A Profecia, Conto I As copas das árvores filtravam raios de sol, que se projetavam em feixes no interior da floresta, pintando a atmosfera de mistério. O musgo úmido e macio que envolvia o chão, as pedras e os troncos, brilhava dourado, aceso pela luz tênue do fim de tarde. Um riacho sussurrava manso, serpenteando através da mata, cantando junto com os pássaros, que enchiam o ar de sons. Um pouco além do regato, enormes árvores sagradas formavam um círculo ao redor de uma grande clareira. Carvalhos, azevinhos, teixos, bétulas, freixos, todos plantados pelos primeiros druidas á chegarem nas ilhas. O vento soprava entre as folhas, carregando consigo cheiros e sons, acariciando o rosto dos seis homens que estavam sentados em círculo, no centro da clareira. Eram anciões de barbas e cabelos, longos e brancos. Estavam humildemente vestidos em trajes longos e leves, de cores claras como as nuvens que flutuavam sobre suas cabeças. Cormac, o Fiel, havia convocado aquela assembléia, espalhando a notícia para os irmãos da Ordem dos Druidas. Os cinco mestres druidas mais importantes atenderam ao seu chamado, vindos das mais diversas direções das Ilhas. Todos ali, sabiam que atravessavam uma época crítica, e o fato de o grande Cormac, o Fiel, ter convocado aquele encontro era um prenúncio de novos tempos. Eles esperavam o sétimo membro, que á exceção de Cormac, todos desconheciam. No entanto, seu severo treinamento os havia ensinado á ser pacientes e a controlar suas expectativas. O silêncio dos grão-mestres unia-se ao que vinha da flores ta. Logo, como verdadeiros Conhecedores do Carvalho, ouviram o barulho de passos sobre as folhas trazido pela brisa. O sétimo membro muito ansiado estava chagando. Cormac sorriu enigmático para os cinco companheiros que no centro do círculo esperavam ansiosos. Sem entender, eles olharam na direção do homem alto que se aproximava. Ele era jovem, e a julgar pelas suas roupas e pelo seu olhar era um sacerdote da nova religião que agora se alastrava pelas Ilhas como o fogo em palha. Os druidas se viraram para Cormac, como a buscar em seus olhos uma resposta para tal heresia. Aqueles templos naturais eram reservados aos iniciados da Ordem, e a ninguém mais. Por quê Cormac teria trazido um sacerdote cristão a um dos bosques sagrados? O Monge Columba, trazia em suas mãos a resposta para aquelas dúvidas. Aproximou-se timidamente, medindo cada passo, ciente de que entrava num círculo de poder ancestral. Tinha consciência porém, de sua importância naquela reunião. E mais ainda de quanto aquele encontro representaria para a nova realidade das coisas. Sabia que trazia a “Inimiga do Grande Mal”. Não um mal de agora, mas o eterno mal que desde sempre vinha sendo profetizado. O sacerdote aproximou-se respeitosamente do centro do círculo, aonde os outros se encontravam. Mesmo sem nunca ter participado de um ritual druídico, algo dentro dele guiava os seus passos. Sentou-se junto dos outros anciões. Ele sabia que aquele era o seu lugar, pois trazia a novidade. O vento soprou por sobre a sua cabeça, confirmando o que Columba intuíra. Os druidas também ouviram o que o vento dizia. Já tinham o sinal, não restavam mais dúvidas. De repente, toda a floresta emudeceu para escutar o que eles tinham a dizer. O últimos raios de sol fugiam, abrindo lugar para a escuridão que se seguiria. Cormac, o Fiel, lançou um olhar divertido a seus irmãos de Ordem, como um menino á rir de alguma travessura. Mas quando o sol finalmente desapareceu, seu olhar alegre calou-se, como se tivesse visto um Mal pairar sobre seu ser. A compaixão que sentia pelos outros druidas deu lugar a um sentimento obscuro que turvou o seu coração. Austero, ele suspirou. “Novamente, tive uma visão do Mal. Ele perturbou meus sonhos, causando-me