Alma, Magia E Sedução

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ALMA MAGIA E SEDUÇÃO

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A MALDIÇÃO E A VIRTUDE

RAYOM RA

[ Direitos Autorais 49415 ]

[email protected] arcadeouro.blogspot.com

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Esta é uma das muitas lendas contadas de Sertório: trovador, músico, e cantor, herói e meio santo. Num lugar qualquer do passado Sertório viajava no dorso de Firmamento, tinhoso e inteligente animal negro, salpicado de manchas brancas pelo corpo, com um perfeito losango sobre a testa. Dizia-se que o cavalo só faltava falar; sua presença era marcante em episódios vividos por Sertório, tendo-o salvo da morte certa em várias oportunidades. Segundo ainda relatavam, além de magnífico de saúde e aparência, era de alma sensível, trotando com graça em medidos compassos quando seu dono, artista virtuoso, soltava-se ao sabor da arte. Sertório sabia quando Firmamento pedia. Ele empacava de tal jeito que nada o tirava do lugar, somente a voz poética e melodiosa do cantor. Então se tornava leve e dócil. Terminado mais um retiro num mosteiro, cujo principal, monge e amigo, apreciavao e à sua arte, Sertório resolveu retomar os caminhos do mundo semeando o que trazia e buscando o que não possuía. Eram frequentes suas passagens e períodos de reclusão no citado mosteiro. Insinuavam que Sertório, se por um lado aprendia as perfeitas regras do jejum e ascetismo, mortificando-se dias a fio a fim de se purificar e matar as tentações que o mundo lhe produzia, por outro lado, ensinava aos eruditos as artes da invocação e práticas da magia. Todavia, ninguém jamais conseguira ter provas deste pacto. O silêncio entre os monges era sua lei e quando perguntados, eles, em resposta, somente sorriam. A viola, amiga inseparável do cantor, magnífica e assaz ambicionada, repousava agora às suas costas. Contavam que uma princesa, quase morta de paixão pelo belo poeta, houvera-o presenteado, que a viola, comprada de um mercador por muito ouro, pertencera a um músico que a vendera momentos antes de sua morte. A ambição por ela era tamanha que teria levado três ladrões à morte em ocasiões diferentes. Afirmavam-na construída por um duende a mando de uma ninfa da música que a encantara e a jogara ao mundo. De fato, sua beleza era incomparável, a vibração de suas cordas, perfeitas. Ninguém jamais conseguira descrevê-la com precisão. Somente sabiam-na construída de madeira leve e desconhecida, com braço da mesma cepa terminado numa flor trilobada. Muitos juravam que sob os ágeis dedos de Sertório a viola criava vida e cores, a flor se abria mais soltando poeira luminosa e prateada, e muitas ninfas, em véus coloridos, vinham rodeá-lo a dançar extasiadas. Mas quanto a isso jamais juravam, pois não podiam ter prova alguma, e Sertório, quando inquirido a respeito não respondia, antes fazia uma trova e os deixava curiosos a pensar sobre ela. Sertório, como não tivesse uma definição de qual trilha seguir ou qual local atingir, puxou Firmamento para a esquerda e penetrou pelo bosque. A tarde dentro em pouco se apagaria e o moço queria encontrar um lugar onde dormir. Quanto ao frio da noite, estaria protegido porque trazia um cobertor espesso de lã de carneiro dobrado sobre a anca do animal. Mas quanto ao alimento, teria sorte se encontrasse alguma fruteira, pois mesmo sem se abster da carne não matava para comer.

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Assim, mediante esta imediata preocupação, não tinha alento e nem inspiração para o canto, embora apreciasse as graciosas formas das plantas, as flores silvestres, os agradáveis zumbidos dos insetos e os estridentes cantos dos pássaros. E quanto mais Firmamento se enfiava por arbustos e capins altos abrindo passagens e alas, ou entre árvores galhadas dos arvoredos, o bosque se abria e se oferecia na sua virginal singularidade, dando-lhe as boas vindas e acolhimento, talvez esperando por uma recompensa musicada do cantor. Mas Sertório não cantava. Persistia de cerviz altiva e olhar percuciente, denotando que de todas as formas procurava. Em seguidos momentos a cerviz dobrava-se por que um galho mais alto obstava sua altivez. Porém, ultrapassado o obstáculo, ei-lo de novo retomando o prumo da postura para, mais adiante, submeter-se outra vez. Nesta estranha dança, às vezes interrompida por um frear de Firmamento, uma reorientação do cavaleiro ou uma retomada de direção, nosso personagem se interiorizava cada vez mais, embrenhando-se em gargantas verdes e profundas, nada vendo de aproveitável nem satisfazendo a fome que o apertava. Quando o manto noturno começava a descer e já se estendia preguiçosamente sobre todas as coisas, as árvores deixavam refletir em suas folhas uma coloração insegura, as aves e bichos quase silenciavam se acolhendo mutuamente, produzindo toadas melancólicas e já sonolentas, e trechos do céu que dali se podia descortinar mostravam nuvens acinzentadas, Sertório viu algo por entre as ramagens, lá adiante: um filete de fumaça. Esperançado, pressionou Firmamento com os calcanhares e se encaminhou para o local, desvencilhando-se dos ramos e galhos com maior energia, usando braços e mãos. O filete de fumaça fez seu olhar escorregar para uma chaminé de tijolos; daí para um telhado semi encoberto por folhas e galhos. Era, sem dúvida, uma casa, escondida bem no interior do bosque - que sorte ele tivera! Aproximando-se, pôde constatar sua aparência torta, velha e mal construída, de paredes em tijolos disformes, telhado em palhas secas soltando pedaços, tendo ao fundo, não muito distante, um barranco irregular. Uma cerca de paus enviesados, amarrados por cipós e fibras, e um portão solto encostado numa das estacas da cerca, constituíam os limites frontais e laterais da propriedade e respectiva entrada, naquela vastidão de lugares de ninguém. Era nada acolhedor o seu aspecto; de causar certo calafrio e afastar as pretensões dos passantes. Sertório, não obstante, sem carregar temores na alma, não tendo alternativa e vendo-a como a melhor solução para os seus problemas imediatos, apeou diante do portão e chamou: - Ó de casa! Nenhuma resposta, o silêncio era absoluto, a imobilidade total; somente a fumaça ao alto mexia-se, mesmo assim se esticando com lentidão. Resolvido, ultrapassou o umbral e chegou ao limiar da porta fechada, a dois passos dela. - Ó de casa! - Vai embora, estranho, leva contigo tua ousadia! Não queiras tornar-te também amaldiçoado!

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Uma voz esganiçada e esquisita falou-lhe às costas. Ele se virou rapidamente surpreso com o que ouvia e mais ainda com o que via. Era um anão, trazendo às mãos um arco retesado e uma flecha apontada, tendo às costas em tamanho natural, porém desproporcional à sua altura, que seria talvez de um metro e trinta, uma aldrava de couro carregada de outras flechas. Sertório já ouvira falar dele. Descreviam-no como lenda, mas via neste instante que ele realmente existia. Diziam teria ele sido bufão, que havia tomado à poção mágica da longevidade, teria duzentos anos de idade e resolvera se encerrar na solidão. Afirmavam que não escolhera tal isolamento, mas fora forçado a fazê-lo, por que ao ingerir a poção mágica acometera-o uma maldição. Essa maldição seria terrível e acometeria também a todos que dormissem debaixo do mesmo teto onde ele dormia. Alguns confirmavam tê-lo encontrado pela floresta, ou à sua casa, mas, temerosos, fugiam espavoridos. Outros, mais corajosos, chegavam a conversar com ele, dando-lhe notícias do mundo e ouvindo trechos de sua vida, porém jamais passavam a noite em sua companhia. Era feio o homenzinho: magro, enrugado, de olhos grandes e caídos, nariz adunco e queixo comprido, e além de tudo com ombros meio arcados. Sertório, passada a surpresa, sorriu polidamente, levando a mão ao chapéu e o saudando reverentemente: - Saudações, senhor bufão, tenho ouvido falar de ti, muito assustadoramente, aliás, julgando-te uma lenda. Todavia, eis-te aqui diante de meus olhos, falando-me e advertindo-me. Permitas que me apresente: sou Sertório, trovador, cantor, e músico, e me encontro perdido neste bosque encantador, hoje desafortunado para mim, cansado e faminto. - Sertório, o trovador? – surpreendeu-se o bufão, piscando com cara atoleimada, folgando e baixando o arco. - Vejo que ouviste falar de minha humilde pessoa. Então não estás tão afastado do mundo quanto dizem. És mesmo, Aldegundes, o bufão amaldiçoado? - Sim, sou Aldegundes, o bufão amaldiçoado, - confirmou com acrimônia, - teus feitos já chegaram aos meus ouvidos. Contam que além de amigo das artes és valente e possuidor de grande nobreza de espírito, é verdade? - Exageros, senhor bufão. Sou somente um homem de sensibilidade que busca pela beleza e ama a verdade. Aldegundes olhou-o com maior admiração, da cabeça aos pés, notando o seu belo e principesco porte, invejando-o. - Vejo, quanto ao aspecto exterior, que não exageraram ao descrever-te e se fores realmente tão nobre quanto dizem, poderás ajudar-me. - Referes-te à maldição? - Teme-a, trovador? - Sertório somente sorriu, mas tão intensamente que esse encantador sorriso inundou ao feio bufão de certeza - Tens coragem de dormir sob o meu teto? – insistiu Aldegundes. Sertório, ainda sorrindo, arcou-se em reverência, apontando para a direção da porta. Ele, satisfeito, encaminhou-se e adentrou. Sertório o seguiu. `A mesa tosca, pisando o chão de terra batida, sentados sobre tocos de árvores, eles jantaram. O guisado de coelho estava delicioso e as frutas ótimas. Nesta sala em que permanecera desde que entrara, Sertório pode notar a simplicidade dela; que toda a mobília e objetos eram velhíssimos e mal acabados, tortos como era a casa, certamente feitos pelas mãos do próprio truão ou por ele remendados e que à luz da

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candeia as moventes sombras lembravam coisas fantasmagóricas a querer possuir tentáculos e abraçar. Terminado o silencioso repasto, Sertório solicitou ao dono da casa que lhe deixasse trazer Firmamento para os limites do quintal onde, sob a proteção de uma parede, poderia passar melhor a noite. Aldegundes concordou, mandando que o levasse para junto do forno de barro onde fazia assados, debaixo de um alpendre lá no fundo. Lá, encontraria também um saco contendo pela metade grãos de milho, que usava para dar de comer às galinhas e atrair outras aves e caçá-las, além de um balde d’água que poderia a ambos utilizá-los. Sertório assim fez. Firmamento quase nada comeu do milho, por que pastara o suficiente do lado de fora, porém bebeu água com disposição. Sertório surpreendia-se com esta solicitude inicial do bufão e se enchia de curiosidade pelo que o aguardava, precisando, porém, ficar atento e de olhos bem abertos. Tendo retornado e recolocado a candeia sobre a mesa, pôde notar com surpresa pela bruxuleante e fraca luz da vela de cera, que a fisionomia do pequeno homem se transformara. Ele estava agora carrancudo, de lábios apertados, olhando-o fixamente. Sertório sentou-se e o experimentou: - É verdade, senhor bufão, que tomaste uma poção mágica que te faz viver com o mesmo aspecto há duzentos anos? - Cento e cinqüenta, mas envelheci também. - Ainda assim é muito tempo para um mortal comum. Dizem que a maldição te foi trazida ao teres ingerido tal poção, é também verdade este fato? - Senhor Sertório - disse com especial ênfase naquela desagradável voz - queres certamente ouvir sobre toda a minha história, já que levantei a possibilidade de poderes me ajudar? - Se merecer de ti tamanha confidência, sim! - E ajudar-me-ia de fato se te dissesse que necessito destruir a maldição e correrias todos os riscos junto comigo? - Somente poderei afirmar-te, após ter ouvido tua história, senhor bufão, antes não! - Mas se a ouvisses e não te dispusesses a ajudar-me? - Iria embora e calar-me-ia para sempre, jamais dizendo a alguém uma única palavra sobre o assunto enquanto tu vivesses. - Humm... - resmungou o bufão, levando a mão ao queixo, levantando uma sobrancelha e pregando o olhar nervoso no plácido e claro rosto do belo mancebo - e que provas me dás de seres de fato Sertório de quem tantos falam? Sertório sorriu. Segurando a presilha em diagonal ao tórax, trazendo a viola adiante e acariciando suas cordas, dedilhou-as ensaiando qualquer coisa e começou a cantar. A voz perfeita e melodiosa do cantor encheu o ar, o lirismo dos seus versos se derramou melifluamente, as notas maravilhosas da viola vibraram mágicas transformando todo o ambiente. Ao término, Aldegundes já havia perdido algo da carranca, mas não estava inebriado como tantos, após ouvirem-no. Havia nele tanta rudeza de espírito quanto havia nos objetos e naquela casa inteira. - Prometes, então, que me ajudando ou não nada revelarás de minha história? - Prometo, enquanto tu viveres! – reafirmou Sertório.

