Tcc - Felipe Caldeira - Desconsideração Da Personalidade Jurídica (disregard Doctrine): Do Direito Material Ao Incidente Processual Criado Pela Lei 13.105/2015

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ESCOLA DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL FELIPE CALDEIRA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DISREGARD DOCTRINE): DO DIREITO MATERIAL AO INCIDENTE PROCESSUAL CRIADO PELA LEI 13.105/2015

Porto Alegre 2018

FELIPE CALDEIRA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DISREGARD DOCTRINE): DO DIREITO MATERIAL AO INCIDENTE PROCESSUAL CRIADO PELA LEI 13.105/2015

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS como requisito parcial para obtenção do título de PósGraduado em Processo Civil.

Orientador: Prof. Dr. Marco Félix Jobim

PORTO ALEGRE 2018

FELIPE CALDEIRA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DISREGARD DOCTRINE): DO DIREITO MATERIAL AO INCIDENTE PROCESSUAL CRIADO PELA LEI 13.105/2015

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS como requisito parcial para obtenção do título de PósGraduado em Processo Civil.

Porto Alegre _____ de ______________________ de 2018

BANCA EXAMINADORA

_____________________________ Orientador Prof. Dr. Marco Félix Jobim

_____________________________ Segundo componente

PORTO ALEGRE 2018

Dedico este trabalho aos meus pais, Marcelo e Cleunia, por todo amor e por terem tornado possível a realização deste trabalho, ao meu orientador e padrinho, Marco Jobim, pela amizade, e aos meus amigos pelo apoio incondicional.

AGRADECIMENTOS

Torna-se fundamental lembrar e homenagear as pessoas que, nesse momento de aprimoramento pessoal e profissional, fizeram e fazem toda diferença. Momento teoricamente fatigante, que foi trilhado com a ajuda e insistência, sempre bem-vindas, da minha família, dos meus amigos e dos meus colegas de profissão. Especial gratidão a vocês, meus pais, Marcelo e Cleunia, que nunca mediram esforços que os meus estudos fossem concluídos e meus sonhos realizados. Não há adjetivo, frase ou presente capazes de representar o amor, o carinho e a admiração que tenho por vocês. Devo a vocês o meu generoso agradecimento por tudo. Este trabalho foi criado após muita insistência e muitas discussões, com apoio de amigos que, mesmo de forma indireta, me ajudaram a construir o trabalho. É importante deixar registrado aqui o importantíssimo papel da minha grande amiga, maior ouvinte e colega de profissão, Cíntia Gonçalves, que – com toda a sua paciência inesgotável - sempre esteve disposta a me ajudar, independentemente do horário, com relevantes apontamentos, incentivos e que, durante todo o curso, me apoiou, mesmo nos momentos mais difíceis. Aos meus colegas do escritório Andrade Maia: saibam que sou muito grato por ter trabalhado com vocês e, especialmente, sou privilegiado de começar a minha jornada como advogado no “AM”, atuando ao lado de pessoas incríveis que tornavam a rotina forense prazerosa e que me proporcionaram lições de vida que são a base para o meu crescimento pessoal e profissional. Por fim, gostaria de fazer um agradecimento ao meu orientador, Marco Félix Jobim, que me acompanha desde a graduação até a conclusão deste trabalho, e me encorajou a trilhar o Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Obrigado pela amizade, por todos ensinamentos acadêmicos e pela confiança em mim depositada.

RESUMO O Código de Processo Civil de 2015, dentre as suas inovações, trouxe a regulamentação de normas processuais da desconsideração da personalidade jurídica, importante instituto já consagrado no direito material, mas que até então não havia recebido a devida atenção no âmbito processual. A partir disso, o presente trabalho analisará as normas de caráter processual relacionadas à desconsideração da personalidade jurídica que foram introduzidas pelo novo Código e que vêm preencher a lacuna legislativa até então existente quanto ao procedimento para aplicação do instituto. Para tanto, será feita, preliminarmente, a abordagem do instituto da disregard doctrine, expondo alguns conceitos que motivaram a sua existência, analisando os primeiros casos que se depararam com o tema nos Tribunais, bem como as primeiras teorias desenvolvidas. Após, passaremos ao exame da aplicação da desconsideração sob a ótica do direito material, com foco nas disposições legais do artigo 50 do Código Civil e do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor. Em um

segundo

plano,

voltaremos

os

olhos

aos

aspectos

processuais

da

desconsideração da personalidade jurídica, explorando brevemente a aplicação do instituto na vigência do Código de Processo Civil de 1973. Com isso, ante a ausência de um critério único para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no curso do processo sob a égide do CPC/73, ferindo, assim, por vezes as garantias constitucionais, demonstrar-se-á que o procedimento inserido nos artigos 133 a 137 do atual diploma processual para aplicação da desconsideração reflete em um modelo de processo pautado na busca do equilíbrio entre a efetividade da tutela jurisdicional e a necessidade de observância ao contraditório.

Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica – Lei 13.105/2015 – Incidente Processual – Contraditório – Devido Processo Legal

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 ASPECTOS MATERIAIS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ................................................................................................................. 11 2.1 NOÇÕES GERAIS DE PESSOA JURÍDICA E PERSONALIDADE JURÍDICA ...11 2.2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ..............................14 2.2.1 Primeiros casos nos tribunais ...................................................................... 16 2.2.2 Primeiras teorias desenvolvidas .................................................................. 18 2.2.3 Introdução no direito brasileiro .................................................................... 20 2.3 APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ......22 2.4 REQUISITOS .......................................................................................................26 2.4.1 Abuso de direito ............................................................................................. 27 2.4.2 Fraude ............................................................................................................. 28 2.4.3 Confusão patrimonial .................................................................................... 29 2.5 DESCONSIDERAÇÃO INVERSA ........................................................................30 3 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOB A ÓTICA PROCESSUAL ......................................................................................................... 33 3.1 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ANTES DA LEI 13.105/2015 ...............................................................................................................33 3.2 O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ...36 3.2.1 Natureza jurídica ............................................................................................ 36 3.2.2 Legitimidade ................................................................................................... 38 3.2.3 Momento para instauração do incidente ..................................................... 40 3.2.4 Efeitos da decisão proferida no incidente ................................................... 46 3.2.5 Recursos cabíveis sobre a decisão proferida no incidente ....................... 51 3.2.6 Rescindibilidade da decisão via ação rescisória? ...................................... 53 3.2.7 Fraude à execução ......................................................................................... 54 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 57 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 62

8

1 INTRODUÇÃO Por muito tempo o direito processual era visto como um ramo totalmente independente do direito material. Isto é, havia um entendimento de que a concessão da tutela jurisdicional não precisaria se adequar às necessidades do direito material1. O Código de Processo Civil de 1939, apesar de sua inegável contribuição ao nosso ordenamento jurídico, tinha uma índole essencialmente técnica não primando pela interação entre os problemas processuais e os direitos sociais.2 Nesse contexto, a partir do CPC/73 passou-se a ter uma preocupação com os preceitos constitucionais, sendo intensificado ainda mais com a promulgação da Constituição Federal em 19883. Logo, no nosso Estado Democrático de Direito o processo não poderia estar somente limitado à legislação processual, devendo, por isso, tanto as suas técnicas, como as suas garantias estarem em consonância com o direito material, tendo como norte os valores e os fundamentos previstos na Constituição Federal4. Entretanto, apesar desses avanços, o Código de Processo Civil de 1973 não conseguiu se alinhar adequadamente a todas as necessidades do direito material, como no caso da desconsideração da personalidade jurídica, que seria nada mais do que a possibilidade de responsabilizar patrimonialmente os sócios/ administradores da pessoa jurídica, ou a própria pessoa jurídica, quando esta for utilizada para fins diversos de sua função social e econômica. Por isso, afirma-se que se trata de um mecanismo criado para coibir o uso abusivo da personalidade da pessoa jurídica, praticado, em regra, pelos sócios ou administradores da pessoa jurídica. Apesar de a desconsideração da personalidade jurídica ser utilizada há um bom tempo no Brasil, a ausência de um procedimento regulado expressamente em nosso ordenamento ensejou, na prática, a aplicação do instituto de forma desregulada, sem um critério único. Isso, infelizmente, acabava gerando insegurança

1

MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 3. ed. - São Paulo: RT, 2010. p. 21-22. 2 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os Novos Rumos do Processo Civil Brasileiro. - Rio de Janeiro: Revista Acadêmica da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, v. 8, n. 6, p. 193–208, jul./dez., 1994. p. 195. 3 Ibidem. p. 195-196. 4 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit. p. 22.

9

jurídica e desencadeava a violação de princípios constitucionais como, por exemplo, o contraditório e a ampla defesa. Diante do “silêncio” do diploma processual de 1973, qual deveria ser a reação do intérprete quanto à aplicação processual do instituto? Em razão dos diversos pontos de vista deixados sob a égide do CPC/73, aprofundar ainda mais a análise da estrutura da lei processual5, como o fez o legislador infraconstitucional com a Lei 13.105/2015, que trouxe em seus artigos 133 a 137 o procedimento que deve ser observado nos casos atinentes à desconsideração da personalidade jurídica. Neste panorama, a presente monografia se propõe a abordar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica com a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, visto que este não apenas passou a regular o procedimento para aplicação da desconsideração, ante a lacuna do CPC/73, mas também tenta conciliar a ferramenta processual com o instituto já amplamente estudado no âmbito do direito material, com premissas constitucionais bastante sólidas, como o direito ao contraditório e à ampla defesa, sem deixar de lado a efetividade jurisdicional. Dessa forma, o estudo se justifica, pois, na prática, a desconsideração da personalidade jurídica pode gerar sérias consequências para terceiros que, excepcionalmente,

poderão

ter

o

patrimônio

pessoal

atingido.

Assim,

exemplificativamente, para que o patrimônio de um sócio ou de um administrador de uma pessoa jurídica (“terceiro”) seja alcançado pelos efeitos de uma decisão proferida em um processo no qual não participou inicialmente, deve-se resguardar o efetivo contraditório e a ampla defesa, visando à busca pela segurança jurídica. Para cumprir essa tarefa, este trabalho utilizou-se da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, trazendo alguns conceitos e questões de maior relevância em cada tópico estudado, sendo dividido em dois grandes capítulos. No primeiro capítulo, buscar-se-á analisar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica sob a ótica do direito material, precipuamente o Código de Defesa do Consumidor e Código Civil. Ainda, serão analisados alguns conceitos doutrinários da pessoa jurídica e da consequência gerada em decorrência da atribuição da personalidade jurídica a esta. Justifica-se isso, pois, descabe estudar o

5

COUTURE, Eduardo Juan, Interpretação das leis processuais. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 55.

10

tema da desconsideração da personalidade jurídica, seja pela ótica do direito material, seja pela ótica do direito processual, sem que sejam conceituados elementos que tangenciam o tema, motivam a sua existência e são essenciais para o desenvolvimento deste trabalho. Na segunda parte do trabalho serão abordados os aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica, dando ênfase ao procedimento do incidente

de

desconsideração

da

personalidade

jurídica,

expondo

suas

características, os momentos para instauração, os efeitos gerados pela decisão, bem como algumas discussões observadas na doutrina, mostrando, assim, a dificuldade que se estabelece quando se busca um processo apto a prestar uma tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva.

11

2 ASPECTOS MATERIAIS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Para o estudo dos aspectos materiais da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, torna-se necessário analisar alguns conceitos doutrinários que envolvem a pessoa jurídica e a atribuição da sua personalidade da pessoa jurídica, definindo o que é pessoa jurídica, as consequências da personalidade jurídica, etc. Além disso, abordar-se-á a evolução da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e de que forma ela surge no Brasil. Será possível verificar, desta forma, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em alguns ramos do direito material. Por fim, conceituaremos a modalidade da desconsideração na sua forma inversa. 2.1 NOÇÕES GERAIS DE PESSOA JURÍDICA E PERSONALIDADE JURÍDICA Antes de ser analisada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se ter em mente as lições de Rubens Requião quando diz que as pessoas jurídicas constituem uma criação da lei, e, como criação da vontade da lei, refletem uma realidade do mundo jurídico e da vida sensível.6 A elaboração da ideia de pessoa jurídica ocorreu com o passar do tempo e, conforme Caio Mário da Silva Pereira, fundada da seguinte forma: Mas a complexidade da vida civil e a necessidade da conjugação de esforços de vários individuos para a consecução de objetivos comuns ou de interesse social, ao mesmo passo que aconselham e estimulam a sua agregação e polarização de suas atividades, sugerem ao direito equiparar à própria pessoa natural certos agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade e capacidade de ação aos entes abstratos assim gerados. Surgem, então, as pessoas jurídicas, que se compõem, ora de um conjunto de pessoas, ora de uma destinação patrimonial, com aptidão para adquirir e exercer direitos e contrair obrigações.7

6

REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica: ‘disregard doctrine’. Revista dos Tribunais 410/12, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969. p. 12-24. 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol.1. 30. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 249-250.