muito terror por meio do Olho-Que-Tudo-Vê. Vi ondas de cobiça, luxúria e desejo corromperem a alma dos homens, cegando-os, impedindo-os de perceber a beleza das estrelas; vi rios de enxofre carregando toda a sorte de bestas assassinas; explosões de fogo lavrando a terra, semeando cadáveres aos montes; vi a derrubada dos bosques sagrados, o sacrifício das matas, o desprezo pelo poder dos animais; vi os mitos serem esmagados e tamb ém o nascimento de falsos heróis; e vi a mentira ser aceita como verdade, e a verdade, encarada como mentira.” Aquelas palavras de rancor e ódio, encheram a alma dos Druidas de dor e espanto. Aquelas palavras apavoraram e destruíram as esperanças dos velhos Anciões. - Mas quando isso ocorrerá, Cormac? – indagou Lir, das palavras sábias. - O Mal já está entre nós. Sua raiz por enquanto, espalha-se tenra e inofensiva como um broto, mas o
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tempo o fará forte. Tão forte que sequer nosso rico conhecimento poderá detê-lo. É por isso que sinto nosso poder enfraquecer ... – comentou Mider, o Pilar da Terra.
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Sim. – respondeu Cormac cheio de assombro, envolvido numa cortina de mistério – Não temos forças para combater esse Mal. Mas ainda há um raio de esperança. Nas minhas visões, havia uma espada, a materialização da Aliança, poderosa o suficiente para deter O Mal. Ela reluzia no centro de um círculo de pedras, apoiada numa cruz. Do seu gume, raios de luz brilhavam formando um grande halo, que se expandia por todo o círculo. Tinha sido forjada com o ferro do sacrifício do Filho do Homem. Em seu punho, uma pedra, uma lasca de mármore verde, guardava o sagrado. Ela emanava poder. - Onde está essa espada? – questionou Creidhne, o Senhor do Vento. Cormac deixou que o silêncio os envolvesse novamente, para que refletissem. Seus olhos percorreram vagarosamente as mãos de cada um daqueles homens, que acompanharam essa trajetória buscando a resposta. Então, magicamente, eles perceberam que cada um deles trazia um elemento de poder. As calejadas mãos de Mider, o Pilar da Terra, apertavam uma barra de ferro cavada das entranhas da terra, contendo em si só, o poder do solo. Lir, das Palavras Sábias, trazia uma bolsa de couro com a água retirada de uma fonte sagrada. Finn, do Fogo Sagrado, entendeu porque era um dos escolhidos, e Creidhne, o Senhor do Vento, já sabia o que fazer. Fergus, o Senhor da Aurora, dando-se conta do que Cormac dizia com os olhos, ergueu o altar iluminado, onde aconteceria a transformação; nele, os metais seriam derretidos para forjar A Espada. Todos olharam repentinamente para Columba. Se todos os elementos da arma já estavam ali reunidos, o que justificaria a presença dele? Por quê um Sacerdote Cristão estaria fazendo ali? Calmamente Columba abriu as mãos. Embora a escuridão paira-se sobre todos, os primeiros raios das Estrelas e da Lua, brilharam sobre aquele pedaço de metal, revelando a força que completaria o poder da espada. Cormac, levantou-se da relva, seguido dos outros. O brilho prateado da Lua banhava as suas vestes brancas, tingindo-os com linhas de prata. O vento trouxe para o centro do círculo o frio da noite que se estabelecia. As Estrelas já apontavam no horizonte, espiando de longe, o ritual que se iniciava. O Fiel, posicionou-se ao norte do círculo, em pé, de frente para os outros. Seus olhos austeros refletiram as primeiras faíscas que Finn, do Fogo Sagrado, riscava para evocar o elemento da transformação. O fogo logo tomou forma e foi respeitosamente saudado pelos Druidas. Columba, O monge, com um misto de espanto e respeito, observava tudo atentamente, medindo cada movimento. Invadido por estranhas sensações, viu Fergus, o Senhor da Aurora, colocar