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O bufão agitou-se no banco, jogou nervosamente as mãos à frente, unindo os dedos e vincando a testa, concentrando-se no que ia contar. Sertório, como estava permaneceu, calmo, porém atento, disposto a ouvir a verdade de todas as coisas que lhe chegavam aos ouvidos através dos homens. - É um alívio, senhor trovador, depois de tantos anos ter alguém digno de confiança diante de mim, a escutar minha história. Há mais de um século estou enterrado vivo nesta casa, neste lugar solitário, sem uma companhia humana, sem um calor igual. Desde o maldito dia em que tomei a poção, julgando estar aprisionando a fortuna, acabei prisioneiro de meu desventurado desejo. Saibas, senhor, que a maldição de fato existe, sendo maligna unicamente a mim. Não te preocupes, portanto, pois não te acompanharás quando daqui saíres. Todavia, somente alguém como tu, creio eu, disposto a ajudar-me, poderia, em verdade, livrar-me dela. O começo de tudo? Quase me esqueço. Teria trinta e sete anos de idade, talvez quarenta, era o bufão preferido do rei, tendo me tornado tal depois de comprado de um circo onde era saltimbanco. Meus pais, viajantes por índole, naturais de outro país, tendo observado pelo meu físico e feiúra que outra coisa melhor eu não poderia ser, venderam-me ao referido circo por um punhado de moedas quando eu atingia a idade de catorze anos. O dono do circo adestrou-me por alguns anos, como se adestra a um animal doméstico a fim de que faça tudo aquilo o que se queira. O rei, homem inconstante, por vezes divertido, por vezes violento, principalmente quando bêbado, exigia-me quase sempre ao seu lado e em todas as suas festas e recepções. Nessas reuniões, enquanto os fantasmas do vinho não tinham ainda se soltado, ele ria e gargalhava com minhas anedotas maliciosas e comicidade. Porém, quando o vinho acordava as sombras de seu mundo infernal, ele me espancava e me dava pontapés. Sua filha única, a princesa, bela e também cruel, por motivos que desconhecia, não perdia a menor oportunidade de me humilhar e maltratar, despertando com isso sentimento recíproco de rancor em meu coração. Entretanto, que poderia eu, pobre e escravizado bufão, fazer contra o rei e a princesa? Quanto à rainha, pouco ligava ao que se passava em redor, estando mais preocupada com seus encontros amorosos, não tomando conhecimento de minha insignificante vida. Aquela situação foi se tornando verdadeiramente insuportável. Com o tempo, a princesa não se contentava mais em humilhar-me, espancava-me também atirando-me coisas onde me visse, dizendo odiar minha feiúra. Um ódio quase gritante, em contrapartida, crescia cada vez mais em mim e a custo era abafado. Isto se agravou mais no dia em que o rei, numa de suas escandalosas festas, obrigou-me a lamber do chão o vinho que derramara. Naquele momento, jurei vingar-me dele, da princesa e de todos os que riam das humilhações a que me submetiam. Havia fora da cidade um bruxo, velho e solitário, que, segundo contavam, fazia bruxarias sob encomenda. Aquele que fosse visto em sua companhia, ou acusado de freqüentar sua casa, seria desprezado e apedrejado. Havia, em relação ao bruxo, um temor maior do que escrúpulos. Se tanto o temiam era porque o homem seria poderoso, pensei eu, e mergulhado numa torrente de revolta, sedento de vingança, resolvi ir visitá-lo, saindo à noite, às escondidas, com grande risco, andando pela

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estrada e depois pelos caminhos escuros. Ruminava os planos de vingança, açulando mais e mais um ódio que se agigantava. Diziam que o bruxo encantava, fazia poções e enfeitiçava corações e eu desejava encomendar algo forte, que os fizesse humilhar-se diante de mim. Pensava também em envenená-los de uma só vez, mas assim não iria saborear o prazer de vê-los sofrer. Ademais, tinha outra idéia em mente: a idéia da riqueza e opulência. Sendo rico e poderoso, aqueles que zombavam de minha condição iriam respeitar-me e bajular-me. Mas quanto ao rei e a princesa? Esses eram os meus donos e patrões. Se me tornasse rico, nada em verdade me pertenceria senão a eles. Sim, era isso, antes de tudo a alforria, a liberdade, depois a riqueza e a vingança. E após, matá-los-ia a ambos de uma só vez? Tais eram meus pensamentos, meus desejos de assim realizá-los, sem ao menos saber que tipo de bruxaria conseguiria encomendar. Chegando a casa do bruxo, bati à porta. A noite estava fria, penetrada de espessa névoa. Uma voz rouca e abafada ordenou-me que entrasse. Sob a fraca luz de vela, a lúgubre e desarrumada casa, com objetos de cera e vasilhames espalhados por todos os lados, exalando muitos cheiros, causava-me calafrios. O fogo da lareira extinguiase. A temperatura ali dentro era quase tão igual quanto de fora. Não o vendo parei naquela sala, mas a mesma voz chamou-me do quarto, mandando-me que lhe trouxesse a candeia de sobre a mesa. Assim fiz e fui encontrá-lo deitado, tremendo de frio. Era um velho realmente, e pelo seu aspecto estaria doente. Sem a menor formalidade perguntou-me o que eu queria. Estando ávido por uma confidência, contei-lhe tudo sobre minha vida e sobre os meus planos. Afirmei-lhe, convictamente, estar disposto a qualquer coisa conquanto obtivesse liberdade e poder. Ao término, ele me olhava com grande curiosidade, estudando-me atentamente, deixando-me embaraçado e temeroso. Finalmente falou, dizendo que me poderia dar o que eu desejava, mas o preço seria alto: metade do ouro que eu ganharia. Intrigado, perguntei-lhe por que precisaria de tanto ouro já que por toda a vida, ao que parecia, vivera pobre. Ele revelou-me então que estando para morrer, desejava ser enterrado no cemitério dos bruxos, longe dali, onde a fraternidade dos malignos se reúne em conciliábulos e onde só os espíritos que adquiriram em vida o direito a uma sepultura no lugar, podem freqüentar e fazer parte. E isso custaria muito ouro! Como não tivesse escolha se desejasse levar adiante meus planos de vingança, aceitei o trato. Ele, imediatamente, me pediu que o amparasse e o levasse para a sala. Em lá chegando, apoiou-se na mesa e apontou para a lareira, mandando-me que a empurrasse. Com surpresa, via-a escorregar e se abrir, dando lugar a uma passagem secreta. De volta à mesa, amparei-o entrando com ele através da passagem. Era-me difícil carregá-lo porque sendo franzino e de baixa estatura, não conseguia grandes resultados neste tipo de auxílio. Descendo alguns degraus, chegamos a um porão onde o bruxo guardava em urnas e prateleiras todos os apetrechos e ingredientes secretos de magia negra e onde existia um caldeirão. Fazendo-me de seu auxiliar, mandou-me colocar sob o caldeirão rachas da madeira amontoada a um canto, ensinando-me como fazer o fogo. Em

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seguida, foi-me pedindo os objetos e os ingredientes de que necessitava. Sempre que eu estendia-lhe alguma coisa ele fechava os olhos e recitava uma fórmula mágica, soltando sons guturais, gritando e rindo, às vezes olhando para o alto da escada onde a porta permanecia aberta. Isso me causava arrepios e grande medo, mas assim mesmo eu continuava. Em certo momento ele parou tudo, ficando a pensar em silêncio. Depois, com cara zangada, apontou para um grosso e enorme livro negro que descansava junto à parede sobre uma base de madeira, fazendo-me sinal para que o levasse até ali. Abrindo as largas e compridas laudas com cuidado e esforço, correndo o enrugado dedo sobre figuras e textos de uma escrita ininteligível para mim, certamente codificada, ele grunhiu de satisfação ao encontrar o que buscava. Após ler tudo com atenção e memorizar o que precisava, mandou-me que o levasse de volta junto ao caldeirão. Quando o caldeirão fervia, ele jogou os ingredientes e invocou os espíritos do mal. Depois, com uma concha, cujo cabo era um osso humano, retirou a quantidade julgada necessária daquela poção depositando-a num recipiente que eu levaria. Enquanto fazia isso, instrui-me como usá-la, explicando-me que bastariam três gotas numa taça de vinho a fim de que tornasse qualquer pessoa submissa e escrava aos meus desejos. Esse poder de submissão era total, porém temporário. Eu deveria aproveitar esses momentos para exigir da vítima tudo o que quisesse por que ela estaria sob o encantamento da poção. Porém, tendo a vítima dormido e depois que acordasse, ela estaria consciente de todos os seus atos, embora não tivesse ainda forças para voltar atrás, mesmo contrariada. Para novas e diferentes exigências seria aconselhável darlhe novamente da poção, mas correria o risco dela recusar-se a bebê-la. A poção tinha sido preparada com os únicos ingredientes nesse teor que ele agora possuía, por isso era preciosa e insubstituível. Antes de entregá-la, mandou-me encher duas taças de um vinho que ali havia a fim de que selássemos o pacto. Tendo-o tomado, observado antes e inutilmente que ele o tomasse primeiro, o bruxo riu estranhamente informando-me que bebêramos veneno. O veneno, entretanto, levaria exatamente sete dias para fazer efeito, o prazo máximo de que eu dispunha para realizar o plano e trazer-lhe o pagamento. Se falhasse, ou o ouro fosse insuficiente para o seu intento, ele não me daria o antídoto e eu morreria. Da mesma forma, morreria se tentasse enganá-lo na partilha por que ele falava a linguagem dos corvos e um deles me vigiaria dia e noite. Inútil também seria procurar outra forma de anular o efeito do veneno: somente ele conhecia sua natureza. Após ter sido novamente obrigado a ajudá-lo a locomover-se de volta ao quarto, deixeio, voltando apavorado para o castelo, temendo que me visem, levando comigo a poção do encantamento. Naquela noite não consegui dormir e muito mal na outra; somente pensando no que me acontecera. Na madrugada do terceiro dia, em meu pequeno quarto, - mais um cubículo do que outra coisa qualquer numa das torres menores no fundo do castelo, subi num velho baú encostado à parede e me apoiei no frio peitoril de pedra da janela, a fim de olhar a restrita paisagem. Apesar da escuridão e fraca luz da lua, conseguia divisar entre sombras e contornos um pedaço da rua lá embaixo, úmida pelo sereno. Mas não eram essas poucas coisas que eu discernia que me prendiam a atenção. Eu

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as olhava tão somente. Em meus pensamentos ainda perambulavam as sombras das cenas passadas com o bruxo, e as revivia, admirando-me de minha coragem e proposta. Acreditava agora que somente impelido por tal ardente ódio a queimar-me as entranhas, pudera ir tão longe. Não que o ódio endereçado ao rei, à princesa e a toda a corja de aduladores houvesse arrefecido. Existia ainda e intensamente. Todavia, se naquele instante da visita ao bruxo, eu pensasse ou me sentisse como agora, certamente não teria feito o pacto com o sinistro. Ante essa reflexão, meu corpo foi tomado de um estremecimento e cheguei a perguntar-me se, apesar de tudo, das humilhações e maus tratos porque passava, teria realmente coragem para levar adiante o plano de vingança. Neste exato instante, ouvi o crocitar de um corvo e olhei para cima, percebendo, apesar da noite, que ali estava um voando em direção de minha janela. Chegando mais próximo atacou-me com as garras, embaraçando-se aos meus cabelos, bicando diversas vezes minha cabeça. Assustado, bati-lhe. Ele me largou voando novamente, subindo e se preparando para nova investida. Rapidamente fechei a janela impedindoo de entrar, ouvindo-lhe, entretanto, o ruflar de asas ao pousar sobre o peitoril, ali a permanecer a vigiar-me e a lembrar-me de que o pacto precisava ser cumprido. Aquilo realmente surtiu efeito em mim. Relembrando que tomara o veneno, portanto, deveria apressar-me ou morrer, decidi realizar o plano tão logo a oportunidade se me oferecesse, sem delongas. Dia seguinte, o rei mandou chamar-me a fim de que permanecesse ao seu lado enquanto recebia uma comitiva de mercadores estrangeiros, que vinha para oferecer presentes e obter permissão para negociar na cidade. Tendo enchido um recipiente menor com a poção e tê-lo fechado bem, levei-o comigo na tentativa de usá-la na primeira oportunidade. Durante a recepção e na entrega dos presentes, fiquei atento, porém o rei não pediu vinho. Ao invés, o miserável ordenou-me que contasse uma anedota para aqueles estrangeiros repugnantes que, de apreciável tinham somente os presentes. Eles riram e o rei também e tal como se dirigisse a um cão obediente, ao final, apontoume para o lado do trono, ordenando-me que ali eu ficasse. A princesa e a rainha estavam deslumbradas com os tecidos de fina seda e cores vivas que lhes eram ofertados bem como com os pequenos objetos e pedras preciosas. Finalmente o rei se retirou, indo sozinho para os seus aposentos. Aproveitando-me disso, fui até a cozinha e menti ao copeiro, dizendo que o rei pedira vinho e que eu mesmo o levasse. Não seria a primeira vez disso acontecer, dessa maneira não haveria estranheza ao fato e logo o copeiro trazia da adega a bandeja e a taça real com o vinho, entregando-me. No caminho, desviando-me do corredor principal, entrei numa pequena guarita abandonada que se lançava ao alto de um recuado canteiro de jardim, e certificando-me de que não havia ninguém por perto, despejei três gotas da poção na taça, retornando ao corredor, logo entrando nos aposentos reais. Sentado à escrivaninha, o rei escrevia avidamente não prestando atenção a minha pessoa. Coloquei a bandeja sobre a mesa, alertando-o sobre isto, e ele somente

