrunn, donde levou seu sobrinho Francisco Hofbauer, que se tornou um santo Redentorista, vindo a falecer em Altötting, na Baviera, em 1845. São Clemente não deixou de ficar sentido com o fracasso dessa sua segunda excursão, que não teve melhor êxito que a primeira. Como recompensa, porém, da boa vontade de seu Servo, quis Deus conceder-lhe as alegrias inocentes e santas do seu convento. Ao chegar em casa edificou-se com o movimento sempre crescente na igreja; as crianças da escola, cheias de saudades do seu benfeitor e pai, rodearam-no e fizeram-lhe festa; a casa de estudos progredia também admiravelmente, de sorte que até de longe iam estudantes a Varsóvia para se aperfeiçoar na teologia em S. Beno. São Clemente pode escrever a Roma: “O governo prussiano vê com bons olhos os que se dedicam à educação da mocidade, e por isso muitos nos favorece preferindo a nossa es26

cola a todas as outras”. Tudo parecia correr de vento em popa para os Redentoristas em S. Beno — quando em Berlim nuvens negras se preparavam, às ocultas, para se precipitar contra o convento de São Clemente. Já em 1796 o governo proibira a todas as Congregações e Ordens religiosas admitir noviços à profissão sem a sua alta licença; três anos mais tarde, em 1799, apareceu nova proibição de abraçar a vida religiosa aos jovens que não tivessem ainda feito o serviço militar, ou que ainda não houvessem completado 24 anos, e isso mesmo com a licença do governo; a ninguém era permitido comunicar-se com Roma, sob as mais severas penas; os noviços não podiam usar o hábito religioso; durante o noviciado em vez de livros de piedade deviam dar-se aos noviços obras científicas, obrigá-los a compor trechos de literatura em polaco e alemão, e dedicar-se ao estudo da álgebra, geometria, desenho, história natural, física, tecnologia e pedagogia teórica e prática; terminado o noviciado, farse-iam dois exames diante de examinadores protestantes: o primeiro, antes da profissão religiosa, o segundo, antes da ordenação que não podia ser feita senão por bispos alemães, quando se tratava de alunos germanos. Para a fiscalização do cumprimento dessa lei constituiu-se, em toda a parte, uma Comissão de conselheiros; os de Varsóvia professavam todos o protestantismo e tinham por presidente um homem detestável, inimigo fidalgal dos conventos. Além disso o governo proibiu protrair as rezas para além das 18 horas, sendo apenas permitido deixar aberta a igreja até às 20 horas, porém só de 1 de maio a 1 de outubro. Isso era naturalmente a morte de S. Beno e da florescente fundação redentorista. S. Clemente mandara vir a Varsóvia uma belíssima imagem da Ssma. Virgem, que queria colocar na igreja com a maior solenidade e o maior concurso do povo. Esse desejo foi considerado um crime; o governo protestou, mandou chamar o Superior do convento, que não se deixou todavia amedrontar. Considerando que em coisas de religião nada tinha que perguntar a protestantes, Clemente esperou, à noite, o povo ausentar-se da igreja, e ocultamente colocou a imagem no lugar preparado; no dia seguinte foi grande o contentamento dos católicos, quando viram a belíssima imagem da Virgem sobre o altar, porém, não menor a indignação do governo. São Clemente foi citado perante o consistório episcopal protestante, onde relatou o fato sem mais graves conseqüências. O Servo de Deus percebeu que as coisas iam de mal a pior e temia, não sem motivo, que o expulsassem da cidade; revestiu-se de toda a prudência e soube tentear os negócios com tal diplomacia, que nada sucedeu de desagradável à igreja dos Redentoristas durante todo o tempo, que Varsóvia esteve debaixo do poder prussiano, não deixando, porém, nunca de defender os direitos sacrossantos da Igreja com franqueza e energia apostólica. Tal modo de vida, porém, não agradava nada a Clemente, inimigo da guerra, onde nada medra nem prospera; suspirava por um lugar seguro, onde pudesse ver seus noviços tranqüilos e sossegados; não o encontrando no Norte, lembrou-se da Itália, mas infelizmente lá também a coisa não ia bem. Foi necessário curvar-se ante a mão de Deus e adorar os juízos do Eterno. Nesse interim os padres da Curlândia receberam de Roma a dispensa dos votos. Antes de encetarmos a narração da terceira viagem de fundação, lancemos um olhar para os trabalhos do Santo em Varsóvia nesse lapso de tempo.

CAPÍTULO IV

Os anos de 1798 a 1802 Os trabalhos do Santo — Uma cura curiosa — Conversões numerosas — A congregação dos Oblatos — Três missões em regra — Os padres de S. Beno — Date et dabitur — Isto foi para mim... — O Pe. Passerat — A direção do Seminário — Escolas paroquiais — Desinteligências e explicações — Os livre pensadores em ação — S. Beno hostilizado. De 1798 a 1802 S. Beno tinha atingido ao apogeu da grandeza e desenvolvimento. Achando-se em casa, era S. Clemente que tomava sobre si todo o peso do trabalho; desejava excitar os outros padres ao trabalho apostólico mais pelo exemplo do que por palavras. Verba movent, exempla trahunt. Uma senhora da alta nobreza polaca, quando já avançada em anos, escreveu o seguinte juízo sobre S. Clemente: “Parece-me ter sempre antes os olhos aquele sacerdote venerando em sua atitude tão nobre e cheia de dignidade, e entretanto tão simples; ele irradiava sempre alegria ao derredor de si; suas palestras eram chans não usando nelas palavras rebuscadas, mas traíam sempre a grandeza de espírito e inspiravam imediatamente confiança; seu grande amor para com Jesus Cristo transluzia em todas as suas ações... de seus olhos percebia-se a pureza do seu coração e a paz íntima da sua alma... ele afadigava-se sem conhecer descanso”. E realmente S. Clemente era incansável. Não raras vezes, da cozinha onde estava a remediar os poucos conhecimentos culinários do Irmão Manoel, no caso de alguma visita mais nobre, ia ao confessionário ou, tirando o avental, subia do fogão ao púlpito. Era sempre ele que celebrava todos os dias a última missa cantada e pregava os sermão principal; por assunto da pregação costumava tomar a epístola do último domingo, da qual só explicava dois ou três versículos, porém com tal clareza que sobre o tema não restava dúvida alguma por resolver nos ouvintes. Por vezes ele mesmo apostrofava, do púlpito, os alunos da escola e os estudantes para assim manter sempre viva a atenção; louvava os aplicados e censurava os preguiçosos. Como se vê, era tudo isso muito familiar. Diversos conventos de religiosas queriam-no para Diretor espiritual, v. g. as Beneditinas, Visitandinas, Carmelitas etc. O confessor ordinário dessas últimas era o Pe. Podgorski; às vezes, porém, era necessário que São Clemente, o próprio Vigário Geral, interviesse no caso. Assim estando uma vez o Pe. Podgorski quase desesperado com os escrúpulos de uma das Irmãs, por nome Josefa, mandou chamar o Vigário Geral, que logo apareceu e citou a Irmã escrupulosa. Vendo-a tão abatida, as faces encovadas e a nervosia estampada no rosto, disse sorrindo. “A Irmã coma muita galinha e durma bastante, que os escrúpu27

los desaparecerão”. A pobrezinha corou-se, mas sarou completamente em corpo e alma, vindo a exercer, diversas vezes, o cargo de Superiora antes da morte, que só a levou depois de muitos anos de vida religiosa, estando ela em idade bem avançada. Os convertidos davam muito trabalho aos padres; atraídos pela beleza da música, os protestantes também freqüentavam a igreja dos Redentoristas, e não poucos se converteram ouvindo os sermões cheios de unção e erudição do nosso Santo. Inúmeros judeus também se apresentaram pedindo o batismo; antes porém de renascerem pelas águas lustrais eram preparados pelo Pe. Lenoir, versado em todas as línguas orientais e conhecedor profundo do Talmud. Uma ou outra dessas conversões judaicas não eram sinceras, mas sim motivadas pelo interesse; os judeus, odiados pelos católicos, deixavam-se batizar para o aumento da freguesia, continuando todavia em as práticas do judaísmo. É por isso que algumas vezes S. Clemente dizia a sorrir: “O judeu deveria ser afogado nas águas do Vistula logo após o batizado”. As conversões sinceras e duradouras eram tão numerosas, que foi necessário alugar um quarto na casa vizinha, para se ter mais comodidade em instruir todos os que queriam abjurar a heresia. Nesse mesmo tempo S. Clemente dedicou-se ao aperfeiçoamento da Congregação dos Oblatos, que poucos anos antes instituíra, confeccionando os Estatuto que deveriam ser apresentados em Roma à aprovação da Santa Sé. Para a propaganda dessa obra santa serviu-se das viagens pela Alemanha, Suíça, Áustria etc. O número de Oblatos não era grande, porque só se admitiam pessoas conhecidamente piedosas, almas de virtudes provadas e acrisoladas. O noviciado devia durar um ano; a formula de profissão continha juramento de fidelidade irrevogável à Santa Sé e a promessa de “edificar, quanto possível, o próximo com bons exemplos, desviá-lo dos princípios subversivos da época, difundir o conhecimento da Santa Igreja Romana, implantar os bons costumes, espalhar a leitura de livros bons e piedosos, de escritos segundo o Espírito de Jesus Cristo, e destruir nos corações o reinado da culpa”. O Oblato recebia um nome e o hábito da Ordem, que ele trazia somente em casa, para se lembrar constantemente do seu compromisso; os associados estavam debaixo das ordens de um Diretor provincial, escolhendo-se um lugar determinado para as reuniões e as conferências. A direção suprema, porém, pertencia ao Vigário Geral dos Redentoristas. Desde 1800 podia S. Clemente dedicar-se às missões propriamente ditas, que são o escopo principal da Congregação Redentorista. Até então as circunstâncias tão desagradáveis, ocasionadas pelas constantes guerras e revoluções e, não menos, pela má vontade dos governantes, não lhe permitiam pensar nisso; agora parecia viável esse apostolado da palavra. E de fato, em 1801 foram pregadas três grandes missões: a primeira em uma das matrizes de Varsóvia e as outras duas em cidades do interior. Estas últimas estiveram ao cargo do Pe. Thadeu Hübl que saiu acompanhado de cinco missionários; uma delas durou quinze dias e a outra trinta, ambas com o mais estupendo resultado: mais de onze mil pessoas, em cada uma delas, receberam os santos sacramentos da confissão e da comunhão. Em uma carta ao Superior Geral, descreve São Clemente uma dessas missões, acrescentando que o maior adversários da

missão fora justamente o vigário da paróquia, o qual porém, ao ouvir o primeiro sermão da tarde, sentiu-se tão comovido que, não podendo já conter-se, dirigiu-se ao quarto dos missionários, caiu de joelhos a seus pés abraçando-os e chorando sem poder falar durante um quarto de hora. Desde então pregaramse diversas missões, no sul da Prússia, ao povo ávido de ouvir a palavra divina. Mesmo então eram as missões apenas uma ocupação secundária devido às circunstâncias, à grande falta de sacerdotes, à absorção das forças em S. Beno, e a preocupação principal de difundir e consolidar a Congregação Redentorista além dos Alpes. Os grandes oradores que emocionavam o povo e arrancavam lágrimas às massas, fazendo encher, à cunha, a Igreja de S. Beno, eram os padres Podgorski e Blumenau; o Pe. Thadeu Hübl pregava menos, mas era o mais procurado no confessionário, mormente pelos nobres e pelos prelados; na cúria metropolitana de Varsóvia era ele uma autoridade em questões teológicas; dos doze examinadores sinodais era ele o mais temido dos estudantes, que lhe deram o apelido de “Hobl”, i. é plaina; falava corretamente sete línguas e para o uso dos seus alunos compôs tratados de lógica e metafísica. O seu temperamento grave, porém bondoso e serviçal, valeu-lhe o nome “mãe da Congregação”. Em caso de questões com o governo, São Clemente, temendo seu temperamento sangüíneo e irascível, confiava o negócio à prudência do Pe. Thadeu Hübl. A parte material do convento era administrada pelo Pe. Jestersheim, que, como ótimo cantor, regia o coro da Igreja de S. Beno. Por força das circunstâncias era necessário fazer então as maiores economias. O ministro tinha mão firme e passava por ser um administrador econômico; era, pois, o homem em seu posto certo — como dizem os ingleses — porque as rendas da casa não cresciam e a caixa estava quase sempre vazia. Não poucas vezes ele, um tanto contrariado, chamou a atenção do Vigário Geral, que abria demais as mãos para beneficiar os pobres; São Clemente, porém, abrandava-o sempre com estas palavras, que bem mostram a confiança ilimitada que depositava na Providência. “Date et dabitur (dar e receber) são duas irmãs”, isto é, se derdes esmolas, recebereis outras, essas irmãs dão-se muito e não querem estar separadas. E de fato, embora a caixa do convento tivesse estado muitas vezes vazia, a Providência nunca deixou de socorrer os Redentoristas de Varsóvia. Em favor dos órfãos e dos outros meninos pobres ia ele, em pessoa, pedir esmola de casa em casa, expondo-se a vexames e humilhações de toda a sorte; isso porém ele fazia com gosto e santa alegria em espírito de humildade sacrificando-se para o bem das criancinhas, das quais mais tarde dependeria, em parte, a regeneração social da cidade e a conservação do espírito de fé. Foi numa dessas ocasiões que ele deu um exemplo admirável de mansidão e paciência. Saiu a esmolar, quando observou que no balcão de uma casa de negócios reinava extraordinária alegria; vendo tanta gente reunida sentiu-se no direito de esperar copiosa esmola. Se um der, pensava ele, os outros por coleguismo ou outros motivos, não poderão negar. Devagar entrou e aproximou-se do lado, onde estavam sentados muitos senhores que pelo traje pareciam bastante ricos; chegou-se a um deles e delicadamente pediu uma esmola para os seus órfãos. O homem que estava disposto a tudo, menos a dar esmolas, e que não era nada amigo de batinas, irritou-se com o pedido, levantou-se espumando de raiva, as veias a 28

saltar-lhe do corpo, cobriu de injúrias o pobre do padre lançando-lhe em rosto que ele não deveria começar coisa alguma, muito menos um orfanato, não tendo meios para isso. Clemente ouvia tudo aquilo com calma e tranqüilidade; o homem porém, na medida que falava, se enchia de cólera e mais se exaltava: esgotado afinal o vasto repertório de palavras injuriosas, enche a boca e escarra vergonhosamente no rosto do Santo, o qual com a maior tranqüilidade de espírito toma o lenço, passa-o pela face, dizendo em seguida ao homem: “Isto foi para mim; agora dê alguma coisa para os meus orfãozinhos”. Essa palavra tão humilde e tão mansa foi como água na fervura. Não houve entre aqueles senhores quem não admirasse tão heróica virtude; o próprio senhor, que tanto se enraivecera, sentiu-se comovido, arrependeu-se, pediu perdão e entregou a S. Clemente uma avultada soma para os seus orfãozinhos. A conversão desse senhor foi sincera; ele tornou-se um católico fervoroso e um grande benfeitor dos órfãos e das demais obras caritativas de S. Clemente. Não pequeno serviço prestava a comunidade o grande Pe. José Passerat; os sete anos passados na formação dos noviços foram para ele a escada por onde subiu às alturas da perfeição na vida interior; era homem da oração, digno imitador de seu pai espiritual Santo Afonso com razão intitulado o grande Doutor da Oração, porque ninguém como ele soube inculcar tanto o valor e a necessidade dela para a salvação. O Pe. Passerat não cessava de fazer de seus noviços outros tantos mestres da oração. “O primeiro meio, dizia ele, para progredir na perfeição é a oração, o segundo, o terceiro, o quarto, o décimo, o centésimo meio é outra vez a oração”. O Vigário Geral não poucas vezes fê-lo dar a seus noviços o mais heróico exemplo de humildade. O seguinte fato é a prova evidente do espírito de abnegação e humildade que reinava no noviciado de São Beno. Um dia o Pe. Passerat querendo provar a vocação de um de seus noviços, mandou-lhe conservar-se de joelhos à porta da igreja, do lado de fora, até segunda ordem. Entretanto Passerat esquecendo-se inteiramente de seu noviço que tinha sido posto em provação; à noite, achando falta nele, correu à igreja e encontrou o pobre noviço ajoelhado como lhe tinha sido mandado desde a manhã; Pe. Passerat abraçou-o e pediu-lhe perdão com a maior humildade. Deus quis purificar seu servo Passerat com grandes provações interiores. Era ele um francês nobre e de coração grande; abandonara tudo e queria só viver para Deus, mas o amor da idolatrada Pátria e da família era-lhe uma verdadeira tortura. Filho único de sua mãe, que vivia tão distante, tinha saudades dela e sabia que a progenitora ardia em desejo de vê-lo ao menos uma vez antes da morte, mas não conseguiu obter licença, porque a Regra dos Redentoristas proíbe a todos a visita à casa paterna, a não ser em caso de perigo de vida para o pai ou para a mãe. Pe. Passerat consumou o sacrifício, curvando-se ao peso da cruz. Não obstante todo o esforço de São Clemente em contrário, São Beno continuava ainda a ser a casa dos estudos. Os padres franceses que se distinguiam por uma instrução vasta e profunda foram incumbidos da formação intelectual dos clérigos. Afim de que os estudantes aprendessem praticamente a aparecer em público e a se desenvolver no exercício da linguagem, São Clemente designava-os, de vez em quando, para diversos ofícios na igreja v. g. explicar as estações da Via Sacra, o Catecismo, o modo de fazer o exame de

consciência etc. Em 1800 os Redentoristas de S. Beno aceitaram a direção de um seminário de clérigos seculares. Com a supressão da Companhia de Jesus em muitos seminários ficaram desprovidos de professores; eis porque muitos seminaristas de fora iam a Varsóvia para lá continuarem seus estudos; e não poucos dentre eles tornaram-se, mais tarde fervorosos Redentoristas. Essa medida extraordinária, tomada por São Clemente, garantiu a subsistência ao convento de S. Beno sob o governo da Prússia, que timbrava em proteger todos os que se dedicavam à educação da infância e da mocidade. Também outras ordens religiosas, como, por exemplo, os Lazaristas2 serviram-se desse estratagema para a manutenção do Instituto. A instrução na escola dos meninos pobres foi ministrada pelos padres somente nos primeiros anos; mais tarde o Superior Geral entregou esse serviço aos estudantes que pediam admissão na Congregação. São Clemente considerava essas escolas não só como uma obra de caridade para com os pobres, mas como um dos melhores meios de apostolado; e de fato na cidade de Varsóvia nada menos de 700 crianças a saber 400 meninos e 300 meninas, recebiam sempre instrução e educação religiosa nessas escolas, preservando-se assim da corrupção geral que campeava impune na grande cidade; durante a estada relativamente curta dos padres Redentoristas em Varsóvia nada menos de onze mil crianças passaram por essas escolas. Os prédios em que funcionavam as escolas eram naturalmente bem primitivos, sem luxo e sem as comodidades que se requerem geralmente em semelhantes estabelecimentos; as paredes eram, em grande parte, de madeira. Isso porém não estranha porque o próprio convento dos padres era pobre e mais que modesto, o Vigário Geral e o Reitor da casa, residiam no mesmo quarto por falta de acomodações. É certo que Varsóvia nunca fora lugar apto para casa de noviços e estudantes; São Clemente era o primeiro a reconhecê-lo, mas a necessidade o constrangia. Quem acreditara, que Deus se serviria dessa circunstância para humilhar seu Servo e fazê-lo passar por momentos bem amargos! Nem todos os Redentoristas de Varsóvia estavam inteiramente de acordo com a atividade extraordinária e estafante, que nos primeiros anos de desenvolveu em S. Beno. — Os padres Passerat e Vannelet, almas dadas à contemplação e ao recolhimento, não deixaram de estranhar esse moto contínuo na igreja e no convento, com o que achavam incompatível a observância da Regra que manda o recolhimento de espírito. Como bons religiosos e santos sacerdotes julgaram-se em consciência obrigados a relatar tudo ao Superior Geral em Roma. Monsenhor Litta, Núncio apostólico, ao voltar de S. Petesburgo a Roma, levou a carta de Passerat; embora o Núncio fosse um acérrimo e eloqüente defensor da atividade de São Clemente, o Superior Geral esteve mais propenso ao Pe. Passerat do que a Litta. Os trabalhos de Varsóvia eram realmente exagerados e contrários aos princípios na Congregação nas casas da Itália. O Capítulo Geral reunido em 1793 para a união das duas partes da Congregação, aboliu as permissões e resoluções de Scifelli que outorgara carta branca a São Clemente no Norte, proibiu as escolas, os colégios e semelhantes trabalhos por serem contrários à letra e ao espírito da Regra; Clemente porém nada ouvira desse Capítulo, ou porque os Superiores de Roma se esqueceram de lho parti29

cipar, ou porque as cartas se extraviaram, o que não era coisa rara naqueles tempos. O Superior Geral, levando em conta e tomando em consideração a carta do Pe. Passerat, admoestou o Vigário Geral exigindo sossego e tranqüilidade para a casa dos noviços e dos estudantes, aconselhando apenas duas pregações por dia em vez das cinco usuais, e lembrando-lhe a proibição de dirigir escolas, seminários etc. Às explicações de S. Clemente, que na sua carta acentuava a ignorância religiosa do povo, a necessidade das escolas para a subsistência da Congregação, o bem espiritual das almas, o desejo e a ância do povo por ouvir a palavra divina, bem como a afirmação verdadeira de que os estudos não eram de modo algum negligenciados, visto serem os alunos redentoristas sempre os primeiros nos exames dos ordinários, pacificaram completamente o Superior Geral. Diversas desinteligências amarguraram bem o Vigário Geral, cujas intenções eram, sem dúvida, as melhores possíveis. Deus permitiu esses dissabores para mais o conservar na humildade e para acrisolar a sua virtude. Não há dúvida de que bem grande era o perigo de uma cisão e separação do ramo transalpino da Congregação, e se S. Clemente não tivesse sido um Superior de alta envergadura, tão prudente e tão afeiçoado à sua querida Congregação, talvez fosse inevitável esse desfecho. Apesar da troca de cartas menos amistosas tanto de Roma como de S. Beno, não nos é lícito concluir que tenha havido estremecimento entre esses dois ramos vigorosos da Congregação Redentorista. Ninguém poderá estranhar que o Superior Geral, obedecendo a um dever sagrado, tenha tentado tudo para impedir qualquer transformação essencial e contrária à Regra nos conventos além dos Alpes. Se o Pe. Blasucci, Superior Geral, não se achasse já enfraquecido pela idade e se os tempos calamitosos e incertos de então o permitissem, certamente o representante do Santo Fundador atravessaria os Alpes e iria em pessoa regularizar tudo segundo os seus desejos. Os padres da Itália interessavam-se vivamente pela Congregação transalpina e não poucas vezes se lembravam dela enviando saudações e cartas aos padres de São Beno. Assim, p. ex. escreve o Pe. Tannoia de Pagani ao Santo: “Quem nos dera asas para voarmos até ai e vos darmos o amplexo do nosso amor e fraternidade!” Esse grande biógrafo de Santo Afonso, acrescentou a essa biografia interessantes notícias sobre as casas de Varsóvia e Mitau: isso mostra o interesse com que os padres italianos acompanhavam o desenrolar da grande atividade apostólica dos Redentoristas, súditos do nosso Santo além dos Alpes. Teria sido realmente um verdadeiro desastre se S. Clemente, por causa dessas desinteligências tivesse abandonado a “missão continuada” de S. Beno. Ninguém podia desconhecer o grande bem que ela operava entre o povo e em todas as rodas e classes da população. Isto era mais uma prova de que S. Clemente não seguia apenas um capricho qualquer, mas que tinha em vista tão somente a maior glória de Deus e o bem das almas. É ele mesmo quem declarou uma vez, que após os dez anos de trabalhos em Varsóvia lá se formou um número bem considerável de católicos, de ambos os sexos, que poderiam fazer honra aos cristãos do primeiro século da cristandade pelo brilho de todas as virtudes. A prova mais evidente da conversão radical de muitos e da difusão cons-

tante do espírito haurido na Igreja de S. Beno, é o combate sempre crescente que contra os Redentoristas faziam os livre pensadores de Varsóvia, que se sentiam seriamente ameaçados em seu governo absoluto sobre a cidade. Luz sobre a situação de então lança uma carta escrita por um oficial a seu amigo: “Imagine... há aqui uma Ordem, os Benonitas, quase todos alemães, que não obstante a grande aversão que todos da cidade sentem contra os germanos, têm conseguido com argúcia jesuítica fazer com que o povo os estime mais do que aos próprios sacerdotes nacionais, e esteja pronto a se deixar trucidar por eles. É certo que são trabalhadores, enquanto que alguns sacerdotes polacos são preguiçosos; são instruídos ao passo que os polacos são uns idiotas que andam sempre bêbados; eles sabem prender o povo conservando a igreja aberta das 6 horas da manhã às 9 da noite, cantando, pregando, incensando... possuem uma multidão de Irmandades de homens e de mulheres, tirados da mais baixa camada popular, e servem-se das confissões para terem maior influência... eu quisera oferecer 100 ducados a quem quebrasse o Crucifixo de S. Beno nas costas desses padrecos”. Quem isso escreveu foi o célebre Zacharias Werner, que dez anos depois deveria tornar-se um dos maiores e mais sinceros amigos de S. Clemente em Viena. Em 1800 S. Clemente mesmo escreve: “Os jacobinos espalham contra nós toda a sorte de invencionices injustas, somos escarnecidos nos teatros públicos, o próprio clero está contra nós, exceto o bispo e alguns cônegos, somos publicamente ameaçados com a forca”. Os inimigos usaram contra os Redentoristas todos os meios vis de combate, de que se costumam servir contra as Ordens religiosas em geral: escárnio, calúnia, ameaças. S. Beno foi apresentado por eles ao público como uma fonte de desordens e abusos para toda a cidade, como se os Redentoristas disseminassem a discórdia nas famílias; negligenciassem os deveres domésticos, roubassem as alfaias preciosas da igreja, enviassem ladrões para expoliarem os bens da igreja etc. etc. Em plena rua eram os padres escarnecidos e, à tarde, muitas vezes esperados por pessoas armadas de chicotes nas diversas esquinas, por onde tinham de passar. Nos dias do carnaval os Benonitas eram a fantasia predileta dos rapazes, que se vestiam dos paramentos litúrgicos para se tornarem mais engraçados. Os mais abjetos e indignos panfletos eram contra eles espalhados entre o povo. O alvo principal dos seus esforços resumia-se na desmoralização completa dos padres junto ao governo, para assim mais desimpedidos e com mais facilidade golpear de morte a atividade apostólica que tanto os incomodava. E de fato, o governo recebeu as mais execráveis acusações contra eles que foram apresentados, não só como perturbadores da ordem pública e da paz, mas também como transgressores da moral e instigadores de revoltas políticas. Ora todas essas acusações e vis calúnias caiam necessariamente sobre São Clemente que era a alma de todo aquele movimento de São Beno, e por isso mesmo o alvo predileto do ódio dos sectários e das nefandas calúnias. Se uns o veneravam a ponto de lhe beijarem a barra da batina e os vestígios dos pés, outros consagravam-lhe o mais entranhável ódio, como a um fanático, não poupando paus e pedras nem coisa alguma que o pudesse molestar. Mais tarde olhando retrospectivamente para esses acontecimentos de Varsóvia dizia ele: Uns prostravam-se diante de mim, para me beijar os pés, outros me cobriam de lama; 30

aqueles exageravam na honra e estes no desprezo”. A ação do governo prejudicou muito a atividade pastoral de S. Clemente, mas o ódio dos livre pensadores incentivou ainda mais a coragem do Servo de Deus e o seu desejo de combater o erro e de alcançar a vitória das almas, que quisera depositar aos pés do Redentor. Os olhos fitos no céu aceitou tudo aquilo com calma e santo heroísmo, desprezando o desprezo contanto que Deus fosse glorificado e a sua querida Congregação se consolidasse no Norte. O que mais o afligia era ver que também no clero encontrava inimigos, que se obstinavam em não querer compreender as suas melhores intenções; isso ele mesmo dá a entender em uma carta ao Núncio de Viena a 9 de maio de 1802. Em tantos apuros e dificuldades não tinha o Santo a quem se dirigir, a nenhum dos sacerdotes seculares de então atrevia-se a abrir o coração ou pedir conselho. O seu único amigo e confidente era um ex-jesuíta, homem de merecimento e peso que outrora, como membro da Companhia, missionara a Pomerânia, a Rússia, a Lituânia e a Polônia — e também a este quis Deus chamar para si, quando na idade de noventa anos, atacado de um colapso, expirou ao rezar a ladainha de todos os santos no segundo dia das Rogações. Os outros amigos do Santo estavam longe, em Viena. Deus, aos poucos, ia rompendo os laços que o prendiam a Varsóvia e preparava sua ida a Viena, cujo Núncio Severoli muito o desejava.

CAPÍTULO V

Na diocese da Constância Em Altötting — Monte Tabor — Pe. Passerat Reitor — Ordenação dos clérigos na Itália — As necessidades do novo convento — Clemente em Jestetten — O rico cardápio — Triberg, santuário da Virgem — Uma noite no paiol — Recepção em Triberg — Reanimação da vida de piedade — Raiva do demônio — Triberg abandonada. Em fins de 1802 São Clemente deixou Varsóvia pela terceira vez, em procura de algum lugar, onde pudesse estabelecer definitivamente a sua Congregação na Alemanha; tinha tanta convicção de que conseguiria realizar o seu desejo ardente nessa viagem, que tomou consigo o Pe. Thadeu Hübl, embora este parecesse indispensável ao serviço espiritual de Varsóvia e ao andamento das obras da Igreja de S. Beno. Com essa viagem S. Clemente despedia-se propriamente da Polônia, porque embora tenha ainda voltado duas vezes a Varsóvia, só o fez por circunstâncias imprevistas — e na opinião do Santo essas visitas deviam ser brevíssimas e apressadas. Isso não era indício nem prova de aversão que talvez sentisse para com a Polônia, que ele amava como sua segunda Pátria, cuja língua conhecia a fundo, cuja sorte infeliz lhe traspassava o coração. São Clemente convencera-se de que sua Congregação não poderia ter verdadeira garantia de subsistência para o futuro no Norte da Europa, enquanto não lançasse raízes em algum pedaço do território alemão. São Clemente e o Pe. Thadeu vestem a batina dos sacerdotes seculares — naquele tempo não era permitido de viajar de outra forma — e a pé vão de Varsóvia até a Alemanha não receando a distância nem temendo os perigos provenientes das constantes revoluções e guerras, mas confiando somente na proteção do céu. Levou consigo também o clérigo Sabelli, passou por Viena, foi a Baviera onde se deteve, um dia, no santuário de Nossa Senhora de Altötting, erigido por S. Roberto, seu primeiro bispo, a mais de mil anos. Depois de desabafar o seu coração ante a imagem milagrosa da Virgem, recomendando-lhe com fervor a sua pessoa e o feliz êxito das suas pesquisas para o bem da Congregação, sem jamais sonhar que aquele mesmo Santuário, um dia, seria confiado aos cuidados dos seus filhos espirituais, continuou a viagem até Jestetten, onde perguntou pelo Monte Tabor, que lhe fora oferecido pelo príncipe Schwarzenberg. A nova morada eram as ruínas de um antigo castelo, quase sem telhado e com as paredes encostadas. São Clemente compreendeu que a pobreza e a miséria seriam ali companheiras de seus filhos; mas lembrando-se de Varsóvia, cujo convento no princípio se achava em idênticas condições e que ele, com poucos vinténs no bolso, conseguiu levantar, criou coragem e aceitou 31

a fundação, ainda mais que Jestetten se achava na divisa de quatro países: Baden, Suíça, Württemberg e Áustria. De Jestetten esperava poder entrar um dia na Alemanha, e enquanto isso não se realizasse, teriam os seus padres um campo de trabalho inteiramente novo, onde poderiam pregar as mais consoladoras missões. Sem mais detença escreveu a Constança pedindo autorização para fundar o convento e chamou de Varsóvia o Pe. José Passerat, a quem nomeou Reitor de Jestetten. Nessa nomeação mostrou o Vigário Geral admirável tato de governo. — Pe. Passerat amigo da pobreza e da abnegação própria, era o homem para aquela fundação, sobre a qual com o seu espírito de oração e de sacrifício atrairia as mais copiosas bênçãos do céu. Entretanto São Clemente e o Pe. Thadeu puseram mãos à obra para a restauração da casa e a acomodação do convento. Ao chegar o Pe. Passerat com seus estudantes encontrou a casa mais ou menos em condições de recebê-lo e de agasalhar os bons clérigos. São Clemente não se demorou muito em Jestetten; levando consigo o Pe. Passerat foi a Joinville na Champagne a ver, se poderia fundar na França algum convento de Redentoristas, pois que a duquesa de Angoulême, filha de Luiz XVI, lhe tinha dado as mais belas esperanças, quando se achava em Mitau com os Redentoristas. Infelizmente não lhe foi possível realizar esse grande plano por a França se achar em guerra naquela ocasião. Acompanhado do Pe. Thadeu e de três clérigos S. Clemente atravessou os Alpes e foi a Itália para lá conseguir a ordenação dos três teólogos e tratar pessoalmente com o Superior Geral de negócios importantes da Congregação. Essa medida era de necessidade em virtude da nova lei que acabou de ser promulgada pelo governo. Os clérigos não podiam ser ordenados em Varsóvia porque pela lei só se ordenavam lá os súditos alemães nascidos na Prússia; em Constança tampouco era-lhes possível receber as ordens sacras porque o Vigário Geral Wessenberg, que governava a diocese em nome de Dalberg, não era ainda nem sacerdote. Deixando os clérigos em Spello perto de Foligno, continuou a viagem com o Pe. Hübl até Roma, onde foi recebido em audiência pelo Papa Pio VII, que o Servo de Deus bem conhecia — era o antigo bispo de Tívoli que, anos atrás, lhe dera o hábito de ermitão e lhe mudara o nome de João para Clemente; o papa ouviu-o com benevolência, aprovou oralmente os Estatutos da Congregação dos Oblatos, concedendo-lhe muitos privilégios. Não lhe foi possível avançar até Nápoles e Nocera, onde teria tido o prazer de celebrar sobre o túmulo do Santo Fundador; prometeu porém ao Superior Geral voltar no ano seguinte. Essa promessa porém S. Clemente não realizaria mais em sua vida, não obstante ter sido grande e ardente o desejo de cumpri-la. Ordenados a 23 de outubro, os neo-presbíteros celebraram a primeira missa no dia seguinte, e nessa mesma manhã puseram-se a caminho de volta para o Monte Tabor onde chegaram sãos e salvos. São Clemente demorou-se ainda sete dias no novo convento para pôr em ordem os negócios das Irmãs, que lá havia; depois disso voltou para Varsóvia com o Pe. Thadeu Hübl. Mal haviam decorrido uns meses após a saída de São Clemente, quando cartas e mais cartas apareceram em Varsóvia, nas quais o Pe. Passerat expunha ao Vigário Geral as duras necessidades por que passava a nova comunidade de Jestetten pela falta absoluta do mais indispensável; não havia recursos

de qualidade alguma. O coração bondoso de Clemente ao ler aquelas notícias, dadas pelo santo Pe. Passerat, que não era capaz de exageros, sentiu-se comovido. As necessidades materiais dos seus padres em Jestetten traspassaram-lhe a alma; ele, o homem forte, chorou de compaixão; as lágrimas rolaramlhe pelas faces como que para apagarem aquelas novas, contidas nas cartas e tão tristes ao seu coração. Como bom Superior obrigado a olhar para seus súditos, não hesitou em tomar outra vez o bordão do peregrino para fazer novamente, a pé, a caminhada de 300 horas até o Monte Tabor afim de levar auxílio a seus caros filhos; tomou consigo um estudante de Varsóvia, que desejava ser redentorista e, passando por Dresden, Augsburgo e Constança onde tinha negócios de urgência, chegou a Tabor a 21 de setembro. Até a primavera do ano seguinte permaneceu lá a compartilhar com os seus súditos as agruras de uma vida de privações e pobreza. O edifício, que tinha em vista de comprar, não o pôde obter. A comunidade crescia entretanto dia a dia; naquela data lá se achavam seis padres, quatro irmãos, nove noviços e diversos estudantes; estes dormiam no sótão da igreja; como nos cinco quartos, de que se compunha a residência inteira, a comunidade não encontrassem acomodação suficiente, os seis padres e os três teólogos dormiam nas mansardas da casa, enquanto que os noviços e os irmãos leigos iam procurar o descanso dentro de uma torre no jardim; por uma pequena escada de mão subiam até em cima e ficavam, a noite, expostos ao vento, à neve e em geral a todas as inclemências do tempo. Para defender os padres do rigor do inverno, havia apenas uma estufa no salão que servia simultaneamente de sala de recreio e de estudos; de acordo com a habitação, a comida era também pouca e insuficiente; não se tomava café o ano inteiro, o almoço consistia num prato de sopa e noutro de legumes com um pedacinho de carne, que não aparecia na mesa às quartas e sextas-feiras e aos sábados: o jantar era o ano todo o mesmo, isto é: sopa e batatas; a única bebida era a água da cisterna, exceto aos domingos e quintas-feiras em que aparecia à mesa um pequeno copo de vinho azedo. S. Clemente porém não se espantava com tão pouco; com prazer compartilhava essas privações e com o exemplo e santas palavras animava a todos os seus, que esquecidos dos efeitos daquela pobreza extrema, sentiam-se felizes por estarem debaixo da direção de um Superior tão santo e sábio; era edificante vê-lo, não poucas vezes, a enxada na mão, ir ao campo com seus confrades passando horas e horas naquele trabalho penoso e rude. Felizmente, como atesta o próprio S. Clemente, com aquele estado miserável das finanças reinava no convento o genuíno espírito religioso: era o entusiasmo natural que costuma apoderar-se de gente nova nas recentes fundações. Todos os domingos e dias santificados pregava Clemente em Jestetten, como o fazia em Varsóvia, e o povo acudia de todos os lados. São Clemente em seu grande zelo apostólico instruía todos nas verdades da religião e não cessava de convidá-los à confissão e à santa comunhão — e os católicos obedeceram afinal às instâncias do Santo e grande movimento religioso desenvolveu-se na Capela dos Redentoristas de Jestetten. O tempo que restava das pregações, audição de confissões e despacho da grande correspondência epistolar, S. Clemente o empregava na oração e em outros exercícios de piedade. Deus quis recompensar seu Servo. Umas oito léguas distante de Jestetten 32

existe uma cidade chamada Triberg, célebre por uma imagem milagrosa da Virgem cuja história é a seguinte: A pouca distância da cidade havia um pinheiro à beira da estrada. Aconteceu que um dos muitos transeuntes, para excitar pensamentos de piedade nos que passavam, abriu no pinheiro uma cavidade, onde colocou uma pequena imagem de Maria Santíssima, com a frente voltada para uma fonte límpida que brotava de um rochedo não muito distante. A imagem não tardou a ser conhecida por todos, e havendo um conhecido morfético recuperado miraculosamente a saúde somente por se ter banhado nas águas da fonte, a devoção à Virgem do Pinheiro começou a aumentar-se até atingir as proporções do entusiasmo. Com o tempo porém a devoção arrefeceu e a imagem da Virgem caiu no esquecimento. Depois de receber as homenagens do povo, fez a Virgem por diversas vezes, ouvirem-se no bosque doces e suaves melodias que ecoavam pelos arredores. Três soldados atraídos por aquelas vozes misteriosas foram ao bosque, ajeitaram o nicho da Virgem e a romaria recomeçou com tanto fervor, que foi mister derrubar o pinheiro e levantar um templo, um santuário que pudesse conter as massas. Nada menos de 153.000 pessoas recebiam lá anualmente os santos sacramentos da confissão e comunhão. Com o fim de facilitar ao povo o exercício das suas devoções, construiuse perto do templo um espaçoso prédio com acomodações para quinze sacerdotes, e assim Triberg tornou-se um dos mais célebres santuários da zona; príncipes e princesas não excetuando o próprio imperador José I, iam, repetidas vezes, a Triberg cumprir seus votos e homenagear a Rainha do universo. No decorrer dos tempos esfriou um tanto a devoção; as guerras quase contínuas e os princípios falsos do racionalismo começaram a infiltrar a descrença nos corações, de sorte que o Santuário já não era quase visitado. Além disso o cuidado do santuário foi confiado a sacerdotes idosos, que não davam bons exemplos em sua vida particular. Os moradores de Triberg, ouvindo que em Jestetten havia sacerdotes sérios, animados de zelo, foram ter com o arquiduque Fernando de Modena a quem pertencia Triberg, e instaram com ele para que conseguisse padres como os de Jestetten para diretores do Santuário. O arquiduque prometeu gostosamente realizar os desejos de seus súditos e chegou até oferecer 960 escudos para três padres de Jestetten, que quisessem encarregar-se da administração e direção do Santuário. Os moradores de Triberg, satisfeitos com a decisão do arquiduque e a licença concedida, foram expor a súplica também a S. Clemente, a quem fizeram ver as grandes dificuldades com que se achavam, o desejo ardente do povo e a promessa do arquiduque. S. Clemente depois de uma breve viagem a Lucerna, aonde levou dois clérigos para serem ordenados pelo Núncio Testaferrata que lá se achava, partiu para Triberg com quatro padres e alguns estudantes. Embora o tempo ameaçasse muita chuva, S. Clemente não teve receio, partiu; não tardou porém a desabar uma chuva torrencial que molhou os nossos caminhantes até a medula dos ossos. Depois de marcharem umas doze horas sentiram-se cansados, além disso a escuridão da noite chuvosa não lhes permitia ir adiante. A beira da estrada viu S. Clemente uma casa e perto dela um paiol e uma estrebaria, entrou na casa e adiantando-se para o dono pediu-lhe um pouso para aquele noite. O pobre do homem vendo os padres, inteiramente molhados e ouvindo o pedido de S. Clemente ficou perplexo sem saber como sair do embaraço: ele

era pobre, não possuía casa digna de hospedar pessoas tão distintas como aquelas que o apostrofavam, gostaria de oferecer tudo, mas não tinha o que dar. — O nosso Santo compreendeu logo o motivo da perplexidade do homem e sem mais rodeios lhe disse: “Diga a sua mulher que nos prepare uma sopa; para o sono temos o paiol e isso basta”. O dono mais atônito ainda diante de tanta modéstia e humildade, agradeceu a Deus tê-lo honrado com a visita de tão santos sacerdotes. Aos cansados caminhantes apeteceu a pobre sopa mais do que se tivessem, em outras ocasiões, saboreado um bocado de paca ou qualquer outra iguaria preciosa. Na manhã seguinte tiveram de vestir a batina ainda molhada; não deixaram porém de escapar de seus lábios nenhuma palavra de queixa, porquanto viam ser o Superior o primeiro a fazer com alegria aquele ato de mortificação. Algumas horas depois chegaram a Triberg, cuja população os recebeu jubilosa. Repicaram os sinos solenemente como nos dias de grande festa, o povo acorreu em multidão e assim entraram os novos padres no Santuário para a missa cantada. Terminadas as cerimônias da igreja, o povo levou-os à residência, casa espaçosa e bem construída de dois andares; o andar superior ficou reservado aos sacerdotes, encarregados do governo do Santuário, enquanto que o primeiro andar e a rez do chão foram entregues aos Redentoristas. Poucos dias depois da chegada dos padres celebrava a Igreja a festa da Ascensão do Senhor; o templo encheu-se de povo ávido por ouvir a palavra de Deus em sua simplicidade e verdade. Era a repetição daquelas cenas emocionantes da Palestina em que as multidões se agrupavam ao redor de Jesus, pendentes dos lábios divinos, a beberem em largos tragos a água da doutrina sagrada. Desde esse dia não faltaram pregações em Triberg, aos domingos e dias santificados; os confessionários, em que as almas se purificam das suas manchas recebendo conselhos salutares para o seu progresso na virtude, começaram a ser freqüentados pelas massas, que se comoviam com as pregações dos zelosos apóstolos do bem. Aos poucos a alegre nova difundiu-se por toda a redondeza, de sorte que os romeiros recomeçaram suas peregrinações a Triberg, não só em cumprimento das promessas feitas, mas também com o fim de se instruírem nas verdades da religião, receberem os santos sacramentos da confissão e comunhão, e assim deixarem a vida do pecado para a da graça. O templo em pouco tempo se restaurou completamente, porque S. Clemente não conhecia economias quando se tratava da glória de Deus ou da Santíssima Virgem. O povo, que tudo observa e comenta, dava a Clemente o nome de “Padre santo” e tinha razão para isso. Todos achavam-se satisfeitos, menos o demônio que não podia ver com bons olhos o desenvolvimento sempre crescente do Santuário, que se tinha tornado um oásis abençoado de fé e inocência no meio do deserto tremendo do indiferentismo e da incredulidade daqueles tempos. Para instrumentos da sua cólera tomou os sacerdotes idosos que lá residiam e que não davam, infelizmente, o melhor exemplo ao povo; excitou o ciúme nos seus corações bem como nos dos sacerdotes circunvizinhos que começaram a maquinar, às ocultas e também às claras, a expulsão dos Padres Redentoristas por meio de calúnias e intrigas; escreveram à cúria eclesiástica de Constança, a Wessenberg, que infelizmente havia bebido o espírito do tempo e era inimigo declarado dos 33

santuários, afirmando serem os Redentoristas, em Triberg, uns fanáticos sem prudência e sem ciência, que alucinavam o povo enlouquecendo-o. Wessenberg, que, embora vigário geral da diocese, era um dos “iluminados” e maçons, jurou perder aqueles sacerdotes ignorantes, fanáticos e carolas, e suspendeu imediatamente do uso de ordens dos dois sacerdotes novos que tinham chegado de Jestetten, pelo simples motivo de terem sido ordenados pelo Núncio Apostólico, não se lembrando que os Redentoristas têm um privilégio papal que lhes dá o direito de receber a ordenação das mãos de qualquer prelado amigo, e que ele próprio — Wessenberg, por não ser ainda nem sacerdote, não podia conferir essas ordens a ninguém. Aos outros padres mandou intimação a que se submetessem a um exame de teologia. Como os examinadores eram também “iluminados”, cuja moral não se pautava pelos princípios do Evangelho mas sim pelos enciclopedistas franceses, e protestantes alemães, reprovaram S. Clemente e seus companheiros, declarando-os incapazes de fazer as pregações e de ouvir as confissões dos fiéis. São Clemente viu, mais uma vez, ruírem suas esperanças e, o coração a sangrar, teve de deixar aquele excelente povo de Triberg sem pastores, entregue a dois sacerdotes contaminados pelo espírito da época, sem vontade nem intenção de lhe mostrarem a vereda da virtude e o caminho do céu. Não tinha a quem recorrer, porquanto o nobre arquiduque Fernando de Modena, na paz de Pressburg em 1805 fora despojado de todos os seus bens e domínios que passaram primeiro a Württemberg e depois a Baden, cujo grão-duque era protestante. De nada valeu uma deputação do povo a Carlsruhe, pedindo que os padres continuassem em Triberg. S. Clemente curvou-se resignado ante a mão poderosa do Eterno que o feria em suas mais belas esperanças, mas não perdeu o ânimo. Sabia que quem confia no Senhor, não será confundido eternamente. Aos seus ouvidos soavam as palavras de Jesus: “Orai pelos que vos perseguem e caluniam”, e ele perdoando de coração a Wessenberg e aos sacerdotes que o perseguiam, rezou por eles, e sacudindo o pó dos seus sapatos retirou-se com toda a comunidade.

CAPÍTULO VI

Na Suabia Ondas de soldados — Napoleão e Clemente — O manto ou a vida — Em Babenhausen — Weinried — Desejam confessar-se? — O rapaz que ri no sermão — A ferreira apostrofada — O violinista convertido — O rapaz libertino — Quebra vidraças e ganha uma missa — Vítima de calúnias — Montgelas — Perseguições. Vendo S. Clemente que Triberg estava perdida para a Congregação e que também Jestetten não lhe estava segura por haver essa cidade passado ao domínio protestante de Baden, volveu suas vistas para Augsburgo, onde tinha um amigo sincero na pessoa de Antônio Nigg, que ocupava o honroso cargo de vigário-geral da diocese, e que, desde há muito, desejava um ginásio bem organizado em Babenhausen. Em novembro de 1805 partiu para lá com Sabelli a fim de se entender com o bispo Clemente Wenceslau e conseguir dele a permissão necessária para a fundação de uma residência em Babenhausen. Foi essa uma viagem bem penosa para o nosso Santo; as trinta léguas que vão de Triberg a Augsburgo fê-las S. Clemente o coração oprimido pelos mais sinistros pressentimentos. Em Varsóvia a revolução tornava-se sempre mais ameaçadora para S. Beno, no Tabor não encontrava garantia alguma, em Triberg estava condenado à inação e entregue às mãos de poderosos inimigos; olhava para Augsburgo, mas não com muitas esperanças ao contemplar a multidão de soldados que inundavam toda aquela região. No dia 1 de outubro Napoleão à frente de um exército de 180.000 homens atravessara o Reno perto de Strassburgo em direção a Stuttgart contra Mack, o general austríaco, que o esperava em Ulm com 80.000 soldados; aos 13 de outubro Napoleão cercou Mack em Ulm e em sete dias a cidade se rendeu devendo 23.000 austríacos depor as armas aos pés do imperador dos franceses. O caminho estava aberto a Napoleão até o coração da Áustria, e seus soldados debandaram para todos os lados na Baviera, roubando e saqueando quanto encontravam sem atenção à miséria, em que iriam cair os pobres saqueados. É pelo meio dessa multidão que São Clemente teve de passar; felizmente porém nada de mal lhe aconteceu. Quando S. Clemente chegou em Augsburgo, lá se achava Napoleão. Que contraste entre essas duas personagens que se encontravam na mesma cidade! entre o vitorioso Napoleão e o perseguido S. Clemente! Aquele triunfou dez anos percorrendo a Europa ao sorriso das armas, vendo reis e imperadores tremer diante dele como a vara batida do vendaval; este perseguido, desconhecido e desprezado, ia de cidade em cidade procurando não a sua glória, mas a de Jesus Cristo. Depois de alguns anos morreu S. Clemente e teve o enterro de 34

um imperador; um ano depois de Clemente faleceu Napoleão e teve o sepultamento de um mendigo. São desígnios da Providência! Depois de recebido amavelmente pelo bispo, volta a Babenhausen para tratar com o príncipe Fugger da fundação da nova residência. De caminho um soldado avança contra ele, e prevendo que Clemente não levava dinheiro consigo, puxa da espada, aponta-lhe o peito e diz: “O manto ou a vida”. Sem o menor sinal de temor ou de impaciência, S. Clemente tira o manto, que nada tinha de precioso, e entrega-o ao soldado, que saiu contente por possuir mais um meio de se resguardar contra o frio. São Clemente, apesar dos esforços feitos, não pôde conseguir senão uma habitação provisória, tão úmida que dos trinta religiosos que a inauguraram, quase todos adoeceram; somente alguns meses depois, foi-lhe possível conseguir uma casa mais espaçosa, porém ainda insuficiente para tanta gente; essa circunstância obrigou alguns a hospedar-se na vizinha aldeia de Weinried na casa do vigário, grande amigo de S. Clemente. De dia o Pe. Clemente ficava com os seus padres em Babenhausen a rachar lenha, cuidar das estufas etc.; na quaresma ele mesmo tomava conta da cozinha; às horas das refeições, nos dias de jejum, ele sentava-se a mesa com a comunidade, mas não tocava nas comidas, porque, em espírito de penitência, nesses dias só tomava alguma coisa depois do sol posto. A atividade apostólica era muito limitada em Babenhausen porque, não tendo eles igrejas própria, eram obrigados a ir à matriz, onde o vigário só lhes permitia celebrar e ouvir confissões, ao púlpito era-lhes proibido subir. Os vigários dos arredores imitavam o vigário de Babenhausen, menos os de Illerberg, que tendo tido S. Clemente dois dias em sua companhia, escreveu no diário. “O Pe. Clemente é um homem muito delicado, tem boa declamação, é muito lido e de muito zelo pela religião; fala um alemão puro, é vienense e tem relações de amizade com todos os senhores de Viena e até com a corte do imperador; à noite a nossa ceia passa-se entre conversas edificantes e científicas... O fim da Congregação é propagar a religião nestes tempos sem fé. “O vigário de Weinried era o mais entusiasta pelo Santo e entregou-lhe a paróquia dando-lhe carta branca; desde a chegada dos Redentoristas o vigário não subiu mais ao púlpito que deixara aos padres, e com íntima satisfação acompanhava o aumento da vida religiosa em sua paróquia. Em Babenhausen visitava ele constantemente os doentes a quem consolava e dava bons conselhos, animando-os e ouvindo-lhes as confissões. De um modo todo especial tomava a peito a direção espiritual das almas; em Weinried quase não saia do confessionário; se as vezes se levantava do tribunal da penitência, ficava ajoelhado perto a rezar o seu breviário. Quando alguém entrava na igreja por curiosidade ou qualquer outro motivo, Clemente levantava-se, ia devagar até onde se achava a pessoa, e com toda a cortesia e amabilidade perguntava, se por acaso desejava se confessar. Esse estratagema produziu os melhores resultados; pessoas que há dezenas de anos já não se tinham reconciliado com Deus, não podendo resistir ao convite do Santo, faziam com arrependimento a confissão e mudaram de vida. O púlpito entretanto era o lugar predileto, onde com ardor discorria sobre as verdades da fé, corrigia os erros, cortava os abusos e mostrava a todos, com argumentos irrespondíveis e fortes, quais os deveres para com Deus e o próxi-

mo. Um dos vigários, admiradores de S. Clemente, disse uma vez: “Dai-me quatro homens para o púlpito como o Pe. Clemente, e quatro para o confessionário como o Pe. Passerat, e eu converterei reinos inteiros”. O modo de pregar de S. Clemente era de uma simplicidade admirável; abria o Evangelho a qualquer hora do sermão, apostrofava o povo, fazia perguntas prometendo uma missa a quem respondesse bem etc. Uma vez discorrendo com fogo sobre as verdades eternas, comoveu o povo a ponto de todos prorromperem em prantos e soluços, menos um moço que continuava a rir-se criticando as palavras do pregador. São Clemente parou bruscamente no meio do sermão, fitou por uns momentos o rapaz e disse-lhe com voz firme: “Moço, a igreja não é lugar para brincadeiras; teu procedimento bem mostra que não queres converter-te”. O auditório voltou-se para o jovem, que corou de vergonha, e reconhecendo o erro, pediu perdão e mudou de vida: foi esse o mais proveitoso sermão, que o moço ouvira em sua vida. Em Weinried havia uma senhora, esposa do ferreiro do lugar, já bem idosa, que não gostava muito de se confessar com freqüência, contentando-se com uma única confissão anual pela Páscoa. Encontrando-a casualmente admoestou-a S. Clemente a que se aproximasse mais vezes do santo tribunal da penitência, porquanto já estava velha e não longe da hora em que deveria prestar contas a Deus. A ferreira porém olhou para S. Clemente e disse-lhe: “Mas padre, que diria a gente se a mulher do ferreiro se fosse confessar tantas vezes?” No domingo seguinte São Clemente pregou sobre a recepção freqüente dos Sacramentos, mostrando sua utilidade para o tempo e a eternidade, pois que comunicam força e vigor espiritual à alma para os combates com os inimigos, consolam-na na hora da morte etc., e no fim acrescentou: “Vedes pois que é útil e salutar receber amiúde os Sacramentos; mas a velha ferreira diz: ‘que diria a gente se a mulher do ferreiro se fosse confessar tantas vezes’ — e em seguida olhando para a ferreira que lá estava, apostrofou-a perguntando: ‘Ó boa ferreirinha, que diria a gente se a ferreira estivesse no inferno?’” Não só no púlpito, mas também em suas relações de amizade procurava S. Clemente converter os pecadores e levar as almas para o céu. Uma vez encontrou-se com um músico que tocava violino em todos os bailes e sempre que se apresentava ocasião em qualquer divertimento. Por causa dessa alegria o Santo certamente não o repreenderia, pois que Deus ama os corações alegres e S. Paulo duas vezes, em seguida, aconselha os Filipenses a se alegrarem no Senhor; o rei Davi também dançava diante da arca e tocava sua harpa cantando os salmos do Senhor. — Mas o violinista de Weinried não tocava a harpa sagrada nem cantava os salmos de Davi, mas modinhas inconvenientes, ditadas pelo espírito impuro e pelas vis paixões, escandalizando a todos e levando muitas almas à perdição. S. Clemente, compadecido do pobre violinista, chamou-o às ordens pondo-lhe antes os olhos o estado deplorável de sua alma, a ignobilidade daquele modo de ganhar a vida, o escândalo causado a tantas almas, e o contentamento do demônio, que o queria levar para o inferno. As palavras tão sinceras quão severas de S. Clemente penetraram profundamente no coração do pobre músico que refletindo seriamente nelas, deixou para sempre a vida cômica e pecaminosa que levava e tornou-se um excelente cristão tendo sempre antes os olhos as palavras do Espírito Santo. 35

“Não te comprazas de ir às assembléias de grande tumulto, nem ainda às pequenas; porque ali são freqüentes os pecados que se cometem” (Eclo 18,32) Lá em Weinried havia um indivíduo que se chafurdara em todos os vícios e crimes, seduzindo a quantos podia; detestava a igreja e seus ministros; blasfemava contra a religião e em seus lábios só se encontrava palavras injuriosas e ofensivas contra os padres, os bispos e o próprio Deus. O vigário trabalhara em vão procurando todos os meios possíveis de conversão, a fim de o levar para o caminho da virtude; mas vendo a perversidade do rapaz, desesperou da sua conversão. S. Clemente porém não desanimou, orou e orou bastante pelo infeliz ao Pai, cuja misericórdia é infinita. Em seguida, com toda a ternura de um coração amigo, aproximou-se do grande pecador; aos poucos foi-lhe mostrando toda a fealdade do vício, e conseguiu que ele rezasse e fosse a igreja. A misericórdia divina tocou-lhe o coração e ele se converteu sinceramente fazendo a sua confissão debulhado em lágrimas. Depois de reparar com o arrependimento sincero os escândalos que causara, perguntou a S. Clemente como deveria agir para desfazer o mal ocasionado aos outros por sua vida escandalosa. Como bom pai aconselhou-lhe o Santo que fizesse quanto estivesse ao seu alcance, pois que o escândalo é como um grande incêndio que se ateia com uma pequena faísca, e não se apaga nem com o maior cuidado e trabalho; mas que confiasse na misericórdia divina e pedisse perdão a todos a começar pelo vigário e de fato levou-o ao pároco, que ficou atônito ao ver o Pe. Clemente e o criminoso entrarem juntos em sua casa; mais perplexo porém se sentiu quando o rapaz escandaloso se prostrou a seus pés chorando de compunção, como outrora Madalena aos pés de Jesus; não pôde conter-se de alegria o bom vigário, chorou com o penitente e no excesso de contentamento deu três saltos no quarto como se fosse ainda rapazinho na flor da idade. Meio anos apenas estivera S. Clemente em Babenhausen, e a cidade já mostrava um aspecto inteiramente novo quanto à vida de piedade e à prática das virtudes; e esse progresso espiritual não era conseqüência de um entusiasmo passageiro que se extingue como um fogo de palha, mas real e duradouro pois que, dezenas de anos depois, ainda se encontraram na cidade pessoas que levavam uma vida santa, recordadas dos sábios ensinamentos de S. Clemente. Os habitantes de Weinried agrupavam-se em redor de São Clemente como os filhos em torno do pai, amavam-no sinceramente, e não poucas vezes, vendo a grande pobreza do Santo, levavam-lhe o necessário para a sua subsistência; respeitavam-no como a um Santo e beijavam o chão por onde ele passava. Por mais que São Clemente procurasse esconder o brilho das suas virtudes e corresse atrás das humilhações e até do desprezo dos homens, a sua santidade se fazia sentir a todos com tanto maior admiração quanto maior cuidado tinha o Santo em ocultá-la. A fisionomia e a lembrança de Clemente imprimiram-se tão indelevelmente na alma daquele bom povo, que muitos e muitos anos depois que o Santo já se achava na eternidade, ele ainda falava com gratidão e saudades do bom e santo padre Clemente. Sessenta anos depois da saída do Pe. Clemente de Babenhausen, mostraram a sua fotografia a uma velhinha, que vendo o retrato derramou lágrimas de contentamento exclamando como que fora de si de alegria: “É o Pe. Clemente!” A velhinha, quando vira o

Santo, tinha apenas 10 anos de idade, esquecera desde então muita coisa que se passara em sua vida, mas os traços da fisionomia e da bondade de S. Clemente permaneceram gravados em sua memória e muito mais ainda em seu coração. Em sinal de respeito e veneração para com São Clemente, deixaram vazio, durante muitos anos, o quarto em que ele residia em a casa paroquial durante a sua permanência em Babenhausen, e na parede do quarto penduraram o retrato do Santo, que quase todos conservavam no coração. Um indivíduo de Babenhausen, que não possuía nem religião, nem fé disse um dia: “Tenho um estômago de soldado, mas gostei imensamente desse homem” — era S. Clemente. Em Weinried porém havia também alguns que não se simpatizavam com S. Clemente, e que nem queriam ouvir pronunciar-lhe o nome; mas isso não admira, porque os maus não podem suportar o brilho da virtude; o próprio Jesus Cristo, a Bondade infinita, teve inúmeros adversários que o desprezaram, denegriram e por fim lhe deram a morte infame da cruz. Também em Babenhausen havia um rapaz libertino e malcriado, a quem as pregações de S. Clemente causavam dor de cabeça e mau estar, porque o Santo se aprazia em discorrer, repetidas vezes, sobre a obediência, temperança, castidade e semelhantes virtudes, que o jovem detestava tanto na teoria como principalmente na prática. O infeliz perdendo-se na leitura dos filósofos da Revolução francesa e nas más companhias, julgava-se liberto dos mandamentos da lei de Deus e supunha já não existir o sexto mandamento. E como S. Clemente sempre pregava sobre esse assunto, as moças começavam a revestir-se de grande seriedade, as senhoras casadas tornaram-se modelos de virtude, e as próprias infelizes, que antes se entregaram ao vício, caíram em si, mudaram de vida e fizeram penitência. O rapaz libertino via pois em S. Clemente o seu maior inimigo, enraiveceu-se contra ele e entregou ocasião oportuna em que pudesse vingar-se. Aconteceu passar uma noite má o pobre rapaz; não pregou os olhos pois que estava fortemente excitado da paixão, e tocado do calor do álcool; achava-se conseqüentemente de mau humor, cabeça pesada, olhos cansados e consciência carregada. Ao amanhecer lembrou-se de descarregar a sua cólera no pobre Pe. Clemente, que em sua humilde cela estava a fazer a meditação da manhã. Colocando-se em frente à janela do Santo desatou a língua nas mais grosseiras imprecações, nos nomes mais injuriosos contra Deus e seu Servo; e quanto mais impropérios soltava, mais se enraivecia; não encontrando, em seu copioso vocabulário, palavras que lhe traduzissem todo o rancor que nutria contra o Santo, colecionou umas pedras na rua, e com elas fez em cacos a vidraça do quarto onde estava São Clemente, de sorte que os pedaços iam cair aos pés do nosso Santo, que chorava não de medo das pedradas nem de raiva das palavras injuriosas, mas de compaixão para com o infeliz, que assim ofendia a Deus e escandalizava o povo. Ao clamor do rapaz e ao som das pedradas acordaram as pessoas dos arredores, que vendo o procedimento do moço, se amaram de cacetes, bengalas e chicotes para lhe darem uma boa lição de urbanidade. Quando S. Clemente percebeu que a vizinhança se pusera em movimento, desceu também, não para se vingar, mas para tomar em sua defesa o rapaz libertino que o acabava de injuriar tão covardemente. Recomendando a todos que tivesse compaixão do infeliz, disse: “Não lhe façais mal; vou agora à igreja, 36

celebrar a missa por intenção dele”. Os lavradores que acorreram, voltaram para casa descontentes por perderem uma ocasião tão boa de ensinar moralidade ao libertino, porém edificados com o procedimento de São Clemente, que executava o conselho do divino Mestre: “Orai pelos que vos perseguem e caluniam”. Como esse pobre rapaz havia também outros, mesmo entre o clero, que não podiam ver com bons olhos a atividade apostólica e os resultados estupendos obtidos por S. Clemente. Não encontrando outras armas, nem descobrindo na vida de Clemente coisa alguma que depusesse contra ele, recorreram à calúnia que forjaram com tanta habilidade, que muitos deram crédito às suas palavras. Assim acusaram o Santo ao delegado de polícia, de haver arrombado violentamente o sacrário para levar a comunhão a um dos seus doentes contra a vontade do vigário que lhe havia negado a chave. Como o delegado era prudente chamou o respectivo vigário, que aproveitou a ocasião para tecer oficialmente os mais elogiosos encômios ao zelo apostólico e às virtudes consumadas daquele Servo de Deus, que trouxera à sua paróquia as mais copiosas bênçãos do céu. As más línguas porém não cansam, quando querem vingar-se ou fazer mal a um sacerdote; eram tantas as calúnias inventadas pelos maus, que S. Clemente pôde escrever a seus confrades na Itália: “São tantos os inimigos que se levantam contra nós nesta terra, onde estamos há pouco tempo, que sentimos necessidade de amigos verdadeiros que nos consolem e nos levantem o ânimo”. Durante todo tempo em que o príncipe Fugger dominou em Babenhausen, estavam os Redentoristas bem amparados, porquanto esse bondoso príncipe era amigo de São Clemente, escolher o Pe. Sabelli para educador de seus filhos e tinha já em vista construir, em seu território, um convento e uma igreja para os padres Redentoristas. Mas naquele tempo andava Napoleão pela Europa mudando e transferindo reis e coroas, como se fossem figuras de xadrez; em 1806 Fugger foi pelo poderoso monarca dos franceses despojado de suas terras que passaram a pertencer à Baviera cujo príncipe eleitoral fora mimoseado por Napoleão com a coroa real, por lhe haver prestado auxílio contra a Alemanha. Embora Maximiliano José fosse um monarca de bom coração e um cristão de convicção, deixou-se rodear de maus auxiliares, a cuja testa se achava o ímpio Montgelas, maçom e “iluminado”, que possuía tanta fé como a sua escrivaninha, arrogando-se poderes papais, espoliando as igrejas e abolindo todos os conventos da Baviera. Um dos seus primeiros atos foi, baixar um decreto, que proibia os Redentoristas toda e qualquer atividade no reino da Baviera. Entretanto recebia S. Clemente as mais desoladoras notícias do seu querido convento de São Beno, que desde o momento em que Varsóvia passou para o governo prussiano, fora o alvo do ódio dos maçons e dos “iluminados” que o queriam arrasar. Grave acusação acabava de ser feita contra os Benonitas ao rei da Prússia; estando o Reitor da casa, Pe. Thadeu, gravemente enfermo teve o Pe. Jestersheim de ir pessoalmente a Berlim desfazer a calúnia e defender-se junto ao rei, o que conseguiu felizmente com o mais brilhante êxito. Todas essas circunstâncias alarmantes faziam S. Clemente compreender que não se achava seguro em Babenhausen nem em Varsóvia. Mas para onde ir? Pensou primeiro na Itália e nesse sentido escreveu a Severoli, que infeliz-

mente nem com a melhor vontade pôde servir a seu amigo por não ter, na hora, nenhum colégio disponível na diocese, mas que aconselhou Clemente a não sair da Alemanha. Guiando-se por esse conselho resolveu dirigir-se a Würzburg no caso que a situação em Babenhausen se tornasse insuportável e insustentável, o que infelizmente sucedeu. Por ordem de Montgelas os vigários receberam proibição expressa e terminante de chamar Redentoristas para as suas paróquias, e o povo, de confessar a eles, dar-lhes intenções de missa, presentes etc. Tudo isso era anunciado e comentado publicamente do alto do púlpito. São Clemente sentiu o coração partido; todas as suas esperanças ruíram por terra; o Santo via-se só, perseguido de todos os lados. Um pensamento porém o consolava: era perseguido de todos os lados. Um pensamento porém o consolava: era perseguido tão somente por causa do bem que Ele e seus padres operavam; e Jesus dissera: “Bem-aventurados os que sofrem perseguições por amor da justiça”. Mas ele responsabilizara-se diante dos Superiores em Roma pela implantação do Instituto redentorista além do Alpes, e era esse o ideal da sua vida. Vendo que lhe era de todo impossível fixar-se na Europa, volveu seus olhos para a América, a terra clássica da liberdade, que cheia de vida e vigor se mostrava aos europeus, prometendo as maiores esperanças para o futuro. Clemente era homem prudente, mas de decisões rápidas, quando necessário; estava pois decidido: durante o inverno ficaria em Würzburg com os seus e logo, ao entrar na primavera, atravessaria os mares em demanda do Canadá; de lá mandaria missionários para cristianizar a Europa. — A única coisa que ainda o preocupava então, eram as dificuldades da viagem por causa da guerra da França com a Inglaterra. Ele escreveu ao Pe. Thadeu: “Já estão feitos os preparativos para a viagem, porque sinto mandar embora e demitir da Congregação tão boa gente... muitas palavras causar-te-ão surpresa e dir-me-ás que o caminho do Canadá é longo; não faz mal, contanto que tenhamos um lugar, onde esperar tempos melhores, e formar missionários para a infeliz Europa! Da Suabia muitos se unirão a nós porque eles gostam de viajar; a dificuldade única é agora arranjar as passagens por causa da guerra... nunca me sinto tão bem como quando me lembro do Canadá... quero cuidar dos meus filhinhos antes de deixar este mundo... estamos estudando o mapa e a geografia... só Deus sabe, onde os meus ossos aguardarão a ressurreição...; se tiveres algum plano melhor, peço-te comunicar-me... do Canadá poderemos com o tempo mandar missionários para o Oriente”. E continuando a carta dá ao Pe. Thadeu a notícia de que todo o peso recai sobre os seus ombros: “... Aqui o Pe. Passerat detém-se no confessionário o dia inteiro, de sorte que nem lhe posso falar; ele pensa que todo o merecimento de um padre consiste em sentar-se no confessionário dia e noite; os outros são crianças, nem refletem na possibilidade de sermos expulsos da noite para o dia; tudo pois se acumula sobre a minha pessoa”. A 6 de agosto S. Clemente recebeu do Pe. Thadeu uma carta pedindo uma entrevista em Viena. Clemente com os mais negros pressentimentos abandona a idéia de ir a Würzburg e dirige-se a Viena; antes porém escreveu a S. Beno: “Coragem, Deus é o Senhor, que dirige tudo para a sua glória e o nosso bem; quem se levanta contra nós, leva-nos para onde Deus quer; caros confrades, conservemos a inocência e a perfeição: é só a isso que devemos aspirar; um 37

anime o outro”. Partiu para a capital da Áustria, e o seu coração lhe dizia que já não haveria de ver a muitos dos seus filhos. Com as lágrimas a rebentar-lhe dos olhos despediu-se: “É forçoso deixar-vos, caros confrades; em Varsóvia há maiores dificuldades ainda do que aqui em Babenhausen; rezai pela Congregação para que ela não venha a perecer; os tempos são maus; quem sabe o que será de nós; talvez não nos vejamos mais”. Recomendando ainda a todos a mais fiel obediência ao Pe. Passerat, do qual ninguém deveria separar-se, abraçou paternalmente a todos apertando-os contra seu coração; depois de uma breve oração levantou suas mãos ao céu e deitou sua bênção sobre a comunidade, implorando para ela as bênçãos de Deus. Em seguida tomou o bordão do viajante e com o clérigo Martinho Starck partiu para Varsóvia passando por Viena. Os moradores de Weinried, que idolatravam seu apóstolo e benfeitor, foram a São Clemente dizer-lhe o último adeus — e em sinal da sua gratidão ofereceram-lhe cem escudos para a viagem. Era a última vez que eles veriam São Clemente sobre a terra.