o altar sobre as chamas místicas, enquanto recitava um antigo encantamento, e depois voltar á sua posição. Mider, o Pilar da Terra, dirigiu-se ao altar, depositando nele a barra de ferro que trazia. O metal parecia obedecer á magia que ele evocava, e avermelhou-se, derretendo aos poucos. O ritual seguia o seu ru mo lentamente. O ferro rendia-se á força transformadora do fogo, flexibilizando-se até finalmente tornar-se líquido, pronto para misturar-se com o poder. Enquanto o ferro borbulhava sobre a Mesa Sagrada, a clareira, estava totalmente iluminada pela chama emanada pelo altar iluminado, e pela luz vingadora das chamas avermelhadas. Como se tivesse sido chamado pelo ferro derretido, borbulhando, Columba se aproximou. Sem que ninguém dissesse palavra alguma, O monge aproximou-se do altar e erguendo o cravo sagrado aos céus, evocou a força divina. Lentamente, ele deixou-o cair sobre o metal que ardia naquele altar de transformação. Enquanto o cravo girava no ar, visões desfilavam na mente do sacerdote, num turbilhão de imagens. Viu a cruz e Cristo coroado de espinhos, sendo pregado à cruz com os três cravos sagrados. Espetado na carne de Cristo, cada cravo foi permeado de um poder distinto. E um deles, mergulhava agora naquele caldeirão fervente, impregnando com sua força o metal ao qual se fundia. Lir, das Palavras Sábias, camin hou vagarosamente para o oeste, na direção do altar. Um movimento quase imperceptível, mas suficiente para atrair a atenção de Columba, fez com que este voltasse ao seu lugar. O Druida dirigiu-se a uma grande pedra especialmente plana, situada a uma pequena distância do círculo, enquanto recitava palavras em uma língua mística que Columba não pôde compreender. Derramou então a água que carregava em sua bolsa sobre a pedra, como a abençoá-la. Depositou o resto num buraco que havia sido cavado na pedra para evocar o poder daquele elemento. O brilho da água sendo derramada fez Columba ter novas visões de Cristo. Viu o rosto do Filho do Homem pontilhado de suor que brotava de seu sofrimento. A água, escorrendo por todo o seu corpo, era a força da geração, de onde vem toda a vida. A água da cura, da purificação, a água que a todos traz renovação de corpo e alma. Ao voltar para a sua posição no círculo, Lir sorriu com cumplicidade para Columba, como a ler os seus pensamentos puros. Seguindo a sincronia daquele ritual milenar, algo que havia há muitas eras se estabelecido no coração daqueles homens, Creidhne, o Senhor dos Ventos, tomou seu lugar na celebração. Juntou-se a Fergus, o
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A Profecia, Conto I Senhor da Aurora, no centro do círculo e, obedecendo ao movimento das Estrelas, às quais se alinharam, os dois se dirigiram á pedra-forja, cada qual segurando um lado do altar. A cada passo dado, os dois entoavam c ânticos sagrados, interrompendo o silêncio noturno. Aqueles sons tocaram Columba, que foi envolvido pela grandiosidade do ato. Conduzido pela música, fechou os olhos para aproveitar melhor o momento. Quando os abriu, Fergus e Creidhne começavam a derramar o conteúdo do altar sobre o vazio do ar. E por incrível que pareça, o metal fundido, ainda borbulhando tomava forma lentamente. Seu calor tocado pelo frio do vento, lhe dava forma, re ndendo-se à nova condição. E assim se fez Espada. A força do momento enfeitiçou Columba, que caiu ajoelhado, com as mãos erguidas para o céus. O fogo brilhava naquele círculo de pedra sagrado. Aquele fogo transformou-se no sangue de Cristo que escorria das feridas rasgadas pelos cravos que O prendiam á cruz do seu próprio sacrifício. A música do vento de Creidhne sobre o gume da espada trazia para Columba os gritos de dor e sofrimento dos que acompanharam o Filho do Homem no seu