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resmungou sem olhar-me, concentrado no que fazia. Saí rapidamente, excitado e trêmulo, aguardando impacientemente do lado de fora. Ao cabo de certo tempo, resolvi entrar novamente, encaminhando-me vacilante para a escrivaninha onde ele ainda se encontrava. Meu coração quase pulou do peito quando notei que a taça estava pela metade. Mas o rei aparentemente continuava o mesmo, pois ainda escrevia. Teria a poção falhado? Ansioso, perguntei-lhe se desejava mais vinho. Para minha surpresa e desconcerto ele largou a pena e disse que sim, somente porque eu lhe pedia. Ele tomou mais dois goles e ficou a olhar-me com ar aparvalhado, e eu, estupefato, via que a poção parecia ter funcionado. Não obstante, precisava testá-lo e pedi-lhe que me desse um pergaminho de presente, ao que ele prontamente acedeu. Exultante, pedi-lhe o cordão de ouro com o medalhão que trazia ao pescoço, e ele deu-mos. Depois outras jóias e o rei a nada me negava. Tranquei a porta e deitei-me em sua cama, ordenandolhe que ficasse de joelhos ao meu lado enquanto pensava. Como um cãozinho, ele me obedeceu. Então, ali deitado, pensei em como obter ouro sem que ninguém suspeitasse, pois ambicionava muito, vindo-me, afinal, uma idéia. Levantando-me da cama, ordenei-lhe que escrevesse uma carta de alforria, libertando-me da escravidão. Ele assim fez. Depois, mandei-o formular uma ordem-de-trânsito, ao mesmo tempo um salvo-conduto, a fim de que a carga que eu portasse não fosse interceptada por ninguém no reino inteiro, nem violada, por tratar-se de assunto de interesse real a meus cuidados, sendo transportada para destino somente conhecido por mim. Sem titubear o rei a formulou. Novamente, a meu mando, elaborou um terceiro documento, segundo o qual me doava um baú imenso, lotado de ouro, descrevendo suas características e insígnias para que, se necessário, eu pudesse provar que não o roubara. Finalmente, por um último documento de seu próprio punho, cedia-me centenas de acres de terra numa província e um pequeno castelo ali existente de sua propriedade, que nele se instalava quando viajava para a região. Havia ainda um empecilho: o tesoureiro. Ele era responsável pelas apropriações de todo o reino e contabilidade geral e o rei o fazia seu conselheiro para assuntos de compra e venda e do tesouro. Sendo funcionário ladino, não se convenceria de que sua majestade, a quem conhecia muito bem, estaria doando toda aquela fortuna e propriedade a um simples bufão, principalmente eu, Aldegundes, seu capacho e lixeira prediletos. Pensando numa solução, mandei-o pedir mais duas taças de vinho. Ele foi e voltou. Tendo, após, o vinho chegado, fiz com que o rei ficasse de costas, derramando outras três gotas da poção na taça que se destinaria ao tesoureiro, ordenando-lhe que o mandasse chamar imediatamente aos seus aposentos. Quando o tesoureiro chegou, homem forte e hirsuto, eu estava a um canto, em posição de bufão, com cara de tolo. O rei, sorrindo, em obediência ao que eu o havia instruído, apontou-lhe a cadeira onde, adiante, sobre a mesa, estava a taça de vinho a ele reservada. O tesoureiro franziu a testa e por um instinto pareceu desconfiar, olhando-me interrogativamente, cravandome aqueles olhos argutos. Eu estremeci e quase pus tudo a perder, controlando-me com enorme esforço, sentindo, não obstante, apesar do frio, o suor a escorrer-me pelo corpo. Mas ele foi e sentou-se. O rei segurou sua taça e aproximou-a para uma comemoração. Ele, desconfiado ainda, levantou a sua e brindou. O rei bebeu e o tesoureiro, sendo um súdito, foi obrigado também a beber.

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Tendo recolocado a taça sobre a mesa, nada aconteceu de anormal e ele perguntou ao rei porque o chamara e qual o motivo daquela comemoração. O rei, sempre rindo, apontou-me, dizendo que o motivo era eu. O tesoureiro virou-se e olhoume surpreso enquanto o rei gargalhava. Súbito, ele também começou a rir, abraçandose ao rei. Aproveitei-me então e fiz com ele o mesmo teste que fizera com o rei, pedindo-lhe seu cordão, e ele deu-mo. Em seguida, mostrei-lhe o documento feito por sua majestade, ordenando-lhe que providenciasse imediatamente o ouro bem como um meio de transporte adequado que disfarçasse a carga, pois partiria naquela mesma noite, em sigilo, saindo por um dos túneis secretos que só o rei e seus asseclas conheciam, e ele de bom humor a tudo assentiu. Estando de novo a sós com o rei, saboreei a última vingança naquele dia, imaginando ser somente mais uma de tantas que planejava. Segurando uma daquelas taças, derramei vinho no chão, ordenando-lhe que o lambesse, e ele o fez exatamente como me obrigava fazer. Depois, pisei-o e golpeei-o várias vezes, com voluptuosa satisfação, tendo o cuidado de não lhe deixar marcas pelo rosto a fim de que nada desconfiassem, saindo após. Perto da meia noite, procurei ao tesoureiro. Levava um saco às costas com roupas e objetos de uso pessoal. Ele se encontrava em seu gabinete, no palácio, e recebeume de mau humor, com cara sonolenta. Era evidente que dormira e pela rudeza de suas palavras e gestos, cheguei a temer que o plano fracassasse. Mas lembrei-me do alerta do bruxo, e sem qualquer gesto de resistência o tesoureiro real conduziu-me ante um túnel secreto, cuja entrada era disfarçada por uma estante fixa de parede móvel numa saleta contígua ao seu gabinete. Logo ele acendeu um archote e enveredamos pelo úmido túnel no subterrâneo do castelo, até um pátio fechado, para mim desconhecido, onde pequena carroça atrelada a um cavalo ali estava. Ainda bastante contrariado, meu acompanhante e guia levantou uma braçada do feno jogado sobre a carroça, mostrando-me o largo baú envolto num pano púrpura. Pedi-lhe então que o abrisse, e ele, obedecendo-me, subiu imediatamente na carroça puxando o pano. Minha cupidez cresceu mil vezes ao ver todas aquelas reluzentes moedas. Eram milhares, mais do que jamais vira em toda a minha vida e quase mergulhei sobre elas, tamanha a satisfação! Finalmente, dando-me por satisfeito, ele de novo fechou o baú e o lacrou com o lacre do tesouro real. Inútil e desnecessária providência, assim tomada por que eu exigira no momento em que ditara a missiva ao rei. Como última atenção, abriu-me o portão para que eu saísse e ao passar junto a ele cumprimentei-o do alto da carroça com gesto de cabeça, enviando-lhe sorriso de escárnio, ao que evidentemente ele não respondeu. Aquela partida era-me triunfal e já me via retornando dentro em pouco com pompa, cumulado de honras, seguido de um séqüito de bajuladores a entrar pela porta principal do salão real, a convite de sua majestade. Mas a vingança não terminaria ali, pensava com satisfação e acalanto, pois mal começava. Depois seria a vez da princesa. Ela me serviria e se prosternaria diante de mim, e todos iriam se admirar respeitando-me. Talvez não a envenenasse e nem ao

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rei, contentando-me em vê-los eternamente humilhados e ruminantes de ódio, sem forças para se libertarem de meu jugo. Ah, o demônio não era tão feio assim como o descreviam, ele sabia ser generoso com aqueles com quem se pactuava! Ao pensar sobre isto, lembrei-me do bruxo e de meu compromisso em dar-lhe metade do ouro. Em movimento instintivo e repentino, puxei as rédeas do animal e freei a carroça, não me conformando em ter de dar-lhe tanto ouro, meu ouro! O prazer de possuir, de sentir-me rico, causava-me uma sensação estranha. Pulando para dentro da carroça, abracei ao baú como se abraça a uma coisa viva e apaixonante e febrilmente abri-o, rompendo o lacre, enterrando as mãos nas moedas, querendo sentilas mais intimamente, desejando que fizessem parte de meu corpo - e elas agora de fato faziam! Não, não dividiria o ouro com ninguém, nem uma moeda, quanto mais à metade delas! Aquilo representava minha felicidade, a riqueza e a vingança com que eu sonhara. Porém, precisava tomar o antídoto senão morreria e de nada me valeria o ouro! Retomando a viagem, fui em direção da casa do bruxo. Mil pensamentos ainda faziam fervilhar minha cabeça, mas não encontrava a maneira de enganá-lo. Tendo penetrado o caminho que levava diretamente a sua casa, algo sobre a copa de uma pequena árvore assustou-me, levantando vôo ruidosamente: era o corvo, que crocitou furioso - maldito espião - e temi ser novamente atacado! Mas não me atacou, antes me acompanhou durante o restante do trajeto, pousando de árvore em árvore, anunciandose a cada vez que eu o alcançava! Finalmente cheguei. O bruxo já me aguardava à porta daquela casa lúgubre, de candeia à mão, sorrindo ironicamente, estando já o corvo pousado sobre o seu ombro. Fazendo-me sinal, mandou-me que o ajudasse a retornar para a sala. Tendo feito o que me ordenara contei-lhe que conseguira tudo, mas estando de partida para minhas terras, necessitava tomar logo o antídoto. Assim que o tomasse, realizaria a prometida partilha. Ouvindo isso, o bruxo gargalhou sinistramente e senti calafrios a percorrerem minha espinha. Ainda rindo, ele me disse que não me daria agora o antídoto, mas somente depois de eu levá-lo à confraria dos bruxos. Estava velho demais para partir sozinho e não agüentaria chegar lá sem ter alguém para ajudá-lo. Protestei de várias maneiras, argumentando do perigo em viajar para mais longe com tanto ouro, havia muitos assaltantes pelas estradas e não pretendia desviar-me de minha rota. Ademais, isto não fazia parte de nosso pacto. Mas ele não quis saber de nada e proferiu sua sentença: se eu não o obedecesse, morreria envenenado. Trepidando de ódio tive de aceitar aquela traição, mas jurei em silêncio que se tivesse oportunidade me vingaria dele também. Se antes não desejara partilhar meu ouro, neste momento desejava muito menos. A viagem até a confraria dos bruxos seria longa, levando semanas. Como ele não soubesse quanto tempo de vida dispunha, desejava se pôr a caminho imediatamente. Tendo tomado conhecimento deste fato, perguntei-lhe, ansioso, acerca do antídoto, pois o veneno faria efeito dentro de pouco mais de quatro dias. Em resposta, ele informou-me que estaria levando suficiente poção a fim de prorrogar o efeito letal de sete em sete dias, até chegarmos ao destino, onde me faria beber a dose definitiva.

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Soltando outra horrível gargalhada, o execrável aconselhou-me cuidar de que nada lhe acontecesse porquanto se tornava agora para mim carga mais preciosa do que o próprio ouro que eu carregava. Partimos naquela mesma madrugada levando alguma bagagem, alimentos e um burro de cargas amarrado à carroça, de propriedade do bruxo. O corvo ia também ora voando para as copas do arvoredo, observando e trazendo informações para o seu dono, ora descansando sobre o seu ombro. Era realmente estranho como ambos se entendiam. O corvo falava-lhe ao ouvido e o bruxo assentia com a cabeça, soltando sons guturais. Isso me causava mal e temia a ambos. Por quatro dias viajamos sem novidade. Durante o dia nos escondíamos pelos matos ou bosques, à noite retomávamos a jornada, pois o luar era suficiente para clarear os caminhos. O bruxo era pessoa extremamente desagradável, ora a maldizer as mínimas coisas ora a gargalhar de forma assustadora. Antes de dormir, dava ordens ao corvo para que vigiasse o seu sono e invocava espíritos. Eu me afastava dele para tentar dormir melhor, porém o meu sono era interrompido e cheio de terríveis pesadelos. Na quarta manhã da viagem, perto do meio dia, acordei sobressaltado, estando o corvo a bicarme e a puxar meus cabelos. O bruxo, encostado a uma árvore, gargalhava de lacrimejar, dizendo, afinal, passado o acesso de riso, que o mandara acordar-me a fim de que lhe preparasse a refeição. Isso me irritou ao extremo e senti-me novamente escravizado, tendo de servir a um dono mais insano e perigoso do que o primeiro. Que destino o meu! Durante a refeição, ele me estendeu uma caneca contendo um líquido grosso e escuro, mandando-me que o bebesse, pois se tratava da primeira dose do antídoto. O líquido era amargo e engoli-o com repugnância sob o seu sorriso sarcástico e grasnos nervosos da negra ave. Naquele mesmo dia, comecei a suspeitar de que o bruxo não pretendia me libertar. Se alcançássemos à confraria me faria lá seu escravo. Uma vez ouvira dizer que todo aquele que descobrisse o esconderijo dos bruxos, seria aprisionado e os serviria até a morte, ou então, se escapasse, morreria amaldiçoado poucas horas depois. Mas com todo o ódio que lhe endereçava não poderia fugir e nem matá-lo, sob pena de morrer também! Dois dias depois, tendo saído de um caminho secundário e meio abandonado, ouvimos ao longe o rumor de vozes e cantos. Seria uma taberna localizada na estrada, falou o bruxo, e isto lhe despertou o desejo de tomar vinho. Como também necessitássemos de alimentos ele me ordenou que montasse o burro e fosse lá adquirir essas coisas. Lá chegando, fui alvo de piadas e troças. Adquiri pão, toucinho e vinho. Ao enfiar a mão na algibeira para retirar as moedas e pagar ao taberneiro meus dedos tocaram em qualquer coisa estranha e vi tratar-se do pequeno recipiente, contendo um resto da poção. Esquecera-me dele, tendo deixado o recipiente maior na carroça junto aos meus pertences, e uma rodopiante idéia agitou os meus pensamentos. Após pagar ao taberneiro saí pelos fundos, indo à estrebaria onde, escondido de todos e certificando-me de que ali o corvo não conseguiria vigiar-me, derramei toda a poção no vinho. Meu coração batia descompassadamente e mal conseguia conter a excitação.