CAPÍTULO VII

O último ano em S. Beno Um jantar depois da oração da noite — Perseguições em Varsóvia — Atentado contra o Pe. Thadeu — O escudo quebrado — Napoleão — A Baviera hostiliza os Redentoristas — Zelo admirável dos padres — Tristes acontecimentos em Varsóvia. A pé, debaixo de um sol ardente, partiram S. Clemente e o clérigo Martinho Starck para Viena passando por Linz. Não levaram dinheiro consigo, porque S. Clemente presenteara a comunidade de Babenhausen com o valioso donativo recebido dos habitantes de Weinried, e para a viagem muniram-se de uma boa porção de confiança na divina Providência. Muitas vezes tiveram de esmolar, de caminho, uma fatia de pão e de padecer fome não poucos dias. Uma vez aconteceu andarem o dia inteiro sem provarem um pedacinho de pão. Cansado e debilitado pela fome queixou-se Martinho Starck de não poder mais caminhar de fraqueza. S. Clemente consolou o súdito pedindo-lhe que tivesse paciência, porque o dia não passaria sem que ele recebesse suculento jantar. Embora a promessa não parecesse muito crível, Martinho fez um esforço supremo e em silêncio acompanhou o Superior até a cidade, onde Clemente pediu um agasalho por ser já noite. Ainda que contrariado com a visita importuna, o dono da casa, querendo passar por hospitaleiro, mandou buscar no paiol algumas palhas, que estendeu no chão para servirem de cama aos hóspedes e retirou-se. São Clemente agradecendo a Deus que lhes proporcionava mais uma ocasião para a mortificação, disse ao companheiros: “Vamos fazer a oração da noite”. O clérigo, espantado, puxa a batina do Santo com as palavras: “E o jantar...?” São Clemente sorriu-se: “Reze e vá deitar-se, que a refeição virá”. O pobre clérigo abriu uns olhos que denunciavam tristeza e desaponto. Deitar-se para comer depois: isso lhe parecia uma ironia. Entretanto sabia que seu Superior nunca mentira. Foi deitar-se sobre as palhas sem todavia conciliar o sono por fome e cansaço. Na sala, entretanto, desenvolveu-se uma luta furiosa: dois jogadores, descontentes, gritava, imprecavam e blasfemavam contra Deus; das palavras passaram aos fatos e a coisa ia-se tornando bem desagradável quando de repente aparece S. Clemente, olha a cena de longe, percebendo porém que a luta não queria terminar, entra no meios dos lutadores, pede por amor de Deus que deixem de ofender Nosso Senhor, se perdoem mutuamente para evitarem os remorsos das consciência e os castigos do outro mundo; toma as dextras dos adversários, fita-os com mansidão e bondade, e depois de os apaziguar com boas palavras consegue que eles se dêem amigavelmente as mãos. Um deles deixou-se tomar de veneração para com S. Clemente, e lembrando-se 38

que os dois senhores de batina tinham ido acomodar-se sem jantar, mandou ao hoteleiro aprontar uma suculenta ceia para a qual convidou São Clemente e seu companheiro, que se levantou bem depressa e se assentou à mesa. Terminada a refeição, disse São Clemente sorrindo: “Martinho, está vendo como Deus é bom e não desampara os seus servos?” Na manhã seguinte partiram para Viena, onde o Pe. Thadeu Hübl os esperava; lá demoraram-se cerca de dois meses. São Clemente preparava-se já para voltar a Varsóvia, quando em outubro, rebentou a guerra entre França e Prússia, de cujo êxito dependia a sorte de Varsóvia e conseqüentemente também de S. Beno. As batalhas de Iena e Auerstädt foram decisivas; Napoleão entrou triunfante em Berlim depois de derrotar, ou antes, aniquilar o exército prussiano. Varsóvia pois pertencia à França; em 1806 Napoleão em pessoa foi visitar a capital da Polônia depois que seu general Davoust lá tinha entrado debaixo das aclamações delirantes do povo. No ano seguinte Napoleão elevou a Polônia à categoria de grão-ducado entregando-a a Frederico Augusto, que fora rei da Saxônia. Embora católico e até piedoso, Frederico Augusto era apenas um manequinho na Polônia, devendo obedecer servilmente aos magnatas da França e dançar ao compasso da batuta de Napoleão. O ódio e a perseguição aos sacerdotes estendeu-se também à Polônia, na medida que eram praticados na França. Os maçons e “iluminados” de Varsóvia exultavam, pois que a vitória lhes estava garantida, e sem detença começaram a mais encarniçada guerra contra o convento de S. Beno. Momentos amargos foram esses para S. Clemente que, mais tarde, o manifestou com as palavras: “Ninguém no mundo pode fazer idéia, e só no dia do juízo final ficará patente o quando padeci em Varsóvia nesses tristes dias”. Os maçons3 de Varsóvia excogitaram um plano de campanha ardiloso contra os Benonitas e contra a religião, o que aliás costumam fazer em toda parte, também em nossos dias. Esforçaram-se primeiro para ridicularizar os Benonitas através da imprensa e de folhetos avulsos que distribuíam grátis entre o povo; em versos chulos adaptados a melodias conhecidas e triviais zombavam-se dos sacerdotes e de Deus; e essas cantilenas ouviam-se nos cafés, nas esquinas, nos teatros etc.; para figuras cômicas nos teatros usavam a batina dos Benonitas; e o povo ébrio de divertimentos e novidade ria-se e aplaudia a tudo, como outrora os judeus que gritavam Crucifique contra Jesus. As pessoas piedosas de Varsóvia, porém, firmes na sua fé continuaram a freqüentar ainda com mais assiduidade a igreja dos Redentoristas, onde recebiam com devoção os santos sacramentos, pois que as almas verdadeiramente religiosas não se incomodam com as irrisões dos maus e chegam-se tanto mais aos sacerdotes, quanto mais estes são perseguidos e caluniados pelos inimigos de Deus. Em plena rua eram eles escarnecidos pela corja maçônica, que os apontava entre assobios de escárnio com o grito: “Benonitas, Benonitas!” Vendo os maçons que não conseguiam demover o povo de freqüentar a igreja dos Redentoristas, procuravam incutir temor aos padres, proibindo-lhes pregar sobre pecados, vícios etc. e mandando espiões à igreja. Quando um padre era chamado a confessar algum doente, ou quando ia pregar em outra igreja, os tais de combinação se punham se punham a assobiar, a populaça se reunia e o pobre padre se via desacatado publicamente. Ao Pe. Blumenau, ora-

dor fogoso que não só empolgava, mas também arrebatava as massas, ameaçaram de morte se continuasse a fazer as suas pregações; como o Pe. Blumenau não se deixasse atemorizar pelas pistolas carregadas dos emissários da maçonaria, a raiva dos inimigos se transformou em fúria, de sorte que o pobre do padre não pôde mais sair de casa. O zelo apostólico dos Benonitas crescia na medida que os maçons se enfureciam; de sorte que em 1807 pôde S. Clemente escrever a Roma: “A nossa igreja está sempre repleta; admiradíssimos estão os confessores do rei e da rainha da Saxônia que vêm freqüentemente à nossa igreja e à nossa casa... em cada missa distribuem-se mais de cem comunhões; muitos protestantes convertem-se... É um verdadeiro milagre poder sustentar 64 pessoas nestes tempos calamitosos sem o auxílio de um vintém de esmola”. Entretanto o Pe. Passerat estava lá para tratar das passagens para o Canadá e São Clemente participou isto ao Vigário de Mitau, que lamentando intimamente a resolução do Santo, escreveu-lhe para o demover do seu intento: “Queres abandonar um povo que se nutriu a teu peito, somente porque sua cerviz é dura e seu coração corrompido? porque procuraste três anos os frutos e não os encontraste, queres agora cortar a figueira? Deus tal não permita”. Como porém o vigário não queria contrariar o Santo deu-lhe uma carta de recomendação para Lord Douglas em Londres. Em tudo isto o coração de S. Clemente sangrava, não tanto por causa da sua pessoa, mas por causa dos seus padres, da sua querida Congregação, e ainda mais, da glória de Deus ultrajado — previa grandes males para o futuro e temia pela grandiosa obra que estabelecera na capital da Polônia. Em todos esses duros transes procurava ele, depois de Deus, o coração do grande e sincero amigo Pe. Thadeu Hübl para se desabafar e encontrar novo alento e coragem; e o Pe. Thadeu, homem de grande prudência e de vastos conhecimentos sempre sabia um bom conselho a dar e um expediente para sair das dificuldades. É por isso que S. Clemente não poucas vezes o denominava “um outro eu” e a outra metade da sua alma. Havia pouco que Clemente e Thadeu tinham chegado a Varsóvia, quando este foi vítima de um nefando atentado. Sob pretexto de que um penitente, achando-se muito mal, o chamava para os últimos sacramentos, foram buscar o Pe. Thadeu em um carro. Mal o padre tinha entrado, quando o amarram de mãos e pés e lhe vendam os olhos. Depois de muitas voltas chegam a uma choupana, onde não havia nenhum enfermo, mas alguns senhores e empregados. O padre recebe afrontas de toda a sorte e por fim a intimação de nunca mais ouvir de confissão certas senhoras, ao que o nobre Redentorista respondeu que não recuaria um passo do cumprimento do seu dever. A um aceno dos senhores, os empregados começam seu trabalho: despem o padre, lançam-no por terra, e põe-se a vergastá-lo com bengalas e outros instrumentos até rebentar o sangue de muitas chagas. Em estado grave foi ele, de olhos vendados, reconduzido a Varsóvia. Só S. Clemente ficou sabendo desse acontecimento. Mal restabelecido desses maus tratos foi o Pe. Thadeu chamado ao hospital. Era ele o único sacerdote que em Varsóvia falava sete línguas e por isso só ele estava em condições de consolar nos hospitais os soldados alemães italianos, franceses, polacos e boêmios que lá se reuniram com a entrada do exérci39

to francês e do regimento italiano. O bom do padre, embora doente, mostrou-se incansável no cuidado dos enfermos, acudindo a todos com carinho e presteza, até que Deus lhe mandou o aviso de que não estava longe o dia em que iria no céu receber a recompensa dos seus grandes trabalhos; a febre tifóide, apanhada à cabeceira dos doentes, reduziu-o à fraqueza extrema; S. Clemente não saía de perto do seu confrade; vendo que a doença era grave administrou-lhe os santos sacramentos dos moribundos. Dia e noite passava o Santo junto do leito do seu caro Pe. Thadeu Hübl. À 4 de julho de 1807 rodeado de toda a comunidade esperava Thadeu a morte com o rosto sereno e a conformidade de um Santo; depois de receber a última bênção de S. Clemente, que conservava as mãos do moribundo entre as suas, o Pe. Thadeu voou para o céu deixando seus caros confrades imersos na mais profunda dor. A morte desse prestimoso sacerdote foi uma das maiores provações para S. Clemente, porque amava Thadeu Hübl coo a seu irmão com amor santo e forte; a consternação no convento foi tal que ninguém teve ânimo nem a lembrança de fazer o necessário para o enterro. Foi preciso que de foram viessem as providências nesse sentido. O arcebispo mandou que por três dias cessassem as cerimônias da Igreja de S. Beno, providenciou para que a noite, empregados de confiança cobrissem o templo de luto pesado e arranjassem o maior número possível de velas. Nos três dias que se seguiram à morte do Pe. Thadeu, as comunidades religiosas de Varsóvia rezaram, revezando-se, o ofício dos defuntos na igreja e todos esses dias, os sinos de Varsóvia dobraram tristemente durante uma meia hora. O enterro do antigo estudante mendigo foi pomposo como o sepultamento de um grande do mundo. A dor de S. Clemente, nessa ocasião, foi lancinante. Quatro meses depois, escreveu ainda a um amigo na Itália: “Tenho a convicção de que Hübl está no céu... conformo-me com a vontade santíssima de Deus, contudo devo confessar que, desde a sua morte, não tive mais nem uma hora feliz na vida”. Em uma carta ao bispo, falando da dor que sentira pela morte de seu amigo Hübl, acrescentou: “No tempo da meditação, aos pés do Crucifixo, parece que estamos dispostos para tudo, mas logo que o Senhor nos quer impor a sua cruz, não sentimos coragem de carregá-la”. Semelhantes cartas repassadas dos mais dolorosos sentimentos escreveu ele ao Pe. Passerat, que do seu lado também sentia a morte do amigo e companheiro Pe. Vannelet, falecido quase ao mesmo tempo que Hübl. Desconsolado escreveu Passerat a Varsóvia desfazendo-se em pensamentos tristes e desejando a morte, ao que S. Clemente respondeu: “Devemos adorar a santíssima vontade de Deus e beijar cem vezes a mão que nos feriu, porque ele pode curar-nos novamente as chagas. Tu queres também morrer? será isso por amor de Jesus Cristo ou da carne, que reluta contra a cruz? melhor do que morrer é sofrer e permanecer pregado com Cristo na cruz”. São Clemente tencionava ira Cur em visita ao Pe. Passerat e a seus padres; mas a morte inesperada de Thadeu Hübl o impediu; era difícil achar um substituto para o falecido: “O escudo está quebrado, Deus sabe o que agora virá sobre nós” disse ele a sua comunidade em uma das suas conferências. Em meados de novembro anunciou o Pe. Passerat sua provável ida a Cur. Essa carta parecia ditada pelos mais graves pressentimentos; são as últimas palavras de despedida a transbordar de amor e intimidade. “Sede santos, aceitai

bastante noviços... Procede de forma como se fosses o Vigário Geral, dou-te todas as faculdades, os padres José e Francisco Hofbauer são teus auxiliares; alegrem-se eles contigo por serem as primeiras pedras do edifício; na eternidade alegrar-se-ão certamente com os santos patriarcas, quando virem seus filhos sentados à direita de Deus; mas lembrem-se também que hão de suportar as dores da maternidade; o temor dos sofrimentos não os intimide de dar filhos a Nosso Senhor. Saúdo a todos, apertando-os contra o meu coração. Adeus, irmãos, vós sois a minha alegria, a minha coroa, a minha glória em Cristo; adeus, Jesus Cristo queira encher-vos a todos das bênçãos celestiais, dê-vos o seu Santo Espírito como aos apóstolos. Santificai o mundo, caríssimos irmãos, nada poderá contra vós o inimigo, se Cristo for por vós; rezai por nós como o fazemos por vós para que cumpramos a santíssima vontade do nosso Pai. Saudações de todos os irmãos”. Essa carta não alcançou o seu destino porque o Pe. Passerat tinha abandonado Luzi em Cur justamente uma semana antes da data da carta. Já em junho Passerat escrevera a Varsóvia, que as calúnias contra os Redentoristas haviam já chegado a Paris. O Pe. Passerat, francês patriota, depusera toda a sua confiança e esperança em Napoleão, no grande imperador, “protetor da inocência oprimida”; pedira ao Vigário Geral que se dirigisse a ele, pois que com uma só palavra o imperador faria calar todos os adversários. Pobre Passerat, em breve teve de sentir que o homem só pode confiar em Deus, que tem os corações dos reis em suas mãos! O adversário principal dos Redentoristas foi, naquele tempo, o governo bávaro, que fazia passar pela censura todas as cartas enviadas ou recebidas pelos padres da Congregação; vinte e quatro delas estão ainda guardadas no arquivo do governo, cartas inocentes que só se referem a coisas de negócios e que bastariam para provar aos funcionários públicos que os Redentoristas não se envolviam em política nem se intrometiam em negócios do Estado. Alguns trechos dessas cartas são testemunhas evidentes do bom espírito que existia entre os bons religiosos. Assim a resposta a um postulante que perguntava o que deveria levar para ser recebido na Congregação, dizia: “Não compreendemos o que o sr. entende por requisitos da entrada... aqui nada se prescreve a respeito; quer traga bastante, quer traga pouco o sr. será recebido da mesma forma; se trouxer um coração dócil e bom, estimaremos mais do que todas as riquezas e tesouros; aviso que o sr. não encontrará entre nós comodidade alguma, mas sim uma vida simples e pobre que não afaga nem a carne nem as paixões, mormente em nossos tempos, em que se exige uma alma forte para o sacerdócio; se estiver resolvido a isso, venha, venha quando quiser; não tenha cuidados por causa do temporal, pense só em salvar a sua alma”. Mesmo dessa carta quiseram deduzir que os padres da Suíça chamavam para o estrangeiro os súditos da Baviera. Os padres Redentoristas receberam ordens de sair do território bávaro; não houve pois remédio. O Pe. Passerat aprontou-se e, em grupos de quatro, saíram todos para Valais na Suíça pelo caminho mais breve. Como as dificuldades se aumentavam dia a dia, o Pe. Passerat resolveu enviar para as suas casas os quatro estudantes, que o acompanharam; mas qual não foi o seu espanto, quando estes, assustados com a triste nova, se ajoelharam diante da Imagem de Nosso Senhor suplicando-lhe que não os de40

samparasse nem os julgasse indignos da santa vocação. O Pe. Passerat não pôde resistir, tomou-os consigo dizendo: “A Providência que cuida das aves do céu, não nos abandonará”. Os diversos grupos encontraram-se em Visp. No meio de tantas desilusões São Clemente teve uma consolação bem grande: nesse ano de perseguições nenhum dos seus filhos se tornou infiel à sua santa vocação; pelo contrário em santa emulação exerciam-se todos de modo admirável na prática das virtudes convertendo a milhares com suas palavras e mais ainda com seus exemplos. Tudo isso parecia menos mal a S. Clemente, mas o desejo ardente de achar um lugar e uma casa para os seus noviços e sua Congregação, ainda não se tinha realizado nem parecia querer realizar-se em breve. A ida ao Canadá, tornara-se impossível devido às circunstâncias. Em Varsóvia as coisas pioraram de dia para dia, só não na igreja, onde os padres no último ano tiveram nada menos de 104.000 comunhões, e mais ainda teriam se os padres fossem mais numerosos; mas o ódio dos maçons aumentava-se sempre mais. São Beno tinha-se tornado o baluarte contra o livre pensamento que tudo avassalara. Já temos falado do atentado contra o Pe. Thadeu Hübl, que nos últimos anos era o representante de S. Beno; gozava nas rodas católicas uma influência única; via-se o seu retrato até nos cachimbos e nas caixas de rapé; as princesas e as damas nobres tinham-no por confessor. O contraste entre os Benonitas e os Jacobinos acentuava-se sempre mais. A São Clemente não pouparam os maçons; à semelhança do Pe. Thadeu Hübl esteve ele atado de mãos e pés numa adega escura e funda onde não se pôde afastar os sapos e rãs que pulavam sobre o seu rosto; ele mesmo afirmou uma vez, “haver sofrido na Polônia coisas que só serão manifestadas no dia do juízo final”. Os Redentoristas ficaram afinal inteiramente isolados; não podiam trabalhar com o clero tão numeroso da cidade porque as idéias divergiam demais. Davoust pôde com verdade participar a Napoleão, que o clero de Varsóvia detestava os Benonitas, e um dia S. Clemente perguntado, por quem haviam sido expulsos os Redentoristas de Varsóvia, respondeu laconicamente: “pelos falsos irmãos”. Em geral porém, S. Clemente não tinha motivos mais sérios para suspeitar perigosa a sua posição no grão-ducado; suas últimas cartas não traem cuidados nem receios. À 9 de março escreveu ainda ao Procurador geral dos Redentoristas em Roma: “Aqui não há novidades; o tempo difícil, em que todos sofrem, não nos poupa, mas, Deus louvado, nossa Congregação faz dia a dia novos progressos”. Isso era apenas uma pausa. O Santo iria em breve sofrer a mais dura provação em sua vida, pois que se preparava a ruína de São Beno.

CAPÍTULO VIII

A expulsão Verdadeira causa da expulsão — Davoust persegue os Benonitas — Solenidade da Páscoa — Decreto de Napoleão — Aviso do céu — Execução do Decreto — Resignação do Santo. A expulsão dos Redentoristas e a ruína de S. Beno devem sua realização, em parte, à loja maçônica de Varsóvia, a qual, desde muito, não podia ver com bons olhos a atividade dos padres e os resultados estupendos que haviam conseguido quanto à piedade e moralização do povo. Embora tivessem os maçons trabalhado nesse sentido e contribuído para isso, não é bem a eles, mas às conseqüências desastrosas de Babenhausen, que se deve atribuir a expulsão dos padres de Varsóvia. O governo bávaro fez o que pôde não só para desmoralizar os Redentoristas, mas também para denegri-los aos olhos do povo, e apresentá-los ao público como uma sociedade inútil e prejudicial. Os diários mais importantes e mais lidos na Baviera v. g. o Postzeitung de Augsburgo, o jornal de Frankfurt etc. publicavam as maiores infâmias contra os padres de Babenhausen e de Cur. De uma dessas notícias teve conhecimento o comandante militar de Varsóvia, o marechal Davoust, a saber, que os Redentoristas haviam sido expulsos da Baviera, por haverem conspirado contra a paz e a tranqüilidade públicas, e que os Congregados estavam em correspondência epistolar com um tal Clemente Hofbauer, Vigário Geral dessa Ordem em Varsóvia. Essa notícia foi o começo do fim para o convento de S. Beno. O marechal, desejoso de informações, escreveu a Montgelas, ministro do interior na Baviera. A carta-resposta deu a Devoust a informação desejada, isto é, que os Redentoristas eram os causadores da perturbação da ordem em Babenhausen, fanatizando o povo, indispondo-o com o governo e o clero. que seus penitentes se distinguiam pela devassidão etc. Ainda mais perigosa foi a declaração de que em Cur se verificou ser sua presença prejudicial ao recrutamento dos regimentos para o Imperador dos franceses. Era o suficiente para Devoust mandar fazer buscas no convento e seqüestrar o arquivo da casa. Alguns trechos da correspondência epistolar confiscada, como: as relações dos Redentoristas com os Bourbons, com os jesuítas e os amigos dos jesuítas, as expressões do Pe. Eduardo de Mitau pouco honrosas para Napoleão e os franceses, o projeto da fundação no Canadá, deviam realmente parecer comprometedoras a Davoust que selecionando as passagens mais obscuras escreveu a Napoleão a 12 de abril: “... Tenho certeza de que essa gente é realmente inimiga de todo governo, mormente do de Vossa Majestade; em breve terei a honra de enviar a V. M. os papéis, dos 41

quais V. M. poderá ver a constituição dessa Associação e quais as suas ramificações... Um tal Litta, Núncio do papa, é um dos grandes organizadores... Hofbauer esteve de viagem pela Suíça e França, mas já voltou faz pouco; as observações por ele feitas, levam à convicção de que é um homem perigoso... Hofbauer está em correspondência ativa com o confessor do rei da Saxônia... Peço a V. M. mandar a esta região homens experimentados e fiéis”. Os inimigos de São Beno tinham pois o jogo ganho. As acusações foram todas acreditadas e aceitas sem mais indagações, mesmo as que eram evidentes mentiras e calúnias. Assim p. ex. aconteceu que devido à grande carestia da vida os padeiros, açougueiros etc. de Varsóvia fecharam suas portas para não sofrerem prejuízos: e na cidade correu que os Redentoristas os haviam instigado a isso para oporem dificuldades ao novo governo. Poucos meses antes eram os Benonitas considerados inimigos figadais dos Prussianos, e agora acusados de amizade exagerada com eles. Davoust desejava liquidar logo com os Redentoristas ainda mais que para isso não encontrava oposição no governo de Varsóvia; o único que protegia os Benonitas era Estanislau Breza, secretário de Estado na Polônia. O rei católico da Saxônia fez o papel de Pedro no átrio do Sumo Sacerdote: negou estar relacionado ou conhecer os Benonitas, exigiu também que Davoust examinasse pessoalmente a coisas com exatidão, e lhe mandasse as atas. Isso desagradou a Davoust. O marechal para não dar satisfações ao rei da Saxônia, só procurou uma ocasião em que pudesse provar a animosidade dos padres contra os franceses, o que não tardou a dar-se. A 19 de abril de 1808 celebrava o mundo cristão a festa da páscoa da Ressurreição do Senhor. Em S. Beno costumava essa festa ser celebrada com a maior solenidade possível. No sábado de Aleluia prolongaram-se as cerimônias até às 10 horas da noite, como é costume na Polônia; a igreja naquela ocasião assemelhava-se a uma noiva no dia das suas núpcias, resplandecente ao clarão das inúmeras velas e adornada das mais lindas flores. O templo regurgitava de povo de sorte se tornara impossível encontrar mais um lugar vazio na igreja. Quando o sacerdote no altar entoou o “Surrexit Dominus” o Senhor ressuscitou, milhares de vozes acompanharam o celebrante cheias de entusiasmo. Terminadas as cerimônias voltou novamente a tranqüilidade ao templo, e as pessoas puseram-se a caminho para suas casas, passando, como de costume, por uma porta estreita perto da sacristia. Naquele aperto apareceram dois senhores à paisana que queriam, à força, penetrar na igreja, dizendo serem oficiais franceses mas portando-se como embriagados. Não sendo atendidos, puseram-se a bater por todos os lados e a gritar contra o povo. Naturalmente as pessoas que saíam, ofenderam-se com aquele procedimento, e alguns mais valentes retribuíram na mesma moeda as cortesias dos oficiais franceses; o sangue chegou a correr. Passando por ali um oficial polaco encheu-se de cólera contra os franceses e estava já de espada em punho para acabar com eles, quando apareceu o Pe. Jestersheim, Reitor dos Redentoristas, pedindo por amor de Deus que respeitassem aquela noite tão santa. Como tudo aquilo não passava de uma farsa, em que se procurava acusação contra os Benonitas, logo se propalou que o Pe. Reitor havia dado uma violenta bofetada em um dos oficiais franceses; e isso era um crime perante a lei. Davoust ouviu os oficiais e remeteu a Napoleão as acusações junto com um resumo da correspondência de S. Cle-

mente. Napoleão leu com atenção as informações de Davoust e respondeu: “Eles parecem ser da mesma corporação como aqueles que expulsei da Itália e da França; pedirei às cortes alemãs que os expulsem, e farei o mesmo ao rei da Saxônia: esses padres começaram a existir há poucos anos e já se tentou inundar deles a França; já proibi suas reuniões, mandei fechar seus conventos e dispersar-se todos indo cada um para sua casa...!” E no mesmo dia mandou o Ministro do Exterior expulsar esses sacerdotes da Polônia... “por serem eles o renascimento dos jesuítas”. Era essa a sentença de morte contra S. Beno! Napoleão, em sua leviandade, afirmou que os Redentoristas inundavam a França quando não havia nenhum deles lá! São Clemente iludira-se muito tempo a esse respeito; confiava demais na lealdade do rei católico da Saxônia, a quem pertencia Varsóvia. Deus entretanto quis preparar seu Servo para o grande golpe. À 9 de junho, num dos dias da oitava de Pentecostes, lera no breviário as palavras do salmo 87: “Eu sou pobre, e em trabalhos estou desde a minha juventude, e embora exaltado e elevado, sinto-me humilhado e contristado”; nesse momento sentiu o corpo tremer como uma vara verde; pôs-se a meditar no que podia significar aquilo e tornou a sentir o mesmo tremor em todo o corpo; convenceu-se de que era aviso do céu para uma grande tribulação; curvou-se antecipadamente, com toda a resignação, ante a vontade de Deus, e a tranqüilidade tornou a voltar à sua alma. Nesse mesmo dia foi assinado em Pilnitz o decreto que expulsava os Redentoristas de S. Beno. Essa ordem fora confeccionada por dois amigos do Santo: pelo rei da Saxônia e por Breza, secretário do Estado! O rei Frederico Augusto com lágrimas nos olhos tomou a pena para confirmar o decreto da expulsão — fizera-o debaixo da pressão do imperador dos franceses. Pelo decreto era permitido aos padres levar consigo suas propriedades pessoais e a viagem deveria ser feita às custas do governo. Aos 14 de junho o decreto chegou às mãos de Davoust, que com a maior circunspecção se preparou para desfechar o golpe; um funcionário, porém, amigo dos padres traiu o segredo; entrou no convento disfarçado por causa da grande vigilância dos soldados, e na maior reserva contou tudo a S. Clemente, o qual, convocada a comunidade, impôs-lhe o mais rigoroso segredo e narrou o que estava por acontecer. Foi como se um raio, naquele momento, caísse sobre o convento: uns até choraram e soluçaram de dor. Mas não havia tempo a perder; da igreja e da sacristia foram retiradas as alfaias mais preciosas; os ornamentos foram colocados na cripta; as relíquias repartidas entre os padres e os irmãos; estes aprontaram as malas e cada qual recebeu um pouco de dinheiro para as maiores e mais urgentes necessidades eventuais. No dia seguinte houve as cerimônias na igreja como de costume sem que ninguém pudesse suspeitar a menor sombra de novidade. O dia 17 de junho foram determinado para a execução do decreto. Pelo temor de possível sedição popular, foram guardadas militarmente as ruas que iam ao convento; ao meio-dia apareceu em S. Beno a comissão da expulsão; era hora do culto. São Clemente estava no púlpito a pregar e os padres no confessionário a ouvir as confissões. A citação foi feita sem mais preâmbulos com a obstupefação do povo que viu o Pe. Clemente interromper bruscamente 42

o sermão, e os irmãos ir de confessionário a confessionário chamar os padres, que se levantaram imediatamente. Fecharam-se as portas e o povo ficou preso dentro da igreja. Os comissários assustaram-se ao perceber a calma dos padres, que não se mostravam surpreendidos; temeram uma revolta, mas S. Clemente tranqüilizou-os assegurando-lhes que o povo ignorava tudo e que eles não usariam violência. Os Redentoristas, desde aquele momento, estavam presos por ordem de Davoust e incomunicáveis — só então é que abriram as portas da igreja e deixaram o povo sair. Davoust não era contrário à ida dos padres à Galícia como haviam pedido, mas, como o coronel austríaco nada podia decidir sem primeiro consultar Viena, o comandante indignou-se e mandou os presos para Küstrin, donde cada um iria para sua casa; isto se daria a 20 de junho. Os comissários franceses insistiram com os clérigos e estudantes de Varsóvia, a que rompessem de vez com os padres e de lá mesmo voltassem para suas casas; só um foi infiel à vocação; todos os outros preferiram partilhar a sorte dos demais padres indo juntos ao exílio. A comunidade de S. Beno contava então quarenta membros, dos quais vinte eram padres e vinte estudantes e irmãos leigos. No dia 20 de junho, levantaram-se os religiosos às 3h30min, prepararam-se para a viagem e esperaram os carros que os haviam de separar da cela querida. Os veículos não tardaram a chegar a S. Beno munidos de soldados. Embora de madrugada, as ruas e as janelas das casas achavam-se repletas de povo; os padres entretanto consolaram-se ao verem que os carros seguiam na mesma direção esperando poder juntos beber o cálice da amargura e do desterro; mas essa consolação também evanuiu-se quando, ao sair da cidade, perceberam que os carros se dirigiam para direção diversa; separavam-se, talvez para sempre, sem se despedirem. São Clemente, sentando em seu carro baixara a cabeça resignando-se com a vontade santíssima de Deus, enquanto que seus dedos desfiavam as contas do rosário da Virgem, e seu coração rezava pelos filhos perseguidos e pelos perseguidores. Nenhuma palavra de queixa ou reprovação saiu de seus lábios; colocara tudo nas mãos da Providência. Era o fim de S. Beno. Durante cinco dias, de carros fechados, foram conduzidos para o Oeste parando apenas ao meio-dia e à tarde para o descanso dos cavalos — enfim chegaram a uma cidade cingida de muralhas de todos os lados. Lá havia uma fortaleza, como São Clemente nunca vira na sua vida; — e agora ia vê-la bem de perto; a cidade era toda protestante. Os carros pararam em frente a essa fortaleza no meio da cidade, abriram-se as portas e os padres receberam o convite de entrar dentro do soberbo prédio. Foi na cidade e na fortaleza de Küstrin, perto de Berlim que se reuniram os exilados. A habitação era espaçosa e o tratamento não deixou nada a desejar. Cada um recebeu um quarto separado; na sala grande levantaram um altar, e a comunidade reencetou os seus exercícios, prescritos pela Regra, como se os Congregados se achassem no convento. Os protestantes sentiam compaixão dos exilados e não tardaram a simpatizar-se com eles; em grandes grupos detinham-se perto das janelas a ouvir os cânticos que ecoavam pela sala; os pastores protestantes chegaram a temer a influência dos sacerdotes católicos sobre as suas ovelhas. Aos 28 de junho S. Clemente dirigiu uma carta ao arcebispo de Posen,

agradecendo todos os favores recebidos e dando algumas informações sobre a situação “... conformamo-nos com a sorte que nos coube pela vontade de Deus; é-nos suave o sofrimento porque nossa consciência de nada nos acusa; o decreto nos foi anunciado sem preceder-lhe processo, e foi executado com mais dureza do que fora lavrado... estamos separados de todos e não sabemos porque; estamos aqui na fortaleza e só Deus sabe a sorte que nos espera... porém em tudo reconhecemos a vontade de Deus que seja sempre glorificado Deus permitiu isto, porque não éramos o que deveríamos ser”. A prisão na fortaleza durou quatro semanas passadas na mais escrupulosa observância regular, semanas de mortificação e de resignação com a vontade divina; São Clemente nutria ainda a esperança de poder conservar unida a sua querida Comunidade; confiava sempre na lealdade e amizade do rei que tudo faria para o seu regresso a Varsóvia ou a alguma residência na Saxônia. Eram sonhos! Em meados de julho anunciou-se aos exilados a cassação do desterro, indo cada um para sua casa. Tremendo golpe para S. Clemente! Separar-se dos seus, ver seus planos esfacelados, sua grande obra aniquilada, o ideal da sua vida para sempre frustrado! O fechamento do convento de São Beno significava não só a perda de uma residência como Triberg, Babenhausen etc., mas a dissolução da Congregação além dos Alpes. Quando, na fortaleza, ele abraçou os seus súditos por despedida, fê-lo pela última vez, porque a muitos dentre eles não veria mais em sua vida. Só restava ainda salvar as propriedades da Congregação em Varsóvia: as novas construções, os terrenos adquiridos etc. O Pe. Jestersheim, saxônio de nascimento, foi incumbido desse negócio, ainda mais que fora ele o Reitor da casa desde a morte do Pe. Thadeu Hübl. São Clemente esperou em Viena a solução final de tudo, para de lá tomar a decisão sobre sua futura residência. Consigo levou o clérigo Martinho Stark e o irmão Mathias Wildhalm, os únicos austríacos da comunidade dissolvida. A viagem a Viena não se deu sem dificuldades e dissabores para o Servo de Deus. No passe recebido do governo estava, com toda a exatidão, determinada a marcha de Küstrin até Viena. Como porém S. Clemente desejava celebrar todos os dias o santo Sacrifício da missa tinha de fazer, às vezes, algum pequeno desvio para chegar a uma igreja católica, o que não era fácil naquelas regiões onde dominava o protestantismo. Na Silésia Superior saiu-se mal uma vez, porque encontrando tropas francesas, teve de lhes apresentar o passe, que o clérigo Martinho Stark, na grande pressa, perdera com os outros papéis. Levaram-no ao Comandante que o tomou por espião e já estava para ordenar o seu fuzilamento, quando apareceu um oficial polaco, conhecido do Santo, o qual deu informações favoráveis; devido a isso o Santo foi detido em um convento até chegar de Küstrin a notícia de que Clemente e Martinho Stark haviam recebido o passe. Assim, debaixo de agruras e dissabores, chegou o nosso Santo às últimas fronteiras do país, ao qual tantos benefícios prestara, em os dias do seu ativo apostolado. O novo país, que haveria de receber dele as mais insignes bênçãos do céu, recebeu-o mal até com injuriosa suspeita. Atravessadas as fronteiras da Áustria foram logo aprisionados por faltarem, mais uma vez, os necessários passaportes, e tiveram de esperar até que uma nobre senhora polaca, que se interessara por S. Clemente, lhes procurou novos docu43

mentos em Viena. Conseguidos os papéis reencetaram a viagem por Olmütz e Brünn até Tasswitz, onde S. Clemente esteve com sua irmã Bárbara. Depois de uma breve demora na pátria, apressou-se o Santo a partir para a nova residência ao encontro de novos esforços e trabalhos. Quem poderia imaginar que aquele sacerdote pobre, perseguido e desconhecido seria por Deus escolhido como instrumento para a restauração do espírito cristão, da verdadeira piedade e da salvação de inúmeras almas na grande cidade, em que acabara de entrar, e em toda a Áustria, para não dizer no mundo inteiro! Quem acreditaria que aquele homem sem nome, avançado já em anos, seria o médico enviado por Deus para inocular nova vida e nova força à Igreja na Áustria que definhava sob o jugo do josefismo nas garras da maçonaria! Deus assim apraz-se em brincar com os homens; fá-los passar por dificuldades e parece querer aniquilá-los, quando os escolhe para instrumentos da execução dos seus grandiosos planos. Deus escolhe o fraco para confundir o forte, e destruir aquilo que o mundo preza, com aquilo que o mundo despreza. Vinte anos passaram desde a ordenação sacerdotal de São Clemente até a expulsão de Varsóvia, período bastante longo, repleto de trabalhos, de grandes planos, de belas esperanças, de grandiosos sucessos, mas também de amargas desilusões, de cruéis perseguições, de nefanda ingratidão; foi uma via crucis de vinte anos e de outras tantas estações, cada qual mais doída e torturante. Quem tudo olha só com os olhos da carne, terá compaixão de Clemente, a quem olhará como a um infeliz sem sorte, que trabalhou em vão. Os desígnios de Deus são imperscrutáveis; todas essas peripécias só serviram para mostrar ao mundo a grandeza da alma de S. Clemente, que qual rochedo inabalável sustentado pelas mãos do Eterno, resistia a tudo depositando inteira confiança em Aquele que não desampara seus filhos. Nessas desilusões é que admiramos a santidade do herói, que não abre sua boca para proferir uma palavra sequer contra as disposições admiráveis da Providência.

PARTE TERCEIRA O apóstolo de Viena (1808-1820) CAPÍTULO I

Chegada à Viena e primeiros trabalhos Chega à Viena — Dificuldades com a polícia — O racionalismo na Áustria — Napoleão e Francisco da Áustria — Bombardeio de Viena — Batalha de Aspern — Na igreja dos Italianos — Os Mechitaristas — Trabalhos prediletos — Intimação do governo — Notícias de Valais — Fundação em Friburgo. Viena não recebeu com as devidas honras o seu grande Apóstolo, que a visitou no intenso inverno de 1808. Apenas chegado à Capital da Áustria, teve de avir-se coma polícia, que lendo no passaporte o nome de Clemente Hofbauer, vindo da fortaleza de Küstrin, se deixou levar pelas mais graves suspeitas; sem mais preâmbulos conduziu o pobre padre com seu companheiro ao posto policial, onde ambos ficaram detidos os três dias inteiros, que foram necessários para o exame dos papéis e as informações a respeito dos prisioneiros. Terminado e protocolado esse exame, originou-se na polícia nova suspeita, ao verificar que ricos paramentos de igreja acondicionados em dois enxergões e um grande caixão, se achava em poder daquele sacerdote. A modéstia excessiva da batina do padre contrastava por demais com a riqueza dos paramentos; daí a conclusão, de que muito provavelmente deveriam ter sido roubados a alguma igreja das imediações; e essa suspeita atingiu a seu auge quando o agente policial encontrou em poder de S. Clemente uma boa quantia de dinheiro. Não foi difícil ao Santo provar à polícia que aqueles paramentos preciosos, ele os comprara legitimamente quando Superior em Varsóvia, e que aquele dinheiro ele o recebera da família Bourbon na Polônia como intenções de missa. Depois de três dias presos foram postos em liberdade, mas as investigações prolongaram-se durante meses tantos em Dresden como em Varsóvia e Viena. Foi necessária a intervenção do Núncio Apostólico, que pediu informações oficiais das autoridades civis e eclesiásticas de Varsóvia a respeito dos objetos levados por S. Clemente; somente depois dessas declarações oficiais é que a polícia restituiu os paramentos. Foi nessa ocasião que Severoli escreveu ao bispo de Varsóvia: “Deus tem permitido que esse seu Servo fiel seja provado por muitas contrariedades, para fazê-lo ainda mais digno da sua divina complacência; amo e venero imensamente esse homem de Deus tanto por simpatia pessoal como principalmente por ele trabalhar tanto pelo rebanho de Jesus Cristo”. Chegados em Viena necessitavam de algum albergue, ao menos para as primeiras semanas. S. Clemente lembrou-se do seu velho mestre Weyrig, e para lá foi com o Fr. Stark num dos arrabaldes de Viena; o Irmão Widhalm hos44

pedou-se com os Servitas enquanto que o Irmão Manoel Kunzmann, que entretanto chegara a Viena, encontrou um lugar no convento dos Cistercienses. Quatro Redentoristas achavam-se em a Capital austríaca, porém separados sem formarem comunidade. Na casa de Weyrig S. Clemente era o cozinheiro e as refeições obedeciam sempre ao mesmo cardápio a saber: pão negro e bolo de farinha. Não lhe faltaram contudo convites feitos pelos bons amigos que possuía em Viena; às sextas-feiras e aos sábados ia sempre à casa do padeiro “A pera de ferro” para suas modestas refeições. A pequena Pepi, filhinha do padeiro, a qual não era pouco curiosa, observava atentamente, nessas ocasiões, quanto cada um comia; muitos anos mais tarde ela contou: “Quanto mais insípida a comida, mais parecia ser do gosto de Clemente, que deixava de lado todo o manjar agradável e apetitoso; creio que ele nunca matou a fome lá em casa”. Clemente porém não se demorou muito na casa do seu antigo mestre nos arrabaldes da cidade; os católicos de Viena, edificando-se desde logo com o procedimento santo de Clemente, fizeram questão que esse homem de tantas virtudes se hospedasse no centro da Capital. Clemente, homem de ação, habituado às lutas, afeito aos grandes empreendimentos, não podia acostumar-se à vida de completa inação a que se via condenado sem nenhuma atividade apostólica. Sem esperança de breve alteração em seu modo de viver, Clemente pensava em abandonar Viena. Nas horas em que a aflição oprimia sua alma pela solidão em que se via imerso, ia visitar o Santuário da Virgem do Socorro, não distante de Viena; lá desabafava seu coração apostólico, que clamava constantemente com S. Francisco Xavier. “Da mihi animas” dai-me almas, Senhor, dai-me a possibilidade de sacrificarme, de imolar-me inteiramente em prol das almas abandonadas, para reconduzilas ao aprisco e levá-las ao céu. “Prostrava-se em seguida ante o altar do Santíssimo, onde passava, por vezes, horas e horas a fio em procura de conforto, de animação e de conformidade. O povo de Viena, pouco habituado a semelhantes transportes de devoção e fervor, admirava e, em magníficos comentários, enaltecia aquele sacerdote que em todo o seu porte, mormente nos momentos da prece, fazia resplandecer um que de extraordinário e divino. Essa admiração, originada da santidade não comum daquele sacerdote recém-chegado em Viena, não se apoderara só do povo simples, mas sobretudo de pessoas altamente colocadas como: o arcebispo de Viena Mons. Hohenwart, o Núncio apostólico Mons. Severoli, Mons. Muzzi, auditor da Nunciatura, o Provincial dos Carmelitas e o dos Servitas, os quais se tornaram todos amigos íntimos do nosso Santo. Nesses primeiros anos de solidão dedicou-se o Servo de Deus, de um modo todo especial, à oração, que sabia ser a arma poderosa que conquista o coração do próprio Deus. Orava por seus caros confrades expulsos da Polônia e dispersos pelo mundo para que Deus lhes concedesse a perseverança; orava por aqueles confrades que sob a direção do grande Pe. Passerat erravam de um lugar para o outro em busca de um seguro abrigo para a Congregação; orava porém com especial ardor por sua pobre Pátria, presa do racionalismo implantado da França, o qual na Áustria levava o nome de josefismo. Como o intuito do racionalismo é extinguir a fé no coração do povo, projetando sobre todas as verdades, mesmo de ordem sobrenatural, apenas os fracos lampejos

da limitada razão humana, compreende-se que os seus defensores se empenhavam em estancar, o mais possível, todas as fontes que pudessem alimentar ou fomentar o sentimento religioso; eis porque na Áustria as leis do josefismo4 proibiam as pregações substanciosas da palavra divina, a impressão e difusão de livros piedosos, o adorno dos templos, as rezas e devoções públicas, as missas solenes, a freqüência dos sacramentos etc.; as irmandades foram quase todas abolidas, as procissões restringidas, as romarias formalmente interditas. O josefismo chegou até a determinar o número de velas e acender-se nos altares durante as cerimônias religiosas; não se podia introduzir nenhuma reza nem cantar hino algum a não ser com a alta aprovação e licença do governo. Essas leis causaram no princípio a indignação geral; mas, aos poucos, foi-se o povo habituando a elas na medida que desaparecia a fé e o sentimento religioso. Era desolador o estado da religião na Áustria pelos anos de 1808; a vida cristã com seus encantos espirituais era desconhecida entre o povo; os que freqüentavam a igreja, aos domingos, faziam-no quase só por costume e tradição; os homens envergonhavam-se da prática das devoções católicas, que denominavam crendices e superstição e temiam ser conhecidos na sociedade como católicos da têmpera dos antigos, que não baseavam sua crença na palavra do homem nem nos ditames da falível e fraca razão humana, mas sim na autoridade de Deus que tem poder e direito de manifestar sua vontade ao homem e de lhe revelar seus mistérios e suas verdades. Nos templos as pregações não eram vazadas nos moldes da simplicidade e liberdade apostólicas, nem versavam sobre as verdades substanciosas do dogma ou da moral cristã e muito menos sobre as verdades eternas, mas limitavam-se a frases vazias de sentido, períodos altissonantes, floreados retóricos, terminologia insípida de humanidade e filantropia e quejandas expressões, inventadas para o engano da humanidade. Isso eram, aliás, muitíssimo natural, e nem se podia esperar outra coisa dos sacerdotes formados nos seminários gerais do governo, onde os jovens bebiam a largos tragos o espírito envenenado das leis e da doutrina do josefismo. No ano em que S. Clemente foi a Viena, i. é em 1808 já não existiam esses tais seminários, mas o seu espírito ainda perdurava. Nas escolas públicas ensinava-se às crianças o catecismo explicado segundo as normas do racionalismo5, de acordo com os princípios de Pestalozzi e de Rousseau. Nos ginásios confirmava-se o racionalismo, que atingia seu auge nas universidades, onde se ouvia a filosofia de Kant sem palavra alguma que pudesse abrir aos alunos os horizontes sublimes da verdade católica, que enleva o espírito e conforta os corações. A conseqüência natural de tudo isso era o ódio ou, pelo menos, o desprezo ao clero, a liberdade mal entendida de cada um poder formar a sua religião e forjar a sua crença de acordo com as suas comodidades, os seus interesses e os seus caprichos. São Clemente, ao chegar a Viena, viu logo o abismo em que se precipitava sua pátria, e a ruína de milhares e milhares de almas; quis logo levantar a voz, clamar, ensinar, persuadir, mover, converter, porém debalde; foi-lhe imposto o mais rigoroso silêncio tanto no púlpito como no confessionário. Só uma coisa podia ele fazer: rezar e rezar bastante — e Clemente orava, pedia a Deus se amerceasse do pobre povo e lhe mandasse homens de valor e de peso, capa45

zes de combater com vantagem o josefismo e de implantar na Europa a Santa religião que produz os heróis da virtude e da santidade. S. Clemente, em sua grande modéstia estava longe de suspeitar ser ele mesmo o homem escolhido pela Providência para debelar o racionalismo e converter a Áustria e a Europa com a sua palavra e o seu exemplo O próprio Deus se incumbiu de preparar o terreno para a admirável atividade apostólica que S. Clemente haveria de desenvolver em Viena. Em 1809 o imperador Francisco da Áustria, confiado no auxílio do céu e no patriotismo de seus súditos resolveu guerrear o imperador dos franceses e humilhar a arrogância de Napoleão; convocou seus soldados, dos quais 176.000 se postaram nas fronteiras da Polônia, enquanto que 80.000 defendiam a Áustria contra a Itália. Os príncipes alemães acharam mais prudente e seguro combater ao lado de Napoleão e abandonaram vergonhosamente o imperador Francisco da Áustria cobrindo-o de injúrias, taxando de loucura e megalomania o seu procedimento em conjunturas tão arriscadas. Napoleão indignado resolvera esmagar a Áustria e perder a família dos Habsburgos. A 20 de abril Napoleão, a frente de seu exército entra na Alemanha e desbarata os austríacos em Abensberg e em Eckmühl, avançando até Viena; a 10 de maio assedia a Capital, cujo imperador fugira para a Hungria com toda a família. Nenhuma potência ousou levantar-se para terçar armas em defesa da Áustria. A 12 de maio começou Napoleão a bombardear Viena — e de momento a momento crescia o furor do bombardeio; bombas sibilavam pelos ares, penetravam nas casas dos particulares produzindo o pânico em toda a cidade. Todos tremiam, só Clemente conservava a serenidade d’alma, depositando toda sua confiança em Deus, e qual outro Moisés dirigia ao céu as mais ardentes preces em favor de sua pátria enquanto fervia o combate; da oração levantava-se ele apenas para animar e consolar as famílias; não era fácil a sua tarefa porque as bombas caíam sobre a cidade como as gotas d’água numa chuva impertinente. A família Weyrig, onde se achava Clemente, parecia desesperar, quando Clemente a sorrir mandou que todos se ajoelhassem para implorar do céu a proteção; rezava a família quando uma bomba penetrando pela janela passou por cima das cabeças dos que oravam e, sem explodir, rolou tranqüila a um canto do quarto. O bombardeio não tardou a cessar porque Viena se entregou depois de algumas horas; a casa em que estivera o Servo de Deus não sofreu a menor arranhadura, não obstante acharse no ponto da cidade, onde o fogo era mais violento e terrível. Napoleão entrou na cidade, onde não se demorou muito; correu com seu exército contra o grão-duque Carlos, que se aproximava para à defesa de Viena. As primeiras bombas de combate de Aspern foram ouvidas na Capital da Áustria a 21 de maio. Clemente sabia que daquela batalha dependia a sorte da sua pátria, que ele queria salva e grande; corre pressuroso a Jesus no tabernáculo, ajoelha-se e de braços abertos pede a Deus a vitória, ou pelo menos, a salvação da sua pátria. Entretanto lá fora o combate tornava-se renhido e feroz; as bombas pareciam querer escurecer o sol e o combate perdurou até a noite sem resultado definitivo; ao romper da aurora Napoleão recomeçou o ataque saudando os austríacos com uma salva de bombas que fizeram estremecer as vidraças de Viena; foi para São Clemente o sinal de que era chegada a hora de ele se prostrar novamente aos pés de Jesus no tabernáculo. E a

oração de S. Clemente foi atendida pelo céu. No último ataque feito por Napoleão, tornou-se a luta encarniçada; o desespero apoderou-se dos franceses, o grãoduque Carlos saltou do cavalo e à frente dos seus soldados empunhou a bandeira animando com seus exemplos e com seu valor os soldados que o seguiram vibrando de entusiasmo; mais umas poucas horas e o campo de batalha achava-se em poder dos austríacos; era a primeira batalha aberta que Napoleão perdia. Quem reconhece que é Deus quem distribui as vitórias segundo os sapientíssimos desígnios da sua Providência, não hesitará em crer que a família Habsburgo foi salva mediante as súplicas do grande Apóstolo de Viena, pois que Deus não deixa de atender os pedidos dos seus Santos. Se a Áustria não venceu em Wagram, foi por disposição da Providência; pois que no caso de vitória o josefismo ter-se-ia consolidado na Áustria e produzido à pátria de S. Clemente maiores males do que poderia fazer a derrota dos austríacos por Napoleão. Porém não foi só com suas orações que o servo de Deus prestou à sua Pátria relevantes serviços nessa ocasião. Os soldados feridos nas grandes batalhas foram conduzidos em massas para a cidade e, como conseqüência natural, a febre tifóide começou a grassar desastradamente em Viena, cujos habitantes se alarmaram. O bispo convocou o clero, e ele, ancião de seus 79 anos, deu a todos o bom exemplo trabalhando incansável nos hospitais da cidade e dos arrabaldes. S. Clemente recebeu especial convite para os hospitais militares, onde dia e noite se cansava no cuidado espiritual e temporal dos pobres enfermos, esquecendo-se de si próprio, do sono e da fome para que aos doentes nada faltasse. Foi nessa ocasião que um soldado sem religião no auge do desespero clamou ao avistar S. Clemente: “Venha aqui, que lhe quero arrancar os olhos”. S. Clemente foi ter com o infeliz e com suas palavras repassadas de bondade e de fé converteu-o para Deus inoculando-se na alma sentimentos de arrependimento e de confiança em Deus. Muitos sacerdotes perderam sua vida nessa época de heroísmos. A S. Clemente Deus reservara para coisas maiores e mais importantes empreendimentos. As portas do apostolado em Viena estavam abertas dessa data em diante, ao nosso Santo. Como nos hospitais militares de Viena havia uma infinidade de soldados franceses e italianos, foram destacados para o serviço dos soldados enfermos todos os sacerdotes da Capital, que pudessem prestar serviços nessas duas línguas; entre esses distintos sacerdotes achava-se também o Pe. Luiz Virginio, Diretor da Igreja dos Italianos em Viena. Tendo Deus levado para melhor vida o Pe. Virginio, que faleceu vítima de seus trabalhos em prol dos soldados, cuja moléstia contraíra, passou a direção da Igreja dos Italianos ao venerando Pe. Caselli, que não podendo lá trabalhar em virtude de sua idade avançada, recebeu um coadjutor na pessoa de S. Clemente, a quem deu carta branca no serviço espiritual da igreja. Era pois S. Clemente quem desempenhava todas as funções religiosas na vasta e bela igreja; o trabalho porém era pouco, porque quase não havia pregações durante o ano, e porque na quaresma, o único tempo em que se podia anunciar a palavra de Deus, era costume chamar da Itália algum orador de celebridade mundial, para deliciar os ouvidos dos italianos de Viena. O serviço principal de Clemente era o confessionário, onde ele passava boa parte do dia, sendo procurado mormente pelos polacos que residi46

am em Viena; aos poucos tornou-se bem considerável o núcleo de vienenses que se agrupavam ao redor do confessionário do nosso Santo. Em 1809 os padres Mechitaristas6, acossados pelos franceses, de Trieste foram procuram um abrigo em Viena, onde o imperador lhes cedera o antigo convento dos Capuchinhos. No princípio o povo assustado por aquelas figuras barbadas e de rito tão diverso, não quis freqüentar a igreja dos recém-chegados. S. Clemente compreendendo o embaraço daqueles sacerdotes, foi ter com eles e lá permaneceu três semanas auxiliando-os no arranjo da casa, pregando e ouvido as confissões, numa palavra, envidando os maiores esforços para que os Michitaristas fossem conhecidos e estimados do povo. É por esse motivo que esses religiosos, reconhecidos e gratos para com S. Clemente, lhe dão o honroso nome de “Anjo da Guarda da Congregação”. Como uma das virtudes mais características do nosso Santo era a constância em todos os seus trabalhos, quando neles entrevia algum aumento da glória divina, ou algum proveito espiritual para as almas, permaneceu quatro anos quase inteiros na igreja dos Italianos a ouvir pacientemente as confissões das numerosas pessoas que o procuravam, e a apurar conversões estupendas que só Deus conhece. São Clemente pregava apenas uma ou outra vez nas igrejas dos arrabaldes de Viena, porém a sua pessoa não tardou a empolgar a população vienense. Crianças, jovens e adultos de todas as classes procuravam avizinhar-se dele, para de seus lábios ouvirem falar de Deus e da religião. Um senhor de Würzburg que gostava de freqüentar a igreja dos Italianos, já naquele tempo pôde escrever: “De 1811 a 1812 fui eu diversas vezes à igreja dos Italianos, que se achava sob a direção do Pe. Clemente Maria Hofbauer; sua humildade e devoção edificaram-me tanto, que me parecia ver um anjo do céu. Desejava muito falar com esse distinto sacerdote, mas um notável número de moços que o rodeavam, não me deixou chegar até ele; nunca em minha vida tinha eu visto um homem como o Pe. Clemente”. O nome de S. Clemente começava a ser pronunciado pelas altas rodas da cidade com admiração e amor; as pessoas mais distintas pelo nascimento ou pelas belas qualidades pessoais alistaram-se no rol dos penitentes do nosso Santo, a quem abriam seus corações. Uma das mais notáveis figuras femininas de Viena, Júlia Zichy, a mais nobre matrona da Capital, em a qual, como disse alguém, no mais puro ideal do feminismo resplandecia a maior beleza, a expressão da inocência e da virtude em toda a plenitude, depois de conhecer o Pe. Clemente, cuja vida santa e cuja ciência sobre-humana admirava, deixou-se vencer pela graça e tomou-o por diretor espiritual. O mesmo deu-se com a donzela distinta tanto por sua beleza e espírito como por sua ilustração e nobreza de sentimentos, Nina Hartl; deixou-se guiar em tudo pela mão firme e santa de Clemente, encontrando na vida austera a maior consolação para sua alma. Enquanto tudo parecia correr às mil maravilhas, preparava Deus amargos golpes para o coração de São Clemente. A polícia continuava a persegui-lo sem lhe permitir sossego. Ao perceber o governo que o arcebispo de Viena protegia a Clemente dando-lhe até uma colocação na igreja dos Italianos, indignou-se e protestou contra o Ordinário, que se defendeu com um tanto de azedume. O chanceler Ugarte que em nome do governo, desejava ver o nosso Santo pelas costas, propôs a S. Clemente a alternativa: “Ou emigrar ou abandonar a Con-

gregação que não era reconhecida na Áustria”. Clemente, torcendo da alternativa, declarou querer terminar a vida em sua pátria. O nosso Santo assim respondeu ao chanceler porque nutria a convicção íntima de trabalhar pela Congregação e conseguir para ela a confirmação e a consolidação na Áustria. Em Valais ia tudo bem como diziam cartas do Pe. Passerat. Os padres Redentoristas trabalhavam lá assiduamente na vinha do Senhor, e esperançosos olhavam para o futuro, pois que tinham vinte jovens a completar o estudo da filosofia e teologia. Foi nessa ocasião que o Pe. Passerat, fatigado de tantos esforços, rogou a S. Clemente, se dignasse nomear o Pe. José Hofbauer Reitor da Suíça, pois que tudo estava em ordem e o futuro da Congregação parecia já garantido. S. Clemente porém que pensava de outra forma escreveu ao Superior Geral; “Pe. Passerat é um homem extraordinário em prudência e piedade, exige de todos a observância exata das Regras e Constituições sendo em tudo a paciência personificada; possui extraordinário zelo e não foge dos trabalhos nem teme os perigos...; nele tem a Congregação o modelo de todas as virtudes; se aprouver a Deus chamar-me deste mundo, desejo e peço que ele seja meu sucessor no cargo que ocupo”. Não obstante toda a tranqüilidade do momento, Passerat procurava um lugar seguro de refúgio e suas vistas dirigiam-se para Würzburgo, e com razão, porque, como pressentira, ainda nesse mesmo ano Valais tornou-se um departamento francês, passando os Redentoristas com essa mudança de governo a súditos de Napoleão, que os não podia tragar; era pois necessário fugir. Mas para onde? Na incerteza em ponto de tanta relevância foi a Viena consultar S. Clemente e o Núncio apostólico. Este opinou que em vista das circunstâncias alarmantes e excepcionais os padres deveriam continuar na Suíça trabalhando e vivendo cada um em seu canto. Estava pois novamente dissolvida a Congregação além dos Alpes. Na Polônia e na Suíça viviam os padres, em grupos de dois, nas paróquias ou no seio das famílias. A única coisa que Clemente podia fazer era esperar e confiar em Deus, e para isto não havia lugar melhor do que Viena, ainda mais que de lá lhe era mais fácil do que de qualquer outro lugar, entender-se e cartear-se com os confrades dispersos na Polônia e na Suíça. Sendo Viena a cidade mais central de toda a Europa, de la acompanharia com mais facilidade os acontecimentos e com mais vantagem trabalharia na execução dos seus gigantescos planos. Entretanto o Pe. Passerat corria todos os países e cidades da Europa em procura de um abrigo para os seus estudantes; rechaçado de todos os lados nunca perdeu a coragem nem a confiança em Deus. Em Friburgo encontrou enfim uma casa, para onde transferiu os seus estudantes, que deveriam freqüentar a universidade lá existente, os outros padres permaneceram nos lugares onde se achavam na Suíça e na Alsacia. Desejoso de conservar nos seus padres o espírito religioso, não obstante as dificuldades dos tempos, Passerat visitara ora um ora outro nas paróquias. Os que estavam mais perto iam procurálo em Friburgo. O quanto rezava Passerat por seus súditos testemunham seus dedos calejados de passar as contas do rosário. S. Clemente entregou por escrito todas as suas faculdades de Vigário Geral ao Pe. Passerat, porque vigiado e espionado sempre pela polícia não lhe era possível manter com a Suíça a correspondência epistolar regular. 47

Na Polônia ia tudo de mal a pior. O governo do arquiducado de Varsóvia caíra em poder da loja, muitas igrejas foram profanadas e entregues a fins menos dignos. São Beno não conseguiu escapar à sorte infeliz: tornou-se primeiro arquivo nacional e depois cutelaria. Pobre Polônia! S. Clemente nunca mais pôde olvidar a bela Polônia que ele amava sinceramente e onde derramara os primeiros suores do seu intenso apostolado. As saudades torturavam-lhe o coração. Parecem não ser mais do que um eco das conversas prolongadas com o Núncio apostólico as palavras, que este escreveu ao bispo de Varsóvia: “Poderemos ainda esperar a volta desse homem extraordinário e de seu Instituto a essa cidade? oh! quem dera, quem dera!”

CAPÍTULO II

O primeiro ano em Santa Úrsula Obrigações do Reitor da igreja — Reformas — Santa Úrsula adquire grande nome — Os primeiros trabalhos na cura d’almas. Em 1813 houve uma pequena mudança na vida externa de S. Clemente. Falecendo nessa data o diretor espiritual das Irmãs Ursulinas de Viena, S. Clemente foi investido desse cargo pelo bispo Hohenwart, e nomeado Reitor da Igreja de Santa Úrsula. Com esse ato do Arcebispo de Viena S. Clemente dava mais um passo para a realização dos seus grandes desejos: possuía enfim uma igreja da qual podia dispor e onde podia pregar a palavra de Deus livremente. Como continuasse ainda no posto que tinha na igreja dos Italianos, deixou lá o Pe. Martinho Stark fazendo as suas vezes, enquanto ele com o Pe. Sabelli, que viera da Suíça, passou a residir na nova casa contínua à padaria “A pera de ferro”. Dois quartos no andar superior e uma pequena sala de expediente formavam então a sua nova morada; mais tarde ele ocupou os outros dois aposentos do terceiro andar. As refeições vinham da cozinha do convento em uma espécie de marmita. A única obrigação a que se sujeitava aceitando o novo cargo, consistia em ouvir semanalmente as confissões das religiosas. As conferências não estavam então em uso. Menos trabalho tinha ainda ele na igreja do convento, porque lá não era costume fazer pregação, e além disso o Reitor da igreja era coadjuvado por um capelão. Não obstante, esse novo posto marcava um dos pontos mais importantes para a vida de S. Clemente em Viena: pois que Sta. Úrsula se tornou propriamente o lugar do seu apostolado na Capital da Áustria, como veremos adiante. Empossado no seu cargo começou S. Clemente por reformar a igreja que lhe acabava de ser confiada: refez o assoalho, caiou as paredes, providenciou os bancos, encomendou novas estátuas, levantou novos altares, conseguiu novos paramentos para o Santo Sacrifício e para as demais funções do culto, introduziu o cântico piedoso, celebrou com pompa as festas religiosas, numa palavra, reformou de tal modo a igreja, que nas imediações não se encontrava uma outra que se lhe pudesse comparar. Vendo a boa vontade do Reitor, o povo não se negou aos pedidos de S. Clemente: nunca lhe faltaram flores, velas, adornos nem dinheiro para a casa de Deus; São Clemente não conhecia economias. A semana Santa, a festa de Corpus Christi e a adoração das quarenta horas eram celebradas com toda a pompa na Igreja de Santa Úrsula. Para esse fim S. Clemente convidava sacerdotes e clérigos que abrilhantassem as cerimônias religiosas; não poucas vezes ia o próprio Núncio apostólico pontificar na Igreja de Santa Úrsula. O povo que já não estava habituado a essas solenidades afluía 48

de todos os pontos da cidade, de sorte que a igreja se tornava demasiado pequena para conter a multidão, que desejava assistir as santas cerimônias do culto que em sua beleza e majestade empolga os corações. Os sacerdotes da cidade percebendo o movimento religioso que se desenvolvia em a Igreja de Sta. Úrsula, edificados com a devoção da multidão e com os cânticos devotos que ecoavam pelas abóbadas do templo, faziam questão de participar daquele ambiente de santidade e iam celebrar diariamente em Sta. Úrsula, de sorte que lá havia ininterruptamente missas desde manhã até o meio-dia. A polícia pouco se incomodou com essas cerimônias proibidas pelo josefismo, porque os grandes do império, entre eles o próprio irmão do imperador, freqüentavam a igreja e se edificavam com a piedade e devoção do povo. Aos poucos também outras igrejas de Viena começaram a imitar o Reitor de Sta. Úrsula. Esse movimento todo porém não se realizou da noite para o dia. Só com o tempo, com paciência e com um trabalho aturado é que se pôde desfazer a prevenção de um povo. Já no primeiro domingo depois de empossado no cargo, perguntou Clemente a que hora costumava ser a pregação naquela igreja. Ouvindo não ser costume pregar em Viena senão nas maiores festividades do ano, o novo Reitor admirou-se e mandou ao sacristão tocar festivamente para que o povo soubesse que lá haveria pregação naquele dia; embora no princípio, só poucas pessoas fossem à igreja nem por isso deixava ele de anunciar a palavra divina; pregou sempre todos os domingos e dias santificados. A pregação era para ele uma necessidade, queria converter o mundo inteiro e naqueles tempos calamitosos, a pregação era quase que o único meio de restabelecer a fé em tantas inteligências extraviadas e de afervorar a piedade nos corações bem intencionados. E, coisa admirável, o povo começou a interessar-se pelas pregações substanciosas de S. Clemente, de sorte que a igreja se enchia já muito antes de começarem as cerimônias, devendo o resto ouvir as pregações das ruas e dos largos; e entre os ouvintes de Clemente não se encontravam apenas velhas e crianças, empregadas ou cozinheiras, mas também pessoas da mais fina sociedade, homens de peso e de talento, doutores e professores e até pregadores de fama, que iam a Santa Úrsula aprender o segredo de empolgar o povo. Os primeiros anos do esconderijo do Santo tinham pois desaparecido; seu nome de pregador era pronunciado com admiração e amor em quase toda a cidade de Viena, e seu confessionário permanecia assediado desde a manhã até ao meio-dia. Com o aumento diário do trabalho em sua igreja viu-se ele obrigado a levantar-se diariamente as quatro horas da manhã, às vezes até um pouco antes; para não perder a hora, na falta de um despertador, combinou com o guarda noturno da cidade que o despertasse. Depois da meditação ia ao confessionário, donde não se levantava antes das 10 horas em que subia ao altar para o santo Sacrifício. Duas vezes por semana levantava-se ainda mais cedo porque costumava levar à igreja dos Mechitaristas, distante meia hora, pão e outros objetos para os pobres que lá se reuniam. À tarde fazia suas excursões pela cidade e pelos arrabaldes em visita aos pobres, doentes e moribundos. Quantas vezes não se levantou ele, alta hora da noite, o solidéu na cabeça e uma lanternazinha na mão para sacramentar moribundos nos arrabaldes da cidade! CAPÍTULO III

O Congresso de Viena Clemente na lista dos bispos — Igreja nacional — O desinteresse pela religião no Congresso — Desunião de vistas — Os três defensores — Atrás dos bastidores — Trabalho depois do Congresso. As guerras contínuas daqueles anos arruinaram política e economicamente a Europa inteira, que se sentiu aliviada com a derrota final do imperador dos franceses, que terminou sua vida no exílio de Sta. Helena. A Igreja ressentiu-se imensamente de todas essas devastações. Wessenberg descreve o estado tristíssimo em que se achava a religião na Alemanha e Áustria do modo seguinte: “Há doze anos que a Igreja na Alemanha, a qual antes gozava do maior esplendor, se acha em um estado de abandono sem igual na história. Roubaram-lhe os bens que possuía, subtraíram-lhe o apoio legal às suas mais antigas Constituições; negaram a subvenção a seus estabelecimentos e institutos mais essenciais; os bispados acham-se devastados, o cabido catedrático está a expirar, sua atividade reprimida, a execução de suas leis impedida”. A todos esses abusos deveria o Congresso de Viena trazer um remédio eficaz. Segundo o disposto no tratado de Paris de 10 de maio de 1814, reuniram-se as potências européias em Viena para tratar da reorganização da Europa, cujo equilibro perecera de todo. Nesse grande senado europeu estiveram pessoalmente presentes os monarcas da Prússia, da Rússia e da Áustria com a maior parte dos soberanos secundários da Alemanha. O Papa foi representado pelo cardeal Gonsalvi. Nesse congresso reunido em fins de setembro de 1814 tratou-se, entre outras coisas, da abolição do decreto sobre as nomeações dos bispos, pois que, por causa dele, das trinta e quatro dioceses só cinco estavam providas. Para o provimento desses bispados foram apresentadas duas listas, numa das quais se achava o nome de Clemente; corria o boato de que S. Clemente seria nomeado bispo dos Balcãs; isso causou protesto entre os numerosos amigos do Santo, que o reclamavam para qualquer diocese na Áustria ou na Alemanha. Severoli escreveu ao cardeal Litta: “A estima que esse homem goza na Alemanha é muito grande, porque ele conhece as necessidades do povo em todos os sentidos... V. Excia. o ficou conhecendo qual Jeremias por seus lamentos... mas esteja certo que ele é também um Daniel por sua prudência e um grande Santo em sua vida”. E Litta respondeu: “... aprovo o plano de dar ao Pe. Clemente um bispado na Alemanha; fique certo de que terei imenso prazer se isso se der”. Isso tudo porém ficou sem efeito devido ao mau êxito da concordata entre a Alemanha e a Santa Sé. 49

O maior perigo para a Igreja na Alemanha e na Áustria não era tanto a sua desorganização externa mas sim a desorientação dos seus governantes. A parte mais influente do clero, inspirada por Wessenberg que governava a diocese de Constança na qualidade de vigário geral de Dalberg, primaz da Germânia, pretendia a emancipação completa e absoluta do episcopado alemão em relação à Cúria Romana; com outras palavras, trabalhava para a formação de uma Igreja nacional e independente. O Núncio Severoli que esperava tudo do Congresso, já meses antes começara os preparativos, aprontara os papéis, tomara as informações necessárias, aconselhara-se com todos os católicos de nome na Áustria, e de um modo todo especial, com S. Clemente, cuja prudência e zelo apostólico faziam jus à admiração universal. Em princípios de setembro escrevera ao cardeal Litta: “O nosso Pe. Clemente tem idéias grandiosas; desejara que ele estivesse em Roma para expor tudo a V. Eminência”. Uma dessas idéias grandiosas, de que fala o Núncio, era estreitar e tornar mais íntimas as relações entre Roma e a Germânia, o que se poderia facilmente conseguir, pelo interesse que Roma deveria tomar pelas coisas e pelo povo do Norte e pela abertura de um grande Colégio em Roma para os alemães, que assim entrariam em contato com a Igreja, amando-a com mais calor, trabalhando por ela com melhor vontade. O nosso Santo lamentava amargamente o pouco interesse manifestado em Roma e a pouca vontade de ela se amoldar ao gênio e ao modo de pensar dos germanos, cujos corações com facilidade se poderiam entusiasmar pelas belezas e grandeza da Igreja de Roma. Não obstante tudo isso era grande a esperança no resultado do Congresso, do qual dependeria a prosperidade da religião de Nosso Senhor na Europa. Foi providencial a estada de S. Clemente em Viena nessa época, como veremos em breve. Os príncipes congressistas pouco ou nada se interessavam pela religião, tendo em vista apenas o bem material e financeiro dos seus Estados e reinos. O único que de coração se batia pela causa de Deus era o príncipe da Baviera. Entre os que deviam defender a Igreja, havia grande deficiência e desunião de vistas; o cardeal Gonsalvi, representante da Santa Sé, estava pouco enfronhado nos negócios e intenções da Alemanha. Severoli carecia de toda influência; o trunfo do Congresso era Wessenberg que representava o arcebispo Dalberg. Diplomata consumado sabia torcer-se para todos os lados, distribuindo sorrisos a gregos e troianos; por suas maneiras gentis, suas palavras amáveis e sua pouca consciência soube conquistar a simpatia dos príncipes e dos adeptos do josefismo, e como maçom que era, envidou todos os esforços, abusando da sua influência, para conseguir a formação da igreja nacional. A seu lado eram incansáveis os representantes da Prússia, Hannover, Nassau e Münster. O próprio cardeal Gonsalvi, que nada suspeitava de Wessenberg, em cuja probidade confiava cegamente, não poucas vezes a ele se dirigiu pedindo conselhos e consultando-o em questões da maior relevância. A defesa dos interesses da Igreja estava toda nas mãos de três homens, que agiam independentes e em nome próprio, a saber o barão Francisco de Wambold, José Helfferich, deão de Spira, e José Spies, sacerdote de Worms; junto com eles agia incansavelmente José Schlegel, adido ao ministério do Exterior na Áustria. Só por um verdadeiro milagre explica-se o fato de poderem

esses três homens, aliás sem influência extraordinária, resistir a todos os diplomatas do Congresso, que não eram poucos, e impedir a realização dos planos de Wessenberg e de todos os seus grandes amigos e admiradores. Atrás dos bastidores trabalhava um outro, que por sua prudência e santidade valia mais que todos eles: era S. Clemente. O Reitor da Igreja de Santa Úrsula, embora não tivesse assento no Congresso, nada deixou por fazer a fim de evitar a catástrofe tão sinistra, que parecia inevitável. Não passava um dia, sem que Helfferich fosse ter com S. Clemente a examinar com ele os papéis e as propostas que iria fazer no Congresso, a provar os argumentos e os arrazoados que pretendia desenvolver com energia na presença dos nobres Congressistas. Os outros amigos e discípulos de São Clemente preparavam a opinião pública por meio de artigos calorosos nos principais diários de Viena, expondo com clareza e entusiasmo o que ouviam do seu Mestre; até o príncipe da Baviera ia pedir as instruções e os conselhos de Clemente, que tomara por confessor nos dias da sua estada em Viena; é notório que ele uma vez ficou conferenciando com o Reitor de Santa Úrsula das 8 horas da noite até à 2 da madrugada ventilando as mais intrincadas questões e dilucidando os pontos mais importantes a tratarse na seguinte sessão do Congresso. Zacharias Werner, o discípulo e amigo de S. Clemente, recebeu de seu Diretor ordem expressa de pregar em todas as igrejas de Viena, durante o tempo do Congresso, sobre os pontos religiosos em discussão orientando o povo e preparando os ânimos. A forma literária de seus sermões, sua conversão sensacional, seu modo original de expor as teses, sua bela linguagem, suas descrições poéticas e franqueza rude atraíam as multidões para a igreja onde pregava; a afluência, por vezes, era tamanha, que alguns por falta de espaço no templo, subiam em cima dos altares e dos confessionários para não perderem a ocasião de ouvi-lo. O inspirador de Zacharias Werner era o nosso Santo que, em tudo isto, visava o triunfo da Igreja e a glória de Deus. Se Clemente não conseguiu quanto desejava do Congresso, teve a glória de salvar a Áustria do cisma que a ameaçava, e de destruir por completo os planos da separação excogitados e defendidos pelo poderoso Wessenberg. Essa vitória foi uma das mais gloriosas, que S. Clemente alcançou em sua vida. Terminado o Congresso, o nosso Santo não quis descansar à sombra dos louros colhidos; colocou-se de atalaia para que não perigasse o que com tanto esforço conseguira. Em qualquer perigo mobilizava os seus, e com exatidão punha Roma ao par de tudo quanto se passava na Áustria. Em 2 de julho de 1818 escreveu entre lágrimas a Pio VII, expondo-lhe as dificuldades da Igreja em sua Pátria e os perigos que lá ameaçavam a cristandade. “Não tememos pela Igreja, cuja pedra fundamental foi lançada por Jesus Cristo, mas receamos uma lamentável separação, cujos inícios parece-nos já perceber, e essa separação começa a efetuar-se com tanta petulância e progride tão espantosamente, que quase já não podemos esperar consolação nem auxílio senão do céu, da intercessão dos Santos”. Clemente entretanto rezava com insistência pela conversão dos que perseguiam a Santa religião. Dalberg, logo depois do Congresso converteu-se sinceramente, separou-se de Wessenberg, detestou sua ação separatista e muitas vezes repetia a seus alunos em Ratisbona: Meus senhores, não andeis com 50

o mundo; eu confiei nele, e o mundo me enganou vergonhosamente; não confieis nele mas permanecei fiéis à Igreja”. Dalberg teve uma morte edificante em 1817. Vagando com sua morte a diocese de Constança S. Clemente apressou-se a escrever a Roma, em nome do Núncio Severoli, apresentando para sucessor de Dalberg o seu amigo Wambold, o grande batalhador pela causa da Igreja. Com esse último ato S. Clemente terminou a obra grandiosa que começara no Congresso de Viena: destruiu os planos dos inimigos da Igreja e consolidou a obra de Cristo assegurando-lhe brilhante futuro.