12

Segundo refere Fábio Ulhoa Coelho, “pessoa jurídica é o sujeito de direito personificado não humano. É também chamada de pessoa moral. Como sujeito de direito, tem aptidão para titularizar direitos e obrigações.”8 Ela começa a existir, assim, em decorrência da vontade de uma ou mais pessoas, identificadas como membros, integrantes ou instituidores da pessoa jurídica, excetuando-se, nesse caso, os entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), que são pessoas jurídicas derivadas da organização política independente da sociedade brasileira.9 A partir da criação dessa entidade, consolidada, em teoria, entre os séculos XVIII

e

XIX,

permitiu-se

que

pessoas

físicas

agregadas

fomentassem

empreendimentos geradores de lucros e, por conseguinte, movimentassem a economia. Dentro da expressão pessoas jurídicas há diversas espécies de entes abstratos a que o direito reconhece personalidade e atribui capacidade. O que distingue cada pessoa jurídica é o direito de cada uma, que atende aos objetivos a que se propõem originariamente, à natureza de sua atuação e à órbita de seu funcionamento.10 Nessa linha, ensina Carlos Alberto Gonçalves: O direito reconhece personalidade também a certas entidades morais, denominadas pessoas jurídicas, compostas de pessoas físicas ou naturais, que se agrupam, com observância das condições legais, e se associam para melhor atingir os seus objetivos econômicos ou sociais, como as associações e sociedades, ou constituídas de um patrimônio destinado a um fim determinado, como as fundações.11

Há que se ter em conta, conforme preceituava o art. 20 do Código Civil de 1916, que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros”, e que, embora não tenha sido repetida a regra no ordenamento vigente, encontra-se implícita no sistema sua principal consequência: a autonomia patrimonial. Ou seja, as pessoas jurídicas não se confundem com as pessoas físicas que deram origem ao seu nascimento.12

8

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: parte geral. vol. 1. 5. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012. p. 532 9 Ibidem. p. 532. 10 Ibidem. p. 263. 11 GONÇALVES, Carlos Alberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. vol. 1. 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 92. 12 BIANQUI, Pedro Henrique Torres. Desconsideração da personalidade jurídica no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 44.

13

Uma das principais consequências da atribuição de personalidade jurídica a alguém é a separação estabelecida entre pessoa física e os membros que a integram, legitimando o Princípio da Autonomia Patrimonial.13 A ideia de autonomia da pessoa jurídica quanto aos seus membros já constava expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916.14 Ainda que esse dispositivo não tenha sido reproduzido pela atual codificação, não há dúvida de que o princípio da autonomia patrimonial continua em vigor e que a pessoa jurídica mantém uma vida distinta da dos membros que a compõe.15 Assim, em regra, os membros que compõe a pessoa jurídica não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionadas ao exercício da atividade econômica da pessoa jurídica. Soma-se a isso o fato de que o patrimônio da pessoa jurídica não deve ser confundido com o patrimônio dos seus membros, minimizando os riscos que são inerentes ao negócio.16 Diante do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, os sócios que integram a pessoa jurídica somente responderão por eventuais débitos da empresa dentro dos limites do capital social, ficando resguardado o patrimônio individual dos membros. Essa limitação da responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é consequência lógica da atribuição da personalidade jurídica à pessoa jurídica, sendo uma de suas maiores vantagens.17 O resultado dessa independência e autonomia, em alguns casos, não é positivo, pois, conforme elucida Maria Helena Diniz, com a exclusão da responsabilidade dos sócios por eventuais débitos gerados, a pessoa jurídica tem-se desviado de seus princípios norteadores, possibilitando a prática de fraudes e desonestidades, cujo resultado prático são as reações doutrinárias e jurisprudenciais objetivando coibir esses abusos.18 Quanto ao ponto, importante os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira:

13

SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 72. 14 Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. 15 SOUZA, André Pagani de. Op. cit. p. 72. 16 Ibidem. p. 72. 17 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, volume 1: teoria geral do direito civil. 29. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 340. 18 Ibidem. p. 341.

14 Modernamente, entretanto, o desenvolvimento da sociedade de consumo, a coligação de sociedades mercantis e o controle individual de grupos econômicos têm mostrado que a distinção entre a sociedade e seus integrantes, em vez de consagrar regras de justiça social, tem servido de cobertura para a prática de atos ilícitos, de comportamentos fraudulentos, de absolvição de irregularidades, de aproveitamentos injustificáveis, de abusos de direito. Os integrantes da pessoa jurídica invocam o princípio da separação, como se se tratasse de um véu protetor. Era preciso criar um instrumento jurídico hábil a ilidir os efeitos daquela cobertura.19

Se por um lado temos o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica como uma regra importante para o desenvolvimento das atividades da sociedade empresária, por outro, consoante afirma Caio Mário da Silva: “tem servido de cobertura para a prática de atos ilícitos, de comportamentos fraudulentos, de absolvição de irregularidades, de aproveitamentos injustificáveis, de abusos de direitos.”20 A separação patrimonial e a limitação da responsabilidade dos sócios, apesar de incentivarem a captação de recursos, externalizaram grande parte dos custos dos empreendimentos - decorrentes dos riscos que qualquer atividade econômica enfrenta - evidenciando, com o passar do tempo, a crise gerada pela limitação da responsabilidade, por um lado, e, por outro, a crise da própria função da pessoa jurídica, tendo em vista o uso indevido do escudo protetor da personalidade jurídica.21 Como verificaremos a seguir, o ingresso e o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito foram essenciais, pois, ao distinguir a responsabilidade da pessoa jurídica dos seus integrantes, estes se acobertavam de todas as consequências, exceto nos casos de incorrerem em atos ilegais individualmente. Assim, era preciso a criação de um instituto jurídico hábil a afastar os efeitos dessa cobertura.22 2.2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

19

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 276. Ibidem. p. 276. 21 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo: de acordo com o Código de Processo Civil de 2015. – São Paulo: Malheiros, 2016. p. 43-44. 22 Ibidem. p. 43-44. 20

15

A partir da sistematização doutrinária e jurisprudencial, a teoria da desconsideração surgiu como um importantíssimo instrumento para desmascarar abusos e fraudes praticados, geralmente, em prejuízo de terceiros pelos sócios ou pelos órgãos diretores das empresas. Ao tratar do objetivo da teoria da desconsideração, Fábio Ulhoa Coelho ensina: O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.23

Na época, conforme narra Otávio Joaquim Rodrigues Filho: [...] em meio à crise da limitação da responsabilidade e, para muitos, da função da própria pessoa jurídica, surge a teoria da desconsideração da personalidade, para hipóteses restritas, em que o reconhecimento do princípio da separação de esferas levaria a soluções gravemente injustas e que contrariam os valores da ordem jurídica.24

A partir disso, emerge a teoria da desconsideração para coibir o mau uso da personalidade da pessoa jurídica, cujo objetivo é atingir aquele que se oculta sob o véu da pessoa jurídica, utilizando-a de forma indevida para fins contrários ao direito. O desrespeito à lei, a frustação de credores e os desvios das funções sociais ensejaram a formação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.25 Portanto, analisaremos a seguir o panorama geral com o surgimento da teoria nos tribunais dos Estados Unidos e de Londres, os quais foram essenciais para a introdução da teoria no Brasil.

23

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v. 2., 16. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012. p. 51. RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 44. 25 VIEIRA, Christian Garcia. Desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC: natureza, procedimentos e temas polêmicos. – Salvador: Juspodivm, 2016. p. 41. 24

16

2.2.1 Primeiros casos nos tribunais A teoria da disregard doctrine surgiu da prática jurídica, tanto no exterior como no Brasil, não se originando de disposições legislativas ou de estudos acadêmicos.26 Originou-se, portanto, da atividade cotidiana dos tribunais, após serem suscitadas as primeiras questões relacionadas com distorções de determinadas sociedades. No brilhante artigo intitulado “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine)”, Rubens Requião traz que essa técnica jurisprudencial que desconsidera a personalidade jurídica para alcançar os bens nela acobertados teve sucesso acentuado na América do Norte, tornando a disregard doctrine mais uma construção jurisprudencial norte-americana do que britânica.27 Nos Estados Unidos, por sua vez, a doutrina da disregard of legal entity surge a partir da necessidade de coibir a prática de ato ilícito, ou abuso de poder, ou violação de norma do estatuto da empresa por parte dos órgãos dirigentes em prejuízo de terceiros.28 Luiz Guilherme Marinoni, ao abordar o surgimento do tema da desconsideração da personalidade jurídica, assim descreve: O direito norte-americano, como é sabido, consagra a prevalência da jurisprudência sobre as abordagens doutrinária e legal dos institutos jurídicos. Essa marca característica deita suas raízes não só na antiga tradição do direito inglês como também na forma federativa radical que vigora nos Estados Unidos. Com efeito, num país em que cada Estado tem autonomia suficiente para legislar de maneira quase independente, é de se imaginar a dificuldade de uma sistematização doutrinária capaz de abarcar as diversas tendências que se verificam nas diversas unidades da federação. Quando o assunto é a desconsideração da pessoa jurídica (disregard of legal entity, como lá é conhecida), a regra se mantém, ou seja, prevalece o entendimento jurisprudencial. E a jurisprudência norteamericana há muito vem consagrando a tese da desestimação. Deveras, o primeiro caso de disregard de que se tem notícia se passou no ano de 1809, quando a Corte Suprema dos Estados Unidos julgou o caso Bank of the United States vs. Deveneaux, em que foi relator o legendário juiz Marshall. Importa ressaltar que, àquela época, a Europa ainda preocupava-se em estudar a natureza jurídica da pessoa

26

RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 45. REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais 410/12. - São Paulo: RT, 1969. p. 12-24. 28 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 276-277. 27

17 jurídica, sem sequer cogitar a hipótese de desconsideração de sua personalidade.29

Sob a ótica do surgimento da teoria na Inglaterra, Otávio Joaquim Rodrigues Filho considera que o precursor da disregard doctrine foi o caso “Salomon versus Salomon & Co.”, ocorrido no ano de 1897. Referiu o autor: [...] tendo a teoria da desconsideração origem anglo-saxônica, ela é fruto da jurisprudência dos tribunais ingleses e norte-americanos; e, nesse sentido, como proclama a doutrina, o precursor da disregard doctrine foi ‘Salomon versus Salomon & Co.’, ocorrido em 1897 em Londres, na Inglaterra, ao qual se atribui ser, verdadeiramente, o primeiro caso da desconsideração da personalidade jurídica.30

Se para muitos doutrinadores o caso “Salomon versus Salomon & Co.” é considerado o marco inicial da teoria, outros, a exemplo de Suzy Elizabeth Cavalcante Kury, entendem que foi no âmbito do Direito norte-americano que iniciou e se desenvolveu, na jurisprudência, a teoria da desconsideração. Isso, pois, no ano de 1809, a teoria já era aplicada nos Estados Unidos, conforme alude a autora:

[...] no ano de 1809, no caso Bank of United States v. Deveaux, o Juiz Marshall, com a intenção de preservar a jurisdição das cortes federais sobre as corporations, já que a Constituição Federal americana, no seu art. 3º, seção 2ª, limita-a às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados, conheceu da causa, por considerar as características pessoais dos sócios.31

Suzy Elizabeth Cavalcante Kury discorda quando alguns autores apontam o caso inglês “Salomon versus Salomon & Co.” como o precursor da teoria da desconsideração, conforme refere a jurista paraense: Aproveitamos a referência a essa decisão, a mais antiga por nós conhecida, para desfazer duas inverdades acerca do famoso caso inglês ‘Salomon versus Salomon & Co.’. A primeira delas diz respeito à sua qualificação como o verdadeiro e próprio leading case da Disregard Doctrine por vários autores. Na realidade, o caso em questão foi julgado em 1897, portanto, 88 anos depois da primeira manifestação da jurisprudência americana, só

29

MARINONI, Luiz Guilherme. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Soluções Práticas de Direito. v. II. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 319-357. 30 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 45. 31 Ibidem. p. 45.

18 sendo possível, assim, considerá-lo como leading case no Direito Inglês. 32

Se por um lado há autores afirmando que o início da teoria da desconsideração ocorreu com o julgamento do caso inglês “Salomon versus Salomon & Co.”, por outro, há autores que consideram o caso norte-americano “Bank of United States v. Deveaux”.

2.2.2 Primeiras teorias desenvolvidas A obra desenvolvida por Rolf Serick é considerada um dos trabalhos pioneiros sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica. Na tese de doutorado defendida na Alemanha, em 1953, Serick busca definir, a partir da análise da jurisprudência alemã e norte-americana, critérios que autorizam o juiz a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em relação às pessoas que a compõe, sempre que ela for utilizada como instrumento na realização de fraudes ou abuso de direito.33 O grande mérito da obra de Rolf Serick foi buscar a identificação de critérios seguros para desconsiderar a autonomia da personalidade jurídica diante de abusos e fraudes cometidos por meio da pessoa jurídica, sem comprometimento dela enquanto instituto técnico-jurídico.34 Conforme explicado por Pedro Henrique Torres Bianchi: “Serick define sua teoria por meio do dualismo regra-exceção.”35 O autor expõe que a regra é a autonomia patrimonial da pessoa jurídica e a exceção é a desconsideração dessa autonomia. Para que houvesse a desconsideração da personalidade jurídica, é necessário que haja fraude à lei ou fraude ao contrato, ou seja, é necessário que haja a prática de algum ato repudiado pelo sistema.36 A partir disso, Rolf Serick define

32

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 4. ed. – São Paulo: LTr, 2018. p. 66. 33 SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011, p. 64. 34 Ibidem. p. 66. 35 BIANQUI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 24. 36 Ibidem. p. 24.