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O bruxo, ao ver o vinho e o alimento que eu trouxera, sorriu e estendeu-me as mãos. Passei-lhes as coisas e ele as cheirou ruidosamente, qual um bicho faminto e sedento. Neste instante, o corvo mergulhou e pousou sobre sua mão, grasnando agitadamente, chamando-lhe a atenção. Meu corpo todo tremeu e temi que a maldita ave o alertasse de algo. Ela gritou mais, bateu as asas e pulou em seu braço. Ele riu e abriu o pano que envolvia o alimento, cortando um pedaço do toucinho, enfiando-o em seu bico. A ave, então, satisfeita, foi-se dentre as sombras, deixando-me aliviado. Virando-se sobre o banco da carroça, o nauseabundo retirou de dentro da sacola uma pequena caneca e a estendeu-me para que a enchesse. Minhas mãos tremiam, eu fazia esforço hercúleo para dominar-me enquanto o vinho escorregava. Quase se babando, abriu as mandíbulas e derramou o vinho goela adentro, pedindo mais. Repeti a dose, ele tomou mais dois goles, estalando a língua, elogiando. Tenso, quase sem respirar, estudava-o naquela escuridão, a qual era aliviada pela luminosidade da lua crescente. Se a poção iria fazer efeito em seu próprio criador, dentro em pouco eu saberia. Em movimento brusco, ele novamente se virou e remexeu na sacola, retirando outra caneca de metal, ordenando-me que bebesse. Pensei recusar, mas temi que ele desconfiasse de algo e resolvi enganá-lo, enchendo-a lentamente, tentando ganhar tempo. Depositei a bilha no chão e noutra série de movimentos lentos encarei-o. Ele me olhava com atenção e silenciosamente. Mas eu não podia beber, assim, fingindo acidente, larguei a caneca derramando o vinho no chão, e esperei por uma explosão de imprecações. A explosão não aconteceu, ele somente gargalhou. Seria esta a maneira dele mostrar-se submisso? Resolvido a experimentá-lo pedi-lhe outra caneca. Ele imediatamente atendeu-me. Depois solicitei-lhe que descesse para bebermos no chão e se arrastando feito um réptil o bruxo desceu, apoiando-se na carroça. Sem dúvida a poção voltava a funcionar, desta feita sobre o seu criador. Era o feitiço se voltando contra o feiticeiro, conforme reza o adágio. Sem perda de tempo, ordenei-lhe que me desse o antídoto definitivo. Ele me informou que precisaria antes prepará-lo. Mandei-o, pois, que o fizesse e sob a luz do lampião ele remexeu em sua arca, retirando recipientes e ingredientes, passando a misturá-los e a invocar espíritos. Tendo-o preparado, estendeu-me. Entretanto, no exato instante em que levava a mão para segurá-lo, o maldito corvo, desconfiando da trama, atacou-me furiosamente, quase me vazando os olhos com as garras. Caí ao chão, sangrando e estonteado, procurando defender-me do feroz atacante. Ele pulava sobre mim causando-me outros ferimentos, rasgando-me a roupa. Gritei para o bruxo a fim de que o mandasse parar, porém por um sortilégio muito forte que o ligava à ave, ele não me obedecia, permanecendo imóvel. Consegui levantar-me e corri para as árvores, tendo-o sobre minha cabeça a bicar-me e a ferir-me impiedosamente. Ali chegando, tropecei e caí; por sorte, sobre um galho seco que de imediato segurei-o, desferindo-o sobre o agressor, acertando-o em cheio no primeiro golpe apesar da escuridão. A ave caiu e se debateu estonteada; aproveitando-me disto lancei-me sobre ela, golpeando-a outras vezes, com raiva, até sentir que seu sangue espirrava por todos os lados. No momento em que isso acontecia, como se a alma da negra ave fosse a alma negra do bruxo, ele gritou e rolou por terra. Corri para lá e sequer lancei-

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lhe um olhar, preocupando-me tão somente em salvar o antídoto. Ele havia se derramado, não obstante restara ainda o suficiente e bebi-o com mão trêmula e peito arfante, nada sentindo de diferente, como, aliás, nada havia sentido ao ingerir o veneno. Sacudindo o horrendo homem, fi-lo beber mais vinho, antes que se tornasse totalmente consciente de tudo, e mansamente ele permaneceu aguardando as minhas ordens. Tinha-o agora sob domínio e fiquei a pensar o que poderia obter usando sua feitiçaria. Tinha ouro, terras e liberdade e queria agora todos os prazeres que estas coisas poderiam me proporcionar, mas por quanto tempo? A vida é tão curta, pensava ainda, logo a gente se transforma num farrapo como esse andrajoso ser. Bom seria eu viver muitos anos, com juventude e disposição, eternamente, se possível, ainda mais agora que me tornara rico e senhor! Tendo pensado bastante, acorreu-me uma idéia. Perguntei-lhe se poderia prolongar-me a vida eternamente e ele assentiu com a cabeça. Ordenei-lhe então que me explicasse como faria isto. Ele me informou conhecer o segredo de uma poção que aumentava indefinidamente os anos de vida de uma pessoa. Entretanto, nunca a tinha preparado por que ela não surtiria efeito nele mesmo, e se a preparasse para alguém aconteceria uma troca. Cada vez mais curioso, quis saber que troca seria essa. Ele me explicou que a partir do momento em que uma pessoa a bebesse, cada dia vivido por ela representaria dois dias a menos da existência do bruxo, abreviando, portanto, o seu tempo na Terra. Por isso, obviamente, nunca a preparara. De novo pus-me a refletir. O bruxo, ao que tudo indicava, não teria mesmo muito tempo de vida, logo não faria a menor diferença se morresse alguns dias antes. Se morresse antes de chegar à confraria, azar dele, pois de todos os modos não lhe daria o ouro, sobretudo porque novamente o recuperara todo e à liberdade. Tendo isto em mente, ordenei-lhe que fizesse a poção da longevidade, mas ainda que sob os efeitos da poção, seu instinto de sobrevivência gritou mais alto e recusou-se. Ameacei baterlhe, obrigando-o também a tomar mais vinho e não sei bem se somente pela ameaça, pelo reforço da poção ou pelos espíritos inebriantes do vinho, ele acabou concordando. Explicou-me então haver uma dificuldade e um problema: primeiro, a poção teria de ser preparada sob os primeiros raios noturnos da lua cheia e exposta sete noites à mesma lua; segundo, precisaria sacrificar uma serpente e utilizar o seu veneno. Faltavam dois dias para o surgimento da lua cheia, pensei eu. Isto eu podia esperar, agüentando ainda os sete dias restantes, mas quanto à serpente? Cada vez mais interessado no assunto, perguntei-lhe se encontraria uma e a aprisionaria, porém não me respondeu. Foi preciso que usasse de mais energia para fazê-lo falar e ele confirmou, dizendo saber preparar um óleo que tinha o poder de impregnar com seu odor tudo aquilo em que fosse derramado, atraindo serpes. Satisfeito, ordenei-lhe que o fizesse imediatamente. Ele se arrastou até a arca começando a misturar líquidos, a invocar demônios e almas de serpentes. Tendo terminado, informou-me que deveríamos procurar local adequado onde usá-lo. Montamos na carroça e partimos dali. Embora ele estivesse sob o efeito da poção, era um bruxo, e não confiava

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inteiramente em sua submissão, haja vista em certos momentos demonstrar resistência, por isso dei-lhe mais dois goles do vinho. Num determinado local, junto a uma pedreira, paramos e descemos. Apoiado em mim, ele se aproximou da pedreira, derramando nela o óleo, mandando-me que voltasse para a carroça e lá permanecesse. Sobre a carroça pude vê-lo, ainda que imperfeitamente, acocorado feito ave de rapina, banhado pela luz pálida da lua que imprimia à cena um efeito sinistro e assustador, como se colorisse a própria morte. Isso produziu em mim uma espécie de terror surdo e grande repulsa. Mas eu tinha ido longe demais para recuar e resolvi superar aquela reação, mormente quando todas as venturas do mundo aguardavam-me. Valeria a pena tamanho sacrifício! De repente, o bruxo se pôs a soltar sons que invocavam serpentes. Logo pude ver duas delas se arrastando e se enrodilhando diante dele. Elas assim permaneceram e ele continuou a chamar, até aproximar-se uma grande, maior do que as duas anteriores. Ela parou e ele fez um movimento de mão, agora falando, segurando-a pela cabeça e a levantando. Em seguida, forçou-a destilar gotas de veneno numa caneca de metal. Ao vê-lo caminhar de volta em passos arrastados, trazendo o repulsivo réptil, fiquei horrorizado, preparando-me para pular e correr, temendo que ele o fosse jogar sobre mim. Chegando à carroça ele arfava muito e apoiou-se nela, levantando a mão, mostrando-me a serpente que se enroscava e se remexia em seu braço. O bruxo era, verdadeiramente, grande conhecedor de magia negra e artes de encantamento e aquilo vinha reforçar aos meus olhos a fama que tinha adquirido. Tendo recuperado o fôlego, disse-me que precisaria estrangulá-la, mas não teria forças para tal, pedindo-me ajuda. Já fora da carroça, neguei-me veementemente a isso, ordenando-lhe que fizesse tudo sozinho, reunindo todas as suas forças. A serpente, parecendo ter entendido que seria sacrificada, levantou a cauda e arremessou-a sobre o rosto do bruxo, assustando-o. Tomado de pavor, gritei-lhe para que a matasse. Ele, então, segurou-a com ambas as mãos e começou a apertá-la. Ela se enrodilhava e lutava e ele gemia e se arcava. Foi uma luta titânica que me consumiu, também, grande dose de energia, tal o terror que de mim se apossara. Finalmente o bruxo caiu sobre o réptil, opresso, gritando com voz rouca, implorando ajuda. Hesitei, mas ante os seguidos apelos aproximei-me, verificando que a serpente de fato houvera sido estrangulada e ajudei-o a se levantar. Dia seguinte, ele estava mal humorado. Pouco comeu e surpreendi-o em várias oportunidades a olhar-me estranhamente, expressando ódio na fisionomia. Nervoso, dei-lhe um pouco de vinho e ele o tomou. Depois, começou a tirar o couro da serpente, cantando e invocando espíritos. Feito isso o enrolou num pano, tendo o cuidado de excluir as presas. À meia noite do outro dia, ele começou a preparar a poção, tendo feito fogo e fervido ingredientes; em certo instante mandou-me que me aproximasse e estendesselhe a mão esquerda. Obedeci e ele me espetou um espinho num dos dedos, fazendo-o sangrar. A seguir, tomou a caneca de metal onde havia coletado o veneno da serpente e me espremeu o dedo, derramando uma gota de sangue. Mal o sangue se misturou ao veneno ele gritou e esbravejou, como se amaldiçoasse, virando-se para os quatro

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cantos, falando e gesticulando. Quase desmaiei de medo. Senti as pernas tremerem e fraquejarem, não sabendo ao certo se ele estaria me enganando ou de fato produzindo a poção que o obrigava produzir. Náuseas e tonturas sobrevieram-me, pois além do medo daquele ritual macabro, o cheiro forte daquelas coisas na fervura causava-me repulsa. Sempre invocando, ele derramou o conteúdo da caneca no caldeirão, terminando o ritual por aquela noite, apagando o fogo e indo dormir. Como eu determinasse que não partíssemos até que a poção estivesse pronta, na noite seguinte ele realizou o segundo ritual no mesmo local, acendendo o fogo, invocando conforme fizera anteriormente, tirando-me outra gota de sangue e a lançando diretamente no caldeirão. Assim foi feito durante todo o período de manifestação da lua cheia. Na última noite, após tirar-me a gota de sangue, ele deitou o couro da serpente diante do caldeirão, untou-o com o óleo antes utilizado para atraíla, gritou e falou palavras estranhas. Deixou-o ali, afastando-se um passo. Logo a forma do espírito da serpente sacrificada viria aninhar-se no couro. Ele a tomou com ambas as mãos e invocando demônios derramou a forma espiritual da serpente no caldeirão fervente. A seguir, mergulhou pela primeira vez a caneca na fervura, mexendo-a como se a lavasse, retirando-a com a poção e a estendendo a mim para que eu bebesse. Tenso por ter presenciado todas aquelas coisas e não confiante ainda na sua total submissão aos meus desejos, ordenei-lhe que jurasse em nome de todos os demônios que a poção era verdadeira e caso estivesse mentindo, sua alma seria eternamente prisioneira deles, e ele jurou. A poção não faria efeito se tomada uma única vez, necessitando tomá-la sete dias consecutivos à meia noite, entrando este ritual pelos dias da lua minguante. Dessa maneira, aquela seria somente a primeira dose. Num inexplicável e súbito impulso quase arranquei a caneca das mãos do bruxo, mirando o líquido, sobrevindo-me novamente náuseas que quase me fizeram perder a coragem. Porém, trazendo à mente o quadro acalentado por todos aqueles dias, vi-me senhor e próspero, vivendo na abundância e eternamente, gozando prazeres e humilhando inimigos, e bebi a largos goles, quase vomitando ao final. Recuperando-me, contudo, decidi partir imediatamente abandonando ao bruxo. A fim de que não me visse partir, obriguei-o a tomar todo o vinho restante, embebedando-o. Utilizando a mesma bilha, guardei nela a poção e em seguida amarrei o burro numa árvore, descendo a arca do velho asqueroso juntamente com os outros objetos de seu uso pessoal. Num ato incomum de solidariedade, dividi com ele partes de um coelho apanhado em armadilha; afinal, aquilo poderia ser seu último alimento. Dali em diante assumia o meu próprio destino, ele que se danasse sozinho! Montei na carroça, e com nojo e desprezo lancei-lhe derradeiro olhar, vendo-o dormir a sono solto, deixando-o definitivamente. Os dias que se seguiram, gastei-os quase todos retornando por onde houvéramos percorrido, conquanto o bruxo forçara-me viajar em direção oposta ao que eu pretendia. Por dois dias e duas noites permanecera abrigado em pequena e rasa caverna, a fim de proteger-me das seguidas pancadas de chuvas que me impediam viajar. Nesses dois dias, quando a lua se espremia dentre nuvens - exatamente à meia noite - sob as frias e úmidas paredes da gruta, eu tomava da poção, sendo invadido de arrepios e calafrios. Finalmente, na sétima noite, longe do lugar onde abandonara o