CAPÍTULO IV

O sábio pregador Exposição original e simples — O médico subjugado — Um velho funcionário josefino — Rir-se por último — Sua mímica no púlpito — temas prediletos — Apreciações populares — Proibição de pregar... São Clemente era um sacerdote e um apóstolo segundo o coração de Deus; exercia o munus sacerdotal com santo entusiasmo e escrupulosa exatidão; nessa esfera de pregador e diretor de almas é que ele se mostrou, à evidência, o verdadeiro apóstolo de Viena. O modo original com que se havia no exercício desse cargo, tornou-o popular na grande Capital e rompeu com todo o pedantismo introduzido pelo josefismo na Áustria. Um professor de teologia pastoral em uma preleção científica sobre as medidas de prudência a tomar-se na administração dos sacramentos aos enfermos, notou que conhecia em Viena um sacerdote muito distinto que não observava nenhuma das regras expostas e que, não obstante, conseguia os mais estupendos resultados: era São Clemente. Essas palavras referiam-se a todo o seu apostolado que se distinguia e sobressaia pela sua originalidade; por isso nem todas as particularidades da sua atividade apostólica são para todos indistintamente a serem imitadas literalmente. O jovem sacerdote Dom Pajalich edificado e encantado com o resultado obtido por S. Clemente, quis em tudo imitar seu mestre, mas saiu-se mal: assim começou a andar pelas ruas da cidade de cabeça descoberta, como o fazia sempre S. Clemente, mas as vaias estrondosas da criançada fizeram-lhe cobrila novamente; entrou uma vez sem cerimônias na casa de um luterano para convertê-lo, mas foi tão infeliz que quase não teve tempo de abrir a boca, porque o despediram logo pela porta fora etc. São Clemente, nesse particular do apostolado, era simplesmente inimitável. Zacharias Werner dizia acertadamente referindo-se a ele: “Não há outro como ele; da boca desse homem fala o Espírito Santo”. Para termos uma idéia mais ou menos nítida e certa da atividade apostólica de S. Clemente basta-nos contemplá-lo no púlpito, no confessionário, ao altar, à cabeceira dos doentes, no seio das famílias, e até nas ruas da cidade, nas suas relações com as diversas classes da sociedade, no seu modo de agir como diretor das religiosas e como superior do convento. Como temos visto em diversos lugares desta biografia, Clemente celebrizarase em toda a parte na qualidade de pregador fluente e arrebatador. Não possuímos na íntegra nenhum sermão de São Clemente, porque ele não costumava escrever os sermões nem mesmo os esboços; os seus contemporâneos dão-nos porém informações exatas do seu modo de pregar. Seus 51

sermões não eram pregações temáticas nem homilias propriamente ditas, mas qualquer coisa intermediária entre essas duas espécies de manifestação oratória. Do púlpito ou do altar lia o Evangelho ao povo, e durante a leitura intercalava observações oportunas; continuava em seguida, sentença por sentença, demorando-se em uma menos e em outra mais, explicando em cada uma delas um dogma da fé ou um mandamento qualquer; com os princípios do Evangelho confrontava os costumes em voga e as idéias do tempo, exortando sempre com palavras quentes e insinuantes a que todos se convertessem e praticassem a virtude e a piedade. Por vezes acontecia que em um só sermão tratava de assuntos diversos; assim, p. ex., na festa do nome de Maria a 10 de setembro falou ele sobre a santificação do domingo, a infalibilidade da Igreja, a devoção a Nossa Senhora e a vida religiosa. S. Clemente não era orador; a sua estada no estrangeiro durante muitos anos pode ter sido causa de a sua linguagem vernácula não ser castiça nem escorreita. Ele pouco se preocupava com a elegância da forma; vestia seus possantes pensamentos em roupagem simples, repetindo e repisando muitas expressões que se tornaram estereotípicas. E não obstante, S. Clemente empolgava e eletrizava como nenhum outro pregador em Viena; sabia o segredo de arrebatar enchendo as almas de uma unção sobrenatural, de sorte que até os mais eruditos profundamente consternados diziam: “Uma só palavra da sua boca basta-nos para a semana inteira”. Em parte explica-se isso por ser seu modo de pregar um contraste com o adotado em Viena e pelo tom de convicção e de fé com que São Clemente discorria sobre as verdades da religião; mas o segredo dessa força mágica está na santidade de Clemente e no seu zelo apostólico. A simplicidade da sua pregação não prejudicava em nada a profundeza e perfeição de suas explicações e argumentações, e não o impedia de expender seus vastos conhecimentos da Escritura e dos Santos Padres. Com facilidade estupenda sabia explicar e expor a seus ouvintes os mais profundos mistérios da fé satisfazendo igualmente aos ignorantes e aos doutos. Muitos iam assistir os sermões de Clemente com o fim de ridicularizar a oração e o orador; entravam no templo e, logo às primeiras palavras, ficavam presos pela eloqüência, pela convicção e unção sobrenatural do Santo, voltando para casa contritos e, muitas vezes, confessados. Uma vez um jovem médico, passando pela Rua de São João em Viena viu imensa multidão de povo atropelar-se para entrar na Igreja de Sta. Úrsula como se lá houvesse alguma representação teatral, algum cinema ou coisa semelhante. Admirado perguntou pela causa de tão estranho movimento; a resposta foi: “O Pe. Clemente vai pregar”. A curiosidade subjugou-o, entrou; o pregador arrebatado falava sobre a necessidade que têm os homens de trabalhar para a salvação de sua alma; expunha com clareza que o céu não se compra com fortunas, honrosas patentes, belos títulos ou robusta saúde, mas sim com a boa vontade, com o desejo sincero e efetivo de cumprir a vontade de Deus. O médico gostou da pregação e desde aquele dia não perdeu mais nenhum sermão da Igreja de Sta. Úrsula. Um outro senhor vivia em Viena como funcionário público, admirador profundo do imperador e adepto fanático do josefismo, cujos princípios mais lhe sabiam do que as máximas do Evangelho. Como muitos do seu tempo, formara-

se ele a sua religião que praticava ou não de acordo com os seus caprichos, nada detestava tanto como aquilo que costumava denominar fanatismo religioso, porquanto seu íntimo se revoltava sempre contra a intolerância da Igreja Católica, que reprova as outras religiões impondo aos homens dogmas incompreensíveis e contrários à razão humana. Por felicidade o velho funcionário tinha um amigo, que embora antes comungasse com as suas idéias, agora lhe falava do célebre pregador de Santa Úrsula, dos doutores que o ouviam com religiosa atenção e das conversões maravilhosas que ele operava em Viena. Mais por atenção para com o amigo do que por outro motivo, foi ele também ouvir as pregações de Clemente, e debulhado em lágrimas de comoção voltou para a casa sinceramente convertido, abjurando o josefismo e tornando-se um católico prático. Mais tarde, referindose a essa sua conversão, admirava-se de como isso sucedera; para ele era um mistério a sua conversão; nenhum dos muitos oradores por ele apreciados lograra convertê-lo de josefino em católico fervoroso. Tais pecadores converteuos São Clemente aos milhares com a sua pregação e conseguiu até entusiasmar os hereges pelas belezas da santa Igreja Católica. Mais interessante ainda é que a não poucos dos amigos, veneradores e até futuros membros da Congregação, Clemente conquistou-se dentre os que iam a suas pregações para o ridicularizarem. Uma vez percebeu S. Clemente que alguns estudantes falavam e se riam durante a pregação. Sem perder o sangue frio, voltou-se para eles com as palavras: “Meus senhores, continuai a rir, mas quem se rir por último rirá melhor”. Foi o suficiente para encher de vergonha e de arrependimento os jovens que mudaram de vida. Se era apostólica a sua simplicidade, não o era menos o modo com que pregava; falava com vivacidade, entusiasmo, ardor e sentimento tal que não só convencia, mas também prendia e arrebatava. “No púlpito, disse o cônego Veith, seu rosto se transfigurava dando-lhe as aparências de um Serafim”. Suas palavras eram chamas ardentes que inflamavam os corações, e espadas que traspassavam as almas. “Percebia-se perfeitamente, contra a Irmã Thadéa, que o Pe. Clemente não procurava a si próprio nas pregações mas tão somente a glória de Deus e o bem das almas; falava com força e vida, inflamado de zelo ardente; suas palavras saiam do coração e por isso penetravam também os corações; não discorria com doutas palavras de humana sabedoria, mas com a doutrina do Espírito; por isso os que ouviam as suas pregações não podiam resistir e davam-se por vencidos”. Mais adiante acrescenta a mesma Irmã: “Durante as suas pregações reinava um silêncio sepulcral entre os numerosos ouvintes, que freqüentes vezes se sentiram comovidos a ponto de não poderem conter as lágrimas e reprimir os soluços”. Nem no auge do maior entusiasmo perdia Clemente a dignidade e a calma em seus movimentos e gestos; na expressão do seu rosto e na viveza de seus olhos estampava-se a sua convicção profunda e fé viva. As vezes a sua ação expressiva produzia maior efeito do que suas palavras. Discorrendo, uma vez, sobre o mistério da Encarnação ao pronunciar as palavras: “Ele assumiu a nossa natureza, revestiu-se da nossa carne” bateu as mãos com tanta gravidade e comoção que arrancou lágrimas aos ouvintes dissipando qualquer dúvida pos52

sível sobre a divindade e a humanidade de Cristo. Naquele tempo, desde José II, já não se ouvia mais sermão algum genuinamente católico em Viena, porque quase não se falava mais nas verdades da fé, mas quase exclusivamente em elegantes e agradáveis temas, como: cristianismo, filantropia etc. Muito significativa é a observação que faz um discípulo de nosso Santo, de que a pregação sobre a Igreja católica era coisa tão rara, que os moços se alegravam quando o orador proferia a palavra “Santa Igreja Católica”. As pregações de S. Clemente produziam o efeito das bombas. Eucaristia, culto da Virgem e dos Santos, confissão, indulgências, purgatório, inferno, demônio, eram temas proibidos então pelo josefismo, mas verdades que S. Clemente expunha no púlpito com a maior clareza e firmeza. O tema predileto porém era a Igreja e sua autoridade. São Clemente ressuscitou em Viena a pregação católica; a sua expressão física contrastava imensamente com a pose elegante e vaidosa dos pregadores da moda; ele era um pregador popular no sentido verdadeiro da palavra: falava segundo as impressões do momento e não segundo esboços aprendidos. Quem ouvia o servo de Deus não se sentia somente satisfeito; voltava mudado para a casa. “Ficava-se banhado em lágrimas, odiava-se o pecado e abraçava-se resolutamente a virtude”, diz resumindo, um dos ouvintes do nosso Santo. Não era raro ficarem homens esperando na sacristia a volta de Clemente para fazerem a sua confissão. A pregação de Clemente era a revelação da fé que quase atingia os limites da visão; não argumentava muito, mas anunciava como quem via, ouvia ou tocava, sendo seus sermões verdadeiros atos de fé. Dentre os atributos divinos gostava Clemente de salientar a misericórdia infinita do Eterno. Mesmo quando falando da Justiça esmagava os corações, reanimava-os com a confiança na misericórdia sem limites de Deus descrevendo com vivas cores e ternura filial o amor de Jesus Cristo, o sangue que derramou e a morte que por nós sofreu. Esforçava-se por consolar os pusilânimes e reanimar os tímidos, e com voz comovida repetia com freqüência: Jesus, filho de Davi, tende compaixão de nós, e Porque queres perecer, casa de Israel? Era tocante quando nas prédicas sobre o Santíssimo Sacramento, subjugado pelo amor, se ajoelhava no púlpito para adorar o Deus sacramentado; nessas ocasiões ele parecia um Serafim e de seus olhos abertos saiam raios de amor, que se concentravam na Hóstia consagrada. O seu auditório compunha-se geralmente de pessoas simples; não faltavam todavia representantes de todas as classes; estudantes, literatos, artistas, funcionários públicos, aristocratas etc.; Clemente porém nunca sucumbiu à tentação, aliás comum aos oradores, de sacrificar o povo simples para agradar à classe erudita, talvez até nunca sentiu essa tentação nem mesmo quando ao pé do púlpito via os seus grandes e eruditíssimos amigos. O seu princípio era sempre o mesmo: pregar com toda a simplicidade de modo a ser compreendido pelo mais ignorante dos ouvintes e até pelas crianças. S. Clemente que com sua pregação simples conseguiu empolgar homens de envergadura intelectual de um Werner, Günther, bem como estudantes e professores das universidades, é uma prova evidente de que a pregação genuinamente católica agrada e

satisfaz tanto a pequenos como a grandes, a sábios como a indoutos. É certo que nem todos os pregadores podem ser como S. Clemente, ao qual faltaram os atrativos naturais, mas não os encantos da fé e de uma convicção profunda. Clemente recebera de Deus a missão de esmagar os pregadores da moda, que se perdiam nas frases rebuscadas com detrimento da clareza requerida pelas verdades religiosas. O povo notara logo a diferença; não era raro ouvir-se: “Queres ouvir um orador brilhante? vai à igreja tal; queres porém ouvir um apóstolo, vai a Santa Úrsula, onde prega o Pe. Clemente”. A pregação de Clemente tornou-se em breve um espinho aos olhos do governo josefino e da polícia austríaca; temiam farisaicamente que, por essas pregações, os austríacos se tornassem ultramontanos e quisessem obedecer mais ao Papa do que ao Imperador; olhavam tudo aquilo com um fanatismo perigoso, que as autoridades deviam abafar, ainda mais que as leis austríacas proibiam terminantemente esse exagero de pregações, mormente a cerimônia da bênção papal que Clemente dava quatro vezes ao ano, sem haver para isso requerido licença do governo. O resultado foi uma ordem da polícia em 1816, que proibia de vez a Clemente, pregar em Viena ou onde quer que fosse na Áustria. Ao receber essa proibição Clemente sentiu o seu coração como que estracinhado; teve compaixão de milhares de almas que ficariam para sempre privadas do pão da palavra de Deus. Mas não havia remédio; Clemente teve que sujeitar-se e de fato, curvou sua fronte confiado na proteção divina. No domingo seguinte calaram-se os sinos, mas o povo afluiu da mesma forma. O Reitor da Igreja ao ver a massa que se apinhava no templo, sentiu tentação de transgredir a ordem recebida dos homens, mas soube conter-se; de sobrepeliz e estola subiu ao púlpito e depois de lido o Evangelho, com voz entrecortada e trêmula começou: “Mas caros irmãos, foi-me proibido fazer-vos pregações para o futuro, e eu devo obedecer; no santo Sacrifício da missa pedirei a Deus, se digne inspirar a cada um de vós, o que eu hoje queria pregar”. O povo desatou em prantos e soluços, indignando-se uns e chorando outros, de sorte que o próprio governo se deixou intimidar e retraiu nos dias seguintes a proibição que fizera a São Clemente. Esse golpe tão brusco quão inoportuno serviu apenas para preparar ainda mais os ânimos, encher as almas de admiração pela pessoa do Reitor de Santa Úrsula, e animar o Apóstolo à anunciar sempre mais destemidamente o Evangelho, segundo a ordem do divino Mestre: “Ide e ensinai todas as gentes... ensinando-as a observar todas as coisas que vos tenho mandado (Mt 28,19-20). O leitor poderá ainda, levado de uma inocente curiosidade, perguntar, como é que S. Clemente se preparava para as suas pregações. As muitas ocupações e preocupações da vida apostólica não lhe permitiam dedicar muito tempo à preparação; no princípio da semana lia o Evangelho do próximo domingo, meditando e ponderando cada palavra e, nessa meditação, os pensamentos assaltavam-no em multidão; aos sábados, à noite, ordenava as idéias e os argumentos de acordo com a lógica e a psicologia; só então é que regularmente subia ao púlpito. Sem preparação, embora breve, ele nunca pregou, porque sabia que do contrário tentaria a Deus e faltaria ao respeito devido à palavra divina. Uma vez Clemente perguntou a um dos seus amigos: “Qual é a melhor preparação para a pregação?” e sem esperar a resposta apontou para os joelhos dizendo: “a oração é a coisa principal nas pregações”. 53

CAPÍTULO V

O zeloso auxiliar nas pregações Conversão do poeta — Suas pregações — Trombeta do juízo — O orador dos eruditos — O discípulo do grande Mestre — O poeta e o dramaturgo — Esses moleques... Com certeza o leitor ainda se recordará da cena tristíssima que Varsóvia presenciou em 1808, quando S. Clemente, internado numa carruagem toda fechada, o terço a deslizar-lhe pelos dedos, foi expulso do seu querido convento de S. Beno e conduzido ao exílio, à fortaleza de Küstrin perto de Berlim. Um dos principais perseguidores dos Redentoristas e mais encarniçados inimigos de Clemente, foi um funcionário prussiano, de estatura elegante, estilo fluente, fantasia viva acalentada por uma veia poética arrebatadora. Chamava-se Zacharias Werner; filho de sua época, joguete das mais desenfreadas paixões, só procurava os divertimentos mundanos; educado no protestantismo pusera sua pena, aliás brilhante, a serviço da heresia compondo poesias, romances, peças teatrais, vazadas nos moldes do filosofismo de Kant, atacando o clero, a Igreja, o jesuitismo etc. Seus amigos prediletos eram Rousseau, Goethe e Schiller, que lhe representavam o expoente máximo da cultura e da inteligência humana. Além de adepto do josefismo e da maçonaria levava vida licenciosa, pois que além das três mulheres que possuía simultaneamente, era, em Varsóvia, o escândalo das boas famílias. Poeta fino e artista consumado introduziu-se Werner na mais alta sociedade européia, mas descontente e irrequieto ia de cidade em cidade em procura de novos gozos e prazeres, até que, quas sem o perceber, chegou a Roma; ao penetrar os umbrais da cidade dos Papas, o seu coração suspirou e sua alma vibrou aos bafejos das auras acalentadas do Sul; seus olhos ficaram-se naquelas monumentos da fé enquanto que seus lábios, enternecidos e arrependidos, pronunciavam a prece que brotava espontaneamente do seu coração. E a oração salvou-o; retirou-se à solidão, meditou as verdades eternas, e qual outro Saul no caminho de Damasco, levantou-se convertido e decidido a pertencer inteiramente à Igreja católica, a única que apresenta e dá a seus filhos paz e sossego, verdade e esperança. A 19 de abril de 1810 Zacharias Werner abraçou a religião, da qual, três anos depois, se constituiu ministro pela ordenação sacerdotal. Por seu temperamento sangüíneo era volúvel e inconstante passando bruscamente do auge do entusiasmo ao mais completo abatimento moral. Necessitava pois de um guia seguro e prudente; ao chegar a Viena encontrou-o em S. Clemente, que ele outrora perseguira, mas que agora lhe estendia amavelmente as mãos pronto a encaminhá-lo na vereda do céu pelas árduas montanhas da perfeição cristã. Desde então a história de Werner é

inseparável da de São Clemente, o qual, vendo em seu amigo as qualidades excepcionais e os dotes admiráveis que Deus lhe concedera tão prodigamente, procurou servir-se delas para a difusão do reino de Deus e a salvação das almas. A fama literária de Werner, os ecos da sua antiga vida efeminada, os comentários que sobre ele se faziam abertamente, atraiam as multidões para a Igreja de Santo Agostinho onde pregava o antigo discípulo de Schiller e Goethe. A impressão causada por Werner na tribuna era deslumbrante. A figura esbelta, o rosto pálido, as sobrancelhas cerradas e negras, os cabelos compridos que lhe caiam em cachos abundantes sobre os ombros preparavam o auditório; e quando ele descerrava os seus lábios e com a magia da sua palavra inflamada descrevia a felicidade, que goza um católico no seio da sua Igreja, e depois, abrindo sua alma e apelando para sua experiência própria, expunha a insipidez do luteranismo ou pintava ao vivo o contentamento e o bem estar que se sente no estado de graça santificante, um como choque elétrico tocava os milhares de corações que o ouviam, não havendo quem pudesse resistir às suas palavras fascinantes. Quando sua fantasia se inflamava e com ardente fervor invocava as musas mais fagueiras, a poesia jorrava em borbotões de seus lábios trêmulos a descrever os magníficos quadros da formosa Itália, onde em ondas de púrpura o sol se esconde por entre os píncaros dos Apeninos; os ouvintes tinham então a sensação do assombro, ficando indelevelmente gravada em os espíritos e corações a lembrança das verdades da fé, que o orador nunca deixava de ligar a seus quadros. Quando com voz possante anunciava ao povo os terrores do juízo final, ou abria ante seus olhos os abismos infernais, parecia um dos velhos profetas ressuscitados, e o temor e o espanto se estampavam nos rostos dos ouvintes que tremiam diante do juiz eterno. É por causa desses sermões impressionantes que São Clemente lhe pusera o nome de “trombeta do juízo universal”. Quando, pelo contrário, o pregador poeta, com uma humildade impressionável, falava dos desvarios da sua vida passada e mostrava a misericórdia com que Deus o tirara do abismo da perdição, corriam-lhe as lágrimas pelas faces e os ouvintes choravam de comoção. Werner era original em suas pregações; não se perdia em frases vazias, mas fazia transpirar a convicção íntima de que se achava possuído, era o pregador dos eruditos e literatos. As suas pregações puseram toda Viena em movimento; durante o famoso Congresso de 1815 todos os reis e príncipes congressistas foram ouvir o maravilhoso pregador. Ora esse homem tão grande aos olhos do mundo, era como uma criança nas mãos de S. Clemente, em cuja escola ia constantemente aprender a arte da pregação apostólica; obedecia-lhe em tudo, porque nele via o homem de Deus, o oráculo do Espírito Santo. Do seu lado, Clemente que o estimava, não poupava esforços para lhe mostrar o caminho seguro da perfeição. Num domingo voltara Werner de uma estação de águas num carro, que lhe moeu o corpo inteiro; embora extenuado foi cumprimentar seu bom amigo na sacristia da Igreja das Ursulinas. Sucedeu chegar ele justamente na hora, em que no coro se cantava o solo para a pregação. S. Clemente sem mais preâmbulos mandou a Werner subir ao púlpito, ao que ele respondeu: “Como? se eu não tive tempo nem de ler o Evangelho?” Clemente respondeu secamente: “Isso não é desculpa”. Werner curvou-se, fez o sacrifício acrescentando: “A isso ninguém poderia obrigar senão V. Revma. a quem obedeço com gosto e alegria”. 54

Uma vez ao pregar em Santa Úrsula escapou a Werner uma expressão que cheirava ao protestantismo, e S. Clemente ouviu o sermão inteiro, sentado na sacristia. Terminada a alocução desceu Werner, mas ao entrar na sacristia ouviu dos lábios de seu Mestre: “O que hoje disseste não era católico, e por isso no próximo domingo tens de retificá-lo”. E Werner obedeceu. Como Werner era, por natureza, altivo e voluntarioso, S. Clemente não perdia vaza para humilhá-lo às vezes até com certa aspereza. “Werner é a trombeta de Deus, dizia ele, mas o seu orgulho prussiano nunca se poderá bastantemente rebater”. Werner depois da sua conversão não abandonou a pena que sempre manejara com maestria. Compôs peças teatrais, romances, poesias tão lindas, que ele mesmo se deliciava em sua leitura, e não raras vezes quis repartir a alegria com seu querido Diretor, esperando naturalmente os parabéns. Clemente porém levantava apenas o dedo e movendo-o dizia: “Dalila” como se dissesse: “Cuidado, meu filho, como Dalila seduziu Sansão e foi a sua ruína, assim também a tua poesia será a tua ruína, se te ensoberbeceres”. Werner, qual criança amorosa, procurava achar-se, o mais possível, na companhia de seu Mestre; mas como Clemente sempre andava rodeado de estudantes, Werner dificilmente conseguia estar a sós com seu Diretor. Uma vez por certo azedume lhe disse queixoso: “Quando é que lhe poderei falar! sempre que venho encontro aqui esses moleques”. Ao que Clemente respondeu: “Gosto mais desses moleques, que de você”. Nessa santa amizade passaram-se cinco anos de verdadeiro esforço para a perfeição religiosa. Eram duas almas que se fundiam e se amavam em Nosso Senhor; era a verdadeira amizade que se não perdia em sentimentalismo, mas que se espiritualizava sempre mais, a medida que os anos se iam. Werner foi para Clemente um poderoso cooperador; por isso, como seu santo Diretor, mereceu que os vienenses o denominassem “o apóstolo de Viena”.

CAPÍTULO VI

O Santo ao altar O Serafim ante o tabernáculo — O humilde ajudante de missa — As piedosas traidoras — Cena comovente — O esmagador do josefismo — As quarenta horas. Para se compreender bem a atividade apostólica e o efeito admirável da pregação de Clemente, seria necessário contemplá-lo ao altar. Os que tiveram a ventura de vê-lo perto do sacrário, não encontraram na língua humana palavras capazes de definir ou descrever a impressão recebida. Sua intimidade com Jesus Sacramentado era uma outra manifestação da sua fé, talvez ainda mais arrebatadora do que seu verbo inflamado no alto da tribuna sagrada. À imitação de seu Pai espiritual Santo Afonso não sentia maior prazer do que em permanecer diante do Prisioneiro dos nossos sacrários; lá era indescritível o seu recolhimento. Quando na igreja dos Italianos tinha de transportar o Santíssimo da capela-mor para qualquer altar lateral, que se achasse um tanto afastado, sua fronte inclinava-se amorosamente sobre a ambula, os olhos conservavam-se semicerrados, fitos sobre o cibório, que ele apertava jeitosamente contra o peito. Clemente não precisava lutar para conservar a atenção e o recolhimento; pelo contrário era-lhe, às vezes, difícil conter as chamas que o devoravam, sem as manifestar por fora. Uma das suas ocupações prediletas era distribuir a santa comunhão, por se sentir assim mais perto do seu Deus. Nessas ocasiões não lhe era sempre fácil disfarçar os soluços e conter as lágrimas de comoção, que lhe brotavam dos olhos e corriam, a fio, pelas faces traindo o que se passava dentro do coração. Nos dias da exposição solene do Santíssimo, de joelhos fixava os olhos na Hóstia consagrada, seu rosto se transfigurava e ele parecia um Serafim a contemplar face a face a Jesus, encanto da sua vida. Embora idoso gostava de ajudar a missa a qualquer sacerdote, embora novo, porque tinha assim mais uma ocasião de se achar perto de Jesus Sacramentado. Homens de conhecida piedade, como v. g. Mons. Muzzi auditor da Nunciatura, iam nos dias de grande festa, à Santa Úrsula, unicamente para se edificarem com a devoção íntima de S. Clemente. O coração do Servo de Deus transbordava de delícia e expandia-se docemente quando se julgava despercebido, a sós com Jesus Sacramentado. As religiosas de Santa Úrsula costumavam ser as traidoras piedosas dessas cenas comoventes. A Irmã Thadéa escondeu-se um dia na igreja, e pôs-se a contemplar Clemente que se julgava só diante do sacrário. “O rosto do Santo, diz ela, estava como que transfigurado e refulgente de amor; ele estendia muitas vezes seus braços a Jesus, como a 55

dar-lhe o coração, falava com o seu Deus com a ternura de um filho que deposita no coração de seu pai amado a expressão suma do seu amor e confiança; com a ponta dos dedos reunidos atirava em cheio para o sacrário o ósculo dos seus lábios e do seu coração”. Comovida a Irmã Thadéa chamou também as outras irmãs, que se edificaram com aquela devoção e fé viva, que para elas tiveram mais valor e efeito do que amais tocante pregação. Jesus presente na Eucaristia é o centro de toda fé e piedade, e por isso a devoção ao Santíssimo ocupa sempre um lugar saliente na vida de todos os Santos. Mas em S. Clemente essa devoção tinha um caráter especial, produzido talvez em parte pelo espírito da época; o jansenismo e o racionalismo conservavam afastado dos olhos e do coração do povo esse grande mistério da nossa fé. Para combatê-los São Clemente instituíra a missão permanente em S. Beno, que não era senão semanas, meses e anos eucarísticos. E de fato, o desejo ardente de São Clemente era difundir por toda parte e introduzir em todos os corações o amor ao Santíssimo, e o desejo de receber a Jesus freqüentes vezes na santa comunhão. Para a adoração do Rei dos reis, solenemente exposto no ostensório, não lhe era permitido fazer em Viena o que fizera em S. Beno, porque lhe faltavam os meios e a permissão dos governo. Durante a adoração das 40 horas, porém, em Santa Úrsula, na igreja dos Italianos e na dos Mechitaristas era ele quem mais se interessava e trabalhava para que Jesus Sacramentado recebesse a homenagem merecida dos adoradores. Durante o ano visitava sempre a igreja em que se achava exposto o Santíssimo na espaçosa cidade de Viena, sendo quase sempre ele que, em própria pessoa, adornava de flores naturais os altares e o tabernáculo. Clemente parecia ter abolido em Viena a diferença do domingo e dos dias úteis. O confessionário achava-se assediado todos os dias e a mesa da comunhão era um encanto diariamente pelo avultado número de almas eucarísticas; famílias inteiras, e das melhores, permaneciam ajoelhadas no pavimento, horas e horas a fio, na mais profunda devoção diante de Jesus Sacramento. Santa Úrsula era o centro, donde se difundia pela cidade toda esse amor e devoção a JesusHóstia, de sorte que um dos amigos de Clemente pôde afirmar sem exagero, que depois de dez anos de trabalho de S. Clemente, Viena se tornou o lugar, onde Jesus era mais visitado, mesmo nos dias de semana, e onde mais se recebia a santa comunhão.

CAPÍTULO VII

O devoto da Virgem Devoção combatida — O digno filho de S. Afonso — Invocações prediletas — O rosário sua biblioteca — O rosário à cabeceira dos doentes — A devoção a Maria; uma necessidade — Os Santuários da Virgem. A devoção à Santíssima Virgem era um ponto atacado e combatido naqueles tempos de frieza religiosa e de jansenismo detestável. Até teólogos, que se diziam católicos, julgavam dever impugnar o culto de Maria Santíssima. O rosário era desconhecido em bastante centros católicos de sorte que em Viena se tinha em conta de curiosidade o fato de que na Igreja de Santa Úrsula havia um padre que benzia terços e rosários. São Clemente era um digno filho espiritual de Sto. Afonso de Ligório, o dedicado cantor e defensor acerrimo das Glórias de Maria, e por isso não podia deixar de consagrar à Virgem um amor terno e filial. O divino Mestre afirmou que a boca fala ex abundantia cordis, daquilo que enche o coração; para S. Clemente, o decantar no púlpito e nas palestras familiares as glórias da Mãe de Deus, era uma das maiores alegrias e consolações da sua alma. No púlpito, quando discorria sobre algum mistério da vida de Nossa Senhora, tornava-se excepcionalmente eloqüente e as palavras jorravam fáceis dos seus lábios: era o filho amoroso que enaltecia os encômios de sua Mãe. A Imaculada Conceição, as Sete Dores de Maria, e sobretudo o mistério da Anunciação, em que veneramos conjuntamente a encarnação do Verbo e a maternidade da Virgem, eram o objeto da sua mais terna devoção desde os dias da sua infância, e o assunto predileto dos seus eloqüentes sermões. Dificilmente passava-lhe despercebido o toque do “Angelus” de manhã, ao meio-dia e à tarde; onde quer que se achasse, punha-se de joelhos e com devoção e amor saudava sua Rainha e Mãe. A exemplo de Sto. Afonso nutria uma devoção toda especial para com a Virgem sob o título do Bom Conselho, de cujas luzes tanto necessitava naqueles tempos turbulentos; e a Virgem diversas vezes deu mostras de que aceitava os obséquios do seu devoto Servo, guiando-o, qual estrela indeficiente através dos escolhos e abrolhos da vida tempestuosa do seu século. Característica era a sua devoção para com o rosário de Maria, que denominava a sua “biblioteca”. Em todos os seus passeios pela cidade e em casa, nos momentos livres, Clemente desfiava as contas do rosário. Para consolidar essa devoção entre os seus discípulos impôs aos Oblatos da Congregação o dever de defender sempre o rosário, mormente quando escarnecido pelos hereges. No púlpito, no confessionário e nos entretenimentos familiares recomen56

dava com fogo essa devoção; nas pausas do confessionário rezava o terço, ou, ao menos, algumas “Ave-Marias”, afirmando que por essa devoção conseguia quanto pedia a Deus. Por vezes, à cabeceira dos doentes, esgotados os meios de persuasão, ajoelhava-se, rezava o terço, e a conversão era garantida. Chamado a algum doente, que morava um tanto afastado, punha-se a rezar o terço de caminho e gostava de dizer: “Quando tenho tempo de rezar o terço, não há pecador que se não converta!” Para S. Clemente a devoção a Nossa Senhora era uma necessidade imperiosa. Não podia ouvir falar em nome de Maria sem algum predicado glorioso para Ela. Quando em suas longas viagens encontrava algum santuário da Virgem, não prosseguia seu caminho sem primeiro saudar sua Mãe celeste e depositar em seu altar o ósculo ardente do seu amor filial. Em Viena os únicos passeios, que fazia fora da cidade, eram consagrados à Virgem em seus santuários. Todas as igrejas de Nossa Senhora eram-lhe caras, porque em todas elas encontrava ocasião de homenagear sua Mãe e Rainha; porém o santuário que mais atraia era o de Mariazell onde se desenvolvia, como em nenhum outro, a vida de fé católica, aliás abaladíssima na Áustria no tempo do josefismo. Quando o Santo contemplava as multidões que, de perto e de longe, invadiam o Santuário da Virgem, os corações a vibrar de amor, os cânticos a ecoar pelas planícies, as orações a repercutir na vasta abóbada do Santuário, sua satisfação era sem limites, seu peito estremecia, e seu coração parecia saltar fora a desafiar os incrédulos a virem em sua incredulidade explicar aquele espetáculo de fé. — “Que os incrédulos, exclamou ele, venham explicar-me, se puderem, o que impulsiona este povo, o que o traz de tão longe terras, a custo de mil fadigas, a estas montanhas! Tem-se de reconhecer que é o poder da fé. Oh! se o Santo Padre pudesse ver toda esta gente e esta devoção, havia de chorar de alegria”. No púlpito e no confessionário exortava continuamente os fiéis a recorrerem à Rainha do céu — “Não se pode ir para o paraíso senão por meio de Maria”, gostava ele de repetir. Mormente aos pecadores apontava Clemente a devoção a Maria como âncora de refúgio e de salvamento. “Meus irmãos, exclamou ele um dia levado de entusiasmo, se entre vós existir algum que perdeu a fé, ou nela se sente fraco, ouça o remédio eficaz que eu conheço ser infalível: reze diariamente de joelhos e com devoção uma ‘Ave Maria’ à Mãe de Deus, e sua alma atribulada recuperará a paz”.

CAPÍTULO VIII

O prudente Confessor Confessor procurado — O dia no confessionário — A Irmã Francisca — Luiza Xavier — O caminho mais seguro — Francisco Arrependido — A caixa de rapé — A senhora às margens do Danúbio — O Kraus escrupuloso — Pe. José no altar — A mulher sem pecados — Preparação contínua — Passy confessase sem o saber. Desde a chegada de Clemente a Viena, o lugar principal de sua atividade apostólica em prol das almas já não era o púlpito como outrora em S. Beno, mas o confessionário, onde passava horas e horas na direção espiritual dos seus penitentes, sendo procurado por pessoas de todas as classes da sociedade. Os prediletos eram os homens e os moços que iam procurar em casa para lá fazerem sua confissão. E não era em vão que tantos o procuravam. Clemente possuía, como confessor, qualidades extraordinárias que deixavam nos penitentes a certeza de uma direção segura e sã. Sempre que o estado da alma o exigia e as circunstâncias o permitiam, Clemente aconselhava a confissão geral, à qual fazia preceder bastante tempo de exata preparação. E Clemente não perdia a paciência, ouvia tudo como bom médico e depois dava o necessário remédio. Muitas vezes passava o dia inteiro no confessionário. Uma vez sentindo-se mal tomou uma sangria, como era costume naquele tempo, e para não perder tempo, correu ao confessionário, onde os panos se desataram, dando livre fluxo ao sangue que se pôs a correr sem parar, pelo pavimento; enfraquecido pela perda de sangue Clemente desmaiou, e certamente ter-lhe-ia sucedido coisa pior, se lá por acaso não se encontrasse um médico, que acudiu com prontidão. Não era raro ficar o Santo no confessionário até alta hora da noite. Quem uma vez se confessava a São Clemente sentia necessidade de voltar outra vez, não porque Clemente gostasse de agradar com palavras adocicadas, mas porque sabia infundir nas almas o verdadeiro amor a Jesus Cristo. Antes de sentar-se no confessionário costumava ajoelhar-se diante do tabernáculo a fim de pedir ao céu prudência e amor para tão espinhoso cargo. Ao ouvir as confissões S. Clemente evitava os longos entretenimentos com os penitentes e procurava ser breve quanto possível; as poucas palavras de conselho e animação que dirigia aos penitentes eram paternais e por isso calavam profundamente nas almas. Clemente possuía o dom extraordinário de penetrar com seu olhar através dos corações, e não poucas vezes, antes da confissão, desfazia as dúvidas que o penitente desejava expor. “Em um dos nossos conventos, escreve a Irmã Thadéa, havia uma candidata que se via atormentada por inúmeras tentações contra a vocação, até que, um dia, se decidiu abandonar o convento. Quando 57

menos o esperava, S. Clemente aproxima-se dela com as palavras: ‘Francisca, fica no convento, porque és chamada por Deus’. Como a ninguém ainda havia ela manifestado os seus pensamentos nesse sentido, reconheceu nas palavras de S. Clemente a vontade de Deus, e as dúvidas sobre a vocação desapareceram instantaneamente”. Permaneceu na ordem e na idade de 83 anos foi uma das depoentes na causa da beatificação de S. Clemente. Um caso semelhante; conta-o a Visitandina Luiza Xavier: “Thereza Gonzaga, atual superiora do nosso convento em Gleink, era, no mundo, penitente de São Clemente. Ao ouvir um sermão do Santo sentiu em si o desejo de entrar nas Ursulinas; manifestou ao pai esse seu intento, mas este a dissuadiu prometendo não dar jamais, para isso, o seu consentimento. Embora continuasse a ouvir a voz de Deus, que a chamava, desanimou diante das dificuldades e desistiu do seu piedoso intento, ocultando tudo isso a seu diretor espiritual. Na confissão porém Clemente disse-lhe abruptamente: ‘Deves ser Visitandina, e eu mesmo me encarrego de arranjar-te um lugar’. A penitente sentiu um peso deslizar-se do seu coração, entrou para as Visitandinas, onde viveu 50 anos no gozo da mais perfeita paz, graças ao esforço do seu bom diretor espiritual”. Com poucas palavras sabia Clemente aplicar o remédio conveniente às chagas da alma. Era com todos bondoso, delicado, porém sempre enérgico e firma em seus conselhos. A penitência que impunha não era sempre a mesma para todos porque para cada doença há remédio especial. Homem de prudência reprimia em seus penitentes qualquer exagero ou imoderado zelo, e aconselhava a todos o caminho ordinário ao céu, por ser mais seguro do que todos os excessos que enfraquecem a alma e que muitas vezes se tornam contraproducentes. Uma vez um moço, comovido por um sermão, pediu a Clemente que o ouvisse de confissão imediatamente depois da pregação. O Santo tomou-o pela mão, fitou-lhe os olhos e penetrando toda a sua alma disse-lhe: “Ainda não, venha comigo” e levou-o para o convento provisório, onde o jovem no silêncio e na oração se devia preparar para as contas a dar a Nosso Senhor; ao entrar no quarto a ele destinado, Clemente apontou para um magnífico Crucifixo pendurado na parede, e disse ao jovem: “Francisco, aprende aqui a tua lição”. O jovem pôs-se a meditar, sua vida inteira passou novamente ante os olhos da sua alma, recordou-se do tempo da infância e das diabruras efetuadas por ele nas ruas de Viena; rememorou o tempo da sua primeira juventude dedicada à vida militar, da qual desertara para ir viver em Paris, onde o não puderam suportar por muito tempo. Chafurdado em toda lama, lavado em todas as águas voltou a Viena e não teve coragem de se apresentar à sua mãe, que era uma senhora severa. Foi nessa ocasião que o seu bom anjo o levou à Igreja de Sta. Úrsula, onde a voz de Clemente a discorrer sobre os tormentos da consciência criminosa, se fez ouvir ao coração do pobrezinho. Fez sua confissão derramando lágrimas de arrependimento; mas o temor da mão o perturbava. Clemente porém consolou-o dizendo: “Não temas, que eu disporei tudo”. No dia seguinte a mãe do jovem não ficou pouco espantada ao receber o convite de tomar café na sala do convento. Clemente, muito de indústria, fez a conversa cair sobre os filhos e pediu-lhe que contasse a história deles. A mãe falou de todos menos de Francisco, cujo nome nem quis mencionar por

vergonha e indignação. Clemente não se deu por vencido e perguntou interessadamente por ele; foi a hora em que a mãe perdeu as estribeiras e falou quanto seu coração sentiu num destampatório horrível, afirmando que, provavelmente, o tal já estaria enforcado. Clemente sorriu-se paternalmente notando que a forca não é coisa tão barata, levantou-se, abriu a porta, e Francisco, debulhado em lágrimas, prostrou-se diante de sua mãe, que longe de se comover, desatou numa filípica até então desconhecida contra o filho. No meio daquela tempestade Clemente fez um sinal com a mão dizendo: “Agora basta, vamos tomar juntos o café”. E a paz se fez. Francisco porém estava devendo ainda alguma diabrura às irmãs, que compravam todos os dias o leite na casa de Francisco. Clemente anunciou às irmãs que lhes iria levar um Agostinho. A Superiora agradeceu com toda a cordialidade afirmando possuir já diversas imagens desse Santo e por isso, não precisar de outra. Clemente levou-lhes porém o Agostinho vivo, e a paz completa se restabeleceu com Deus e os homens. Francisco já não quis abandonar seu protetor, pediu admissão na Congregação Redentorista, e depois de terminar seus estudos, tornou-se o grande missionário que enalteceu o nome da Congregação e que salvou inúmeras almas na Valachia e em diversas regiões da Áustria e da Inglaterra. Não satisfeito com esses trabalhos penosos, atravessou os mares, foi a América do Norte, indo morrer, em idade avançada, no convento redentorista de Leoben na Áustria. Houve milhares de pessoas que como Francisco ficaram devendo a S. Clemente a sua salvação eterna. O Santo redentorista empenhava-se seriamente em encaminhar as almas segundo o espírito de Sto. Afonso. É por causa dessa circunstância que um pintor se lembrou, em boa hora, de representar S. Clemente na forma do Bom Pastor, que apoiado em seu cajado levanta para o céu a ovelha desgarrada. O Servo de Deus recebera do céu o dom singular de penetrar com o olhar o íntimo dos corações. Ao andar pelas ruas de Viena bastava-lhe observar, de longe, os transeuntes para saber o que lhes faltava. Uma vez ao passar por uma das ruas mais movimentadas da Capital deu com um rapaz de muito mau humor, que acabava de ser expulso da aula. São Clemente dirige-se a ele com as palavras: “Menino, venha cá um pouco; você tem qualquer coisa de anormal”, tomou-o pela mão, levou-o para casa, animou-o com bons conselhos transformando completamente aquele coração, que mais tarde havia de tornar-se um benemérito da pátria. Em uma outra ocasião encontrou-se com um indivíduo, que enojado da vida nutria desejos de ser afogar no Danúbio. Sem conhecer anteriormente a resolução íntima do infeliz, aproxima-se dele, tira do bolso a caixa de rapé e sorrindo amigavelmente oferece-lhe uma pitada cativando assim o coração do infeliz, que lhe contou sua triste história, abriu sua consciência numa sincera confissão; foi Clemente quem o salvou guiando-o para melhores idéias. Caso semelhante deu-se com uma senhora, nascida na opulência e no luxo, a qual pela quebra de um banco comercial ficou reduzida à miséria. S. Clemente passeava com um amigo ao longo da margem do rio, quando subitamente interrompe a conversa e corre para uma senhora que se aproximava, devagar e com hesitações, das margens do Danúbio. Clemente percebera imediatamente o intento daquela senhora, que não lhe era conhecida. Sem religião e dada às vaidades e ilusões do mundo, a pobre mulher não possuía a força 58

moral para se conformar com a nova posição, em que acabava de ser lançada da noite para o dia, e por isso desesperada resolvera pôr termo à vida atirandose nas águas do Danúbio. Sem mais preâmbulos Clemente a interpela, e a senhora, que não esperava naquela hora a visita de um sacerdote, conta-lhe o que sucedera em sua casa com a quebra do banco, onde perdera toda a sua fortuna caindo em extrema miséria. O Santo compadecido com a dor da pobre mulher, inclinou-se, tomou um punhado de pó dizendo: “Que é dinheiro, minha senhora? é um punhado de terra e nada mais”. Conseguindo dissuadi-la de sem nefando intento, levou-a à cidade onde lhe arranjou um lugar no convento das Ursulinas. No dia seguinte ouviu-a de confissão; a senhora converteu-se inteiramente servindo de edificação para todos da cidade, que a ficaram considerando como a uma santa. Ao lado dos grandes pecadores, também muitas almas tímidas e pusilânimes procuraram a direção de tão experimentado Diretor. O pior de todos esses maçadores, que roubavam muitas horas ao Santo, era um tal Kraus, que quando se confessava ou se dirigia em particular ao Santo, não achava fim na enumeração de seus escrúpulos e dúvidas de consciência. Referindo-se a ele dizia S. Clemente a sorrir: “Um Kraus, ainda vá, mas dois, me matariam”. Escrúpulos e dúvidas de consciência ele os afastava com poucas palavras. Um dos seus confrades Pe. José Forthuber dava-lhe ocasiões de sobra para exercer a virtude da paciência por causa dos seus escrúpulos; quando celebrava o santo Sacrifício, ao chegar o momento de purificar a patena, gastava uma eternidade em procura dos fragmentos que não havia na patena molestando assim os ouvintes, que começavam já a evitar a missa do Pe. José. Uma vez estando São Clemente a assistira missa desse padre, e percebendo que ele não terminava a purificação levantou-se devagar, subiu os degraus do altar e sussurrou ao ouvido do celebrante: “Padre José, deixe alguma coisa também para os anjos”. Foi o suficiente para corrigi-lo. Embora pacientíssimo no confessionário, às vezes parecia perder a calma, quando pessoas que nunca se haviam confessado em sua vida, afirmavam não ter nenhum pecado a acusar. Nesses casos o Santo se desabafava com um pouco de sarcasmo: “Ah! o senhor é um santo; vou mandar logo acender algumas velas para o novo santo”. Como o mundo é malicioso e inventa anedotas para todos, inventou uma também para S. Clemente. Contam que estando uma vez o Santo a ouvir confissões na sacristia da Igreja das Ursulinas, deu com uma pessoa que não tinha absolutamente nenhum pecado a se acusar. Clemente interrogou-o sobre todas as possibilidades a respeito dos dez mandamentos da lei de Deus, dos cinco preceitos da Igreja, dos pecados capitais, esmiuçou suas perguntas sobre as mais sutis imperfeições, porém debalde. Clemente, então, não podendo já conter-se, disse ao sacristão: “André, venha cá e coloque esta mulher no altar; ela é uma santa”. Das pessoas que semanalmente se confessavam e que, em geral, levavam uma vida piedosa não exigia São Clemente preparação muito prolongada. Assim quando às vezes chegava inesperadamente ao convento para ouvir as confissões das Irmãs e estas, desapontadas, se escusavam pretextando falta de preparação dizia o Santo: “Venham que eu as ajudarei”. Um belo dia chegou ao convento e as irmãs deixaram-no esperar muito tempo; queriam preparar-se bem, porque receavam qualquer repreensão de S. Clemente, se se aproximas-

sem do tribunal da penitência sem estarem bem preparadas. As mais velhas, com o fim de evitar qualquer palavra mais pesada, foram ter com a Irmã mais nova e convidaram-na a ir ao confessionário e demorar-se lá dando às outras o tempo necessário de fazer o exame de consciência. A Irmãzinha que nada suspeitara, ajoelhou-se no confessionário pedindo desculpas ao confessor por não ter tido o necessário tempo de preparação. Clemente com todo o carinho e paciência auxiliou a jovem Religiosa que fez uma confissão tão boa como poucas vezes na vida. Lá fora as outras puseram-se a contemplar o rosto da Irmãzinha, para se formarem uma idéia do que as esperava no confessionário. Vendo a Irmãzinha alegre e satisfeita, encheram-se de coragem, mas na confissão recebeu cada qual o sermão que não esperava. A Irmãzinha nova encheuse de curiosidade e, com a maior ingenuidade, perguntou às mais velhas que conselhos tão doces haviam recebido, que as fizeram chorar, ao que elas responderam: “O Pe. Clemente nos disse que para a confissão e para a morte cada qual deve estar sempre bem preparada, porque ninguém sabe quando o Senhor virá”. Em Viena havia naquele tempo um célebre ator de teatro, chamado José Passy. Quando ainda pequeno, seu pai o queria para a vida comercial não perdendo nunca vasa de o entusiasmar para esse ramo de atividade. O rapaz porém deu-se à leitura de romances cavalheirescos, amorosos e teatrais; com a fantasia efeminada, detestando todo o trabalho sério, fugiu para a cidade de Praga, onde se colocou numa companhia dramática. O pai ao ter conhecimento do caso, mandou o filho mais velho ao encalço de José Passy para reconduzir à casa paterna. Reconhecendo José a sua incapacidade para a vida de teatros, e tendo a experiência de que o romance escrito é bem mais atraente do que o da vida real, acompanhou o irmão com o qual voltou para Viena. Sem fé e sem religião o pobre jovem levava uma vida bem triste e sem consolação, quando percebeu os primeiros sintomas da enfermidade que o levaria fatalmente ao túmulo. Morrer na flor dos anos, ficar privado de todos os prazeres, dizer adeus a todos os divertimentos... isso tudo torturava-lhe o coração. Cheio de compaixão para com o pobre irmão, João Passy levou-o, a título de visita, ao Servo de Deus, que o convidou a voltar outra vez no dia seguinte; José que se edificara com as boas maneiras do velho sacerdote, para lá voltou conforme prometera em busca de nova palestra agradável. Clemente olhando para o jovem disse-lhe: “Amigo, deves fazer a tua confissão; só assim é que uma nova luz iluminará a tua alma”. Percebendo o desaponto do jovem, Clemente pareceu mudar de assunto, perguntou-lhe por sua idade, sua vida, suas ocupações, seu desejos na infância e na juventude, interessou-se por seus sucessos em Praga, pelos livros de sua predileção, pelas orações que mais gostava de fazer, pelas igrejas que mais freqüentava aos domingos, pelos amores que lhe prenderam o coração etc. O jovem, comovido por tanto interesse e delicadeza, abriu o coração e desabafou-o no de Clemente fazendo-o confidente da sua vida inteira, descreveu-lhe minuciosamente os seus desejos, as suas aspirações, os seus dissabores, os seus fiascos e mais alguns pormenores. Quando o jovem terminou a narração, Clemente sorrindo paternalmente disse-lhe: “Meu caro amigo, tua 59

confissão está feita, ajoelha-te, pede perdão a Deus de todo o mal que fizeste e promete ao Senhor não mais ofendê-lo em tua vida”. Em seguida perdoou-lhe em nome de Deus todos os desvarios cometidos. Completamente transformado, o coração a nadar de contentamento voltou Passy para casa contando a todos, como se confessara sem o saber, e como recuperara a paz que há tantos anos fugira da sua alma.

CAPÍTULO IX

O amigo dos doentes O caridoso enfermeiro — O neo-presbítero enfraquecido — A Religiosa neurastênica — O cão preto — O barão tuberculoso — O lobo convertido em cordeiro — Convertido pela água benta — Dois coelhos de uma cajadada — Um funcionário maçom morre santamente — Esforços de conversão — Conversão estupenda na hora da morte. A exemplo do divino Redentor, que nos dias da sua vida mortal, visitava os doentes derramando-lhes nas chagas da alma o bálsamo de consolo ou restituindo-lhes miraculosamente a saúde do corpo, os Santos de todos os tempos se têm distinguido no amor para com os doentes consagrando-lhes boa parte de sua vida. Visitar os enfermos, consolá-los nas suas dores e aflições, e reanimar os seus corações encaminhando-os para Deus, é uma obra de caridade genuinamente cristã, um trabalho verdadeiramente apostólico, tão útil como a pregação ou a audição das confissões. São Clemente era admirável nesse particular. O seu coração nobre não podia ouvir, sem se comover, os ecos dos gemidos profundos ou das dores lancinantes dos pobres enfermos. Como já tivemos ocasião de observar, S. Clemente consagrava a primeira parte do dia ao serviço divino e ao confessionário, e a segunda parte, ao cuidado dos seus queridos doentes na cidade ou nos arrabaldes de Viena sem se perturbar com a neve e o vento, a chuva ou a tempestade. Qual anjo consolador é cabeceira dos doentes, suas palavras eram sempre fortes e animadoras em todas as enfermidades, porque extraídas da Escritura e umedecidas no sangue do Crucificado. Após as visitas do Santo, os enfermos abraçavam resignados a sua cruz mandada por Deus, beijavam-na com amor, como a escada miraculosa que os conduziria ao paraíso. No caso de pobreza levava-lhes Clemente, debaixo do manto, a esmola que lhes devia mitigar a fome. Não tinha o pobrezinho quem lhe pensasse as chagas e lhe apresentasse o remédio na hora certa, Clemente lá ficava horas e horas, exercendo caridosamente o ofício de enfermeiro e não julgava perdido o tempo que passava junto da cabeceira do doente. Mesmo no caso de não ser grave a enfermidade, Clemente sentia igual compaixão com o doente, e como não pudesse ver ninguém sofrer, ia visitá-lo e lembrar-lhe que o tempo da doença é a colheita dos maiores merecimentos para o céu. No seminário de Viena havia um rapaz, penitente do nosso Santo, de constituição franzina e fraca, a quem ninguém profetizava cabelos brancos no futuro. Ordenado sacerdote foi participar sua alegria ao velho amigo e benfeitor. Clemente mostrou viva satisfação pela felicidade do seu penitente e con60

vidou-o para o almoço, que o neo-presbítero aceitou, julgando-se ditoso por poder passar umas horas em companhia do Santo. Qual não foi o seu espanto, quando viu a Clemente, não sentado a seu lado, mas a exercer com toda a delicadeza o ofício de copeiro. Terminada a refeição, subiram ao andar superior, onde Clemente lhe preparara um leito macio para a sesta... “porque é bom, disse ele, que gente nova e fraca durma um pouco depois das refeições”. O neo-presbítero não se deixou rogar segunda vez, entregou-se ao sono, enquanto que São Clemente lá fora se aprofundava em santas meditações. Na enfermaria do convento das Ursulinas achava-se uma Religiosa já idosa e um tanto fraca do juízo, que com suas impaciências e impertinências molestava as outras religiosas. Clemente, para ganhar aquele coração, ia todos os dias ao jardim, onde colhia alguma flor, que levava à pobre enferma; na falta de flores, no inverno, procurava qualquer presente, de que a doente pudesse gostar, entretinha-se com ela sobre coisas e assuntos indiferentes, porque a velha não se simpatizava com ascese nem misticismo. Aos poucos conseguiu domar aquele coração, que completamente se rendeu, quando Clemente, convidando-a para um passeio pelos corredores do convento, lhe apresentou o braço para lhe facilitar os passos. Tal amizade e compaixão converteram a pobre enferma, que alegre e contente dai por diante não molestou mais a enfermeira. São Clemente tornava-se incansável à cabeceira dos doentes, mormente quando a morte se aproximava prostrando a pobre vítima. A Irmã Thadéa narranos um fato que comprova admiravelmente essa verdade. “No nosso instituto de educação, havia uma aluna por nome Rosa, que já tinha feito a primeira comunhão. Aconteceu a pequena adoecer, e às portas da morte, sentir temores indizíveis; levantava os braços e clamava: ‘O cão preto me quer tragar”. Uma das Irmãs correu em procura do Pe. Clemente, que chegou imediatamente; mal havia o Servo de Deus penetrado no quarto, a aluna exclamou tranqüilizada: “O cão preto já se foi”. O Servo de Deus abençoou a pequena, deu-lhe a absolvição geral e ela morreu com a placidez dos justos. “Temos no céu mais um anjo que reze por nós”, disse então o Servo de Deus dirigindose às irmãs. O amor do Santo Redentorista para com os doentes não se limitava à enfermaria do convento, mas abrangia a cidade de Viena inteira desde os palácios dos grandes até as míseras choupanas dos pobres. Seria difícil, para não dizer impossível, enumerar os doentes que S. Clemente visitou e consolou no tempo da sua estada em Viena. Não havia na grande Capital quem não conhecesse esse amor excepcional de Clemente para com os doentes; por isso chamavamno sempre, mormente em se tratando de infelizes, que perderam a fé e se obstinavam em não receber os santos sacramentos. Um dia foi chamado para sacramentar um senhor da alta nobreza; ninguém na família ousava manifestar ao infeliz a gravidade da doença, e o enfermo, ignorando a seriedade do caso, não se lembrou de pedir os últimos sacramentos. Ao chegar Clemente à casa do doente, pediu-lhe a esposa que por amor de Deus não espantasse o marido. O Servo de Deus deixou-a falar e entrou no quarto do enfermo; como este se achasse deitado atrás da porta, Clemente não o vendo, gritou: “Onde está o doente que não quer confessar-

se?” O temor da esposa era felizmente infundado, o enfermo com gosto se confessou, consolando-se com a palavra de Clemente, que lhe assegurou a salvação. E sempre que Clemente afiançava a alguém a salvação e o céu, ninguém disso duvidava porque a voz de Clemente era a de um anjo que falava em nome de Deus. Uma jovem princesa, prostrada em seu leito de morte, sofrendo horrivelmente, não cessava de dizer radiante de consolação: “O Pe. Clemente prometeu-me o céu”. Em Viena havia um barão, católico prático, porém só de confissão anual. Já de há muito vinham os bacilos da tuberculose roendo os seus pulmões. Embora o pobre barão se prometesse longa vida, a boa esposa não o deixava sossegar, insistia com ele para que recebesse os sacramentos a fim de não morrer como um pagão. Como o nobre senhor não prestasse ouvidos a esse conselho, a baronesa foi procurar S. Clemente, que saudando o enfermo lhe disse com voz decidida: “Sr. Barão, confesse os seus pecados, que o sr. pode estar certo de ir para o céu”. O nobre senhor estranhou aquela saudação, refletiu um pouco e perguntou: “Que é que V. Revma. está dizendo? será verdade mesmo?” — “Sim, é verdade”. — Achando o barão que para ele era um bom negócio comprar o céu por coisa tão fácil, respondeu: “Pois então eu quero confessar-me agora mesmo”. Confessou-se, recebeu o viático e a extrema-unção. A morte porém não chegou tão depressa como se esperava; e estando ele já cansado de rezar e não sabendo sobre o que conversar com a baronesa o dia inteiro, comprou umas cartas de baralho e pôs-se a matar o tempo divertindo-se com seus amigos. A pobre esposa escandalizou-se com esse modo singular de se preparar para a morte; mas ele tranqüilo respondeu-lhe: “Sabes duma coisa? o Pe. Clemente não me proibiu de jogar; se fosse pecado, ele não m’o teria permitido”. Foi o suficiente para terminar a desavença. Um senhor idoso e rico em Viena estava já desenganado dos médicos e por isso sem esperança alguma de recuperar a saúde. Os parentes fizeram-lhe ver o estado em que se achava e aconselharam-no a ajustar as contas com Deus; porém debalde. O ancião estava decidido a não procurar os sacramentos. Chamaram diversos sacerdotes, que foram visitá-lo, um depois do outro; e o doente a cada um que entrava dirigia a saudação: “Vai-te para os diabos”. E os sacerdotes retiraram-se rezando pelo infeliz. Os parentes encheram-se de terror diante daquelas palavras blasfemas dirigidas aos ministros de Deus, mas não desanimaram; lembraram-se do Reitor da Igreja de Santa Úrsula. Contaram-lhe todo o ocorrido, mas Clemente não perdeu nem a coragem nem a esperança; tomou o rosário e, pelas ruas de Viena, conjurou o céu que lhe desse aquela alma. Mal chegara o Servo de Deus à porta da casa, quando chorosas lhe correram ao encontro a esposa e as filhas, pedindo que tivesse paciência pois que já doze sacerdotes, antes dele, nada haviam conseguido do doente. Clemente entrou perguntando: “Onde é que está o doente?” Quando lhe mostraram o leito, viu o Servo de Deus o enfermo imóvel sobre a cama e exclamou: “Ah! é ele; estaremos logo prontos”. Saudou o doente, que mando como um cordeiro, fez sua confissão, recebeu a comunhão e extrema-unção e morreu na amizade de Deus. 61

Um jovem da aristocracia vienense, filho de pais católicos e piedosos, dedicando-se ao estudo da filosofia racionalista, perdeu a fé, como acontece a todos que fazem seus estudos superficialmente sem procurar aprofundar-se na ciência. Como a incredulidade, embora originada do orgulho humano, não tem poder para afastar as enfermidades e a morte, o jovem foi atacado de doença mortal, que lhe roubou a tranqüilidade e a paz, pois nada tinha a esperar nesta vida nem na outra. Chamaram o Pe. Clemente para lhe endireitar a cabeça que os professores haviam entortado. Compreendendo S. Clemente que a fé, bebida nas fontes de uma boa educação doméstica, não se perde facilmente em seus princípios, deixou de lado toda e qualquer argumentação e convidou o moço a recitar com ele o “Creio em Deus Padre”. Porém debalde, o jovem não proferia palavra. O Santo percebeu que não podia ser outro senão o demônio, que lhe segurava a língua para não rezar; tomou um pouco de água benta aspergiu-a sobre o doente, com as palavras: “Reze agora!” E sem mais dificuldade o jovem recitou o credo inteiro. Sua alma estava outra vez transformada para o bem, possuía novamente fé, cria como nos dias da sua infância. Seus olhos derramaram lágrimas, enquanto seus lábios proferiam o desejo íntimo do coração: “Padre, eu quero confessar-me”. Pouco depois deu a alma a Deus, consolado por haver recebido os Sacramentos. Um barão de Viena, embora filho de mãe católica e sobrinho de um trapista, era calvinista como seu pai, de acordo com o contrato pecaminoso feito pelos pais na hora do casamento, de educar os meninos no calvinismo e as meninas no catolicismo. O jovem entrou logo para a universidade, como aluno do grande matemático João Madlener, discípulo de São Clemente; os estudos porém, abateram logo o barão calvinista; o mal agravou-se sendo o pobrezinho em breve tempo desenganado dos médicos. Seu antigo professor visitou-o freqüentes vezes lamentando estar ele emaranhado no calvinismo e, por isso mesmo, privado dos confortos dos Sacramentos da Igreja; não teve porém coragem de dizer uma palavra sequer ao jovem barão. Foi ter com S. Clemente, participando-lhe o estado deplorável do seu discípulo na universidade. O Santo franziu o rosto e com toda a seriedade disse a Madlener: “Por essa alma o senhor é responsável; diga-lhe que ele vai morrer”. O professor toma o chapéu e corre à casa do barão para lhe comunicar a sentença de morte; mas ao ver o infeliz perdeu a coragem contentando-se com as palavras: “Pe. Clemente interessou-se por ti e pretende fazer-te uma visita”. O jovem edificando-se com tamanha gentileza por parte de um homem tão conhecido e estimado na cidade, sorrindo-se de contentamento murmurou com voz sumida: “Diga-lhe que agradeço a visita, e que, quando sarar, quero ter o prazer de pagar tanta amabilidade”. Madlener, compreendendo que o doente podia morrer a cada instante, voltou depressa a seu Diretor, pedindo-lhe que não se demorasse, que o doente estava já nas últimas. S. Clemente acompanhava Madlener, porém em silêncio; por entre os seus dedos deslizaram-se as contas do Rosário, enquanto que ele pedia à Virgem a conversão do infeliz. Ao aproximar-se do enfermo pergunta-lhe por seu estado, ao que o interrogado responde: “Padre, estou muito mal”. Clemente sentiu-se comovido com aquela declaração, mandou que todos se retirassem, e em seguida sentando-se à cabeceira do jovem barão, tomou-lhe a mão e, com o coração nos lábios, falou-lhe

da verdade e do erro, de Cristo e Calvino, da verdadeira Igreja e da falsa, da consolação que o católico tem na vida e na morte, e do desespero do calvinismo que condena os seus adeptos, quer tenham culpa, quer não. Passado um quarto de hora, Clemente chama os amigos com as palavras: “O doente é católico, vou buscar a santa comunhão”, e ele recebeu o Corpo do Senhor com uma devoção tal, que arrancou lágrimas dos que presenciaram tão comovente cena. Depois de quatro horas de oração o enfermo entregou sua alma santificada ao Senhor. — O irmão do falecido, calvinista como ele, ao saber da gentileza de Clemente, julgou seu dever visitar o Santo e agradecer-lhe quanto fizera por seu falecido irmão. O Servo de Deus compadeceu-se também daquela alma e aproveitou-se da ocasião, que Deus lhe mandava, para convertê-lo. Clemente descreveu ao visitante a morte santa que tivera o jovem barão, e começou a falar de Calvino cuja vida era cheia de vícios, e que por isso Deus não o podia ter escolhido para reformar sua Igreja etc. Passada uma hora Carlos Rieger — assim se chamava ele — estava convertido, era católico; anos depois foi ordenado sacerdote trabalhando ainda muito tempo, em Viena, para a santa causa de Deus. Um velho funcionário público vivia em Viena ao lado de sua esposa, senhora distintíssima, que se desvelava dia e noite, para tornar agradável ao seu marido a vida doméstica. O funcionário, porém, desejoso de uma vida mais livre e divertida, começou a sentir-se mal junto da sua esposa, cujas virtudes lhe exprobravam continuamente a vida desregrada que levava. Achou melhor divorciar-se dela, o que fez sem se comover com as lágrimas e os pedidos de sua santa esposa; filiou-se à maçonaria7, que então era proibida por lei na Áustria, como sociedade perigosa que ocultamente trabalha contra o trono e altar, embora proclame altamente filantropia e altruísmo. A pobre esposa, que tudo perdoara de coração, orava sem cessar pela conversão de seu marido, e, como penitente de São Clemente, pediu-lhe que em suas orações não se esquecesse do infeliz esposo do santo Sacrifício da missa. Por uma casualidade qualquer entrou o velho funcionário em uma igreja durante a pregação de Clemente. Empolgado pela eloqüência, convicção e unção do Servo de Deus, começou a sentir os remorsos da consciência, até que subjugado pela graça fez sua confissão geral e chamou a esposa para sua companhia depois de lhe pedir humildemente perdão. Como sua conversão era sincera entregou ao confessor as insígnias da maçonaria, vivendo dali por diante como bom católico. Pouco tempo depois da sua conversão, a tuberculose galopante o prostrou, tirando-lhe toda a esperança de restabelecimento. O convertido não se perturbou por isso; estava bem com Deus e assim poderia com tranqüilidade comparecer perante o seu Juiz Eterno. São Clemente não cessou de o visitar, repetidas vezes, a fim de assim melhor prepará-lo para a morte. Estando já em seus últimos momentos Clemente apresentou-lhe o Crucifixo, que ele beijou entre lágrimas e soluços aceitando de boa vontade a morte como expiação das suas numerosas culpas; chamou sua esposa, agradeceu-lhe as orações, o generoso coração, os carinhos, e em seguida com voz entrecortada de soluços disse-lhe: “Mulher, perdoa-me todas as mágoas e dissabores que te causei”. E depois de receber o perdão de Deus e da sua esposa, entre os braços de São Clemente, expirou placidamente no Senhor. 62

Milhares de casos semelhantes poderíamos mencionar para a edificação dos leitores; mas esses bastem como prova da solicitude e do amor com que S. Clemente procurava o bem-estar temporal e espiritual, mormente daqueles que estavam prestes a ajustar suas contas com Deus. Quando percebia que seus esforços eram insuficientes, corria a Jesus no tabernáculo e não o deixava enquanto não sentisse em seu coração o pressentimento da conversão dos pecadores, por quem rezava. Era um outro Israel que não cedia em sua luta com Deus. Um dia Clemente trabalhara em vão na conversão de um moribundo: recorreu ao pastor de todas as almas, escondido no sacrário. Era meio-dia, as Ursulinas estavam reunidas no refeitório e a igreja vazia, inteiramente vazia; Clemente julgando-se só, ajoelhou ao pé do altar; sua oração não era tranqüila como de costume, era santamente violenta: “Senhor, dai-me essa alma... dai-m’a eu vo-lo peço; se não m’a derdes irei a vossa Mãe...” Mais não pôde compreender a Irmã Thadéa que nessa ocasião se conservava escondida no coro da igreja. O rosto do Santo estava banhado em lágrimas, seus olhos fitos no sacrário, seus braços em forma de cruz, ora levantados, ora colocados sobre o altar; como que para obrigar a Jesus a conceder-lhe a alma prostra-se por terra osculando o pavimento sagrado do templo, humilhando-se, o mais possível, para mover o coração Daquele que disse: “Pedi e recebereis”. À cabeceira dos enfermos debatia-se muitas vezes para arrancar as almas à perdição eterna. Disso temos uma prova clássica no exemplo seguinte. Um oculista, lente da Universidade de Viena, intoxicado pelas más leituras e pelo espírito da época abandonou não só a prática da piedade, mas também a fé, homenageando tão somente os sábios racionalistas; alistou-se na maçonaria e chegou até a negação da existência de Deus. Oculista do corpo precisava de alguém que lhe abrisse os olhos da alma. Chamaram o Servo de Deus, que conhecia remédios para semelhantes males — e o infeliz estava já às portas da eternidade. Clemente entrou, e o oculista que se dedicara à estética desde os tenros anos, fitando o Santo, sua fronte alta, seu rosto espiritualizado, seus traços nobres, saudou-o: “Na verdade, tem a cabeça de um apóstolo”, ao que o Santo replicou, pagando na mesma moeda: “Na verdade, o sr. tem a cabeça de um Sócrates”. O doente sorriu, e Clemente lhe principiou a falar de Deus e da eternidade. Tudo porém foi em vão. Clemente retirou-se de perto do pecador obstinado, o coração traspassado por uma espada de dor, porém esperançoso ainda de ganhar aquela alma para Deus. Pouco depois volta novamente o Santo, saúda com toda a cortesia o doutor oculista que o cumula de palavras grosseiras, o injuria, protestando contra padres que só sabem enganar a humanidade e não deixam a gente sossegada nem na hora da morte; mandou-o retirar-se da casa antes que chegasse a polícia. São Clemente recebeu todo aquele destampatório com a costumada calma, oferecendo tudo a Deus pela conversão do pecador obstinado; cheio de bondade aproximou-se do leito do moribundo com a observação: “Meu amigo, quando alguém vai fazer uma viagem, leva dinheiro consigo; o senhor vai fazer uma longa viagem, e despreza os meios que lhe são necessários no caminho: os Sacramentos da Igreja; não seja tolo”. O doente enfureceu-se novamente, apontando a porta ao Servo de Deus. Clemente vendo que aquela alma se achava toda em poder de Satanás, retirou-se um pouco, sentou-se em uma cadeira e pôs-se a desfiar as

contas do rosário. O enfermo indignado até o íntimo da alma, quis saltar sobre o Servo de Deus e, não o conseguindo, clamou-lhe: “Que quer o Senhor? vá-se embora e deixe-me em paz”. Com calma e tranqüilidade respondeu o Santo: “Tenho visto muitas vezes morrer o justo, agora quero ver como morre um condenado”, e continuou a rezar. Essas palavras despertaram o racionalista; ódio e arrependimento, temor e remorsos, confiança e desespero borbulharam em seu coração; nos seus ouvidos repetiam-se os ecos: “Quero ver como morre um condenado”. Não podendo já resistir à graça chama o Servo de Deus e pedelhe: “Reverendo, perdoe-me todas as injúrias que lhe acabo de dirigir”. Assegurando-lhe o Santo haver já esquecido tudo, acrescentou: “Mas Deus perdoarme-á os meus pecados?” A essas palavras o doente desatou em prantos de arrependimento. — “Deus é bom, meu filho, faça o ato de contrição, peça-lhe perdão, que ele perdoará tudo”. Em seguida o doente confessou-se com as mostras de maior contrição e dali a pouco expirou brandamente apertando contra o peito a imagem do Crucificado e as mãos do seu salvador. Se era raro um doente resistir aos esforços do Servo de Deus, não deixa contudo de haver exemplo disso. Eis um fato. Um maçom gabava-se de não acreditar em coisa nenhuma e até zombava dos que tinham fé. Apesar da impiedade notória desse inimigo da Igreja, São Clemente não hesitou emir ter com ele. Esgotou todos os recursos do seu zelo, mas não pôde chegar a converter o infeliz. — A conversão de um maçom é coisa dificílima: os juramentos que o prendem ao demônio são obstáculos terríveis à operação da graça no seu coração. São Clemente conseguiu, todavia, várias conversões, mesmo entre os maçons como temos visto. Em Varsóvia e em Viena teve a alegria de levar para Deus grande quantidade deles.