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quatro princípios que sintetizariam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 37 O primeiro princípio é de que o abuso é a utilização da pessoa jurídica com o nítido intuito de furtar-se de uma obrigação. Não há questionamentos acerca do instituto da pessoa jurídica e tampouco da separação entre os patrimônios. Somente ignora-se a separação entre a pessoa jurídica e pessoa física, pois quem a utilizou indevidamente não mereceria esse benefício.38 O segundo princípio é no sentido de que é impossível desconhecer a autonomia subjetiva da pessoa jurídica somente para tentar atingir o escopo de uma norma ou a causa objetiva de um negócio jurídico, admitindo, contudo, que esse princípio pode sofrer exceções para dar eficácia ao sistema.39 De acordo com o terceiro princípio, como regra, todas as normas aplicáveis às pessoas naturais se aplicam também às pessoas jurídicas, desde que compatíveis. Isso porque o legislador criou as pessoas jurídicas como sujeitos de direitos assemelhados aos seres humanos.40 Por fim, o quarto princípio diz que pode haver a desconsideração da pessoa jurídica para atingir quem realmente foi parte no negócio, ignorando-se, assim, a formalidade apresentada por ele. Ou seja, se a pessoa jurídica realizar um negócio jurídico com um integrante seu, poderá haver a desconsideração para evitar que haja uma confusão patrimonial.41 Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho lembra que, antes de Rolf Serick, outros autores já haviam se dedicado ao tema da desconsideração da personalidade jurídica, como, por exemplo, Maurice Wormser – nos anos 1910 e 1920.42 Contudo, o autor afirma que não se encontra claramente nos estudos precursores a motivação central de Rolf Serick de buscar definir, em especial a partir da jurisprudência norteamericana, os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas. Verifica-se também outra obra pioneira sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, conforme alude André Pagani de Souza: Trata-se, pois, do estudo “Il superamento della personalità giuridica dele società di capitali nella 37

BIANQUI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 25. Ibidem. p. 25. 39 Ibidem. p. 25. 40 Ibidem. p. 26. 41 Ibidem. p. 26. 42 COELHO, Fábio Ulhoa. A teoria maior e a teoria menor da desconsideração. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 65/2014. Jul – Set/2014. p. 21-30. 38

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‘commom law’ e nella ‘civil law’, de Piero Verrucoli, professor da Universidade de Pisa, na Itália.”43 Conforme refere o jurista brasileiro, Verrucoli parte da premissa que a atribuição da personalidade jurídica a determinados grupos de indivíduos é uma vantagem oferecida pelo Estado e, portanto, não pode ensejar situações injustas ou contrárias ao Direito.44 Dado que seria um privilégio oferecido pelo Estado, ele tem de ser dado com restrições e limites, visto que o ordenamento repudia atos ilícitos. Dessa forma, a desconsideração seria cabível para buscar evitar que a pessoa jurídica prejudique o Estado e terceiros.45 Como foi possível observar acima, desde o início das teorias desenvolvidas na doutrina acerca da desconsideração da personalidade jurídica, sempre foi necessário existir algum fato que autorizasse a aplicação da teoria da desconsideração. Assim, passaremos a analisar a introdução da teoria no Direito brasileiro, especialmente com a obra de Rubens Requião, tendo em vista que o jurista foi quem trouxe a teoria da desconsideração para o Brasil, e a sua obra é considerada pela doutrina nacional a pioneira no estudo da disregard doctrine.46

2.2.3 Introdução no direito brasileiro No Brasil, a teoria surgiu primeiramente nos Tribunais, visto que, antes do desenvolvimento da doutrina, o primeiro caso que aplicou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fora julgado pelo Tribunal de Alçada Cível de São Paulo no ano de 1955, em Apelação n. 9.247, relatada pelo Desembargador Edgard de Moura Bittencourt. 47 No caso, foi reconhecida a completa confusão patrimonial havida entre a pessoa física (ex-sócio) e a pessoa jurídica (Hospital Coração de Jesus S/A). 48 Quanto aos estudos doutrinários, Rubens Requião foi um dos primeiros autores que abordou a teoria da desconsideração com o artigo intitulado Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine), publicado no ano de

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SOUZA, André Pagani de. Op. cit. p. 66-67. Ibidem, p. 67. 45 BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 38-39. 46 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 63-66. 47 SÃO PAULO. Tribunal de Alçada Civil. Apelação n. 9.247. Quarta Câmara Cível, Rel. Des. Edgard de Moura Bittencourt. Julgado em 11/04/1955. 48 BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 39. 44

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1969.49 A preocupação com utilização indevida da pessoa jurídica moveu Rubens Requião, que buscou na teoria da desconsideração da personalidade um meio hábil que levantasse o véu corporativo, coibindo, por conseguinte, a fraude e o abuso de direito, responsabilizando aqueles que se ocultam atrás da sociedade.50 Rubens Requião afirma que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica deve seguir as mesmas cautelas e zelos praticados pelos juízes norte-americanos, pois sua aplicação ocorre com extremos cuidados e apenas em casos excepcionais, que visem a impedir a fraude ou o abuso de direito em vias de consumação.51 Nessa perspectiva histórica, também merece destaque a obra de José Lamartine Corrêa de Oliveira intitulada A Dupla Crise da Pessoa Jurídica, a qual aborda o quadro de pessoas jurídicas em diversos países, como, por exemplo, Alemanha, Itália, Portugal e outros sistemas. O autor parte da concepção de pessoa jurídica como realidade pré-normativa, ou seja, entende que o legislador criou a pessoa jurídica das realidades existentes no plano fático. Com isso, demonstra que, na apreciação do tema da desconsideração da personalidade, não é viável a adoção de uma visão unitarista, isto é, as diferentes espécies de pessoa jurídica devem ser consideradas, merecendo atenção especial às sociedades unipessoais e aos grupos de sociedades, frequentes nas hipóteses de superação da personalidade.52 Após a introdução da teoria da desconsideração da personalidade jurídica por Rubens Requião e a contribuição de José Lamartine Correa de Oliveira com a sua obra sobre a dupla crise da pessoa jurídica, a desconsideração da personalidade jurídica passou a ser objeto de discussões de vários doutrinadores, juízes e tribunais, que contribuíram para o desenvolvimento e o aprofundamento da teoria no Brasil.53 Em termos legislativos, as primeiras referências expressas à desconsideração da personalidade jurídica surgiram no Código de Defesa do Consumidor (art. 28, caput

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CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. A Função Cautelar do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica na Fase de Conhecimento. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. p. 63. Disponível em . Acesso em 02/09/2018. 50 Ibidem. p. 63. 51 REQUIÃO, Rubens. Op. cit. p. 12. 52 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 64-65. 53 Ibidem, p. 64-65.

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e §5º, da Lei 8.078/90), na Lei Antitruste (art. 18 da Lei 8.884/94), na Lei do Meio Ambiente (art. 4º da Lei 9.605/98) e no Código Civil (art. 50 da Lei 10.406/02). Portanto, conforme será analisando no presente trabalho, os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica devem ser estabelecidos pelo Direito Material, cabendo ao Direito processual somente regular o procedimento necessário para que se possa verificar se é ou não caso de aplicar a desconsideração da personalidade jurídica.54

2.3 APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA A desconsideração da personalidade jurídica, conforme visto acima, advém da sistematização de casos jurisprudenciais, sendo desenvolvida, posteriormente, pela doutrina. No Brasil, a evolução na doutrina refletiu especialmente no Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, no atual Código Civil. Ocorre que, antes de ser introduzida nas legislações específicas de direito material, a desconsideração da personalidade jurídica já se inseria em um contexto de ser um instrumento aplicável somente em casos excepcionais. Com o passar dos anos, observou-se que a aplicação da teoria, além de ser medida excepcional, deve preencher alguns requisitos que se dividem, basicamente, em duas teorias conhecidas, conceituadas por Fábio Ulhoa Coelho como a Teoria Menor e a Teoria Maior.55 A teoria menor começou a se delinear com o Código de Defesa do Consumidor com a previsão do §5º do art. 2856.57 Conforme estabelece esse dispositivo legal, “o

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CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2017. p. 94-95. 55 BRUSCHI, Gilberto Gomes. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. 1. ed. – São Paulo: RT, 2016. ISBN 978-85-203-6066-8. 56 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. 57 CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. Op. cit.. p. 57. Disponível em . Acesso em 02/09/2018.

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simples fato de o consumidor não receber o seu crédito da pessoa jurídica já autorizaria a invasão do patrimônio de seus integrantes.”58 Para aplicação da teoria menor, bastaria a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, como explica Fábio Ulhoa Coelho: De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma. 59

O jurista, contudo, faz ressalvas quanto à redação do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, pois, segundo o autor, “tais são os desacertos do dispositivo em questão que pouca correspondência se pode identificar entre ele e a elaboração doutrinária da teoria.”60 Fábio Ulhoa Coelho afirma que, entre os requisitos previstos na legislação em benefício dos consumidores, encontram-se, por exemplo, hipóteses caracterizadoras de responsabilização de administrador que não pressupõem nenhum superamento da forma da pessoa jurídica. Nesta senda, a discrepância entre o texto da lei e a doutrina não traria benefício à tutela dos consumidores, somente incertezas e equívocos.61 André Pagani de Souza, ao falar sobre a teoria menor, alude que ela é “resultado da decretação afobada da desconsideração da personalidade jurídica”, visto que não há qualquer questionamento acerca da ocorrência de abuso de direito, fraude ou confusão patrimonial. Segundo o autor, a teoria menor, em verdade, objetiva proteger o hipossuficiente (no caso do consumidor), e colocar situações consideradas de maior relevância (ambiental e ordem econômica) acima da autonomia da pessoa jurídica.62 Em decorrência disto, a teoria recebeu o adjetivo de ‘menor’: pela ausência

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SOUZA, André Pagani de. Op. cit. P. 71. COELHO, Fábio Ulhoa. A teoria maior e a teoria menor da desconsideração. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 65/2014. Jul – Set/2014. p. 21-30. 60 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 49-50. 61 Ibidem. p. 49-50. 62 CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. Op. cit. p. 59. 59

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de fundamentos teóricos e doutrinários elaborados para a aplicação dessa teoria no caso concreto.63 Já a teoria maior, conforme dito acima, é adotada como regra geral no sistema jurídico brasileiro, sendo recepcionada e consagrada na redação do artigo 50 do atual Código Civil64. Mesmo que este dispositivo seja o que mais se alinha à elaboração doutrinária da disregard doctrine, o caput do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor65 também consagra, embora com algumas imprecisões técnicas, a adoção da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, consoante afirmam Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Marina Silva Fonseca.66 Essa teoria leva em consideração, além da prova da insolvência, ou a demonstração do desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial. Ou seja, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. 67 Alinhado a esse raciocínio, Fábio Ulhoa Coelho explica: A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam. 68

Como explica Antônio Pereira Gaio Júnior, a teoria maior fulcra-se na ideia de que o juiz tem autorização para estabelecer o afastamento temporário da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, com vistas à coibir fraudes e abusos praticados sob o

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SOUZA, André Pagani de. Op. cit. p. 71. Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 65 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 66 DE PINHO, Humberto Dalla Bernardina; FONSECA, Marina Silva. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica do Novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JR, Fredie. Coord. Novo CPC doutrina selecionada. v. 1: parte geral. - Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1141. 67 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 279.273/SP. Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 04/12/2003, DJe 29/03/2004. 68 COELHO, Fábio Ulhoa. A teoria maior e a teoria menor da desconsideração. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 65/2014. Jul – Set/2014. p. 21-30. 64

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manto dela.69 Com efeito, a formulação da teoria maior da desconsideração se desdobra em subjetiva e objetiva. De acordo com a subjetiva, os elementos autorizadores da aplicação da teoria ao caso concreto são o abuso de direito e a fraude. Para a objetiva é a demonstração da confusão patrimonial.70 Insta pontuar, nessa linha, que o atual Código Civil trouxe um dispositivo em maior sintonia com a evolução doutrinária e jurisprudencial no que tange à desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque, quando faz referência ao abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial como pressuposto da desconsideração, o diploma legal deixa clara a ideia que se pretende coibir o mau uso da pessoa jurídica com a aplicação da disregard doctrine.71 Ademais, em termos jurisprudenciais, o Superior Tribunal de Justiça já abordou as questões pertinentes à teoria menor da desconsideração, porém deixando de aplicá-la, tendo em vista que a regra geral adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro é a teoria maior, conforme ementa abaixo transcrita: Responsabilidade civil e Direito do consumidor. Recurso especial. Shopping Center de Osasco-SP. Explosão. Consumidores. Danos materiais e morais. Ministério Público. Legitimidade ativa. Pessoa jurídica. Desconsideração. Teoria maior e teoria menor. Limite de responsabilização dos sócios. Código de Defesa do Consumidor. Requisitos. Obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Art. 28, § 5o. - Considerada a proteção do consumidor um dos pilares da ordem econômica, e incumbindo ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, possui o Órgão Ministerial legitimidade para atuar em defesa de interesses individuais homogêneos de consumidores, decorrentes de origem comum. - A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). - A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica 69

GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. In: DIDIER JR, Fredie. Coord. Novo CPC doutrina selecionada. v. 1: parte geral. - Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1132. 70 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.2. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 44. 71 SOUZA, André Pagani de. Op. cit. p. 102.

26 para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. - Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. - A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5o do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos.72

Visto isso, passaremos a analisar os pressupostos para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, em especial aqueles que guardam relação com a regra geral adotada pelo direito brasileiro, estabelecidos pelo Código Civil.