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bruxo à própria sorte, tomei a última dose, lançando fora o que restara da poção, quebrando a bilha de encontro a uma árvore. Afora aquelas rápidas e já conhecidas reações, nada mais sentira, exceto ao crescer da certeza de que a poção redundaria em sucesso e viveria eternamente rico e senhor! Mas o pior estava por acontecer. Dois dias depois da última dose, enquanto viajava cautelosamente por caminhos secundários sob a palidez da argêntea lua, procurando desviar-me de vilas e lugarejos, senti-me mal. Uma sensação de desmaio abraçou-me e parei a carroça, deitando-me na relva. Um suor surpreendente veio lavar-me a testa. Senti que enfraquecia, começando a ver nuvens e sombras diante de meu rosto. Súbito, as sombras criaram vida e forma e a cara horrível do bruxo surgiu enorme, rindo pavorosamente, acompanhada de um séqüito de seres ígneos que se revolviam numa dança macabra. Impossibilitado de mover-me, via a tudo paralisado, escutando de novo aquela voz que tão bem conhecia, agora mil vezes mais abominável: “Mortal idiota! Queres viver eternamente? Não sabes que este poder somente tem Lúcifer, por seu próprio e indissolúvel selo com o mal - ele, o senhor indiscutível da ciência maligna e execranda, da qual sou somente um discípulo? Não, não sabes por que nada és além de um verme. Como pudeste crer que somente ingerindo uma poção, viverias para sempre e sem pagares um tributo? Ao fazeres isto e roubares alguns dias de minha existência, deixando-me morrer de inanição, levando o meu ouro, atraíste uma horrível maldição. Um vínculo muito forte foi criado entre tua insignificante alma, a minha e os poderes das trevas. Agora não poderás mais recuar. O ouro te será maldito, porque mais ainda ele atrairá tua cobiça. Porém, ao mesmo tempo, não poderás passar um único dia longe dele, ou o perderás. Por tê-lo roubado de mim e me tirado a oportunidade de ser aceito na confraria dos bruxos, fazendo parte da grande mesa, não poderás ficar longe do ouro e não gastarás uma única moeda que não venha redundar-te em prejuízo ou desgosto. Viverás muitos anos, não eternamente como supuseste, porém muitos e tantos que desejarás morrer, tal o tédio de tua existência. Todavia, ao morreres, não estarás livre dessa maldição. Aqui estaremos para nos apossarmos de tua alma, ó infeliz e ignorante mortal!” Se feio sou, não sei como estaria a expressão de meu rosto naquele momento. Deveria estar horrível, porque sentia os cabelos arrepiarem e os olhos quase saltarem das órbitas. Mesmo assim, consegui balbuciar algumas palavras, dizendo-me arrependido e disposto a pagar pelo meu erro para livrar-me da maldição. O bruxo riu estrepitosamente, quase estourando os meus ouvidos e respondeu: “Tarde demais. És tão repelente que não possuías uma virtude sequer antes de ingerires a poção, muito menos agora a possuís. Desista, homenzinho, estás irremediavelmente perdido. Somente uma virtude desperta em teu coração poderia dissolver os fortes grilhões a que te aprisionastes, e teu coração é duro como a pedra, ah... ah...ah! Toma, eis o novo selo de nossa aliança!” Ele levantou a mão e lançou sobre mim a alma da serpente que não se dissolvera no caldeirão como eu supusera. Ela picou-me o braço e queimou-me por dentro

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fazendo-me desmaiar tamanha a dor. Ao acordar, o sol já se levantava. Estava tonto e com sede. Trôpego, andei até a carroça puxada mais adiante pelo animal que calmamente pastava, e bebi água. Meu braço ardia. Ao levantar a manga da camisa, vi com espanto a dupla marca das presas da serpente, marcas estas que carrego até hoje, e o sangue ressecado, escorrido dos ferimentos. Apavorado, pulei para dentro da carroça e abri o baú, verificando com alívio o ouro intacto, lembrando-me das palavras do bruxo. Sem alternativa me pus a caminho, ainda enfraquecido, buscando um local mais escondido para passar o dia, pois onde me encontrava poderia ser surpreendido, e entrei no bosque. Entretanto, as imagens mentais não me abandonavam, mantendo-se perfeitamente nítidas em minha memória acompanhadas do persistente eco das palavras do bruxo em minha consciência. Encontrando um local apropriado ali fiquei a meditar sobre tudo, concluindo, afinal, que se a maldição havia recaído sobre mim de nada adiantaria ir tomar posse das terras e do castelo, pois me arriscava a perder tudo e ao ouro. Sendo senhor, como evitar passar um dia longe do ouro, tendo de tudo administrar e viajar a negócios? Além do mais, por supina infelicidade, não poderia dispor de uma única moeda daquele tesouro enquanto a maldição existisse. Desalentado, resolvi me esconder e buscar uma solução para anular a maldição do bruxo, dispondo novamente do ouro. Assim, enfiei-me cada vez mais no interior deste bosque até chegar a esse lugar, achando esta casa abandonada, escondendo o ouro e aqui permanecendo. Todavia, os dias iam se sucedendo, os meses, os anos e nada acontecia. Por vezes chegava a pensar que tal maldição em verdade não existiria ou se existisse já teria perdido a sua força. Porém, ante este pensamento, logo ouvia no ar a gargalhada do bruxo, sentindo meu braço a doer horrivelmente no exato lugar onde eu fora picado pela serpente. Assustado, corria para o esconderijo onde deixara o baú e abria-o, certificando-me com alívio que o ouro ali estava, intacto e todo meu! Mais anos se passaram, dezenas. O tédio veio possuir-me, fazendo-me sofrer indescritivelmente, crendo-me um morto vivo, semi sepultado, o que de fato sou. Em várias oportunidades pensei em dar cabo de mim, pôr um final ao que me parecia inexistência, mas ao lembrar-me que minha alma seria aprisionada pelos malignos, recuava temeroso. Ademais, a idéia de apartar-me do ouro violentava-me, não desejando isso de forma alguma. Somente viajantes extraviados em suas rotas costumam ainda passar por aqui, encontrando-me em casa ou pelas redondezas. Aproveitando esses momentos, converso um pouco tentando saber notícias do mundo, qual época estamos atravessando, qual rei nos dirige, se há guerras e outras coisas mais. Para afastá-los de mim conto-lhes que sou um amaldiçoado, confirmando a lenda que inventei de um mal contagioso. Dessa maneira, aqui escondido, venho mantendo o ouro a salvo de especuladores, não obstante ter-me tornado conhecido no reino inteiro. Mas os incríveis acontecimentos de minha vida não terminam por aqui, caro trovador. Há outro fato somado à maldição que passo a relatar-te: certa noite, deprimido pela solidão, tendo unicamente a companhia dos grilos e corujas a emitirem

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sons, senti-me sufocado, verdadeiramente desesperado. Não agüentava mais essa existência. Tentei chorar, mas não pude. Aliás, em toda a minha secular vida, jamais consegui derramar uma única lágrima. Dizem que o choro, por vezes, faz extravasar dores, acalmar e até consolar, mas nunca pude provar dessa forma de desabafo. Impossibilitado desse recurso, cada vez mais estrangulado pelas sensações, atingia ao auge de um desespero nunca antes experimentado. Uma onda de raiva veio em seguida possuir-me e comecei a quebrar coisas, a golpear a mesa e socar paredes, somente parando ao sentir-me esgotado e com o corpo dolorido. Então, caído ao chão, opresso e imóvel, comecei novamente a relembrar as palavras do bruxo, tentando encontrar nelas uma pista que me possibilitasse fazer uma tentativa de libertação, mas nada encontrei. Como estava, permaneci, e dormi profundamente, tendo um sonho estranho e marcante. No sonho vi outra serpente em chamas com olhos a arderem de maneira indescritível. Tremi e temi-a, pois já havia provado a malignidade da outra. Produzindo movimentos inconstantes, em pé, dançando em círculos, ela começou a falar-me: “Infeliz mortal. O peso da maldição que contraíste torna-te desesperado, não? Queres a liberdade, mas não a podes ter. Temes a morte porque tua alma é prisioneira das trevas. Apesar de tudo, não te arrependeste ainda de teus atos passados; teu coração permanece endurecido e congelado. És duplamente infeliz: prisioneiro de tua imensa ambição e presa fácil e indefesa dos poderes das trevas. Não obstante, ainda que sejas uma ovelha negra e desgarrada, resta para ti uma esperança. Somente uma chama ardente poderá aquecer teu gélido coração, fazendo timbrar uma nota que desconhecesses e se anela a uma virtude humana que não a possuís. Porém, tu não tens como atear no coração tal chama benigna. És vazio e inútil e, por consequência, jazes inerte como a própria morte. Por isso vou auxiliar-te, cumprindo ordens dos poderes superiores que a tudo velam. Deixar-te-ei algo, que um dia, não sei quando, te será valioso e útil, saiba guardá-la!” Dizendo isso, a serpente lançou-se sobre o meu braço e picou-me no exato local onde eu trazia a marca dupla produzida pela outra serpente. Foi de novo uma dor horrível que me queimou e me fez acordar aos gritos. Ao levantar a manga da camisa vi com incredulidade, saindo de dentro dos ferimentos, emaranhando-se numa só forma, uma mecha de cabelos vermelhos, que de tão viva quase reluzia sob a fraca luz da vela ao chão, salva por milagre de minha fúria destrutiva. Repugnado, puxei-a e a atirei longe, afastando-me. Pouco depois, mais recuperado, aproximei-me pegando-a e a lançando fora através da janela. Dia seguinte, via-a ali. Essa visão causou-me a tempestuosa lembrança da aparição. Na verdade, eu não a esquecera completamente, porque mal dormira de tanto me doer os ferimentos. Enraivecido e descrente de tudo, peguei-a novamente, saindo para dentro do bosque, enterrando-a em lugar distante, disposto a não dar ouvidos a mais nada, julgando que estivera fora da razão. Aquele dia se passou sem outras surpresas. Porém, na manhã seguinte, ao abrir a janela quase caí para trás, tamanho o espanto: a mecha vermelha ali estava sobre o peitoril. Inconformado, segurei-a e parti para o lugar onde a enterrara, encontrando o buraco fechado exatamente como o havia deixado. Escavei-o, e para outra de minhas surpresas, nada ali encontrei! Decidido fui mais longe e cavei outro buraco mais

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profundo, jogando a mecha em seu interior, tapando-o. Mas ela novamente voltou, dessa feita no bico de um pássaro vermelho que a jogou sobre mim, à mesa. Acreditando, então, que teria algo de mágico, aliado ao fato de que surgira de meu próprio sangue, resolvi guardá-la. Daquele dia para cá, nada de novidade apareceu-me, exceto tua presença aqui, senhor Sertório, dentro dessa casa, à minha mesa, coisa jamais acontecida com outra pessoa em mais de um século. Aliás, ultimamente tenho encontrado pessoas com maior constância. Não obstante temerem-me quase todas e algumas sair a correr tresloucadamente, Isso me faz concluir duas coisas: primeira, meu esconderijo não mais se encontra tão afastado assim das trilhas e estradas que levam às vilas e cidades; segunda, minha fama de amaldiçoado já é grande demais para que eu permaneça perfeitamente seguro por aqui, pois temo a investida de algum aventureiro mais ousado que suspeite eu esconder alguma coisa valiosa. É natural te perguntares como consigo ter roupas, panos e cobertores, utensílios, ou mesmo boas ferramentas após tantos anos de reclusão. Acontece que a despeito de minha fama e do terror que a maldição desperta, existe ainda pessoas apiedadas de minha condição. Assim, um ou outro viajante, a quem exijo o mais absoluto sigilo sobre a localização exata de meu esconderijo, deixando ao acaso sua descoberta pelos passantes, trazem-me essas coisas em troca de agradecimento, julgando-me miserável. É uma ironia, não, senhor Sertório, eu, possuidor de uma fortuna em ouro, não poder pagar por uma camisa, uma calça ou qualquer outro objeto, ficando a receber doações? Outra questão deve também ter perambulado em teus pensamentos no decorrer de minha narrativa: como consigo viver nesse fim de mundo? Instinto de sobrevivência, talvez; adaptabilidade às regras da vida natural; sorte ou sortilégio, não sei bem. Ao aqui chegar e apossar-me dessa casa, quase nada em verdade nela existia. Mas ao correr em redor encontrei algumas coisas que me serviriam. Além de frutas, constatei existir abundância de pássaros e coelhos para caçar. Por quase um mês alimentei-me disso, trazendo água de um regato correndo ao largo, pouco distante daqui, mas me enjoando de tudo, sonhando com pão, bolinhos e outras variedades. Ademais, a casa necessitava de reparos e eu não possuía uma única ferramenta. Decidido, resolvi um dia sair em busca dessas coisas, nem que precisasse viajar muito, não me importando com esse sacrifício, visto ter de permanecer por muitos anos nesse lugar. Carregando o baú com o ouro, coisa sumamente trabalhosa por que precisava primeiro descarregá-lo para torná-lo leve, parti à noite, fazendo marcas e sinais aonde ia passando a fim de que, no retorno, encontrasse o caminho sem dificuldade. Na terceira noite de ininterrupta viagem, vi ao longe uma vila. Tendo cavado um buraco e enterrado o baú, trabalho este que me fez despender quase o dia inteiro e grande dose de energia, visto precisar utilizar paus como escavadeiras, parti para a vila. Lá chegando, pude comprar tudo o que precisava na oportunidade, trazendo, pois, sementes diversas, farinha de trigo, milho, galinhas, reprodutores, toucinho, pão, fermento, vinho, ferramentas, cobertores, lençóis, pratos, canecas, talheres, etc. Como o ouro que possuísse não bastasse e temeroso de usar do outro, negociei com o medalhão e o cordão tirados do rei, evidentemente não contando a verdade sobre a sua origem, obtendo ainda troco.