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CAPÍTULO X

Sua dedicação aos pobres O pintor em apuros — A mulher esperta — A benfeitora oportuna — Multiplicação milagrosa — A postulante maravilhada — As dívidas das Ursulinas — O peixe pagador — Os sapatos da Irmã — O batalhão dos pobres. São Clemente era incansável quando se tratava dos pobres. Embora vivesse muito modestamente, não podia ver os outros padecer fome ou miséria, achava sempre benfeitores dos quais recebia esmolas abundantes para os deserdados da fortuna; muitos contos de réis passaram por suas mãos em benefício dos necessitados. Às crianças que o rodeavam mimoseava o Santo com maçãs e doces, aos estudantes, que todas as noites se reuniam em sua casa, franqueava os armários; diariamente convidava para o almoço cinco ou seis estudantes pobres, aos quais não dava apenas do que lhe sobrava, mas tirava muitas vezes da sua própria boca o pão que recebia, para com ele matarlhes a fome. Quando alguém nessas ocasiões se lembrava de dizer-lhe que não era bom privar-se do necessário para dá-lo aos outros, respondia o Santo: “Que lhe importa isso, se eu me sinto satisfeito assim?” Em benefício dos estudantes e dos órfão Clemente mendigava muitas vezes, de porta em porta não receando os vexames e as humilhações que por vezes passava. Especial solicitude manifestava o servo de Deus para com os pobres envergonhados, que se acanhavam de pedir; enchia as algibeiras fundas do seu manto e ia de casa em casa em procura desses infelizes, aos quais fornecia caridosamente mantimentos e dinheiro, conforme as necessidades deles. Detido por qualquer doença ou ocupação muito urgente, mandava seus padres em nome dele, visitar os pobres, levando-lhes o conforto material e espiritual. Nas suas esmolas São Clemente era prudente, não querendo, em sua caridade, favorecer a indolência de ninguém, pois que o trabalho é uma necessidade e uma virtude, enquanto que a preguiça é um pecado e a mãe de muitos outros. Naqueles tempos vivia em Viena um pintor que, no ano magro de 1817, ficou reduzido à miséria, por falta de encomendas de pintura. Para trabalhar não tinha incentivo, para mendigar não tinha ânimo e para roubar não tinha vontade. Não conhecendo outro recurso foi expor a S. Clemente o mísero estado em que se achava, pedindo seu apoio e conselho. E o pobre pintor não ficou enganado, o Santo olhou por ele todos os dias, enquanto durou a carestia; não querendo porém deixá-lo sem ocupação recomendou-lhe que pintasse muitos quadros de Sto. Afonso que mais tarde conseguiu vender com bastante lucro. Era interessante e edificante ao mesmo tempo. Os ricos procuravam a Clemente, e Clemente procurava os pobres. Não sabemos muitos detalhes porme-

norizados da vida do Santo nesse sentido, e é natural, pois que os pobres esquecidos e desprezados, não deixaram nenhures consignadas as suas impressões nem a gratidão de seus corações; além disso a caridade oculta-se o mais possível, e Clemente trabalhava não para conquistar os louros da admiração mundana, mas unicamente para agradar a Deus. O Pe. Madlener escreve com muita razão: “Clemente gostava muito mais da companhia dos pobres e dos simples do que da dos ricos e grandes”. Os pobres, que conheciam a grande generosidade de Clemente, usavam, às vezes, de astúcias para conseguir esmolas. Um belo dia um rapazinho de olhos tristes e melancólicos bateu à porta do Santo, pedindo-lhe que fosse ver uma senhora doente num dos arrabaldes da cidade. Era já tarde e começava a escurecer; o Servo de Deus cansado dos trabalhos e fadigas do dia preparavase para o descanso noturno. O recado do menino, porém, alarmou-o. A senhora, já idosa, poderia estar muito mal, talvez à morte, e quiçá com a consciência pesada, e Clemente era responsável por aquela alma perante Deus. Vencendo o cansaço e sacrificando o sono pôs-se a caminho, atravessou a cidade e depois de três quartos de hora chegou ao lugar indicado pelo rapaz. Ao entrar na sala não viu nenhuma pessoa doente, mas uma velhinha assentada à mesa, a qual não parecia precisar nem de médico nem de padre. Como porém, as aparências enganam, perguntou-lhe o Santo por sua saúde e por seus desejos, ao que a velha respondeu com toda a simplicidade: “Doença eu não tenho nenhuma, mas como eu ouvi dizer que o sr. gosta muito de ajudar os pobres, mandei chamá-lo, eu estou precisando de 30$”. São Clemente admirou a esperteza da velha, não franziu a fronte nem proferiu palavra de repreensão por aquela imprudência, sacou da bolsa e fez-lhe o presente dos trinta mil réis desejados. O Servo de Deus dava sempre, e embora pobre e nada possuísse, sempre tinha o que dar. Os padeiros da cidade e as irmãs Ursulinas forneciam-lhe pães, com que matava a fome aos pobres. Quando era convidado a algum almoço ou jantar, e lhe ofereciam a sobra da mesa, ele aceitava com alegria e levava-a para os seus pobres. Os vienenses generosos não tardaram a perceber a caridade de Clemente e, aos poucos, enviaram-lhe comidas, roupas e até dinheiro, para que os pudesse distribuir entre os mais necessitados. Confiado na bondade dos benfeitores Clemente, às vezes, dava mais do que tinha. Uma vez alugou uma casa para um estudante; chegando o dia do pagamento o Servo de Deus viu-se em apuros, porque não tinha com que satisfazer o cobrador. Rezou e tornou a rezar e Deus parecia surdo às suas súplicas. Como os Santos sempre têm confiança ilimitada em Deus, também Clemente não desanimou: faltavam apenas 12 horas para o dono da casa aparecer com a cobrança. Clemente estava orando em seu quarto, quando batem a campainha. “Mais um pobre, supunha o Servo de Deus, mais um pobre que vem pedir esmola, e eu com as mãos vazias!” Abriu a porta e uma senhora tira da bolsa um pequeno pacote e retira-se. Clemente abre o presente, vê e admira: uma bela quantia para pagar a casa e fazer mais alguma esmola. Deus não poucas vezes mostrou quanto lhe era agradável a caridade de seu Servo, dando-lhe o poder de multiplicar os pães como outrora Jesus nas encostas da montanha, o qual com cinco pães e dois peixinhos sustentou mais de cinco mil homens, não contando as mulheres e crianças. 64

Entre os discípulos do Santo havia um por nome Antônio Passy, que desconfiando, ou antes, percebendo qualquer coisa de extraordinário na distribuição das comidas, quando feita por Clemente, pôs-se a observar a coisa com especial atenção. Uma tarde chegou, como de costume a comida do convento das Ursulinas para o Santo e o Pe. Martinho seu companheiro; este, jovem e robusto, comeu com apetite a parte que lhe cabia, e Clemente tomando a sua porção, distribuiu-a entre os 16 estudantes que lá se achavam, ficando todos satisfeitos. Em seguida o Santo tomando o pão de sobre a pesa, cortou-o em 16 grandes pedaços, que distribuiu aos estudantes. Passy viu sobrar apenas um pedacinho, que o Santo guardou para si. — Como os estudantes, em geral, têm bom apetite, os pedaços de pão desapareceram-lhes bem depressa entre os dentes. O Santo, alegrando-se com os discípulos, sadios e contentes, tornou a tomar o pedacinho de pão que sobrara, e dele cortou novamente mais 16 pedaços. Passy observou que o pão crescia nas mãos de seu Mestre. O mesmo fato deu-se milhares de vezes, não só com o pão, mas também com as outras comidas. Como já ficou dito, as refeições eram mandadas do convento das Ursulinas em porção suficiente só para duas pessoas i. é para o Santo e seu auxiliar Pe. Martinho Stark; este último, moço e robusto, servia-se, com honra, da sua porção, ficando a outra metade de S. Clemente para ele e cinco estudantes: e todos comiam e ficavam fartos. Se acontecia aparecer mais algum inesperadamente, o Santo mandava-o sentar-se e das marmitas vazias tirava tanta comida que lhe saciava a fome e o satisfazia. Numa sexta-feira apareceu na casa de S. Clemente uma postulante das Ursulinas para dar um recado ao Pe. Sabelli. Como era justamente a hora do almoço S. Clemente convidou-a para tomar parte da frugal refeição; isto causou certo espanto à pobre postulante, porque o Servo de Deus não convidava nunca senhoras para almoçar com ele. Para não fazer desfeita ao Santo, aceitou o convite, ainda mais que a curiosidade a impelia a observar a mesa do Diretor espiritual do convento. Ao ver a pequena marmita e o número de estudantes sentiu-se envergonhada raciocinando consigo: “A comida é tão pouca, e os convivas são tantos, eu não posso, seria imprudência da minha parte, aceitar o amável convite”, e foi dando escusas e mais escusas; mas já era tarde, o Santo insistiu e ela ficou. Sobre a mesa viu a postulante: sopa de macarrão, dois pedaços de peixe, um prato de farinha de trigo, e perto um litro de vinho tinto. Depois de feita a oração antes da refeição, como todo cristão a faz, o Santo levantou-se e começou a servir os estudantes; cada qual recebeu mais sopa do que havia na terrina; o mesmo fez com os peixes e o prato de farinha, em seguida encheu todos os copos, que não eram pequenos, e a garrafa de vinho ainda ficou cheia pelo meio. A postulante das Ursulinas testemunha ocular do fato afirmou que aquelas comidas admiráveis eram mais deliciosas do que as refeições preparadas pelo melhor cozinheiro de Paris. De um modo especial socorria ele às pobres irmãs Ursulinas; embora possuidoras de algum recurso pecuniário nos primeiros anos, perderam tudo em 1811, ano fatal em que o Estado fez bancarrota, os bancos se quebraram, e a carestia se manifestou horrível em Viena e, em geral na Áustria. As religiosas sofreram mais que todos os outros, porque não podendo transpor a clausura, só esperavam socorro da Providência e da generosidade de quem as quisesse

beneficiar. S. Clemente não as desamparou; esmolava para elas entre os amigos e, radiante de alegria, levava-lhes o que recebia dos benfeitores. Uma vez bateu à porta do arquiduque Rodolfo, arcebispo de Olmütz e irmão do imperador, pedindo-lhe que intercedesse pelas irmãs junto do monarca, que se dignou saldar todas as dívidas das Ursulinas. — Uma outra vez a carestia e a fome invadiram novamente a cidade de Viena. A pobre ecônoma do convento viu-se quase no desespero não sabendo donde tirar o necessário para matar a fome das suas religiosas: já não havia pão no refeitório, nem carne na dispensa, nem farinha no armário, nem dinheiro na caixa e nem crédito nos negócios. A pobre irmã procurou nas lágrimas um alívio para a sua dor. Uma Religiosa que passava, compreendendo a causa daqueles prantos, consolou-a com as palavras: “Precisamos de um peixe pagador como nos tempos de São Pedro”. A Irmã referiu-se a um caso sucedido com S. Pedro e narrado por S. Mateus (17,2326): Estando a Judéia sujeita aos romanos, tinham os judeus de lhes pagar anualmente os impostos, como também hoje em dia é costume em todos os lugares. Indo S. Pedro com Jesus a Cafarnaum, lá encontrou os cobradores, que o saudaram pouco amistosamente: “Pedro, como é, o vosso Mestre não paga os impostos?” São Pedro não deixou de sentir o arrepio em todo o corpo, pois que não estava absolutamente prevenido na hora; reanimando-se porém respondeu: “Paga, sim” e foi contar tudo a Jesus que lhe disse: “Não há dúvida, Pedro; vai ao lado, lança o anzol, o primeiro peixe que apanhares terá na boca o dinheiro para o pagamento”. Embora admiradíssimo com semelhante ordem, Pedro obedeceu e com mais admiração ainda encontrou entre as guelras do peixe o dinheiro exigido pelos cobradores. — Coisa semelhante desejava a boa Irmã que se desse com os peixes do Danúbio, que passa em Viena; esse peixe pagador estava mais perto das Irmãs do que elas o poderiam imaginar. Algumas horas depois aparece São Clemente no convento das Ursulinas e, olhando para a Irmãzinha ecônoma disse-lhe: “Irmã, eu sou o peixe pagador”; tirou sua bolsa e entregou à Superiora uma boa soma de dinheiro, que recebera dos benfeitores. A Irmã Thadéa conta o fato seguinte que se deu com ela: “Recebi o santo hábito no tempo que Viena gemia sob o jugo da carestia e da fome: a Superiora disse-me: ‘Sapatos como os que as irmãs usam, não lh’os posso fornecer, contente-se, por enquanto, com os que a senhora trouxe’. Durante os santos exercícios preparatórios para a tomada de hábito, veio o Pe. Clemente, mostrou-me um par de sapatos com as palavras: ‘Experimente se lhe servem; se não, comprarei outros’. Os sapatos serviam perfeitamente, continua a irmã, e eu os usei somente nos dias de grande festa durante 34 anos”. O que São Clemente era para os pobres viu-se claramente por ocasião do seu sepultamento; os pobres de Viena — batalhão incalculavelmente grande — apareceram chorando o seu defunto pai e benfeitor. Por causa dos seus constantes passeios pelos arrabaldes da cidade em procura dos pobres, Clemente era muito conhecido em Viena. Além disso Clemente gostava de andar de batina Redentorista, embora a Congregação não fosse ainda aprovada na Áustria, e as outras Congregações preferissem, por prudência, andar em trajes seculares. Isso atraía no princípio a curiosidade, e em seguida a admiração, o respeito e amor para com o grande Apóstolo. 65

Não obstante toda essa atividade, não se notava em Clemente aquela precipitação que facilmente se apodera de pessoas muito atarefadas. A impressão que Clemente causava, habitualmente a todos, era a de uma alegria modesta e uma tranqüilidade serena e imperturbável. É como diz a Imitação de Cristo: “Uma alma pura, simples e firme no bem, nunca se desorienta nas preocupações mais agres da vida, porque todo o seu procedimento visa a glória de Deus, e serena dentro em si, esquece-se sempre de si própria” (I. 3.3). CAPÍTULO XI

O sábio conselheiro O Espírito Santo lhe dirá — Ler romances — Pequenos presentes — Uma profecia — Interesse pelas vocações — Dedicação paternal. São Clemente não era apenas Diretor de almas no confessionário; sua prudência, zelo e santidade faziam dele um firme conselheiro para todos os estados e classes de pessoas. Os seus princípios seguros e sãos, manejados sabiamente segundo as necessidades dos que pediam conselhos, nunca erravam o alvo. Havendo uma senhora em Viena perguntando ao Pe. Zacharias Werner, quem poderia ser o seu diretor e conselheiro, teve por resposta: “Não lhe posso propor para Diretor nenhum outro melhor do que Clemente; porém mais bem servida ficaria a senhora, se conseguisse, mesmo fora da confissão, pedir-lhe os sábios conselhos”. — “Desde o dia que tive a felicidade de me aproximar dele, dizia Maria Rizy, educadora dos filhos do conde Gilleis, tenho sentido sempre alegria e consolação apesar dos meus muitos e graves padecimentos; quando se achava muito ocupado ou sem tempo de me ouvir prolongadamente, dava-me a bênção com as palavras: ‘o que eu não lhe posso dizer agora, dir-lhe-á por mim o Espírito Santo’ e — coisa admirável — nessas ocasiões eu adivinhava sempre o que o Pe. Clemente me iria dizer; muitas vezes só a sua aproximação fazia desaparecer da minha alma todas as angústias e preocupações”. Quando uma vez uma dessas almas pediu a S. Clemente licença para se deliciar na leitura de um romance, disse-lhe o Santo: “Se quiser tornarse mais sábia, leia; mas se quiser ficar mais piedosa, não leia, porque a Sra. não precisa disso”. A uma das penitentes disse um dia: “A senhora precisa tirar fora o que é de mulher e mudar-se em homem, se quiser prestar para alguma coisa”. Quando alguém querendo falar-lhe, o encontrava a rezar o breviário, sorria-se o Santo com as palavras: “Se o sr. não está com muita pressa, espere que eu rezo ainda um pouco, para não ter de começar outra vez; mas se está com pressa faço pausa já”. Especial prazer sentia em presentear alguém com santinhos, terços, medalhas, para que os distribuísse aos outros, dizendo: “Arranje com isto bastante amigos para Nosso Senhor”; só dois santinhos ele guardou sempre consigo e não os deu a ninguém por mais que os tivessem pedido. Uma donzela que queria entrar no convento, queixou-se ao Santo, de que as condições da vida a obrigavam a ficar no mundo ainda muitos anos, e que por isso temia não poder ser recebida mais tarde no convento por causa da avançada idade. Clemente baixou os olhos, ficou uns momentos silencioso e pensativo, dizendo depois: “Fique sossegada, daqui a pouco a senhora será aceita em um convento, mas não faça nenhum plano a respeito”. E de fato, pouco depois, 66

ela entrou no convento das Irmãs Redentoristas, que naquele tempo eram ainda desconhecidas na Áustria. Cuidado especial dedicava ele às vocações religiosas ou sacerdotais. Sempre muito cauteloso e extremamente reservado nesse assunto, não deixava nada sem tentar quanto se convencia de que alguém era realmente chamado por Deus para a vida religiosa, que ele, em sua fé profunda, só olhava à luz da eternidade. A uma Religiosa da Visitação disse o Servo de Deus uma vez: “Só na hora da morte é que a senhora irá avaliar quão grande e sublime é a graça da vocação religiosa; toda a grandeza do mundo não é nada em comparação dela” — Quando se tratava de levar alguma donzela ao convento, não olhava as dificuldades por grandes que fossem. Uma filha de boa família desejava ardentemente entrar no convento das Carmelitas em Praga, mas a oposição dos pais era formidável; como não encontrasse meios de os convencer, a pobrezinha recorreu a São Clemente pedindo seus conselhos e auxílio. O Servo de Deus determinou a hora em que ela deveria expor novamente aos pais a resolução inabalável do seu coração. Chegada a hora, Clemente estava já à porta. Ao cair o assunto sobre o ponto delicado, batem à porta. Era Clemente que simulando ignorar o caso, perguntou, a sorrir, sobre que versava a conversa, e com tanta eloqüência, vivacidade e calor discorreu sobre a beleza da vocação, que os pais deram de boa vontade o consentimento. Muito significativa é a notícia que Antônia Ott nos narra sobre S. Clemente a esse respeito,, quando escreveu: “Já de há muito eu sentia o mais ardente desejo de me consagrar inteiramente a Deus na vida religiosa, mas roceira e ignorante, não sabia como realizar o meu desejo... um dia vi passar pelas ruas de Viena um sacerdote venerável, que me parecia transfigurado. Dois anos mais tarde, tive de ir novamente à Viena... entrei na Igreja de Santa Úrsula; indizível alegria apoderou-se de mim quando reconheci o padre que oficiava nas cerimônias e que levava o Santíssimo do altar-mor à uma capela lateral... Abri-lhe o coração... O Santo interessou-se por mim, fez-me instruir, aprendi a ler, escrever, contar, e até a falar francês para poder entrar na Visitação”.

CAPÍTULO XII

O Santo Superior Vida interior — Rigor na pobreza — Obediência prática — A vida de simplicidade — Humilhações edificantes — O exemplo escrupuloso — Os defeitos dos Santos — Uma precipitação — O dueto abençoado — A chave do enigma. Clemente, homem de ação, alheio a todo o sentimento estéril, amava e promovia entre os seus a vida interior, que para ele era a alma de toda a vida religiosa. Alegrou-se vivamente quando Deus lhe mandou os dois franceses Pe. Passerat e Pe. Vannelet, que tinham propensão especial e declarada para a vida de piedade e que a compreendiam e praticavam, servindo de modelo para os demais confrades; por esse motivo entregou ao Pe. Passerat a formação e direção dos noviços, e mais tarde, quando precisou do Pe. Passerat para um posto de maior responsabilidade ainda, confiou o noviciado ao outro amigo da vida interior, isto é, ao Pe. Vannelet. Clemente era todo olhos e cuidado para os seus caros confrades; amavaos com amor forte e esclarecido; era antes severo que benigno, não era todavia pedante escravo da letra que mata; quando necessário sabia adaptar, com generosidade, a Regra às circunstâncias. Em se tratando porém da observância regular e da manutenção da disciplina era simplesmente inexorável. Em ponto de pobreza religiosa não admitia concessão alguma nem nas menores coisas. Quando se tratou em Nápoles de introduzir na Congregação o pecúlio, para a maior comodidade dos súditos, Clemente protestou com energia. Aconteceu uma vez que um padre, por descuido, aceitou uma fita de seda e a pregou em seu manto. Era uma falta contra a Regra, que proíbe aos padres o uso da seda, a não ser nas igrejas; essa falta custou-lhe caro. Tendo o Pe. Clemente de fazer uma visita a uma família muito conhecida, levou consigo o referido sacerdote; no meio da palestra perguntou aos presentes, se queriam conhecer um redentorista não observante da Regra, e apontou para o laço de seda, preso no manto do Pe. Martinho Stark, e em seguida despediu-o secamente dizendo: “Pode ir-se embora”. A família edificou-se com a modéstia e a humildade do padre, que com serenidade se retirou sem nenhum sinal de confusão ou desaprovação. Do mesmo rigor usava Clemente em se tratando da obediência. Estava ele uma vez em Babenhausen, cujo Reitor era o Pe. Passerat, homem de extraordinária virtude e de observância regular exemplar. Aconteceu demorar-se o Reitor um pouco mais que de costume nas confissões e retardar sua chegada ao refeitório. Clemente aproveitou a ocasião para humilhá-lo; passou-lhe uma formidável descompostura e por castigo fê-lo tomar a refeição sentado no chão. 67

Procedendo assim queria Clemente dar aos padres e irmãos daquela residência uma ocasião de conhecerem a grande virtude de seu Reitor e se edificarem com a heróica humildade e vida interior dele. A simplicidade devia ser a virtude predileta dos seus padres, e por isso ele nada se poupava para vê-la praticada por todos os seus filhos espirituais, e conseguiu-o admiravelmente, de sorte que nas maiores dificuldades e privações das novas fundações todos se conservavam satisfeitos e contentes. O sábio Pe. Vannelet não julgava indigno da sua pessoa rachar lenha, varrer o quarto, adornar a igreja, ajuntar os materiais para a nova igreja etc. Queria que os Redentoristas aprendessem a vencer-se constantemente e desprezar as vaidades do mundo: eis porque, às vezes humilhava seus padres contra o amor próprio. O Pe. Martinho possuía um exterior atraente e manifestava certa tendência para a elegância e belas maneiras na sociedade; com o fim de abaterlhe o amor próprio Clemente, estando em Viena, mandou-o buscar em um grande jarro água fresca dum poço distante fora da cidade, e num vaso enorme comprar meio litro de leite. Ninguém estranhava tal procedimento porque Clemente era o primeiro a proceder dessa forma e a dar o bom exemplo. A esse rigor unia sempre o sorriso da bondade nos lábios. Quantas vezes sentava-se à mesa sem provar coisa alguma! jejuava com gosto enquanto os outros se alimentavam abundantemente. Não admitia queixas quanto ao preparo das comidas tendo isso como coisa indigna dos discípulos de um Deus Crucificado. Percebendo, às vezes, que o cozinheiro, pouco entendia do ofício, o próprio Vigário geral da Congregação abalançava-se até a cozinha e preparava as refeições para os súditos. Quem com ele viajava, tinha de ir a pé; o exemplo de Clemente porém adoçava o cansaço da viagem. Clemente suportava com calma e tranqüilidade as maiores ofensas e os desacatos feitos à sua pessoa, mas era-lhe extremamente difícil conservar a calma, quando um Religioso que é de um modo especial consagrado a Deus, maxime um súdito seu, cometia alguma falta. Nem sequer os maiores Santos são inteiramente livres de certas imperfeições, que Deus permite para os conservar na humildade. Sendo S. Clemente de um temperamento violento e possuindo uma vontade de aço, por vezes deixava-se levar um tanto por alguns momentos de santa ira e indignação por causa de Deus. Clemente conhecia esses defeitos; logo depois do primeiro ímpeto deixava seguir o arrependimento, levantava então os olhos ao céu e batia no peito dizendo: “Homo nequam sum, sou um servo indigno”. Com tal temperamento do Superior, os súditos tinham, às vezes, de sofrer um pouco. Quem, porém, mais lutava e padecia com isso era o próprio Servo de Deus, não só um ano ou dois, mas sempre até o fim da sua vida, como prova o fato seguinte que ele mesmo contou a um amigo com todos os pormenores. Um belo dia os dois padres Martinho e Sabelli causaram-lhe um desgosto maior do que o Servo de Deus esperava receber. Indignado disse-lhes Clemente que, nesse caso, fizessem o que bem lhes parecesse, que não ficaria mais com eles, mas iria para a América, e sem mais esperar, aprontou a mala em sinal de desaprovação, e retirou-se. Os dois padres ficaram perplexos e confusos sem saberem o que fazer ou pensar. Clemente dirigiu-se à Igreja de N. Sra. Auxiliadora que costumava visi-

tar todas as semanas. Enquanto, prostrado diante do altar, fazia suas preces à Mãe de Deus, compreendeu o mal da sua precipitação, arrependeu-se; quisera voltar, mas a sua posição de Superior não lhe permitia rebaixar-se diante de seus súditos. Clemente esperou que os padres arrependidos o fossem procurar. Seria essa a melhor solução; mas os dois padres nem se lembravam disso. Com o coração pesado e pesaroso levantou-se e devagar e pensativo dirigiu-se ao norte da Áustria rezando sempre. Já estava longe quando ouviu um rumor como de alguém que se aproximava: eram os dois padres que arrependidos lhe suplicavam que voltasse para casa. Nunca acedera Clemente de tão boa vontade a pedido algum como dessa vez. De caminho para Viena disse Clemente: “Infelizmente eu sou assim; dou graças a Deus que tenho esse defeito porque do contrário eu poderia ser tentado a beijar-me as próprias mãos por pura vaidade e consideração para comigo mesmo”. Em geral, porém, Clemente combatia-se e procurava tratar a todos com a maior mansidão possível a exemplo do divino Mestre. Um rapaz de seus 19 anos, de muita boa vontade, mas de uma susceptibilidade única, desejava ardentemente tornar-se redentorista; pediu a Clemente que o recebesse e o Santo colocou-o entre os seus discípulos. Aconteceu que havendo o moço cometido uma falta qualquer, Clemente repreendeu-o como de costume não com luvas de pelica mas com termos claros e concisos. O jovem indignou-se interiormente, fechou carranca e silencioso retirou-se para seu quarto, onde se pôs a meditar sobre a injustiça da repreensão recebida. Não demorou muito bateram à porta; era Clemente que ia ter com o moço; não tinha já a severidade no olhar e no rosto, mas o sorriso nos lábios e um papel na mão; chegou-se e levantando um pouco a fronte ao jovem perguntou-lhe em tom suave: “Você conhece este cântico? vamos cantá-lo juntos” e em seguida lançou-lhe um olhar de ternura como se dissesse: “Não seja mau, eu não quis magoá-lo” Clemente pôs-se a cantar e o jovem acompanhou-o: era um dueto abençoado. No fim do cântico o moço estava outro, alegre e satisfeito. Clemente era não só respeitado mas também amado de seus súditos; alguns até quase se tornaram fanatizados por ele devido às boas qualidades do seu coração, como o provam as cartas dos súditos ausentes, que manifestam as saudades e o desejo ardente de tornar a ver o pai e abraçá-lo ternamente. — Clemente conseguiu conservar o bom espírito entre os seus, conduzindo-os com brandura e energia à própria fonte: Jesus Sacramentado. Educou-os para a oração que dá força e coragem; na meditação de manhã, era ele quem fazia muitas vezes a consideração em voz alta. “Na meditação da manhã, escreve Czech, Clemente nos inspirava seu espírito, o seu amor a Jesus e Maria, a sua dedicação à Congregação e o seu zelo para todas as virtudes”. É essa a chave de todo o segredo. CAPÍTULO XIII

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O amigo das crianças Porque amava a infância — O enxame de crianças — Honrosa excepção — Carlito obediente — A criança judia batizada — O mais belo vestido — As alunas das Ursulinas — Lição a um professor — O Colégio dos nobres — Promessas do arquiduque. Sendo certo que São Clemente, em seu zelo apostólico, não se descuidou de nenhuma classe social procurando levá-la a Jesus, se trabalhou incansavelmente pela conversão dos pecadores, parece ter-se distinguido ainda mais no amor às crianças. E quem o diria! ele, o homem de têmpera de aço, de força máscula, de planos gigantescos, de relações íntimas com as rodas mais aristocratas de Viena, sentia verdadeiro prazer em estar com as criancinhas, em passar com elas bons momentos de sua labuta apostólica. É que o lema da sua vida era a imitação completa da vida do divino Mestre: e Jesus afagava as crianças e com elas se entretinha. Além disso Clemente subordinava também essa atividade ao plano grandioso, que se propusera de restaurar a sociedade pelos princípios sãos do Evangelho. Como for a infância e em geral a mocidade, também será a vida futura; das disposições e da educação das crianças dependem os destinos da sociedade; e por isso Clemente devia começar pela infância. O Servo de Deus ligava à educação uma importância capital, porque, pensava ele, se acaso as más companhias vierem mais tarde, conjuntamente com as paixões, arrastar os pobres corações para o abismo, estes, nos momentos da reflexão e da desilusão, facilmente se recordarão do que ouviram ou aprenderam na infância, e espontaneamente se lançarão nas mãos do Redentor mudando de vida. Como o Servo de Deus, em todos os seus trabalhos, não procurava senão o bem das almas e a glória de Deus, gostava dos afazeres, que facilmente permanecem encobertos aos olhos do mundo; é também por mais essa razão que se dedicava de um modo todo especial à educação da infância. No alto do púlpito um dos assuntos mais freqüentemente tratados, explicados e inculcados era a educação dos filhos. “Pais e mães, disse ele uma vez, não vos esqueçais que é de vós que, em grande parte, depende a bênção ou a maldição da sociedade humana, porque a vós é que está confiada a educação da humanidade; formareis uma boa geração se souberdes reprimir a rebeldia de vossos filhos; o que se semeia no coração da criança produzirá fruto na velhice; convencei-vos de que, se fizerdes o que está em vós, Deus dará o incremento e a prosperidade”. O leitor ainda se recordará do quanto S. Clemente trabalhou e fez para as crianças, mormente para os órfãos de Varsóvia. Ora esse mesmo zelo desen-

volveu-o S. Clemente em Viena. Ele mesmo, em pessoa, reunia as crianças da grande Cidade, ensinava-lhes as verdades principais da religião, instruía-as para a confissão e a santa comunhão. O Servo de Deus tinha sorte nessas suas pesquisas para Deus, via-se constantemente rodeado de crianças, que sabia agradar e atrair, segredo esse que nem todos conhecem. A criança gosta de agrado e carinho, contanto que procedam de um coração bondoso e sincero, e o Servo de Deus não regateava os presentes aos pequerruchos: santinhos, medalhas, frutas e doces eram distribuídos com profusão entre a criançada. A Irmã Thadéa descrevendo o Santo nesse particular conta-nos que “quando o Servo de Deus andava pelas ruas da cidade, os meninos corriam para ele, beijavam-lhe as mãos e o rodeavam como um enxame de abelhas; e como Clemente se entretivesse muito alegre e familiarmente com eles, permaneciam em companhia do Santo um bom pedaço de tempo e, não raro o acompanhavam até a residência, onde o Servo de Deus os instruía e os presenteava com santinhos, doces, frutas etc”. Quem toma em consideração o grande plano que S. Clemente se esboçara para a restauração religiosa da Europa, compreenderá facilmente porque é que o Santo se dedicara à educação da infância também nos colégios. É sabido que os Redentoristas se dedicam, por lei, exclusivamente às missões, aos retiros espirituais e a outras ocupações congêneres; e a fim que eles possam mais desimpedidamente dedicar-se à vida apostólica, S. Afonso proibiu-lhes ter a direção de colégios, de seminários etc. Ora São Clemente não podia pregar missões, por a Congregação não ser ainda reconhecida na Áustria e nos outros países do Norte, e por causa dos tempos turbulentos de então, que não lh’o permitiam. Com a licença expressa dos seus Superiores da Itália, que lh’a concederam como por exceção, foi-lhe permitido abrir colégios, cuidar de orfanatos, instruir as crianças nas escolas etc. Nesse ponto o zelo de São Clemente era inexcedível. As crianças, sentindo o afeto carinhoso do Servo de Deus, amavam-no com sinceridade deixando-se influenciar grandemente pela palavra de Clemente, que aceitavam como se fora a palavra do próprio Deus. Ao voltar, uma vez, para casa numa sexta-feira, São Clemente teve, como sempre, a companhia de diversas crianças entre as quais se achava um rapazinho vistoso e de bons modos, por nome Carlos, filho do Conselheiro de Sua Majestade o imperador Francisco I. Como era de manhã, o Servo de Deus perguntou ao pequeno, que é que sua mãe lhe iria preparar para o almoço, ao que o menino ingenuamente respondeu que iria comer carne etc. como de costume. O Santo não perdeu vasa de ensinar o pequeno e disse-lhe compassadamente: “Carlito, temos obrigação de executar todos os preceitos da Santa Igreja, e por isso não podemos comer carne nas sextas-feiras; temos de fazer esse pequeno sacrifício por amor de Nosso Senhor que morreu por nós em uma sexta-feira”8. Em seguida pôs-se a falar, com coração, na Paixão e Morte de Jesus descrevendo-a em vivas cores de modo acessível às crianças, e no direito que a Igreja tem de nos dar suas leis etc. Por fim o rapazinho depositou um ósculo na mão do venerando sacerdote, que conquistara um trono em seu pequeno coração, e foi-se para casa. — A hora do almoço percebeu o pequeno que a cozinheiro preparara carne e lembrou-se das palavras de São Clemente; com toda a modéstia e respeito 69

aproxima-se do pai e diz-lhe: “Papai, hoje eu não como carne”. Supondo que o pequeno estivesse doente, perguntou-lhe a causa, ao que o menino respondeu: “É por ser sexta-feira; a Santa Igreja proíbe comer carne no dia de hoje em memória da sagrada Paixão de Nosso Senhor”. O pai, despeitado pela lição que o próprio filho lhe passava, cerrou os sobr’olhos, como que a mostrar superioridade e a abafar os remorsos da consciência, e perguntou: “Quem foi que t’o disse?” — “O Pe. Clemente”. — O nobre senhor indignou-se, enraiveceu-se, exasperou-se afirmando que nenhum padre mandava em sua casa, que não era o padre que comprara a carne e que não tinha que determinar o que devia ser preparado na cozinha; em seguida com um tom de espantar, dirigindo-se ao menino, intimou-o: “Põe-te já a comer!” O pequeno pôs as mãozinhas e, os olhos a derramar lágrimas, pediu ao pai que por amor de Deus o dispensasse daquela ordem. Mais enfurecido ainda com a resistência do pequeno, com voz imperiosa e sobr’olhos carregados diz ao pequeno: “Retira-te da minha vista; hoje não comerás mais coisa alguma”. O menino levanta-se e, os olhos baixos, arrasados de lágrimas, vai ter com a mãe e enxuga as lágrimas no avental dela. Enternecida pergunta esta ao filho o que se passara. Ao tomar conhecimento do caso, consola-o dizendo: “Não chores, meu filho; vou preparar-te uma comida de farinha”. Carlito, porém, sacudindo brandamente a cabecinha inocente diz: “Não, mamãe, papai disse que eu não comesse nada hoje, devo e quero obedecer-lhe; o Pe. Clemente nos disse tantas vezes ‘meninos, obedecei a vossos pais’; mamãe, não tenho medo, eu agüento passar o dia sem comer”. A mãe, tomando as dores do filho tão obediente e amoroso, dirige-se ao pai, e depois de eloqüente filípica pergunta-lhe na certeza do triunfo: “Então queres que nosso filho morra de fome? carne ele não come, e outro alimento não quer tomar porque tu lh’o proibiste; isso estão é coisa que se faça?” Ao perceber a obediência do filho o coração paterno enterneceu-se; o pai chamou o pequeno, louvou-o dizendo: “Pois bem, meu filho, às sextas-feiras não comerás carne de hoje em diante, e agora come o que tua mãe te vai dar”. O conselheiro do imperador encheu-se de admiração e respeito para com o Pe. Clemente que soube infiltrar no ânimo da criança tanto respeito e obediência aos pais, e em própria pessoa levou o pequeno a Santa Úrsula para que fosse o coroinha do Pe. Clemente. O que atraía São Clemente para as crianças, não era nenhum motivo natural de sentimentalismo doentio, mas unicamente a inocência que via estampada no rosto da criança e que queria conservar e adornar. Nos primeiros anos da estada de Clemente em Viena deu-se lá um caso edificante, mas singular. Uma família judia tinha uma empregada católica de grande piedade, mas também de inconcebível ingenuidade. Na família havia uma menina em extremo galante de seus dois anos de idade. A empregada, amiga íntima da criança, contristou-se com o pensamento de que a menina, embora tão boa e tão formosa, não poderia nunca entrar no céu por não ser batizada; e esse pensamento a contrariava e incomodava dia e noite. Por fim julgou encontrar uma solução, que lhe pareceu uma inspiração do céu. quando criança aprendera nas aulas de catecismo, que em caso de necessidade qualquer pessoa pode e deve batizar, e isso sem haver distinção de homem ou mulher, cristão ou pagão, sem padrinhos ou velas, sem cerimônias e, mesmo, sem ser da Igreja. Raciocinou, como pôde, e

convenceu-se de que o caso da criança judia era um caso de extrema necessidade, porque do contrário, a criança nunca seria batizada e por isso nunca veria a Deus no céu por toda a eternidade. Fechando-se no quarto com a criança, tomou água limpa e despejando-a sobre a cabeça da menina pronunciou ao mesmo tempo, as palavras: “Eu te batizo em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo”. Idéia tão geniosa ela nunca a tivera em sua vida, guardou segredo inviolável e o coração a transbordar de contentamento pela ação heróica e generosa que acabava de praticar, foi triunfante participar tudo a uma das Irmãs Ursulinas, que não sabendo o que dizer a respeito, mandou-lhe expor todo o caso ao Servo de Deus, o que ela fez sem o menor acanhamento, esperando receber do Santo os mais rasgados elogios. Ao ouvir o caso, porém, Clemente abriu os olhos, mostrando admiração, que não era nada sinal de aprovação. A criança estava batizada, era pois necessário registrar-lhe o nome no livro dos batizados, participar o caso à autoridade, dar-lhe uma educação cristã; ora tudo isso comprometia a pobre empregada que tudo fizera com tão boa intenção. Que fazer em semelhantes conjunturas? Clemente teve uma idéia singular. Não querendo que a criança batizada fosse educada no judaísmo e vivesse como os hebreus, disse à empregada: “Recomendemos o caso a Nosso Senhor; talvez queira Deus levar a criancinha para o céu. “Em seguida pôsse a rezar e mandou que as Ursulinas também rezassem nesse sentido. E de fato, poucas semanas depois veio a pequena a falecer e Deus levou-a ao paraíso. Esse caso encerra uma bela instrução e ao mesmo tempo uma grande consolação para os pais. A alma vale infinitamente mais do que o corpo, a vida no céu é imensamente preferível à vida terrena cheia de misérias e amarguras. Quando Deus chama a si uma criança, na flor dos anos, Ele o faz por misericórdia prevendo talvez a perdição futura da criancinha. É pois justo, que os pais se conformem com as disposições divinas, e longe de se rebelarem contra os juízos de Deus, se curvem reconhecidos diante Dele, aceitando de suas mãos benignas essa provação. É escusado dizer que somente por causa da salvação da alma da pequena criança é que S. Clemente pedira a Deus, se dignasse tirá-la deste mundo. Só assim é que nos compreendemos a palavra do Espírito Santo: “Foi arrebatado para que a malícia não lhe mudasse o entendimento, ou para que não seduzisse sua alma o aparente” (Sb 4,11). Prazer especial sentia São Clemente, quando podia preparar alguma criança para fazer com fruto sua confissão e receber pela primeira vez a santa comunhão. Entre essas crianças havia uma menina galante chamada Carolina Zichy, filha de uma rica e nobre condessa. Essa menina esteve sob a sábia direção de S. Clemente até a morte dele e sentiu sempre um ardente desejo de abandonar o mundo e voar para um convento, o que porém não conseguiu, por ter de tratar de uma tia que dela não podia prescindir; quando esta porém veio a falecer, Carolina, embora avançada em anos, entrou para o convento das Visitandinas em Bruxelas. Quando menina era ela de uma ingenuidade encantadora. Uma vez numa das aulas de catecismo, S. Clemente falou sobre o céu, mostrou a beleza empolgante, arrebatadora dos Anjos e Santos, animando as crianças com as palavras: “Todas as crianças boas para lá irão, pois que lá mora Jesus com sua Mãe e os Santos e os Anjos; a beleza do céu é sempre nova, lá não há doenças nem morte, nem fadigas nem trabalhos, mas só alegria 70

e regozijo em N. Senhor”. A menina era toda olhos e ouvidos às palavras fluentes e interessantes de Clemente; de repente porém uma como nuvem sombria passou-lhe pela fronte. A pequena lembrou-se do seu vestidinho e temendo não o receber novamente no céu, perguntou interessada ao Santo: “Lá no céu a gente também tem um vestidinho bonito?” O catequista sorriu-se da ingenuidade da interlocutora dizendo-lhe: “Ó tolinha, o mais belo vestido que pudesses ter neste mundo, não passaria de uma hediondez em comparação da glória que tu receberás um dia no céu”. Esse belo vestido a que se referiu o Santo é a glória celeste tecida dos raios puríssimos do céu, reduzindo às sete cores do arco-íris, mais fulgurante que o esplendor do sol no auge do seu brilho, é a graça santificante que nos tornará semelhantes aos Anjos de Deus. Considerável era a influência exercida pelo Santo sobre as alunas das Ursulinas, embora não fosse ele o seu professor. As boas irmãs reconhecendo a fundo a santidade do Diretor espiritual não deixavam facilmente passar uma ocasião sem levar a S. Clemente as numerosas alunas a fim que as abençoasse e assim a bênção do céu pairasse sobre o instituto. O Santo do seu lado, grande amigo das crianças, era todo desvelo e solicitude para com as meninas, que o veneravam e lhe obedeciam como a um pai e protetor. Entre outras havia uma natural da Silésia prussiana, que ouvia sempre com a maior atenção e interesse os sermões do Servo de Deus deixando seu coração receber em cheio os ensinamentos tão prudentes e salutares do Santo, os quais a haviam de acompanhar a vida inteira; não poucas vezes dirigia-se ao Santo para lhe expor suas dúvidas e receber os seus conselhos e a sua bênção. Terminado o curso colegial, a pequena teve de voltar para casa; o pai foi buscá-la, mas ao chegar a hora da despedida, a menina pôs-se a chorar, desatou-se em prantos ao pensamento da separação das boas irmãs e das companheiras do colégio, e mais ainda, do seu pai espiritual. De nada porém valeram suas lágrimas, foi forçoso partir; ao aproximar-se do Santo a quem queria agradecer os bons conselhos e cuja bênção desejava receber pela última vez, não pôde proferir palavra; soluçando de dor ajoelhou-se aos pés de Clemente, que colocando a mão sobre a fronte da menina, levantou os olhos ao céu, como se quisesse arrancar as bênçãos de Deus para a sua dirigida, e disse: “Minha filha, guarda profundamente em teu coração os ensinamentos recebidos nesta casa; serás sempre feliz e chegarás a uma idade avançada”. Essa bênção teve efeito duradouro e as palavras de Clemente foram uma profecia que se realizou à risca. A moça casou-se com o barão de Pongrácz e, sessenta anos depois desse acontecimento ela ainda contava, com gratidão, os benefícios recebidos de seu santo Diretor. Mais tarde ela deixou tudo escrito afirmando que a devoção a S. Clemente se tornara o patrimônio da família, que nos transes difíceis sempre recorria a sua valiosa proteção. A narração seguinte é mais uma prova do seu zelo pela educação religiosa da infância. “Uma vez, escreve a Irmã Thadéa, encontrou S. Clemente um rapaz completamente abandonado; a fome transparecia de seus olhos fundos e de suas faces encovadas, a pobreza mostrava-se nos farrapos e trapos miseráveis que o cobriam, o descuido via-se no rosto imundo do pobrezinho; isso tudo dava a entender que o menino não tinha nem podia ter uma educação decente. Depois de lhe matar a fome, foi conversando com ele pelas ruas de Viena,

sobre catecismo e religião, em que o rapaz era tão leigo como o sapateiro em jurisprudência. Por fim chegaram ao prédio escolar; Clemente mandou chamar o Diretor do estabelecimento, apresentou-lhe o menino rogando-lhe que o instruísse, que a gratificação correria por conta do apresentador. O Diretor era um dos espíritos fortes e independentes, que julgavam ser a religião boa só para os velhos, que já tem um pé na sepultura, mas não para gente nova que quer gozar da vida, e muito menos para homens que se sacrificam pelo bem-estar da sociedade, e que tem muita outra coisa mais importante a fazer. Enquanto S. Clemente lhe falava, com todo interesse, sobre a necessidade da educação e instrução do menino, começaram a ecoar pela cidade os primeiros sons melodiosos e harmoniosos do sino de Santa Úrsula; momentos depois os outros sinos da cidade, com seus afinados acordes, produziam uma música admirável, que se fazia ouvir até os fundos dos arrabaldes. O Diretor que ignorava a significação daquele concerto harmonioso, julgou-se autorizado a fazer um gracejo de mau gosto a S. Clemente dizendo: “Escute, estão tocando para a bóia”. A essa palavra o Santo mudou de cor, tristeza e compaixão oprimiram-lhe o coração: era um insulto a sua Mãe Santíssima e a Jesus seu divino Filho. “O que? — o sr. é professor e deve ensinar religião às crianças e nem sabe o que significa esse toque de sinos?” Depois de lhe dar uma explicação sobre o Angelus que se toca três vezes ao dia, a saber, e manhã, ao meio-dia, e à tarde em recordação do mistério da encarnação, e depois de lhe mostrar a grande conveniência desse sinal, a qual resulta da obrigação que temos de saudar a Virgem Santíssima em reconhecimento dos inumeráveis benefícios recebidos, instruiu o professor com palavras delicadas, fez-lhe ver o quanto estava longe da verdadeira pedagogia, e o professor, envergonhado das suas palavras descabidas, balbuciou umas frases de desculpa e retirou-se; os ensinamentos do Santo, porém, gravaramse-lhe tão profundamente na alma, que arrependido não pôde continuar no mundo, abandonou-o e internou-se num convento para servir a Deus e a Ss. Virgem com mais fidelidade e amor. A idéia da educação da infância era sempre uma das suas mais solícitas preocupações. Olhando para a grande cidade de Viena deplorava o abandono em que se achavam milhares e milhares de crianças, não só nas classes pobres, mas até entre os nobres e ricos, de sorte que só com temor encarava o futuro religioso da sua Pátria. Já em 1813 acalentara a idéia de fundar um colégio para os meninos das melhores famílias, e não o podendo fazer pessoalmente, insistiu com o célebre Adam Müller a tomar em mãos e a levar avante tão importante empresa. Esse literato conselheiro da corte, aceitou gostosamente a idéia e pôs-se imediatamente a realizar o nobre e grandioso projeto. Para mais o animar na filantropia empresa São Clemente prometeu-lhe três padres Redentoristas para professores. O princípio foi auspicioso, alentado pela mais fagueira esperança; quando porém recorreram ao governo pedindo a aprovação, encontraram as maiores dificuldades; os funcionários públicos temiam que os alunos desse Colégio, orientados por São Clemente, só aprendessem a rezar o terço e cantar ladainhas, e tivessem maior amor a Roma do que a Áustria. O resultado foi que o colégio teve a sorte das demais belas empresas que fracassam pela má vontade de certos indivíduos, dos quais afinal tudo depende. O Servo de Deus porém não era desses que desanimam com qualquer 71

fracasso. O demônio havia triunfado, e Clemente aguardava oportunidade melhor em que Deus haveria de vencer e de manifestar-se indubitavelmente. Alguns anos mais tarde, quando o ruído dos canhões e das guerras já tinham acabado de soar ao longe, Clemente bateu à porta de um senhor nobre de Viena, pedindo-lhe se interessa-se pela idéia e abrisse um colégio para as classes nobres da sociedade vienense, pois que os pobres já possuíam colégios e outros estabelecimentos desse gênero. Naturalmente o Colégio a fundar-se deveria basear-se sobretudo na instrução religiosa, sem a qual toda formação intelectual e moral é necessariamente falha e quase sempre, prejudicial. Esse senhor era Afonso Klinkowström que descreve a idéia do modo seguinte: “Tratase de difundir a consciência católica há pouco despertada em Viena, e limitada então a um pequeno número de homens escolhido, bem como de conseguir por meio da educação cristã uma nova geração não eivada do indiferentismo religioso do tempo, porquanto as ordens religiosas, incumbidas dessa missão, se haviam desviado desse objetivo desde o período da reforma josefina”. Havia tudo, menos o dinheiro para tão grandiosa empresa. Clemente, porém, confiado na Providência, que não os poderia abandonar, saiu com o futuro Diretor aos arrabaldes de Viena, e ao avistar um prédio que se prestava, disse sem mais hesitações: “Compre esse, que Deus providenciará pelo dinheiro”. E Klinkowström comprou-o sem um vintém na algibeira; a confiança do Santo não foi desmentida: Deus enviou um ricaço que emprestou o necessário a juros módicos. A aprovação a obter-se do governo era a questão mais difícil. Clemente pediu a Deus, se dignasse mostrar-lhe, desta vez, o modo mais seguro de conseguir a aprovação desejada. Em vez de se dirigir diretamente ao monarca, foi ter com o arquiduque Maximiliano José, primo do imperador, o qual, católico prático, se deixou entusiasmar pela idéia, e de olhos baixos, depois de fazer seus cálculos, prometeu alcançar do imperador a necessária aprovação desejada. Ora aconteceu que enquanto fitava o chão para não se distrair em seus cálculos, viu que os sapatos de São Clemente estavam rotos, de forma a aparecem as meios de diversos furos. Embora qualquer outro membro da nobreza ou da aristocracia estranhasse semelhante procedimento, tornando-o em conta de pouco caso ou tendo como desconsideração o aparecer assim esfarrapado em audiência oficial, o arquiduque edificou-se com a santidade e desapego do Santo, que se esquecia de si próprio para só se lembrar dos outros. Comovido tomou a peito os rogos do Servo de Deus, e chegou até a fazer a promessa de não tomar açúcar no café, em sinal de penitência se Deus ouvisse o seu pedido e movesse o coração do imperador a aprovar o projeto e o novo estabelecimento de ensino. A aprovação foi concedida pelo monarca e o arquiduque cumpriu com escrupulosa exatidão a sua promessa, não provando mais açúcar em toda sua vida, nem mesmo quando se sentava à mesa com príncipes ou monarcas. Quando alguém lhe chamava a atenção respondia laconicamente, que estava habituado a não tomar açúcar no café. Só ao aproximar-se da morte, é que ele revelou a seu confessor o motivo dessa sua abstinência. O instituto fundado pelos esforços de Clemente, e em parte dirigido pela sua prudência, prosperou admiravelmente recebendo alunos de quase todos os países da Europa v. g. da Alemanha, Áustria, Nápoles, Polônia, Constantinopla etc. Mais de duzentos e dez alunos, que se celebrizaram mais tarde nos diversos ramos da ciência, passaram por ele e prestaram os mais relevantes serviços à Igreja e à Pátria. CAPÍTULO XIV

São Clemente e a mocidade O magnete admirável — Pedagogo ideal — Os êxtases do Santo — Os passeios pela cidade — Medonho temporal — As nuvens no jardim — Amor à pureza — Padre novo — Expor dúvidas — José Lobo — O despertador traidor — Os secretas. Com toda a razão comparavam São Clemente ao magnete, pois que conhecia o segredo de atrair a si todos os corações. Realmente não havia em Viena classe alguma de pessoas que não o procurasse em sua pobre residência para receber seus conselhos ou para procurar consolo em alguma dor ou sofrimento físico ou moral; entre essas pessoas encontravam-se também protestantes, gregos cismáticos e até indivíduos que, em geral, se sentem mal na companhia de algum padre católico. Um atrativo especial sentiam os rapazes que a ele corriam, e a ele se apegavam não o querendo deixar nunca, como se pertencessem à família do Santo. Quando o Servo de Deus descia do púlpito, já alguns estudantes o esperavam na sacristia para o cumprimentar, beijar-lhe a mão ou travar amizade com ele; desejavam achar-se ao seu lado e em sua companhia nas reuniões que se efetuavam, todas as tardes, em sua residência. Um estudante servia de chamariz para o outro; aos poucos aumentou-se consideravelmente o número dos alunos de Clemente, entre os quais se achavam estudantes de medicina, teologia, jurisprudência etc. Grande parte desses estudantes haviam já perdido a fé, outros haviam sido panteístas, ateístas, racionalistas etc. S. Clemente converteu-os radicalmente em grandes amigos da Igreja. Vinte e sete dentre eles abandonaram o mundo e entraram na Congregação do Ss. Redentor, tornando-se colunas da Congregação na Áustria e no resto da Europa além dos Alpes. Era belo e encantador ver os moços jubilosos, sem respeito humano, ajoelhados todos os domingos à mesa da comunhão na Igreja de Santa Úrsula a receber o corpo sacramentado de Jesus. Diariamente achavam-se mais de 60 rapazes na igreja das Ursulinas para à missa das 7 horas empunhando algum livro piedoso, o terço da Virgem, ou rezando todos em voz alta e clara. Quando alguém admirado perguntava a São Clemente como é que conseguira tantos rapazes para Nosso Senhor, respondia ele: “Eu também não sei como é que Deus quis reunir tantos moços ao redor de mim, como se fossem minha guarda de honra”. Isso o Santo dizia com grande humildade, porquanto não desconhecia que amor atrai amor. Ele amava muito a mocidade, e os rapazes retribuíam-lhe na mesma moeda. Para cada estudante era o Servo de Deus pai e mestre, conduzindo todos com a maior prudência no caminho da virtude à prática exata da religião, mesmo nos pontos que pareciam insigni72

ficantes. São Clemente era um pedagogo consumado, de uma prudência extrema e comprovada por uma experiência de muitos anos. A virtude principal de Clemente, como pedagogo, era a caridade incomparável, que o animava a todos os atos e lhe traçava a norma de proceder para com cada um dos estudantes. Dos principiantes exigia pouco, porque os achava ainda fracos na virtude, e não poucas vezes os agradava com algum carinho especial, alguns elogios merecidos, ou com palavras de animação. Aos mais provectos na virtude regateava aplausos, que excitam a vaidade, fomentam o orgulho e tiram a força da virtude; não poucas vezes dizia-lhes verdades sérias, naturalmente com bondade e a seu tempo: em tudo isso porém transparecia o amor que S. Clemente consagrava a seus queridos rapazes, que por isso aceitavam tudo quanto o Santo lhes dizia. Nessas reuniões e, em geral sempre que se achava com os estudantes, falava pouco e isso mesmo com muita ponderação e prudência; um sorriso amável enflorava-lhe constantemente os lábios e a placidez e a bondade resplandeciam de todo o seu físico espelhando a grandeza da sua alma. Sempre que algum estudante a ele se dirigia, Clemente o recebia e ouvia, entretendo-se com ele como se não tivera coisa mais importante a fazer; mesmo nas horas em que a enfermidade lhe acabrunhava o corpo e abatia a alma, São Clemente era para seus estudantes a amabilidade personificada. Depois dos trabalhos penosos do dia, das corridas pela Cidade em visita aos enfermos e aos pobres, ou em benefício da causa santa, encontrava Clemente, à noite, uma multidão de estudantes que já o esperavam, alegres, divertindo-se na residência do Santo cuja casa não tinha nem tranca nem trinco para os rapazes que podiam nela entrar ou sair à vontade. Ao chegar em casa, Clemente os saudava ordinariamente com as palavras originais, que os faziam rir a todos: “Oh! que raça! que grandes marotos!” e depois de pendurar sua capa, entretinha-se um tempo com eles, e em seguida abrindo o armário velho distribuía-lhes o que para esse fim havia reservado dos presentes recebidos: maçãs, nozes, peras, pão, doces etc. Clemente servia-se dessas reuniões familiares e íntimas para infiltrar nos corações e inteligências dos rapazes os princípios sólidos da religião, e animá-los à prática constante das virtudes cristãs. Depois que os moços se haviam divertido bastante, Clemente abria um livro, geralmente da história eclesiástica, e mandava um dos estudantes fazer a leitura, durante a qual o Santo semicerrava os olhos: quando ocorria algum caso mais edificante o Santo interrompia a leitura, para fazer suas explicações e considerações, tendo sempre em vista nesses comentários o bem espiritual dos rapazes. O mais interessante é que os estudantes se sentiam, nessas ocasiões, mais felizes do que se passassem aquelas horas no jogo, nas vendas, nos cabarés e teatros ou talvez em namoros pouco recomendáveis, que excitam as paixões e fazer perder a calma e a saúde. Por vezes sucedia que durante a leitura, mormente quando se tratava da bondade e misericórdia divina, Clemente inclinava a fronte e fechava os olhos a meditar nesses atributos divinos. Então parecia ter a fronte cingida de uma auréola e o rosto resplandecia-lhe com brilho desusado, saindo-lhe dos lábios palavras que traíam os seus transportes interiores, as faces tornavam-se rubras como a púrpura, e os estudantes que o não perdiam de vista, comovidos derramavam lágrimas. Era para nós — conta uma testemunha — o sinal de que a conversa estava acabada, e retiravamo-

nos dizendo um para o outro: “O padre Clemente sente outra vez alguma coisa extraordinária”. Os rapazes não se enganavam. O Servo de Deus sentia que ia entrar em êxtase e, com grande humildade, despedia todos os que pudessem ser testemunhas desse prodígio. No verão ou no outono, quando o tempo era bom e convidativo, o Servo de Deus encurtava a leitura e saía com os seus rapazes pelas ruas da Cidade, escolhendo para seus passeios os lugares mais movimentados de Viena. Embora Clemente andasse sempre com o hábito religioso, manto já usado e sapatos de sola grossa, nenhum dos estudantes se acanhava de sair com ele a passeio. Às vezes detinham-se no meio das ruas, muito de indústria; os estudantes agrupavam-se ao redor dele a ouvir algum caso interessante. A curiosidade atraía então para Clemente a multidão de transeuntes ou dos desocupados, aos quais o Servo de Deus não deixava de fazer algum sermão necessário ou útil. Quando das torres de Viena soava pela cidade o poético toque do Angelus, os estudantes descobriam e, em plena rua, rezavam, silenciosos, as três AveMarias em louvor da Mãe de Deus. Não poucos dos que passavam recordavam-se então que eram católicos, imitavam o bom exemplo dado pelos rapazes agrupados ao redor do Servo de Deus e habituavam-se a esse ato tão louvável, que havia já desaparecido em Viena. Não era sem motivo que São Clemente gostava de reunir, à noite, os seus rapazes: sabia que as horas noturnas são as mais perigosas para os jovens, cujos corações inocentes facilmente se deixam perverter e ilaquear pelo inimigo das almas; é por isso que o Santo em geral os detinha até a hora em que deviam ir acomodar-se. Numa dessas reuniões desencadeou-se uma vez, horrível tempestade: os relâmpagos cruzavam-se nos ares, os trovões sucediam-se sem cessar, o temporal era medonho ficando todos transidos de terror. Mesmo depois de cessada a tormenta via-se ainda o pavor estampado no rosto dos rapazes. São Clemente não deixou passar a ocasião: fez a seus estudantes uma preleção sobre as palavras de Jesus no Evangelho de S. Mateus (24,27): “Do modo como um relâmpago sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser também a vinda do Filho do Homem”. “Isso acontecerá, disse Clemente, no dia da nossa morte, em que a nossa vida inteira há de patentear-se aos nossos olhos com a velocidade e claridade de relâmpago; a luz com que a veremos, será inteiramente outra, bem diversa daquela com que agora encaramos a vida, será a luz da eternidade”. A pregação foi tão forte e a ocasião tão asada, que nenhum dos estudantes se distraiu nem perdeu palavra alguma saída dos lábios do Servo de Deus. Terminada a alocução não houve quem não quisesse fazer sua confissão geral. Entretanto nem todas as pregações de São Clemente eram graves como essa do trovão; isso seria naturalmente contraproducente porque os rapazes gostam, em geral, de novidade e de expressões e expansões de alegria; aliás o coração bondoso de São Clemente não lhe permitia tratar com aspereza os seus caros estudantes que constituíam a sua coroa e a sua glória. “Há tempo para tudo, diz o Espírito Santo, para descansar e trabalhar, para chorar e rir”. O Servo de Deus gostava de ver seus rapazes alegres e contentes, e mostrava-se 73

magoado quando percebia algum deles entristecido. Ele mesmo permitia-se algum gracejo inocente contribuindo assim, de sua parte, para a hilaridade geral. Em Viena havia um senhor muito rico e religioso, por nome Szecheny; esse conde húngaro era dono de uma vivenda magnífica, ou antes, de um castelo suntuoso, circundado de um elegante jardim e vistoso parque. Uma das maiores alegrias do conde era receber a visita de S. Clemente e tê-lo consigo nas horas das refeições para assim se entreter com ele familiarmente e ouvir os sábios e práticos ensinamentos, que abundavam dos lábios do Santo, que era seu Diretor espiritual e o educador dos seus filhos. Madlener, o discípulo predileto de Clemente, costumava acompanhá-lo nessas ocasiões; Madlener era panteísta e gostava de filosofar. Num desses passeios à casa do conde Szecheny, o filósofo esquecendo-se da terra pôs-se a considerar as nuvens pardacentas encasteladas no firmamento a forma figuras curiosas de homens e animais, de castelos e cidades, sempre novas e interessantes, figuras essas, que só Madlener via. Na próxima reunião dos rapazes Madlener não pôde conter-se e pôs-se a descrever as belezas das nuvens do castelo do conde Szecheny; os estudantes riam-se a bandeiras despregadas da ingenuidade do filósofo panteísta, com a aprovação de Clemente que não deixava de tomar parte ativa na hilaridade geral. Quando no dia seguinte Madlener quis entrar e abriu a porta, Clemente a sorrir-se com os estudantes saudou-o com a pergunta: “Então Madlener, no jardim do conde há nuvens bonitas, não é”? Essas palavras, que não ofendiam a Madlener, tornaram-se por algum tempo a saudação com que era recebido o filósofo panteísta, que mais tarde se tornou um santo Redentorista. Por causa da bondade de seu coração, muitas vezes uma única palavra do Santo era bastante para alegrar sincera e intimamente os jovens. Clemente exercia sobre eles uma verdadeira fascinação, em que tudo nos permite ver um condão sobrenatural. Um dia, conta Werner, encontrei um grupo de rapazes que saíam da casa dele, os olhos a faiscar contentamento, o júbilo estampado no rosto; supondo que ele lhes houvesse dirigido algum discurso singular e extraordinário que os impressionasse, perguntei-lhes o que é que os fazia entusiasmar tanto. — “Ah! responderam eles, coisa tão linda que jamais temos ouvido na vida”. — “Mas que coisa disse hoje o Pe. Clemente?” Ah! ele disse: “Rapazes, sede bons e tende juízo”. Além da convicção religiosa, procurava Clemente, de um modo todo especial, implantar nos corações dos jovens o amor à bela virtude, muni-los para os combates renhidos, que a mocidade costuma travar com os inimigos da pureza. A conversação com o Santo inspirava aos jovens compreensão e amor para a beleza dessa virtude angélica. João Pilat, um dos seus discípulos, disse: “Sempre que ele me abraçava, sentia eu em mim o amor divino”. Os conselhos nesse sentido eram mais do que abundantes; a cada passo Clemente falava da pureza como adorno da alma e fonte de paz e alegria espiritual; aconselhava a recitação do terço nos passeios pelas ruas da cidade, proibia terminantemente a leitura dos romances e poesias eróticas, chamava-lhes a atenção prevenindoos contra as más companhias que costumam ser um dos mais perigosos laços de Satanás, aconselhava a recepção devota e freqüente dos santos sacramentos, maxime da santa comunhão. Com um empenho todo especial pedia aos

jovens que fugissem da ociosidade e procurassem estar sempre ocupados a exemplo de S. Jerônimo que dizia: “Semper ter diabolus occupatum inveniat” i. é, o diabo deve encontrar-te sempre ocupado. Mormente quando tinha de tratar com sacerdotes novos ou com teólogos, acentuava ainda mais: “um padre novo deve estar ocupado o dia inteiro, do contrário acabará mal”. O Servo de Deus gostava quando os moços expunham, nas reuniões, suas opiniões, dúvidas, desejos etc. Quando por acaso se originava entre eles alguma contenda ou discussão mais forte, Clemente intervinha com toda calma e restabelecia a harmonia abalada. O Santo, detestava a hipocrisia e não admitia, nem de leve, em seus rapazes; era difícil enganar o Santo, porque ele, no dizer de Werner, enxergava através das paredes. Entre os discípulos de Clemente não havia só santos, nem só estudantes de boa vontade que aspiravam à perfeição: havia também alguns velhacos, mas isso não admira porquanto entre os doze Apóstolos também houve um traidor. Ao número dos rapazes, que freqüentavam a casa do Santo, pertencia um que, judeu de nascimento, se fez batizar na idade de dezessete anos. De inteligência aguda e perspicaz, passou muitos meses em Constança, comensal de Talberg, pelo qual foi recomendado à Propaganda, que aceitou em Roma, com intuito de o formar para missionário a trabalhar futuramente na conversão dos judeus. José Lobo era o seu nome, e de lobo era seu procedimento, pois que o batismo não conseguiu convertê-lo em cordeiro de inocência e sinceridade. De Roma mantinha correspondência secreta com os protestantes, seus amigos, defendendo a heresia, e ridicularizando os dogmas e os ritos da Santa Igreja. Depois de ano e meio de experiências reconheceram os professores que o rapaz não se prestava para a carreira sacerdotal e fecharam-lhe as portas do seminário. Fixando residência em Viena não tardou a sentir a fome que lhe bateu à porta, horrível e desesperada; lembrou-se da generosidade de Clemente, escreveu-lhe pedindo auxílio e declarando o desejo ardente de ser admitido entre os zelosos filhos de Sto. Afonso. Movido de compaixão o Servo de Deus foi visitar o autor da carta para se convencer de tudo e tomar-lhe o pulso. No meio da palestra percebendo certas vacilações na fé e nas opiniões religiosas, o Servo de Deus procurou convencêlo; o hipócrita ouviu tudo com o maior interesse e protestou querer sempre e em toda parte viver como um filho obediente da Santa Igreja, pela qual estava pronto a derramar o sangue e dar a vida. Embora não se sentisse bem na companhia do rapaz, Clemente o aceitou franqueando-lhe as portas da sua casa, em atenção aos reiterados pedidos dos grandes amigos Werner, Madlener etc, e por deferência para com o Núncio Leardi e Cardeal Litta que o recomendaram vivamente. O sr. José Lobo tornou-se em breve o mais piedoso dos estudantes; na igreja não levantava os olhos curiosamente, conservava as mãos sempre postas, permanecia imóvel qual estátua de mármore, ajoelhado no pavimento durante todo o tempo das funções religiosas, por mais que elas se prolongassem, só entretinha conversas espirituais, mostrando enfado e desaprovação quando alguém se lembrava de desviar o assunto para coisas mundanas; ao receber humilhações de seu santo Mestre, baixava humilde a cabeça e calado e calmo 74

aceitava as repreensões. Não obstante tudo isto São Clemente não se iludia a respeito do sr. Lobo. As Ursulinas que, do coro, assistiam às cerimônias da igreja, ao ouvirem a voz melodiosa e limpa que do meio dos estudantes ecoava sonora pelo templo, admiradas não puderam resistir à curiosidade e erguendose nas pontas dos pés puseram-se a olhar para baixo, a fim de descobrirem o dono da voz que tão suave lhes deliciava os ouvidos. Viram o sr. Lobo e encheram-se de admiração por ele, como outrora as filhas de Judá que subiram aos muros encantadas pela formosura excepcional de José, e foram ter com o Servo de Deus para lhe apresentarem os parabéns pela bela e feliz aquisição do moço que edificava o povo com seu comportamento exemplar e com sua devoção sobrenatural. São Clemente franzindo o rosto disse com laconismo: “Não o conservarei comigo”. Como as irmãs se mostrassem estupefatas com essa palavra que não esperavam, o Servo de Deus continuou: “Olhai bem para o rapaz, o rosto, os modos, tudo nele denota um coração irrequieto”. O Santo desconfiava do moço que parecia sofrer êxtases contínuos e fingir exagerada piedade, e por fim não podendo já suportar-lhe a hipocrisia, disse-lhe sem rebuços: “Lobo, Lobo, és um velhaco e acabarás na forca”. O Servo de Deus enviou-o a Suíça para ser provado pelo Pe. Passerat, que não tardou expulsá-lo por seu mau comportamento. O rapaz tornou-se luterano, membro da sociedade bíblica da Inglaterra, percorreu a Ásia e a América, procurando nas cinco partes do mundo as dez tribos de Israel; como porém não as encontrasse voltou para a Inglaterra, onde morreu na forca da heresia. Uma vez deram a São Clemente, a guardar, um belo relógio despertador de grande valor. O Santo guardou-o com cuidado em um lugar separado e seguro, pois que se tratava de um objeto alheio e de grande estima; porém mesmo assim, sem se saber como, o relógio desapareceu. São Clemente examinou todos os cantos de sua pequena casa, mandou aos estudantes que o ajudassem, e todos ao verem o Santo um tanto inquieto puseram-se prontamente à procura do despertador. Um aluno do ginásio que lá se achava, manifestou um interesse especial, e mais solícito que os outros remexeu tudo em busca do desertor, entrou por baixo da cama, inclinou-se em todos os cantos, vociferou contra o malicioso que assim causara o transtorno da casa, o desgosto do Santo, a perturbação da alegria geral. Qual não foi o espanto de todos quando o despertador disparou na algibeira do tal aluno do ginásio, traindo-o vergonhosamente! Todos ficaram perplexos, porque naquele canto ninguém o supunha escondido. Clemente fitou-lhe um olhar de compaixão, mas também de repreensão por seu vergonhoso procedimento. O pobre rapaz esconjurando o relógio que batera, quando menos o devia fazer, tremendo como varo verde entregou a Clemente o despertador, tomou o chapéu e retirou-se envergonhado e confundido. Como é fácil adivinhar, a reunião efetuada todas as noites na residência do Santo, não deixou de alarmar a polícia, cujas suspeitas cresciam dia a dia. Dois desconhecidos que se diziam estrangeiros, apresentaram-se numa dessas reuniões e encantaram os rapazes, um por sua simplicidade e fingida piedade, outro pela narração maravilhosa de suas viagens. Só Clemente permaneceu

frio e impassível. Deus lhe revelara tudo. Depois deles se retirarem disse aos amigos: “Esses senhores moram em Viena, são emissários da polícia secreta”. Como esse fato se repetisse muitas vezes, Clemente combinou uma senha com os estudantes, era “Que há de novo?” Essa medida era necessária porque, em geral, como os rapazes no momento da exaltação e do entusiasmo não medem palavras, podiam talvez, inconscientes comprometer a sociedade toda e perturbar a alegria geral.