2.4 REQUISITOS A teoria da desconsideração da personalidade jurídica somente deve ser aplicada nas hipóteses em que a autonomia da pessoa jurídica se apresenta como um obstáculo para a composição dos diversos interesses envolvidos no caso concreto. Isto é, se a autonomia da pessoa jurídica não impede a responsabilização do sócio, do acionista ou do administrador, não haverá qualquer desconsideração da personalidade jurídica, pois inexistirá obstáculo para a identificação dos responsáveis pela conduta ilícita.73 A regra geral adotada em nosso ordenamento é aquela prevista no art. 50 do Código Civil de 2002, que recepcionou e consagrou a teoria maior da desconsideração, tanto na sua vertente objetiva quanto na subjetiva. Assim, utilizando-se da teoria maior, abordaremos os requisitos previstos pelo Código Civil, quais sejam, o (i) abuso de direito, a (ii) fraude, e a (iii) confusão patrimonial.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 279.273/SP, Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 04/12/2003, DJ 29/03/2004. 73 Ibidem. p. 77.

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2.4.1 Abuso de direito O abuso de direito e a fraude são os casos mais tratados acerca da aplicação da teoria da desconsideração, pois, segundo Pedro Henrique Torres Bianchi, essas foram as hipóteses que os tribunais mais se dedicaram a decidir e que as legislações mais se preocuparam em positivar.74 Com o advento do Código Civil de 2002, o abuso de direito foi qualificado na conceituação genérica do ato ilícito, o qual está consagrado no artigo 187.75 Caio Mário da Silva Pereira explica que essa previsão atende à necessidade de conter o sujeito da relação jurídica nos lindes morais de seu exercício.76 O autor refere que a figura do abuso de direito encontra fundamento na regra da relatividade dos direitos, admitindo que se o titular excede o limite do exercício regular de seu direito, age sem direito. Assim, estabelece que é de se reprimir o exercício do direito, quando há intenção de causar mal a outrem.77 Ao tratar do conceito de abuso de direito, Pedro Henrique Torres Bianchi explica a diferença entre ato ilícito e ato abusivo: O ato ilícito viola de forma frontal a lei e pressupõe a inexistência de direito do agente. Já o ato abusivo significa que, apesar de o condutor ter o direito subjetivo, ele pratica algum ato anormal na sua conduta e, portanto, um desvio de finalidade. Pois, ‘a irregularidade do ato abusivo está no exercício do direito ou da situação subjetiva. Ademais, reveste-se o ato abusivo da chamada aparência de legalidade, que não está no ato ilícito’. 78

O ato abusivo, portanto, é o mau uso do direito, é um ato legal, porém contrário ao fim do instituto da pessoa jurídica, ou seja, é o ato constituído no exercício irregular de um direito causando danos a outrem. 79

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BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 57. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 76 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit. p. 537. 77 Ibidem. p. 535-536. 78 Ibidem. p. 535-536. 79 SILVA, Alexandre Couto. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 82. 75

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2.4.2 Fraude Embora a fraude não conste expressamente no texto do art. 50 do Código Civil, a jurisprudência mostra-se favorável quanto à possibilidade de se desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa, se comprovada a ocorrência de fraude. David Massara Joanes assevera que não há uma explicação correta que justifique a não inserção da fraude, pelo legislador pátrio, na redação do art. 50 do Código Civil.80 De qualquer forma, há três aspectos que podem ter influenciado a não inserção da fraude no texto legal, segundo observa o autor: Com efeito, talvez o legislador tenha propositadamente deixado a fraude fora da redação do dispositivo legal em comento, por considerar que as diferenças conceituais existentes entre os diferentes ordenamentos jurídicos não permitia a simples importação do vocábulo; ou por entender que a fraude perpetrada com uso da personalidade jurídica pode ser caracterizada como abuso de direito; ou, ainda, por considerar que nosso sistema jurídico já possui os remédios legais adequados para solucionar os casos de fraude. 81

Enquanto no abuso de direito ocorre uma conduta de ir além do próprio direito subjetivo e atinge a esfera de outrem, na fraude a conduta, aparentemente lícita, resulta em uma violação ao espírito da lei, à sua vontade ou à vontade das partes expressa em um contrato. Ambas as figuras, abuso de direito e fraude à lei ou ao contrato, na visão de Otávio Joaquim Rodrigues Filho, desaguam no desvio de finalidade da pessoa jurídica.82 Neste sentido, Pedro Henrique Torres Bianchi aponta que a fraude é o requisito mais presente na aplicação da teoria da desconsideração para fins de responsabilidade e grande parte da doutrina e jurisprudência desenvolveu a teoria pensando em um meio de combater esse elemento.83 Com efeito, o autor explica que a fraude pode ocorrer de duas formas: A primeira é a fraude à lei, que ocorre ‘com a utilização de uma pessoa jurídica sempre que os destinatários de determinada forma jurídica se ocultassem por trás da pessoa jurídica já existente ou criada para tal 80

JOANES, David Massara. Aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica ao inverso. Dissertação de Mestrado. - Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima, 2010. p. 42. 81 Ibidem. p. 42. 82 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 90. 83 BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 57.

29 finalidade específica, subtraindo-se assim à incidência da norma’, como afirma Lamartine. Também há a fraude a disposições contratuais, que se dá quando o sócio visa utilizar a pessoa jurídica para driblar determinada vedação a algum contrato.84

Em que pese a fraude - em todas as suas modalidades – possa justificar o emprego de outras técnicas sancionatórias, dependendo do caso concreto também constitui fundamento para o afastamento da autonomia subjetiva da pessoa jurídica.85 Ao fim e ao cabo, o importante é a existência do requisito subjetivo da intenção de prejudicar terceiros com a fraude, circunstância em que a personalidade da pessoa jurídica será utilizada para fim diverso daquele para a qual foi concebida.

2.4.3 Confusão patrimonial Como observamos nos tópicos anteriores, as sociedades têm personalidade jurídica própria, isto é, em regra, respondem pelas obrigações com seu próprio patrimônio, e não com o dos seus sócios.86 Há, contudo, exceções a essa regra. Interessa ao tema deste trabalho aquela que diz respeito às sociedades que são regularmente constituídas, mas a personalidade jurídica e o patrimônio autônomo são utilizados, de forma abusiva ou fraudulenta, pelos seus sócios para satisfazer interesses próprios ou para obter vantagens particulares. Assim, ao se beneficiarem à custa de terceiros, justifica-se a utilização de uma das hipóteses de desconsideração da pessoa jurídica para responsabilizar pessoalmente o sócio que obteve o benefício indevido.87 Assim como a fraude e o abuso de direito, o abuso da personalidade jurídica também é caracterizado pela confusão patrimonial, hipótese positivada pelo art. 50 do Código Civil. A confusão patrimonial ocorre quando não é possível distinguir se determinado bem é do sócio ou da pessoa jurídica.88 Em outras palavras, conforme afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça no acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, “a confusão patrimonial caracteriza-se pela inexistência, no campo dos fatos, de 84

BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 57-58. RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 91. 86 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. v. 5. Salvador: Jus Podivm, 2017, p. 358. 87 Ibidem. p. 359. 88 BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 55. 85

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separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e de seus sócios, ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas.” 89 Segundo André Pagani de Souza, a personalidade jurídica deve ser desconsiderada se for detectada a confusão patrimonial entre sociedade e sócios, independentemente da existência de abuso de direito ou fraude (elementos subjetivos). Por isso, diferentemente da fraude e do abuso de direito, a confusão patrimonial é considerada um critério objetivo.90 Para Fábio Ulhoa Coelho, a confusão patrimonial deve auxiliar na facilitação da prova pela parte que pretende utilizar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Como refere o jurista, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre o patrimônio dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude.91 Assim, de modo a exemplificar as situações que caracterizam a confusão patrimonial, explica o autor: Se, a partir da escrituração contábil, ou da movimentação de contas de depósito bancário, percebe-se que a sociedade paga dívidas do sócio, ou este recebe créditos dela, ou o inverso, então não há suficiente distinção, no plano patrimonial, entre as pessoas. Outro indicativo eloquente de confusão, a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, é a existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade, e vice-versa.92

2.5 DESCONSIDERAÇÃO INVERSA Questão também relevante é a possibilidade de aplicação da desconsideração personalidade jurídica em sua forma inversa. A desconsideração da personalidade jurídica na sua forma tradicional, conforme analisado acima, é um mecanismo criado para coibir a utilização indevida da sociedade por seus sócios, com a extensão da responsabilidade patrimonial aos bens pessoais dos responsáveis. 89

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 279.273/SP. Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 04/12/2003, DJe 29/03/2004. 90 SOUZA, André Pagani de. Op. cit. p. 93. 91 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 42. 92 Ibidem. p. 43-44.

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Por sua vez, na chamada desconsideração inversa, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica na sua forma tradicional, há a suspensão temporária da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, para buscar bens do patrimônio da pessoa jurídica em razão de dívidas pessoais contraídas pelo sócio.93 Fábio Ulhoa Coelho didaticamente explica a aplicação da teoria da desconsideração na sua forma inversa: A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas de pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens. É certo que, em se tratando a pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são, em regra, penhoráveis para a garantia do cumprimento das obrigações do seu titular. Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. Quer dizer, o sócio da associação ou o instituidor da fundação, desde que mantenham controle total sobre os seus órgãos administrativos, podem concretizar com maior eficácia a fraude do desvio de bens. 94

Marlon Tomazette adverte que é possível que o sócio use uma pessoa jurídica para esconder o seu patrimônio pessoal dos credores, transferindo-o por inteiro à pessoa jurídica e evitando, assim, o acesso dos credores a seus bens.95 O autor critica a utilização da desconsideração inversa para esse fim, pois, no seu entendimento, “qualquer que seja a sociedade, o sócio terá quotas ou ações em seu nome, que integram seu patrimônio e, por isso, são passíveis de penhora para pagamento das obrigações pessoais do sócio”.96 O jurista complementa dizendo: “se a desconsideração não quer extinguir a pessoa jurídica, mas sim protegê-la de abusos por parte dos sócios, não é razoável

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DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. – Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 584. 94 COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 73. 95 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário. v.1. 8ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017. p. 290 96 Ibidem. p. 290.

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admitir a desconsideração inversa, com ônus para a sociedade, sendo possível satisfazer os credores dos sócios sem esses ônus.”97 O Superior Tribunal de Justiça, por sinal, reconhece a possibilidade de aplicação da desconsideração inversa, com fundamento em uma interpretação finalística do art. 50 do Código Civil, ainda que o CPC/73 não regulamentasse essa figura, conforme trechos do acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi: Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal. [...] Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02 sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos a própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores.98

Após o advento do Código de Processo Civil de 2015, essa modalidade de desconsideração foi inserida da redação do art. 133, §2º99, suprindo a lacuna deixada pelo legislador. Ao reconhecer a existência da desconsideração da personalidade jurídica na sua forma inversa, também reafirmou a posição já adotada na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade de aplicação dessa modalidade para atingir o patrimônio da sociedade, para responsabilizar patrimonialmente os sócios por dívidas pessoais destes.100 Portanto, a partir do estudo de alguns aspectos materiais da teoria da desconsideração

da

personalidade

jurídica,

passaremos

à

análise

da

desconsideração da personalidade jurídica sob a ótica processual.

97

TOMAZETTE, Marlon. Op. cit. p. 290. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117/MS. Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010. 99 Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. § 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. 100 THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. vol. 1. 56. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 523. 98

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3 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOB A ÓTICA PROCESSUAL Amplas discussões e apuro técnico focados na teoria da desconsideração ensejaram premissas bastante sólidas quanto aos requisitos estabelecidos por cada ramo do direito material para superar episodicamente a personalidade jurídica da pessoa jurídica. Por outro lado, verifica-se que os estudos relacionados com o direito processual para buscar alcançar a desconsideração da personalidade jurídica não resultaram em um posicionamento solidificado. tendo em vista a existência de diversos entendimentos.101 Neste capítulo, a desconsideração da personalidade jurídica será analisada sob a ótica processual, com o estudo da aplicação do instituto na vigência do Código de Processo Civil de 1973 até a sua expressa previsão com as normas processuais instituídas pelo Código de Processo Civil de 2015. Tal análise comparativa se faz necessária para elucidar a importância de ter sido criada uma ferramenta processual única para aplicação do instituto da desconsideração.

3.1 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ANTES DA LEI 13.105/2015 Antes de abordar o tema da desconsideração com a entrada em vigor do CPC/15, é pertinente que sejam expostos, mesmo que em apertadas linhas, os principais entendimentos, tanto da doutrina como da jurisprudência, relacionados com a aplicação da disregard doctrine antes da Lei 13.105/2015. Em primeiro lugar, uma das dificuldades enfrentadas na aplicação prática da teoria da desconsideração anteriormente ao CPC/15, é de que havia, na doutrina e na jurisprudência, de forma indesejável, entendimentos e critérios distintos quanto ao procedimento a ser adotado, o que ensejava em muitos casos o desrespeito às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa ao sócio ou à pessoa

101

VIEIRA, Christian Garcia. Desconsideração da personalidade jurídica no Novo CPC: natureza, procedimentos e temas polêmicos. – Salvador: Juspodivm, 2016. p. 46.