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Ao encher a carroça com essas mercadorias, fiz-me alvo da curiosidade geral e temi ser pilhado por ladrões, anunciando então que prosseguiria viagem para a vila vizinha, dormindo a poucas milhas dali, debaixo de árvores. Mal saí, tomei o caminho oposto, disfarçando a trilha deixada pelas rodas da carroça, e corri para o baú, desenterrando-o e imediatamente partindo na noite. Consegui retornar sem dificuldade por que as marcas deixadas eram visíveis e auxiliaram-me. Com o que trouxera, pude criar, plantar, colher e cozinhar, nunca deixando que se esgotassem. Afinal, tempo para tratar dessas coisas jamais me faltaria. Da casa, cuidei-a da melhor maneira possível, arranjando troncos, fabricando tábuas, amarrando cipós, inventando colas de resinas. Entretanto, como viesse a necessitar de mais coisas, fiz com o tempo mais duas dessas viagens, visitando outras vilas, porque temia ser reconhecido onde estivera antes. Gastei o que me restara do ouro recebido de troco do comerciante anterior e negociei com as jóias que tirara do rei, e com o cordão e medalhão tomados do tesoureiro. Nas duas últimas viagens procedi como da primeira vez, levando comigo o baú, enterrando-o e depois o desenterrando. Mais tarde, como o animal que possuísse viesse a morrer, não pude realizar mais viagens e aqui me encerrei definitivamente. Essa é a minha história, senhor Sertório, incrível, porém verdadeira, e prisioneiro estou da maldição, a espera que um dia, como me prometeu a serpente, possa encontrar a virtude que me libertará. Antes que Sertório dissesse qualquer coisa, o bufão enfiou dois dedos entre o cinto e a cintura puxando a mecha de cabelos vermelhos, atirando-a sobre a mesa. Sertório olhou-a com curiosidade, sem tocá-la, voltando a encará-lo, induzindo e perguntando: - Supondo que tua história seja verdadeira, senhor Aldegundes, estes cabelos se tenham materializado de teu próprio sangue e o ouro de fato exista aqui guardado, que esperas de mim para auxiliar-te? O bufão apoiou um braço na mesa e arregaçou a manga da camisa. - Vês, aqui estão as marcas de que te falei. Num lugar qualquer está o baú com o ouro. Estou cansado, senhor Sertório, realmente muito cansado. Tendo ouvido falar de ti e de teus feitos, julgo que sejas o único homem de quem tenho notícias capaz de ajudar-me. Não saberia como procurar sozinho uma virtude, ou algo fazer para me libertar da maldição. Sertório, levando a mão ao queixo ficou pensativo por instantes. Aldegundes olhava-o silenciosamente, piscando com apreensão. Então o visitante falou: - Há entre nós, criaturas do mesmo Pai, obrigações e dívidas. Isto se estende para além das fronteiras humanas, atingindo, pois, o reino das almas. Não vejo como auxiliar-te a sair desta longuíssima enrascada em que te meteste, senhor Aldegundes, sem ficares a dever-me pelo serviço, endividando-te também comigo. O bufão enrijeceu o tronco e apoiou as mãos nervosamente na beirada da mesa, piscando assustado e desconcertado. - Então... não há virtudes em ti e recebes pelo que fazes? – perguntou ainda agitado.

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- Fosse eu um santo a peregrinar e ensinar pelo mundo, como viveria sem a paga de meus serviços? Há diversas formas de pagamentos ou compensações, como há serviços e ajudas. Ademais, o virtuosismo não se desmerece por um punhado de moedas de ouro, nem por centenas de milhares delas. Existe, exatamente, por ser distinto e independente de tal apego, sabendo dar e receber. Assim, senhor bufão, proponho-me auxiliar-te, em resposta ao teu apelo, por uma boa recompensa de teu ouro maldito! - Meu ouro? – levantou-se o homenzinho - jamais, nunca! - Que tens então a oferecer-me em troca?- perguntou calmamente, mostrando um sorriso de malícia. Aldegundes olhou em torno e nada respondeu.- Vês, nada tens de valor para cambiar a não ser o ouro, que dizes? Aldegundes voltou a sentar-se, carregando no cenho expressão de profunda contrariedade. De repente, seus olhos cintilaram e o rosto encheu-se com ar de satisfação: - Lembras-te das palavras do bruxo? Disse-me ele que eu não gastaria uma só moeda que não me viesse trazer prejuízo ou desgosto. Como, pois, dar-te o ouro? - Entendas tu, senhor Aldegundes, de que não o estarás negociando. Pagarás por uma virtude que te libertará dessa mesma maldição. Que tens assim a perder se desperdiçaste uma vida inteira por causa desse mesmo ouro? O bufão carregou de novo o cenho, levantando-se e andando de um lado para outro a murmurar: - Meu ouro, meu ouro! Como o homenzinho não se decidisse, Sertório pediu-lhe que lhe mostrasse onde dormiria. Aldegundes, ainda contrariado, trouxe-o até um quarto vazio e apontou para o chão de terra. - Não tenho outra acomodação a oferecer-te, trovador, mas arranjarei alguma palha seca para teu melhor conforto! Sertório saiu e retornou trazendo ao ombro seu cobertor de lã, falando ao bufão: - Aguardo por tua resposta pela manhã. Dono de meu destino, daqui parto pelos caminhos do mundo sob o sol abençoado, livre como o ar e o vento. Aldegundes saiu resmungando levando a vela, deixando Sertório mergulhado na escuridão. Pela madrugada, Sertório foi acordado pelo bufão. Sob a oscilante chama, seu rosto mostrava intensa preocupação, denotando que ainda não dormira. - Como pretendes encontrar a virtude que me falta? – perguntou sem delongas. Sertório sentou-se provocando ruído nas palhas e redargüiu com seriedade: - Já decidiste pagar-me? - Primeiro conte-me como irás ajudar-me? - Primeiro a promessa do pagamento! O bufão levantou-se soltando imprecações. Sertório riu e deitou-se novamente, sem desviar-lhe os olhos. Ele de novo andava de um lado a outro. Finalmente parou e dobrou as pernas, pondo-se de cócoras, com impaciência: - Está bem, prometo pagar-te do ouro! - Quanto? - Dez moedas!

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- Nada feito. - Vinte! - Hum, hum! - Ofereço-te então cinqüenta, nem uma a mais! - Quero um terço do que existe no baú! - Um terço? É loucura, é roubo! Não farei negócio contigo! E saiu furioso, deixando o quarto a escurecer como antes. De madrugada, Sertório levantou-se e andou pé ante pé. Ao chegar à cozinha nada havia visto ou percebido. A escuridão era intensa e ele tateou pela parede, encontrando uma porta. Cuidadosamente abriu-a. Ao sair, percebeu uma luz tremeluzente no fundo do quintal, junto à base do barranco. Aproximou-se, guardando cautelosa distância, e pode ver com certa nitidez que o bufão retirava do baú muitas moedas, enchendo um caixote rude. Havia um buraco cavado no barranco e montes de terra espalhados. Sertório sorriu e voltou ao quarto, deitando-se novamente e dormindo. Ao levantar, pouco depois do dia raiar, foi recebido pelo bufão à mesa, com o desjejum pronto. Eram frutas e um caldo quente e Sertório se alimentou. Houve proposital silêncio de sua parte. Aldegundes, por seu turno, nada também dizia. Após o repasto, Sertório encaminhou-se para o fundo do quintal, dando milho e água a Firmamento e o encilhando. Ao puxar o belo animal e passar adiante da porta o bufão ali o aguardava, Sertório trouxe o chapéu ao peito, dobrou-se levemente e disse: - Muito te agradeço pela hospitalidade, senhor Aldegundes. Não tenho ouro e momentos existem em que moedas pouco valem diante do que nos proporcionam. Assim mesmo pagar-te-ia se tivesse. Impossibilitado, porém, ofereço-te o que de mais precioso possuo na humilde intenção de recompensar-te. E trazendo a viola aos braços, cantou e recitou uma trova - admiráveis momentos de inspirada arte. Mas, como antes, o bufão não se comoveu com a preciosa oferenda do artista, permanecendo rijo e surdo. Terminado, Sertório conduziu Firmamento em direção ao portão e antes mesmo de ali chegar, Aldegundes já o alcançava colocandose ao seu lado, falando nervosamente: - Setenta moedas! Sertório meneou negativamente a cabeça, continuando a caminhar. Aldegundes o alcançou fora da propriedade e ao seu lado novamente propôs-lhe: - Cem! Sertório não parou e nem respondeu, ele fez novo lance: - Uma última oferta: cento e vinte moedas! Sertório, silencioso, voltou-se para Firmamento e fez menção de montar. - Está bem, fazes-me chantagem, um terço do que tenho no baú. Sertório estancou o movimento e Aldegundes olhou-o interrogativamente. - Um terço do teu ouro, incluindo aquele que retiraste do baú esta madrugada. - Raios, então me surpreendeste? – reclamou furioso. - Pela última vez, senhor bufão, aceita minha proposta, ou parto imediatamente? - Maldição, não tenho alternativa. Dize-me, então, como irás encontrá-la? - Primeiramente indo e vindo por aí, sozinho, até que o momento eleito aconteça. - Somente isso? – interrogou-o com ar atarantado.

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- Por enquanto, somente. O bufão grunhiu e gesticulou, andando impacientemente. - Diabos, demônios, como posso confiar em ti homem? Julgava-te uma coisa, agora vejo-te totalmente diferente! - súbito, com a mesma cara enfarruscada, voltou-se agitadamente para Sertório - E que garantias me dás, trovador, de que irás retornar com a virtude, ou com os meios de eu conseguí-la? - Retornarei. Basta dar-te minha palavra. Se houver achado a virtude que te falta, ela virá comigo! Furioso, o bufão entrou, deixando Sertório a sorrir largamente. Sertório partiu levando um terço do ouro. Eram muitas moedas e ele encheu dois sacos velhos que o bufão possuía, - de ganhos dos passantes, - reforçados com fibras obtidas nos arredores, jogando-os aos flancos de Firmamento. Aldegundes, de cócoras, cotovelos nos joelhos, braços encolhidos e mãos semi fechadas, mordia-as e praguejava, vendo-o aos poucos desaparecer por entre ramagens e folhas, ouvindo-lhe o canto cada vez mais fraco. O tempo passou, três meses. Certo dia, Aldegundes corre à porta para atender a um chamado. Ao ver que se tratava de Sertório quase teve um desmaio; recuperou-se, no entanto, mandando-o que se aproximasse. O trovador, puxando Firmamento, chegou-se com sorriso despreocupado e rosto a irradiar alegria e zombaria. Aldegundes, ao contrário, vestia-se de característica carranca. Sertório, parando a três passos da porta, retirou o chapéu da cabeça e o cumprimentou com habitual vênia, dobrando-se ligeiramente: - Boa tarde, senhor Aldegundes, eis-me de volta, conforme te prometi. - Trazendo-me o que foste buscar, espero! - Trazendo-te notícias do mundo, em princípio. - Que me interessam as notícias do mundo neste momento. Quero somente aquilo que necessito e pelo que te paguei! – respondeu em tom agressivo. - É certo, senhor Aldegundes, pois são as notícias que te trago que necessitas. Mas não me convidas a entrar como outrora e não me ofereces alimento? Aldegundes mirou-o desconfiado e grunhiu. Como Sertório nada mais dissesse e aguardasse, ele deu um passo atrás, fazendo aceno afirmativo de cabeça. Após a refeição, em que o silêncio novamente imperou, Sertório resolveu falar, olhando o ansioso e feio rosto do bufão. - Pois bem, senhor Aldegundes, lamento dizer-te que nada encontrei que possa servir-te. - Nada encontraste? Que fizeste do meu ouro? - Distribui-o aos necessitados. -Distribuíste-o aos necessitados? - o truão enfureceu-se, levantando-se repentinamente, batendo com os punhos na mesa - O meu ouro? Diabos, que homem és tu, onde está tua honra, tua palavra? - Diante de ti, homenzinho esquisito! Não te prometi que algo traria, mas sim, que andaria até o momento eleito acontecer. Porém, o quase indecifrável destino não quis ainda mostrar-te o estreito caminho da salvação e eis-me aqui, cumprindo minha promessa de voltar.