O bom pastor

CAPÍTULO XV

Em procura do pecador — Magnífica prece — Interessante diálogo — Frederico Schlegel convertido — Klinkowström e sua família — Os preconceitos — Antônio Pilat renuncia a maçonaria — Schlosser e sua família aos pés do Mestre — O temor da penitência na confissão. Lemos no Evangelho do discípulo amado a belíssima parábola do bom Pastor, que não é outro senão o divino Redentor, que conhece suas ovelhas e é por elas conhecido. Repleto de amor promete dar e dá efetivamente sua vida para salvar as ovelhas fiéis. Jesus porém afirma possuir ovelhas ingratas, que abandonaram o aprisco; lastima sua ingratidão, mas declara-se pronto a trabalhar por elas: “importa que eu as arrebanhe, elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só Pastor!” A exemplo de Jesus queria o Servo de Deus ser um pastor zeloso das almas, trabalhar por elas, e reconduzi-las ao caminho da verdade e da fé. O seu coração sangrava ao ver a multidão dos protestantes e judeus que não pertenciam ao redil do Redentor. Do alto do púlpito exclamou uma vez: “Oh! quem me dera receber de Deus a graça de converter os hereges e incrédulos do mundo inteiro, em meus braços e sobre os meus ombros levalos-ia ao aprisco seguro da Santa Igreja Católica”. Essas palavras nos lábios de Clemente, não eram apenas figuras retóricas ou belas frases, filhas de um entusiasmo momentâneo, mas a expressão da pura realidade. Heróicos eram os esforços que fazia continuamente pela conversão dos extraviados. Em todas as ocasiões que se apresentavam, em todas as formas que a prudência lhe sugeria, falava o Santo da Igreja Católica, da sua instituição divina, das suas doutrinas consoladoras, dos seus sacramentos, da felicidade que se sente no seio da Igreja; e tudo isto despejava-se de seus lábios com tamanha eloqüência e tão profunda convicção, que dificilmente alguém poderia resistir à força de suas palavras. Os protestantes e judeus sentiam prazer em assistir as suas reuniões, em que o Santo usava de uma delicadeza extrema mostrando sempre compaixão para com os hereges; fustigava o erro, porém sempre com palavras brandas e delicadas. Como a conversão é uma graça que vem do céu e que só Deus pode conceder, consagrava ao Senhor todo o seu apostolado, pedindo ao bom Pastor que lhe desse as almas dos extraviados, movendo os seus corações e iluminando as suas inteligências. A oração que Clemente rezava constantemente, era a seguinte: “Jesus meu Senhor e Redentor, do trono da vossa majestade e misericórdia, laçai sobre nós um olhar de bondade; Vós nos remistes com o preciosíssimo sangue que derramastes no madeiro infame da cruz. O vosso Pai celestial é também o nosso, pois que sois nosso irmão por vossa 75

natureza humana. Deverão acaso perder-se eternamente tão inumeráveis almas? Se quiserdes, podeis salvar-nos; olhai para as lágrimas da santa Igreja, vossa Esposa, reconduzi-lhe os filhos que apostataram da religião, difundi sobre os extraviados a luz celestial da fé, a única que pode nos salvar e santificar. Se os suspiros do meu amor não merecem ser atendidos por ser eu um mísero pecador, atendei a súplica da vossa santíssima Mãe, a Virgem poderosa e Mãe de misericórdia, que por nós intercede; assim todos se converterão e louvarvos-ão eternamente”. Deus recompensou o seu Servo concedendo-lhe conversões estupendas de inúmeras almas à Santa religião. Não passava, geralmente, uma semana sem que Clemente trouxesse ao seio da Igreja protestantes, calvinistas, judeus etc. As vezes bastava uma única palestra com o Santo para se operar uma conversão dessas. Ao Servo de Deus iam também pessoas que se diziam espíritos fortes, instruídas em muitas coisas, menos em religião, para com ele discutirem, apresentando dúvidas que supunham insolúveis; desejavam confundir a Clemente, mas enganavam-se. Muitas vezes com a explicação de uma única palavra o Servo de Deus desfazia os sofismas, dissipava as dúvidas, solvia as objeções, e, o que era ainda mais admirável, fazia as pessoas saírem convertidas e reconciliadas com Deus. Entre muitos outros converteu o Servo de Deus um dos que se achavam a serviço da arquiduquesa Henriqueta, fazendo que ele em suas mãos abjurasse o protestantismo. O companheiro e comparsa do convertido indignou-se sobremaneira com esse ato, embora fosse um dos que sempre têm nos lábios palavras de filantropia e tolerância religiosa. Como bom protestante resolveu descompor o Santo em plena rua. E de fato, encontrandose pouco depois com o Servo de Deus, lançou-lhe em rosto publicamente o seu procedimento, taxando-o de perturbador da ordem, zelote fanático, afirmando que ninguém deve mudar de religião, mas permanecer até a morte naquela em que nasceu. O Santo recebeu toda aquela afronta com tranqüilidade a exemplo de Jesus, esperando que o infeliz compreendesse a insensatez das suas palavras, pois que nada é mais natural do que a conversão, isto é o abandono do erro e do vício para a recepção da verdade e a prática da virtude; foi para isso que Jesus desceu do céu, quis converter os judeus e os pagãos fazendo-os abraçar a religião verdadeira, que ele nos trouxera do alto, do seio de Deus. Terminado o arrazoado do protestante, Clemente contentou-se em dizer-lhe: “Mas então, porque é que Martinho Lutero não quis viver e morrer na fé em que nasceu?” Embora embaraçado, o Luterano não quis dar a mão à palmatória e puxou outra objeção como soem fazem os protestantes para dar certa aparência de erudição e de grandeza. “Nós todos somos filhos de um mesmo pai que está nos céus, sejamos deste ou daquele credo”. O Santo porém não lhe ficou devendo resposta e disse: “Quem tem um pai, deve ter também uma mãe: se vós, luteranos, tendes a Deus por Pai, onde é que está a vossa mãe? nós católicos temos por mãe a Santa Igreja Católica”. O Luterano era teimoso e desejava mais uma resposta. “A veneração dos Santos, disse ele, é uma superstição católica”. — “Não é verdade, o sr. está enganado, entre Deus e os pecadores são necessários intercessores, e esses são para nós os Santos; assim como necessitamos de intermediários junto dos grandes senhores da terra, assim também nós míseros e indignos pecadores precisamos de intercessores junto 76

de Deus infinitamente santo”. O protestante achou melhor calar-se, porque temia converter-se também, se continuasse a discussão. Seria difícil, para não dizer impossível enumerar nos moldes de uma simples biografia as conversões efetuadas por São Clemente nos anos que passou em Viena; entretanto para a glória do Santo e para edificação de todos colocamos aqui algumas das mais notáveis. O filho do bispo protestante de Hannover por nome Frederico Schlegel foi pelo pai, que desejava fazer fortuna, colocado no comércio, e para isso enviado a Leipzig. — O rapaz inteligente não afeiçoando-se à profissão a que seu pai o destinara, fugiu para longe, e em Göttingen estudou humanidades, entrando em seguida para a universidade de Leipzig, onde se dedicou à filosofia, e pôsse a escrever, e isto com uma fecundidade espantosa. Desejoso de mais expansão a seus vastos conhecimentos, foi a Berlim onde se relacionou com uma judia de rara beleza e de dotes poéticos invejáveis, a qual aos 15 anos se unira em matrimônio a um judeu riquíssimo, banqueiro em Berlim por nome Simão Veith. Esse casamento foi infeliz para ambos, porque a poetisa, afeita aos vôos da fantasia, não se habituou à convivência com um indivíduo frio e contador de dinheiro. A bela judia apaixonou-se pelo poeta Schlegel, que era também artista, e sentiu-se correspondida, embora Frederico fosse oito anos mais novo, e ela já casada há vários anos. Sem mais preâmbulos tratou do divórcio e correu atrás de Frederico. Depois de viverem algum tempo juntos, foram a Paris onde a judia passou ao luteranismo para agradar a Frederico, e recebeu no batismo o nome de Dorotéia e casou-se luteranamente com Schlegel. De Paris dirigiram-se a Colônia onde Frederico esperava uma colocação que, porém, nunca chegou a conseguir. Nesse meio tempo, os dois espíritos irrequietos dedicavam-se aos estudos; percorreram a história e chegaram a conclusão de que a verdade não pode achar-se nem no judaísmo, nem no protestantismo, mas só na Igreja Católica; rezaram e imploraram as luzes do céu, e em 1808 na magnífica catedral de Colônia abraçaram o catolicismo, ajoelhados ao pé do altar da Virgem: dois dias depois receberam a santa comunhão e casaram-se religiosamente com a devida dispensa do Ordinário. Só então é que conseguiram a paz pela qual tanto suspiravam, como escreve a própria Dorotéia em uma carta: “... nesse ano de 1808 derramei lágrimas de íntima gratidão por causa de minha tão grande, nunca merecida felicidade”. Depois da conversão os dois esposos foram à Viena onde Frederico encontrou a colocação desejada. Clemente foi logo escolhido para Diretor espiritual de ambos. Desde então Clemente parecia ser um membro da família Schlegel; quando em 1809 Frederico teve de ir à guerra, o nosso Santo foi o anjo consolador de Dorotéia no assédio e bombardeio da cidade pelos franceses. Dorotéia teve dois filhos do primeiro matrimônio: Jonas e Philippe, que se dedicaram respectivamente ao comércio e à pintura; ambos eram judeus e desejavam abraçar a religião católica, praticada pela mãe, que idolatravam e cuja inteligência admiravam, mas o ambiente em que se achavam e a companhia que freqüentavam na Alemanha fizeram-lhes adiar sempre o seu propósito. Desejosa de vê-los convertidos a mãe chamou-os a Viena, onde os apresentou a S. Clemente que em poucos meses lhes desfez todas as dúvidas, e os entusiasmou para a beleza divina da religião. Pediram o batismo que

lhes foi conferido por Severoli, Núncio Apostólico de Viena. Foi esse o dia mais belo, o dia em que Dorotéia com dificuldade pôde conter a veemência da alegria que lhe inundava a alma. São Clemente tornou-se o Diretor espiritual de toda a família, porque esses dois se tornaram piedosos, dóceis e obedientes aproximando-se com freqüência dos santos Sacramentos. Clemente não os perdeu nunca de vista, nem mesmo quando mais tarde se mudaram para Roma; escreveu-lhes diversas cartas animando-os à perseverança na prática da virtude. A relação íntima com a família e o interesse que o Santo por ela tomava, deduzem-se perfeitamente de uma carta de Dorotéia a São Clemente: “... hoje, véspera da festa dos grandes Apóstolos, não posso deixar de vos escrever uma palavra; não há uma festa de mais importância em que eu não sinta desejo de me achar aos pés do meu pai espiritual para lhe ouvir os conselhos, os ensinamentos e as palavras de sabedoria... Abençoai o meu filho que se abandonou inteiramente à vossa direção, porque ninguém, melhor do que vós, caro pai, sabe guiar-nos para Deus; de coração unidos peçamos a Deus, se digne inflamar o coração do rapaz e iluminar o seu espírito; Vós que conheceis todas as boas e más qualidades, bem como o gênio do meu filho, continuareis a guiá-lo e a dar-lhe conselhos; é disso que depende tudo; peço-vos, queirais amparar-nos com vossas orações, em que tanto confiamos”. O que porém mais admira é que o próprio Frederico Schlegel, o grande literato, o meteoro da sua época, se deixou guiar por Clemente com a ingenuidade de uma criança. O Servo de Deus visitava-o diariamente, já por amizade já porque em sua casa reuniam todas as mentalidades científicas de Viena e até das mais célebres cidades dos outros países. O grande cientista era verdadeiramente piedoso: rezava todos os dias, tinha água benta em seu quarto, o Crucifixo e um genuflexório onde se ajoelhava para as suas meditações diárias; quando pelas ruas de Viena via passar um sacerdote, abandonava a companhia em que se achava e ia cumprimentar o ministro de Deus e beijar-lhe respeitosamente a mão, em plena sem a menor sombra de respeito humano; e ninguém tinha nada que dizer de Frederico Schlegel, porque não havia em Viena quem pudesse medir-se com ele em sabedoria ou em qualquer ramo de ciência; Frederico escreveu muitas obras, mas nunca publicou nenhuma delas, senão depois de ouvir o parecer de Clemente, a quem constituíra juiz da catolicidade dos seus escritos. Uma vez havendo composto uma obra primorosa foi lê-la a seu santo Diretor que a aprovou in totum; terminado a leitura Frederico lançou um olhar perscrutador ao Servo de Deus, como se quisesse ler na fisionomia do Santo a impressão do seu escrito; S. Clemente abraçou o amigo dizendo: “Bem, meu caro Frederico, muito bem, porém melhor é ainda amar Nosso Senhor de todo o coração”. Essa amizade de Clemente não era nada sentimental, visava tão somente o bem espiritual de Frederico, que embora sábio, tinha, como convertido, opiniões singulares a respeito do cristianismo. Uma vez terminada que foi uma das composições que Frederico julgava excelente e magnífica, correu ao seu Diretor para lhe participar a alegria e fazê-lo também deliciar-se com o fruto tão belo do seu espírito; certo do triunfo esperava que Clemente abrisse os braços para o amplexar com felicitações; mas não foi assim; durante a leitura o Santo meneava, por vez, a cabeça em sinal de desaprovação e repetia: “nada, 77

nada, não serve”. O doutor não se deu por achado, tornou-se mais eloqüente na esperança de converter o Santo para as suas idéias, mas debalde; Clemente percebendo que a coisa ia muito além do genuíno sentir da Igreja, interrompeuo bruscamente, mas para não o ofender deu-lhe um abraço com a palavra amiga: “Não deixas de ser o meu Frederico”. Aborrecido com a interrupção e desapontado com o abraço, quis continuar, mas viu-se novamente interrompido por Clemente que desviou a conversa para outro assunto. Desse episódio tiramos a prova de que o amor do Santo, embora sincero, nada tinha de sentimental. Clemente também nos ensina com seu exemplo que em certas ocasiões é um crime permanecer calado; mesmo aos amigos e, às vezes, necessário dizer a verdade com bons modos, e desviá-los do mal, do erro e do vício. Em 1808 estavam reunidos num dos hotéis de Hamburgo diversos rapazes de várias nacionalidades na mais cordial alegria, divertindo-se aos sons de variados cânticos. Entre os rapazes, destacava-se um sueco, protestante, filho de um nobre cavalheiro, que o destinou à vida militar, na qual devia, de degrau em degrau, ascender ao apogeu da glória em magníficos triunfos para o engrandecimento da Pátria. O rapaz, porém, mais se simpatizava com o pincel do que com a espada. Abandonando a carreira militar, dedicou-se à pintura em que não tardou a fazer rápidos progressos. O seu nome era Frederico Augusto Klinkowström; todos os anos, no verão, aproveitava-se das férias para visitar um seu amigo em Hamburgo. Como facilmente se compreende, a alegria no hotel era grande, indescritível, os rapazes cantavam e riam-se, comiam e bebiam sem preocupações de espécie alguma. A companhia crescia na proporção das horas que escoavam, e como nem todos os rapazes tinham a mesma educação esmerada, com cada copo excitava-se mais a conversa, que não tardou a descambar para o lado sensual e livre. Klinkowström, nobre de caráter e sério em sua vida, detestava semelhantes abusos e sentia nojo de gracejos daquele teor; calou-se arrependido de haver entrado naquela casa; pensativo levanta-se e vai à janela para descobrir a causa do barulho que chegava a seus ouvidos. — Qual não foi sua consternação quando viu uma meretriz entrar pela porta que ficava em frente à janela. Chamada pelos estudantes ia ela aumentar a alegria dos rapazes. Seminua aproximava-se ela dançando e sorrindo com a desenvoltura própria de semelhante classe, de forma a endoidecer os pobres moços que não lhe regateavam palmas e aplausos. O nobre sueco horrorizou-se com aquela cena, mas o que mais o impressionou foi a visão que teve no momento; um ancião venerando, sacerdote católico, de batina preta e sobrepeliz branca, estola e pluvial magníficos, olhou para ele sério e, levantando a mão direita, deu-lhe um sinal com o dedo como que a preveni-lo contra o vício e a admoestá-lo a fugir do perigo. O sueco que nunca vira semelhante padre nem outro, que com ele se parecesse, compreendeu o aviso, tomou o chapéu e retirou-se. A impressão daquela aparição, porém, nunca mais se desfez de sua alma; ao chegar em casa lançou na tela a figura majestosa e grave do sacerdote que lhe apareceu em Hamburgo. Depois de andar pelo mundo, e de ver muitas cidades, entre elas Paris e Roma, fixou sua residência definitiva em Viena, onde o príncipe Metternich lhe deu uma boa colocação; na capital da Áustria uniu-se em matrimônio com Luiza Mengershausen que conhecera em Paris. Em Viena

Klinkowström não tardou a relacionar-se com a família de Frederico Schlegel, que embora católica, se afeiçoava ao protestante Klinkowström. Num domingo, além de ir a missa, como é obrigação de todo católico, Frederico quis também assistir à reza e levou consigo o amigo protestante, que o acompanhou com gosto. Era um pouco tarde e, terminada a reza, o padre voltava já para a sacristia. Ao avistar o sacerdote Klinkowström abriu os olhos como que a perguntar, se estava a sonhar ou acordado; aquele padre era o mesmo que lhe aparecera em Hamburgo, o pluvial era da mesma cor, tinha os mesmos adornos e era do mesmo feitio, fitou o rosto do sacerdote e reconheceu os mesmos traços, porém um tanto mais amáveis. Ao sair da igreja o nobre sueco interessou-se pelo sacerdote que acabava de presidir às funções, perguntou por seu nome e sua residência. Frederico Schlegel, penitente de Clemente, deu naturalmente todas as informações, fez-lhe as melhores referências a respeito do Santo, de sorte que Klinkowström não se demorou em fazer-lhe uma visita na igreja dos Italianos, em que ele então se achava. O protestante foi recebido com toda a amabilidade e delicadeza pelo Reitor da igreja que o cativou totalmente. Como essas visitas se reproduzissem muitas vezes, teve Clemente ocasião de falar-lhe sobre a Igreja Católica, que é a única arca de salvação, sobre a falsidade do Protestantismo e sobre a obrigação de pertencer à verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Klinkowström, temendo ofender sua esposa que o idolatrava, não teve coragem de dar o passo decisivo, mas de lá em diante deixou de freqüentar o templo protestante; sentia gosto especial pelo culto católico na igreja dos Servitas, tomava porém cuidado em ocultar tudo isso à sua esposa. Como as mulheres são em geral desconfiadas e finas nas suas observações, esta não tardou a perceber a mudança em seu marido e já o supunha católico. Cheia de malícia perguntou um dia a seu esposo, porque é que não freqüentava mais o culto protestante, e porque ia todos os domingos ao templo católico. Surpreendido e desapontado com a pergunta, procurou Klinkowström um pretexto qualquer, que não lhe foi difícil encontrar: “É que amo a música, e esta lá na igreja dos Servitas é celestial e quase divina”. Embora a mulher não acreditasse muito nessas palavras do seu esposo, Klinkowström deu graças a Deus por haver encontrado tão depressa uma desculpa tão verosímil. Clemente do seu lado não insistia com o sueco, porque queria dar tempo ao tempo. Em 1813 rebentou a grande guerra com os franceses e Klinkowström com seu cunhado João Pilat teve de pegar em armas para defender a Pátria, ficando as duas jovens esposas a chorar a ausência dos maridos e a consolar-se mutuamente; nesses duros transes era Clemente o anjo consolador daquele lar. Embora protestantes, essas duas senhoras passavam os dias na oração e prática das virtudes, para que Deus se compadecesse dos seus maridos. Para a ceia de Quinta-feira Santa prepararam-se com especial desvelo e cuidado e em chegando o grande dia, com todo o respeito se aproximaram do templo, executando a cerimônia do ritual protestante; nas orações, porém, permaneceram frias não sentindo alegria espiritual nem paz da alma. Nós católicos, compreendemos perfeitamente a causa da aridez espiritual das duas senhoras, pois que os protestantes não têm verdadeira comunhão, nem sacerdócio como nós o temos, consagrado a Deus por um sacramento especial. Entristecidas voltaram as duas para casa 78

silenciosas e cabisbaixas, sem coragem de comunicar uma à outra o que se lhes passava na alma. Em casa recomeçaram seus trabalhos costumados, até que uma interrompeu o silêncio: “Hoje tudo me enfastiou no templo; que modos grosseiros tinham os fiéis ao aproximarem-se da ceia do Senhor, fiquei indignada!” Enquanto assim desabafavam seus corações, ouviram bater à porta; era Clemente que ia curar as duas almas. Notando a mudança operada naquela casa, perguntou pela causa da tristeza inconcebível naquele dia de alegria, dia da ceia do Senhor, para a qual elas tanto se haviam preparado; as senhoras abriram os corações e não deixaram nada por contar. Foi para Clemente uma ocasião azada para falar da insipidez do protestantismo; discorreu com entusiasmo e fogo e por fim acrescentou: “Se quiserdes a paz, fazei o que já vos tenho dito tantas vezes, despi as meias pretas9 e renunciai ao protestantismo”. As senhoras ficaram pensativas; a Igreja Católica com suas belas cerimônias agradava-lhes deveras, mas encontravam um grande empecilho para a sua conversão: era a confissão. Elisa, a mulher de Pilat, a sorrir, um tanto maliciosa levantou a voz e acentuou: “Mas a confissão... a confissão!” ao que S. Clemente respondeu: “A confissão não vos custará a cabeça; fica por minha conta”. Experimentado na arte de dissipar temores, Clemente pôs-se a indagar delas as circunstâncias pormenorizadas da sua vida, as alegrias e as tristezas que houveram no mundo etc. Percebendo que o Servo de Deus se interessava por elas, contaram muito mais do que Clemente perguntara. Terminada a conversa o Santo dirigindo-se à Elisa disse: “Que quer mais? a senhora já fez a sua confissão, pouca coisa falta ainda”. Foi água na fervura, a nobre dama caiu em si, reconheceu que suas dúvidas não passavam de preconceitos, estreiteza de idéias, orgulho herético; estudou ainda mais recebendo de Clemente instruções especiais, e poucas semanas depois foram as duas senhoras acolhidas no grêmio da Igreja Católica. Luiza, a esposa de Klinkowström, tornou-se tão piedosa, que, na expressão de Clemente, poderia transportar montes em sua fé tão profunda. A alegria de Klinkowström foi indizível; ao voltar do campo de batalha abjurou, com prazer, o protestantismo nas mãos de seu amigo. Elisa e Luiza tinham ainda uma irmã solteira, por nome Augusta que, apesar de conhecer a falsidade do protestantismo e a sublimidade divina da Igreja Católica, não se animava a abandonar a sua religião por ser filha de um pastor protestante, cuja crença julgava dever seguir por ser ainda solteira. Sincera e munida de boa vontade expôs toda a dificuldade a S. Clemente e mais algumas coisas que a desanimavam. A primeira dificuldade que a abatia era o dever de, como católica, adorar o papa, porque ela só adorava Deus, Criador do céu e da terra, e não podia prestar essa homenagem a uma criatura, como fazem os católicos segundo o catecismo. Clemente sorriu-se, com toda paciência fê-la ver que, segundo o catecismo, nós só adoramos Deus e mais ninguém, pois que o contrário seria crime de idolatria, e que por isso, se ela se fizesse católica, não precisaria adorar o papa, mas respeitá-lo e obedecer-lhe como representante de N. Senhor. — Uma outra dificuldade impedia-lhe a entrada na Igreja Católica: não lhe era possível gostar dos paramentos com que os padres celebram por terem a forma de rabecão. O Servo de Deus revestiu-se ainda de paciência e respondeu, que isso não tinha importância e que ela podia ser católica fervorosa e achar feios e

até hediondos os paramentos, porque isso não era questão de religião, mas só de sentimentos estéticos. Uma terceira dificuldade, a maior de todas, causavalhe espanto, não podia compreender, como é que alguém pode rezar aos Santos e implorar-lhes a proteção; achava que era uma ingratidão monstruosa para com Deus, depositar em outros e não nele a sua confiança. Na hora não quis o Servo de Deus dar-lhe uma explicação completa e teológica sobre a veneração dos Santos, contentou-se em dizer-lhe: “Se a senhora não quiser invocar os Santos, não os invoque; isso não impede que a senhora seja católica”. Augusta estava satisfeita, não tinha já dúvidas em seu espírito: não precisava adorar o papa, nem louvar os paramentos, nem rezar aos Santos, e podia assim mesmo ser católica como suas duas irmãs. Em pouco tempo abjurou a heresia e, anos depois, entrou no convento das Visitandinas onde professou e morreu santamente. — Enquanto tudo isso se passava Pilat, achava-se na França e ignorava o ocorrido em Viena. Ao voltar estranhou a mudança, mas não se perturbou; embora católico de batismo, pouco ou nada se incomodara com a religião, nunca sofrera dor de cabeça nem reumatismo nos joelhos por causa de orações demasiadas, nem dor de estômago por rigorosos jejuns; era um desses que acham a religião boa para as mulheres que não têm o que fazer e para as crianças que se deixam facilmente atemorizar, mas nunca para os homens, espíritos fortes, que só crêem o que vêem, e que não têm tempo a perder nas igrejas, reuniões etc; achava que toda a religião é boa, contanto que se seja um homem honesto. Essa idéia que bebera na maçonaria, acompanhou-o sempre, fazendo dele um adorador da humanidade e da vida cômoda. Sua esposa tornou-se-lhe anjo da guarda e incansável apóstola. E Pilat a idolatrava! Suplicou-lhe com lágrimas nos olhos, renunciasse à maçonaria que sob o manto da humanidade e filantropia, só tem por fim exterminar a Igreja, derrubar os altares e os tronos e sobre as suas ruínas levantar o trono da revolução, pediu-lhe que se tornasse católico prático, para assim possuir a paz da alma. Aos pedidos pessoais uniu orações fervorosas e por fim levou-o ao Santo para que o instruísse e arrancasse das garras da maçonaria. Clemente não tardou a ouvi-lo de confissão, tomou-lhe as insígnias da maçonaria: o avental, a colher, o diploma. Desde esse dia Antônio Pilat foi um dos mais assíduos penitentes de São Clemente, e isso não obstante a posição nobre que ocupava na qualidade de secretário do príncipe Metternich. Para se fazer idéia da probidade de Pilat, basta ouvir o que escreveu dele seu confessor depois de Clemente: “Para ir ao escritório, Antônio Pilat tinha de passar perto da Bolsa; um dia chegou-se perto dele um cambista que lhe sussurrou alguma coisa ao ouvido. Prometeu-lhe enorme quantia, se, quando passasse no dia seguinte, lhe dissesse uma palavra ao ouvido, ainda que fosse só ‘Bom dia’. Embora com essa única palavra pudesse ganhar uma boa fortuna, Pilat não a quis pronunciar para não concorrer para um manejo injusto. Compreendeu que o homem se queria servir da palavra, que ele, secretário do príncipe Metternich, lhe diria com ar misterioso para lançar uma notícia de sensação a assegurar assim o êxito de uma especulação arriscada”. Na casa de Pilat encontrou-se Clemente com um senhor muito conhecido nas altas rodas sociais, por nome Frederico Schlosser, aparentado com o célebre Goethe. Poliglota e poeta, escreveu numerosas obras sobre poesia, arte e 79

política, merecendo ser encarregado pela cidade de Frankfurt de importantes negócios no congresso de Viena. O caráter de Schlosser era nobre, e seu coração bondoso e amigo dos pobres e necessitados. Era protestante somente por ter nascido e ser educado na heresia. Sua esposa, francesa e calvinista, levava o belo nome de Sofia. Deus chamou-os à Igreja por caminhos bem diversos dos outros. Sofia notou logo com bastante dissabor que as pessoas, que a rodeavam, não tinham verdadeira paz, nem encontravam alegria para o seu coração, embora fossem abastadas e se pudessem conceder todos os gozos imagináveis. Compreendendo que a paz da alma não se compra com dinheiro nem se aspira como o ar, por ser ela uma flor que só nasce no jardim do coração, pôsse a refletir sobre a causa de ela não nascer nos corações protestantes. Frederico também carecia dessa tranqüilidade íntima e de bom grado daria tudo para consegui-la. Desanimada pôs-se Sofia a rezar e a freqüentar com mais assiduidade o templo calvinista; porém debalde. Em Viena, na residência de Pilat, teve ocasião de considerar a estranha visão que tanto procurava; lá foi-lhe dado contemplar um homem de cujos olhos transparecia a calma e a tranqüilidade d’alma: era São Clemente, que sempre a sorrir possuía o condão de atrair os corações com suas palavras serenas e seus modos delicados. Sofia pôs-se a estudar aquele sacerdote católico e não tardou a descobrir que aquela paz era o efeito do amor de Deus e da dedicação à Santa Igreja; assistiu às pregações do Servo de Deus em Sta. Úrsula que lhe satisfizeram plenamente tanto pela simplicidade do fraseado como pela profundeza da argumentação. Um dia ouviu Clemente sobre o seu trema predileto: a Igreja Católica, sua beleza celeste, e glória admirável, salientando-a com a destreza de seu pincel de mestre e as chamas da sua fé; na peroração disse o Santo: “Conhecem-na, porém, só aqueles que nela vivem e que têm a felicidade de ser seus filhos”. Sofia sentiu-se tocada da graça, foi ter com Clemente, levou-lhe também seu esposo, e depois de instruídos foram recebidos os dois no mesmo dia, na Igreja Católica. Tornaramse amigos do Servo de Deus, que muitas vezes os convidou ao café, servindoos por suas próprias mãos e entretendo-os familiarmente, de sorte que mais tarde Sofia pôde afirmar, nunca ter tido horas tão felizes na vida como aquelas que passaram em companhia de Clemente. O Santo sacrificava seu tempo atendendo a essa família, porque previa o grande bem espiritual que dos seus esforços proviria às almas. E de fato, essa senhora tornou-se benemérita do culto religioso pelas inúmeras poesias sacras que traduziu do italiano, espanhol, português, francês, inglês etc. Essas poesias, belíssimas na forma, foram publicadas por madame Schlosser em 7 volumes. Entre as muitas almas reconduzidas por São Clemente ao seio da Igreja Católica, contava-se a esposa de Adam Müller, célebre filósofo, estadista consumado, e homem de confiança de Metternich, que o encarregara de negócios e cargos importantíssimos. O próprio Adam Müller no meio de tantas honrarias conservou-se sempre humilde e deixou-se guiar em tudo como uma criança por São Clemente, seu diretor espiritual. Sua esposa porém era luterana; ao ouvir as pregações e instruções do Servo de Deus começou a admirar a beleza da Igreja e a compreender o erro do protestantismo, mas receava passar ao catolicismo pelo temor de uma bagatela que lhe causava extraordinária impressão: temia a penitência que São Clemente lhe iria impor na confissão por ela se

achar tanto tempo no luteranismo. Chegado o dia determinado para a recepção desse sacramento, fez um esforço supremo, e confessou-se com todo o arrependimento e sinceridade. Clemente, como de costume, pôs-se a dar-lhe conselhos e instruções para a sua vida prática; de tudo isso porém ela nada percebeu, tão preocupada estava com a penitência horrível que iria receber. Qual não foi seu espanto, quando o confessor lhe deu uma penitência insignificante, tão pequena, que ela mesmo julgou pouca para tantos pecados e pediu uma maior. Clemente porém lhe respondeu: “Aceite também por penitência aquilo que N. Senhor lhe vai mandar”. Madame Müller levantou-se consolada; ao chegar porém em casa foi acometida de uma dor de dentes tão aguda que lhe arrancou lágrimas; lembrada das palavras do seu confessor, aceitou com gosto mais aquela penitência, beijando a mão de Deus que a castigava.

CAPÍTULO XVI

O sábio Diretor das Ursulinas Que é a Religiosa — Da chácara ao convento — Deus ilumina os confessores — Reforma as Ursulinas — Os trabalhos das religiosas — A Religiosa tíbia — A vontade de Deus — A obediência — A Religiosa nervosa — A vassoura usada — A Irmã tentada — A bruaca velha — As armas da mulher. Entre as pessoas que São Clemente conservava guardadas no fundo de seu grande coração e com as quais mais se entretinha, eram as Ursulinas, sem dúvida, as primeiras. E com razão, pois que via em cada uma das religiosas a esposa, que Jesus se escolhera entre milhares, tirando-a do meio do mundo sedutor, e introduzindo-a em sua casa e santuário. Cada convento era, a seus olhos, um templo e cada alma uma pedra preciosa engastada nesse santuário. É por essa razão que ele, sempre que passava por perto de um convento de religiosas, inclinava duas vezes a cabeça: uma para saudar o Redentor oculto no Santíssimo Sacramento, e outra, por respeito às esposas de Jesus que se santificam no claustro. Das religiosas consagradas a Deus tinha mais estima do que dos vasos sagrados. A Religiosa era, no seu modo de encarar, um ostensório vivo, preparado pelo próprio Deus para nele habitar com suas virtudes e com sua graça. A Religiosa é também uma heroína que possuiu força bastante para desprezar o mundo com seus encantos, alegrias e esperanças, e levar uma vida de pobreza, desprendimento e abnegação na casa de Deus. Clemente tinha gosto especial em falar sobre a virgindade, consagrada a Deus por voto, sua excelência e beleza angélica. “A vida claustral é uma graça assinalada, dizia ele, e quem nesse ponto conheceu claramente a vontade de Deus, deve segui-la mesmo contra a vontade dos pais ou parentes”. Para prova disso alegava a palavra de Jesus à sua Mãe que, durante três dias o procurara chorosa nas ruas de Jerusalém: “Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é do meu Pai?” Falando a uma Religiosa disse um dia. “Não sabeis como sois felizes; na hora da morte compreendereis o que é a graça da vocação, em cuja comparação as grandezas da terra são um puro nada”. Do alto do púlpito falava sempre com fogo sobre a vocação religiosa, que era assunto desconhecido em outros púlpitos naquele tempo. Tendo de pregar, um dia, na igreja das Visitandinas, depois de ler o que o catecismo romano diz sobre os conselhos evangélicos, falou sobre a vida religiosa com tanta unção e acerto que as religiosas choraram de consolação e comoção. Todas as vezes que São Clemente percebia sinais certos de vocação em uma alma, ajudava-a com seus conselhos e trabalhos para que com mais pres-

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sa e segurança, conseguisse entrar no convento e consagrar-se inteiramente a Deus. São inúmeras as almas que o Servo de Deus enviou aos conventos das Ursulinas, Visitandinas, Carmelitas etc. etc. não só das classes populares, mas ainda da alta aristocracia e até da nobreza. Quando se tratava de donzelas pobres, ele mesmo dava os passos necessários, arranjava-lhes o lugar e facilitava-lhes a entrada. Uma donzela pobre dos arrabaldes mais afastados de Viena ia diariamente da chácara ao centro da cidade onde, sobre uma mesinha, colocava os ovos, a manteiga e a gordura, e lá ficava à espera de compradores. Fazia isso por necessidade, pois que precisava ganhar a vida, mas o desejo ardente de seu coração era entregar-se e consagrar-se inteiramente a Deus na vida religiosa; sentia uma santa inveja das Ursulinas que moravam lá perto, e suspirava por encontrar um Diretor espiritual prudente e caridoso, que a quisesse introduzir na casa de Deus. Aconteceu passar por ali um sacerdote venerando com um gorrinho na cabeça, grave, sério, sem olhar para ninguém; notava-se que era um Santo. A donzela, quando o viu, sentiu em sua alma uma voz que lhe dizia: “A esse deves manifestar o anhelo do teu coração, porque ele te levará ao convento”. A coisa porém não era tão fácil. A vendedora de ovos nunca vira o Santo, não sabia quem era aquele sacerdote, nem onde morava, nem para onde ia: a fisionomia do padre, porém, ficou bem impressa em sua memória. Dois anos depois, na quinta-feira santa de 1818 foi a donzela, casualmente, ouvir missa na Igreja de Sta. Úrsula. Exultou quando no altar viu o sacerdote que conhecera pela primeira vez há dois anos atrás; procurou-o depois no confessionário, abriu-lhe o coração e manifestou-lhe o seu desejo ardente. Clemente prometeu auxiliá-la, mas querendo primeiro certificar-se da sua vocação, mandou-lhe mudar-se para a cidade, onde lhe arranjou um lugar, instruiua a um ano inteiro na vida religiosa, e convencendo-se que a moça era chamada por Deus para o convento, fê-la entrar nas Visitandinas. Às vezes sucedia que alguma penitente do Santo, sentindo a voz de Deus que a chamava, não tinha coragem de participar a seu Diretor esse chamamento divino; nesses casos Deus mesmo incumbia-se de revelar miraculosamente a seu Servo a vocação das penitentes. Um belo dia uma tal Teresa, ouvindo um sermão de São Clemente sentiu-se fortemente tocada da graça e do desejo de entrar no convento das Ursulinas. Prelibando as doçuras da vida religiosa, ao chegar em casa ajoelhou-se aos pés de seu pai pedindo-lhe permissão de seguir a voz de Deus que a queria para sua esposa. O pai era um daqueles que julgam serem os conventos uma espécie de hospício para as mulheres fanáticas e histéricas, um recolhimento de pessoas imbecis ou asilo de mulheres sem préstimo; franziu sobr’olhos e declarou que, enquanto vivesse, não lhe daria a licença pedida. A donzela calou-se julgando haver cumprido o seu dever e nem mais cogitou em entrar no convento. A sua consciência porém não emudeceu, a voz de Deus fazia-se ouvir sempre mais clara. Teresa não sabia o que fazer: se obedecer ao pai ou a Deus que a chamava; em vez de pedir conselho ao confessor expondo-lhe toda a dificuldade, preferiu conservar-se calada. Deus porém não a desamparou; de modo sobrenatural iluminou o confessor a respeito da pobre donzela; — quando esta foi ao confessionário, em lugar dos conselhos disse-lhe Clemente a 81

queima-roupa: “A senhora deve ser Visitandina, eu mesmo lhe arranjarei um lugar”. Essa palavra bastou para enchê-la de coragem; não temendo já as ameaças paternas, foi para onde Deus a queria e tornou-se uma piedosa e santa Religiosa na Visitação. Sempre que o Servo de Deus enviava alguma donzela ao convento, fazia recomendações especiais à Superiora para que velasse constantemente sobre ela e a tornasse uma santa esposa de Jesus, guardando a inocência e a boa vontade do coração. A uma que ia entrar no convento, deu o Santo uma carta com os seguintes dizeres à Superiora: “O meu desejo é que esta donzela cresça sempre na inocência e piedade em que foi educada; que ela cultive em si mesma a perfeição da sua sublime vocação, e depois procure implantar também nas demais irmãs o mesmo zelo e os mesmos sentimentos, para assim conduzi-las todas para Deus”. Em se tratando do convento das Ursulinas, Clemente era incansável. Nos sete anos, que exerceu o cargo de Reitor da Igreja e Diretor das Irmãs, reformou completamente esse jardim do Senhor. Em 1813 a disciplina regular achava-se quase toda em completa decadência devido às circunstâncias desfavoráveis do tempo. Clemente bateu-se como um herói para restabelecer no claustro a antiga disciplina, e não descansou enquanto não conseguiu introduzir no convento a observância regular. Como é natural isto não se deu sem grandes dificuldades e declarada oposição daquelas irmãs, que não queriam ouvir falar de reforma. Clemente não se intimidou com os obstáculos nem se alterou com as incriminações de algumas irmãs. Com paciência e caridade conseguiu ganhar os corações de todas as religiosas para Nosso Senhor, e, no fim recebeu maiores provas de gratidão justamente daquelas que antes mais se declararam contra ele. Se uma ou outra vez usava de rigor, fazia-o tão somente por amor da observância regular. Quanto mais santo é o estado a que Deus chama uma pessoa, maiores são os deveres que lhe impõe. Na fronte da Religiosa, elevada à dignidade de esposa do Rei dos reis, coloca uma coroa de espinhos, por vezes bem penetrantes, sobre os seus ombros uma cruz pesada, tornando-a semelhante a Jesus Cristo. A donzela não entra no convento para gozar ou levar uma vida cômoda, mas para se santificar e subir a montanha escabrosa da perfeição — e isto não só de passagem, um ou outro dia, mas constantemente, sem tréguas, de dia e de noite. São Clemente, a personificação da energia, gostava de desenvolver esses temas e explicar essas verdades às suas religiosas. Ao dar o hábito, uma vez, a quatro irmãs disse: “Uma Religiosa deve unir em si as duas irmãs Maria e Marta, isto é a oração e o trabalho; por amor dessas duas irmãs Jesus ressuscitou a Lázaro; por meio da oração e do trabalho devem as Virgens consagradas a Deus, contribuir para a ressurreição dos mortos pelo pecado, isto é, dos pecadores, para a vida da graça, porque o Senhor, que ama as suas Esposas, não deixará de atender as suas ardentes súplicas; mesmo entre os pagãos romanos eram as virgens alvo de honrarias, de sorte que o governo chegava a perdoar a um criminoso pelo qual uma virgem intercedesse; quanto mais valerão as súplicas de uma esposa de Jesus Cristo junto ao Altíssimo em favor dos pecadores”.

A oração contínua, as meditações longas são um trabalho pesado, mormente no convento onde elas se repetem diariamente a vida inteira; e entretanto a oração não é o único trabalho das religiosas; no convento Maria deve muitas vezes ceder o lugar a Marta. Há religiosos que consomem o dia no confessionário a perdoar pecados, ou no púlpito a converter os pecadores, ou à secretária a cultivar as ciências, achando somente à tarde uma parcela de tempo para lançarem um rápido olhar para sua própria alma. Quantas religiosas, de manhã até à noite, cansam-se nas aulas instruindo as crianças, ou velam a noite inteira à cabeceira dos doentes nos hospitais, a combater o sono e o cansaço em seus membros entorpecidos pelas longas vigílias! quantas Esposas de Cristo por seus esforços heróicos e labutações aturadas em prol da humanidade sofredora, se têm lançado, na flor dos anos, aos braços da inexorável morte! E mesmo que uma Religiosa não tivesse de sujeitar-se a nenhum desses trabalhos físicos ou intelectuais, nunca poderia esquecer, sob pena de condenação, o mais penoso de todos: o trabalho da santificação própria: domar as paixões, combater os vícios, cultivar as virtudes. Esse trabalho aturado e penoso só pode ser feito por almas generosas e fortes, a quem Deus chamou a sua casa. A vida claustral exige abnegação e pressupõe grande energia espiritual e vigilância constante — não admira pois que uma ou outra alma, menos forte, se sinta esmorecer e abandone seu Deus voltando-lhe as costas. Outras, cansadas do combate, permanecem, sim, no convento, mas o coração vaga pelo mundo, caem na tibieza causando prazer a Satanás que em seus corações deposita os germes das imperfeições, da impaciência, hipocrisia, inveja, ciúmes, murmurações, loquacidade, apego às coisas do mundo, ao amor próprio, à vanglória etc. Embora o mundo não tenha direito de exprobrar coisa alguma a esses abusos que não o prejudicam, porquanto uma Religiosa tíbia é sempre melhor do que uma pecadora no mundo, todavia o Esposo divino contrista-se, subtrai muitas vezes sua luz divina, retira seu braço, diminui as consolações espirituais, das quais a Religiosa tíbia se torna indigna por suas imperfeições e infidelidades, e cheio de amargura lhe repete as palavras aterradoras: “Oxalá fosses quente ou fria!” (Ap 8,15). Abandonada pelo Esposo, a pobre Religiosa à beira do precipício, sem luz divina, sem o auxílio do céu, facilmente resvala para o abismo e precipita-se no pecado mortal. Nesse deplorável estado a mísera debate-se sem consolo, não tem as alegrias do mundo a que renunciou no dia da sua profissão, nem as consolações do céu, porque é infiel a seu Esposo. Como é triste uma Religiosa tíbia, suspensa entre o céu e a terra! Ela deve ser pobre, em virtude do voto, e nutre tantos desejos de possuir... deve ser pura, porém não goza as carícias do amor divino... deve obedecer, e não sente o fogo do céu... deve rezar e não sente consolação! pobrezinha, deve abnegar-se, porém sem merecimentos, vive sem esperança e morre se ma graça de Deus! Toda essas verdades eram expostas por São Clemente com animação e calor. No dia de sua nomeação para confessor das Ursulinas, foi felicitado por um Barão, pela honrosa colocação obtida, na qual lhe era dado fazer tanto bem às almas puras, às Esposas de Jesus Cristo. Clemente, porém, meneou a cabeça e respondeu com seriedade: “Vós me felicitais por um cargo que eu temo; quisera antes ouvir de confissão a metade do exército austríaco do que a dez religiosas tíbias”. Quanta verdade não encerra essa palavra! E de fato, entre 82

tantos milhares de soldados que perfazem o número da metade do exército austríaco, quantos blasfemadores, profanadores sacrílegos dos lugares santos, ladrões, libertinos, hereges, perjuros, beberrões! e por isso também quantos crimes e pecados, que reunidos num só muladar, talvez o tornassem mais alto do que a Torre de Babel!... e entretanto o Servo de Deus tinha mais esperança na salvação deles do que na de dez religiosas tíbias! E quando em um convento existem, ainda que poucas, religiosas tíbias, a comunidade inteira corre perigo de ser infeccionada pelo espírito mundano, que a porá a perder. É certo que o mosteiro das Ursulinas não estava em decadência completa, mas também é certo que lá penetraram, com o espírito da época, os bacilos do josefismo relaxando a disciplina claustral. São Clemente que em uma de suas expressões fortes disse: “Eu tenho um faro católico”, percebeu imediatamente o qual e descobriu sua origem e causa; pôs-se a agir com energia pouco se incomodando com as palavras, por vezes pesadas, que teve de ouvir dentro e fora do convento, e conseguiu restabelecer o antigo espírito, o amor a Jesus Cristo e a observância regular em todos os pontos. Por meio de numerosas conferências ascéticas às religiosas, o Servo de Deus procurava torná-las dignas do seu divino Esposo, e proporcionar-lhes alegrias e consolações em seu convento. Uma vez falando da vida humana, da sua brevidade e importância para a salvação, instou com elas a que aproveitassem o tempo... “porque o tempo, disse ele, é um tesouro infinitamente precioso, um bem inestimável; quem se aproveita bem do tempo, ganha o céu e o próprio Deus”. Embora seja o tempo uma criatura de Deus, que é o Senhor absoluto de tudo o e se acha infinitamente acima de todo criado, Clemente punha o próprio Deus em paralelo como tempo dizendo às Ursulinas: “O tempo vale tanto como o seu Autor divino, porque com ele podemos, por assim dizer, comprar o próprio Deus, se fizermos bom uso do tempo. Deus mesmo será a nossa recompensa no céu”. Homem eminentemente prático, não se perdia em teorias ou belas frases a que não corresponde realidade, e por isso explicava também às religiosas o modo de empregarem bem o tempo, e de usarem desse capital para dele perceberem os maiores juros possíveis, coisa que não é difícil no convento. A ordem do dia no claustro é a vontade de Deus, e executá-la com fidelidade é merecer copiosos juros de merecimentos e de virtudes, porque a vontade divina deve ser sempre a norma da nossa vida, a única guia do nosso procedimento; as religiosas não devem ter vontade própria por ser contrária à de Deus, que fala interiormente à nossa alma, ou exteriormente pela boca dos Superiores, que são para nós os representantes de Deus. E como as religiosas a isto se obrigam por um voto especial, o da obediência, Clemente repetia-lhes constantemente: “Não sejais voluntariosas, mas obedecei sempre em tudo!” “Até a morte, disse ele em outra ocasião, é mister obedecer; é preferível morrer a desobedecer. Se a uma Religiosa fosse dado escolher entre a morte e a desobediência a qualquer preceito do Superior, não deveria hesitar em sacrificar a própria vida, que é o melhor dos bens terrenos, para não ser infiel a Deus. A morte seria um sacrifício e holocausto agradável ao Eterno, a desobediência porém um pecado; ora é muito mais nobre sacrificar-se que pecar; a morte pela obediên-

cia é um martírio que abre as portas do céu. Não terá dificuldade em obedecer a Religiosa ao contemplar seu divino Esposo que não quis outro epitáfio sobre seu sepulcro senão a afirmação de que Ele foi obediente até à morte, sim até a morte da cruz”. Como a hera entrançada à estaca cresce viçosa arrostando os furacões e as tempestades, a alma obediente torna-se grande e forte, resistindo sem dificuldade aos vendavais das paixões, atirando-se, arrojada, para o alto da perfeição e cantando vitórias e mais vitórias, como o afirma o Espírito Santo; torna-se tão forte, que vence o coração de Deus, a fortaleza substancial. Um dia ordenou Clemente a uma das Irmãs que rezasse uma Ave-Maria pela conversão de um pecador que parecia obstinado. A Religiosa, achando que uma Ave-Maria seria pouca coisa para um efeito tão importante como é a conversão de um pecador, ofereceu-se a recitar mais Ave-Marias naquela intenção. Clemente porém respondeu-lhe: “As almas que pelo voto da obediência sacrificaram a vontade própria, rezam com mais fruto, obedecendo, do que fazendo a sua vontade e seguindo os seus caprichos”. Quem faz a vontade de Deus merece ser por Ele atendido mesmo que faça uma oração tão breve como é a Ave-Maria. Em Sta. Úrsula havia uma irmã de bom coração, de muito bom espírito e, em geral, de muito belas qualidades, mas geniosa, de sangue quente que não suportava a menor contradição nem opinião alguma contrária à sua; quando contradita por alguém, desfazia-se em palavras pouco edificantes. Entre ela e uma outra Irmã levantou-se, um dia, forte discussão, onde as palavras jorravam com eloqüência espantosa, tornando-se sempre mais altas e fortes. Nesse solene e animado bate-boca, entrou Clemente que não ficou nada edificado com tais desabafos contrários à caridade. As duas interromperam instantaneamente a batalha envergonhando-se do Diretor espiritual, que depois de indagar a causa, dirigiu-se à Irmãzinha nervosa, fez-lhe um sermão em regra, dando-lhe de penitência a proibição de comungar o dia seguinte, porque a ninguém é permitido receber Jesus com rancor e ódio no coração. A Irmã, longe de se irritar e perturbar com a repreensão, aceitou humildemente o castigo, de olhos baixos, sem proferir uma única palavra de queixa ou desculpa. O Santo edificado com a virtude heróica dirigiu um olhar complacente para a Irmã, perdoou-lhe tudo, tirou a proibição que acabava de fazer, e em recompensa de sua obediência, permitiu-lhe receber mais uma comunhão além das permitidas pela Regra. Clemente inculcava a obediência sobretudo às noviças, porque sabia que, de pequenino se torce o pepino. Aprouve-lhe dar uma vez às noviças o seguinte enigma em forma de pergunta: “Qual é a melhor noviça?” As respostas foram certamente edificantes e belas: “A que mais reza” — “a que melhor cumpre sua Regra” — “a que vive contente no convento” — “a que comunga muitas vezes” — “a que faz amiúde o exame de consciência” etc. Como nenhuma acertasse com a solução desejada, respondeu por elas o Servo de Deus: “A melhor noviça é aquela que, obedecendo com humildade se sente feliz quando, qual vassoura usada, é lançada a um canto da casa”. A uma pessoa pouco entendida em vida espiritual isso parecerá talvez um rebaixamento ignóbil e indigno; ser o homem comparado a uma coisa tão vil como é a vassoura, que se usa nos mais baixos serviços da casa. Entretanto 83

nada mais acertado do que essa comparação. A vassoura, antes de colhida e enfeixada, lá fora se elevava orgulhosa a receber as homenagens e os beijos dos zéfiros e os banhos de luz da aurora, e, depois de presa a um cabo, em um canto atrás da porta, jaz sem o direito de permanecer no salão mais nobre; e lá no canto tem de esperar até que a última das empregadas a tire da sua prisão, porque a dona da casa se acanha de tocar nela com medo de se manchar; e essa empregada dela não se serve para os mais nobres empregos, mas para recolher o lixo, varrer as imundícias, e executar outros serviços semelhantes; terminado o trabalho, a vassoura não recebe palavra de gratidão e reconhecimento, nem ninguém se lembra de lhe tributar louvores; a criada atira-a para o canto, onde antes se achava e ela não tem direito de se queixar, mas só de obedecer calada; quando já não pode mais prestar serviços, é lançada a um muladar ou atirada ao fogo. — Como a vassoura deve ser a noviça do convento, por mais nobre e elevada que tenha sido no mundo a sua dignidade ou ascendência sobre os outros; só assim poderá ser boa noviça e prestar para o convento. Clemente nessa comparação não quer que as religiosas sejam vis como as vassouras, mas que tenham intenção e desejo de ser tratadas como elas, com toda a submissão e humildade; — somente com esse desprendimento da vontade e do amor próprio é que a alma se sentirá verdadeiramente feliz na casa de Deus. “Se alguém quiser vir após mim, abnegue-se a si próprio” disse o divino Salvador. Isso naturalmente refere-se exclusivamente aos sentimentos e disposições das noviças, porquanto às Superioras impõe Deus o gravíssimo dever de tratar suas súditas com todo carinho e amor, de auxiliá-las com o desvelo de uma terna mãe, e de cuidar das suas necessidades temporais e espirituais. Convencido dessa importante verdade, o Servo de Deus não cessava de admoestar as Superioras a que estudassem seriamente as aptidões, o temperamento e as forças físicas e morais de cada Religiosa, e só então dessem as suas ordens. É em vista disso que muitas vezes dizia às irmãs: “Como é fácil e agradável obedecer, e quão difícil é mandar! a obediência dá plena segurança em todos os transes da vida; quem obedece não pode errar, mesmo que o Superior caia no erro e se engane”. Com a entrada no convento não cessam as dificuldades para a alma que teme a Deus, pois que diz o Sábio: “Filho, quando entrares no serviço de Deus, tem-te firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a tentação” (Eccl. 2. 1). Clemente tratava suas noviças com toda a brandura e delicadeza. Se acontecia ver alguma delas entristecida ou cabisbaixa, procurava dissipar-lhe a tristeza e levantar-lhe o ânimo. Uma donzela, munida das melhores intenções abandonara o mundo e entrara no convento das Ursulinas, para lá glorificar a Deus e salvar a sua alma. O inimigo de todo o bem pôs-se logo a sussurrar-lhe aos ouvidos toda a sorte de tentações contra a vocação. “Tu não és chamada por Deus à vida religiosa, dizia-lhe, nunca poderás suportar os rigores do convento; vivendo na casa de Deus sem vocação expões-te ao perigo de condenação eterna; além disso não és digna absolutamente de ser Esposa de Jesus Cristo por causa dos teus muitos pecados”. Do outro lado o inimigo pintou-lhe o mundo como um templo

magnífico onde poderia servir a Deus com liberdade e amor, entregando-se às doçuras e às delícias da vida no século que lhe seria um paraíso, mostrou-lhe a incomparável beleza da liberdade, que nos dá direito de viver à vontade, os encantos da vida familiar, os enlevos do matrimônio etc. Tentada dessa forma a pobre donzela sentiu saudades do mundo e asco da vida religiosa; lágrimas, em torrentes, lavavam-lhe as faces encovadas, lágrimas de arrependimento de haver entrado no convento. A única consolação que ainda lhe restava era a possibilidade de voltar ao mundo e aos seus encantos e divertimentos. A donzela aprontou a roupa e todos os seus apetrechos, resolvida a voltar as costas a Jesus. Marcada a hora da saída, sentia na ância de partir a vagareza do relógio. Momentos antes de abandonar o convento apareceu Clemente a quem ela não participara coisa alguma a respeito, aproximou-se dela e disse: “Francisca, fica no convento, porque foi Deus quem te chamou”. A donzela tremeu vendo-se conhecida por seu confessor, a quem tudo ocultara; percebeu que o Servo de Deus lia não só nos livros mas também nos corações, sentiu-se envergonhada e implorou o perdão. Pouco depois a postulante pediu e recebeu o hábito, e viveu uma vida santa e exemplar, atingindo a idade de oitenta anos, sem compreender jamais como é que o demônio a podia enganar daquela forma. Havia em o convento uma Irmã por nome Jacoba, que entrara na Congregação no mesmo dia em que o Servo de Deus tomara posse do cargo de confessor das Irmãs. Sentia-se em extremo feliz no convento, donde não queria sair por coisa nenhuma deste mundo. Satanás, que não ignorava isso, começou a tratá-la por outra forma. Enfermidades fortes abateram o físico da pobre noviça, que enfraquecida e extremo temeu ser, por imprestável, expulsa do convento; a tristeza apoderou-se de sua alma, prostrando-a ainda mais que o corpo; sincera e franca, foi desabafar o coração junto do seu sábio Diretor espiritual que, o sorriso nos lábios, derramou em sua alma torturada o suave bálsamo de real consolação dizendo-lhe: “Farás a profissão religiosa, recuperarás a saúde e sobreviverás a muitas que agora estão de faces rosadas”. Essas palavras soaram doces e agradáveis aos ouvidos da boa noviça, que todavia não lhes deu muito crédito, por não terem nenhuma aparência de verdade. A noviça, de fato, continuou a guardar o leito, e a enfermidade se agravava na medida que se aproximava o dia da profissão. Desconfiada a noviça manifestou novamente seus temores ao santo Diretor, declarando ter pouca esperança de recuperar a saúde e permanecer na Congregação: O Santo, longe de se perturbar, disselhe ainda com mais energia:... “farás a profissão, e na idade de 28 anos estarás inteiramente curada e ficarás ainda uma bruaca velha”. A enferma necessitava da saúde aos 24 anos em que deveria professar, e o Santo só lhe prometia a cura quatro anos mais tarde! As irmãs conselheiras reuniram-se para tomar uma resolução definitiva a respeito de Jacoba e, a uma voz, declararam que o convento não é hospital, mas casa de oração e trabalho, e já que a condição para alguém ser recebido na Congregação é possuir não só boa vontade e nobre coração, mas também saúde bastante para executar os pesados deveres da vida religiosa, decidiram que a noviça Jacoba não podia fazer os votos, devendo voltar quanto antes para casa. Antes porém da execução definitiva, a Superiora pediu o parecer de Clemente, que disse sem mais preâmbulos: “Deixem-na fazer os votos, ela recupe84

rará a saúde e prestará relevantíssimos serviços à comunidade”. A autoridade de Clemente foi decisiva e a noviça fez a profissão dos votos. A profecia de Clemente realizou-se à risca: Jacoba sobreviveu a todas as irmãs que naquela época se achavam no convento; cinqüenta anos mais tarde festejou as bodas de ouro de sua profissão religiosa com saúde perfeita e força invejável, embora contasse então nada menos de 76 anos de idade! Os cuidados paternais de Clemente não se limitavam apenas ao convento das Ursulinas, estendiam-se em geral a todas as religiosas procurando suavizar-lhes o jugo da vida claustral. A Irmã Jacoba, da qual acabamos de falar, nobre de nascimento, era extremamente nervosa e irascível. Ao voltar uma vez da escola achou-se exausta de forças e sentia necessidade de repouso no silêncio da sua cela. Possuidora porém de grande força de vontade, venceu-se e obedeceu à Regra que a chamava, e na capela diante de Jesus Sacramentado, desabafou, em fervorosas preces, o seu coração. Inesperadamente chega a Mestra das noviças e manda-a ao confessionário. Ah, isso era demais para a nobre baronesa que enfraquecida cai de nervosia e susto. Obediente e virtuosa, faz um esforço sobre-humano, levanta-se e dirige-se ao confessionário, onde declara suas culpas com a sinceridade de uma criança, mas não diz palavra sobre sua doença e fraqueza. Clemente que conhecia bem a penitente e ouvira quanto se passara na capela, quis dar-lhe uma boa lição de que nunca se esquecesse em sua vida; no fim da confissão acrescentou: “As mulheres têm um gosto especial de prorromper em suspiros e lamentações”. A noviça meditou nas palavras do Santo e achou que realmente as mulheres se servem das lágrimas e dos soluços como armas poderosas, para mover os corações dos homens, para os dominar e para chamar sobre si a atenção de todos. Jacoba sentiu-se envergonhada dessa fraqueza e dali por diante esforçou-se por sofrer calada e com calma por amor de Deus. O sonho dourado de Clemente era de transformar os corações das suas dirigidas em outros tantos jardins mimosos, onde brotassem e medrassem as mais belas flores das virtudes cristãs e religiosas. Além da obediência e humildade aprazia-se em inculcar-lhes o amor da cruz, que ele próprio pregava constantemente com o seu exemplo; costumava dizer: “Amar a Deus é um bem tão grande que não o poderemos descrever com palavras humanas, porém um bem ainda maior é sofrer por amor de Jesus. Deus e os sofrimentos são bemaventurança suprema”. Sempre que alguma Irmã conversa tinha de carregar lenha, escada acima, Clemente mandava rezar: “Ó Jesus, permiti que eu vos ajude um pouco carregando convosco esta cruz pesada”. A Irmã Thadéa nos deixou escritas as admoestações que o Servo de Deus costumava fazer às irmãs: “Amar a Deus é um bem indizível; o amor de Jesus seja o motivo de todas as vossas boas ações; a vontade divina seja a vossa lei; a honra e o contentamento divino o vosso alvo; nas tentações não percais a paciência, mas alegrai-vos; atirai-vos nos braços da Providência; não murmureis nunca contra as disposições divinas, mesmo que vos sintais interior e exteriormente abandonadas; a tristeza vem do inferno e oprime o coração”.

CAPÍTULO XVII

Sua fé profunda A fé profunda — O plano da Providência — O faro católico — O seu tesouro — O terço do Senhor — A boa intenção — Amor à Igreja — A Igreja na história — Os incrédulos — Respeito humano — Um professor — Um professor perigoso —Trabalho pela imprensa — A biblioteca popular. O antigo padeiro de Tasswitz jamais se teria tornado o Apóstolo de Viena e o modelo de virtudes, se não tivesse possuído em grau heróico, e comunicado à toda sua vida, interior e exteriormente, aquela energia maravilhosa, que outrora transformara os pobres pescadores da Galiléia em colunas inabaláveis da Igreja, tornando-os aptos para o apostolado e a conversão do mundo pagão chafurdado na lama de todos os vícios. A fé, fundamento da verdadeira justiça e de todo edifício espiritual, achava-se profundamente arraigada no coração do Servo de Deus, a quem transformou em um facho luminoso; aparecendo no mundo Clemente iluminou-o dissipando as trevas do erro, e aqueceu-o ateando o fogo divino nos corações frios e indiferentes. Ouçamos o que dele nos afirmaram com juramento as testemunhas que depuseram no processo da beatificação: “A fé que animou Clemente, era mais firme do que o granito ou o ferro; em se tratando da fé ele não cedia nem um palmo”. — O cardeal Rauscher, um dos seus mais ilustres discípulos, diz que “ele abraçava com fé viva e inabalável tudo quanto Deus revelou e a Igreja propõe para crer”. — “Não conheci jamais em minha vida, diz outro, homem algum que possuísse como ele, uma fé tão firme e inquebrantável; a fé essencialmente católica era então uma raridade, mormente entre as pessoas instruídas; a literatura estava toda eivada de racionalismo e heresia; Clemente agradecia a Deus efusivamente, o grande benefício de nascer de pais católicos, sobre tudo de receber de sua querida mãe uma educação firmada na verdadeira religião e temor de Deus; sua fé era tão inabalável que muitas vezes ele afirmava não esperar recompensa alguma pela fé, porque nunca teve de combater tentações contra ela”. A luz da fé, escreve a Ursulina Jacoba, guiava-o em todas as ações e era a regra constante de todos os seus passos, pois que ele vivia da fé! No púlpito e nas palestras com os amigos falava sempre e com especial ardor do grande benefício da fé acrescentando amiudadas vezes: “A quem não possui fé viva, as mais sublimes verdades da religião têm aparência de fábulas!” E enaltecendo o grande mérito da fé: “se eu pudesse ver com os meus olhos as verdades da religião, não lhes daria tanto crédito como a afirmação da Igreja, pois que esta é infalível nesse ponto, ao passo que os meus olhos estão sujeitos a muitos erros”. Apontando uma vez para uma imagem pendurada na parede fez a ob85

servação: “Duvido menos na Trindade de Deus do que na presença dessa imagem”. A fé inabalável de Clemente era superior a qualquer sentimento de dúvida; esse era o plano da Providência, que o destinara a avivar a fé quase morta naquele tempo no norte da Europa, e a fazê-la produzir abundantes frutos nas almas desorientadas pelo espírito da época. Uma só coisa tinha ele ante os olhos e dentro do coração em seus numerosos trabalhos espirituais: Deus e a eternidade. Todos os meios empregados na conversão e direção das almas, Clemente os hauria da fonte límpida e copiosa da fé; embora acatasse os conhecimentos humanos, dava preferência à ciência dos Santos e tinha especial prazer em repetir as palavras do Salmo: Quoniam non novi literaturam, introibo in potentias Domini (Ps. 70, 16) isto é, porque não conheço a sabedoria dos livros, entrarei na força do Senhor. “Para mim tenho por incompreensível, dizia ele, o fato de um homem poder viver sem fé; um tal parece-me um peixe fora d’água”. Outros ouviram-no dizer: “Sou orgulhoso e vaidoso, sou um pobre pecador e nada aprendi, mas uma coisa eu tenho pela graça de Deus: sou católico até a medula dos ossos; não trocaria com ninguém a minha fé”. Segundo o atestado de Madlener, para o Servo de Deus, as provas da religião tiradas da razão só tinham valor para os principiantes; para os mais adiantados julgava ele de maior importância as provas históricas, que ele reconhecia sobretudo na existência da Igreja”. A simplicidade e humildade com que submetia sempre seu entendimento à fé, não ficaram sem recompensa. Deus esclareceu-lhe tão profundamente o espírito, que ele ficou tendo das coisas espirituais e divinas a mais extraordinária intuição. Com grande humildade diz Clemente não haver aprendido nada, mas é fato que todos admiravam seus vastos conhecimentos; isso leva a crer que Nosso Senhor o iluminou de modo sobrenatural dando-lhe a faculdade de instruir os homens mais inteligentes e sábios. Produtos literários e poéticos, hipóteses científicas em qualquer ramo da ciência, especulação dogmática e doutrinas da alta ascese ou de misticismo, ele os julgava e decidia com presteza espantosa e agudeza de espírito; como a gracejar, dizia ele possuir um “faro católico”, afirmação essa que não queria certamente indicar outra coisa senão a luz superior que recebia do céu. Essa visão sobrenatural não era para Clemente apenas objeto de belas meditações, de êxtases suaves e de doçuras espirituais, mas ainda norma segura e certa para a vida prática; o que o Servo de Deus via à luz da fé e reconhecia grande, sublime e atraente, pairava-lhe constantemente aos olhos e era o objeto dos seus pensamentos, desejos e saudades. Da sua fé íntima brotavam indizível alegria na oração, contínuo recolhimento de espírito, respeito profundo de todas as coisas divinas, numa palavra, todas as virtudes que caracterizam a vida orientada pela fé. Em São Clemente verificou-se a palavra de Jesus: “Onde está o vosso tesouro, ai se encontra também o vosso coração”; ora Deus era o tesouro de Clemente, que o conhecia pela luz sobrenatural, e por isso era Ele o objeto dos seus pensamentos e das suas mais fervorosas súplicas. Mesmo nas mais movimentadas ruas de Viena e nas praças públicas, onde fervilhavam as multidões, o Santo conservava-se recolhido em Deus, enquanto

que seus dedos desfiavam as contas do rosário, oculto debaixo do manto; embora acompanhado de alguns dos seus confrades, falava pouco, a fim de poder rezar mais. Nos seus passeios obrigatórios gostava de recitar, como diz o cardeal Rauscher, o terço do Senhor, isto é, 33 Padres-Nossos em louvor dos trinta e três anos que o Filho de Deus passou sobre a terra. O seu espírito elevava-se, como que naturalmente, das coisas terrenas ao Criador; era o resultado de sua união íntima com Deus; dessas alturas descia apenas quando a caridade para com o próximo o exigia. Nas cidades ou nas roças, durante o verão ou o inverno, andava sempre de cabeça descoberta para honrar assim a presença de Deus que via em toda parte. Sua constante união com Deus deduz-se facilmente do cuidado que tinha de renovar com freqüência e com amor a boa intenção, que aconselhava também encarecidamente a todos. A cada passo ouvia-se-lhe dos lábios a oração predileta: “Tudo para a glória do meu Deus...” Amor filial consagrava o Servo de Deus à Santa Igreja Católica. Se ele amava as almas e se esse amor era uma gota, a dedicação e o amor para com a Igreja era um verdadeiro oceano, para onde corriam todas essas gotas de amor; como dizia alguém: Se cada alma era para ele como uma pedra preciosa que o divino Arquiteto se escolheu e preparou, a Igreja Católica era o grande templo do Eterno, repleto da Majestade divina e feito para a sua glória; se em cada alma contemplava uma jóia de valor inestimável, para cuja aquisição o Filho de Deus sofreu tantas dores e amarguras e para cujo resgate Ele derramou seu sangue divino, a Igreja representava o diadema magnífico e adornar a fronte augusta do Rei Eterno; se a alma é a imagem de Deus e destinada à união admirável com o Infinito e à participação da sua grandeza e glória, a Igreja é o corpo místico de Cristo e por isso a manifestação divina, indizivelmente bela, da uma sabedoria sobremaneira digna de amor e veneração”. É sob esse prisma e debaixo da orientação desses princípios e dessa convicção que o Servo de Deus encarava as almas, irmãs entre si e filhas da santa Madre Igreja, que as gera nas águas lustrais do batismo, as sustenta com o pão dos anjos e as conforta com a luz das verdades reveladas — é por meio da Igreja que Deus se vela nosso verdadeiro Pai”. As palavras e a doutrina da Igreja eram-lhe doces e suaves como o mel, porque anunciadas por sua mãe; mais de uma vez ele mesmo declarou que não acreditaria nem nas Escrituras sagradas, se lhe não fossem propostas pela Igreja. A demonstração clara e convincente da verdade da nossa santa religião não eram para ele os milagres operados por Deus ou as profecias realizadas no decorrer dos tempos, mas a existência da Igreja. E de fato, depois de 1.900 anos, a Igreja construída sobre as ruínas e os destroços dos impérios, mais firme do que todos os reinos do mundo, ainda hoje é cheia de vida e vigor apesar das perseguições de inimigos poderosos, que procuram dar-lhe a morte e devastá-la a ferro e fogo, e apesar das inúmeras heresias excogitadas no decorrer dos séculos e das mais negras calúnias contra sua doutrina sagrada. Viu o sangue dos filhos regar os circos romanos por mais de trezentos anos e quando todos a supunham agonizar, e Dioclesiano anunciava ao orbe estar destruído o nome cristão sobre a terra, a Igreja preparava-se o maior triunfo no império de Constantino, no qual a cruz gloriosa começou a cintilar no alto de 86

magníficas e soberbas catedrais. Ora isto não se explica naturalmente, e nem se concebe senão por uma proteção toda singular de Deus; e essa proteção não seria possível se não se tratasse da obra prima do Homem-Deus, do corpo místico de Jesus Cristo, isto é da Igreja. Tão profunda era a convicção de Clemente que ele dizia: “Tirai-me tudo, mas não me priveis do tesouro precioso da fé: é melhor perder a vida que naufragar na fé”. Quem conhece e avalia a fé viva e prática do Servo de Deus, compreenderá a compaixão que ele sentia dos seus patrícios de Viena, extraviados do caminho da verdade, o zelo apostólico que o devorava e o impelia a procurar, sem descanso, as almas abandonadas, a converter os hereges esclarecendo-lhes a inteligência. “Ah! que não devem acreditar os homens para não crerem nas verdades da fé! preferem crer as coisas mais absurdas para não se curvarem diante da revelação; acreditam que só eles têm a verdade; que toda a cristandade há 19 séculos tateia nas trevas do erro; que em matéria de fé eles entendem mais do que os mais ilustrados e santos bispos e doutores da Igreja; que os milhões de mártires eram fanáticos ignorantes; que Deus com seus milagres aprova o erro e a mentira sobre a terra; que Cristo foi um infeliz iludido ou um fino enganador, quando se declarou Filho de Deus, embora o mundo inteiro até agora não tenha encontrado nele o mais leve defeito, mas só sabedoria e santidade sobre-humana e até divina; que tudo se acaba com a morte, embora sinta o homem uma sede insaciável da imortalidade; que o mundo é eterno, quando nele tudo envelhece e morre etc. etc. Ah! realmente, incredulidade e superstição são duas irmãs gêmeas e inseparáveis, amparadas por hedionda ignorância”. Clemente não podia compreender a possibilidade do respeito humano; parecia-lhe impossível, uma pessoa estar convencida da verdade da fé e sentir vergonha dela na presença dos homens. O católico deve ufanar-se de sua fé, louvar publicamente o Senhor, que lhe concedeu tão insigne favor, e em sinal da sua profunda gratidão prestar sempre e aos olhos de todos o obséquio do seu amor ao maior dos Benfeitores. Em suas pregações sobre a fé e sobre a Igreja Clemente era simplesmente inexcedível, como já o temos visto em diversos pontos desta obra. Falava da fé às criancinhas, aos rapazes que o rodeavam, aos amigos que o visitavam, aos pecadores que queria converter e em geral a todos que com ele se relacionavam. No púlpito e no confessionário inculcava a fé como base de toda santidade e da vida devota. Como ele vivia da fé desejava que esta fosse também para os outros a alma da inteligência, a estrela polar da vida, a fonte dos grandes ideais, das generosas abnegações e dos sublimes heroísmos. A fé é um dom de Deus, que o homem não pode merecer-se com todas as suas boas obras; é por isso que S. Clemente orava e mandava orar muito pela conservação e propagação da fé. Vai aqui uma oração que o Santo gostava de recitar e que pode ser útil aos que talvez em sua casa ou família têm alguém que não crê ou não pratica a religião por não a conhecer convenientemente. É a seguinte: “Ó meu Redentor, chegado será então o momento terrível, em que não restarão mais do que poucos cristãos, animados do espírito de fé? o momento em que, provocado pelos crimes, nos retirareis vossa proteção? as faltas e a

vida criminosa de vossos filhos terão enfim impelido irrevogavelmente a vossa justiça para a vingança justiceira? Ó autor e consumador da nossa fé, nós Vos conjuramos na amargura dos nossos corações contritos e humilhados, não permitais que a bela luz da fé se extinga em nós. Lembrai-vos das vossas misericórdias e lançai um olhar de compaixão para a vinha que foi plantada pela vossa dextra, regada com o vosso sangue e com o de milhares de mártires, com as lágrimas de tantos penitentes e com os suores e orações de tantos apóstolos, confessores e virgens. Ó divino Mediador, olhai para as almas fervorosas que se levantam puras até o vosso trono e vos rogam pela conservação do precioso tesouro da fé; diferi, ó Deus justíssimo, o decreto da vossa reprovação, não escuteis as nossas blasfêmias, fixai o vosso olhar sobre o sangue adorável que, derramado sobre a cruz para nossa salvação, intercede ainda cotidianamente por nós nos nossos altares; conservai-nos a verdadeira fé e o amor à Santa Igreja, conservai-a pura e ilibada, guardai-nos na barca de Pedro fiéis e obedientes a seus sucessores, vossos vigários na terra, a fim de que a unidade da Igreja se conserve intacta, a santidade fomentada, e a Sé Apostólica protegida, a Igreja dilatada para o bem das almas. Aflijam-nos muito embora as enfermidades, consumam-nos os pesares, acabrunhem-nos as desgraças, mas conserve-se a santa fé, porque enriquecidos com esse dom precioso, suportaremos de boa mente as dificuldades sem que coisa alguma possa perturbar nossa felicidade. Ó Jesus, autor da nossa fé, protegei, fortalecei e iluminai os governantes; humilhai e convertei os inimigos da vossa Santa Igreja; concedei a todos os reis, a todos os chefes cristãos, a todo o povo fiel a verdadeira unidade e concórdia; conservai-nos em vosso santo serviço no qual queremos viver e morrer. Ó Jesus, por vós vivo, por vós quero morrer; quero ser vosso toda a minha vida, também na hora da minha morte. Assim seja” (300 dias de ind. Leão XIII, uma vez ao dia). Clemente conservava os olhos continuamente abertos para descobrir os erros que pudessem danificar a fé, para os combater e extirpar. Em Praga havia um professor por nome Bernardo Balzano, que embora lente de religião, não passava de um racionalista refinado, que pervertia os pobres alunos educandoos para o racionalismo e a incredulidade. Esse sr. lembrou-se de publicar uma obra intitulada “Palestras edificantes para acadêmicos”, na qual expendia os erros que vinha ensinando, a muito anos, do alto da cátedra. Clemente pediu um exemplar, e percebendo o dano incalculável que o professor fazia às almas, foi incontinenti ter com um dos vigários de Viena, pedindo-lhe falar com o imperador sobre aquele abuso em Praga. O monarca, católico de convicção, mandou examinar a obra, e depois de proscrevê-la, baniu o seu autor do magistério público. Os tempos de São Clemente eram tempos maus de josefismo e de jansenismo; a literatura toda estava eivada de erros e de falsas doutrinas que se espalhavam entre o povo, arrancando a convicção católica ou pelo menos inculcando a dúvida. Para reformar a Europa era necessário não descurar da imprensa, dos bons livros, das boas revistas etc., que mais do que os sermões penetram nos lares, desfazem as dúvidas, ensinam a verdade, animam a virtude e fortalecem a fé. São Clemente não desconhecia a importância da imprensa. “Os maçons, dizia ele, trabalham, dia e noite difundindo os livros mais perni87

ciosos; querem banir Jesus Cristo da Europa, e não recuam diante de dificuldade alguma, contanto que consigam seu nefasto intento. Oxalá fôssemos nós católicos animados do mesmo zelo pela Santa religião!” “Os alemães gostam de ler, repetia Clemente, mas não há nada que se lhes possa dar para a leitura”. Embora Clemente não escrevesse, pessoalmente, animava e encorajava os outros a que se dedicassem à grandiosa missão da imprensa. E os amigos do Servo de Deus escreviam nos mais importantes jornais da Áustria. Frederico Schlegel ideou a fundação de um órgão central católico para todas as esferas da vida intelectual. Embora não desprezasse as revistas, novelas, hinos, poesias, dramas e semelhantes obras, Clemente dava a preferência aos escritos ascéticos e dedicava-se com ardor à impressão e tradução de obras novas. Em São Beno esse trabalho constituiu uma parte importante do programa apresentado pelo Santo a seus padres; em Viena eram os seus amigos que se esforçavam para reformar a literatura frívola do tempo, e enriquecer a Alemanha e a Áustria de livros católicos e de piedade sólida. A pedido de São Clemente, Silbert publicou mais de cem obras e traduziu para o alemão as melhores obras da França, Espanha e Itália; Veith editou 55 volumes de sermões e homilias com muitos outros volumes de tratados filosóficos, poesias, composições mistas etc. O mais incansável porém foi o Dr. Francisco Schmid, amigo íntimo e confessor do Santo, o qual não podendo pregar por fraqueza pulmonar, se dedicou à elaboração de livros de orações e piedade em alemão, latim, italiano, francês, inglês e grego enviando-os, quase sempre gratuitamente, a esses países para mais facilmente ganhar todos para Jesus Cristo; introduziu esses livros nos hospitais e nos quartéis, repartindo-os entre os enfermos e os militares. São Clemente entusiasmado por esse zelo admirável não hesitou em exclamar: “Se em Viena houvesse apenas três Schmids, converter-se-ia a cidade inteira”. Com o fim de tornar os livros mais acessíveis a todos, formou-se, a conselho do Santo, uma biblioteca popular em Viena. Para a Áustria começava então uma nova era, era de renascimento espiritual, devido em grande parte, aos esforços de São Clemente. Os grandes artistas, os conhecidos mestres, os heróis da pena como Frederico Schlegel, Adam Müller, não publicavam suas obras monumentais sem antes receberem a aprovação do Servo de Deus. E o juízo de Clemente era pronto, rápido não só em matéria de teologia teórica e prática, mas também em assuntos profanos, como literatura, poesia e arte. Todo esse movimento literário estava pois colocado nas mãos do Santo, que obrigava os artistas e os sábios à oração e assim levava a Deus a arte e a ciência; Clemente regava as raízes, e as folhas e flores vinham por si mesmas; e esse seu trabalho foi decisivo para a reforma espiritual, a conservação e restauração da fé e o levantamento da vida moral.