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jurídica que poderá ter seu patrimônio atingido mediante decisão que supera transitoriamente a personalidade jurídica da pessoa jurídica.102 Fábio Ulhoa Coelho, por exemplo, opinava pela necessidade de uma ação autônoma para se verificarem os requisitos da desconsideração. Para o jurista, em razão da necessidade de dilação probatória, torna-se imperiosa o ajuizamento de uma ação autônoma, em que o credor deveria demonstrar a existência dos pressupostos para a desconsideração. Sendo assim, o magistrado não poderia decidir a desconsideração mediante mero despacho em processo de execução.103 Diferentemente, Pedro Henrique Torres Bianchi entende pelo reconhecimento da desconsideração nos próprios autos de forma incidental, pois, segundo o autor, mesmo no curso de uma execução se percebe a existência de contraditório, por exemplo, com o instituto da objeção de não executividade.104 Importante referir que, assim como Fábio Ulhoa Coelho, aqueles que defendiam a necessidade de uma ação autônoma tinham como principal fundamento o fato de que somente um processo autônomo seria adequado para preservar as garantias constitucionais do processo e, concomitantemente, formar o título executivo relacionado com quem se pretendia atingir com a desconsideração da personalidade jurídica da parte devedora.105 Os que entendiam pela possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica ser incidentalmente, isto é, sem a criação de uma ação autônoma ou incidente para haver contraditório efetivo entre as partes, sustentavam a possibilidade de o pedido ser formulado mediante simples petição, podendo o juiz decidir sem a manifestação da parte contrária.106 Quando o processo estava em andamento e surgiam indícios de abuso da personalidade, não havia um único critério. Isto é, dependendo do processo, utilizase de dois lados extremos: (i) após simples petição do credor, aplicava-se diretamente a desconsideração, postergando-se o contraditório para eventuais embargos de devedor, exceção de pré-executividade, impugnação à execução ou recurso do 102

VIEIRA, Christian Garcia. Op. cit. p. 50. COELHO, Fábio Ulhoa. Op. cit. p. 77. 104 BIANCHI, Pedro Henrique Torres. Op. cit. p. 119-121. 105 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 178. 106 BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica, 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2009. p. 100. 103

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terceiro afetado pela desconsideração; ou (ii) negava-se a desconsideração, cabendo à parte interessada ajuizar uma ação autônoma específica para esse fim.107 Conforme observa Eduardo Talamini, nenhuma dessas soluções são adequadas, porque a primeira viola as garantias do contraditório, ampla defesa, devido processo legal e acesso à justiça e a segunda tende a inviabilizar o sucesso prático da desconsideração.108 Pela inexistência de um procedimento específico para atingir a superação da personalidade jurídica sob a égide do CPC/73, utilizava-se a teoria da desconsideração indevidamente, geralmente por credores que, ao perceberem a inexistência de ativos de titularidade da pessoa jurídica, utilizavam o instituto da desconsideração para atingir o patrimônio dos sócios ou dos administradores, sem comprovar a existência dos requisitos previstos na legislação específica aplicável ao caso. Em termos jurisprudenciais, não havia entendimento pacificado no que se refere ao procedimento para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Para ilustrar esse antagonismo, citamos abaixo dois julgados do STJ, da Quarta Turma, em que é possível verificar uma nítida divergência de entendimento. No julgamento do Recurso Especial n.º 476.452/GO, o STJ firmou entendimento de que era possível “haver a desconsideração da personalidade jurídica independente de ação autônoma para tanto.” Além disso, a citação prévia do sócio ou da pessoa jurídica era considerada prescindível.109 De modo diverso, no julgamento do Recurso Especial n.º 991.218/MS, entendeu-se que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica por presunção, sem contraditório, sem ampla defesa e sem motivação concreta caracterizaria violação ao Princípio do Devido Processo Legal. Nada obstante, o relator fundamentou o seu voto no sentido de que “a celeridade processual não pode ser alcançada com o sacrifício dos consectários inerentes ao processo justo”.110

107

TALAMINI, Eduardo. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Disponível em Acesso em 16/08/2018. 108 Ibidem. 109 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 476.452/GO. Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em 05/12/2013. DJe: 11/02/2014. 110 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 991.218/MS. Quarta Turma. Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, Rel. p/ Acórdão Min. Raul Araújo. Julgado em 16/04/2015. DJe: 13/08/2015.

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Por isso, o uso indiscriminado da teoria da desconsideração ensejou a busca por um mecanismo que restringisse a aplicação incorreta do instituto, estabelecendo limites para utilização da desconsideração da personalidade jurídica no processo, mediante critérios simplificados e objetivos, agora positivados na legislação processual civil. Em síntese, essas são algumas das “razões de ser” do atual incidente de desconsideração da personalidade jurídica, estabelecido no Código de Processo Civil de 2015, que trouxe alguns avanços relevantes quanto ao meio processual para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Assim, nos próximos tópicos serão analisadas as principais características do Incidente de Desconsideração estabelecidas pela Lei n. 13.105/2015. 3.2 O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Conforme verificado acima, um dos problemas enfrentados sob a égide do CPC/73 era a ausência de um critério único para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no curso do processo. Suprindo a lacuna deixada pelo diploma processual anterior, o Código de Processo Civil de 2015 incumbiu-se e cuidou da matéria, traçando um mecanismo processual a ser adotado com a criação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no rol das modalidades de intervenção de terceiros.111 A inclusão do incidente de desconsideração se baseia na simplificação da técnica processual, visando à efetividade da prestação jurisdicional, sem que haja o comprometimento do contraditório e do direito de defesa.112 3.2.1 Natureza jurídica O Código de Processo Civil de 2015, ao fazer referência a um incidente de desconsideração, provoca discussões na doutrina no tocante à natureza jurídica deste incidente, especialmente após análise sistemática dos artigos 133 a 137 do Código. Afinal, quanto à natureza jurídica do incidente de desconsideração da personalidade

111

RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 185. Ibidem. p. 264.

112

37

jurídica, seria um incidente processual, nos termos da literalidade da lei, ou possui natureza de uma ação ou demanda incidental? Atribuindo ao incidente de desconsideração a natureza jurídica de demanda incidental, Christian Garcia Vieira refere que entende-se como um “incidente do processo” o ato ou série de atos praticados no curso de um processo, compreendendo um procedimento menor, que não gera uma nova relação jurídica processual, dependente do principal e com a finalidade de solucionar questão, sem a qual não é possível prosseguir no processo em que o incidente teve origem.113 Por outro lado, o jurista explica que o “processo incidental” forma uma relação jurídica processual nova, constituída sobre um procedimento novo, sendo considerada incidental porque seria instaurado de modo relacionado com algum processo pendente e objetivando tutela jurisdicional que poderá influir sobre o objeto do processo originário ou sobre o próprio incidente.114 Fredie Didier Jr., na mesma linha, aponta que “ao pedir a desconsideração, a parte ajuíza uma demanda contra alguém; deve, pois, observar os pressupostos do instrumento da demanda.”115 Sob outra ótica, Alexandre de Freitas Câmara entende que se trata de um incidente processual que provoca, uma intervenção forçada de terceiro, mediante citação, na medida em que o sócio ou a sociedade não integravam a relação jurídica processual.116 Embora houvesse previsão de intimação ao sócio ou à sociedade no art. 64 do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil117, o que poderia estar alinhado com a ideia de um incidente processual, defende Otávio Joaquim Rodrigues Filho que a alteração para o ato de citação, previsto no art. 135 do CPC/15, não altera a natureza jurídica do incidente, na medida em que “o processo é novo para aqueles que passarão a integrar a relação processual”.118

113

GARCIA, Christian Vieira. Op. cit. p. 91. Ibidem. p. 91. 115 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. – Salvador: Jus Podivm, 2017. p. 587. 116 CÂMARA, Alexandre de Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2017. p. 99. 117 Art. 64. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis. 118 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 262-264. 114

38

Ressalta o mesmo jurista que o procedimento previsto no atual diploma legal deve ser considerado um incidente processual, e não uma demanda incidental, em razão da “sua absoluta acessoriedade à demanda principal.”119 Para o autor, “o que se amplia subjetivamente nesses casos não é o título judicial ou extrajudicial, mas sua eficácia executiva.”120 Por fim, ainda que haja debates na doutrina quanto à natureza jurídica do incidente de desconsideração, verificamos que o Superior Tribunal de Justiça afirmou, em acórdão de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica não inaugura uma ação autônoma.121 3.2.2 Legitimidade Conforme preceitua o caput do artigo 133 do Código de Processo Civil, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Quanto à legitimidade ativa para suscitar o incidente de desconsideração, a lei só alude ao incidente a pedido da parte ou do Ministério Público. Em outros termos, como lecionam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, “o juiz só analisará a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica caso a parte interessada ou o MP requeiram a providência. Não pode, pois, aplicar a desconsideração ex officio.”122 Para Otávio Joaquim Rodrigues Filho, nos termos do que dispõe os artigos 50 do Código Civil123 e 28 do Código de Defesa do Consumidor124, ainda que a lei fale em pedido da parte ou do Ministério Público, não há alteração significativa nas 119

RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 192. Ibidem. p. 192. 121 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.729.554/SP. Quarta Turma, Rel. Min. Luís Felipe Salomão. Julgado em 08/05/2018. DJe: 06/06/2018. 122 NERY, Nelson Jr; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 1. ed. - São Paulo: RT, 2015. p. 285. 123 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 124 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 120

39

disposições do direito material, pois, geralmente, se a desconsideração é requerida para fins de responsabilização, a parte requerente será, em regra, a credora da demanda principal.125 Ao abordar a legitimidade ativa ocupada pela parte, Flávio Luiz Yarshell explica: Suposto que o pedido esteja fundado em uma das hipóteses legais que autorizam a desconsideração, legitimado ativo é o credor; que processualmente ocupa a posição de autor da demanda originária (aquela cujo objeto é impor dever de prestar). Ele é o titular de direito material afirmado em juízo e, portanto, ele é o titular do direito de ação, que abrange tanto a declaração do direito, quanto a respectiva atuação prática, para entrega do bem da vida.126

Quanto à legitimidade ativa do Ministério Público, o jurista explica que o Órgão está legitimado a pedir a desconsideração somente nos casos em que seja titular do direito de ação, e não nos casos em que atua como fiscal da lei. Assim, a única interpretação possível da expressão “quando lhe couber intervir nos autos” é a de que essa legitimidade é restrita às hipóteses em que o Ministério Público figura como autor da demanda, como, por exemplo, no caso de ação civil pública, de improbidade administrativa e em outros que possui legitimidade ativa, desde que coerente com as funções institucionais do Órgão.127 Na hipótese de a medida ser pleiteada pelo Ministério Público, Eduardo Talamini entende que, anteriormente, deveria haver uma oitiva da parte que teoricamente teria interesse na desconsideração, a qual normalmente seria o autor da ação principal.128 Acerca da legitimidade passiva, segundo o caput do art. 135, uma vez instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica serão citados. Sobre esse ponto, importantes as observações de Luiz Alberto Reichelt, que aborda a função da conjunção adversativa “ou” prevista no texto legal: A utilidade presente na conjunção “ou” consiste na possibilidade de desconsideração levando em conta duas situações: (a) a desconsideração da pessoa jurídica de modo que o sócio possa ser 125

RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 217. YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil - Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 285. 127 Ibidem. p. 285-286. 128 TALAMINI, Eduardo. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Disponível em Acesso em 24/08/2018. 126

40 responsabilizado pelas prestações devidas pela ré́ originalmente indicada, e (b) a desconsideração do sócio como meio para que o patrimônio da pessoa jurídica responda pela obrigação àquele imposta (desconsideração inversa). Essa segunda possibilidade resta confirmada pelo constante do art. 133, § 2.o, que afirma ser aplicável o regime jurídico previsto entre os arts. 133 e 138 também à hipótese de desconsideração inversa da pessoa jurídica. 129

Em termos de desconsideração da personalidade jurídica, de acordo com o CPC/15, geralmente, os legitimados passivos poderão ser os sócios (sejam eles pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas) e a sociedade (na hipótese de desconsideração inversa). Dessa forma, a redação do caput do artigo 133 é taxativa ao atribuir à parte ou ao Ministério Público a iniciativa de pedir a instauração do incidente de desconsideração, não podendo, portanto, o juiz determinar essa providência de ofício. Essa vedação preserva a inércia da jurisdição (art. 2º do CPC), a imparcialidade do juiz e o devido processo constitucional.130 Fredie Didier Jr. leciona no mesmo sentido, entendendo que a desconsideração não pode ser determinada ex officio, pois o incidente depende de pedido da parte ou do Ministério Público.131 3.2.3 Momento para instauração do incidente A novidade introduzida pela Lei 13.105/15 obviamente não foi a desconsideração da personalidade jurídica em si. A inovação consiste na inserção de um procedimento próprio para a aplicação do instituto. Essa novidade acaba pondo fim a tantas dúvidas e questões suscitadas na vigência do CPC/73 quanto ao procedimento que deveria ser adotado pelo Juiz na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Além disso, conforme refere Alexandre Freitas Câmara, com a criação do incidente, evita-se a apreensão de bens de sócios (ou da sociedade, em caso de desconsideração inversa) sem que eles fossem chamados a participar do debate, em contraditório,

para

formação

da

decisão

que

eventualmente

ampliará

a

responsabilidade patrimonial.132 129

REICHELT, Luiz Alberto. A desconsideração da personalidade jurídica no projeto de novo código de processo civil e a efetividade da tutela jurisdicional do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. vol. 98 - São Paulo: RT, 2015. p. 245-259. 130 YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Op. cit. p. 286. 131 DIDIER JR., Fredie. Op. cit. p. 586. 132 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 95