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- Meu ouro, fui enganado! – ele sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos e lamentando. - Não lamentes o destino de teu amaldiçoado ouro, avaro! Ao invés, deves lamentar tua insipiência e cupidez. És ainda cego e tolo, após tantos anos já vividos. - Sou um homem amaldiçoado, já te disse! – resmungou com choraminga sem alterar a postura. - És pior do que isto: és uma alma trancafiada em tua própria criação. Apesar de todas as coisas acontecidas erigiste outro cativeiro e nele te encerraste voluntariamente, assim permanecendo. - Que faço agora, como vou livrar-me da maldição? O bruxo estava certo, começo a ter prejuízos e desgostos! - Cala-te, boca insana! Olha ao menos uma vez para dentro de ti e busca a esperança que te resta! - Viverei eternamente aqui, estou prisioneiro das forças satânicas, que fazer? O bufão não se acalmava, chorando a sua sorte. - Dá-me mais um terço do teu ouro que continuarei na busca do que precisas – falou Sertório com naturalidade. - Meu ouro? Estás louco? Fico pobre! – gritou, quase pulando tal o espanto, olhando-o com fisionomia alterada. - Então, creio nada mais poder fazer-te; sem ouro, sem ajuda! - Ladrão eis o que és! Roubaste-me uma vez e queres roubar-me outra. Não te darei nem mais uma moeda, é meu o ouro! - Serei eu de fato o ladrão? De onde te veio o ouro, e de que maneira? - Arrisquei minha vida para ganhá-lo! - Para roubá-lo, hipócrita! Ele não te pertence por direito, nem uma só moeda. Tu és o ladrão, não eu! Apenas fi-lo retornar em parte a quem ele de fato pertence. Se, todavia, preferes viver encerrado e amaldiçoado em tua horrível teia, não te lamentes. Tudo tem um preço. Se não queres pagar por tua liberdade, fazes a pior escolha. Voume embora, adeus, senhor bufão! - Espera! Já dei-te um terço do ouro, portanto paguei-te por minha liberdade. Tenho o direito de exigi-la! - A quem? O bufão calou-se, olhando-o nervosamente. Logo, entretanto, insistindo: - Fizeste um preço, assim assumiste um compromisso, cumpra-o agora! - O ouro que me deste somente pagou uma parte de teus males. A virtude está ainda escondida. Dá-me mais ouro, outro terço, ou terás perdido uma coisa e outra. - Ladino, espertalhão! Não te darei! - Então, adeus, homem tolo. Nada mais posso fazer para ajudar-te! E Sertório levantou-se, saindo. Aldegundes apoiou de novo a cabeça com as mãos ficando a resmungar e a dizer imprecações. Pouco depois, ao levantar o rosto dandose conta de que se encontrava novamente sozinho, desesperou-se, saindo porta afora, gritando feito louco: - Senhor Sertório, senhor Sertório! Sertório, andando pelo quintal, puxava Firmamento. Aldegundes, transtornando, parou adiante, implorando de mãos juntas:

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- Não se vá, por favor! - Nada de querelas ou barganhas. Dá-me imediatamente outro terço do ouro ou não te darei atenção! - Dou-te, mas, por favor, ajuda-me! Sertório partiu e, como antes, voltou alguns meses depois. Ao contar para o bufão que nada trazia e de novo distribuíra o ouro aos necessitados, ele sentou-se ali mesmo, urrando feito animal ferido. Não conseguindo verter lágrimas, puxava os cabelos e rolava pelo chão. Sertório assistia a tudo impassivelmente, ao término do desespero houve um silêncio sepulcral. Finalmente, o bufão falou com voz desanimada e arrastada: - Voltaste não só para dar-me conta de teus atos, mas também para levar-me o último terço do meu ouro. - Exatamente, senhor Aldegundes! – confirmou simplesmente Sertório. - E estás absolutamente convicto de que te darei? - Não, totalmente, porém com muita resistência, creio ainda. - Pois te enganas, astuto trovador. Desta feita não mais resistirei. Porém, não irás só; iremos ambos juntos em tua companhia, meu ouro e eu. - Bravos, senhor Aldegundes, mostras afinal sensatez! Todavia, permite-me aduzir duas exigências: primeira, irás onde eu for; segunda, o ouro estará sob minha custódia, fazendo eu próprio uso dele sempre que necessário. - Então o ouro não mais me pertencerá? - Nenhuma só moeda, se desejares encontrar tua virtude, naturalmente. O bufão estava realmente desalentado e esgotado e fez um breve aceno de cabeça concordando. Tal foram essa facilidade e submissão que Sertório de novo surpreendeu-se. A noite parecera não produzir bons eflúvios na alma de Aldegundes. Pela manhã acordara irritado e maledicente, resmungando entre dentes pelos cantos aonde ia. Partiram. Sertório cavalgava tranquilamente, levando como antes o ouro sobre Firmamento em dois sacos iguais. Já houvera convidado o companheiro de viagem para que montasse, tendo recebido resposta negativa, acompanhada de um grunhido. Em dado instante, notando os fragmentos dos raios solares a se intrometer dentre os espremidos espaços arbóreos e a espalhar figuras múltiplas pelo chão, Sertório, tocado em sua sensibilidade, trouxe a viola adiante, afogando-a de encontro ao peito e afagando-a com mãos carinhosas de pai e de mestre. Então, fazendo escorregar os artísticos dedos sobre as reluzentes cordas, despertou-a da inércia. Como um gigantesco alento, sua audaciosa e limpa voz tonificou com tal ritmo a alma da floresta que só os deuses dos homens saberiam inspirar. Depois mais e mais. Porém, se a alma de todas as coisas ali se regozijava, incluindo o dócil animal que sacudia a cabeça em assentimento, Aldegundes, ainda surdo para a magia dos sons, caminhava ensimesmado em seu egocêntrico e descolorido mundo, tão descolorido como era neste momento o seu rosto cor de cera. Mas Sertório não se incomodava, acostumara-se com almas assim em suas andanças e retornou a viola às costas, passando a assobiar e a murmurar trechos e variações de seu grande repertório.

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Não muito haviam caminhado o bufão pediu para descansar. Sertório, ainda assobiando, freou Firmamento, sentando-se de lado na cela, dobrando uma perna. Aldegundes encostou-se num tronco de árvore e se esticou, gemendo. Como o tempo passasse, Sertório chamou-o para continuar viagem por que havia muito a vencer. Aldegundes não quis obedecer e Sertório tomou posição tocando Firmamento. O bufão, vendo que ficaria para trás, levantou-se de imediato e os alcançou poucos passos adiante. Mal tinham vencido curta distância, Aldegundes pediu novamente para descansar. Sertório mais uma vez aquiesceu, pulando de Firmamento, desta feita andando pelos arredores à cata de frutas silvestres, nada encontrando. Pouco depois, insistia novamente para prosseguirem e retomava a iniciativa. Numa terceira vez, o bufão resolveu pedir-lhe para montar, ao que Sertório concordando com malicioso sorriso, estendeu-lhe a mão puxando-o para o dorso do animal. Adiante, era Sertório quem descia e puxava Firmamento pelas rédeas a fim de não forçá-lo em demasia, pois além dos cavaleiros, o animal levava muitos quilos em ouro e dois grossos cobertores. Depois o bufão descia e andava e Sertório cavalgava. Neste rodízio de posições, alcançaram um casebre de pessoas conhecidas de Sertório, num local retirado da vegetação mais densa, rodeado por um riacho deslizante sobre muitas pedras. Era o lar de um lenhador que ali vivia com a mulher e dois filhos. Sendo próximo do meio dia, os homens retornavam do trabalho numa carroça rude, carregando troncos, e se encontraram todos ao portão. Após saudações habituais e alegres, aguardaram pela apresentação de Aldegundes, ao qual olhavam admirados. Sertório apresentou-o como um amigo. Eles o saudaram e receberam em troca grunhidos e meneios de cabeça do truão. Convidados a entrar, encontraram a mulher alegre e jovial a recebê-los. Sentaramse todos à mesa e o esquisito Aldegundes nada falou, preocupado tão somente em comer. Ao final, Sertório quis pagar pela refeição, mas o dono da casa negou-se a receber, dizendo que o ouro ganho nas duas vezes em que ele aqui estivera fora suficiente para propiciar-lhe adquirir uma parelha de animais novos. Os animais desempenhavam a contento o trabalho, ajudando-os obter pequenos lucros. Pela primeira vez Aldegundes pareceu escutar os assuntos, levantando a cabeça e olhando inquisitivamente para Sertório. Mas a mulher quis ouvir Sertório cantar. Ele, satisfeito, puxou a viola e a atendeu, inebriando os corações generosos daquela gente humilde. Prosseguiram viagem por dez dias. Sertório tinha muitos amigos e os ia visitando. Nessas paradas, aproveitavam para alimentar-se, às vezes dormir sob seus tetos. Ao final, Sertório pagava-lhes. Alguns, a exemplo do lenhador, não aceitavam o pagamento; outros mais necessitados, sim. Por todo o trajeto presenciaram também pobreza ou miséria. Sertório, condoído, ofertava-lhes um pouco do ouro para amenizarlhes o sofrimento. Cada punhado de moedas distribuídas - guardado o devido cuidado para não lhes mostrar de onde as retirava e quanto possuía - pois os sacos passavam por bagagem comum embrulhados pelos cobertores, Aldegundes contorcia-se e se sentia apunhalar. Por causa destas extravagâncias do trovador, o bufão tornara-se mais ainda taciturno, quase assustador a quantos o viam com sua carranca.

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Ao cabo do décimo dia, o ouro de um dos sacos houvera acabado. Aldegundes parecia ter envelhecido cem anos. O relacionamento entre ambos tornava-se cada vez mais difícil, como de dois estranhos, entendendo-se quase que exclusivamente através de gestos. Durante as noites, enquanto dormiam em confortáveis quartos, em paióis ou sob árvores, ajudados às vezes contra o frio por fogueiras, Sertório acordava ouvindo os reclamos e gritos do companheiro em seguidos pesadelos. No décimo quinto dia de jornada, esgotados, avistaram o mosteiro. Isso animou o trovador por que afinal descansaria, mas Aldegundes não se alterou, olhando o prédio simplesmente. Em lá chegando, Sertório foi recebido com calor e levado para um dos aposentos de hóspedes, o mesmo sucedendo a Aldegundes. Após o banho e vestido com um hábito emprestado, Sertório compareceu diante dos religiosos. Na oportunidade, contou-lhes somente parte da história, pois se detinha à promessa do silêncio feita ao bufão e ofereceu-lhes o ouro que restara a fim de que o utilizassem como achassem melhor. Antes, porém, pediu-lhes licença, derramando o ouro no chão, ficando a remexê-lo por uns momentos, finalmente se levantando e mostrando-lhes uma moeda. - Eis o terceiro deles. A cada terço do ouro encontrei dentre as moedas um dobrão. Estranho valor de um país longínquo, logo não pertencente ao nosso padrão, por isso retirei-os. Fico com eles até saber ao certo o que fazer. Ambos permaneceram por uma semana no mosteiro. Sertório descansava e meditava. Aldegundes, calado, trancafiara-se no seu quarto, abrindo somente a porta para receber alimentos. Findo este período, Sertório veio-lhe ao encontro, propondolhe: - Creio termos descansado o suficiente, uma vez que aqui estás de passagem. É natural não nos determos em demasia, por isso partimos amanhã bem cedo, caso não penses em tomar-te de maiores delongas. O bufão olhou-o e piscou, não fazendo qualquer gesto ou comentário e Sertório saiu. O sol se levantava. Sertório pôs-se de pé procurando por Firmamento e o encilhando. Os monges realizaram seus rituais do alvorecer e foram à mesa para o desjejum, vindo Sertório acompanhar-lhes. Mal o tinham acabado, receberam a notícia por um dos irmãos responsável em servir ao enclausurado hóspede, que ele não abrira a porta de seu quarto para colher o alimento e nem respondera aos seguidos chamados. Preocupados, foram até lá e o chamaram insistentemente, não obtendo qualquer resposta, permanecendo a porta trancada. Mediante as circunstâncias, não encontrando outra solução senão lançar mão de uma segunda chave, eles abriram a porta. A surpresa foi total! Viram a cama vazia e ele sentado a um canto, encolhido e sisudo, olhando-os sem nada dizer. Passada a surpresa e como Aldegundes permanecesse imóvel, Sertório solicitou a todos que se retirassem a fim de conversar a sós com ele. Tão logo isto se deu, o trovador fez-lhe perguntas, tentando saber o motivo daquela atitude, mas nada conseguiu. Convencido de que nada obteria do bufão, informou-o estar pronto e preparado para partir, aguardando-o no pátio. Decorrido algum tempo, o bufão surgiu no local combinado, emburrado, ainda alheio a todas as coisas parando ao lado de Firmamento. Sertório despediu-se dos monges e estendeu-lhe a mão convidando-o a