CAPÍTULO XVIII

O amante da pobreza Que são as riquezas — O tesouro nas mãos — A cruz de brilhante — O quarto do Santo — A roupa do Servo de Deus — O belo Vigário Geral — As palavras de Jesus. A opinião de Clemente a respeito das fortunas e grandezas da terra, era bem diversa da dos filhos do século; a sua alma de escol não se prendia às coisas vis do mundo, que afinal não passam de lama e podridão. Clemente procurava a pobreza como os mundanos a riqueza e o fausto; amava-a como outrora o pobrezinho de Assis. “Que valor, dizia ele, terá no fim do mundo o ouro? certamente não valerá mais do que o vil estanho”. Queria dizer: no dia do juízo nenhuma riqueza terá valor perante Deus; com nenhum ouro ou prata se poderá comprar o Juiz Eterno; e os ricos lá estarão como pobres mendigos se não se tiverem provido dos bens imortais e imperecíveis da graça. Uma das mais freqüentes exclamações do Santo era: “Meus irmãos, procuremos só o céu”. Seguindo o conselho de Jesus: “não vos preocupeis; procurai o reino de Deus e a sua justiça, o resto Deus vô-lo dará de acréscimo” não se incomodava nem preocupava com as coisas terrenas, em se tratando da sua própria pessoa. Deus que reveste os lírios dos campos, pensava ele, e alimenta as aves do céu, não me abandonará se eu nele depositar inteira confiança. Às irmãs costumava dizer: “O que a Religiosa tem é apenas um empréstimo, só Jesus é o seu tesouro”. O Servo de Deus amava tanto a pobreza, que só lhe dava o nome de “primeira bem-aventurança”; tinha por certo ser ela o caminho mais seguro para o céu, como nô-lo mostrou o Filho de Deus desde a pobreza do presépio até a desnudação completa na cruz e o seu sepultamento em túmulo alheio. Assim disso sabia o Servo de Deus que o Senhor derrama maior soma de consolações sobre uma alma desprendida e desapegada das cousas da terra do que sobre as que se prendem voluntariamente, por laços desprezíveis, às ninharias do mundo. Uma vez estava Clemente sentado entre os seus discípulos em palestra animada pela caridade cristã. Um deles, sacerdote, pôs-se a narrar com entusiasmo, fogo e visível contentamento, que durante o dia tivera em suas mãos um ornato belíssimo, precioso, no valor de muitos contos de réis. Clemente, a seu grande pesar, percebeu que aquele sacerdote conservava o seu coração apegado àquele objeto de luxo; querendo dar-lhe uma lição proveitosa, disse: “Eu também tive hoje em minhas mãos um tesouro infinitamente mais precioso do que esse ornato: Jesus no Santíssimo Sacramento! e o sr. gloria-se de ter segu88

rado lama e pó!” Devido à grande consideração em que era tido em Viena, e ao considerável número de amigos, muitos dos quais ricos e generosos, Clemente poderia possuir objetos preciosíssimos em grande número; o Santo porém não os aceitava, não só por haver feito, como todo Religioso, o voto de pobreza, mas sobretudo por dedicação a essa virtude que amava como sua esposa. Tendo uma vez feito um favor de maior vulto a uma senhora, quis esta mostrar-se grata para com o Servo de Deus e procurou em seu guarda-jóias o que pudesse oferecer a seu benfeitor; entre outras preciosidades encontrou uma cruz toda cravejada de diamantes, lembrança dos tempos antigos, e imediatamente dirigiu-se ao Santo para lhe dar de presente. Clemente agradecendolhe a boa intenção e ótimo coração, recusou aceitar o presente por amor à pobreza. A nobre senhora porém não se deixando vencer em generosidade, pediu ao Santo não desprezasse a oferta feita de tão bom coração, e não a desfeiteasse dessa forma, ao que o Servo de Deus respondeu: “Guardai-o para os vossos pobres que terei nisto maior alegria e consolação”. Mas debalde; sentindo-se desprezada a senhora pôs-se a chorar até que o Santo compadecido das suas lágrimas, aceitou a cruz de brilhantes, porém com a condição de a colocar, como oferta, perto do altar do Sagrado Coração na igreja das Ursulinas. Uma prova do grande amor que Clemente consagrava à pobreza, possuimola no mobiliário do quarto do Santo em Viena. Era o número 989 da rua que passava pela igreja das Ursulinas. Toda a residência do Santo consistia em um pequeno quarto que servia, ao mesmo tempo, de refeitório, dormitório, locutório e capela; junto dele uma pequena alcova em que o Santo guardava seus livros e algumas alfaias e coisas de dispensa; a cela que lhe servia de habitação não era profanada pelo luxo dos mundanos; lá não se encontravam elegantes pinturas nem ricas tapeçarias; era pequena, sem aparência vistosa, caiada como qualquer quarto de camponês, desprovida dos ornatos que os grandes do mundo prezam; em vão lá se procurariam grandes molduras, suntuosos espelhos para a humana vaidade, macios divãs, reposteiros ou cortinados; ao contrário, tudo lá era simples: dois armários velhos servindo de guarda-roupa, um relógio de parede, um leito duro com palhas por colchão, um velho sofá e perto dele um genuflexório com um Crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora das Dores ao pé da cruz; no centro do quarto uma mesa comprida com umas cadeiras, nas paredes alguns quadros de Santos: eis toda a mobília do Pe. Clemente; e todos esses trastes eram pobres, simples e velhos. A única riqueza que lá se encontrava era o asseio e a ordem em tudo. A batina e, em geral, toda a roupa do Santo era simples e sem a menor sombra de luxo; mormente a batina que usava, era tão estragada e sem cor, que todos se admiravam de não ser o Santo escarnecido e ludibriado pelos garotos de Viena, e de ao invés inspirar tanto respeito e chamar tanto a atenção de todos. Durante o tempo que passou em Viena não usou senão hábito redentorista, embora isso não fosse costume naquela época, em que todos se vestiam à secular. E se hoje os Redentoristas não usam fazenda fina em seus hábitos, a batina de S. Clemente era ainda mais ordinária. Os sapatos pesados e de sola grossa nunca se recomendaram pelo lustro, embora estivessem bem asseados; não poucas vezes conservavam-se largo tempo rasgados por falta de dinheiro que, nas mãos de Clemente, era dos pobres; as meias ele mesmo as

remendava por suas próprias mãos. Alguém que lhe perguntou, porque não dava a consertar a roupa rasgada ao alfaiate, respondeu a sorrir: “O padre deve entender de tudo no governo da casa”. Durante os sete anos que esteve em Viena, como confessor das Ursulinas, só teve um hábito, que quase já não possuía um palmo de pano que não fosse remendado. Só uma vez vestiu uma batina nova; foi esse um dia de festa para as irmãs que espantadas exclamaram alto: “Que milagre! o nosso Pai espiritual com uma batina nova!” No tempo do inverno usava sobre o hábito um manto de pano escuro, que recebeu em Varsóvia uns quinze anos atrás. No verão a capa era de pano pouco mais leve, porém ordinário como o outro. O chapéu velho e usado não destoava do resto; sendo de notar que o uso de andar de chapéu nas ruas Clemente não o conhecia, a não ser no tempo de chuva... Para se defender do frio, mesmo no mais rigoroso inverno, o Servo de Deus nunca usou luvas; relógio de algibeira ele tinha por coisa desnecessária, visto haver tantos relógios nas torres de Viena, que marcavam com exatidão o tempo. Às vezes o Servo de Deus olhava para o seu uniforme usado e quase sem cor, e ao arrancar um ou outro pedaço da batina rasgada em qualquer parte dizia a sorrir: “Que belo vigário geral!” Embora Clemente pronunciasse essa palavra por gracejo e fina ironia, não fazia senão dizer a verdade, pois que a verdadeira beleza não consiste tanto nos atavios externos, nos adornos principescos, nas jóias ou na seda, no enfeite do corpo, mas sim na nobreza do coração e na formosura da alma. Não passa de uma tolice infantil ligar importância à beleza do traje e ao adereço do corpo; os espíritos superiores, embora sempre asseados como o exige a sociedade, não se prendem a essas bagatelas, mas cuidam da virtude, preocupam-se com a beleza incomparavelmente superior da inteligência, e muito mais ainda com a formosura sobrenatural da alma. A beleza física e o adorno do corpo nem sempre dependem de nós, ao passo que a formosura da alma está em nossas mãos e em poder de cada um. Deus não olha para o exterior mas para a alma tão somente. Jesus deu-nos o mais belo exemplo do completo desapego das vaidades e futilidades da vida, abraçando voluntariamente a pobreza, nascendo em uma estalagem, vivendo como um pobre artífice numa pequena e insignificante oficina em Nazaré e morrendo desprovido de tudo no alto da cruz. Clemente olhava para Jesus Cristo, que era o seu ideal supremo, e nele encontrava o motivo do seu amor à pobreza. “Beati pauperes, bem-aventurados os pobres”, disse Jesus e acrescentou ainda em outro lugar: “Vae divitibus, ai dos ricos, pois é mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. “Se alguém quer ser perfeito, vá, venda o que tem, dê-o de esmola aos pobres, depois venha e siga-me”. “Não vos ajunteis riquezas sobre a terra, onde os ladrões as furtam e a traça as roe; acumulai-vos tesouros no céu”. Todas essas palavras da Verdade Eterna, Clemente as guardava em seu coração, fazendo delas suas meditações e tomando-as por guia da sua vida desprendida das ninharias do mundo. CAPÍTULO XIX

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O Anjo de pureza A virtude angélica — As portas da impureza — As mulheres santas — Laconismo santo — A mortificação e a pureza — O cardápio de cada dia — Sua bebida usual — Necessárias explicações. Entre todas as virtudes praticadas por Clemente, a mais mimosa foi a pureza, a inocência de coração. Em seus discípulos não admitia nem sombra de impureza ou moleza efeminada. “Permanecei puros e castos” era o estribilho de muitas conferências e alocuções. O Servo de Deus tinha a pureza como a condição necessária para a fé e a vida cristã. E de fato a impureza tem sido sempre uma das causas da incredulidade não só de indivíduos, mas até de reinos e nações inteiras, porquanto a fé é como uma luz finíssima que se extingue facilmente ao contato com o ar impuro impregnado de nojentos miasmas exalados da podridão dos cadáveres. O impuro, não podendo suportar os remorsos da consciência, quisera que Deus não existisse, procura abafar a voz importuna que lhe exprobra sua indignidade e baixeza, e foge de quanto lhe possa fazer lembrar a virtude que não quer praticar. A impureza enerva o coração e enfraquece a alma, que, presa à lama, não tem força de levar uma vida cristã, que é como a coroa de todas as virtudes, e por isso, não conseguindo dominar-se, a alma cai, ou antes precipita-se de abismo em abismo. O impuro não compreende as coisas do céu, não sente alegria na religião nem pode respirar o ambiente puro que conserva a saúde da alma e a faz alcandorar-se às mais elevadas alturas da grandeza sobrenatural. É por essas razões que o Servo de Deus invectivava o vício impuro mais do que qualquer outro. “É ele, dizia, que lança no inferno a maior parte dos jovens”; e acrescentava: “Almas virgens são irmãs dos anjos”. Conhecendo que o vício contrário à bela virtude oferece à alma os mais renhidos combates, às palavras unia também os esforços práticos e necessários para preservar a juventude desse grande mal: conselhos, avisos, exemplos, boa companhia, tudo isso ele empregava com solicitude para o bem da mocidade. Quando se despedia de algum jovem, o último conselho era sempre: “Guardai a pureza do coração e a retidão da intenção”. Clemente amava a infância, porque via a pureza estampada na alma e no rosto da criança, que ainda não conhece o ardor do vício e os ataques da concupiscência; a inocência tinha para ele um atrativo todo singular. Sobretudo com o exemplo é que o Servo de Deus fazia as mais belas pregações sobre a pureza. Sua alma santa era como um lírio viçoso, que despregando-se da sordidez da terra, subia, atirava-se para o alto; em toda a sua vida de setenta anos jamais deixou cair ou macular-se uma só pétala desse lírio cândido; conservou

intacta, até a morte, a inocência batismal. Por mais curiosos que fossem os vienenses, não puderam descobrir a menos sombra de culpa ou de suspeita a respeito da virtude de Clemente; ao contrário, todo o exterior do Servo de Deus, mormente os olhos, pareciam desprender de si raios fulgurantes de virtudes, obrigando todos a admirar e a amar a pureza; quando abraçava a um jovem, uma como faísca de pureza ia ferir o coração do moço que se sentia impelido ao amor e à prática da virtude angélica. Sendo essa virtude um tesouro precioso, inúmeros são os que o pretendem roubar às almas, que para guardá-lo necessitam às vezes impor os maiores sacrifícios e praticar rasgos de heroísmos. O nosso corpo propende naturalmente para o lodo, é feito de barro e para a terra pende; os cinco sentidos, que o põe e contato com o mundo externo, são um perigo para a bela virtude. A fantasia e o coração são as duas portas por onde entra geralmente a morte e a ruína dessa virtude; a primeira porta ainda mais se abre pelas más leituras, figuras indecorosas, cinemas sem moral, teatros sem respeito, bailes livres, onde a promiscuidade dos sexos, a música lasciva, os olhares curiosos, trajes inconvenientes excitam as paixões. S. Clemente era inexorável na proibição dos romances, das poesias amorosas, dos divertimentos ilícitos, que depositam na alma os bacilos deletérios da impureza. Pela segunda porta — o coração — entra o amor com as manifestações de afeto, carinho, galanteios etc. Clemente, o defensor intrépido da virtude angélica, com língua de fogo e ardor de serafim interditava a todos as amizades suspeitas e perigosas, mormente em se tratando de pessoas de outro sexo. Gostava de citar o exemplo do velho patriarca Jó, que não obstante sua avançada idade, sua grande e experimentada virtude, sua vida matrimonial, tremia diante do perigo e, como ele mesmo afirma, chegou a fazer um pacto com seus olhos de nunca fixá-los em uma donzela. Clemente não queria que os seus discípulos se entretivessem com mulheres, e repetia muitas vezes aos jovens: “As senhoras piedosas, encomendai-as ao Senhor”. Nesse ponto o Servo de Deus não conhecia condescendência, e muitas vezes mostrava-se indelicado. Uma vez estava ele, à noite, a trabalhar em seu aposento particular, quando alguém bate à porta; vai abri-la e dá com uma senhora que lhe pede mandar um padre novo a um dos arrabaldes ouvir a confissão de uma mulher enferma. Ao ponderar as duas palavras do pedido: padre novo e mulher enferma, franziu os sobr’olhos e com serenidade disse à senhora: “Aqui não há padre novo para eu mandá-lo”, e bateu a porta no rosto da senhora que ousara fazerlhe semelhante pedido. Nas palestras íntimas com os seus discípulos era em extremo rigoroso, aconselhando-os a fugirem de todo e qualquer agrado das mulheres. “As mulheres são sempre mulheres, dizia ele; enquanto não se desfizerem de todo o feminismo como uma Santa Teresa e outras santas mulheres, são sempre perigosas”. Ele até era de opinião que uma mulher nunca se tornará santa, enquanto não se despojar de tudo que é mulheril. “Todas as mulheres santas, afirmava ele, possuíam um espírito masculino e robusto; todas as mulheres que não depuserem o ser efeminado são repugnantes para mim”. Clemente conhecia a fraqueza humana comprovada nos fatos tristes da história e da experiência; conhecia a queda de homens como Adão, Ruben, 90

Davi, Salomão, Holofernes e tantos outros, e por isso evitava o mais possível qualquer aproximação com as suas penitentes; com elas era sempre breve evitando qualquer conversa desnecessária. Ao falar com senhoras, nunca lhes olhava o rosto, fitava o chão ou fechava os olhos de sorte que nenhuma mulher pôde saber a cor de seus olhos. Um dos seus discípulos afirmou que o Servo de Deus olhava para dentro e não para fora como os outros; era uma expressão forte que diz tudo: Clemente olhava mais com os olhos do espírito, com as vistas em Deus, do que com os olhos carnais. Afirmam os seus estudantes que Clemente não conhecia a nenhuma de suas penitentes, nem sequer as irmãs, pela fisionomia, mas só pela voz. São Clemente refreava os sentidos e mortificava o corpo para subjugá-los e obrigá-los à escravidão gloriosa da alma; aceitava das mãos de Deus, com ânimo alegre, todas as inclemências do tempo, enfermidades ou dissabores; alegrava-se, interiormente, sempre que recebia dos homens alguma afronta ou injúria, para assim se mortificar, pois que as mortificações que Deus nos manda, sem as procurarmos, são as mais úteis e proveitosas para as nossas almas, e mais próprias para nos conservarem na humildade e na prática das demais virtudes. Durante muitos anos foi ele confessor das Ursulinas, e diversas vezes teve de ficar esperando, longo tempo, na antecâmara, onde não havia nenhuma cadeira, e o Santo nunca se queixou disso, nem o disse a ninguém; quando se cansava muito por causa das contínuas visitas aos doentes, esperava sentado no chão, onde uma vez o surpreenderam. Não tinha piedade do corpo, açoitava-o mais vezes por semana e, para maior penitência, atava às pontas da disciplina pontinhas de ferro, que lhe dilaceravam o corpo e arrancavam sangue. Desse instrumento de martírio servia-se para abater o corpo e assim com mais segurança guardar o tesouro da virgindade. Qual preciosa relíquia conserva-se essa disciplina no convento dos Redentoristas em Viena. O Servo de Deus usava quase sempre, um cilício agudo que lhe feria o corpo não lhe permitindo nenhum descanso. A respeito de tudo isso o Santo guardava a mais completa reserva, não querendo que alguém percebesse a austeridade da sua vida; fugia da ostentação e dos louvores humanos procurando nessas mortificações somente a glória de Deus e a santificação da sua própria alma. Embora de natureza robusta, em um clima frio, Clemente alimentava-se mui parcamente, arrancando a admiração de todos que não chegavam a compreender como é que ele podia viver com tão pouco e trabalhar tanto! Nunca tomou café nem coisa alguma de manhã em toda a sua vida, a não ser nos últimos anos por preceito médico e a pedido dos amigos que se compadeciam da grande debilidade em que se achava, mas isso mesmo nunca antes das 10 horas; do confessionário onde ficava desde as 3 horas da madrugada, levantava-se às 10 horas e celebrava a santa missa, na qual fazia sempre uma breve pregação; só depois é que, nos últimos anos, ia tomar um pouco de caldo com alguma leve mistura. Na hora das refeições não se sentava à mesa, como os outros, a fazer-se servir de assados e iguarias delicadas, mas com o pranto em uma das mãos e a colher na outra, andava pelo quarto a tomar os restos de uma comida qualquer de farinha com um minguado pedaço de carne fria, ou, às vezes, apenas a sopa. Com isso contentava-se até à noite, em que não tomava mais que ao

meio-dia. Aos sábados abstinha-se de todo e qualquer alimento até à noitinha, em louvor da Santíssima Virgem; a sua única bebida era a água fresca. “Olha, disse ele uma vez a um de seus padres, o missionário deve ser mortificado, porque do contrário não dará conta do recado; até a idade de 40 anos eu não provei uma gota de vinho”. Só nos últimos três anos de vida é que tomava, à noite, um pequeno cálix de vinho quando voltava muito cansado e extenuado de alguma visita aos doentes ou aos pobres de Viena. Nessas ocasiões levantava os olhos ao céu em sinal de gratidão para com Deus e dizia: “O vinho é um dom de Deus para restabelecer as forças aos velhos”. O gosto da cerveja o Santo não chegou a conhecer nos setenta anos da sua vida. Quando convidado a outras casas para as refeições, nunca louvava as comidas, como geralmente se faz, nem procurava adular o cozinheiro; comia pouco deixando intactos os pratos delicados e de luxo. Não queremos terminar estes capítulo, sem dar aos leitores uma explicação necessária. As expressões fortes que conhecemos de São Clemente a respeito do sexo feminino, como as já mencionadas e outras como esta: “Dou graças a Deus que não sou mulher nem tenho mulher” não denotam, absolutamente, aversão do Santo ao sexo feminino e às suas excelentes qualidades. Seria um engano pensar assim. Para compreendermos bem essas expressões devemos ter ante os olhos o fim pedagógico delas; foram dirigidas geralmente a estudantes ou a jovens clérigos. Além disso São Clemente queria acentuar, com elas, as fraquezas do caráter feminino, que podem ser um perigo tanto para a mulher como para o homem. Mas quem é que ignora os grandes elogios, a ilimitada admiração que ele tinha e exprimia a respeito dos grandes vultos femininos de Viena, que se impunham por suas excelsas virtudes e profunda piedade? É certo que no trato com senhoras ele era bem mais retraído do que quando lidava com homens ou rapazes. E justamente esse retraimento, em vez que se manifestava a sua ilibada pureza, é que atraía irresistivelmente para Deus as senhoras santas e piedosas, infiltrando-lhes ilimita da confiança no Santo. CAPÍTULO XX

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O Coração bondoso Os princípios mundanos — Humildade necessária — O defensor dos oprimidos — O coração grato — Deogratias — Louvores humanos — Humildade de fato — Oculta os dons sobrenaturais — Humilhações na vida — O blasfemador arrependido — O perdão generoso. Não há coisa tão desprezível aos olhos dos mundanos como a humildade. Outrora humildade era sinônimo de baixeza e vileza — aos pagãos modernos é ela um atentado contra a razão humana, uma indignidade para o homem. Com os princípios do mundo contrasta a idéia da virtude cristã. A humildade como virtude é o conhecimento efetivo da completa sujeição da criatura ao Criador e das imperfeições, fraquezas e pecaminosidade do nosso ser. Para que a humildade seja uma virtude cristã, deve conter não só o reconhecimento do nosso nada, mas ainda a aceitação voluntária desse reconhecimento, e a sua aplicação à vida. Essa virtude brilhou de modo heróico em todos os Santos que procuraram imitar a Jesus que disse: “Aprendei de mim que sou humilde de coração”. Modelo consumado dessa virtude era o nosso São Clemente. Esquecido de quanto fizera em Varsóvia e em Viena dizia com convicção: “Nada posso fazer; o pouco que trabalhei e consegui, foi Deus quem fez por mim; não passo de indigno instrumento nas mãos de Deus”. Sempre que lhe acontecia algum mau resultado atribuía-o a seus pecados e à sua inabilidade: “Oh! se em toda a minha vida eu tivesse correspondido à graça, dizia ele, quanto bem não teria Deus operado por meu intermédio!” Isso não era só amplificação retórica ou frase vazia nos lábios de Clemente, mas pura convicção pessoal, embora saibamos ser isso simplesmente fruto da sua profunda humildade. Clemente era de natureza irascível, possuía um temperamento fogoso que logo fazia o sangue ferver nas veias; o Santo porém vencia-se, domava o seu natural, e mesmo que a alma sentisse os ímpetos furibundos de uma cólera violenta, não perdia o equilíbrio conservando-se tranqüilo no meio das tempestades, e até nessas horas críticas, muitas vezes, o sorriso enflorava-lhe os lábios, como se nenhuma luta sentisse interiormente. Nos momentos mais difíceis, nos combates mais renhidos, percebendo que a força resistente se lhe esgotava, levantava os olhos ao céu pedindo a proteção d’Aquele que estendia seus braços e as ondas encapeladas e revoltosas se acalmavam. “A mortificação da carne, dizia ele, não é absolutamente necessária à salvação, nem é tão difícil, mas a repressão interna da própria vontade e do amor próprio é penosa, e não obstante, imprescindível para a aquisição das virtudes cristãs”. O Servo de Deus longe de se entristecer com o seu temperamento ríspido e colérico, conformava-se com

a vontade divina e dizia: “Agradeço a Deus diariamente por me ter deixado essa irascibilidade: ela conserva em mim a humildade e me preserva do orgulho”. O quanto apreciava a humildade já o vimos em outro lugar, quando explicava às noviças de Sta. Úrsula a grande arte de agradar a Deus. “A humildade, dizia, é a raiz de toda a virtude”. Em suas pregações e conferências gostava de comentar a palavra de Sto. Agostinho: “A humildade é a mãe, a educadora, a companheira e o complemento das outras virtudes; mesmo as mais estupendas obras são sem valor, se não procederem da humildade e não forem por ela guiadas”. “Sede humildes, exortava a todos, porque do contrário a palavra de Deus será para vós como uma fábula”. Por ser humilde Clemente não se envergonhava de reconhecer e confessar as suas faltas, e com toda a devoção rezava: “Perdoai as nossas dívidas...” A tempestade interna desencadeava em sua alma foi, uma vez, tão violenta, que não pôde evitar em seu exterior uns leves movimentos de ira, que bem mostravam o que lhe ia na alma. Humilhado e confundido disse na presença de todos: “Sim, sim, eu sou um pobre coitado”. Essa grande humildade fazia-lhe desculpar as faltas nos outros. Quando alguém, esquecendo-se da caridade devida ao próximo, se punha a criticar ou censurar a outrem em presença do Servo de Deus, este constituía advogado do ofendido ou injuriado. Uma vez caiu a conversa sobre os santinhos que se distribuíam às crianças, os quais não eram artísticos nem bem feitos; os entendidos na estética indignaram-se com os santinhos e criticaram o autor, que rebaixavam e deprimiam sob o ponto de vista. São Clemente cheio de compaixão observou: “Não levem isso a mal; o pobrezinho fez o que pôde, teve a melhor vontade de agradar e isso basta”. Uma outra vez um médico pôs-se a descompor uma família, que nada de mal lhe havia feito: possuía ela em casa um altarzinho e nas paredes da casa belos quadros de Santos, em vez de tantas figuras indecentes, más e indignas que se encontram infelizmente em tantas casas para escândalo das famílias e dos visitantes; o médico desgostou-se com a pouca arte dos quadros, e pôs-se a censurar com acrimônia o pobre do pintor, a quem não queria consentir o prazer de se dedicar à arte da pintura, afirmando serem as suas obras um abuso e uma afronta à humanidade. O Servo de Deus, sempre bondoso, chamou-o à parte e repreendeu-o com brandura censurando o seu juízo tão severo, com as palavras: “Cuidado com o que dizes; não convém magoar um homem em coisas que lhe causam prazer”. Ele porém julgava-se muito mau, e admirava-se de que Deus o pudesse suportar prodigalizando-lhe tantos favores e graças, e, o coração nos lábios, agradecia ao Senhor sua grande generosidade e pedia aos amigos agradecessem a Deus em seu lugar, acrescentando: “Sempre que agradecemos a Deus, alcançamos dele novos favores”. Também para com os homens era Clemente extremamente grato por qualquer serviço ou favor recebido. Em sinal de gratidão distribuía tercinhos, santinhos e semelhantes coisas, que todos aceitavam com prazer por serem presentes de um Santo e dádiva de um coração bondoso que não possuía coisas mais preciosas ou luxuosas para dar; às crianças que lhe faziam algum pequeno favor, davam os seus recados, ou cumpriam as suas ordens, presenteava com maçãs ou outras frutas, bem como com um abracinho cheio de carinhos e ternura que alegrava o coração infantil. 92

Quando Clemente não tinha na ocasião coisa alguma para dar em retorno de algum favor recebido, dizia de coração um “Deus lhe pague”, que aliás nunca dispensava; comovia-se ao contar a história de S. Félix de Cantalício, que como pobre capuchinho, não tendo nada para retribuir aos amigos, dizia sempre ao receber algum presente: “Deo gratias”, isto é, Deus lhe pague, o que lhe valeu o significativo nome de Frei Deogratias que o povo lhe deu. Quando Deus mesmo paga, a recompensa é infinitamente maior do que quando nós retribuímos; é essa a simples razão por que o Servo de Deus não podia simpatizar-se com a expressão: “Muito obrigado”. Clemente sentia-se verdadeira e sinceramente incomodado quando percebia haver causado involuntariamente a qualquer pessoa alguma ofensa ou desgosto. Numa ocasião alguém o informou de o haver procurado muitas vezes sem conseguir encontrá-lo; Clemente disse sentido: “Sinto-me envergonhado de tê-lo feito assim dar essas caminhadas; mas Deus tê-las-á contado e escrito no livro da vida para a recompensa”. Clemente era frio para os louvores humanos. “Que são as palavras humanas?” perguntava ele, e respondia: “São apenas uma pressão passageira do ar”. Ao ouvir algum elogio feito a seus merecimentos, ou a seus trabalhos, interrompia imediatamente o panegirista com as palavras: “Acabe com isso; a gente só louva as crianças e os loucos”. Por vezes sentia até asco dos encômios que lhe faziam. “Quem me louva, açouta-me” dizia ele servindo-se das palavras que aprendera na escola do mártir Sto. Inácio de Antioquia. Por uma longa experiência da vida conhecia a falsidade dos louvores pronunciados por lábios humanos: “Alguns beijaram-me os vestígios dos pés, e três vezes mais atiraram sobre mim a lama da estrada; na medida que uns me louvavam, outros me enchiam de apodos e injúrias”. — Clemente manifestava não só por palavras, mas também por obra a sua profunda e verdadeira humildade. Embora sacerdote acatado pelos mais finos representantes da aristocracia de sua terra, embora Vigário geral da Congregação Redentorista, servia a todos com a maior prontidão, lavava com suas próprias mãos os meninos órfãos, ia à cozinha, acendia a estufa nas celas dos confrades, costurava as suas vezes, procurava os pobres e com eles se entretinha familiarmente; com os ricos e grandes do século só ia ter em se tratando de ganhá-los para Deus; na igreja ajoelhava-se ao lado dos pobres, cuja piedade o encantava; e fugia da haute volée repetindo a miudo: “Os pobres procuram a igreja por devoção e amor de Deus, que adoram e saúdam já desde o romper da manhã”. Quando algum neo-presbítero cantava sua primeira missa, Clemente gostava de servir ao altar, e em geral nas missas solenes servia de subdiácono que é o ofício de menor saliência. “A humildade é a saudade de servir; a alma que, livre do amor próprio, procura em tudo estar submissa e servir, ajudar e alegrar os outros, é verdadeiramente humilde”. Com essas palavras Clemente, sem o saber, descrevia a sua própria vida, e desenhava o seu retrato. O Santo, em geral, evitava falar de si mesmo, mormente quando o assunto podia reverter em louvor ou glória para ele; calava-se e nada dizia aos outros, quando recebia alguma visita honrosa, ou quando era alvo de parabéns ou felicitações merecidas. — Embora desde 1793 ele fosse Vigário geral, isto é, possuísse o primeiro posto na Congregação depois do Reitor-mor em Roma, muitas pessoas, mesmo entre as mais íntimas, o ignoravam completamente,

chegando a sabe-lo só depois da morte do Santo. Ocultava com cuidado as graças singulares que Deus lhe concedia com tanta profusão, e disfarçava os mais estupendos milagres que operava. Uma vez disse a Madlener, um dos seus prediletos: “Meu caro Madlener, comigo vão muitos segredos ao túmulo, quiser t’os contar, mas não sabes guardar segredos”. A esposa de Klinkowström tinha um filho, que era ídolo da mãe; mas Deus parecia tê-lo reservado para o céu em seus tenros anos; as escrófulas apoderaram-se da criança, tendo por conseqüência a tuberculose, e o pequeno emagreceu que mais parecia um cadáver do que um ser vivo. Clemente, que se dava muitíssimo com a família, foi visitá-la para colher notícias a respeito do pequeno. A mãe desconsolada, debulhada em lágrimas, apresentou a criança ao Santo: era só pele e osso, o corpinho já frio, os olhos vidrados, voltados para um lado, as lágrimas maternas que caiam, a fio, sobre o rosto do pequeno, não conseguiam aquecê-lo. Clemente olha o menino e com um sorriso nos lábios, bate-lhe mansamente com a mão na face, faz-lhe na fronte um sinal da cruz e diz à mãe: “Isso não é nada; hoje à tarde o pequeno terá fome e pedirá de comer”. E rapidamente dá uma volta firmando-se no salto do sapato, e retira-se. À tarde o sangue apareceu nas faces do pequeno que pediu alimento, e conservou dai por diante o seu apetite. A mãe, quase não acreditando em seus próprios olhos, chorou, porém, de contentamento e amor. O pequeno cresceu com saúde e atingiu uma idade bem avançada. Clemente era ávido dos sofrimentos e das humilhações, como os outros o são das honras e grandezas humanas. Muitas vezes convidado às refeições por pessoas nobres ou altamente colocadas, aceitava o convite não pela honra que lhe podia advir disso, mas pela ocasião que se lhe oferecia de sofrer um pouco por Nosso Senhor. Nessas ocasiões era, às vezes, posposto e deixado de lado; muitos dos que o conheciam e veneravam, envergonhavam-se do manto usado e velho, dos sapatos rotos, da batina remendada, das maneiras não muito finas e da linguagem, às vezes, incorreta; muitos padres não lhe prestavam a atenção devida, deixando-o só e sem entretenimento. Isso era um achado para São Clemente, que em tudo se queria tornar semelhante ao divino Mestre, que em sua vida mortal foi desprezado, preterido e até injuriado por amor de nossas almas. Executava em si e em sua vida aquilo que tantas vezes pregava às Ursulinas: “Sede humildes e convencei-vos que ninguém vos faz injúrias; só assim podereis suportar com resignação, e até com alegria todo o desprezo pelo amor de Deus”. Só esse é o caminho reto e verdadeiro da humildade: “A humildade é a verdade; falar e agir com humildade é bom, porém só quando nisso há sinceridade, porque diz a Escritura que alguns se humilham astutamente ficando o coração repleto de orgulho; o sinal mais certo e mais seguro da verdadeira humildade tem aquele que aceita e suporta as humilhações com paciência, amor e alegria. São Clemente atingiu tão alto grau de desprendimento de si próprio que pôde dizer com verdade: “Ser louvado ou censurado tem para mim o mesmo valor; só somos aquilo que valemos diante de Deus”. Na medida da sua humildade crescia o seu amor também para com os inimigos, isto é, para com aqueles que o desprezavam e cobriam de injúrias. Tendo uma vez de fazer uma viagem Clemente, que não possuía muito 93

dinheiro para gastar, tomou o carro do correio, onde por acaso teve de fazer companhia a um Senhor desconhecido. Como todos sabem, é agradável, em viagem, mormente longa, ter um companheiro com o qual se possa trocar idéias e passar menos aborrecido o tempo — mas nessa ocasião não se deu o mesmo com o Servo de Deus, porque o seu companheiro era lavado em todas as águas, e de religião e piedade ou antes de educação e filantropia não possuía nem a mais rudimentar noção. Embora jovem achava-se já envelhecido pelo vício, todo cheio de sensualidade e de ódio ao sacerdócio. No princípio lançou para o Santo, que se sentara em frente, um olhar sinistro, que bem mostrava a ira de que estava possuído; não tardou a abrir a boca imunda para expectorar sua bílis. Quanto mais falava, tanto mais eloqüente e violento se tornava; vendo que o Santo não reagia, indignou-se, desatou em blasfêmias horrorosas contra Deus e todo mundo, mormente contra Clemente, que desejava ver estraçalhado, picado e reduzido a sabão. Ao ouvir as blasfêmias o Servo de Deus estremeceu e pediu-lhe que cessasse tamanha ofensa contra Deus, porém debalde, a cólera do companheiro aumentava-se a cada palavra que o Santo proferia. Percebendo serem os seus conselhos improfícuos, o Servo de Deus calou-se e pôs-se a rezar pelo infeliz, continuando por muito tempo sentado em frente do blasfemador. Ao chegarem ao primeiro restaurante, o jovem senhor sentiu o estômago vazio e conseqüentemente apetite devorador e sede ainda maior. Quis levantarse, mas o corpo, apodrecido pelos vícios, não teve força para erguer-se. São Clemente, vendo a dificuldade do infeliz, esquece-se das injúrias recebidas, toma-o em seus braços, ajuda-o a descer conduzindo-o em seguida ao restaurante com todo o cuidado. Terminada a refeição Clemente torna a tomá-lo em seus braços e transporta-o ao carro tratando-o como uma mãe desvelada. O blasfemador sentiu-se confundido, reconheceu o papel feio que acabava de fazer, admirou a delicadeza, caridade e santidade daquele sacerdote, cujos lábios só se moviam para a oração, pediu perdão com toda a humildade dizendo: “Se tivesse conhecido, a mais tempo, um sacerdote como vós, nunca teria caído em tão mísero estado”. Quando Clemente praticava atos heróicos de caridade e paciência como esse, não se preocupava tanto com a fragilidade humana, mas visava tão somente a alma imortal criada à imagem e semelhança de Deus. O Servo de Deus amava os inimigos e os perseguidores e chegava a dizer: “Os inimigos devem ser tidos na conta de benfeitores, porque nos auxiliam a ganhar o céu”. E de fato eles nos dão ocasião para a prática das mais belas virtudes como da paciência, mansidão, confiança em Deus, submissão à vontade divina e magnanimidade, virtudes essas que não existiriam se não fossem os inimigos ou os mal-entendidos sobre a terra. Clemente tinha inimigos gratuitos que o odiavam entranhavelmente, desejavam destruir a sua obra e impedir a execução dos seus planos; o Santo porém nunca se queixou nem deixou escapar a menor palavra de murmuração ou de desgosto contra os seus perseguidores. Ao contrário conservava-se sempre alegre e sorridente no meio das tempestades internas, que se moviam em seu coração, e das externas que se desencadeavam contra ele. Uma Ursulina mostrando-se uma vez compadecida com o Santo por causa das muitas perseguições, de que era alvo, dirigiu-se a ele para lhe abrir o

coração. Em seguida, desejando edificar-se com as palavras do Santo, perguntou-lhe se não sentia algum rancor no seu coração. A sorrir-se Clemente levantou a mão para o alto dizendo: “Eis, minha mão não está manchada de sangue nem nunca o derramou”. A sua única vingança consistia em rezar pelos inimigos afim de os ganhar para Nosso Senhor. No número desses adversários achava-se um sacerdote que o detestava e não perdia vasa em denegri-lo e caluniá-lo, fazendo tudo para vê-lo expulso de Viena. Clemente sabia disso, e para mostrar que não guardava daquilo nenhum ressentimento, todos os domingos ia assistir-lhe a pregação para dela haurir proveito para a sua alma; louvava-o em toda a parte salientando e enaltecendo-lhe as boas qualidades e desculpando qualquer falta ou defeito que o dito padre pudesse ter cometido. Do púlpito o Servo de Deus não se cansava de recomendar o amor aos inimigos e o perdão das injúrias, e com o Evangelho na mão, repetia constantemente que ninguém deve ir acomodar-se, à noite, sem antes perdoar de coração a quem o ofendeu. “Perdoai e ser-vos-à perdoado”, dizia ele com suas palavras e seu exemplo. Uma vez voltava o Santo da Igreja das Ursulinas para casa, os olhos semicerrados, todo reconcentrado nas suas meditações. No outro lado da rua, na mesma direção, ia um par de noivos, de braços dados, palestrando com animação fora do comum; falavam do Santo e tão alto que ele os ouvia; lançavam-lhe de quando em vez olhares sarcásticos, permitindo-se graçolas, ditos picantes e até ofensivos. Na intenção de magoarem o Servo de Deus, que não os ofendera, puseram-se a insultá-lo, dando-lhe os nomes de “santo taumaturgo” “ligoriano”, desfazendo-se em risadas, e até em gargalhadas por causa desses nomes, que eles nem compreendiam. O Santo fez como se não ouvisse aqueles gracejos, sentindo sincera compaixão dos pobrezinhos. Aconteceu que no meio das risadas e dos vitupérios a senhoria deixou cair o lenço, sem o perceber. Clemente que casualmente vira aquilo, foi até o lugar onde estava o lenço, levantou-o do chão e andando um pouco mais depressa alcançou a dona, a quem entregou o objeto perdido. Envergonhada a senhorinha nem sabia para onde olhar, e o seu muito digno companheiro não ficou menos perplexo. Uma única palavra lhes veio aos lábios: “Queira perdoar-nos, padre”.

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CAPÍTULO XXI

Amor ao clero e à Congregação Amor ao Papa, aos Bispos e Sacerdotes — As pupilas de Deus — O sacerdote francês — Redentorista até a medula dos ossos — Cache-nez de seda — Exemplos de severidade e brandura — Enérgico protesto — Difusão da Congregação — Fundação na Valachia — Saudades da Polônia. AMOR AO CLERO! — É impossível amar a Esposa mística de Jesus Cristo, a Santa Igreja, sem se sentir animado de santa veneração para com os seus ministros, a saber: o Papa, os Bispos e os Sacerdotes. Quantas vezes não disse o Servo de Deus do alto do púlpito: “Quem não honra e venera o Papa, não honra nem venera nossa mãe, a Santa Igreja; quem não obedece às ordens e aos preceitos do Sumo Pontífice, é um filho indigno da Igreja; quem não reza por seu pai, é um filho desnaturado, e quem não ora pelas intenções do Santo Padre, é um mau cristão”. Ele mesmo sentia-se animado de profundo respeito e sincero amor para com o Papa, que sabia revestido da dignidade suprema no mundo, o representante de Deus sobre a terra, o rochedo sobre o qual Jesus edificou a sua Igreja, o Pastor dos pastores, o pai espiritual de todos os milhões de católicos que existem, o possuidor das chaves do reino dos céus, o oráculo do Espírito Santo, que o protege e ampara contra os erros, sempre que ele se apresenta como pastor supremo da cristandade a ensinar uma doutrina de fé ou de moral. Sentia orgulho santo por poder dar-lhe o nome de pai e declarar-se filho obediente e humilde da Santa Sé. As saudades que sentia do Papa, levaram-no, mais vezes, a Roma; quando não podia ir pessoalmente, escrevia-lhe cartas informando-o dos acontecimentos tristes ou alegres da religião na Europa, maxime na Áustria. Ao falar da pessoa augusta do Pontífice usava sempre as expressões mais respeitosas, os termos mais reverentes, como se falasse de um Santo, ou do próprio Jesus Cristo. Uma vez foi-lhe dada a honra de receber do Santo Padre Pio VII um rosário da Ss. Virgem; Clemente conservou-o, toda a sua vida, qual relíquia preciosa, que o acompanhava em toda a parte. Dando uma vez pela falta do precioso tesouro ficou inconsolável, rezou e mandou as Ursulinas rezar a Sto. Antônio que costuma achar coisas perdidas. Quando uma das Irmãs encontrou o rosário, Clemente exultou de contentamento; porque aquele terço não lhe recordava somente sua Mãe celestial, mas também a pessoa do representante de Jesus sobre a terra. Ao Núncio Apostólico de Viena tributava o Santo toda a veneração e respeito, porque nele via incorporada a pessoa do Santo Padre em sua Pátria. Os

bispos eram-lhe como anjos de Deus, verdadeiros príncipes, elevados a essa dignidade pelo Sacramento da ordem, que eles possuem em toda a plenitude; de coração e com alegria executava pontualmente as suas determinações e ordens, que considerava a expressão da vontade divina. Ao encontrar-se casualmente com algum sacerdote saudava-o, onde quer que fosse, com todo o respeito e atenção. Dos padres só falava como convém a ministros de Deus; não consentia que em sua presença alguém faltasse à reverência devida ao caráter e à dignidade sacerdotal. Sempre que algum sacerdote aparecia na igreja para celebrar, Clemente ia-lhe ao encontro, recebia-o com demonstrações de contentamento, ajudando-o, em pessoa, a paramentar-se para o Santo Sacrifício. Aos padres gostava de dar o nome tão lindo quão significativo que encontrara na Escritura Sagrada: “pupilas de Deus”. E realmente esse nome quadra admiravelmente com o sacerdote, quando encarado à luz da fé. Como a pupila dos olhos, embora pequenina, pode abranger um mundo de coisas que nele se refletem, e exerce uma força admirável sobre homens, que se deixam prender, muitas vezes, por um olhar, diante do qual tremem ou choram, assim o padre é, diante de Deus, uma pobre criatura, mas possui uma força sobrehumana, leva em suas mãos o Criador dos céus e da terra, com uma palavra faz baixar do céu o Filho de Deus, encerrando-o em uma hóstia, e com a mesma facilidade restitui a graça e a amizade de Deus ao coração arrependido. O sacerdócio é uma maravilha do poder e bondade de Deus. O homem preza a menina dos seus olhos mais do que todas as riquezas terrenas; assim Deus ama os seus ministros e quer vê-los amados e obedecidos por todos. “Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza”. Não permite que alguém os maltrate ou ofenda “Nolite tangere Christos meos”, isto é, “não toqueis os meus sacerdotes”, e raras vezes deixa sem castigo, já neste mundo, a quem ofende a pessoa do padre, que lhe é consagrado. Mesmo quando um ou outro sacerdote, por fragilidade humana, se desviara do cumprimento do dever, tornando-se talvez uma pupila inflamada, ou encoberta por densa catarata, Clemente o venerava e pedia a Deus, se dignasse iluminá-lo e convertê-lo. Em 1816 apareceu no quarto do Santo um indivíduo maltrapilho, que dava aparência de um vagabundo de botas rotas, calças esquálidas, paletó esburacado, chapéu amarrotado: era um sacerdote francês, que, seduzido pelos revolucionários, prestara o juramento à constituinte francesa, o que o papa proibira sob pena de suspensão. Pobre sacerdote! esperava grandes coisas da revolução, talvez uma colocação rendosa no novo governo, uma vida flauteada como lhe tinha sido prometido. Mas o contrário se dera. Desprezado pelos seus e atormentado pelos remorsos da consciência, o pobrezinho não teve sossego desde aquele dia infeliz; peregrinava de um lugar para o outro sem descanso e definhava a olhos vistos. Não suportando mais a vida em sua pátria, dirigiu-se ao Núncio Apostólico de Viena, a quem, arrependido, narrou sua triste história, a página negra da sua vida, pedindo remédio para seus grandes males. O Núncio compadeceu-se do infeliz e enviou-o a Clemente, a quem dera poder de o absolver da excomunhão em que incorrera. O Servo de Deus recebeu-o com amor, hospedou-o, matou-lhe a fome, cortou-lhe os cabelos, fez-lhe a tonsura e pregou-lhe durante uns dias o santo retiro preparatório para a execução da sentença, que era a absolvição da excomunhão e o perdão dos 95

pecados que cometera em sua vida. Amor é Congregação. Entre todas as coisas da terra o que lhe ficava mais perto do coração, a receber as suas cálidas pulsações, era, sem dúvida, a Congregação. Clemente era Redentorista e gloriava-se dessa honra; pela Congregação estava pronto a dar seu sangue e sua vida. Não se esquecia jamais do momento em que, pobre padeiro de Viena, fora em Roma recebido no noviciado de São Julião, onde se preparou para a vida, emitindo, depois do noviciado, os santos votos que o prenderam para sempre à Congregação. Em Roma bebera, em largos tragos, o espírito de Sto. Afonso, que não é outro senão o espírito de oração e de amor ardente a Jesus e a Virgem Santíssima. A Congregação ficou sendo sua mãe espiritual, e as santas Regras, o livro santo, que lhe interpretava a vontade divina , o código pelo qual seria julgado um dia pelo Juiz eterno. Lia e decorava esse complexo de leis e avisos, observava-os com o maior escrúpulo, não só nos pontos capitais e de maior importância, mas em todos os pormenores e no espírito, com que foram confeccionados. Embora nos últimos anos da vida não pudesse residir em um convento propriamente dito, mas só em uma casa particular, nunca deixou de observar o horário prescrito pela Regra, mesmo nos dias de maior trabalho e ocupação. Com seus Superiores em Roma entretinha a mais exata correspondência epistolar, pondo-os sempre ao par de tudo quanto se passava na Áustria e na Suíça, ou consultando-os a respeito dos mais importantes projetos. Isso é tanto mais admirável, quanto mais difíceis eram as circunstâncias do tempo, em que o josefismo procurava impedir toda e qualquer comunicação com Roma. Quanto à observância regular era ele de uma exatidão admirável. Aos Redentoristas é proibido, pela Regra, o uso da seda, por ser esta objeto de luxo e não ficar bem a um simples Religioso. Aconteceu ficar Clemente atacado na laringe de um incômodo, proveniente dos esforços feitos na pregação da palavra de Deus. Embora vítima de dores atrozes por causa dessa enfermidade, nem por isso deixava de pregar oferecendo esses sofrimentos a Nosso Senhor pela conversão dos pecadores. Uma nobre senhora de Viena, notando que a voz lhe saia com dificuldade, teve compaixão e comprou-lhe um cache-nez de seda, para o defender do frio e da constipação. Clemente meneou a cabeça, a sorrir, e disse: “Minha filha, a um Redentorista não é permitido o uso de objetos de seda”. Notando que a pobre senhora se entristecera com essa palavra, não querendo magoá-la, acrescentou: “Se a senhora deseja obsequiar-me e faz questão disso, eu aceito um cache-nez de lã”. Em outro lugar desta obra temos já considerado o Santo como Superior, e visto o seu zelo pela observância regular entre os confrades, mormente em se tratando do amor à pobreza, que é a essência da vida religiosa. Clemente não deixava de repreender qualquer defeito ou falta contra a santa obediência. O Pe. Sabelli era um tanto voluntarioso, e não poucas vezes gostava de seguir a sua opinião com prejuízo da observância e da ordem; estando ele um dia já paramentado para começar a missa, o Santo, querendo provar-lhe a obediência, entrou na sacristia e sem outros preâmbulos mandou-o desparamentar-se. Sabelli que estava então de bom humor, tirou os paramentos sem nem franzir a fronte em sinal de desaprovação. O Santo ficou satisfeito com a obediência do padre e permitiu-lhe celebrar. Em outra ocasião mandou chamar à sacristia o padre Martinho Stark, que estava

ouvindo confissões na igreja. Como perto do confessionário se achava ainda uma pessoa esperando a sua vez, Martinho não obedeceu prontamente e atendeu mais aquele último penitente. São Clemente esperou-o com paciência, na sacristia; quando o súdito chegou, perguntou-lhe secamente: “Onde é que ficou tanto tempo?” O padre deu a explicação que julgava justificar o seu procedimento, ao que o santo acrescentou com certo azedume: “Isso o Sr. não fez para Deus, mas para o demônio”. Uma outra vez, esse mesmo padre, não se sabe bem por que, não chegou a tempo como devia; São Clemente desejando chamar-lhe a atenção e fornecer-lhe uma bela ocasião de se humilhar, mandou-o ajoelhar-se e passou-lhe uma tremenda descompostura, de sorte que o padre tremia como se tivesse chegado para ele a hora do juízo. Dr. Madlener achavase presente, e ao ouvir semelhante trovoada, encheu-se de compaixão e pôsse a desculpá-lo; o Santo, fitando-lhe os olhos, disse com laconismo: “Isso não é da sua conta, o sr. não entende nada disso; por ele não, o sr., mas eu tenho de prestar contas a Deus”. São Clemente procedia dessa forma, não para se mostrar grande ou fazer sentir sua autoridade, mas única e exclusivamente em prol da Congregação e da observância regular. Se, às vezes, parecia um trovão de severidade, logo em seguida se transformava em cordeiro de mansidão e bondade personificada, de sorte que ninguém levava a mal essa sua energia e firmeza. Clemente não queria caracteres efeminados na Congregação, padres sem energia e incapazes de ação firme, mas só homens de resolução e força de vontade, heróis na observância regular, caracteres lídimos e amantes da virtude e do trabalho. Mesmo a seus Superiores em Roma escrevia, com respeito sim, mas com franqueza, quando se tratava da observância regular. Aconteceu que na Itália alguns padres Redentoristas, sentindo demasiado o rigor da pobreza e não querendo romper de vez com a Regra, encontraram um meio termo, decretando que cada padre pudesse ter algum dinheiro, à sua disposição, na gaveta do Reitor; isso chegou a ser aprovado por um Capítulo Geral. O Santo, compreendendo que isto era inteiramente incompatível com o voto de pobreza, emitido na Congregação, escreveu a Roma protestando contra semelhante determinação, “que dizia ele, é prejudicial ao voto de pobreza, multiplica os desgostos, prepara a ruína completa da Congregação pelos inúmeros abusos e perturbações da ordem, a qual se abre a porta com esse decreto”. Consolidando interiormente o bom espírito dos seus padres e preparandoos para a prática de todas as virtudes religiosas, pensava Clemente em engrandecer a sua querida Congregação e difundi-la pelo mundo inteiro para a maior glória de Deus e para o bem das almas. Concebeu os mais arrojados planos, percorreu, a pé, em viagens de fundação, numerosos países da Europa, sondou inúmeros lugares, onde pudesse encontrar um ponto tranqüilo para o desenvolvimento da Congregação e para a fundação de novos conventos. A Alemanha, a Áustria, a França, a Suíça, a Rússia fizeram parte de seus projetos, porém em parte alguma viu luzir esperança de resultado para os seus planos; volveu seu pensamento para a América, e tinha já destacado dois padres para início da fundação nessa terra nova, onde se aspiravam as auras risonhas da liberdade religiosa, quando apareceu em Viena Mons. Ercolani, bispo da Valachia, e pediu ao Santo, desistisse da América e mandasse para a 96

sua diocese os padres Redentoristas que tanto se distinguiam pelo bom espírito e amor ao trabalho. Ponderando os motivos apresentados pelo bispo e considerando, que em Bucareste havia muitos mil alemães desprovidos de socorro espiritual, sem nem um padre sequer, que lhes pudesse quebrar o pão da palavra divina, em iminente perigo de se tornarem luteranos ou calvinistas mandou o Servo de Deus três de seus padres e um irmão leigo, que começassem lá uma fundação. Com a sua bênção deu-lhes os necessários conselhos e instruções, e mais uma boa soma de dinheiro, que lhes deveria facilitar o trabalho nos primeiros anos. São Clemente achava-se animado da mais fagueira esperança pela nova fundação, chegando a escrever a um amigo: “A seara é grande, lá existem gregos cismáticos e seitas de todas as nações, que é preciso conduzir ao redil da Igreja de Cristo; a Ásia não dista muito de lá”. Uma outra vez desabafou o seu coração no de seu amigo Frederico Schlosser escrevendo-lhe: “Bucareste é o escoadouro de todas as nações; muitos moços — até de 18 anos — não sabem nem a que religião pertencem, porque não há instrução religiosa nas escolas; nas povoações rurais as igrejas estão caindo por não haver quem delas se compadeça”. As primeiras notícias eram em extremo consoladoras; os triunfos dos seus padres e da Congregação enchiam seu nobre coração de alegria e satisfação. Após o recebimento dessas novas escreveu a um seu amigo: “O bom Pe. José faz milagres naquela terra selvagem, prega em alemão; e, em caso de necessidade ouve confissões também em valacho; essa cidade (Bucareste) é o valhacoito de todos os foragidos, uma mata virgem por onde correm todas as feras; lá reina a mais crassa ignorância em coisas do céu... os pais só tratam de dar de comer a seus filhos e de trabalhar; o bom Pe. José precisa correr de um lado para o outro, pedindo aos pais que permitam aos filhos freqüentarem a escola, que lá erigiu em casa alugada, e Deus tem-se servido dele para operar uma transformação maravilhosa de costumes”. Notícias tristes e alarmantes, porém, não tardaram também a chegar aos ouvidos do Vigário Geral da Congregação em Viena. Ao ouvir que os seus caros confrades eram perseguidos injustamente pelos sacerdotes cismáticos, e que se achavam reduzidos à maior miséria, não tendo teto sob que se abrigassem, por o bispo não haver sustentado sua palavra nem cumprido o trato, Clemente chorou, arrependido de haver causado, embora involuntariamente, esses desgostos e sofrimentos a seus confrades. Confiando sempre na Providência que tudo governa, deixou seus padres na Valachia, esperançoso de que melhorassem as condições de vida, e afinal, se encontrasse um lugar favorável ao desenvolvimento da Congregação. — Em 1818 um dos padres da nova fundação foi a Viena ter com o Santo e dar-lhe as necessárias informações. É fácil imaginar-se o interesse com que Clemente o recebeu; tornava a ver o seu querido José Forthuber, jovem de seus trinta anos, bela e robusta figura, adornada de uma barba longa e espessa que mais ainda o recomendava. As narrações dos trabalhos empreendidos animaram a Clemente, mormente quando ouviu que em toda a parte os missionários eram recebidos como anjos do céu. “Quando os missionários chegam a um povoado qualquer, conta o Pe. José, e se alojam em algum albergue ou casa de pau a pique coberta de sapé, onde homens e animais habitam conjuntamente, ouvem, ainda à noite, as confissões

dos homens, e no outro dia de manhã, depois de enxotados da habitação os animais e feito o necessário e possível asseio, levantam um altar provisório, confessam as mulheres e, em seguida, celebram a missa e distribuem a comunhão. Depois dão aula de catecismo aos presentes, visitamos doentes, põem em ordem os diversos negócios e decidem todos os litígios, porque nessa terra os padres devem ser tudo, até juízes”. Não obstante tudo isso, o Servo de Deus estava pouco resolvido a deixar os seus padres partir novamente para a Valachia; temia que o excesso de trabalhos arruinasse os seus caros confrades. Como, porém, os jovens redentoristas se sentiam com força e coragem, sedentos das almas abandonadas e sem nenhum receio ou medo das perseguições, que são geralmente inevitáveis nos grandes empreendimentos, deixou-os partir provisoriamente; porém, o seu coração se enchia de sérias apreensões e lhe dizia que aquela fundação não havia de durar muito tempo. E de fato, já em 1821, um ano depois da morte do Santo, o Pe. Passerat, que lhe sucedeu no governo da Congregação transalpina, recolheu para Viena os padres, que o tomaram depois direções diversas. Clemente, no meio de tantos trabalhos e preocupações, não podia esquecer-se de sua querida Polônia, onde experimentara tantas consolações, onde encetara sua vida apostólica; nutria ainda esperança de fundar na Polônia conventos da Congregação. “Dai-me os cânticos polacos tão simples, e na sua simplicidade mais lindos do que os que aqui se cantam”, gostava de repetir freqüentemente. Queria essa fundação, de cuja conveniência e possibilidade se convencera não obstante as guerras e as revoluções que dilaceravam esse pobre país. No congresso de Viena deu para isso os passos necessários, porém, sem resultado. Para lá enviou seu grande amigo Zacharias Werner, a pessoa mais competente para esse negócio por seus conhecimentos como por suas virtudes, com o fim de sondar o terreno e ver, se se poderia conseguir algum resultado favorável. As negociações pareciam bem encaminhadas e o Pe. Martinho Stark pôde escrever a Roma: “As coisas vão bem na Alemanha: também na Polônia acabam de nos oferecer um convento, e o Pe. Clemente já aceitou a proposta; parece que no verão deste ano ele mesmo irá à Polônia”. Circunstâncias imprevistas vieram desfazer as belas esperanças do Santo. O plano que São Clemente se propusera de operar grandes coisas por Deus e de imolar a sua vida pela religião, transparecia certamente de todas as suas ações e em todas as frases da sua existência, mas sobretudo e de um modo particular dos esforços sobre-humanos pela consolidação interna e externa da Congregação; por ela sacrificou os 34 anos do seu trabalhoso apostolado, passados em Varsóvia, em Viena e em outros lugares onde procurara estabelecer a Congregação Redentorista. Embora o céu não lhe tivesse querido conceder a doce consolação de ver, com seus próprios olhos, o fruto abençoado da sua operosa atividade, conseguiu, graças aos seus ingentes esforços, a aprovação da sua Congregação, a formação dos primeiros Redentoristas transalpinos, a difusão da Congregação em diversos países da Europa e da América. O sonho dourado da sua vida era, enviar a todas as partes do globo, uma legião de operários evangélicos, e ele o realizou maravilhosamente. Os cinco mil Redentoristas do mundo veneram-no não só como confrade, mas também como seu segundo Fundador. CAPÍTULO XXII

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No combate com os maçons Sabelli imprudente — A causa da perseguição — As acusações — Aqui não é bom estar... — É cidadão austríaco — A busca na residência — A intimação — A palavra do monarca — Esperanças desfeitas. O crepúsculo da vida de Clemente foi bem diverso do que se imaginara; não foi o céu tranqüilo, repleto de bonança como nos meses inolvidáveis passados nos poéticos e arrebatadores bosques do Tívoli, mas a tempestade furiosa dos derradeiros anos de São Beno. Um ano antes da morte, cansado já e alquebrado pelos trabalhos exaustivos de um ativo apostolado, por pouco não foi expulso da sua pátria, como outrora de São Beno. A Providência, que queria fazê-lo passar grandes tribulações, nos últimos momentos interveio ainda, não só permitindo-lhe passar seus últimos dias na Pátria, que tanto amava, mas também realizando, de um momento para o outro, o sonho que o afagava nos dias do seu noviciado. O que parecia impossível, realizou-se: a Áustria josefista abriu, em par, as portas à Congregação. Mas não precipitemos os fatos. Ocasião imediata para os últimos desgostos do Servo de Deus, deu-a o Pe. Sabelli, que São Clemente denominava “a cruz da casa”. Aborrecido e contrariado, Sabelli dirigiu-se ocultamente a Roma, pedindo transferência para um dos conventos da Itália, a qual lhe foi naturalmente concedida. Mas a viagem? eralhe necessário obter o passaporte e o governo austríaco fazia as maiores dificuldades em conceder passaportes para a Itália. Devido a esses obstáculos Sabelli recebeu ordem de se dirigir ao convento de Valsainte na Suíça. Ao tratar do passaporte para lá, parece que o bom do padre, sem o pensar, comunicou à polícia o fato de ele pertencer a uma Congregação não aprovada na Áustria bem como a sua transferência por ordem dos Superiores de Roma, a Valsainte. Desde esse dia a polícia abriu ainda mais os olhos para observar o confessor das Ursulinas, de quem Sabelli era súdito. Procuraram um motivo, ou um pretexto para o acusar, porém não o encontraram. Os maçons queriam ver-se livres daquele sacerdotes molesto, que revolucionava pacificamente a cidade de Viena. Que ele se sentasse no confessionário e se interessasse pelos pobres e pelos enfermos, ainda passava; também perdoavam-lhe o levar à Igreja os protestantes, pois que se tratava quase só de estrangeiros que os vienenses desprezavam, mas a influência exercida sobre os jovens, maxime sobre os acadêmicos, não podiam os maçons permitir. O modo de pregar do Servo de Deus era suspeito, mas o seu auditório consistia em grande parte de gente simples sem perigo algum para os maçons. O que eles não podiam absolutamente perdoar era, que o espírito de São Clemente

começava a invadir a universidade, em cujo corpo docente encontrava já três grandes amigos e admiradores, a saber: o professor do Antigo Testamento, o da teologia dogmática e o do Novo Testamento; eram justamente essas as matérias mais importantes da universidade. Dois dentre eles, imitando o modo de pregar do Santo, procuravam corrigir a pregação usual em Viena e instruir apostolicamente o povo. Alguns dos alunos do Servo de Deus, dia a dia, enchiam-se de mais coragem na universidade protestante, às vezes, contra os professores em plena preleção; formavam um como partido sempre crescente na universidade. O próprio São Clemente não ignorava que com isso havia de crescer também a ira dos adversários. Ele escreveu, um ano antes, à família Schlosser. “A graça divina age sobretudo nos jovens, que se dedicam ao estudo das ciências. Se alguém pudesse e quisesse, efetuaria logo aqui uma grande mudança na mocidade estudiosa; os estudantes já sentem asco das doutrinas ensinadas na universidade. Já tenho sido acusado muitas vezes de desencaminhar os rapazes”. Os maçons sentiam as forças que se levantavam cheias de vida, e temiam pelo futuro; recorreram à polícia, acusando a Clemente de virar a cabeça dos estudantes. A universidade de Viena era o foco da iluminação intelectual; catolizar a universidade seria o mesmo que desfechar o golpe de morte aos hereges. A coisa era pois do maior interesse e dai a luta; uma série de atas públicas bem mostraram, que na Áustria se trabalhava para fechar a boca ao Servo de Deus e, se possível, expatriá-lo para longe. É interessante ouvir as acusações feitas contra o pobre sacerdote que não possuía outra arma senão a oração e a boa vontade. Em 1817 aparecem as seguintes acusações contra a sua pregação: “Esse homem velho não condiz mais como tempo; é necessário afastá-lo do púlpito e mandar espiões para escutarem as pregações”. Mas porque tudo isto? as acusações são motivadas: “Clemente apoia-se com as duas mãos sobre o púlpito, abaixa muito cabeça para seus ouvintes... subitamente levanta-se e inclina-se para trás, grita, às vezes, desumanamente e bate com as mãos no púlpito”. Apresentaram essas acusações ao Arcebispo, que era um grande amigo pessoal de Clemente, e que para combater a pregação da moda em Viena publicara uma circular, louvando o procedimento e o modo de pregar do Servo de Deus. — Os inimigos não se cansaram. Acusaram-no de não observar as leis do império, mormente na liturgia, pois que se atrevia a fazer procissões proibidas, excitava o povo às romarias, espalhava entre as massas escritos supersticiosos de indulgências, recomendava o rosário, a freqüente recepção dos Sacramentos, o culto das imagens, livros de piedade etc, relacionava-se demais com os Núncios, combatia os professores liberais de teologia, correspondia-se com Roma, procurava iludir os jovens a saírem da Pátria para entrarem em conventos estrangeiros. Um fato merece especial menção por sua originalidade. Um belo dia desapareceu de Viena a filha de um senhor muito conhecido; a suspeita recaiu imediatamente sobre o Servo de Deus, que nada tinha que ver com o caso. A polícia interveio e Clemente teve que comparecer perante o tribunal eclesiástico para responder sobre isso e mais outras acusações. O consistório compunha-se de pessoas sem fé como Gruber, cônego e diretor da faculdade de filosofia, e de outros sem religião como ele. Os capitula98

res sentados ao redor da mesa formavam o tribunal; o Arcebispo, ancião venerando e amigo de Clemente, não tinha força para impedir as exigências do seu Cabido. Clemente teve de comparecer e, não obstante sua dignidade sacerdotal e a inocência da sua vida, deve permanecer em pé diante de seus juízes. O interrogatório começou com todas as formalidades de um tribunal. “Qual o seu nome? onde nasceu? donde vem? a que religião pertence?” A esta última interrogação Clemente sentiu-se ofendido e respondeu com calma sim, porém com toda a expressão do tratamento indigno: “Ora essa? todo o mundo sabe que eu sou um padre católico!” A isso naturalmente seguiu uma forte repreensão. Percebendo a ira e a indignação com que procediam contra ele, Clemente inclinou-se respeitosa e cortesmente diante dos juízes dizendo: “Aqui não é bom estar; retiro-me”, e serenamente foi saindo pela porta fora. Ninguém esperava por aquilo e o tribunal viu-se repentinamente privado do seu réu. O velho e nobre Arcebispo, longe de se desgostar, aprovou o procedimento do Santo dizendo: “Ele procedeu bem indo-se embora, fez como os Apóstolos; sacudiu a poeira dos seus sapatos”. Essa expressão compreende-se facilmente, considerando-se que aquele julgamento não procedera da autoridade eclesiástica, mas fora imposto pela polícia contra a vontade do digno Arcebispo, que naqueles tempos lutuosos não podia agir contra a força bruta do governo. Os capitulares de sentimentos religiosos olharam-se reciprocamente e riram-se, não do ancião que com tão bela resposta se retirara, mas da situação cômica em que ficaram colocados. As pesquisas sobre o desaparecimento da menina ficaram sem efeito. Nos meses seguintes permaneceu Clemente debaixo da vigilância da polícia. O Santo, embora não se deixasse intimidar por coisa alguma, achou mais prudente pôr-se de sobreaviso. Clemente era perseguido até por parte do clero. — O perigo era grande, mas ninguém tinha coragem de agir abertamente contra ele devido à amizade que gozava junto do Arcebispo e da cotação e estima em que era tido por homens de peso e valor público como Pilat, secretário de Metternich, Adam Müller, Frederico Schlegel, arquiduque Maximiliano, barão Penkler e semelhantes. Os maçons recorreram ao conde Saurau. chanceler da corte da Boêmia e Morávia, e josefino consumado, denunciando-lhe Clemente como fanático, espião de Roma, o qual punha os italianos ao par de tudo quanto se passava em Viena. Saurau encheu-se de cólera, foi ter com o Monarca, pedindo-lhe ou antes exigindo a expatriação de Clemente, que era um verdadeiro perigo para a nação. O Imperador, porém, respondeu-lhe com o laconismo que lhe era próprio: “Isso não, não posso expatriá-lo, porque ele é cidadão austríaco”. Desfeita a primeira tentativa, era necessário achar um ponto legal, sobre o qual eles se pudessem apoiar para se apoderar da pessoa do humilde Redentorista. Como não encontrassem pretexto algum por mais que indagassem dos conhecidos e amigos de Clemente, lembraram-se das palavras de Sabelli que acabava de ser transferido para a Suíça por ordem dos Superiores em Roma. Numa busca na residência de Clemente talvez pudessem descobrir qualquer motivo de fundada acusação. Em janeiro de 1819 apareceram inesperadamente três homens na residência do Santo numa hora, em que ainda se achava ocupado na Igreja de Sta.