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Ressalta-se, conforme visto anteriormente, que o requerimento de instauração do incidente deve observar e demonstrar o preenchimento dos requisitos específicos para a desconsideração da personalidade jurídica. Ou seja, nas causas em que a relação jurídica subjacente à demanda for cível-empresarial, o dispositivo que regulará os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica será o art. 50 do Código Civil. Igualmente, baseando-se a causa em relação consumerista, englobará, por conseguinte, as disposições do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Em outros termos, os requisitos da desconsideração variam de acordo com a natureza da causa, cuja apuração deve ser feita com base na legislação específica do caso.133 O diploma processual, portanto, prevê expressamente que o incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial (art. 134, caput). Conforme lições de Luiz Henrique Volpe Camargo, há duas oportunidades de buscar a desconsideração da personalidade jurídica: cumulação de tal pedido com o pedido principal já na petição inicial (art. 134, §2º) ou em uma petição autônoma, na forma de incidente processual, protocolada no curso da fase de conhecimento, no cumprimento de sentença ou no curso da execução fundada em título extrajudicial (art. 134, caput).134 O incidente pode ser instaurado em qualquer tipo de processo, seja ele cognitivo ou executivo, independentemente de o procedimento ser comum ou especial. Em segundo lugar, a teor do constante nos artigos 136, parágrafo único135 e 932, inc. VI,136 é possível a instauração do incidente de desconsideração perante órgãos colegiados que integram os tribunais, seja nos processos de competência originária, seja em grau recursal, incumbindo ao relator decidir o incidente.137 E, para evitar o surgimento de qualquer dúvida, o incidente de desconsideração da personalidade

133

CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 95. CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Comentários ao Novo Código de Processo Civil - Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 245. 135 Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. 136 Art. 932. Incumbe ao relator: VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o tribunal; 137 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 96. 134

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jurídica aplica-se também ao processo de competência dos Juizados Especiais (art. 1.062).138 Por sinal, quanto ao cabimento do incidente em qualquer tipo de processo especial, importante lembrar a viabilidade do incidente de desconsideração nos processos de falência, ao encontro, inclusive, do que fora estabelecido no Enunciado nº 247 do Fórum Permanente de Processualistas Civis.139 Desta forma, dependendo da via eleita pela parte requerente, poderá surgir debate quanto à interpretação do art. 134, §1º,140 conforme leciona Luiz Alberto Reichelt: “há que se investigar se aquele que não figurava originalmente como parte deveria ser cadastrado como terceiro ou como parte quando da instauração do incidente”.141 Reichelt refere que, no caso de pedido de desconsideração da personalidade jurídica realizado já na inicial, não há margem para dúvidas, uma vez que “haverá a imediata assunção da condição de parte por aquele que se pretende seja efetivamente responsabilizado pela prestação devida por aquele que se pretende tenha sua personalidade jurídica desconsiderada.”142 Nesse sentido, haverá a constituição de um litisconsórcio facultativo entre os réus.143 Quando a desconsideração é pleiteada na fase de cumprimento de sentença ou na execução de título extrajudicial, torna-se obrigatória a instauração do incidente, conforme ensina Humberto Theodoro Jr.: Na hipótese de a desconsideração da personalidade jurídica ser requerida nos autos da execução ou durante o cumprimento de sentença, mesmo quando a formulação do pedido se der na própria petição inicial ou no requerimento do cumprimento da sentença, será sempre obrigatória a observância do incidente regulado pelos arts. 134 a 136. É que o procedimento executivo, em sua forma pura, não tem sentença para resolver sobre a responsabilidade nova (a do sócio ou da pessoa jurídica não devedores originariamente) e, sem tal decisão, faltará título executivo para sustentar o redirecionamento da execução. Somente, portanto, por meio do procedimento incidental em tela é que, cumprido o contraditório, se chegará a um título capaz de justificar o redirecionamento. Cabe, pois, ao incidente a função de 138

Art. 1.062. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais. 139 Nesse sentido, o Enunciado n. 247 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Aplica-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar.” 140 Art. 134. § 1o: A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas. 141 REICHELT, Luiz Alberto. Op. cit. p. 247. 142 Ibidem. p. 247. 143 Ibidem. p. 247.

43 constituir o título legitimador da execução contra aqueles a que se imputa a responsabilidade patrimonial pela obrigação contraída em nome de outrem.144

Alexandre Freitas Câmara alude que não basta a parte interessada ou o Ministério Público peticionar requerendo a instauração do incidente, dado que este requerimento deverá preencher os pressupostos legais específicos (art. 134, §1º). Além disso, o autor refere que, vindo a solicitação de instauração do incidente a juízo, deverá ser realizado um juízo de admissibilidade. É importante observar que, no ato de requerimento de desconsideração da personalidade jurídica, cabe ao requerente apresentar elementos mínimos de prova para convencer o juízo de que estão presentes os requisitos para desconsideração (estabelecidos na legislação específica de cada caso).145 Nada obstante, soma-se a isso a possibilidade de o requerente pleitear a concessão de tutela de urgência, com o bloqueio e apreensão de bens do sócio ou da pessoa jurídica, na forma dos artigos 300146 e 301147 do CPC/15, ainda que não haja previsão de hipóteses de urgência nas quais a observância do contraditório prévio pode frustrar a aplicação da teoria da desconsideração ao caso concreto.148 Explica Alexandre Freitas Câmara que ao Juiz incumbirá exercer cognição sumária, a fim de verificar se é ou não provável a existência dos requisitos para desconsideração. Se o juiz não conseguir, desde logo, formar esse juízo de probabilidade, tornar-se-á necessário, antes de rejeitar liminarmente o pedido, intimar o requerente para que este tenha a chance de demonstrar que tais requisitos estão presentes. Após esse diálogo, caberá ao magistrado proferir decisão acerca da admissibilidade ou não do incidente,149 e, uma vez instaurado o incidente, o juiz 144

THEODORO JR., Humberto. Op. cit. p. 525. CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 98. 146 Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. § 1o Para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la. § 2o A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia. § 3o A tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão. 147 Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito. 148 SOUZA, André Pagani de. Op. cit. p. 202. 149 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 96. 145

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determinará a expedição de ofício ao distribuidor, comunicando-o acerca da instauração do incidente, bem como, no mesmo ato, decretará a suspensão do processo (art. 134, §3º)150 e determinará a citação daquele cujo patrimônio se pretende ver alcançado (art. 135).151/152 Quanto à suspensão do processo, há autores, a exemplo de Alexandre Freitas Câmara, que defendem se tratar uma suspensão imprópria, na medida em que, conforme explica o jurista, há somente a vedação à prática de atos do processo principal, ou seja, aqueles que não integram o procedimento do incidente de desconsideração. Em decorrência disso, a suspensão cessa quando o incidente for decidido, ainda que tal decisão esteja sujeita a recurso.153 Essa suspensão, conforme leciona Antônio Pereira Gaio Júnior, é necessária para “evitar-se o tumulto nas relações jurídicas que se desenvolvem durante a cognição do ‘incidente’”154 Pensa diferente Otávio Joaquim Rodrigues Filho, argumentando que o processo principal deveria ter prosseguimento em relação à pessoa jurídica caso estivesse na fase ou processo de execução, em respeito à preocupação com o decurso de tempo e a celeridade. Importante mencionar, quanto ao tema, que a II Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários no Portal do Conselho da Justiça Federal, aprovou o Enunciado 110, que restou assim redigido: “A instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica não suspenderá a tramitação do processo de execução e do cumprimento de sentença em face dos executados originários.”155 Feito o registro, assim que for instaurado o incidente, o processo principal será suspenso, e o sócio ou a pessoa jurídica será citado para se manifestar e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias (art. 135). O Código de Processo Civil fala apenas em “manifestação” do sócio ou da pessoa jurídica, o que, na sua essência, é o

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Art. 134, § 3o: A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2o. Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. 152 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 99. 153 Ibidem. p. 97-98. 154 GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. In: DIDIER JR, Fredie. Coord. Novo CPC doutrina selecionada. v. 1: parte geral. - Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1141. 155 Disponível em . Acesso em 21/09/2018. 151

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mecanismo central de defesa que o demandado, se quiser, poderá apresentar.156 Essa manifestação em resposta à pretensão da desconsideração poderá conter todas alegações e argumentos pelos quais não seria possível desconsiderar a personalidade jurídica, bem como requerer as provas que reputar necessárias.157 Ao abordar o assunto, Luiz Alberto Reichelt elogia a possibilidade de o sócio ou a pessoa jurídica se manifestar previamente à decisão: Com essa providência, assegurou-se àquele que não figurava originalmente como parte exatamente aquilo que lhe seria devido antes de ser submetido aos graves efeitos da intervenção jurisdicional sobre o seu patrimônio, que é o respeito ao direito fundamental do contraditório.

Com a inovação do CPC/15 referente à necessidade de citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestação, ensejou a superação da jurisprudência adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que entendia pela desnecessidade de citação dos sócios, ou da pessoa jurídica, quando em vias de ser declarada a desconsideração da personalidade jurídica.158 Portanto, em suma, regularmente citado, poderá o sócio ou a pessoa jurídica, no prazo de 15 dias, apresentar defesa exclusivamente em relação à matéria que é objeto do incidente, juntando documentos e indicando as provas cabíveis. Ou seja, o objeto do incidente, em regra, é a aplicação da desconsideração em razão da existência do uso indevido da personalidade da pessoa jurídica, caberá ao requerido versar exclusivamente sobre o objeto do incidente. Quanto à instrução do incidente, Câmara alude que poderão ser produzidos todos os meios de prova típicos ou atípicos, tendo em vista que a decisão deverá se basear em cognição exauriente, ou seja, com base em juízo de certeza para afirmar se estão ou não presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica e, por conseguinte, permitir que se estenda a atividade executiva, se iniciada, ao patrimônio do sócio ou da sociedade.159

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GARCIA, Christian Vieira. Op. cit. p. 168-169. NERY, Nelson Jr; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit. p. 287. 158 In: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.729.554/SP. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma. Julgado em 08/05/2018. DJe: 06/06/2018. 159 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 100. 157

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Sob outro panorama, salienta-se que, quando o pedido vier acompanhado da inicial, a defesa será apresentada pelos réus com a contestação. De igual forma, as provas eventualmente requeridas pela parte que poderá ter a personalidade desconsiderada serão colhidas durante a instrução processual, devendo o juiz julgar o pedido de desconsideração com a sentença.160 Cumpre observar que, exceto se o pedido de desconsideração vier acompanhado da inicial ou se deferida tutela antecipada para inclusão do sócio ou da sociedade na demanda principal, estes somente poderão se manifestar nos autos do processo principal após decisão acolhendo o pedido de desconsideração, porque aquele que originalmente era terceiro passa a assumir a condição de parte na demanda principal, formando-se um litisconsórcio passivo facultativo unitário com o demandado original.161 Por fim, mas não menos significativo, o diploma processual prevê que, assim que encerrada a instrução, se necessária, o incidente de desconsideração será decidido por decisão interlocutória (art. 136).162 Logo, no próximo tópico serão abordados os recursos cabíveis para impugnar a decisão do pedido de desconsideração, seja ele realizado por meio de incidente processual, acompanhado da inicial ou diretamente no segundo grau. 3.2.4 Efeitos da decisão proferida no incidente A decisão que acolhe a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica, conforme lições de Alexandre Freitas Câmara, produz dois efeitos processuais: o primeiro deles seria a extensão da responsabilidade patrimonial a um devedor (o sócio ou, nos casos de desconsideração inversa, a sociedade); o segundo, a ineficácia, em relação ao requerente da desconsideração, de atos de alienação ou oneração de bens realizada pelo requerido, condicionada à presença dos demais requisitos para a configuração da fraude de execução.163 Como analisado acima, o incidente de desconsideração será resolvido, em regra, por decisão interlocutória que resolve o mérito. Nesse caso, se a decisão 160

THEODORO JR., Humberto. Op. cit. p. 524. REICHELT, Luiz Alberto. Op. cit. p. 247. 162 Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. 163 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 101. 161

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acolher o pedido de desconsideração, o sócio ou a sociedade que sofreu os efeitos da desconsideração não poderá opor embargos de terceiro, por força do disposto no art. 674, §2º, inc. III, do CPC164, nem qualquer outro meio de defesa para discutir a matéria que foi objeto do incidente de desconsideração. Não obstante, dado que a decisão proferida no incidente resolve matéria de mérito, estará imunizada pela coisa julgada material (art. 502165) e o “terceiro” assumirá a condição de parte na demanda principal, como responsável patrimonial.166 Quanto ao tema, Luiz Alberto Reichelt ensina: Uma vez esgotado o debate em torno do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, os limites em termos de preclusão impõem que a parte não possa renovar a discussão a respeito do tema, bem como proíbem o juiz de rever sua decisão ex officio em momento posterior ao proferido. A reconsideração da decisão tomada inicialmente no incidente em questão levaria ao surgimento de um desvio de rota para além do limite razoável na condução do processo de execução, reabrindo-se a atividade cognitiva de modo a inviabilizar, de maneira indevida, a realização do direito, escopo que dele se espera.167

No mesmo sentido, Christian Garcia Vieira afirma que a decisão de mérito que aprecia o incidente de desconsideração, transitada em julgado, sofre os efeitos da coisa julgada material.168 Na execução, por exemplo, o sócio ou a sociedade atingida pela desconsideração poderão reagir, mediante embargos à execução ou impugnação, somente quanto ao objeto da execução, tendo em vista que apenas o objeto do incidente restará superado.169 Ou seja, eventual decisão transitada em julgado no processo principal não atingirá aqueles que não integravam a demanda originalmente. Portanto, em razão de o trânsito em julgado não afetar terceiros que não integravam a demanda originariamente, não há o impedimento para que estes 164

Art. 674. Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro. § 2o Considera-se terceiro, para ajuizamento dos embargos: III - quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte; 165 Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso. 166 CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Op. cit. p. 247. 167 REICHELT, Luiz Alberto. Op. cit. p. 249. 168 VIEIRA, Christian Garcia. Op. cit. p. 180. 169 ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro: manual de execução. v. 4. [livro eletrônico]. – São Paulo: RT, 2016. p. 169.