holocausto, naquele fim de tarde de crucificação. O grito da lâmina virgem mergulhando na água invadiu a vis ão de Columba. Ele viu no líquido que agora envolvia a espada, as lágrimas do lamento das mulheres que choravam com a agonia do Redentor. Aquelas mesmas lágrimas também brotavam de seu coração, lentamente alcançando os seus olhos, afogando na garganta, a sua compaixão. Na cruz que agora Creidhne formava, encaixando a lâmina no punho trazido por Cormac, Columba viu a cruz do Salvador. A Lua em seu auge, espiava por sobre as nuvens, o nascimento daquele instrumento de poder misturando os seus raios á prata da lâmina que Creidhne agora erguia aos céus, consagrando-a como o elo de união das forças da Terra e do Céu. “És Narsil, o Vento do Bem, Aquela que Traz a Força”. A espada luziu nas mãos do Druida, que agora ficou ciente de sua missão. A luz da lua ficou mais intensa, como para revelar o leão moldado no cabo da arma. O animal, desconhecido para Cormac, que por anos o tinha acompanhado em visões proféticas, era para Columba a verdadeira revelação. A fera que representava a força, e que pousava a sua pata sobre a cruz da espada, era o próprio Cristo, o Leão de Judá. Foi naquele metal reluzente que pairou as esperanças de cada um dos presentes, os quais realizaram o ritual. Nele repousava a esperança de vit ória sobre o Grande Mal, que agora ameaçava a Terra. Então, ao final deste ritual, o monge Columba, foi consumido pela vis ão que incendiava a sua mente. Viu Cristo soltar-se da cruz retirando suavemente os três cravos que o prendiam àquele altar de sacrifício e caminhar em sua direção. Columba viu Seus olhos contarem sobre as dores da humanidade, a redenção do sacrifício que não estava apenas na Sua ressurreiç ão, como tamb ém a libertação de todos os justos que aguardavam desde o início dos tempos. O monge viu Ele arrebentando as portas da morte, obrigando-a a devolver aqueles que ela havia engolido. Neles residia a semente da eterna salvação, o remédio para a cura dos males da humanidade para todo o sempre: Justiça, Força e Sabedoria. Os olhos de Cristo revelaram a Força que libertaria o mundo do Mal, a Sabedoria que guiaria os homens nesta batalha e a Justiça que restauraria o equilíbrio da Terra devastada. Cristo entregou o cravo da Força a uma mão que surgiu da escurid ão. Esta o passou para outra mão, que tomou o cravo e o entregou a um terceiro. Esse ato de partilha seguiu até a mão que Columba agora estendia. Houve então uma revoada de anjos no céu. Afinal, Seu sacrifício não havia sido em vão. E agora o Cravo da Força, fundido á espada banhada de lua que Creidhne mantinha erguida, buscava a mão que a levaria para cumprir sua missão. O sereno que caía suavemente envolvia Narsil, revelando na sua lâmina o nome do guerreiro que a conduziria ao seu destino. As brasas que ardiam no centro do círculo de pedras iluminaram na espada a palavra em gaélico, escrita com pequenas gotículas de orvalho: Arthur, “O Enviado”. Tomando a espada em punho, Columba, O monge, a ergueu e disse: “Que somente ao guerreiro que traz Justiça no coração, Sabedoria na mente e Força na alma se destine esta Espada Sagrada.” Erguendo-a ainda mais, soltou a arma de quase 2m. A espada seguiu uma trajetória completamente diferente, e fixou-se no centro do círculo de pedras aonde o ritual havia sido realizado. “Que assim seja! O Herdeiro virá, mas O Salvador será o terceiro – disse Cormac, o Fiel.” Narsil cheia de força, se encontrava cravada ali agora, somente á espera daquele que lhe fora destinado. Porém, todos sabiam que o guerreiro que tomasse a espada, teria que procurar os outros dois cravos do sacrifício: o da Justiça e o da Sabedoria, para que pudesse usar A Espada.
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