Úrsula; no quarto de Clemente achava-se somente o professor Dr. Madlener, seu discípulo predileto, que recebeu os três, a saber: o professor do direito canônico no Theresianum, o ex-beneditino Braig, vice-diretor dos estudos, e um outro sacerdote, relator do governo austríaco; com eles foi também um ajudante ou secretário. Esperaram que o Santo chegasse, mandaram Madlener ausentar-se e fecharam a porta. Quatro horas inteiras ficou lá a comissão inspecionando tudo, remexendo todas as gavetas, abrindo os armários, revistando todas as cartas — mas não acharam coisa alguma em que se estribar para as suas acusações. Desesperados de suas pesquisas interrogaram o Santo, que não negou ser Redentorista, e como tal, súdito de um Superior na Itália. “Ipsi audivimus blasphemiam”. Os senhores estavam contentes, não era necessário mais nada; exclamaram: “A ordem não é reconhecida na Áustria, e superiores estrangeiros são proibidos pela lei; ele deve ou renunciar à Ordem ou abandonar a Áustria”. Procederam ao protocolo, e, terminada a revista, chamaram a Clemente que em seu genuflexório rezava o rosário da Virgem, suplicando a sua proteção para aquela hora tão sinistra. Seguiu-se o interrogatório e a intimação, feitos a São Clemente por Braig, o ex-beneditino. — O Senhor deve renunciar a sua Ordem ou abandonar os Estados austríacos. — A minha Ordem não renuncio, respondeu Clemente. — O senhor pode secularizar-se. — Nunca o farei. — Então abandone a Áustria. — Antes isso. — Mas para onde vai? — Para a América, somente peço que se adie a viagem para depois do inverno por causa da minha avançada idade (Clemente tinha então 68 anos). Por fim o Santo teve de escrever tudo, de próprio punho, e prometer que abandonaria a sua Pátria. Depois de obedecer à comissão e assinar à sua expatriação, o Santo perguntou, se tinha mais alguma coisa a fazer, ao que responderam negativamente. — Ainda resta uma coisa, disse o Santo. — Qual? perguntou curioso o primeiro comissário. Levantando o dedo para o alto Clemente exclamou: — O juízo final. Toda essa farsa não passava de uma detestável intriga; os comissários não tinham sido delegados por ninguém, nem pelo consistório nem pela polícia. O presidente do juízo de apelação declarou ser tudo isso uma vil e ilegal usurpação do poder. Os comissários retiraram-se pouco antes do almoço. Clemente, como de costume, deu o sinal para o exame particular e as ladainhas. À mesa, na palidez do rosto do Servo de Deus suspeitaram alguma coisa de anormal, mas de seus lábios não conseguiram arrancar palavra alguma; só depois da morte de Clemente é que os discípulos souberam o que se passara dentro das portas fechadas. O Santo via aniquilada a esperança que há tempo, nutria de ver a sua 99

Congregação introduzida na Áustria. Sendo a expatriação um direito imperial, era para isso necessária a licença do monarca, e por isso toda a história foi levada ao conhecimento do Imperador, que declarou por intermédio de seu chanceler, que a expatriação só poderia se concedida a pedido de Clemente, a quem deu liberdade de fazer o que bem entendesse. O chanceler, que estava inteiramente de acordo com os inimigos do Santo, participou ao Arcebispo o decreto, como tratando de uma ordem do monarca que exilava o Servo de Deus. Chamado pelo Arcebispo, Clemente compreendeu que não devia nem podia calar-se ocultando a verdade, narrou-lhe todo o ocorrido. Enquanto isso se passava, de Santa Úrsula chegou ao palácio arquiepiscopal um pedido insistente pela conservação do Santo como Reitor da igreja. O Arcebispo foi ter com o Imperador declarando-lhe que com Clemente perderia o melhor sacerdote da sua diocese, e o Monarca, ciente do ocorrido, confirmou a permanência do Santo... que não obstante ficou intimamente amargurado com o procedimento de seus adversários. “O Pe. Clemente está tão desgostoso e contrariado, escreveu um dos padres a Passerat, e tão aborrecido em Viena, que já por esse motivo se decidiu fazer sua viagem em maio”. Mas para onde? O Servo de Deus estava ainda indeciso, se para Friburgo ou para Roma. Nesse interim entregouse Clemente a seus trabalhos habituais. O jejum da quaresma enfraqueceu-o devido ao aumento do trabalho pela saída de Sabelli; adoeceu tão gravemente que o Pe. Martinho, ao participar a Passerat a doença do Santo acrescentou recear muito pela vida dele. Felizmente pôde resistir devido a sua forte e robusta constituição. Depois dessa doença recebeu o Santo a visita de uma senhora, que muito se congratulou pelo restabelecimento do Servo de Deus, que a sorrir exclamou: “Ora muito bem, como são bons os meus amigos, que nem sequer me desejam o a posse do céu”, e acrescentou em tom solene: “Desta vez eu quisera morrer, ah! seria esse o meu maior prazer; mas Deus não o quis, está bom assim”. A primeira metade do ano 1819 foi para o nosso Santo uma das épocas mais penosas da sua vida; em toda a parte, para onde dirigia seus olhares, via esperanças desmoronadas, planos abatidos, cuidados prementes, dificuldades e contrariedades. É que Deus o preparava para o último e decisivo combate...

CAPÍTULO XXIII

A Congregação na Áustria O Imperador visita o Papa — O memorandum — Começa com os jovens — Eu não o verei — Previsões — Resignação. A questão referente a São Clemente ficou indecisa, mas a vigilância policial continuou. Tentaram conseguir do arquiduque Maximiliano a expatriação de Clemente, porém debalde; esse grande amigo do Santo disse em resposta: “Viena não precisa só de um Clemente; seria para desejar que houvesse lá ainda seis outros homens como ele para reformar a religião”. Entretanto o Núncio Apostólico, Mons. Leardi, partiu para Roma a fim de informar o papa Pio VII sobre o estado da Igreja na Áustria, e narrou ao Sumo Pontífice as perseguições de que estava sendo alvo o Pe. Clemente, tido pelos maus como espião romano. Pouco depois chegou a Roma também o Imperador que foi congratular-se pessoalmente com o Papa pela libertação que acabava de conseguir da escravidão francesa. Com fina diplomacia soube Pio VII interceder por São Clemente, dando a sua Majestade os parabéns pelos sacerdotes zelosos que possuía em Viena, mormente por Clemente, “homem verdadeiramente apostólico, adorno do clero e coluna da Igreja”. Como o Papa não ignorava que o maior crime, atribuído a São Clemente, era a sua dedicação e amor à Santa Sé, mencionou o que Clemente muitas vezes dissera a Muzzi, auditor da nunciatura: “Vós, romanos, não sabeis tratar os alemães; entre eles poderíeis conseguir muito mais, se os compreendêsseis e os soubésseis tratar”. Essa observação agradou imensamente ao Imperador; a palavra do Papa causou-lhe impressão e a sinceridade do Servo de Deus mais ainda. Ao retirar-se da audiência, havida com o Chefe da cristandade, o Monarca narrou tudo a seu confessor, Pe. Darnaut, e ao capelão Pe. Job, que o acompanharam a Roma e acrescentou com majestosa benevolência: “Ofenderam e magoaram o bom Pe. Clemente, estou sentido com isso, se eu soubesse como reparar tanto desgosto a ele causado...!” Darnaut conhecia e estimava profundamente o Servo de Deus, e desde há muito ouvira que ele não tinha maior desejo do que conseguir um lugar seguro para a Congregação na Áustria, e por isso pôde dizer ao Monarca: “O Pe. Clemente só tem um desejo: o de ver a Congregação aprovada na sua Pátria; se V. Majestade realizasse esse seu desejo, ele ficaria inteiramente satisfeito”. A 26 de abril o Imperador partiu para o Sul em visita a Nápoles, onde provavelmente se informou sobre a Congregação Redentorista que lá tivera o seu berço, e sobre o grande fundador dela, Sto. Afonso de Ligório. Que o Imperador se interessou vivamente pelo pobre perseguido de Viena deduz-se do fato de ter ele, no meio das festas e outras manifestações de regozijo, escrito de Nápo-

les uma carta ao Santo, pedindo-lhe apresentar à corte as Regras da sua Congregação, e indicar o modo como se poderia introduzir também na Áustria o Instituto do napolitano Afonso de Ligório. É fácil compreender a alegria e a consolação de Clemente, grato em tudo aquilo ao dedo da Providência. Salutem ex inimicis nostris. — O que ele não conseguira diretamente com seus trabalhos e sofrimentos, desgostos e cuidados, obteve-o por meio dos inimigos que o perseguiam. Grande Clemente! por ele interessaram-se os maiores poderes sobre a terra: o Papa e o Imperador! Sem mais detença pôs-se o Santo ao trabalho, compôs o Memorandum, em que expôs com prudência o fim da Congregação. Como a palavra “missão” era detestada em Viena e facilmente irritaria os nervos dos burocratas, Clemente suprimiu-a escrevendo simplesmente que a Congregação se ocupava em ministrar a instrução aos ignorantes e o socorro espiritual aos necessitados, sendo assim útil à Igreja e ao Estado. O Imperador ao voltar de Roma, mandou chamar o Servo de Deus para uma audiência especial, ficando agradavelmente impressionado com a aparência enérgica, firme e jovial do nobre ancião, a quem tratou com benevolência; o Monarca deu-lhe permissão de fazer mais algum pedido; Clemente somente acrescentou o desejo de obter a Igreja de N. Sra. da Escada em Viena para a Congregação, e a permissão de se poder interessar pelos Boêmios da Capital com um culto especial na língua deles. Esse pediu encheu todas as medidas dos desejos do Imperador. A 29 de outubro de 1819 o Santo apresentou o Memorandum com a Regra, que o Monarca entregou a uma comissão especial, composta de amigos do Santo e de pessoas da confiança do Imperador. Tudo parecia sorrir esperançosamente ao Santo, mas a coisa não deixava de ter suas dificuldades devido às circunstâncias desfavoráveis da época e ao fato de exigir tempo demasiado longo para pôr o novo Instituto em acordo com as leis vigentes. Enquanto a comissão gastava tempo em examinar a Regra, os bons e os maus trabalhavam, todos com a certeza da vitória; os amigos de Clemente não perderam vasa de agir ativamente em prol da Congregação dando as melhores informações sobre ela, fazendo-lhe as mais lisonjeiras referências e, mais que tudo pedindo a Deus com fervorosas orações pelo feliz resultado das negociações. Os maus não desistiram, embora se sentissem bem humilhados e não se atrevessem a contrariar abertamente os desejos do Imperador; procuravam protelar o andamento da revisão esperando do tempo o arrefecimento do entusiasmo do Monarca, ou algum caso imprevisto que desfizesse os planos. O Servo de Deus não duvidava da aprovação, contava até com o resultado consolador e dispunha as coisas para não haver retardamento de espécie alguma, quando chegasse o decreto imperial. O Santo tinha apenas consigo o Pe. Martinho Stark, jovem de seus 33 anos, confiava porém no zelo dos seus discípulos, com os quais queria dar início à sua grande obra. Alguns dentre eles eram teólogos, outros já haviam terminado os estudos, e outros até já haviam recebido o presbiterado, exercendo o cargo de coadjutores para passar o tempo, até a admissão no Instituto. Nesse interim Clemente dedicou-se ainda com mais carinho à formação esmerada dos seus jovens, que eram para ele o futuro da Congregação, e sentia-se feliz por encontrar em todos a maior boa vontade.

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Aos jovens poupava paternalmente, como vemos do caso narrado por Pajalich. Uma vez, escreveu ele, o Servo de Deus humilhou publicamente, não sei por que motivo, a um dos seus confrades; um penitente e discípulo de Clemente, “Dr. Madlener”, estranhou a severidade com que o Santo tratava seus congregados, e atreveu-se a perguntar-lhe, porque é que não procedia com a mesma severidade, mas antes com tanto carinho, para com os outros penitentes e discípulos, ao que o Santo respondeu: “Vós ainda não me pertenceis e por isso não terei de prestar a Deus contas tão rigorosas de vós, como por ele que é meu súdito”. Isso está inteiramente de acordo com o que ele uma vez disse a um dos seus estudantes e futuros Redentoristas: “Quando estivermos uma vez no nosso posto, deveremos começar seriamente a fazer penitência e a santificar-nos antes de pregar aos outros”; e em outra ocasião: “É preciso começar com os jovens, porque com os velhos pouco se poderá fazer”. Essas repetidas expressões do Santo mostram o desejo que nutria de abrir em breve o noviciado para ensinar aos jovens todas as virtudes e introduzi-los e consolidá-los na vida interior do convento. Não menos se preocupava o Santo com o lado material, isto é, com a aquisição do necessário à comunidade a instalar-se confortavelmente no novo convento. “Quando a Congregação estiver aprovada na Áustria, disse ele, mandarei o Pe. Martinho para a Suíça, porque ele ainda não presta para Superiores”. Em outra ocasião afirmou que chamaria o Pe. José Passerat, homem santo e excelente Diretor de almas. Num dos seus armários, na gaveta mais larga e funda, havia grande quantidade de doces, pacotes de café etc. que lhe tinham sido ofertados por alguns amigos; apontando para esses objetos, tão agradáveis ao paladar, disse a um dos seus discípulos: “Isso tudo é para os nossos confrades em N. Sra. da Escada”. Entretanto a aprovação diferia-se mais do que se supunha, e Clemente percebia que Deus, provavelmente, não lhe queria conceder a alegria de introduzir a Congregação na Áustria; o que ele semeara a custo de abundantes suores, outros deveriam colher. Como outrora Moisés só pôde avistar de longe a terra da promissão sem ter o prazer de levar lá o povo que dirigira e governara quarenta anos na travessia do deserto, repartindo com ele alegrias e dores, assim Clemente antegozava, sim, a aprovação da sua Ordem, mas percebia também que não seria ele o escolhido por Deus para organizar o primeiro noviciado e introduzir firme e definitivamente, além dos Alpes, a Congregação que tanto amava. Teria Clemente sentido no princípio esse duro golpe da Providência? Uma Irmã Ursulina contava que, quando no convento deram ao Servo de Deus os parabéns pelo decreto imperial, que em breve garantiria legalmente a subsistência da Congregação na Áustria, ele suspirando exclamou: “Mas eu não o verei”, disse-o com precisão, embora se esperasse a cada momento a aprovação, e Clemente não apresentasse propriamente nenhum sintoma de enfermidade grave. Os discípulos do Santo, as irmãs e, em geral, os amigos tinham a convicção certa de que Clemente viveria pelo menos ainda uns anos, pois que Deus não o podia tirar no momento em que ele mais necessário parecia ser à Congregação. O Servo de Deus, porém, era inabalável nas suas palavras, falava como profeta que contempla e conhece o futuro. Uma outra vez, conversan-

do com um amigo médico disse: “Enquanto eu viver, nada se fará, mas depois da minha morte conventos se erguerão”. Entretendo-se outra vez com a Irmã Jacoba que lhe expunha suas dúvidas interiores etc. afirmou o Santo: “Primeiro é preciso que eu morra, só depois é que a Congregação se difundirá”. A uma outra irmã, falando familiarmente sobre o futuro da sua Ordem na Áustria e sobre o bem imenso que os Padres Redentoristas haviam de operar pela glória de Deus e o bem das almas imortais e abandonadas naqueles tempos tão tristes, o Servo de Deus assegurou “que o Imperador não haveria de assinar o decreto aprovando a Congregação na Áustria, enquanto ele não tivesse dado sua alma ao Criador”. Expressões idênticas empregou o Servo de Deus em diversas ocasiões, de sorte que podemos afirmar, sem medo de erro, que Deus lhe manifestara essa disposição da sua vontade. De um lado exultava o Servo de Deus prevendo o futuro da obra, pela qual se batera, garantido e seguro, do outro sentia, humanamente falando, o golpe da Providência, que assim o provava e privava da maior consolação dos seus trabalhos. O Servo de Deus, porém, resignou-se com a vontade santíssima do Altíssimo, e em certo ponto sentia-se mesmo consolado, conforme se externou uma vez: “Devo morrer antes que a Congregação se propague, então poderei fazer mais para os meus junto do trono de Deus do que agora em vida”. Como é próprio dos Santos, esquivar-se à vista dos homens, para que toda a glória, nas grandes obras, recaia sobre o Autor de todo o bem, que é Deus, Clemente, prevendo a grandeza da Congregação, desejava com toda a humildade desaparecer do cenário da vida. Manifestou esse seu desejo com as palavras: “Grande honra se me está preparando dentro em breve, prefiro morrer já, antes que isso se realize”.

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CAPÍTULO XXIV

Suspirando pelo céu O cortejo das Virgens — Sempre a trabalhar — O auxiliar enfermo — Desgraça é só o pecado — Missa por uma benfeitora — Bela profecia — Recebe a extrema-unção — Obediência edificante — Vou para o meu retiro — Morte santa — Na câmara ardente — Sepultamento magnífico. Na igreja dos Minoritas o Servo do Deus estava uma vez a ouvir confissões e a reconciliar os pecadores com Deus. Terminado o trabalho restava ainda no templo apenas um homem que viu abrir-se, subitamente, a porta da igreja e entrar um cortejo de virgens em uniforme branco, todo adereçado de ricas flores, empunhando magníficas guirlandas, que agitavam no compasso, e assim caminharam até perto de Clemente que se achava sentado no confessionário; quando as Virgens passaram, o Servo de Deus inclinou-se profundamente com as palavras: “Sim, eu vou logo”, e elas desapareceram. Admirado de tão estranha cena o homem aproximou-se do Santo perguntando-lhe, qual a significação daquilo. “Fique quieto, disse Clemente, e não o conte a ninguém”. — Já havia algum tempo que Clemente se achava mal, o seu estado, porém, piorou consideravelmente no inverno de 1820. Embora atacado de fortes e violentas dores hemorroidais não cedia, atirando-se sempre ao trabalho; a febre tornou-se tão aguda que o pulso acusava 150 pulsações por minuto; no delírio Clemente recitava trechos inteiros dos Santos Padres, passagens da Sagrada Escritura, sem omitir uma única palavra nas citações. Passada a crise Clemente continuava seus trabalhos. No caminho que ia da sua residência a Santa Úrsula, encontravam-se por vezes, copiosas gotas de sangue; na igreja, embora sofresse dores atrozes, permanecia sentado no confessionário para não incomodar as irmãs. Os discípulos, tendo ante os olhos a constituição robusta e a energia indomável do Santo, julgaram-no fora de qualquer perigo; Clemente, porém, não se iludia sobre a proximidade de seu fim; a quem dizia que a vida lhe era necessária e que por isso ele não podia morrer, respondia com laconismo: “Deus não precisa de ninguém!” Entretanto o Santo definhava dia a dia; diminuíram-se as forças, mas não cessaram os trabalhos, que se lhe tornaram uma segunda natureza. Deus sabe provar as almas, e quando as quer fazer passar pelo crisol das tribulações não envia apenas uma cruz, mas uma multidão delas a oprimir o corpo e a alma. Enquanto Clemente gemia ao peso da enfermidade, enviou Deus uma doença grave ao Pe. Martinho Stark, único auxiliar de Clemente em que a igreja das Ursulinas; como em casa não havia empregados e nem irmãos leigos que o pudessem assistir, o pobre Clemente teve que fazer o papel de

enfermeiro, subindo e descendo constantemente as escadas para atender ao padre enfermo e ao povo que o reclamava. A um amigo disse uma vez o Santo referindo-se à enfermidade do Pe. Martinho Stark: “Não sei qual de nós está mais doente!” É escusado dizer que o trabalho de Clemente se duplicou com a doença do seu auxiliar. A 4 de março, sábado, achavam-se, à noite, reunidos os discípulos no quarto do Santo, para a conferência; Clemente ouviu-os de confissão; depois desse serviço começou a sentir o peso da enfermidade que o levaria ao túmulo. Nesse estado de prostração mandou ainda fazer a leitura, à mesa, com as observações que costumava entremear ao texto, porquanto o seu espírito conservavase vivo e fresco como nos outros dias. Durante a leitura dessa tarde, por exemplo, perguntou aos discípulos, qual o motivo porque no Antigo Testamento não se imolavam os peixes a Javé; como ninguém soubesse responder, ele mesmo disse: “É porque o peixe não tem voz para anunciar os louvores de Deus”, e tirou logo a conclusão, que para ele era sempre a coisa principal: “... os homens devem com mais razão louvar a Deus, porque não possuem só a voz, mas também o entendimento, e esses louvores manifestam-se sobretudo na oração em comum”. Os discípulos, notando a fraqueza física do Santo, quiseram ausentar-se um pouco mais cedo, mas ele os deteve dizendo: “Pouco se me dá, que eu vá dormir mais tarde”. No dia seguinte, 3.º domingo da quaresma, o Santo fez ainda um esforço e pregou pela última vez em sua vida; tomou por tema as contas, que cada um deve prestar a Deus, de todas as suas ações, dos favores e graças recebidas; uma sentença calou profundamente no ânimo de todos impressionando-os fortemente: “Se durante toda a minha vida eu tivesse sempre correspondido à graça, quanto bem Deus não poderia ter operado por mim!” Foi essa a sua palavra de despedida do alto do púlpito. Nesse dia e nos dois que se seguiram, o Santo trabalhou como se nada houvesse de anormal; apesar do frio extraordinário ia de manhã à igreja dos Minoritas e depois à das Ursulinas, ouvia as confissões, recebia as visitas, fazia, à noite, as reuniões e entretinha os rapazes. No dia 8, quarta-feira, celebrou pela última vez em Sta. Úrsula, e das 9 às 11 horas ouviu as confissões das religiosas. Antes de retirar-se chamou a Irmã Thadéa e disse-lhe: “Reze bastante por mim, que estou muito doente”, e deixou o convento para nunca mais voltar. “Em seguida, conta a Irmã, olhei para ele com o coração repassado de dor e pus-me a chorar, pois que não podia familiarizar-me com a idéia de que não o tornaria a ver; aquelas palavras eram as da despedida; o Servo de Deus parecia um cadáver, e a minha consternação tornou-se tanto maior, quando me recordei do que, há um mês atrás, ele me garantira que morreria brevemente... Pedi então ao Santo que me permitisse orar de modo especial pela cura do Pe. Martinho. “Sim, sim, disse ele, o Pe. Martinho sara logo, mas eu morrerei em breve”. Eu então continuei: “pedirei a Deus se digne conceder a V. Revma ainda muitos anos de vida e saúde”, ao que ele respondeu: “Não se faça a nossa vontade, mas a de Deus assim na terra como no céu”; mas, continuei, seria para nós grande desgraça, se tivéssemos de perder a V. Revma., e ele: — “Desgraça é só o pecado”. Para o dia 9 estava marcada na igreja dos Italianos uma missa solene de

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Requiém pela princesa Jablonowska, que o Santo venerava como benfeitora generosa do convento de S. Beno em Varsóvia; em homenagem a essa insigne benfeitora Clemente fez um esforço heróico e foi a pé a dita igreja e cantou o Requiem; abateu-se, porém, de tal modo, que necessitou de um carro para voltar à sua residência. Entretanto Pe. Martinho sentia-se melhor e achava-se já fora de perigo; o próprio Pe. Clemente parecia restabelecer-se e recuperar as forças... mas infelizmente eram só aparências; o estado não tardou a agravar-se espantosamente desde a missa da princesa Jablonowska. O Servo de Deus jazia em seu leito de dores, longe dos seus confrades e quase fora da Congregação; o único confrade que o acompanhava estava guardando o leito, e ele sem um criado ou Irmão leigo que o assistisse! Os amigos, discípulos e penitentes do Santo não lhe podiam prestar seus serviços, por se acharem também ocupados fora. O Servo de Deus pouco se entretinha com os homens, porque se conservava sempre recolhido em oração aos pés de Jesus Crucificado, a quem oferecia as dores e sofrimentos, que o acabrunhavam. Foi numa dessas ocasiões que um dos discípulos do Santo, pensando no futuro da Congregação, expôs ao Servo de Deus as ingentes dificuldades que haveriam de ter para construir os conventos, devido à grande falta de recursos materiais; o Santo olhando para ele disse com gravidade: “Quereis edificar igrejas e construir conventos, e não tendes força para combater e refrear as paixões; tende paciência, Deus nos dará bastante conventos; pobre eu fui a Varsóvia, onde não encontrei morada nem recurso de qualidade alguma; um ano depois, possuía já tanto dinheiro que me foi possível distribuir diariamente esmolas aos pobres e matar a fome aos necessitados; — enquanto eu estiver vivo, não tereis conventos, mas depois da minha morte, te-los-eis em abundância”. Foi por essa época, que tomando a mão de Madlener, seu discípulo predileto, lhe disse “que consigo levava ao túmulo muitos segredos, que quisera comunicar-lh’os, mas não o fazia porque Madlener não podia guardar segredos”. As Ursulinas tinham uma empregada muito boa e fiel, por nome Mariana; mandaram-na a S. Clemente para se informar do estado de sua saúde; quando a pobrezinha viu o Servo de Deus em tão triste estado e em perigo de vida, desatou em pratos: “Mariana não chores, disse, em breve me acompanharás”. A empregada era robusta e não apresentava nenhum vestígio de enfermidade, e não obstante — poucos dias depois era um cadáver. Durante a última enfermidade o Servo de Deus recebeu relativamente poucas visitas; os amigos supunham que a enfermidade não fosse de morte e por isso não o queriam molestar; somente os penitentes, que desejavam algum conselho particular, iam ter com ele; mesmo no leito o Santo os reconciliava com Deus. Aos 13 de março o Dr. Veith achou conveniente dar-lhe a extrema-unção; o Pe. Madlener, depois de muito hesitar, aproximou-se de Clemente com a pergunta: “V. Revma. quer receber o seu Deus?” ao que o Santo respondeu corrigindo a expressão pouco dogmática: “A santa comunhão? sim, sim”. Chamaram o confessor, e durante a absolvição Clemente delirou, um pouco, repetindo as palavras da absolvição, como se ele fosse o confessor e não o penitente. A comunhão o Santo a recebeu com tocante devoção, permanecendo longo tem-

po de mãos postas, com o rosto voltado para o lado da parede, para maior recolhimento. Antes da sua morte teve o Santo algumas horas de sossego, e satisfeito pôs-se a cantar o seu hino predileto: “Tudo para a glória de Deus”. Ao entrar o Santo em agonia, que durou 2 horas, o seu rosto, aliás tranqüilo e sereno, cobriu-se de palidez dando sinais de indizíveis dores; Clemente pela veemência da dor erguia do leito quase continuamente, procurando alívio. Aquele espetáculo enchia de consternação e de compaixão os assistentes, que amargurados viam o Santo sofrer indizivelmente sem poderem aliviá-lo. Madlener na certeza de que aqueles movimentos, longe de dar ao Santo algum alívio, serviam apenas para aumentar os seus sofrimentos, aproximando-se do leito disselhe aos ouvidos: “Pe. Clemente, por obediência fique sossegado na cama”. O Santo obedeceu como uma criança; chamaram o confessor e, momentos depois, a tranqüilidade estampou-se novamente no rosto do Servo de Deus, cujos lábios se puseram outra vez em movimento para a oração. Chegou enfim o dia 15 de março. — Nesse dia sucedeu em Viena um fato singular. A família Biringer, cujo pai falecera há tempo, era dirigida do Santo, que a socorrera em muitos casos difíceis; a mãe mandou sua filha perguntar pela saúde do Santo; enquanto esta executava as ordens da mãe, teve a viúva uma visão clara: o Servo de Deus apareceu-lhe, sentou-se como de costume no sofá, queixou-se da falta de fé no mundo, mormente entre os funcionários e pessoas altamente colocadas, acrescentando três vezes: “vou para o meu retiro” e desapareceu. No correr da manhã reuniram-se diversos discípulos do Servo de Deus em sua residência; o Santo silencioso rezava de mãos postas. Chegou o meio-dia, e de todas as torres de Viena começaram os sinos a soar festivamente o Angelus Domini. Clemente fez um esforço para recolher as forças e disse aos presentes: “Rezai, estão batendo o Angelus”. Enquanto os presentes ajoelhados saudavam a Mãe de Deus, Clemente expirou placidamente para saudar no céu sua inesquecível e estremecida Mãe. No momento da morte um leve sorriso veio estampar-se em seu rosto, antes convulsionado pelo excesso da dor. Providência divina! — Nesse mesmo dia à tarde o Imperador assinou o decreto permitindo e aprovando a Congregação para a Áustria. Realizou-se com pontualidade a profecia do Santo. A impressão da morte de Clemente nos assistentes foi diversa: uns choravam, outros enchiam-se de uma santa alegria. As irmãs Ursulinas, reunidos para a refeição, ao ouvirem a notícia da morte do Servo de Deus, chorosas abandonaram o refeitório e dirigiram-se à igreja a fim de rezar pelo santo confessor. Os discípulos, que não contavam com aquele desfecho rápido, ficaram perplexos e confusos. O Núncio Leardi por sua vez escreveu a Gonsalvi: “O bom Pe. Clemente passou, ao meio-dia, à eternidade; todos os bons estão consternados com a perda dessa coluna da boa causa; ele é simplesmente insubstituível”. Aprontaram o quarto vazio do coadjutor no primeiro andar térreo e expuseram o corpo do Santo, vestido do hábito redentorista com uma bela estola roxa, em que estavam ricamente bordados os instrumentos da paixão e a imagem de Nossa Senhora das Dores. O rosto do Santo, que recuperara sua cor natural e os traços de serenidade com o sorriso admirável nos lábios, causava a todos a

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melhor e mais santa impressão. A notícia da morte de Clemente espalhou-se com a rapidez do relâmpago para tristeza dos bons e contentamento dos maus. No dia seguinte uma multidão imensa, na expressão do Pe. Rinn, veio visitar o corpo do Santo, pois que todos queriam beijar-lhe as mãos pela última vez e receber por relíquia algum objeto que lhe tivesse pertencido. A condessa Szecheny osculava, entre lágrimas, as mãos do Santo, não podendo ausentarse de perto do seu antigo Diretor espiritual, que tanto a confortara em seus sofrimentos e angústias. Quando alguém se lembrou de avisá-la que tivesse cuidado para não contrair, por contágio, a moléstia do Santo (supunham que ele tivesse sofrido o tifo abdominal), a condessa respondeu: “Não tenho medo porque os Santos não infeccionam a ninguém”. O desejo de levar relíquias do Santo era tamanho, que foi mister vigiar o caixão, porque uns cortavam pedaços da batina e do cabelo, outros levavam fragmentos quebrados ao caixão, enquanto que outros limpavam a casa levando tudo o que sabiam ter pertencido ao Servo de Deus. A voz geral que se faziam ouvir em Viena era: “Temos um Santo no céu”. No dia seguinte iam ser entregues à terra os despojos mortais do grande Apóstolo de Viena. Como a morte fora simples e assistida apenas pelos amigos do Santo, supunha-se que da mesma simplicidade se revestiria também o seu sepultamento. Encarregado dos funerais era o Pe. Martinho que, adoentado ainda, se achava distante na fazenda de um nobre senhor; dos estranhos nenhum se lembrou disso. A um ou outro que perguntava pelo enterro, respondiase que tudo seria feito com simplicidade. Uns dias antes havia o Pe. Martinho interrogado ao Santo, que é que se deveria fazer caso ele viesse falecer, ao que o Santo respondeu: “Fique sossegado, Deus há de providenciar”. E aquela palavra foi uma profecia. “Naquela quinta-feira, escreve Pajalich, houve um certo sossego, do meio-dia às 2 horas, sem que pessoa alguma se lembrasse do sepultamento; parece que o padre Martinho dera ordem de se fazer tudo do modo mais simples e oculto possível... Mas Deus providenciou para que o enterro se tornasse pomposo. Os admiradores do Servo de Deus sentiram um desejo irresistível de contribuir para o realce do sepultamento do Apóstolo de Viena. Desde as 2 horas começaram a chegar homens e mais homens, vindos de todas as direções para a Igreja de Sta. Úrsula, onde agradeceram ao Senhor os inúmeros benefícios recebidos por intermédio do falecido; pouco depois apareceu na residência de Clemente um caixão de madeira consistente, destinado ao Santo; era presente do conde Szecheny. Na medida que se aproximava a hora do enterro crescia o número de penitentes, amigos e admiradores que lhe vinham prestar as últimas honras. Chegada a hora do préstito fúnebre as duas ruas que conduzem a Sta. Úrsula, achavam-se apinhadas de povo; da mesma forma chegou grande número de sacerdotes, e enfim precedidos da cruz apareceram em nobre cortejo os clérigos e padres do seminário arquiepiscopal, sem que para isso tivessem recebido ordem ou permissão; atrás dessa procissão caminhava o célebre Zacharias Werner de pluvial rico ao lado de numerosa assistência. Pobres e ricos, nobres e plebeus, pessoas de todos os estados e posição, até soldados, compareceram ao acompanhamento do cadáver. Terminadas as orações prescritas e entoado o Miserere, pôs-se o magnífico préstito

em movimento. Os discípulos de Clemente, futuros Redentoristas, pegaram as alças do caixão, que carregaram com profundo respeito e devoção, acompanhados por outros que empunhavam velas. Coisa admirável! ninguém havia convidado o povo, e a multidão apareceu empunhando velas acesas; uma multidão incalculável, no maior recolhimento, formando a guarda de honra do cadáver! Não sendo Sta. Úrsula igreja matriz, devia o préstito dirigir-se à catedral de Sto. Estevam. Era tocante e emocionante aquele cena! a multidão se desfazia em prantos e, às vezes, soluçava; senhoras com os filhinhos nos braços choravam como crianças. Em frente ao convento das Ursulinas fez-se uma segunda encomendação entre as lágrimas das Irmãs que pranteavam seu pai espiritual e insigne benfeitor; nas exéquias revezaram-se o Pe. Zacharias Werner e o Pe. Schmid, confessor do Santo. A tarde era magnífica, o ar tranqüilo, o ruído habitual dos carros de praça cessara naquelas ruas, por onde ia passar o préstito fúnebre até a catedral. Reinava silêncio profundo, em que tanto mais se ouviam os dobres, as marchas fúnebres e os sons plangentes da banda musical bem como os hinos e as orações, entrecortadas de soluços, que se elevavam ao céu pelo falecido. Era um verdadeiro triunfo; o préstito movia-se vagaroso por causa da multidão de povo e dos inúmeros carros que acompanhavam o cadáver. Obstupefação geral causou o fato de se achar aberta, em par, a porta principal de Sto. Estevam, a qual nunca se abre por ocasião dos enterros, a não ser que se trate de pessoas altamente colocadas, ou de muita influência na sociedade, mediante o pagamento de cem florins de prata. E ninguém sabia quem tinha aberto, ainda mais que o capelão havia dado ordens terminantes em contrário. Ao chegar o préstito em o largo de Sto. Estevam começou a escurecer; isso só servir para dar ao enterro o aspecto de triunfo; as milhares de pessoas que enchiam a vastíssima praça e as ruas vizinhas, empunhavam velas, que acesas, formavam um como mar de luzes ondulantes no meio da multidão. Era uma coisa nunca vista! donde aquelas velas? quem tivera a idéia de comprá-las todas? ninguém o poderia dizer. A catedral gigantesca ficou apinhada; depois do Libera-me o Pe. Zacharias Werner com o coração comovido e a voz a tremer cantou a absolvição e as orações prescritas. Por ser já noite fechada, os restos mortais do Santo foram depositados no necrotério por aquela noite. Viena jamais vira enterro tão comovente e magnífico como aquele; foi uma verdadeira apoteose em que tomou parte a Capital da Áustria em sua quase totalidade, e o que é mais admirável ainda, tudo isto sem convite algum. No dia seguinte o corpo foi levado ao cemitério de Enzersdorf, ao cargo dos Padres Franciscanos. Sobre o túmulo humilde de Clemente colocaram simples epitáfio: “Fidelis servus et prudens, isto é, Servo fiel e prudente”. Nesse dia apareceu uma notícia sobre o Servo de Deus, publicada pelo célebre cientista Adam Müller no mais afamado órgão de imprensa vienense, nos termos seguintes: “A 15 de março de 1820 faleceu aqui, pelo meio-dia, na idade de 69 anos o R. Pe. Clemente Maria Hofbauer, Vigário geral da Congregação do Santíssimo Redentor, fundada pelo bem-aventurado Afonso de Ligório, e confessor do convento das Ursulinas. A atividade fecunda e estupenda, que só ele pôde desenvolver em circunstâncias difíceis e posições arriscadas, confirmam-nos os muros de São Beno em Varsóvia, além dos milhares de testemunhas que ele alimentou, vestiu e conduziu a Deus por meio de uma vida cristã.

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Dissolvida lá a Congregação pelo dominador dos franceses (Napoleão) dirigiu-se ele a sua Pátria onde viveu desde 1808 em Viena. Os frutos de sua vida ativa, verdadeiramente apostólica, os pósteros os hão de colher. Nobres e plebeus, sábios e ignorantes deploram a perda irreparável do seu pai e guia, e mesmo os mais afastados, que só o conheciam de nome, sentem-lhe a morte, porque com ele esmoronou-se mais uma coluna da fé e da religião, e por isso, também da Pátria. Só o pensamento de que ele continua a viver no gozo infinitamente grande, pode mitigar a amargura causada por seu passamento”.

CAPÍTULO XXV

Retrato do Servo de Deus Testemunho de um dos discípulos — do Dr. Veith — do cônego Greif — de um amigo do Santo — de Jacoba de Welschenau — de Luiza Pilat — de um exjesuíta — do cardeal Rauscher. Diversos amigos e admiradores de Clemente têm-nos descrito o Servo de Deus tanto no seu físico como em sua vida íntima, no seu modo de agir e no seu caráter másculo. Quanto ao exterior descreve-nos um dos seus primeiros discípulos: “O Servo de Deus era de tamanho regular, de constituição forte e boa estatura; fortes eram sobretudo os ombros e o peito; o pescoço era um tanto curto, a cabeça redonda e bem formada, o rosto antes redondo que oval. Embora cheio de dignidade eram sempre amável e sorridente. Nunca o vi rir, mas sempre sorrir-se levemente, os olhos ele os tinha sempre semicerrados; quando porém falava com entusiasmo de alguma verdade da fé, via-se um como resplendor irradiar-se deles; andava sempre reto, inclinando apenas a cabeça. Embora se alimentasse pouco e se sobrecarregasse de muitos e pesados trabalhos, não era magro. Homem enérgico não manifestava nenhum vestígio de orgulho. Andava sempre com o hábito da ordem, no verão usava um manto preto e leve, debaixo do qual escondia o terço, que lhe não saía da mão. No inverno vestia um manto azulado. À cabeça ele tinha sempre coberta por um gorro, mesmo quando andava pelas ruas. Os cabelos do Servo de Deus eram escuros e, nos últimos tempos da sua vida, um tanto grisalhos”. O retrato do seu caráter descreve-o admiravelmente o Dr. Veith, grande amigo do Santo e preclaro médico e cientista do seu tempo. “Ao Servo de Deus tenho antes os meus olhos, agora depois de 44 anos, tão vivo e fiel como nos dias da sua vida mortal, homem extremamente amável, manso, simples, humilde, prudente, profundamente arraigado na caridade, ardendo em amor de Deus e do próximo, inabalável como um rochedo em sua fé, extraordinariamente compassivo, esquecido de si e ávido da glória divina, verdadeiro apóstolo, procurando ser tudo para todos e possuidor das riquezas da graça. Não duvido colocá-lo ao lado de São Filippe de Nery e de São Vicente de Paulo. Tive sempre a convicção de que ele praticou as virtudes cristãs em grau heróico no emprego de todas as energias com extraordinária abnegação própria, com a maior pureza de intenção, ânimo inquebrantável tanto nos trabalhos como nos sofrimentos suportados por Nosso Senhor e pela Igreja, com aquela comiseração denominada na Escritura viscera misericordiae. Que ele praticava todas essas virtudes posso atestar ao menos quanto aos últimos anos de sua vida”. Um outro amigo do Santo, cônego Greif escreve: “Clemente era um homem

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segundo o coração de Deus, cheio de simplicidade e amor, um modelo de virtudes para todos; conhecia a arte de atrair todos os corações e de tratá-los segundo as propensões de cada um. Qual pastor vigilante corria atrás das almas para convertê-las; a sua caridade desarmava os próprios inimigos. Não tinha em conta alguma a sua pessoa; distribuía tudo o que tinha: essa era a sua vida”. Eu admirei nele, escreve outro, a agudeza da inteligência, a sobriedade do espírito, a oração contínua, a firmeza inabalável, a sede de perfeição, a gentileza de trato tanto com os nobres e ricos como com os pobres, a grande prudência, a sincera gratidão pelos benefícios recebidos, a inquebrantável intrepidez nas perseguições, a modéstia nas palavras e ações, a delicada brandura e mansidão em instruir e repreender, a inesgotável caridade para com os pobres, a extraordinária temperança, o cuidado pela conservação da pureza de coração, a prudência na direção das almas, a atividade abençoada pelo céu, o amor e a dedicação à Santa Sé, a vigilância pela pureza da doutrina católica, a fé viva e constância inabalável, o amor de Deus e do próximo, pronto a qualquer sacrifício, a resignação da sua vontade em todos os sofrimentos físicos ou morais, a fortaleza em todas as contrariedades de vida, a fidelidade imutável em o exercício de todas as virtudes até o fim da sua vida”. Uma outra testemunha, Jacoba de Welschenau, que conhecia muito bem o Servo de Deus, escreve: “Ele nunca se mostrava enfadado nem entristecido, nem exageradamente alegre; nos traços do seu rosto podia-se ler a paz interior e a união com Deus”. “Da sua fisionomia”, escreve Luiza Pilat, “irradiava-se a pureza da alma e a paz, fruto da santa alegria que provinha da sua íntima união com Deus; em seu rosto estampava-se uma seriedade amável, pacata jovialidade, paz não perturbada por nenhuma paixão, e um perfeito recolhimento de espírito”. Todos esses testemunhos, depostos por pessoas inteiramente fidedignas, foram extraídos do processo de beatificação do Servo de Deus. As pessoas, que depuseram no processo, não unânimes em chamá-lo “serafim”, anjo de consolação e de paz, apóstolo infatigável e ardoroso, bom odor de Cristo pelas acrisoladas virtudes, mártir da liberdade da Igreja, pai dos pobres, modelo de virtudes etc. Um ex-jesuíta, que logo depois da morte do Servo de Deus, publicou em Augsburgo uma história eclesiástica, fala de Clemente com os maiores elogios; denomina-o “homem apostólico, trabalhador incansável na vinha do Senhor, pregador da penitência”; afirma que a sua atividade em Viena era a de um grande apóstolo, tornando-se o refúgio dos pecadores e modelo de penitência, convertendo milhares de pessoas, conduzindo outras tantas à perfeição, sendo um outro João Batista, munido de força especial para operar conversões estupendas e converter os pecadores mais obstinados”. — Clemente era desprezado e até perseguido por muitos, acrescenta o historiador, mas herói de virtudes, amava o desprezo sem jamais descerrar seus lábios para a queixa, procurava só a glória de Deus e o bem das almas; luzia como uma estrela de primeira grandeza no meio das trevas, combatia constantemente a impiedade do século”. O cardeal Rauscher, encarando o Santo em seu papel providencial, afirma ter sido São Clemente o restaurador da vida da Igreja na Áustria: “O Pe. Clemente tornou possível a conclusão da concordata e deu uma nova e melhor direção ao espírito do tempo”. CAPÍTULO XXVI

O Santo na glória Declaração de João Pilat — de Zacharias Werner — das Irmãs Ursulinas. No capítulo anterior vimos a descrição dos traços físicos do Santo e da formosura de sua alma que foi heróica na prática das virtudes teologais e morais. Ora uma vida tão exemplar e virtudes tão heróicas não podiam ficar sem a merecida recompensa. Aprouve a Deus manifestar-nos um raio da glória, que goza S. Clemente no céu, como vemos nas três declarações abaixo, feitas sob juramento por pessoas incapazes de engano. A primeira declaração procede de João Pilat, moço correto e inteligente, nomeado preceptor dos alunos no colégio nobre fundado por Klinkowström, que já conhecemos de outro lugar desta biografia. Demos-lhe a palavra: “Era pouco depois da morte de Clemente... eu morava então no instituto de Klinkowström. Já de há muito tempo tinha resolvido não só deixar o emprego das finanças, mas consagrar-me inteiramente ao serviço de Deus no sacerdócio. Educado no espírito do Pe. Clemente procurei levar uma vida verdadeiramente cristã e piedosa e consagrar-me a Deus no sacerdócio. Contra esse plano de me enfileirar entre os levitas do Senhor, só encontrei oposição no Governo que me fazia as maiores dificuldades por eu não haver cursado filosofia na universidade de Viena, mas só privadamente na Hungria. Essa má vontade da faculdade filosófica abateu-me tanto que quase sucumbi; julguei dever desistir do intento de me tornar Redentorista. Justamente naqueles dias o Pe. Passerat chegou a Viena. Numa daquelas tardes estava eu ajoelhado perto do meu leito a fazer a minha meditação costumada, para a qual me servia do livro do Pe. Crasset, se me não engano; na minha frente achava-se um quadro de São José com o menino Jesus no braço. Sei com toda a certeza que naquele momento não me lembrei do Pe. Clemente, nem de Santo Afonso e muito menos do Pe. Passerat: os olhos conservei-os fixos no quadro de São José. Posso ainda declarar que nunca em minha vida me deixei alucinar nem física, nem moralmente, pois tenho uma aversão natural a toda a sorte de visões. Nessa disposição corporal e física vi repentinamente o seguinte: Na minha frente achava-se Santo Afonso em sua figura característica, circundado de uma luz branda e celestial; lançou para mim um olhar de bondade. A seu lado reconheci o Pe. Clemente que também me olhava, estava todo transfigurado, irradiando a mesma luz celestial como o santo Fundador. Sem proferir palavra, parecia que ambos me apontavam o Pe. Passerat que se mostrava à esquerda de Sto. Afonso; em seguida vi como misteriosa e espiritualmente o Pe. Passerat se transformou na pessoa do santo Fundador.

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Sem mais detença veio-me o pensamento de que Deus me dava a entender que no céu S. Clemente goza a mesma glória como Santo Afonso, e que cuida ainda agora dos seus filhos, enviando-me, os dois, para o Pe. Passerat, que com certeza desfaria todos os obstáculos à minha entrada na Congregação. E de fato assim foi. O Pe. Passerat foi comigo ao Imperador, que com grande bondade, baixou o decreto declarando válidos os meus estudos, para eu me tornar um dos filhos espirituais do Pe. Clemente. Já lá se foram 40 anos desde então, e essa visão ainda me paira tão viva ante os olhos, que dela me lembro como se fosse ontem”. Isso narra com juramento o Pe. Pilat, que, devido a essa aparição entrou na Congregação professando em 1823; ordenado dois anos depois foi a Lisboa e à Bélgica; em Bruxelas foi o confessor de Leão XIII, então Núncio Apostólico dos Países Baixos, o qual duas vezes por semana ia ao convento dos Redentoristas. Uma segunda manifestação da sua glória no céu, fê-la Clemente a seu grande amigo, o Pe. Zacharias Werner, que a narrou ao povo do alto do púlpito, como nô-lo transmitiu, com juramento, a Irmã Thadéa de Sta. Úrsula: “Era o primeiro domingo do advento de 1822; Zacharias Werner deu início a seu sermão em nossa igreja com as palavra que ainda retenho na memória com toda a exatidão: ‘Já não viverei muito tempo, porque o Pe. Clemente m’o disse. Estava eu deitado depois da oração da noite, quando subitamente vi o quarto aclarado por uma luz mais viva que a do sol, e no meio do resplendor contemplei o Pe. Clemente, meu pai, amigo e mestre; tinha em suas mãos um lírio, um ramo de oliveira e uma palma, apostrofou-me com as palavras: Zacharias vem, vem, vem logo, e desapareceu em seguida. Essa aparição não é fantástica, pois eu não estava dormindo; é tão certo que vi o Pe. Clemente, como é certo que vivo e aqui estou na igreja na presença do meu Deus no Santíssimo Sacramento. Desde essa hora senti-me fraco e sei, sem dúvida alguma, que morrerei em breve’. E de fato sucedeu tudo quanto Zacharias Werner afirmou; morreu poucas semanas depois, se me não engano, depois da festa da epifania de 1823”. Todos consideram típica essa aparição, mormente por causa dos três símbolos: o lírio representa a pureza virginal do Santo, jamais manchada com o labéu da culpa; o ramo de oliveira é o símbolo da paz interior, que gozava constantemente, e dos trabalhos que empreendeu pela paz da Igreja e do mundo; a palma simboliza o martírio que suportou, à vida inteira, pela difusão da religião e da fé. O Servo de Deus queria, com isso, preparar o seu amigo para o último combate e para a despedida deste mundo. Zacharias Werner morreu como um Santo, conforme as palavras de Bruner: “Werner sabia de antemão que se aproximava a sua dissolução, pois que a tuberculose já se lhe apoderara dos pulmões; morreu e foi sepultado ao lado de seu amigo e mestre São Clemente. Mais um fato desse gênero encontramo-lo no convento de Santa Úrsula. “No nosso convento, assim escrevem, tínhamos uma Irmã conversa muito piedosa, por nome Sebastiana, que edificava a todas com a sua vida exemplar. O Pe. Clemente estimava-a também por causa de sua sincera e profunda piedade, e uma vez, gracejando, chegou até a dar-lhe o apelido de ‘Santa’. Ela, porém, protestou logo com delicadeza dizendo: ‘Quem sou eu? um vermezinho miserável, — V. Revma. sim, converte grandes pecadores, batiza judeus, ensina

o povo, leva Nosso Senhora aos moribundos em suas casas, aconselha a outros padres que façam o mesmo: é isso que santifica a gente’. Com sorriso nos lábios disse Clemente, ‘agora fui eu que tomei’, e olhando para a Irmã acrescentou:: ‘Eu te ajudarei a morrer e te levarei ao céu’, ao que Sebastiana replicou: ‘Pois bem, quando eu morrer tomarei V. Revma. pela palavra’. Muitos anos depois da morte do Servo de Deus, estava a Irmã Sebastiana em seu leito de dores; lembrando-se da promessa de Clemente invocou-o pedindo-lhe auxílio. Num dado momento prorrompe nas palavras: “o padre Clemente! o Pe. Clemente! o Pe. Clemente!” e expirou deixando estampada no rosto a tranqüilidade dos justos.

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CAPÍTULO XXVII

O bondoso Taumaturgo As profecias do Santo — Conversões miraculosas — Protege nas vocações — Em grande falta de recursos — Mesmo em negócio de cozinha — O padroeiro dos enfermos: Ignez Fiath — Livra da morte — Paralisia e trismo — Chlorose complicado — Hidropisia — Tumores perigosos — Dores de garganta — Artrite — Varizes — Hemorragia — Escrofulas — Artroflogose — Reumatismo — Peritonite. No decorrer desta biografia temos tido ocasião de apreciar diversos e estupendos milagres que Deus operou por meio do seu Servo. Clemente não era desses Santos que brincavam com os milagres como v. g. um S. Geraldo, cuja vida já era em si mesma uma maravilha do céu. A humildade sincera e profunda de Clemente fazia-o fugir de tudo quanto pudesse dar na vista, e — feito o milagre — sabia disfarçá-lo com engenho e arte. O leitor lembra-se ainda do ocorrido com a Irmã Jacoba, Ursulina, que por ser muito doentia, temia ser expulsa do noviciado por inútil; Clemente, porém, com a maior convicção e firmeza afirmou-lhe que faria os votos religiosos, sararia e sobreviveria a muitas que tinham então as faces rosadas. Poucos dias antes da profissão a Irmã caiu novamente enferma; quiseram expulsá-la, Clemente porém disse com clareza: “Tu farás profissão, quando tiveres 28 anos de idade sararás e ficarás ainda uma bruaca velha”. A essa palavra a noviça foi aceita; dentre as Ursulinas foi ela uma das três que viveram até a época da beatificação do Servo de Deus. Vimos também como a comida se aumentava e multiplicava em suas mãos; muitos amigos do Santo contam isto com todos os pormenores. O leitor não terá ainda esquecido o caso miraculoso, narrado pelo Dr. Veith, que longe de ser crédulo era conhecido como cético, explicando tudo de modo natural e humano. “Na casa de um dos amigos de Clemente reinava tristeza inconsolável por causa da doença mortal de um dos filhos da casa, o menino Afonso; tinha um ano de idade e já se achava frio, de cor cadavérica, inclinado sobre os joelhos da inconsolável mãe; o médico, depois de examinar a criança, não sabia outra prognose senão que à noite ela seria cadáver. Inesperadamente entra Clemente que sabia da amargura da família. A pobre mãe corre para ele desesperada, mostrando-lhe, entre prantos, o filhinho desenganado do médico. Clemente, porém, diz-lhe tranqüilamente: “Não é nada, não é nada; hoje à tarde a criança terá fome e comerá”; em seguida deu uma leve pancadinha na face da criança e virou-se para o outro lado apoiando-se no salto do sapato, o que costumava fazer em semelhantes ocasiões para desviar a atenção. A

predição do Servo de Deus realizou-se à risca. A uma senhora da sua amizade, que mostrava muito medo de perder seus filhinhos, disse o Servo de Deus: “A senhora não perderá nenhum dos seus filhos”, e de fato, ela morreu pouco tempo depois deixando viva toda a sua prole. Um outro milagre de Clemente com meios tão insignificantes pôde conseguir resultados tão extraordinários. Um jovem libertino entrando, uma vez, na igreja das Ursulinas, que se achava repleta de povo, maliciosamente foi abrindo caminho por entre o povo, para da frente melhor ver as mulheres e as moças. Nesse mesmo instante Clemente ia com o Santíssimo da capela lateral para a capela-mor, a cabeça inclinada segundo o seu costume; ao chegar perto do moço lançou-lhe um olhar semelhante ao que Jesus lançou a Pedro no átrio da casa de Caifás; o rapaz não pôde resistir, e saiu desfeito em lágrimas de arrependimento. Bastava, por vezes, fitar energicamente as pessoas para lhes infiltrar a fé. O seu olhar tinha um quê de extraordinário e indefinível. Depois da sua morte o Servo de Deus não se esqueceu dos amigos e devotos. São inúmeros os favores e as graças que Deus tem operado por sua intercessão. Em todos os transes difíceis da vida, em todas as amarguras, o Santo tem manifestado a força do seu braço, o poder que goza junto do Altíssimo. Para o aumento da nossa confiança em seu poder e bondade, citemos apenas alguns favores obtidos por novenas, devoções e orações a ele feitas. ***

Protege nas vocações: Um jovem piedoso desejava ardentemente entrar na Congregação Redentorista, pois que se sentia chamado por Deus ao estado religioso, e ardia em desejos de pregar missões, converter os pecadores, tornar-se um apóstolo a exemplo de Jesus, que passou os três anos de sua vida pública a pregar e a doutrinar as massas. Ser Redentorista era o ideal da sua vida, mas na realização dessa sua nobre aspiração encontrava a mais declarada oposição dos pais e irmãos; fez o possível para convencer os seus; vendo, porém, que eram baldados os seus esforços, lembrou-se de São Clemente e fez-lhe uma novena. Poucas semanas depois, sem que ele tornasse a insistir, os parentes inteiramente mudados em sua opinião, deram unanimemente o consentimento para a sua entrada no convento. José Horny — assim se chamava ele — entrou para a Congregação, onde, depois de trabalhar dezoito anos, faleceu santamente. ***

Em grande falta de recursos — achavam-se uma vez as duas irmãs Ana e Rosalina Biringer, como nos conta uma delas: “Estávamos em grandes apuros; era preciso pagar o aluguel do quarto, o tempo urgia, e nós não tínhamos o dinheiro necessário nem de quem tomá-lo emprestado. Subitamente veio-nos a lembrança de invocar o Pe. Clemente, fazer-lhe uma visita à seu túmulo e expor as nossas necessidades. Fomos ao seu sepulcro, abrimos-lhe o nosso coração,

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lembrando-lhe que tínhamos sido suas filhas espirituais e rogando encarecidamente o seu socorro. Consoladas e cheias de esperança voltamos para a casa, e — ó milagre — já no dia seguinte recebemos uma carta que absolutamente não esperávamos, e onde se lia: “Talvez as senhores precisem do dinheiro que vai junto para o pagamento do aluguel”. Eram justamente os cinqüenta florins que faltaram para se inteirar a conta.

Favores semelhantes contam-se aos milhares, mormente em Viena, onde se conhecia bem a bondade proverbial do Pe. Clemente Maria Hofbauer. Ora é um operário que procura trabalho, ora um rapaz que procura colocação, ora uma professora que deseja uma cadeira etc etc. etc. Todavia existem ainda sinais mais estupendos e extraordinários, que mostram o poder e a força do valimento do nosso Santo junto de Deus. ***

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Mesmo em os negócios de cozinha tem-se implorado o auxílio de Clemente. Embora não sejam milagres, mas simples favores, mostram a grande confiança que os devotos depositam na proteção do bondoso Pe. Clemente, que ajuda até em coisas pequenas e insignificantes. Eram justamente passadas sete semanas depois da morte de Clemente; aproximava-se a festa do Sagrado Coração de Jesus, que naquele ano de 1820 caiu no dia 9 de junho. Querendo a Superiora das Ursulinas, que suas súditas celebrassem essa festa também no refeitório, mandou que a cozinheira se esforçasse por alegrar e contentar as irmãs apresentando-lhes alguma coisa especial, não faltando a sopa de bolos de farinha, prato muito apreciado pelos vienenses. A cozinheira, que não era outra senão a Irmã Thadéa, fez o possível, mas debalde, justamente naquele dia nada lhe saia bem, nomeadamente os bolos que não queriam formar-se. A pobre cozinheira quase perdeu a cabeça; por fim lembrou-se do Pe. Clemente; ajoelhou-se na cozinha e rezou um Padre Nosso com as palavras: “Pe. Clemente, agora é tempo de me valerdes, não consigo nada hoje na cozinha”. Levantou-se e, daquele momento em diante tudo lhe correu às mil maravilhas. A Superiora durante a refeição chamou a cozinheira ao refeitório — caso virgem no convento — e perguntou-lhe como é que conseguira preparar tão apetitosa refeição, ao que Thadéa respondeu: “Ah! hoje foi o Pe. Clemente que cozinhou!” As irmãs sorriram-se ao ouvirem o que se passara na cozinha. O mais curioso é que a comida preparada em porção costumada, apesar de repetidos os pratos por todas as irmãs, sobrou em grande quantidade, podendo ser servida também ao jantar. Também com as Visitandinas deu-se um caso semelhante. A cozinheira ficou uma vez bastante incomodada com a fumaça que não queria absolutamente sair pela chaminé. No desespero invocou o Pe. Clemente, que lhe despertou uma lembrança singular: a de examinar, se talvez na parede houvesse uma outra chaminé; bate na parede que responde com um som oco; abrem-na e encontram uma outra chaminé, da qual não tinham conhecimento nem as irmãs mais idosas do convento; desde então a fumaça nunca mais molestou a pobre cozinheira. Caso semelhante deu-se no convento do Bom Pastor em Viterbo. A praga da fumaça era tal, que quase cegava as irmãs. Fizeram-se as possíveis reparações na chaminé, porém, debalde. Por acaso achava-se no convento uma Irmã, que mais de uma vez, experimentara de modo maravilhoso o valimento do Servo de Deus; invocou-o com grande confiança, pendurando a imagem de Clemente ao lado de fora da chaminé, e incontinenti a ordem estava restabelecida: a fumaça encontrou o caminho para fora sem ser necessário outro expediente.

O padroeiro dos enfermos. O primeiro e principal depoente no processo de beatificação do Pe. Clemente declara: “A cura da pequena baronesa Ignez Fiath causou grande sensação, dando muito que falar em Viena; também em Praga ocuparam-se pormenorizadamente do fato sem nenhuma contestação. Ignez Fiath, filha de um conhecido barão húngaro, vivia desde 1863 no instituto das Visitandinas em Viena. Adoecendo por ocasião da festa de Natal foi recolhida à enfermaria. No exame o médico verificou uma úlcera e pequenas feridas na região inguinal; as feridas desapareceram, mas as dores localizaram-se nas pernas e nos joelhos, de sorte que a menina andava só com muita dificuldade, manquejando por não poder levantar, sem grande esforço, o pé esquerdo; já no ano anterior havia ela sentido semelhantes dores em casa, ao cair dentro de um valo, que queria atravessar de um salto; as dores da perna esquerda aumentavam-se dia a dia. O médico da casa consultou o célebre cirurgião Dr. Schuh, que declarou temer um resultado mau caso não desaparecessem as dores no prazo de três semanas mediante repouso absoluto, compressas de água fria e homeopáticas doses de ferro carbônico. Pouco depois foi consultado também o célebre homeopata Dr. Fleischmann. Já o fato de se reunirem para a consulta três tão abalizados médicos, mostra a gravidade do caso. Os doutores mandaram que a menina tentasse caminhar um pouco, mas as dores tornaram-se horríveis. Prescreveram novamente repouso absoluto, e verificaram inflamações nas juntas. Em lugar do ferro carbônico receitaram beladona e prescreveram banhos quentes com sal de ossos. Entretanto o pé virava-se todo para fora; não havia dúvida, formara-se a coxalgia. A 5 de fevereiro de 1864 — uma sexta-feira — levaram a pequena ao banho, do qual saiu quase morta. Nesse mesmo dia Ignez começou uma novena com as outras meninas em louvor do Pe. Clemente, cuja relíquia a pequena conservava junto ao leito. Até domingo ao meio-dia ainda não se notara na enferma melhora alguma, porém, nesse mesmo dia à tarde, 7 de fevereiro, Ignez sentiu que se podia mover sem dor. Em chegando a enfermeira a pequena baronesa declarou que estava curada, pôs-se em pé, e como não lhe permitissem levantar-se, andou sobre o leito e saltou de contente não sentindo dor alguma. Na manhã seguinte ninguém a pôde reter na cama, levantou-se... e quando a viram caminhar exclamaram estupefatos: “Milagre, milagre!” Nesse mesmo dia o médico examinou a menina e verificou que estava completamente curada, e declarou a um Padre Redentorista, que nem o melhor remédio do mundo

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poderia operar aquela cura em tão curto espaço de tempo. A cura foi radial e duradoura. Esse acontecimento causou enorme sensação; a própria Imperatriz Carolina Augusta foi ao convento das Visitandinas para ver a pequena baronesa; o mesmo fez também o Núncio Apostólico. Esse milagre foi examinado e aprovado para a beatificação do Servo de Deus. ***

Livra da morte. Maria Hofmann, senhora de seus 40 anos, casada, mãe de onze filhos, tinha de sujeitar-se aos mais pesados e rudes trabalhos para a sustentação dos seus. Caindo gravemente doente foi recolhida ao hospital; munida de sólida piedade a enferma, embora atacada de dores agudas, não dava o menor sinal de impaciência. A hérnia, que a pobre senhora padecia, teimava em não admitir cura; por isso o médico a enviou ao hospital sem esperança alguma. Passados 12 anos a pobre mulher ainda sofria sem alívio; era necessária uma operação, mas os médicos não a queriam fazer devido ao adiantado da enfermidade. No hospital ninguém contava com a cura da senhora, que tinha ainda contra si a idade avançada de 52 anos, entretanto os médicos e as enfermeiras tentaram o possível. A enferma vomitava constantemente não retendo alimento algum no estômago; no 5.º dia declarou-se a cólica ilíaca, e na manhã seguinte apareceu a inflamação. À noite, como o caso era desesperado, um dos médicos chamados à última hora, perguntou-lhe se não queria ser operada; a mãe lembrando-se dos seus filhinhos que necessitavam dela, submeteu-se de boa vontade e resignada à vontade de Deus; preparou-se tudo para a operação. No dia destinado à operação, chegou a ela, de manhã, uma Irmã, contou-lhe o milagre operado pelo Pe. Clemente no convento das Visitandinas, e perguntou, se não queria também experimentar a intercessão do bondoso Santo; a senhora naturalmente anuiu prometendo uma novena ao Pe. Clemente; as pessoas presentes acompanharam-na na recitação dos 9 Padres Nossos e do Credo. Essa boa conselheira era a primeira das enfermeiras, em cujo quarto se faziam quase todas as operações; lá estava pendurado um quadro do Santo. Ao chegarem os médicos tentaram mais uma vez empurrar para dentro a hérnia, porém debalde. “Corri, diz a enfermeira que narra o fato, e trouxe um pano; ao chegar notei que a ruptura estava completamente mole e ouvi um ruído coo se despejasse água de uma garrafa, e num instante a hérnia estava fechada; apalpei o lugar da ruptura, e não encontrando vestígio algum do mal exclamei: “São Clemente valeu”. Os médicos abanaram a cabeça, não sabendo o que dizer em tal circunstância. Um católico, Dr. Lervinsky, contentou-se em dizer “Isto é milagre”. A enferma afirmou não sentir mais dor alguma e pediu de comer, levantando-se em seguida. Essa cura deu-se de manhã, quando a operação devia ser feita à tarde. Esse milagre foi examinado e aprovado no processo de beatificação. ***

Paralisia e trismo. Ana Berger, curada miraculosamente pelo Santo, conta o fato do modo seguinte: “Sou de constituição bastante forte e de natural alegre

mesmo nos sofrimentos; até a idade de 13 anos fui forte e sacudida; dessa idade em diante comecei a vomitar sangue; aos 17 anos sofri convulsões horríveis de sorte que quatro homens não me podiam segurar nessas ocasiões; para isso era bastante um susto, um barulho, uma surpresa. Os médicos verificaram que a minha doença provinha da inflamação da espinha dorsal e prescreveram-me sangrias, sanguessugas etc., que me proporcionaram certo alívio, mas me enfraqueceram consideravelmente, obrigando-me a guardar o leito muitas vezes. Em 1844 estive dez semanas no hospital de Linz. A 2 de fevereiro a fraqueza me fez perder os sentidos, e dois dias depois, para cúmulo de infelicidade, sobreveio-me o trismo, os lábios separaram-se-me com violência, ficando os dentes cerrados; não recebia então alimentação alguma a não ser um pouco de sopa pelo vão dos dois dentes da frente. Perdi completamente a fala. Dai por diante ia de mal a pior. Na idade de 32 anos tive uma forte hemorragia que me paralisou o pé esquerdo; pouco depois fui atacada de inflamação intestinal, que me causou dores indizíveis; os remédios acalmaram as dores, mas conservaram-me no leito, onde me não pude mover; pelo corpo todo espalhouse um tumor em extremo doloroso. Nesse estado miserável, fizeram-me a sangria que não deu resultado, porque o sangue não correu, o braço direito entorpeceu completamente. Esse estado durou um ano inteiro, pelo que os médicos me desenganaram, declarando incurável a minha enfermidade. Resolvi então recorrer ao céu, lembrei-me da Santíssima Virgem prometendo uma romaria a seu Santuário de Schmolln, e manifestei essa minha promessa a um Padre Redentorista, que me aconselhou dirigir-me primeiro com uma novena ao Pe. Clemente, para poder depois, com saúde, fazer a romaria prometida; e ele tinha razão. Fiz a novena com toda a confiança; no oitava dia fiquei completamente sã, levantei-me e a pé fui visitar o meu Diretor espiritual, que morava numa distância de cinco quartos de hora e voltei, também a pé, sem maior novidade; dias depois fui a Schmolln, andando dez horas a pé; a voz voltou-me também com a mesma força de outrora. Oh! como sou grata ao Pe. Clemente! os médicos todos afirmaram que minha cura foi um verdadeiro milagre! ***

Clorose complicado. A condessa Ana Maria, Visitandina, conta o milagre seguinte: “Aloísia, filha do conde Adam Revicky da Hungria, era alta, porém de natureza franzina, professou no convento da Visitação, sendo em seguida nomeada professora no Instituto. Por causa da sua constituição fraca sofria muito a neo-professa, sendo necessário poupá-la o mais possível, e atender a seu temperamento melancólico. Desde a profissão a Irmã começou a definhar a olhos vistos; parecia atacada da tuberculose acompanhada de horríveis dores de cabeça e asma tão declarada, que quase não podia andar; além disso sofria fastio e insônia. Incapaz de qualquer serviço na comunidade, tinha a certeza de uma morte prematura, lamentando só não haver prestado nenhum serviço à Ordem em que professara. Embora tratada por um bom médico, não apresentava melhoras de qualidade alguma. Sem esperança da terra, a pobre neo-professa lembrou-se do Pe. Clemente. Invocou-o e começou em seu louvor uma novena de três Ave-Marias e Gloria Patri, levando ao peito uma relíquia do cai-

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xão em que foi sepultado o Santo. Pelo fim da novena, durante a meditação, Aloísia sentiu-se animada de uma nova vida, embora nos dias anteriores não se tivesse manifestado nenhum sinal de melhora nem alívio. Levantou-se completamente forte, tornou-se uma das mais laboriosas no convento, cantando sempre com voz estentórica, quando preciso; desde então nunca mais encontrou dificuldade nos trabalhos da comunidade. Coisas que nunca conseguira fazer em sua vida, executa-as agora com a maior facilidade; lava roupas horas e horas a fio, e imediatamente depois canta no coro ou dá aulas às meninas”. ***

Hidropisia. Demos também aqui a palavra à testemunha jurada: “Um tal Vicente Felber de seus 23 anos, solteiro, contraiu a moléstia hidropisia em conseqüência da qual se inflamou o peito de forma a não permitir-lhe a respiração; a moléstia não tardou a difundir-se por todo o corpo. Tão assustadoras foram as proporções tomadas pela enfermidade, que os médicos aconselharam a imediata recepção dos últimos sacramentos; o especialista chamado na ocasião, examinou o doente e depois de um diagnóstico, que parecia exatíssimo, receitou um remédio que não produziu efeito. Apareceram umas manchas na região estomacal, que começaram logo a gangrenar. Em vista disso o especialista não dava ao doente mais de dois dias de vida. Nessa situação desesperada, em que a medicina humana o desamparava condenando-o à morte, o enfermo lembrou-se do Pe. Clemente, pendurou ao pescoço uma relíquia do Santo e com a Irmã começou uma novena ao grande amigo dos doentes. Já depois do primeiro dia da novena, viu em sonho o Santo que o abençoava derramando um pó sobre ele; ao acordar sentiu-se muito melhor, podendo respirar com facilidade; depois de três dias tornou a ver São Clemente em sonho; desta vez o Santo despejou água sobre ele; ao acordar percebeu que a hidropisia tinha cedido, a água escorria com presteza enchendo diariamente quatro vasos, apresentando sempre cor diversa, sem que o médico soubesse dar a isso explicação. No fim da novena a hidropisia estava completamente curada. ***

Tumores perigosos. Adelia Hennlein, aluna do colégio da Visitação, levou uma queda no pavimento do corredor, e em conseqüência viu formar-se um tumor no joelho direito. O médico, depois de examinar a menina, verificou que a ferida, embora não fosse perigosa, requeria tempo para se fechar e teria por conseqüência a debilidade natural do joelho. Aplicaram compressas frias com arnica e certas fricções que hoje já não se conhecem. A pobre menina teve de guardar o leito, pois que lhe não era possível dar um passo sem sentir dores agudas. Como a pequena piorava dia a dia, a Superiora do colégio mandou-lhe fazer uma novena ao Pe. Clemente, colocou-lhe perto do leito um quadro do Servo de Deus com uma relíquia da sua batina; durante a novena a enfermidade não cedeu e os remédios aplicados não produziram resultado algum. No último dia, porém, quando a pequena acordou de manhã, percebeu que os tumores e as dores haviam desaparecido; estava completamente curada , sem

que na véspera se tivesse dado crise alguma para a melhora. O Dr. Eichhorn, quando, no dia seguinte, viu a menina andar e correr sem empecilho, ficou admiradíssimo e reconhecendo que aquilo só se poderia dar por um milagre, exclamou: “Com certeza tornastes a invocar o Pe. Clemente”. A enferma, cujo tio era inteiramente descrente, recebeu deste uma visita poucos dias antes de se operar miraculosamente a cura; vendo ele que a menina estava curada tão repentinamente, exclamou: “Isto é realmente um milagre e ninguém me convencerá do contrário, porque eu mesmo o vi com os meus olhos”. Desde essa ocasião a família toda, cheia de gratidão, consagrou devoção e amor ao Servo de Deus. Uma Irmã conversa do convento da Visitação lesou a mão direita numa lâmina de ferro; tomando aquilo por um ferimento insignificante não se medicou como devia; à tarde, porém, começou a sentir dores agudas e a noite inteira passou sentada no leito sem poder conciliar o sonho, devido à veemência das dores; na manhã seguinte formou-se na mão inflamada um tumor de mau caráter, que crescia a todo o instante, não permitindo à Irmã nenhum movimento com o braço. O médico declarou, que o mal era um extremo perigoso, e temeu uma periostite, sendo então necessária a operação, prescreveu uns ungüentos que nenhum alívio proporcionaram. Vendo que a enferma sofria horrivelmente, entre gemidos e suspiros disse-lhe uma Irmã: “Porque é que te não serves da relíquia do Pe. Clemente? ele te valerá”. A enferma tomou a relíquia, mas também os ungüentos, porém, sem alívio algum até às 6 horas da tarde. Quase no desespero lançou fora os ungüentos, invocou o Servo de Deus e as dores desapareceram como por encanto. No dia seguinte não havia nem dor nem tumor, mas só uma pequena mancha vermelha que se mostrava no lugar da antiga ferida. ***

Dores de garganta. Foi no dia de Nossa Senhora das Candeias de 1862 que se operou o seguinte milagre: A senhora Josefa Dallinger, que há oito anos sofria fortes dores de garganta, sentiu formarem-se-lhe no céu da boca tumores que se transformaram em cárie. Várias vezes foi necessário arrancar pedaços de ossos com grande perigo de ela morrer sufocada; o mal agravou-se tanto que a pobre senhora não pôde mais tomar alimento de qualidade alguma. A conselho do seu confessor fez uma novena a São Clemente e mandou dizer uma missa. O dia 2 de fevereiro era justamente o terceiro dia da novena; e a enferma, sem aplicar remédio algum, ficou repentinamente livre das dores e da enfermidade, levantou-se curada, não deixando a doença nenhum vestígio de sua passagem. ***

Artrite. O Pe. Pilat narra, sob juramento, que na França em Boulogne sur Mer, uma Irmã da Congregação de São José sofria desesperadamente de artrite; depois de aplicar, em vão, todos os medicamentos conhecidos da ciência humana, recorreu ao Servo de Deus com uma novena que terminou justamente

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no dia 15 de março, aniversário da morte do Santo; o que os meios humanos não puderam conseguir, conseguio-o a devoção e a invocação do Servo de Deus. A Irmã no fim da novena estava completamente restabelecida, sem remédio especial. ***

Manquejava a pobre Catarina, menina de oito anos, desde a procissão da festa do Corpo de Deus. O defeito passou de um pé para o outro ficando a pequena impossibilitada de caminhar; foi-lhe forçoso guardar o leito. As pernas inflamaram-se por cima dos joelhos e viraram-se, um pouco, para trás; o pé esquerdo, pela contração dos nervos, ficou mais curto do que o outro, e o que é ainda pior, a menina gritava de dor que fazia pena. Não consultaram nenhum médico, porque os escassos recursos, de que dispunham, não davam para isso. Ouvindo falar de um curador por nome Bauer, os pais levaram-lhe a menina com indizíveis dificuldades. Depois de lhe dar um ungüento para esfregar e um pó para tomar, o tal curador prometeu aos pais que a menina havia de sarar, contanto que cada dia rezassem durante a aplicação do remédio 5 Padre-Nossos a Jesus padecente. Os pais não rezaram essas orações, porque durante a fricção a menina gritava que cortava o coração. A mãe esfregou o ungüento por todo o corpo, porque todo ele estava dolorido, porém debalde. Alguns dias depois a menina estende os braços e os pés e ouve um estalo no corpo. Assustada pergunta-lhe a mãe: “Catarina que tens?” ao que a menina respondeu: “Mamãe, estou boa, não sinto dor nenhuma, quero levantar-me”. Meia hora depois apareceu o pai, e como de costume ia já perguntar pelo estado da filha, quando a mãe, fora de si de contentamento, lhe cortou a palavra contando-lhe o ocorrido. O pai exclamou: “Louvado seja Deus, foram atendidas as minhas súplicas, há meia hora estive junto ao túmulo do Pe. Clemente pedindo pela menina”. No dia seguinte a pequena continuou a freqüentar a escola. ***

Varizes. A costureira Madalena Kunz sofria varizes no pé esquerdo, havia já 26 anos. Em agosto de 1862 pela acumulação do sangue as veias rebentaram por dentro. Os médicos examinaram a paciente e verificaram o perigo de vida. Chamaram um especialista da Universidade, o qual declarou incurável o mal por o sangue já se haver espalhado pelo interior do corpo, mas assim mesmo prescreveu compressas frias e repouso absoluto para os pés, porém debalde, as dores tornaram-se sempre mais agudas. No auge da dor a enferma, desiludida do poder humano, lembrou-se do bondoso Pe. Clemente; começou uma novena, rezando cada dia 9 Padre Nossos e Gloria Patri, com a promessa de ir em romaria ao cemitério, onde o Servo de Deus se achava sepultado e de lhe adornar o túmulo. Já no primeiro dia da novena a costureira começou a experimentar sensíveis melhoras, e no último dia estava completamente curada. Cumpriu sua promessa indo a pé quatro horas de caminho até Enzersdorf e voltando no mesmo dia.