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discutam a matéria que é objeto da demanda principal, se posteriormente forem incluídos nela diante da decisão proferida no incidente de desconsideração. Pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que é inviável submeter a pauta autora/credora ao rigor formal de propor nova ação com vistas a obtenção de um título executivo

em

face

daquele

que

se

pretende

responsabilizar

com

a

desconsideração170, é possível que, se tais pessoas – sócios ou administradores – não foram partes no processo principal (em que se formou o título), elas não ficam vinculadas à imutabilidade da decisão que formou o título, possibilitando a propositura de embargos à execução ou impugnação o cumprimento de sentença, se for o caso. Outra questão interessante envolve a possibilidade de haver condenação da parte sucumbente ao pagamento de despesas e honorários advocatícios no incidente de desconsideração. Considerando a reflexão sobre o custo do processo na atualidade, afinal, a decisão proferida no incidente de desconsideração deve arbitrar honorários sucumbenciais em desfavor do vencido? Para isso, em um primeiro momento, é importante observar que o artigo 85, § 1o, do CPC/15171, estabelece hipóteses, cujo rol é exemplificativo, em que é possível a fixação de honorários advocatícios. Analisando os dispositivos legais que autorizam a fixação de honorários e aqueles referentes ao incidente no diploma processual (artigos 133 a 137), observa-se que são silentes quanto à possibilidade de serem fixados honorários sucumbenciais na decisão que resolve o incidente. Ora, a sucumbência, como se sabe, é o principal elemento da relação de causalidade, que impõe os custos do processo a quem lhe deu causa, a quem o tornou necessário, independentemente de culpa. Portanto, o dano se configura pela existência de despesas suportadas pelas partes no decorrer do processo.172 Mesmo se tratando de um incidente processual, é imperioso notar que, especialmente ao terceiro que é citado para integrar o incidente, haverá custos relacionados com as despesas processuais e com o pagamento do trabalho do advogado.173 Por isso, na visão de Otávio Joaquim Rodrigues Filho, deve ser levado

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REICHELT, Luiz Alberto. Op. cit. p. 248. Art. 85, § 1o: São devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente. 172 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 320-321. 173 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Op. cit. p. 333. 171

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em consideração o trabalho desenvolvido no incidente, independentemente da decisão nele proferida. Acompanhando o mesmo entendimento, conforme analisado por André Pagani de Souza, ao abordar a figura da denunciação à lide, percebe-se da simples leitura do artigo 129 do CPC/15174 que o diploma processual possibilita, em hipóteses nas quais ocorre o encerramento do “processo” por meio de decisões que resolvem parcialmente o mérito, que o vencido seja condenado ao pagamento de honorários advocatícios ao advogado do vencedor.175 Logo, não seria plausível afirmar a taxatividade do rol do artigo 85 do CPC/15. André Vasconcelos Roque, em sentido contrário, defende que a decisão proferida no incidente de desconsideração não enseja condenação em honorários sucumbenciais, pois vai de encontro ao disposto no art. 85, § 1o, cuja redação não prevê a hipótese de condenação em honorários de advogado nos incidentes processuais. Para o jurista, “ainda que se trate de uma demanda incidental, a opção do legislador foi não contemplar o arbitramento de honorários sucumbenciais nos incidentes processuais.”176 Em termos jurisprudenciais, observamos que está gerando uma enorme insegurança jurídica, pois, a jurisprudência, ao tratar do tema, está divergindo quanto à possibilidade de serem fixados honorários sucumbenciais na decisão que resolve o incidente de desconsideração. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, em um julgado da 16ª Câmara Cível, decidiu favoravelmente à fixação de honorários advocatícios na decisão que resolve o incidente. O relator do acórdão sustentou que, ainda que se trate de um incidente, a improcedência do pedido de desconsideração autoriza a

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Art. 129. Se o denunciante for vencido na ação principal, o juiz passará ao julgamento da denunciação da lide. Parágrafo único. Se o denunciante for vencedor, a ação de denunciação não terá o seu pedido examinado, sem prejuízo da condenação do denunciante ao pagamento das verbas de sucumbência em favor do denunciado. 175 SOUZA, André Pagani de. Condenação de pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais ao advogado do vencedor no incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Disponível em . Acesso em 13/09/2018. 176 ROQUE, André Vasconcelos. In: GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Teoria geral do processo de conhecimento: comentários ao CPC 2015: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 586.

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fixação de honorários advocatícios em prol da parte adversa no incidente, a qual será excluída da lide, in verbis: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO QUANTO A PEDIDO DE AFASTAMENTO DA CONDENAÇÃO HONORÁRIA SUCUMBENCIAL EM INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Em caso de julgamento de improcedência do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por ausência dos requisitos legais, é cabível a fixação de honorários sucumbenciais em prol dos sócios ou administradores, que são citados para o feito e devem constituir advogado para sua defesa. Inexistência de outras omissões no julgado. Mantido o resultado do acórdão embargado. ACOLHERAM EM PARTE OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.177

Ainda no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em um julgamento da 12ª Câmara Cível, decidiu-se contrariamente ao arbitramento de honorários advocatícios na decisão do incidente de desconsideração. Conforme fundamentado pelo relator, tanto no capítulo atinente ao incidente de desconsideração, como na seção relativa aos honorários advocatícios, inexiste dispositivo legal que autorize a fixação de horários sucumbenciais na decisão que resolve o incidente. A ementa restou assim transcrita: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL. REQUISITOS. Recurso cujo desprovimento, no mérito, dispensa maiores considerações na medida em que, como se mostra cediço, a desconsideração da personalidade jurídica reclama a reunião de evidências de que houve desvio de finalidade da sociedade ou confusão patrimonial. Sem prova de tais manobras maliciosas, não se pode determinar a desconstituição da personalidade jurídica da executada. No caso em pauta, não se verificam presentes os requisitos autorizadores do redirecionamento da fase executiva ao sócio da executada/agravada, de sorte que, nesses termos, o desprovimento do recurso interposto é medida impositiva, por ora. De outro lado, no que concerne ao pedido de afastamento dos honorários de advogado fixados pelo Juízo de origem, razão assiste à parte recorrente porquanto, em se tratando de decisão que resolve o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, não há previsão de cabimento de honorários advocatícios, impondo-

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Embargos de Declaração n. 70077844462. Décima Sexta Câmara Cível. Des. Rel. Paulo Sérgio Scarparo. Julgado em 23/08/2018. DJe: 28/08/2018.

51 se a reforma da decisão agravada quanto ao particular. Agravo de instrumento parcialmente provido.178

Como se pode perceber da simples leitura das ementas citadas acima, observamos a existência de duas vertentes que poderiam ser divididas da seguinte forma: (i) aquela que defende a fixação de honorários advocatícios na decisão que resolve o incidente por ser decorrência lógica do princípio da causalidade e para reembolsar a parte pelas despesas processuais que antecipou com a contratação de advogado para se defender; e (ii) aquela que defende a taxatividade do rol do § 1º do artigo 85 e pela ausência de previsão legal para tanto. Com efeito, notamos também que a divergência jurisprudencial acerca deste tema não é exclusiva do Tribunal de Justiça gaúcho, sendo um problema enfrentado também nos demais tribunais locais. Torna-se necessário, portanto, que o Superior Tribunal de Justiça se posicione sobre o tema, com vistas a uniformizar o assunto, respeitando-se a disposição contida no artigo 926 do CPC/15179. Caso contrário, decisões com entendimentos completamente opostos abordando o mesmo tema continuarão a ser proferidas, cujo resultado vai de encontro à busca pela tão aclamada segurança jurídica. 3.2.5 Recursos cabíveis sobre a decisão proferida no incidente O Código de Processo Civil estabelece que, logo após a conclusão da instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória (art. 136). Em razão disso, a lei processual prevê expressamente o cabimento do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias que versarem sobre incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 1.015, inc. IV).180 Frisa-se, também, que caberá o agravo de instrumento da decisão que declara o incidente inadmissível (liminarmente ou após a manifestação do requerido).181

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento n. 70077125433. Décima Segunda Câmara Cível. Des. Rel. Umberto Guaspari Sudbrack. Julgado em 10/05/2018. DJe: 14/05/2018. 179 Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. 180 Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: IV incidente de desconsideração da personalidade jurídica; 181 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 100.

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É importante fazer a ressalva de que, na hipótese de o pedido de desconsideração acompanhar a petição inicial, não haverá a instauração de incidente específico. Nesse caso, se o pedido, por ventura, for julgado na sentença, o recurso adequado não será o agravo de instrumento, e sim a apelação (art.1.009),182 consoante lições de Fredie Didier Jr.183 Na mesma linha, os ensinamentos de Flávio Luiz Yarshell: “é preciso considerar a possibilidade de apreciação do pleito por sentença, não apenas no caso mais óbvio em que a desconsideração não for requerida sob a forma de incidente. Nesse caso, o recurso cabível será apenas o de apelação.”184 Visto isso, um terceiro ponto que merece atenção é se a decisão for proferida em segundo grau pelo relator, pois, nessa ocasião, o recurso a ser manejado será o agravo interno (art. 136, parágrafo único).185 Quanto a este ponto, Christian Garcia Vieira sugere que é necessária uma análise restrita e em conformidade do referido artigo com o art. 932, inc. VI, do CPC/15,186 porque o artigo 136 dá a entender que o pedido de desconsideração apresentado no segundo grau será sempre julgado de forma monocrática.187 O jurista observa que, se fosse admitido o julgamento inicial de forma colegiada, a parte interessada enfrentaria desnecessária situação de o recurso não devolver a apreciação da matéria para o mesmo órgão colegiado, com igual composição. Portanto, nesse caso, não haveria faculdade ao relator de submeter a decisão do incidente ao órgão colegiado.188

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Art. 1.009. Da sentença cabe apelação. § 1o As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões. § 2o Se as questões referidas no § 1o forem suscitadas em contrarrazões, o recorrente será intimado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se a respeito delas. § 3o O disposto no caput deste artigo aplica-se mesmo quando as questões mencionadas no art. 1.015 integrarem capítulo da sentença. 183 DIDIER JR., Fredie. Op. cit. p. 588. 184 YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Op. cit. p. 250. 185 Art. 136, parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. 186 Art. 932. Incumbe ao relator: VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o tribunal. 187 VIEIRA, Christian Garcia. Op. cit. p. 186. 188 Ibidem. p. 187.

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3.2.6 Rescindibilidade da decisão via ação rescisória? Preliminarmente, importa o seguinte questionamento: afinal, é cabível a ação rescisória para atacar a decisão que resolve o incidente de desconsideração? Partindo-se da premissa que a decisão que desconsidera a personalidade jurídica (ou nega essa pretensão) é decisão de mérito (ainda que definida por decisão interlocutória), conforme observa Otávio Joaquim Rodrigues Filho, deve-se questionar, portanto, sobre o cabimento da ação rescisória, a qual visa a desconstituir a coisa julgada. Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, ao tratar da ação rescisória, ensinam que o art. 966 do CPC/15189 elimina a dúvida que existia sob a égide do Código de 1973, na medida em que o atual diploma processual prevê a possibilidade de rescindir decisões de mérito. Não há, portanto, mais dúvida de que a decisão interlocutória que trata do mérito é rescindível – ao lado da sentença, da decisão monocrática do relator e do acórdão.190 Consoante aludem os autores, “o que interessa para que se configure a decisão definitiva suscetível de ação rescisória é o seu objeto e o seu trânsito em julgado.” 191 Assim, o que interessa é se a decisão toca ou não o mérito e se decide de forma definitiva.192 Segundo expõe Guilherme Calmon Nogueira da Gama, ao abordar as novidades introduzidas pelo CPC/2015, poderá ser objeto de ação rescisória a decisão que resolve o mérito do incidente de desconsideração, após o decurso de prazo para interposição do agravo de instrumento - ou após deixar de recorrer do

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Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV - ofender a coisa julgada; V - violar manifestamente norma jurídica; VI - for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória; VII - obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos. 190 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Ação rescisória: do juízo rescindente ao juízo rescisório. – São Paulo: RT, 2017. p. 92. 191 Ibidem. p. 93. 192 Ibidem. p. 93.

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julgamento do agravo de instrumento.193 Para o autor, a decisão proferida no incidente equipara-se a uma sentença, no que tange às questões relacionadas com a desconsideração da personalidade jurídica e que foram objeto de cognição exauriente.194 José Miguel Garcia Medina, no mesmo sentido, sustenta que, mesmo tramitando de forma incidental, considerando que a decisão que resolve o incidente é considerada uma decisão de mérito, incide, no caso, as disposições referentes à coisa julgada, autorizando, por conseguinte, a utilização da ação rescisória para rescindi-la, desde que presentes os requisitos do art. 966 do CPC/15.195 3.2.7 Fraude à execução Para analisar a figura da fraude à execução e relacioná-la com o incidente de desconsideração, é necessário, preliminarmente, destacar que um dos grandes problemas enfrentados, em regra nas demandas executivas, quando se busca a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é, notadamente, a ocultação patrimonial do sócio ou da pessoa jurídica.196 A fraude à execução é espécie do gênero fraude e é um instituto de direito processual que “gera a ineficácia relativa do ato de oneração ou alienação.”197 Percebe-se a ocorrência desse instituto geralmente quando já há ação em face do devedor, e, em razão disso, é considerado um vício muito mais grave que a fraude contra os credores, pois além de afetar os interesses dos credores, atinge também a autoridade do Estado concretizada no exercício jurisdicional.198 Fredie Didier Jr. leciona também no sentido de que a fraude à execução “é manobra do devedor que causa dano não apenas ao credor (como na fraude pauliana), mas também à atividade jurisdicional executiva.”199

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GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. Revista de Processo. vol. 262/2016. Dez/2016. p. 61-85. 194 Ibidem. p. 70. 195 MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 3. ed. – São Paulo: RT, 2017. p. 90. 196 YARSHELL, Flávio Luiz. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo [Coord.]. Op. cit. p. 250. 197 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. v. 2. 3. ed. – São Paulo: RT, 2017. p. 982. 198 Ibidem. p. 979. 199 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. 7. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Juspodivm, 2017. p. 388.

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Conforme referido acima, um dos efeitos da decisão que desconsidera a personalidade jurídica é tornar ineficaz o ato de alienação ou oneração de bens praticado pelo sócio (ou pela sociedade, no caso de desconsideração inversa) após sua citação para participar do incidente.200 Nesse sentido é o que estabelece o artigo 137 do CPC,201 que deve ser interpretado conjuntamente com o artigo 792, §3º.202 Assim, conforme ensina Alexandre Freitas Câmara, o momento para se considerar em fraude à execução não é propriamente o momento da instauração do incidente, mas sim o momento da citação do responsável.203 A partir desse momento, qualquer ato de alienação ou oneração de bens será tida como fraude à execução desde que presentes os requisitos estabelecidos no art. 792 do CPC. Para Gilberto Gomes Bruschi, ao estabelecer que o marco inicial para ocorrência da fraude à execução é a citação da sociedade ou do sócio (no caso de desconsideração inversa) na demanda principal, o Código de Processo Civil gera uma insegurança jurídica para os terceiros na aquisição de bens. O autor exemplifica isso aludindo que, normalmente, terão se passado anos entre a citação da sociedade na fase de conhecimento e a citação do sócio para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.204 Nessa linha, Fredie Didier Jr. explica que, antes de declarar a fraude à execução, incumbe ao juiz, em respeito ao prévio contraditório, conforme preceitua o artigo 792, §2º, do CPC,205 determinar a intimação do terceiro adquirente, garantindo-lhe a oportunidade de se manifestar e demonstrar sua boa-fé.206 André Vasconcelos Roque, contudo, critica a opção do legislador ao considerar a citação da parte originária como o marco temporal para caracterizar fraude à execução. Para o autor, ao antecipar o marco temporal, deve ser observado que,

200

CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 102. Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente. 202 Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: § 3o Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar. 203 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit. p. 102. 204 BRUSCHI, Gilberto Gomes. Fraudes patrimoniais e a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Processo Civil de 2015. 1. ed. – São Paulo: RT, 2016. 205 Art. 792. § 2o No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem. 206 DIDIER JR., Fredie et al. Op. cit. p. 389-390. 201

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estando o terceiro adquirente de boa-fé, não poderá ser reconhecida a fraude à execução sob pena de comprometimento da segurança jurídica.207

207

ROQUE, André Vasconcelos. In: GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Op. cit. p. 588.

57

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do presente trabalho, objetivamos expor, através de análise doutrinária e jurisprudencial, como a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada pelos Órgãos julgadores desde o surgimento no direito material, até a criação do novo mecanismo pela Lei 13.105/2015. O Código de Processo Civil de 2015 instituiu um incidente processual cognitivo para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, preenchendo uma lacuna deixada pelo legislador infraconstitucional na vigência do CPC/73. Nesse contexto, tendo em vista todas as considerações e pesquisas elaboradas neste trabalho, destaco algumas conclusões. Um dos efeitos da personificação da pessoa jurídica, em relação aos membros que a integram, é o reconhecimento de autonomia patrimonial. Isto é, os sócios ou administradores, em regra, não devem responder com o seu patrimônio pessoal por eventuais dívidas contraídas pela sociedade, na medida em que esta possui responsabilidade patrimonial própria, que é consequência da autonomia existente entre os bens da sociedade e dos sócios que a integram. Ocorre que, com o passar dos anos, verificou-se que essa autonomia patrimonial era utilizada para acobertar a prática de atos contrários ao objeto social da pessoa jurídica em prejuízo de terceiros, em regra credores. Por isso, era necessária a criação de um instrumento que fosse apto a coibir a ocorrência desses atos. Nesse contexto é que surgiu a disregard doctrine. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica cresceu nos países de tradição common law, sendo um dos trabalhos pioneiros o do alemão Rolf Serick. No Brasil, a teoria se desenvolveu a partir da década de 60 e foi sistematizada primeiramente por Rubens Requião, e posteriormente aprimorada com os estudos de Fábio Konder Comparato e José Lamartine Corrêa de Oliveira. Em termos legislativos, o direito material, através da criação de diversas leis específicas, trouxe requisitos distintos para aplicação da teoria. Com isso, tangenciando o estudo primordialmente nos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, vimos que a teoria da desconsideração se divide em duas importantes categorias, conceituadas por Fábio Ulhoa Coelho como a teoria menor e a teoria maior da desconsideração. Para a aplicação da teoria menor,

58

representada pelo artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, bastaria a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, não se exigindo a demonstração da existência de abuso de direito, fraude ou confusão patrimonial, requisitos definidos pela teoria maior. Ademais, a teoria menor é adotada excepcionalmente também no âmbito do Direito Ambiental (art. 4º, Lei 9.605/98). A teoria maior, por sua vez, foi recepcionada pelo Código Civil, que trouxe requisitos mais próximos com a evolução doutrinária da teoria da desconsideração, os quais são, em suma, o abuso de direito, a fraude e a confusão patrimonial, conforme disposto art. 50 do Código Civil. Assim, para se proceder com a desconsideração, é imprescindível comprovar a existência dos requisitos previstos na teoria maior subjetiva ou objetiva, pois, mesmo sendo utilizada excepcionalmente, se constitui a regra geral no ordenamento jurídico brasileiro. Isto é, grande parte da doutrina considera a teoria menor uma construção equivocada da disregard doctrine. A desconsideração da personalidade jurídica é um assunto que sempre suscita grandes debates, visto que na vigência do CPC/73 não havia um regramento específico disciplinando o assunto, o que gerava, por conseguinte, debates na doutrina e inúmeras decisões conflitantes na jurisprudência ante a ausência de normas processuais que regulamentassem o assunto. Logo, um incidente como meio para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é recepcionado positivamente, pois aborda, em linhas gerais, o modo de aplicação do instituto, dado que, atualmente, tornou-se desnecessária a propositura de uma ação autônoma e coibiu-se a aplicação da desconsideração de ofício pelo magistrado sem prévio contraditório da parte contrária. Além da desconsideração da personalidade jurídica na forma tradicional, utilizada para coibir a prática de atos diversos à finalidade da pessoa jurídica por seus sócios

ou

administradores,

a

Lei

13.105/2015

recepcionou

a

figura

da

desconsideração inversa que já era utilizada no Brasil com respaldo em julgados declarando a existência dessa modalidade e com o desenvolvimento do instituto com debates doutrinários. Ao estabelecer nos artigos 133 a 137 a criação de um incidente processual que prevê a citação prévia dos sócios ou administradores da pessoa jurídica para se manifestar, o legislador buscou, ao mesmo tempo, assegurar que garantias

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constitucionais, como o contraditório, a ampla defesa e a segurança jurídica não deixem de ser observadas. A natureza jurídica do incidente de desconsideração mostrou-se um dos temas que mais geram discussões na doutrina. Parte da doutrina acredita que possui natureza jurídica de demanda, enquanto a outra parte defende que possui natureza jurídica de incidente processual. Vimos que o incidente de desconsideração é uma nova modalidade de intervenção de terceiros e, ainda que não altere o objeto da demanda, pode ampliar a relação processual originária (quando o pedido for realizado após

a

petição

inicial).

Embora

seja

caracterizado

como

“incidente

de

desconsideração”, acompanhamos parte da doutrina que entende se tratar de uma demanda incidental, pois, além da necessidade de citação do sócio para responder ao pedido de desconsideração, o pedido de desconsideração deverá ser submetido a um exame de admissibilidade, em que o Órgão julgador analisará se os requisitos previstos na legislação específica do direito material estão presentes. Além disso, a causa de pedir é diversa e há necessidade de produção probatória, devendo seguir as diretrizes de todo processo, inclusive com a formação de coisa julgada material e possibilidade de a decisão sujeitar-se à ação rescisória. Vimos que o incidente de desconsideração pode ser instaurado em qualquer fase do processo, seja na fase de conhecimento ou em demandas executivas (execuções fundadas em título judicial ou extrajudicial), como dispõe o artigo 134 do CPC/15.

Embora

pareça

estranho

permitir

a

aplicação

do

incidente

de

desconsideração de forma cautelar em qualquer fase do processo de conhecimento, isto é, enquanto não há a formação de um título executivo judicial que autorize a responsabilização primária e/ou secundária da pessoa jurídica e do sócio ou administrador, a instauração do incidente nessa fase representa um meio para garantir a efetividade de um futuro pronunciamento jurisdicional. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica deve ser mecanismo excepcional para punir aquele sócio/administrador da pessoa jurídica, ou a própria pessoa jurídica, que praticarem condutas contrárias ao objetivo de sua criação por meio do véu da sociedade empresária. A

legitimidade

ativa

para

pleitear

a

instauração

do

incidente

de

desconsideração da personalidade jurídica é das partes e do Ministério Público (artigo 133 do CPC/15). Isso quer dizer que a desconsideração da personalidade jurídica não

60

poderá ser aplicada de ofício pelo magistrado independentemente da natureza da causa. Trata-se de previsão que resguarda especialmente a imparcialidade do juiz e o princípio da demanda e da inércia jurisdicional. Pode-se dividir os efeitos gerados pela decisão que resolve o incidente de desconsideração em duas hipóteses: quando houver o acolhimento do pedido e quando houver a rejeição do pedido. Na primeira hipótese, o primeiro efeito gerado é a inclusão do sócio ou administrador da sociedade (desconsideração tradicional) ou da pessoa jurídica (desconsideração inversa) na demanda principal, ou seja, o terceiro assumirá a condição de parte no processo originário com a extensão da responsabilidade patrimonial. O segundo efeito gerado é de considerar qualquer ato que os “terceiros” (atingidos pela desconsideração) tenham praticado em fraude à execução (art. 792 do CPC/15), de modo que esse ato será ineficaz em relação ao requerente da desconsideração da personalidade jurídica. Um ponto curioso aparece quanto ao marco temporal para se caracterizar a fraude à execução. Isso porque o Código de Processo Civil de 2015 antecipou o marco temporal para a citação da parte originária (art. 792, §3º, CPC/15). Ocorre que, em razão dessa antecipação, pode-se haver o comprometimento da segurança jurídica do terceiro adquirente de boa-fé, dado que este provavelmente não tinha ciência da existência do incidente de desconsideração e da possibilidade de a decisão proferida gerar efeitos retroativos. De qualquer forma, nos parece que a antecipação do marco temporal é uma tentativa do legislador de privilegiar a efetividade da jurisdição e, ao mesmo tempo, evitar o esvaziamento patrimonial do devedor. Nessa linha de raciocínio, o terceiro efeito gerado é a formação da coisa julgada. Na segunda hipótese, isto é, quando houver a rejeição do pedido para desconsideração da personalidade jurídica, não poderá ser instaurado outro incidente de desconsideração baseado nos mesmos fundamentos do anterior, sob pena de violação da coisa julgada. De qualquer forma, a decisão proferida no incidente de desconsideração estará sujeita, em regra, ao recurso de agravo de instrumento. Ademais, quando o pedido de desconsideração vier acompanhado da petição inicial, o recurso cabível será, em regra, o de apelação, pois normalmente será apreciado na sentença juntamente dos demais pedidos. Nos casos de incidente instaurado originalmente no tribunal, deverá

61

esse incidente ser apreciado por decisão monocrática pelo relator, sendo cabível agravo interno contra essa decisão (art. 932, inciso IV, do CPC/15). Na busca de um processo que viabilize às partes o respeito às normas fundamentais do processo civil e aos princípios constitucionais, observando sempre os requisitos estabelecidos em cada ramo do direito material, a criação do incidente de desconsideração surge como uma ferramenta processual importante para tentar amenizar o problema enfrentado na aplicação da desconsideração sob a égide do CPC/73. Ao estabelecer um procedimento único e obrigatório, isto é, que deve ser respeitado independentemente da matéria discutida na demanda, o Código de Processo Civil de 2015 dá um grande passo para garantir o direito ao contraditório e à ampla defesa para o “terceiro” que se pretende responsabilizar patrimonialmente, seja o sócio ou administrador da pessoa jurídica (no caso de desconsideração tradicional), seja a própria pessoa jurídica (desconsideração inversa). De qualquer forma, a análise dos aspectos processuais relativos ao incidente de desconsideração revela uma possibilidade imensa de situações nas quais o mecanismo é aplicado em cada ramo do direito material. As soluções para as mais variadas hipóteses provavelmente ficarão sob responsabilidade de pacificação pelo Superior Tribunal de Justiça. Ainda que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica seja um mecanismo excepcional e temporário, é inegável as vantagens que acompanham a sua positivação no atual Código de Processo Civil. Devemos lembrar, como observa Zulmar Duarte, que o processo civil não é pedra no meio do caminho para a efetivação da atividade jurisdicional, e sim um dos meios para uma correta e legítima tutela jurisdicional.208

208

DUARTE, Zulmar. Fazer rápido e bem, bem ou bem rápido. Disponível em . Acesso em 19/09/2018.

62

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