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Hemorragia. Em Roma no convento do Bom Pastor, achava-se no noviciado uma donzela por nome Maria, que havia um ano, sofria hemorragia muito forte, que a enfraquecera a ponto de não poder mais subir as escadas do convento. A pobre noviça estava já lívida e pálida como a cera; embora a Mestra de noviças a estimasse sobremaneira por causa das suas muitas e grandes habilidades e profunda piedade, declarou, que a donzela não podia continuar no noviciado, visto não haver remédio que desse esperança de estancar o mal. Como a noviça desejasse ardentemente unir-se a seu divino Esposo pelos santos votos religiosos, o confessor aconselhou-lhe uma novena a São Clemente, dando-lhe uma estampa com uma relíquia do caixão do Santo. A noviça começou a novena, sendo atendida imediatamente; em poucos dias restabeleceu-se completamente e as suas faces tornaram-se rosadas; o que é mais admirável ainda, nunca mais recaiu na antiga enfermidade. Desde essa ocasião consagrou a mais sincera devoção a seu insigne Benfeitor. ***

Escrófulas. A menina Maria Assumpta Vanini sofria escrófulas, que se manifestavam de diversos modos; às vezes inflamavam-se-lhe as amígdalas, outras vezes apareciam tumores pelo corpo inteiro, sobretudo o joelho esquerdo inflamava-se muito e supurava. Aparecendo por fim a cárie, o médico assistente, Dr. Ignacio Greco, desenganou-a declarando, por escrito, que o mal era incurável. Levada a Roma, recebeu do seu confessor uma estampa e uma relíquia do Servo de Deus, em cujo louvor começou uma novena. Em poucos dias, sem outro medicamento, a pequena sarou completamente. ***

Antroflogose, isto é inflamação das juntas. No Instituto das Irmãs de Vöklabruck na Áustria, uma empregada por nome Eva estava sendo atormentada, desde há muito, por tumores no joelho, que os médicos diagnosticaram de antroflogose reumática crônica. O joelho contraiu-se tanto que só as pontas dos dedos podiam tocar o chão; além disso o pé inchara-se todo tornando dolorido o corpo inteiro. Essa enfermidade é impertinente, cura-se raramente e só depois de muito tempo. Já havia sete meses que a pobrezinha gemia sem esperança alguma de cura, não obstante os esforços e a boa vontade dos médicos. Desesperada, por fim, dos socorros humanos, começou Eva uma novena ao Servo de Deus, que sempre foi o protetor dos pobres e enfermos. Já antes de terminá-la, a empregada ficou completamente curada, podendo sem dificuldades fazer os seus trabalhos costumados. ***

Reumatismo. Uma senhora de 67 anos, chamada Madalena, sofria reumatismo agudo, havia já dois anos, no braço esquerdo, que pela violência da dor

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se havia curvado, impossibilitando-a de trabalhar. Essa senhora idosa foi tão infeliz que, ao entrar um dia em casa, levou uma queda desastrada na escada, quebrando-se o braço que ficou preso ao corpo somente pela pele e pela pouca carne que ainda restava. Chamaram o cirurgião, que em vista da avançada idade da senhora declarou impossível uma cura em regra. Tentou porém o possível, foi nada menos de trinta e duas vezes à residência da enferma sem todavia conseguir resultado algum. Como essa senhora conhecera pessoalmente o Pe. Clemente e duas vezes se reconciliara com ele na ausência do seu confessor ordinário, invocou com confiança o seu auxílio e começou em seu louvor uma novena, colocando a relíquia do seu caixão sobre o lugar dolorido. Durante a novena o braço ficou completamente curado. A fratura e o reumatismo desapareceram de uma vez para sempre, deixando no coração da anciã o mais profundo sentimento de gratidão para com seu insigne Benfeitor. ***

Peritonite e parto difícil. A senhora Maria Hofbauer sentia sempre dores atrozes por ocasião do parto; no último recebera até os sacramentos dos moribundos. Já de há sete meses estava ela em estado interessante quando sobreveio a peritonite, que a deixou sem movimento e sem esperança de salvação. O médico, a parteira e todos os que a conheciam, contavam certo com a morte da padecente. Depois de empregar todos os recursos humanos a seu alcance, desamparada pela medicina, pediu conselho a seu pai espiritual que lhe apontou o grande amigo dos doentes, cujo coração se sacrificara tantas vezes para não ver ninguém padecer; aconselhou-a fazer uma novena ao Pe. Clemente, dando-lhe uma relíquia do Servo de Deus. Tão grande foi a sua fé e a sua confiança ao começar a novena, que deixou de lado todos os remédios. E — coisa estupenda — o seu estado foi melhorando dia a dia, e depois de catorze dias já pôde ir trabalhar com os seus na colheita do trigo; teve, a seu tempo, um parto muito feliz, o mais feliz de toda sua vida conjugal, não sendo preciso, para ele, nem sequer chamar a parteira, que habitava a casa contígua à da parturiente. ***

Fraturou um braço. Num dos conventos das Elisabetinas na Áustria uma donzela de 22 anos de idade, por nome Francisca, tendo de pregar na parede um quadro um tanto pesado, caiu desastradamente rolando pela escada e lesando o cotovelo do braço direito. O médico julgou tratar-se apenas duma deslocação do osso, mas não, tardou a descobrir que havia fraturação do braço. Um mês depois a moça foi levada a Viena, onde os médicos julgaram necessário proceder à operação para a extração de umas lascas de osso. Feita a operação sobreveio uma febre fortíssima apesar das unções, fricções, compressas etc.; o braço ficou amortecido, imóvel, insensível e a chaga não se cicatrizou. Para as necessárias sensações no braço foram empregadas ondas elétricas, porém debalde. Em vista de tudo isso os médicos deram o caso por perdido, ainda mais que na operação foram cortados os nervos. No hospital, o médico,

ouvindo suas lamentações e gemidos, disse-lhe com clareza: “Mesmo que eu caísse do céu, não a poderia curar, pois que tirado, uma vez, o nervo eu não o poderei repor”. Para a convencer da insensibilidade completa do médico introduziu uma agulho do dedo até o cotovelo, sem que a enferma tivesse a menor sensação de dor. Francisca teve um sonho, pareceu-lhe estar ajoelhada diante da imagem da Virgem Santíssima em atitude de súplica, e pedia que lhe restituísse a saúde, mas a Virgem parecia dizer-lhe: “Não precisas que eu te cure, porque tens um Santo que te pode valer, vai ter com o teu confessor, pede-lhe uma relíquia e faze a oração”. No dia seguinte contou o sonho a seu confessor, que lhe deu uma relíquia do Pe. Clemente e a 12 de dezembro de 1876 começou a novena depois de afixar a relíquia do Servo de Deus sobre o braço; já no quarto dia da novena sentiu entrar-lhe no braço uma vida nova, pôde movê-lo, levantá-lo e dai a poucos dias até erguer pesos consideráveis. No cotovelo, donde extraíram as três lascas de osso, notava-se um vácuo qualquer, mas a chaga estava curada e o braço direito tornara-se tão forte como o esquerdo. Milhares de casos semelhantes, verdadeiros milagres operados pela invocação devota de São Clemente e pelo uso das suas relíquias, poderiam aqui ser alegados e descritos com todos os pormenores para a edificação dos leitores. Bastam, porém, os que aqui deixamos descritos para moverem os corações dos brasileiros e dos que nesta terra hospitaleira procuraram um torrão amigo, e invocaram com devoção e confiança o grande taumaturgo nas suas necessidades corporais e espirituais, merecendo assim sua valiosa proteção. Cada um que ler estas linhas, experimente em suas dificuldades o poder e a bondade de São Clemente, o humilde e operoso Redentorista, e procure imitar as suas virtudes consumadas. São Clemente tem valido a todos indistintamente, a moços e velhos, a ricos e pobres, a seculares e a religiosos, a casados e solteiros, a homens e mulheres; e se os favores concedidos pelo Santo têm sido mais numerosos para as mulheres do que para os homens, não se atribua isto ao pouco amor de Clemente aos homens, mas só ao fato de que, em geral, as mulheres tem mais piedade e mais confiança no poder de Deus e da religião. O contrário poderíamos esperar do Santo que, como temos visto em sua vida, trabalhava indefesamente de preferência para os homens, consagrava sua vida aos moços e aos meninos abandonados. O nosso desejo é ver os homens, espíritos fortes, agrupados ao redor da imagem do grande São Clemente, que é o Santo da fé prática, o defensor da religião, que deve entusiasmar os homens todos da nossa Pátria.

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Alguns axiomas aconselhados pelo Santo 1. Ao entrar ou sair de casa, ao levar algum objeto de um quarto ao outro, faça-se sempre a boa intenção, tudo depende dela; por uma boa intenção até as coisas mais insignificantes tornam-se grandes diante de Deus. 2. Depois da queda original, o homem é imensamente mais feliz do que antes dela; por Jesus Cristo ele conseguiu direito sobre o próprio Deus, que lhe pertence. Por isso canta a Igreja: “Ó culpa feliz de Adão!” Os anjos do céu admiram os homens, que revestiram da sua carne o próprio Deus, e ter-lhes-iam inveja, se isso não repugnasse a sua natureza. Se Satanás tivesse podido supor que Deus salvaria o homem por um milagre tão espantoso, não teria tentado a Adão. 3. Procuremos em todas as coisas agradar só a Deus; é bom tudo quanto fazemos por Deus. 4. Para baixo rola a pedra facilmente, para cima só com trabalho se leva. 5. Quem observa as coisas pequenas na vida espiritual, em breve se torna perfeito; muitos gostariam de executar coisas maravilhosas e sensacionais, e desprezam as coisas insignificantes quem despreza as coisas pequenas não é digno das grandes. 6. Se os Santos pudessem sentir arrependimento no céu, tê-lo-iam por não haverem aproveitado mais da fonte inesgotável dos méritos de Jesus Cristo. Santa Teresa apareceu um dia a uma das suas religiosas e afirmou-lhe que com gosto suportaria todas as penas dos mártires até o dia do juízo final, se pudesse aumentar no céu a sua glória o quanto corresponde ao merecimento de uma Ave Maria. 7. Quem julga ter caído, humilhe-se diante de Deus, peça perdão e continue tranqüilo; os nossos defeitos devem conservar-nos humildes, não pusilânimes. 8. Com sua morte dolorosa Jesus nos quis remir e prestar satisfação tão copiosa, a fim de nos mostrar o excesso do seu amor, pois que nos ama com caridade eterna. Deus não pôde fazer mais do que fez para salvar o homem, e todos os condenados deverão confessar que se perderam por própria culpa. 9. Na oração devemos ser como os judeus ao construírem os muros de Jerusalém: ter a espada em uma das mãos e a trolha na outra. 10. Para se conseguir a santidade, o melhor meio é lançar-se, como uma pedra, no oceano da vontade divina, e como uma bola deixar-se jogar por Deus segundo a sua vontade. 11. Os maus pensamentos devemos compará-los a uma folha que cai, ou a uma mulher que grita: não nos incomodar nem deter-nos neles, caminhar sem lhes ligar importância: eis o nosso dever. 12. A graça divina não pode ser forçada, tudo deve ser feito com mansidão; a Mãe divina sofreu mais do que todos os mártires e entretanto permaneceu sempre tranqüila e serena. 13. No momento da morte haveremos de ver o que fizemos, falamos, pensamos, e o que poderíamos ter feito, falado e pensado, se tivéssemos correspondido à graça; veremos quais os efeitos causados aos outros por nossas palavras e obras; mesmo nas nossas próprias ações boas seremos julga-

dos pela intenção com que as fizemos. “Examinarei Sião com tochas e Jerusalém com lanternas”. 14. É sempre bom fazer alguma pequena mortificação, porém oportunamente e sem coação; gosto de ver alguma coisa, não me deterei nela, sinto prazer em alguma comida, tomarei uma garrafa menos e pronto. 15. A tristeza é nociva ao corpo e à alma; não presta para nada. 16. Ninguém se esforce demais para ter sempre a intenção mais perfeita; faça-a de manhã do melhor modo possível; e ponha-se a trabalhar sem preocupações, como uma criança que anda sossegada o seu caminho até encontrar algum empecilho — só então é que grita por sua mãe. Deus mesmo nos dará os meios de avançarmos na perfeição se o quiser. 17. Devemos tratar com Deus como uma criança com sua mãe. 18. No púlpito é preciso derrubar, com força, as nozes e no confessionário, colhê-las com vagar e calma. 19. Não permaneças sem temos por causa dos pecados perdoados; os pensamentos que nos causaram a queda podem voltar facilmente; o hábito deu-lhes grande força sobre nós; se lhes dermos inteiro consentimento teremos feito no pensamento o mesmo pecado como outrora na ação. Caminhemos com prudência porque levamos um tesouro em vasos frágeis. 20. Devemos imprimir-nos profundamente a Paixão de Nosso Senhor; depois da comunhão e da missa, não pode haver para nós devoção mais útil do que essa meditação, que nos mostra o valor da alma humana, e nos convida a santificar-nos. Façamos isto sempre com calma, como quando pensamos em um amigo ou em um prado sorridente e verde. 21. Quando Satanás tentou a Jesus não sabia ser Ele o Filho de Deus; isso só ficou sabendo quando Jesus expirou na cruz; todavia reconheceu em Jesus um homem que antes nunca vira, sem pecado e imperfeições; e começou a temer que Ele fosse talvez o Messias prometido, mas em seu orgulho não pôde capacitar-se de que o humilde filho do carpinteiro, que trabalhava até cansar-se na sujeição completa a Maria e a José, pudesse ser o Filho de Deus. Satanás é mais prudente do que todos os homens, sabe e compreende tudo menos a humildade e a obediência. 22. A todo o instante celebram-se missas no universo; uma única missa seria suficiente para remir mil mundos e esvaziar o inferno, se pudesse ser oferecida pelos condenados; até a própria morte de Jesus teria sido desnecessária, se antes dela pudesse ser oferecido esse sacrifício augustíssimo dos nossos altares; todos os que se acham na amizade de Deus tornam-se participantes de todas as missas, e com elas, de todos os merecimentos de Jesus Cristo. 23. O mundo existe por causa dos eleitos; os maus são os instrumentos de que Deus se serve para provar e purificar os bons. 24. Deus não precisa de ninguém. — Louvor se dá somente às crianças e aos loucos; podem os homens louvar-nos ou censurar-nos; por isso não ficamos nem melhores nem piores diante de Deus. 25. Nunca nos será lícito expor-nos ao perigo de pecar mortalmente, mesmo que com isso pudéssemos despovoar o inferno e salvar o mundo inteiro.

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26. Se virmos as ruas regurgitar de povo, lembremo-nos do rumor das ruas de Jerusalém, no momento em que Jesus foi arrastado ao palácio de Pilatos ou Herodes. 27. É melhor que se fale com Deus do pecador, do que de Deus com o pecador. 28. Deus não necessita da nossa adoração e do nosso serviço, mas nós precisamos de Deus. 29. Todas as criaturas foram feitas por causa do homem, o homem só para Deus.

CAPÍTULO XXVIII

Na memória da Congregação e da Igreja As reuniões dos rapazes — Os primeiros noviços — Atividade do Pe. Passerat — Difusão da Congregação — A província do Rio — A província de S. Paulo — Aparecida, Campinas, Penha, Perdões, Araraquara, Cachoeira — Quadro sinótico. A morte de Clemente causou impressão profunda em todos os que conheciam os seus trabalhos e a significação e importância da sua atividade para a sua terra natal, e em geral para a Santa Igreja. Sebastião Job terminava um curso de retiro espiritual às irmãs da Visitação no dia em que se realizou o sepultamento de Clemente. Na alocução final admoestou as religiosas a que pedissem ao Senhor, se dignasse mandar operários à sua vinha..., “pois que ontem — disse — o Senhor nos fez passar por uma dura provação tirando-nos o Apóstolo de Viena, a coluna da nossa diocese”. Ao receber a notícia do passamento de Clemente o Imperador exclamou: “Isto é duplamente doloroso para mim e meu povo, bem como para toda a cristandade, porque ele era a coluna da Igreja”. Depois da morte do Mestre, os discípulos agruparam-se ao redor de Madlener, amigo e confidente de Clemente, que o estimava por seu caráter franco e resoluto, por sua piedade esclarecida, por sua formação intelectual e por sua energia prudente. As reuniões dos moços continuavam como dantes na casa de Madlener, e depois na residência de Darnaut, capelão imperial, que se edificou sobremaneira com o bom espírito que reinava entre aqueles jovens, formados na escola de São Clemente. No princípio temeu-se pela Congregação, porque o decreto imperial visava um favor pessoal ao Pe. Clemente; felizmente esse temor logo desapareceu por uma declaração autêntica do Monarca que mostrava vivo interesse pela prosperidade da Congregação a que pertencera Clemente, e à qual queriam pertencer tão distintos jovens. Com permissão imperial 32 apresentaram seus nomes para o começo do noviciado: 9 coadjutores, 15 teólogos, quase todos formados em jurisprudência, medicina etc., 1 estudante de filosofia, 3 funcionários públicos, 1 oficial e 3 operários. No sábado de Pentecostes, que esse ano caiu a 19 de maio, devia começar o noviciado; como a residência oferecida pelo Imperador ainda não se achava ultimada, os Padres Franciscanos cederam parte do seu convento para se instalar provisoriamente a nascente comunidade redentorista. Os primeiros 6

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noviços entraram como candidatos; dias depois o Pe. Martinho, devidamente autorizado pelo Superior Geral, deu o hábito provisório aos noviços, pois que o noviciado começou propriamente a 2 de agosto, que é o dia do Santo Fundador. O Pe. Martinho escreveu ao Pe. Passerat que se achava ainda na Suíça: “... Os nossos noviços são humildes, obedientes e piedosos, mostram muito amor e afeição à Congregação, de modo a servirem de modelo a qualquer Redentorista mais velho; Deus recompense ao nosso querido Pai todos os seus trabalhos e esforços pela Congregação; a ele devemos esta obra; mesmo que ele estivesse agora vivo, a coisa não poderia ir melhor... V. Revma. com certeza se alegrará em ver esses seus bons filhinhos”. Entretanto o Superior Geral nomeara o Pe. Passerat para suceder a São Clemente no cargo de Vigário Geral da Congregação transalpina. Felizmente essa nomeação não encontrou nenhum obstáculo por parte do Governo. Só em dezembro é que puderam entrar em sua residência própria. Eram então 15 noviços sob a direção do Pe. Passerat, que passaram a Nossa Senhora da Escada. Bem depressa desenvolveu-se a comunidade de Viena, pois que os Redentoristas, até então desconhecidos do povo, caíram na simpatia geral. Um ano depois a casa nova já contava 40 religiosos. Sete anos mais tarde Viena mandou seus padres para Lisboa, Mautern, Innsbruck, Alsacia e Suíça. Como as leis austríacas muito embaraçavam a Congregação impedindo a comunicação com Roma, o Pe. Passerat, que sentia a premente necessidade de entrar em contato com a Congregação-mãe, mandou a Nápoles o Pe. Springer, para que estudasse, nas diversas residências redentoristas, o espírito e os usos da Congregação. Para o Capítulo Geral de 1832 em Nápoles já foi possível ao Pe. Passerat mandar seis padres transalpinos. A Congregação desenvolveu-se rapidamente, abençoada por seu segundo fundador, São Clemente Maria, que do alto do céu olhava para a sua obra predileta, a obra principal da sua vida. O Pe. Passerat governou a parte transalpina da Congregação quase trinta anos, viu realizada a profecia de Clemente, de que a Congregação se espalharia pelo mundo. Nos primeiros anos de seu governo o Pe. Passerat introduziu a Congregação na Bélgica, Holanda, América do Norte, Baviera, Inglaterra e França. Em 1848 Passerat depôs o seu pesado cargo; pouco depois foi abolido o vigariado geral transalpino, sendo a Congregação dividida em Províncias, governadas por superiores provinciais, que dependem direta e imediatamente ao Reitor-mor, que desde 1855 fixou sua residência em Roma. Em poucos anos a Congregação estendeu os ramos vigorosos ainda mais longe, para a Irlanda, Escócia, Espanha, Austrália. Ultimamente fundaram-se casas na Dinamarca, Índia Ocidental, México, Congo Belga, África Meridional e Filipinas. No último ano da guerra mundial fundou-se no Canadá uma segunda Província, e nas Antilhas uma segunda Vice-Província. Em 1918 — justamente 110 anos depois da expulsão — entraram os Redentoristas outra vez em Varsóvia. Há atualmente na Congregação Redentorista 21 Províncias e 15 Vice-Províncias com 310 residências e mais de 5.000 religiosos. Com exceção das casas que pertencem às Províncias romana, napolitana e siciliana, todas devem a sua origem ao apostolado de S. Clemente. São todas

filhas da casa-mãe de Viena, autorizada em 1820. As províncias da Itália tem sido incansáveis em a pregação de numerosas missões, de abençoados retiros frutificados pelas virtudes acrisoladas dos missionários e dos demais sacerdotes que, dentro dos claustros, vivem na prática das mais heróicas virtudes, observando, com religioso escrúpulo os menores pontos da santa Regra, como desejava o grande Fundador Santo Afonso. Mas essas Províncias não saíram da Itália nem propagaram, fora dela, a Congregação. Somente uma tentativa foi feita pelos padres italianos em 1853, a de abrir na América do Sul uma residência, que pouco durou, porque dos três padres que vieram, um faleceu afogado num rio, dois meses depois, outro foi consumido por uma febre perniciosa e o terceiro foi expulso a viva força. — Os Redentoristas da Itália têm desenvolvido a Congregação na sua Pátria, mas não fora dela. A Congregação transalpina, porém, bebeu o temperamento de São Clemente e herdou dele o desejo ardente de espalhar, o mais possível, os seus conventos e de penetrar em todos os países. Humanamente falando, se não fôra a Providência que mandou São Clemente a Roma fazendo-o entrar, como que por milagre, na Congregação, os Redentoristas talvez existissem apenas na Itália e não abarcassem o mundo como o vemos agora. Para que o leitor possa fazer uma idéia da expansibilidade da Congregação transalpina, e admirar a grande obra do Santo, cuja vida vimos descrevendo, pomos aqui um quadro do desenvolvimento da Congregação transalpina, segundo o último catálogo de 1927. *** A Província Austríaca, da qual todas as outras saíram: depois das muitas divisões possui ainda 12 casas com numerosos missionários. A Província Belga possui 31 casas: 12 na Bélgica, 3 nas Antilhas, 10 no Congo, 2 no Canadá-rutheno, e 4 na Galícia polaca. A Província de Baltimore — na América do Norte — uma das maiores da Congregação, possui 29 casas sendo: 23 nos Estados Unidos e 6 nas Antilhas. A Província de Lion possui 22 casas: 15 na França, 5 no Chile e 2 no Peru. A Província Bávara possui 15 asas: 9 na Baviera, 6 no Brasil. A Província Holandesa possui 15 casas: 8 na Holanda, 2 no Suriname — Guiana Holandesa — e 6 no Brasil. A Província Rhenana possui 20 casas: 15 na Prússia e 5 na Argentina. A Província Inglesa possui 9 casas e não tem Vice-Província. A Província de São Luiz — na América do Norte — 22 casas: 16 nos Estados Unidos e 6 na Oaklandia. A Província Irlandesa possui 7 casas: 5 na Irlanda e 2 nas Filipinas. A Província Parisiense possui 21 casas: 14 na França e 7 na Colômbia. A Província Espanhola possui 25 casas: 14 na Espanha, 9 no México e 2 na Venezuela. A Província de Praga possui 16 casas — não tem Vice-Província. A Província Polaca possui 6 casas — não tem Vice-Província. A Província Alsaciana possui 11 casas: 9 na Alsacia-Lorena e 2 na Bolívia.

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A Província do Canadá possui 8 casas com uma Vice-Província em Annam. A Província de Toronto possui 11 casas sem Vice-Província. A Vice-Província autônoma de Zwittau possui 4 casas. A Província da Austrália, há pouco tempo separada da Província Irlandesa, possui 7 casa. Quando em 1904 a “Vida de S. Clemente”, escrita pelo Pe. Saint-Omer, foi traduzida em português, a Congregação contava com 14 Províncias com 160 casas e 3.000 membros. — Vinte anos depois subiu o número a 21 Províncias, 310 casas e cerca de 5.300 religiosos. Há poucos meses realizou-se também um dos mais ardentes votos de Sto. Afonso e de São Clemente: a Província Canadense atravessou os mares e fundou uma nova Vice-Província em Annam, com esperanças de penetrar ainda mais longe no interior da Ásia.

No Brasil Até fins do século passado o Brasil permanecia fechado à Congregação Redentorista, enquanto que as outras repúblicas sul-americanas já de há muito sentiam o fogo do zelo apostólico dos filhos de Sto. Afonso. A primeira Província que se moveu, além dos Alpes, para a América do Sul foi a holandesa que em 1866 se dirigiu a Guiana Holandesa e fundou residências no Suriname. Catorze anos mais tarde, dez denodados Redentoristas franceses penetraram o Pacífico e instalaram-se em Cuenca e Riobamba, e poucos anos depois da morte do inesquecível Garcia Moreno, procuraram um seguro e garantido abrigo nas hospitaleiras terras do Chile. Em 1883 os padres da Província Rhenana entraram em Buenos Aires e no ano seguinte, a Província de Paris enviou os seus missionários para a Colômbia, levando-lhe as bênçãos da Redenção. O Brasil, a maior das repúblicas sul-americanas, consagrado desde o seu descobrimento ao mistério sublime da cruz, ainda estava por receber os filhos do Redentor, os Redentoristas. É certo que já em 1844 e outra vez em 1857 o exmo. sr. D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, se dirigiu por cartas ao Superior Geral dos Redentoristas, pedindo missionários para a sua vasta diocese; não pôde porém ser atendido pela falta absoluta de pessoal. Quem primeiro conseguiu missionários para o Brasil foi o exmo. D. Silvério Gomes Pimenta, saudoso bispo e mais tarde Arcebispo de Mariana. Cinco sacerdotes e três irmãos leigos da Província Holandesa fundaram aos 26 de abril de 1894 a primeira casa redentorista em Juiz de Fora. Seis anos mais tarde dirigiram suas vistas para a Capital do Estado edificando o belo convento de Belo Horizonte. Em 1903, reforçados por um forte contingente que lhes veio da Província-mãe, abriram mais uma residência no Rio de Janeiro, onde levantaram magnífico templo a Santo Afonso, que se tornou um centro de grandioso movimento religioso e uma das igrejas preferidas da elite carioca: é essa igreja a mãe das numerosas Ligas Católicas espalhadas nos diversos Estados da União. Com o sempre crescente desenvolvimento da Congregação, foi-lhes possível uma fundação na distante cidade de Curvelo, onde se levantou um belo Santuário ao grande Taumaturgo São Geraldo. Há pouco tempo os padres da Província do Rio,

desejosos de aumentar suas fileiras com sacerdotes nacionais, abriram uma casa em Congonhas do Campo, onde se acha a escola apostólica; recentemente fundaram a casa de Campos, no Estado do Rio. No mesmo ano em que os Padres da Província Holandesa chegaram ao Brasil, dois distintíssimos representantes do episcopado brasileiro fizeram em Roma a vista ad limina. Como eram bispos segundo o coração de Deus e queriam sinceramente o bem espiritual das suas ovelhas, insistiram com o Superior Geral dos Redentoristas, para que se dignasse enviar alguns dos seus súditos para as suas respectivas dioceses na Terra de Santa Cruz. Eram eles: D. Joaquim Arcoverde, então bispo-coadjutor de S. Paulo, e D. Eduardo Duarte Silva, bispo de Goiás. A Província Bávara gemia sob o peso da perseguição do Kulturkampf10; comendo de há muito o pão do exílio e sem esperança de voltar tão cedo para a cara Pátria. O Superior Geral dirigiu-se ao Provincial, expondo-lhe o pedido dos srs. bispos, mostrando a necessidade e a conveniência de atendê-los e aconselhando-os a mandar alguns dos seus padres, os mais intrépidos e animados, para que, transpondo o Oceano, fossem quebrar o pão da palavra divina aos filhos da Santa Cruz e propagar a Congregação nessa terra rica e futurosa. Os missionários bávaros receberam a insinuação do Superior Geral como uma ordem vinda do céu; resolutos despendem-se da Europa, para sempre, e confiados na Providência e na proteção de Santo Afonso e São Clemente, aprontam sua modesta bagagem, e em companhia do Sr. D. Eduardo, partem para o Novo Mundo. Eram seis padres e sete irmãos, destinados às duas futuras asas de Campinas de Goiás e de Aparecida do Norte no Estado de São Paulo. Depois de visitarem o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, cuja bênção imploraram para o futuro apostolado, embarcaram-se em Bordeaux a 5 de outubro de 1894. Embora repletos de otimismo, o coração, o coração trepidava-lhes dentro do peito na longa e arriscada travessia de mares, nunca dantes navegados por eles. A 29 do mesmo mês de outubro formaram em Aparecida a pequena comunidade, destinada a tornar-se grande, bem grande pelo número de confrades e pelo apostolado que deveriam exercer sobre não pequena parte do Brasil. A pedido do Exmo. Sr. Bispo de S. Paulo e com a devida permissão do Superior Geral os padres aceitaram a direção espiritual da paróquia e do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, tratando desde logo de dar ao serviço espiritual o desenvolvimento que exigia um Santuário tão importante. O número dos padres na comunidade de Aparecida foi crescendo de ano para ano, atingindo ultimamente o número de quinze sacerdotes que mourejam no Santuário e no colégio de Sto. Afonso. De Aparecida pode-se dizer, que se tornou, mais ou menos um segundo São Beno: o trabalho apostólico na Aparecida é uma missão continuada, que começa de manhã e termina à noite sem conhecer interrupção; em breve tornou-se Aparecida o Santuário mais querido e célebre em todo o Brasil não só porque lá se encontra a Virgem, Mãe dos brasileiros, mas também porque lá se acham sempre à disposição dos romeiros sacerdotes que se dedicam, com carinho, ao cuidado das almas, mostrando a todos o caminho do céu. É voz geral na boca de todos, que Aparecida se tornou uma paróquia modelo: o Apostolado, a Pia União das donzelas, a União dos Moços Católicos, a Liga

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Católica, a Irmandade do Rosário e Congregação da Doutrina Cristã fazem daquele abençoado recanto do Brasil um verdadeiro mimo de piedade sólida e esclarecida. Já mais de uma vez os protestantes têm tentado lá introduzir-se com o fim de arrancar ao povo o amor à sua Mãe Santíssima, mas em vão; o povo católico até a medula dos ossos não permitiu nem há de permitir em seu meio a seita que ofende e desrespeita a Mãe dos brasileiros. Com solenidade superior a qualquer descrição, na presença do Núncio Apostólico, de todos os bispos do Sul do Brasil, dos representantes do Episcopado do Norte, de inúmeros dignatários eclesiásticos: monsenhores, cônegos catedráticos, superiores de dez congregações religiosas, com assistência de sacerdotes de todos os cantos do Brasil e de umas vinte mil pessoas, a 8 de setembro de 1904 a imagem da Virgem foi coroada em nome do Santo Padre, e à Virgem foi consagrado o povo do Brasil. Pouco mais tarde, devido ao desenvolvimento sempre crescente o Santuário foi elevado à categoria de Basílica menor, a primeira da Terra da Santa Cruz. Lugar de destaque em todos esses empreendimentos teve o vulto venerando do Pe. Gebardo Wiggermann, a quem foi confiada a dificultosa empresa que ele soube dirigir com mão de mestre, dando-lhe firme orientação durante os nove anos que a governou. Logo nos primeiros anos reconheceram os Redentoristas a necessidade da fundação de uma escola apostólica para a formação intelectual e moral de meninos inclinados à vida sacerdotal e dedicados à obra das Missões na Congregação Redentorista, garantindo assim o futuro do Instituto, que haveria de criar profundas raízes no solo novo e exuberante da Terra da Cruz. A 3 de outubro de 1898 entraram os primeiros alunos, que foram entregues à direção do santo e sábio Pe. Valentim Riedl, êmulo do grande São Clemente, por sua fé profunda, humildade exemplar e amor à Congregação. As dificuldades do começo não eram pequenas: foi necessário sacrificar alguns sacerdotes que se prenderam ao magistério, despender quantias que não existiam em caixa, lutar com os embaraços de uma língua estranha; felizmente tudo foi superado pela vontade de ferro dos fundadores da escola apostólica. Conheciam perfeitamente que da solução dessa questão magna dependeria o futuro da Congregação no Brasil e em parte a grandeza e o desenvolvimento da religião em nossa Pátria. — Oxalá tivessem dela a mesma compreensão tantos católicos que existem no Brasil! nesses sentimentos nobres muitos pais e mães de família, sentirse-iam ufanos em dar a Deus um ou mais de seus filhos que mostrassem vocação religiosa! educá-los-iam para isso afastando-o o mais possível da corrupção do mundo e não regateariam o óbulo da caridade tão necessário para a formação desses futuros trabalhadores pela causa santa da Igreja em nossa Pátria! Hoje vinte e três brasileiros, formados lá na escola apostólica, já se consagraram a Deus pelos santos votos religiosos e vinte sacerdotes trabalham com denodo nas missões e em todos os ramos da atividade apostólica. Como, porém, o Colégio Sto. Afonso em Aparecida já não comportasse maior número de alunos, o governo da Congregação aceitou a generosa dádiva de uma chácara de dedicados amigos em Pindamonhangaba, para nela instalar a nova Escola Apostólica (Juvenato) de N. Sra. do Perpétuo Socorro. A exemplo de São Clemente começaram os padres de Aparecida, em mui-

to boa hora a exercer o apostolado da imprensa: é o meio mais profícuo para a conversão nos tempos modernos, porque o jornal e o livro penetram em todos os lares, falam a todas as classes de pessoas, corrigem as faltas com brandura e instruem com perseverança. As massas ávidas de leitura, pela imprensa aprendem aquilo que não podem ou não querem ouvir nos templos. Por esses motivos fundou-se na Aparecida o jornal semanário “Santuário de Aparecida” que instrui nos artigos de fundo, agrada na parte noticiosa e edifica na enumeração das graças concedidas pela Virgem Aparecida. — Diversos livros de piedade e obras ascéticas têm sido publicadas e difundidas pelos padres Redentoristas. Quem é que não conhece o “Manual de N. Sra. Aparecida” que já apareceu na duodécima edição com cerca de 150.000 exemplares? As “Meditações de Sto. Afonso” — A Oração — As mais belas orações de Sto. Afonso — As visitas ao Ss. Sacramento e a Nossa Senhora — as diversas publicações de biografias de São Geraldo — a Esposa de Cristo — o Sagrado Coração — a Biografia do Sto. Afonso — o Almanaque de N. Sra. Aparecida — os milhões de exemplares das Orações cotidianas etc. etc? Além disso diversas outras obras estão sendo preparadas para a instrução e edificação como meio de apostolado. Campinas. Dos primeiros padres bávaros vindos em companhia do Exmo. Sr. D. Eduardo, quatro foram destacados para o distante Estado de Goiás: eram heróis, desbravadores do sertão e abnegados pioneiros do bem no longínquo Estado. Em Uberaba, onde terminava a estrada de ferro, pela primeira vez montaram a cavalo experimentando as doçuras dos socos dos animais, das quedas repetidas, e daquilo que costuma maltratar os que cavalgam muito tempo sem estarem a isso habituados. Em doze dias venceram a distância de 480 km que vão de Uberaba a Campinas. A 12 de dezembro, debaixo de uma chuva torrencial, fizeram os padres sua entrada em Campinas, lugar aprazível pela topografia, porém paupérrimo em prédios e meios de vida. A primeira morada dos filhos de Santo Afonso não era em nada superior à de Varsóvia quando lá chegou o Pe. Clemente acompanhado de seu digno confrade o Pe. Thadeu Hübl: um casebre velho com paredes de pau a pique, já ameaçando ruínas, sem outra mobília além de três catres toscos e um banco de carpinteiro. No ano seguinte já foi possível construir um prédio novo, modesto, mas apropriado e decente no meio de um vasto campo. No princípio não eram poucas nem pequenas as provações, porque a comunidade de Campinas teve de passar pela falta do necessário, que não se encontrava no arraial e que não se podia mandar vir de fora pela escassez dos meios de condução e transporte; em compensação gozaram os padres o clima salubérrimo, que lhes conservou a saúde e a disposição para o trabalho. As paróquias de Goiás, em sua grande maioria, estavam vagas quando os padres lá chegaram; a falta de clero era lastimável. O bispo não hesitou em confiá-las aos cuidados dos Redentoristas. Era um trabalho insano, pois que as paróquias goianas são, em geral, pouco povoadas, mas ocupam áreas enormes, algumas até 10.000 km2. Essas almas tão dóceis e de boa vontade achavam-se então quase completamente abandonadas de socorro espiritual; eram por conseguinte as que Santo Afonso tinha em vista quando fundou a Congregação, é esse o campo de trabalho genuinamente afonsiano. Na paróquia de Campinas estabeleceu-se a missa cotidiana, a pregação aos domingos, a aula

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de catecismo às crianças etc. As Associações religiosas: a Confraria de N. Sra. do Perpétuo Socorro e de S. Afonso, o Apostolado, as Conferências de S. Vicente, a Liga Católica introduziram, aos poucos, intensa vida de piedade. Os exercícios religiosos estenderam-se também às capelas filiais; em poucos anos a nova Matriz de Campinas tornou-se uma das mais belas do Estado inteiro; o convento por causa dos muitos cômodos de que dispõe e da colocação favorável, em que se acha no centro da diocese, foi escolhido para casa de retiro do clero. As Missões começaram a fazer-se regularmente todos os anos, de acordo com as determinações do bispo diocesano, que sempre se mostrou amigo dos Redentoristas. Os enfermos, não só da paróquia, mas até de bem longe — vinte ou mais léguas, mandam chamar — para a sua última hora — os padres de Campinas, nos quais depositam inteira confiança. Pelas continuadas missões em toda a vasta diocese de Goiás, numa extensão de 747.311 km2, são conhecidos, estimados e quase adorados os padres Redentoristas, que não olhando para as dificuldades nem número das intérminas viagens percorrem o Estado em todas as direções difundindo em toda a parte a semente da palavra divina, corrigindo os costumes, onde necessário, legalizando as uniões matrimoniais, fazendo os batizados, instruindo, confortando e chamando todos para Deus. Dentro dos limites da paróquia de Campinas, acha-se o Santuário mais célebre do Estado de Goiás, chamado pelo povo: “Divino Padre Eterno da Ss. Trindade”. Para a festa que se celebra anualmente no primeiro domingo de julho acodem os romeiros de oitenta ou mais léguas em número, às vezes, superior a 20.000, a maior parte a cavalo, em carros de bois ou a pé. Não havendo casas para hospedar tanta gente formam-se no patrimônio arruamentos compridos de todas e de ranchos cobertos de folhagem, outros acomodam-se com toda a família dentro e debaixo dos carros de bois. Durante os últimos dias da novena, no dia da festa e alguns dias depois a igreja regurgita de povo desde a manhã até alta noite; entram no templo em grupos para cumprir suas promessas cantando, cada um a seu modo, a ladainha de Nossa Senhora e outros hinos. Nessas ocasiões o confessionário fica assediado de romeiros que aproveitam a ocasião para se reconciliar com Deus. Esse movimento religioso, porém, não data desde o princípio da romaria; foi necessário pregar muito no Santuário e fora dele, missionar as cidades e as roças, difundir objetos de devoção em grande quantidade, introduzir a irmandade de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e de Sto. Afonso etc. etc. Fora da paróquia os trabalhos são hercúleos não tanto pelo dispêndio de força intelectual, como pelo consumo de forças físicas. Durante três anos as paróquias vizinhas, numa distância de 240 km foram anexadas à de Campinas. Todavia, por causa dos trabalhos paroquiais não foram descuradas as missões, trabalho principal dos Redentoristas; e elas são penosíssimas naquelas paragens por deverem os padres fazer a viagem a cavalo, acompanhados de um camarada e de um animal de carga, que leva os objetos mais indispensáveis, além dos parâmetros de missa. Geralmente saem por ano duas turmas de missionários; uma logo depois da semana santa e a outra depois da grande festa em julho até o mês de novembro mais ou menos, porque dai em diante é impossível a pregação de missões devido às grandes enchentes dos rios que se tornam inatravessáveis pela falta de pontes.

Nessas excursões apostólicas, repletas de perigos de toda a sorte, faz-se um bem espiritual imenso ao povo disperso pelos caminhos, por onde passam os missionários; no fim de uma penosa viagem de muitas horas, debaixo de um sol abrasador, alcança-se, geralmente, um pouso previamente avisado da chegada dos missionários. A notícia corre logo, e as pessoas dos arredores, os agregados começam a chegar para a reza. Ao anoitecer há a recitação cantada do terço, pregação, audição das confissões, o que se prolonga, às vezes, até alta noite; na manhã seguinte em um altar improvisado celebram a santa missa, dão a comunhão, fazem os batizados, casamentos etc. e continuam a viagem até chegarem ao lugar, onde devem pregar a missão propriamente dita. — No meio de todas essas fadigas, desconhecidas dos homens, sente-se a bênção divina: O missionário exulta de contentamento vendo o respeito e a veneração que o povo espontaneamente lhe tributa; em toda a parte recebe acolhimento e agasalho, opera as mais consoladoras conversões e tem o prazer de ver todos contentes, repletos de gratidão para como ministro de Deus. Desde 1909 um dos padres tem acompanhado, anualmente, durante cinco ou seis meses o bispo diocesano em visita pastoral partilhando com ele as mesmas fadigas e privações, e pregando de manhã e à noite, dando aula de catecismo, confessando e ajudando em todos os trabalhos da visita pastoral; são dias cheios e exaustivos. Não obstante tudo isso, a missão goiana é uma das mais queridas dos Redentoristas, que lá se consideram em seu campo de trabalho longe dos elogios humanos e dos louros da história, porém, mais perto de Deus e do céu. ***

Penha. Dez anos depois de labutar em Aparecida e Campinas, foi possível aos padres aceitar mais uma fundação gentilmente oferecida por D. José de Camargo Barros. Aos 15 de março de 1905 dois padres e um irmão leigo abriam, a título de experiência, a casa da Penha em um dos mais aprazíveis arrabaldes da Paulicéia. A igreja da Penha sempre foi o santuário mais conhecido da Capital e o preferido do povo paulistano, que aos domingos e dias santos para lá se dirige em grande número. Essas excursões, porém, não passavam antigamente de passeios mais ou menos agradáveis, muitas vezes sem motivos religiosos. Pelo ensino constante do catecismo, pelas pregações, instituição de diversas associações religiosas: Apostolado, Pia União, União dos M. Católicos, Corte de S. José, Damas de Caridade, Conferências Vicentinas, Liga Católica, Cruzada Eucarística, Liga do Menino Jesus etc. pouco a pouco derreteuse o gelo do indiferentismo; de ano em ano aumenta-se o número das comunhões, crescendo também proporcionalmente o número de padres. A casa da Penha é procurada por sacerdotes e pelos seminaristas que nela fazem seu retiro espiritual. Além da sede da paróquia os padres percorrem apostolicamente mais seis populosas capelas filiais e mais duas paróquias anexas à estola da Penha; durante muitos anos tiveram a direção espiritual do Hospital de Caridade do Brás e do Asilo de São José do Belém, prestando todos os serviços espirituais aos enfermos e às órfãs do Asilo, bem como às religiosas dos dois estabelecimentos. Até hoje exercem o ofício de confessores ordinários em cin-

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co ou seis conventos de irmãs na Capital. São inúmeros os trabalhos dos padres da Penha nas diversas paróquias da Capital. Como nas escolas públicas não se ensina a Religião, os Redentoristas fundaram escolas paroquiais, onde por intermédio das Irmãs Vicentinas e outras professoras fornecem instrução a muitas centenas de crianças, às quais procuram dar uma educação genuinamente cristã. O leitor pode observar no prospecto abaixo que é grande e consolador o número de missões, tríduos, retiros e outros trabalhos apostólicos, feitos pelos padres não só na arquidiocese de S. Paulo, mas também em outras dioceses do Estado e fora dele. Em 1907 as irmãs de S. Vicente de Paulo adquiriram uma residência na Penha e lá estabeleceram o noviciado de sua Congregação, abriram um externato para o ensino elementar e mais tarde uma escola profissional para moças; são ótimas auxiliares na instrução das crianças, que estão, como as irmãs, entregues à direção dos padres Redentoristas. ***

Perdões. Em 1913 o Exmo. Sr. Arcebispo de S. Paulo, D. Duarte Leopoldo e Silva, ofereceu aos padres Redentoristas o Santuário do Bom Jesus dos Perdões. Dos edifícios que existem no lugar pertencentes à igreja e destinados à hospedagem dos romeiros uma parte foi cedida aos padres e transformada em convento. Por ser Perdões um lugar excepcionalmente saudável e retirado dos grandes centros, foi escolhido para casa de noviciado, os três padres que formavam a pequena comunidade poucas missões puderam pregar; assim mesmo auxiliavam os vigários das paróquias vizinhas, e tomavam parte nos trabalhos apostólicos das casas maiores, como Penha e Aparecida. Tendo os Superiores opinado pelo abandono da casa de Perdões, entregaram o Santuário ao Sr. Arcebispo em 1920. ***

Araraquara. Em 1920 mais uma época risonha raiou para a Vice-Província de S. Paulo. A convite do Sr. Arcebispo de São Carlos, D. José Marcondes Homem de Mello, os padres Redentoristas levantaram o vôo e foram a Araraquara, a Princesa do Oeste paulista, cidade bela, rica e sadia, brinco de asseio no ouro dos corações generosos dos habitantes e na pérola da administração pública, que é exemplar. É mais um campo vastíssimo de atividade apostólica, que se abriu aos filhos de Santo Afonso. Livres da paróquia podem eles dedicar-se exclusivamente ao fim principal da Congregação. Cinco padres válidos e ardorosos, desde então, têm percorrido as cidades do Oeste, cuja população composta de toda a sorte de imigrantes se achava, religiosamente falando, insuficientemente cuidada, enquanto que materialmente se avantajava a todas as outras zonas do rico Estado de São Paulo. Lá construíram os padres um belo convento, muito cômodo para o descanso dos missionários: um esplêndido pomar ameniza-lhes os poucos dias de repouso que passam em casa. Ao lado dos estafantes labores apostólicos nas Missões etc. têm os padres o múnus sacerdotal na Igreja de Santa Cruz, doada pelo Exmo. Sr. Arcebispo

de São Carlos ao uso dos padres Redentoristas. A Igreja de Santa Cruz é procurada por todas as pessoas piedosas, que lá vão reconciliar-se com Deus, ouvir as pregações aos domingos, assistir as tocantes festas que lá se celebram e dar expansões à sua devoção a São Geraldo, que também em Araraquara conseguiu captar a simpatia popular. Os padres tomam conta da Santa Casa onde atendem aos chamados dos doentes e moribundos de dia e de noite; são confessores das Irmãs e ajudam quanto possível o vigário da paróquia. A fundação da residência de Araraquara foi providencial, não só por ser essa cidade o centro da mais importante zona paulista, mas principalmente por ser essa parte do Estado a mais desprovida de Ordens ou Congregações religiosas. Cachoeira. Com intuito de alargar ainda mais o raio de atividade e de arregimentar com mais facilidade maior número de missionários Redentoristas, os Superiores resolveram a título de experiência fundar uma casa no Sul do Brasil. A primeira escolha coube a Pelotas para onde em 1919 seguiram dois sacerdotes, onde, recebidos de braços abertos pelo povo e mais ainda pelo Exmo. Sr. D. Francisco de Campos Barreto, então bispo dessa cidade, começaram a desenvolver uma atividade digna de São Clemente. A nova paróquia, criada nessa ocasião e confiada aos cuidados dos Redentoristas, prosperava a olhos vistos, os padres coadjuvavam os outros vigários no confessionário e no púlpito, e tudo prometia o mais brilhante futuro quando os Superiores, por motivos poderosos, acharam melhor transferir a residência para Cachoeira, situada no bispado de Santa Maria e mais no centro do Estado do Rio Grande do Sul, donde com mais facilidade poderiam os padres sair para a evangelização da vasta vinha do Senhor. Superadas as primeiras dificuldades, lançaram-se os padres aos trabalhos da sua vocação, percorrendo incansáveis as colônias italianas e alemãs e missionando as cidades. Os cinco sacerdotes, que desde 1921 lá trabalham, têm-se dedicado quase que exclusivamente ao apostolado nas diversas dioceses do Estado. Com os padres estavam, no princípio, muito mal alojados, começaram já a construção de um convento em regra que possa agasalhar decentemente os confrades e servir de escola apostólica para instrução dos meninos que mostrarem vocação para a Congregação Redentorista. — São esses os trabalhos que os padres vindos da Baviera e da Holanda, portanto oriundos da casa-mãe fundada por São Clemente, têm feito na Terra de Santa Cruz, e continuam a fazer, graças a Deus, com a melhor vontade e animação. Os Estados de S. Paulo, Minas, Goiás, Rio, Bahia, Espírito Santo, Rio Grande, Paraná, Sta. Catarina e até Mato Grosso, já viram em sua operosidade apostólica os filhos de Santo Afonso. Em Minas, São Paulo, Rio e Goiás talvez não se encontre uma cidade que não tenha sido missionada, uma ou mais vezes, pelos padres Redentoristas. E Deus tem abençoado visivelmente os seus trabalhos; as bênçãos do episcopado também os acompanham em toda parte animando-os ainda mais e garantindo-lhes o melhor resultado. Os pedidos feitos pelos vigários e pelo povo são tão numerosos que lhes é impossível satisfazer a todos. Messis quidem multa, operarii autem pauci. A fim de o leitor possa fazer uma pequena idéia da atividade apostólica dos padres da Vice-Província de São Paulo e da Vice-Província do Rio, pomos aqui uma pequena resenha desses trabalhos desde o ano da fundação de cada

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casa até o ano santo de 1925. Não pode ser uma computação completa, porque faltam muitos dados, mormente dos primeiros anos; em todo o caso pomos aqui o mínimo em algarismos. [...] Nesse quadro não estão registrados os 100.452 batizados e as 150.000 crismas que os missionários fizeram nesse lapso de tempo, nem os milhares de pequenos trabalhos, que a cada hora ocupam os sacerdotes, mormente os que têm a direção espiritual de paróquias ou de Santuários. Ai estão os números em toda a sua eloqüência. Quantas confissões ouvidas! quantas comunhões administradas! quantos doentes sacramentados! E se fosse possível aqui enumerar ao menos as conversões estupendas realizadas nesses 30 anos de apostolado!... quantos corações recuperaram a paz perdida! e quantos estão agora salvos eternamente por todas essas fadigas e suores! Ora tudo isto data, em sua origem, daquele dia memorável em que São Clemente conseguiu a aprovação da Congregação na Áustria depois de haver em pessoa educado segundo o espírito de Sto. Afonso os discípulos que foram a coluna do Instituto além dos Alpes. Eis o que pode alcançar um só homem, quando é movido do Espírito de Deus! Se aqui quiséssemos enumerar todos os trabalhos feitos pelos Redentoristas de todas as Províncias formadas além dos Alpes, não haveria livro que os pudesse conter, nem língua que os conseguisse pronunciar. Milhões e milhões de almas encontraram a salvação, milhões de outras elevaram-se à mais alta perfeição, em conseqüência dos esforços e da atividade dos filhos de Sto. Afonso e de São Clemente. Isto tudo fica aqui documentado para a glória do Fundador da Congregação e do seu insigne Propagador nas cinco partes do mundo. CAPÍTULO XXIX

As Irmãs Redentoristas Em Scala — A Ordem das Irmãs Redentoristas — O seu fim principal — O seu hábito atraente — Sua propagação na Europa — Sua vinda ao Brasil — Seus progressos. Além da Congregação de Missionários de vida apostólica fundou Santo Afonso, em Scala, uma Ordem de Religiosas, que na Bula de aprovação receberam o nome de Irmãs do Santíssimo Redentor ou Redentoristas. São verdadeiras monjas no sentido canônico da palavra; dedicam-se à vida contemplativa distribuindo o tempo entre a oração e o trabalho. Têm por fim principal o mesmo que os padres Redentoristas, isto é, a imitação mais perfeita possível da vida do Redentor e de suas virtudes. Os seus votos são perpétuos e solenes. A vida da Redentorista, menos austera que a das Carmelitas e Clarissas, é uma vida de imolação pela submissão inteira da própria vontade, pela sujeição a todas as exigências da vida comum e pelas austeridades corporais, que são reguladas com discrição não ultrapassando as forças de uma saúde mesmo medíocre, uma vida apostólica pelas abnegações e orações em prol das santas Missões, uma vida, às vezes, penosa e dura à natureza corrompida que deve ser dominada e sujeita ao espírito, porém saturada de merecimentos e de alegrias serenas, fruto da união íntima com Deus. As Redentoristas são as maiores auxiliares dos seus confrades na evangelização dos povos por meio das suas orações fervorosas e dos seus trabalhos contínuos. Como Moisés conservam seus braços estendidos para a oração, enquanto os batalhadores terçam as armas no campo da luta, e de Deus imploram para eles a vitória e o triunfo sobre os inimigos das almas: são os pára-raios da vingança do Eterno por seu espírito de humildade e oração. Ocultas aos olhos do mundo permanecem como Maria aos pés do divino Mestre ouvindo a sua voz e voando no caminho da perfeição. Em seu hábito característico composto de uma túnica vermelha-escura com escapulário azul-celeste, ao qual se conserva afixada a imagem do Redentor num medalhão oval, adornadas do véu de linho frisado, de uma faixa e um véu branco encoberto por um outro preto, com um rosário pendurado ao cinto, e — no coro — com um amplo manto de cor azul-celeste — as Redentoristas — formam, no ofício, um grupo empolgante, celestial e atraente aos olhos dos anjos e do divino Esposo. As Irmãs Redentoristas viviam contentes em seu convento de Scala sem outra aspiração que a de ali ficar para sempre, longe dos homens e só unidas a Deus; mas a Providência teve outros desígnios a seu respeito, reservou-lhes a sorte dos seus irmãos no apostolado. Já em Varsóvia fizera Clemente repetidas

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tentativas para levá-las à Polônia. Em Viena procurou debalde, como temos visto, uma residência estável para os seus confrades. A Providência preparara para os dois ramos da Ordem Redentorista o mesmo destino, as mesmas abraçarem a Regra do Ss. Redentor e receberem noviças depois de estabelecida a clausura. Sob a direção firme do Pe. Passerat, amigo e modelo das almas interiores, o convento prosperou admiravelmente em Viena, sendo possível fundar, poucos anos depois, uma outra residência no sul da Áustria. Na medida que os padres Redentoristas se espalhavam pela Europa, tendo grande aceitação em toda a parte, despertavam, com suas pregações, o desejo em muitas donzelas de se consagrar a Deus na Ordem Redentorista. Assim, aos poucos, entraram as Irmãs do Santíssimo Redentor em diversos países da Europa e da América, possuindo presentemente nada menos de vinte e cinco conventos povoados por cerca de setecentas religiosas. Logo depois da grande conflagração européia quatro intrépidas Irmãs Redentoristas — entre elas duas brasileiras — deixaram seu confortável mosteiro em Bruges na Bélgica, e transpondo o Atlântico, lançaram as bases de um novo mosteiro na cidade de Vassouras no Estado do Rio. Desde 1924 essas Irmãs, devido às prementes necessidades de ordem material, transferiram a residência para a cidade de Itú, célebre em todo o Estado de São Paulo por seus sentimentos religiosos e pela fidalguia dos seus costumes cavalheirescos. Tornando-se o prédio um tanto acanhado por causa das muitas vocações que Deus tem suscitado no coração das donzelas brasileiras, as Irmãs Redentoristas, contando com a generosidade dos corações nobres, aumentaram e pretendem ampliar ainda mais o mosteiro de Itú, que será o berço viçoso e sadio das futuras residências das Irmãs Redentoristas na grandiosa Terra da Santa Cruz, onde há corações nobres, amantes da vida interior e da união com Deus11. CAPÍTULO XXX

O seu sepulcro glorioso O seu sepulcro — Exumação — Beatificação — O seu triunfo no mundo — Canonização — O ofício e missa do Santo — Observação final. Já não será necessário acrescentar mais um juízo sobre a vida íntima de São Clemente. A Igreja Católica, infalível pela assistência do Espírito Santo em matéria de fé e moral, já declarou solenemente que o Apóstolo de Viena possuía em grau heróico as virtudes teologais e morais, e que agora goza no céu da visão de Deus. Desde o dia do seu sepultamento em o cemitério de Enzersdorf, onde o Santo quis se inhumado em atenção a seu grande amigo o Pe. Diesbach S. J., tornou-se o seu sepulcro um lugar de romaria piedosa; homens e mulheres de todas as classes sociais, e até sacerdotes, para lá têm ido implorar o auxílio do Santo, julgando-se felizes por poderem levar consigo alguma florzinha crescida à beira do seu túmulo, ou um pouco de terra do seu sepulcro. Em 1847, foi aberto o túmulo de Clemente a pedido insistente dos seus admiradores e devotos que desejavam dar-lhe uma sepultura mais digna. Os ossos estavam ainda bem conservados, o barrete e a estola nada haviam sofrido, enquanto que o rosto já havia desaparecido. Deus queria assim dar a entender o quanto abençoara a estola e o barrete do Santo, insígnias, aquela do confessor e este do pregador, funções essas em que se distinguira o grande Apóstolo de Viena. Essas preciosas relíquias foram conservadas como um tesouro precioso; sobrevindo, porém, a perseguição de 6 de abril de 1848, tiveram os padres de abandonar os seus conventos da Áustria, e com a precipitação da saída e com as dificuldades do exílio perderam-se essas relíquias preciosas. Com enorme acompanhamento, ao som festivo dos sinos de Viena e com a assistência do Núncio Apostólico, do representante do arquiduque Maximiliano e de outras pessoas altamente colocadas foram os restos mortais de Clemente transportados para a igreja de Nossa Senhora da Escada (em alemão: Maria Stiegen). Perto da parede da capela-mor ao lado do evangelho foi colocado o precioso sarcófago, sobre o qual se levantou o monumento em forma de altar, no alto a imagem do Santo, em fino mármore branco, tendo sobre a fronte o barrete e sobre a batina do Redentorista o manto da profissão. É uma verdadeira obra de arte que honra o Apóstolo de Viena. Desde esse dia a romaria, que se fazia a Enzersdorf, transferiu-se para a Virgem da Escada e tem-se aumentado constantemente com os milagres estupendos operados pelo Santo à invocação do seu nome e ao tributo de veneração prestado às suas sagradas relíquias.

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Em 1864 teve início o processo para a beatificação do Servo de Deus. As trinta testemunhas chamadas a depor, eram todas amigos e discípulos dele, e por isso podiam depor com segurança e de ciência, ainda mais que eram homens santos e de inteira confiança. Declarado venerável em 1867 foi beatificado em 1888 na grande basílica de São Pedro. A beatificação do Servo de Deus fora pedida pelo próprio Imperador da Áustria, por D. Miguel de Bragança, Maria Adelaide de Bragança, arquiduquesa Maria Tereza, seis cardeais, quarentas bispos de diversos países, oitenta e duas Ordens e Congregações religiosas, inúmeros dignatários eclesiásticos, dez Superiores Gerais de Ordens e Congregações, muitos professores de universidades etc etc. Leão XIII determinou o dia 29 de janeiro de 1888 para a solenidade da beatificação do Apóstolo de Viena. Como de costume nessas ocasiões, uma multidão incalculável esperava a abertura da Porta de bronze à direita da porta principal de S. Pedro. Já muito antes das 10 horas estava o povo apinhado no grande largo da basílica à espera que se desse o sinal da abertura da porta. Dado o sinal encheu-se a vasta e magnífica sala das beatificações. Numeroso clero, secular e regular, estava presente; os Redentoristas ocupavam uma tribuna especial; na tribuna dos diplomatas achava-se o embaixador austríaco junto a Santa Sé com os secretários da legação. A iluminação era feérica e cerca de 4.000 velas ardiam nos lustres. Sobre o altar-mor de uma grande abertura oval, rodeada de nuvens e encoberta por um véu, salientava-se a imagem do novo Bem-aventurado irradiada de luz. Acompanhados da guarda suíça apareceram os cardeais da Sagrada Congregação dos Ritos com seus prelados e consultores e tomam, cada um, seu lugar. Ladeado por seu secretário, o postulador da causa da beatificação aproxima-se do prefeito da Congregação e pede licença para ler em voz alta o Breve que declara Bem-aventurado o Servo de Deus. A essa leitura segue o Te-Deum cantado pela Capela Julia alternando com o povo. Durante o hino ambrosiano puxa-se o véu do altar-mor, e rodeado de um mar de luzes apresenta-se a imagem do Bem-aventurado Clemente em atitude triunfal, circundado de anjos. Todos os corações pulsaram com força, as lágrimas de comoção e gratidão alagaram os olhos enquanto os sinos de São Pedro festejavam o novo Bemaventurado. À tarde às três horas estava o templo outra vez repleto: era o momento em que o Santo Padre ia prestar suas homenagens ao Bem-aventurado. Às 3 horas e 15 minutos começa um zum-zum entre o povo; aos poucos calam-se todos: aproxima-se um préstito longo de prelados e cardeais, brilham os capacetes dourados da guarda nobre, e o representante de Deus, Leão XIII, aparece abençoando as massas. Perante o altar reza o Papa uns 12 minutos, conservando sua fronte inclinada na almofada de seda branca; ele ora e um silêncio sepulcral apodera-se da igreja, só se ouvem as badaladas compassadas do grande sino de São Pedro. O venerando Superior Geral dos Redentoristas, depois de meia hora de oração, aproxima-se do Santo Padre para lhe agradecer o favor prestado a toda a Congregação, e em sinal de gratidão oferece-lhe um bouquet e um relicário precioso e magnificamente fabricado, relíquias do novo Bem-aventurado. Depois de breves palavras de animação o Papa deixa a igreja e retira-se abençoando o povo.

A Igreja com esse ato levou Clemente aos altares, permitindo o culto de Bem-aventurado ao simples padeiro de outrora e mais tarde, pobre, porém zelosíssimo sacerdote, que libertou a Áustria das garras do josefismo racionalista, despertando mas massas sentimentos de verdadeira piedade. Viena exultou com esse memorável acontecimento e com festas esplêndidas procurou glorificar o seu santo Apóstolo. Para imortalizar a recordação desse dia fez ainda mais. O arrabalde operário de Hernals que contava mais de oitenta mil almas, não possuía em 1888 senão uma única igreja paroquial, que mal podia conter umas seiscentas pessoas. Os vienenses lembraram-se de perpetuar a memória de Clemente, erigindo naquele bairro tão abandonado um templo monumental e um convento de Redentoristas. Esse templo tem a insigne honra de possuir hoje as relíquias sagradas de São Clemente. É lá e na igreja de Nossa Senhora da Escada que o Santo continua o seu ministério apostólico em Viena atraindo as almas para Deus por meio de contínuos prodígios. Com a beatificação começou a marcha triunfal do Servo de Deus pelo mundo; em todos os conventos redentoristas foi esse acontecimento celebrado com toda a pompa e solenidade; em as numerosas igrejas redentoristas levantaram-se, com indulto pontifício, altares ao Bem-aventurado; muitas dioceses imploraram a Santa Sé permissão de comemorar com ofício e missa própria as glórias do novo Bem-aventurado, e na Áustria, Alemanha, França e Bélgica, bem poucos Santos conseguiram tanta popularidade como o humilde Clemente que viveu com o povo e para ele. O nome de Clemente foi escrito com caracteres de ouro numa placa riquíssima que adorna o salão da Universidade de Viena. Vinte anos depois fez-se novo exame sobre os mais recentes milagres operados pelo Bem-aventurado, ficando pronto o processo em poucos anos. Em 1909 o Papa Pio X, na festa da Ascensão do Senhor aos 20 de maio, canonizou solenemente o grande Apóstolo de Viena. Desde então cresce, dia a dia, o número dos devotos de São Clemente. Em todos os países católicos difundiu-se a sua devoção: altares, capelas, igrejas, conventos, casas de estudos, estabelecimentos de caridade, levam o seu nome. Entusiasmado, que quase atingiu as raias do delírio, apoderou-se de Tasswitz, terra natal de São Clemente; de 26 a 29 de junho de 1909 mais de oito mil peregrinos visitaram a pobre casa em que Clemente viu pela primeira vez a luz do dia. O quarto onde ele nasceu transformou-se em bela capela devota. Na véspera da conflagração européia Pio X declarou Clemente padroeiro da cidade de Viena. A guerra impediu a realização das solenidades que se haviam preparado para a condigna comemoração desse acontecimento. Em 1926 os bispos da Alemanha e da Áustria impetraram na Santa Sé, o Ofício e Missa em louvor do novo Santo, sob rito de duplex maior, de sorte que anualmente a festa de S. Clemente é celebrada com solenidade nesses dois países a 15 de março. *** São Clemente é como nenhum outro, o Santo dos nossos tempos. A nossa época distingue-se tristemente por uma vida sem fé, uma atividade sem virtudes e um desejo ilimitado de gozos proibidos. A fé vacila, a incredu-

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lidade apodera-se dos espíritos alastrando-se até pelas roças; cada qual pretende formar a sua religião desdenhando os princípios sacrossantos do Evangelho. Os homens consideram o trabalho não como uma virtude e uma honra para o homem, mas sim como uma dura necessidade, um jugo pesado que querem afastar de seus ombros, produzindo as tremendas greves e lutas das massas contra os proprietários. Os homens ávidos de gozo, chafurdam-se miseravelmente na lama dos vícios e das diversões que maculam o corpo e matam a alma. Em contraste com tudo isso mostra-se Clemente o Santo da época. Sua fé inconcussa e inabalável e seu amor ardente à Santa Igreja fizeram dele o apóstolo impertérrito que converteu a cidade de Viena e dissipou as trevas do erro do racionalismo josefino. É São Clemente que também nos nossos dias há de despertar a consciência católica, atear nos corações o verdadeiro amor para com a Santa Igreja, mestra infalível da verdade, para com o Santo Padre, Vigário de Jesus sobre a terra, e para com os bispos que sãos os nossos pastores e guias na fé. A atividade de Clemente era grande, e toda inspirada pela luz da fé; a intenção única que o movia, era trabalhar sem descanso pela glória de Deus e a salvação das almas, e não menos pela sua própria santificação. Também nesse particular é ele o modelo para os nossos tempos, em que muito se trabalha; a devoção a São Clemente e a imitação da sua vida far-nos-ão amar o trabalho e fazer dele uma oração constante pela boa intenção e pelo desejo de agradar a Deus. Reconhecendo que somente em Deus é que o coração encontra a verdadeira felicidade, Clemente detestava a vaidade mundana, os divertimentos que só servem para tornar superficiais os corações, infiltrando neles o veneno do desespero e a ruína eterna. Como tal, Clemente chama os corações, mormente os homens, arranca-os do lodo ensinando-lhes a mortificação moderada mas constante, o desapego das coisas passageiras e o desejo dos gozos celestiais. Admiremos pois o grande Apóstolo Clemente que foi a coluna da Igreja, imitemos os seus exemplos; peçamos a Deus queira dar à sua Igreja homens como Clemente, e procuremos difundir a sua devoção, como remédio contra os males modernos e preservativo da catástrofe a cujo encontro caminhamos. Dessa forma teremos cooperado para a restauração da sociedade, o triunfo da verdade e a salvação das almas.

NOTAS DE RODAPÉ 1. Enciclopedistas são os autores da Enciclopédia e em geral todos os que comungam com as idéias expostas pelos filósofos franceses. Os chefes foram Diderot e D’Alembert; houve notáveis colaboradores: Rousseau, Grimm, Voltaire etc. O intuito principal dos enciclopedistas era combater, por todos os modos, a religião revelada, implantando a religião da razão humana. 2. Congregação de Missionários fundada por S. Vicente de Paula em 1624; tira o nome de S. Lázaro, que é a casa mãe de Paris; tem prestado os mais relevantes serviços à Igreja tanto pelas missões pregadas como pelas escolas mantidas e pela direção de seminários. Em 1904 havia 31 províncias. Conta numerosos oradores, cientistas, educadores, alguns mártires e alguns santos canonizados. Muitos bispos brasileiros foram escolhidos dentre os Lazaristas. 3. Maçom quer dizer “pedreiro” a construir o templo espiritual do Altíssimo. Há três classes: aprendizes, oficiais e mestres. As condições de admissão: rito, distintivos (avental, martelo, trolha etc.), auxílio mútuo, expulsão de irmãos estranhos, juramento de guardar os segredos da maçonaria etc. 4. Josefismo (de José II) é um sistema político-religioso, que submete a Igreja inteiramente ao Estado em todos os seus interesses não puramente espirituais, e procura influir, segundo a doutrina de Febronio, na esfera religiosa da Igreja. O intuito do josefismo era fundar uma igreja nacional austríaca. 5. Racionalismo, no sentido teológico, é o erro sistemático daqueles que têm a razão humana por única norma do verdadeiro e do falso, e por isso mesmo rejeitam inteiramente a fé, quer como contrária à razão, quer ao menos como inútil e carecendo de fundamento racional. 6. Ordem religiosa fundada por Mechitar, sacerdote armênio, que nasceu em 1676 em Sebaste e faleceu em 1749 em S. Lázaro perto de Veneza. De monge cismático converteu-se em 1696 e ordenou-se presbítero nesse mesmo ano. Em 1701 fundou a Congregação sob a regra de S. Bento. A casa principal era em S. Lázaro, dali o nome de Lazaristas armênios. Em 1773 foram a Trieste e em 1810 a Viena. Divididos em duas províncias têm trabalhado muito pela causa de Deus, maxime pela difusão de bons livros. 7. Maçonaria é uma seita oculta, proibida pela Igreja. O segredo primitivo da maçonaria era construir o deísmo sobre as ruínas do catolicismo, como se vê no livro da Constituição publicado pela Grande Loja da Inglaterra em 1723. No princípio havia apenas os três graus de S. João: aprendiz, oficial e mestre. Na França fundaram-se mais os que veneram S. João, Sto. André e Jesus. Esse novo sistema compunha-se outrora de 25 graus que pelos judeus foram elevados a 33. Clemente XII anatematizou a maçonaria em 1738 na constituição In eminenti. Essa condenação foi renovada por Bento XIV, Pio VII, Leão XII, Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII. Não se pode dar uma estatística certa por causa do silêncio dos maçons. Talvez existam cerca de 170 uniões maçônicas com umas 20.000 lojas e um milhão de maçons. A divisa é a do liberalismo: liberdade, igualdade, fraternidade; é pois o combate à autoridade representada pelo trono e pelo altar. 8. Essa lei da abstinência da carne às sextas-feiras do ano foi entre nós dispensada pela Igreja permanecendo apenas a abstinência nas sextas-feiras

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da quaresma. 9. O Santo compara o protestantismo às meias pretas por motivos fáceis de compreender. Para alguém ir ao céu deve fazer-se violência e penitenciar-se porque o caminho do céu é uma subida, que deve ser feita a pé e descalço sem temor dos espinhos. Lutero, proclamando a vida cômoda, pôs de lado toda a dificuldade, formou-se meias tecidas dos princípios comodistas, para não se molestar no caminho. São pretas porque inspiradas pelo demônio. 10. Kulturkampf é a opressão e perseguição da Igreja na Alemanha pelo poder civil de 1871 a 1894; tinha por fim a fundação de uma igreja nacional, inteiramente subordinada ao governo, foi causada pelo descontentamento dos protestantes, que não podiam ver os progressos da Igreja na Prússia. Em 21 de março de 1871 manifestaram-se no Parlamento os primeiros indícios do descontentamento contra os católicos; pouco depois seguiu-se a supressão da seção católica do ministério do culto, apareceram leis contra a influência da Igreja nas escolas, na instrução religiosa, na formação e colocação de sacerdotes, na administração dos bens eclesiásticos, contra as ordens religiosas etc. Mudaram os parágrafos da Constituição prussiana que garantiam a liberdade da Igreja. O plano de Bismark de tornar a luta internacional fracassou. Os bispos e sacerdotes que não se sujeitavam às leis iníquas eram perseguidos com multas, prisões e exílio. 11. Informações minuciosas sobre a Ordem encontram-se na monografia “As Irmãs Redentoristas, sua vida, sua história, sua oportunidade”. — Pedidos ao mosteiro de Itu.

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