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montar, mas ele recusou a oferta com um gesto rude. Sertório então pulou para a cela e tocou Firmamento. Aldegundes o seguiu. O sol parecia mais radiante, o ar mais leve e o céu mais limpo. Eles retomaram a estrada e desapareceram da vista dos religiosos acompanhando a sinuosidade de um pequeno monte coberto de capim rasteiro. Sertório começou a assobiar, fingindo não se importar com o estado de espírito do companheiro. De vez em quando o olhava disfarçadamente, mas como ele em nada se modificasse, calou o solfejo e falou: - Estranhas e misteriosas são as coisas criadas por Deus. O homem, outra de Suas criações, vive perdido no meio delas. Pode ele, realmente, atribuir valores sem conveniências se tem o péssimo hábito de só olhar de fora, valorizando pelo momento ou o desprezando? Quando possui vangloria-se e exalta-se. Quando não possui luta absurdamente até a morte para possuir. Quão mísero e insignificante é o preço de sua vida ao cambiar-se com os bens terrenos, passando a valer menos do que tudo. Cruel, eis no que se transforma! Insano, eis o que é! A alma do mundo grita e se agita e ele é agitado e impelido para ela num roldão impressionante. Nada vê senão ao seu próprio ser: insignificante e perecível, tão perecível como são todas as coisas da natureza visual. Como chamá-lo para que refreie o seu ímpeto de ambicionar e destruir; de que maneira acordá-lo de seu insensato sonho, para não dizer tenebroso pesadelo? O sofrimento, eis a ponte abençoada que se levanta. Esta perene dor que nunca morre e ao devido tempo vem devorar ilusões e destruir ao próprio homem! - ele mirou-o novamente e o bufão lançou-lhe olhar assustado. Vendo que fazia algum progresso, continuou - Olha tu, o teu próprio mundo. Que fizeste em cento e cinqüenta anos? Se hoje morresses e em seguida renascesses em idênticas circunstâncias, certamente repetirias os mesmos erros, tornando-te, de novo, no mesmo infeliz homem. Vês como os valores atribuídos ao mundo misturam-se de tal forma em tua consciência que não os consegue isolar e a eles te subjugas? E o que representam tais valores senão efêmeros conceitos mundanos, modelados pela alma do mundo, voluptuosa e cega? Mas consegues de fato entender o que te digo? O bufão não respondeu, continuando em sua marcha. Logo, porém, sentou-se para descansar. Sertório pulou da cela e também se sentou; trouxe a viola ao peito e dedilhou-a. Findo o descanso, ele montou e esperou um breve instante. Aldegundes, teimosamente, como outrora, saiu a caminhar, ignorando a tentativa de auxílio do trovador. Tendo eles vencido um bom trecho, Aldegundes levantou o rosto e surpreendentemente falou: - Falas do homem e de sua ambição. Dizes que ele luta com insanidade até a morte para possuir, mas o que seria dele se não lutasse? Como viveria sem o ouro que a tudo compra? - Eis o erro fundamental, senhor Aldegundes. Ao crer-se que o ouro a tudo compra, corrompe-se a alma. A luta na Terra é salutar e necessária. As dificuldades e obstáculos são as lições a aprender. Porém, ao procurar-se por atalhos e neles perderse, desmerece-se. - Balelas! Vê meu exemplo: durante um tempo segui o curso natural da vida, o que obtive? Fui um miserável e insignificante bufão, mandado e pisoteado por um rei e uma princesa cruéis. Depois resolvi lutar pela minha independência e fiz-me rico, podendo ter tudo e sentir o verdadeiro sabor da vida. Mas por um infortunado encontro fiz-te

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meu confidente, confiando-te o meu segredo. Que ganhei com isso? Foi-se o meu ouro por tua intromissão e sou mais infeliz e pobre do que nunca! - Não te queixes, homem injusto e insensato se te libertei da maldição do ouro, já esqueceste? Viveste acorrentado ao ouro por mais de um século. Não o possuís mais, é verdade, todavia é igual verdade que ele também não mais te possui e agora andas livre e sem temores. O bufão dando-se conta desta realidade franziu a testa e seus olhos apertaram-se instantaneamente. Ficou assim por um breve instante, mas logo recomeçou olhando para adiante: - Nem tudo está fácil, resta ainda minha aliança. Possuo a alma presa aos malignos poderes! - Desejas ainda deles libertar-te ou pretendes desistir? - Naturalmente que desejo libertar-me. Por que haveria de querer ficar escravizado? - Então é chegado o momento de procurarmos pela virtude! O bufão estancou, olhando-o com a fisionomia alterada, arregalando os olhos e apontando-lhe o dedo: - Que dizes? Não a procuraste até hoje? Enganaste-me o tempo todo? Sertório puxou as rédeas e parou Firmamento, apoiando a mão sobre o salpicado lombo do animal, virando-se para responder: - Não te enganei, senhor Aldegundes. Disse-te seguidamente que andava a espera que o momento eleito acontecesse. Cumpri primeiro de livrar-te de um cativeiro, agora cuidamos ambos do outro. Mas o inconformismo e a incoerência eram o estado normal do bufão e ele se deixou cair, levando as mãos à cabeça, ficando a lamentar: - Meu ouro, tudo perdido inutilmente! Nada mais me resta, sou o mais infeliz dos homens sobre a Terra! Tendo prosseguido viagem, chegaram a uma taberna, entrando para obter algum alimento. Já àquela hora havia muitos homens espalhados pelas mesas, comendo e bebendo vinho. Ao verem o esquisito bufão, começaram a rir de sua aparência e a exigir-lhe que fizesse algo para diverti-los. Irritado, ele soltou imprecações e atirou-lhes canecas de vinho, promovendo um tumulto. Os homens, vendo nele um insignificante ser para tomar-se de tal energia, avançaram para agarrálo, porém Sertório gritou e falou: - Senhores, por favor, não estragueis o apetite e não sofrais indigestões. O alimento é sagrado como sagrado é o direito de todo o homem de se recusar ao que julga injusto. Não useis da força contra o próximo nem da violência. Antes, ouvi o que a dócil alma da arte tem para dizer-vos e agraciar-vos. E trazendo a viola ao peito, começou a cantar. Os homens se acalmaram, retornando aos seus lugares, ouvindo atentos. - Bravos! - aplaudiu o taberneiro, satisfeito por não ter tido prejuízos - canta e toca mais! - Por dois pratos de comida e duas canecas de vinho, cantarei e tocarei outras duas vezes, aceita? - Aceito! – respondeu prontamente o homem. E assim fez Sertório, sendo aplaudido e elogiado ao final.

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Deixando a taberna prosseguiram. Aldegundes já se alternava com Sertório ao dorso de Firmamento, entretanto permanecia taciturno. Logo chegaram aos limites de uma cidade e nela penetraram. Algo acontecia no lugar; as pessoas corriam pelas ruas, ansiosas. - Um circo, chegou um circo! – gritavam. - Um circo? Quero vê-lo! – exclamou Aldegundes entusiasmado, como que tocado por um raio, pulando do lombo de Firmamento, largando a companhia de ambos e saindo a correr desajeitado e manquitolando. Sertório, aturdido com aquela inesperada atitude do frio bufão, seguiu-o, vendo-o ao longe a dobrar esquinas e perder-se por vielas. Chegando a uma praça, a agitação era geral. As atrações desfilavam diante do público e os artistas faziam mil e uma estripulias. Uns, sem sair do lugar, mostravam empolgante exibicionismo, cercando-se de curiosos espectadores. Sertório procurou Aldegundes e a custo conseguiu vê-lo próximo de uma equipe de saltimbancos. O bufão, na primeira linha de assistentes, prestava inusitada atenção ao malabarismo que realizavam. Depois, viu-o percorrer a todos os cantos da praça, apreciando tudo com real satisfação. Súbito, todas as atenções se voltaram para o centro da praça e os movimentos em derredor estancaram. O povo ali se reuniu; o dono do circo informou que a maior atração do mundo iria agora se apresentar: “Agnes, A Salamandra.” De novo Aldegundes enfiou-se por entre o povo, posicionando-se na frente. Houve o afastar de uma cortina e o aparecimento de uma urna de madeira, feito um caixão comprido e retangular, apoiado em pé sobre um ressalto de terra batida, a guisa de uma plataforma. O apresentador e dono do circo, em voz solene, disse que Agnes havia chegado naquele mesmo dia e aquela seria sua primeira exibição. Ninguém, nem mesmo ele, a tinha visto atuar e, como todos, estava também curioso. O que ela faria? Encerrar-se-ia na urna e mandaria que ateassem fogo, dali saindo somente quando a madeira já estivesse consumida! Feito o pedido para que abrissem alas, Agnes surgiu de dentro de uma carroça sob uma capa vermelha que se arrastava pelo chão, feito um manto. Vinha apertando com uma das mãos o capuz que lhe encobria a cabeça e parcialmente o rosto, deixando unicamente os olhos e parte da testa pouco descobertos. As pessoas abriram espaço; ela percorreu o pequeno trecho subindo o ressalto e parou diante da urna. O povo se assustou com a estranha figura, se afastando uns passos. Dois homens abriram a urna e ela entrou. Eles começaram a juntar palha seca de um dos fardos ali deixados e junto à Agnes passaram a encher os espaços internos da urna. Os demais fardos foram empilharam à volta. O silêncio era absoluto, ouvindo-se tão somente os ruídos provocados pelos homens que realizavam a tarefa. Estando tudo preparado, eles acenderam uma tocha e atearam fogo na palha de dentro da urna, fechando-a, e em seguida nos fardos, se retirando. O fogo ardeu, cresceu e rapidamente se espalhou, produzindo grande fogueira, derramando calor sobre todos, fazendo-os recuar novamente. Quando o fogo já havia

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consumido os fardos e com incontida ânsia crepitava sobre a madeira, as paredes da urna começaram a se descolar e soltar-se, caindo por terra. Estupefato, o povo ia vendo-a imóvel, envolta e tomada pelas chamas. Uma espécie de terror os invadiu; seria possível sobreviver a isto? Passados instantes, o fogo que a envolvia completamente veio declinando e já conseguiam ver parte de seu rosto. De repente, como que obedecendo a uma voz de comando, as chamas se extinguiram todas e Agnes reapareceu por inteiro, nua e exuberante, intacta e de braços abertos. As mães, em ato reflexo, horrorizadas, procuravam tapar os olhos dos filhos. Os homens não sabiam ao certo se admiravam sua nudez ou aquela incrível performance, inacreditável aos olhos humanos! Alheia a soma de reações da platéia, ela passou a girar de braços abertos, sorrindo plenamente ao ato vitorioso, dançando como uma deusa ígnea! Ao vê-la assim, magnífica, e notar a incomparável e agressiva beleza de seu rosto, beleza jamais suspeitada numa mulher, e verificar que seus fartos cabelos pousados sobre os ombros eram da cor da própria chama, Aldegundes saboreou incrível entusiasmo, sentindo no peito uma espontânea emoção e delicioso calor no coração. Assim exaltado, ele mal conseguiu levar a mão ao cinto, lembrando-se de que trazia a mecha ali escondida, puxando-a para diante do rosto a fim de compará-la aos cabelos da maravilhosa Agnes. Ofegante, atestou que a mecha era idêntica em cor, e isto a valorizou extraordinariamente. O povo nem ainda se recuperara do impacto da estonteante e desnuda aparição, quando lhe lançaram sobre o corpo um cobertor, envolvendo-a rapidamente, retirandoa de cena para dentro da carroça de onde saíra. Muitos homens protestaram, mas o dono do circo elevou de novo a voz, dizendo-se tão surpreso e extasiado quanto todos. Solicitou que jogassem suas moedas nos sacos de coletas que as moças saiam a carregar, a fim de que pudessem fazer face às suas necessidades e conseguir proporcionar-lhes novos e fantásticos espetáculos. Em meio ao rebuliço, algumas mulheres se reuniram e começaram a protestar contra a impudica e imoral apresentação, ao passo que outro grupo, só de homens, contrapunha-se aplaudindo e gritando calorosamente o nome de Agnes, abafando os protestos femininos. Aldegundes, surdo a tudo, permanecia estático com a mecha apertada à mão, mirando a carroça onde Agnes se escondera. Seu rosto revelava um ar hipnótico e os olhos se apertavam em olhar distendido. Sem dúvida, jamais vira tamanho espetáculo, jamais sentira algo assim! Sertório, puxando Firmamento, aproximou-se do bufão, porém ele não os viu, continuando a fitar a carroça com o olhar distante. - Vamo-nos, senhor Aldegundes, precisamos encontrar um lugar onde ficarmos. – falou Sertório parando ao seu lado. - Ficarei aqui! – respondeu Aldegundes, secamente, sem olhá-lo. - Aqui, onde? - Aqui, quero vê-la mais vezes! - Agnes?

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Ele somente meneou a cabeça e caminhou até a proximidade da carroça onde ela se encontrava. Sertório ficou a observá-lo. O bufão chamou, vendo a cortina abrir-se e o rosto do dono do circo aparecer na porta. Pediu-lhe então para ficar e trabalhar. Faria qualquer serviço em troca de comida e dormida, nada mais. Mediante tal compensatória oferta e como estivessem sempre a precisar de braços para o trabalho, ele o aceitou. Ademais, sendo anão se confundiria com os especialistas do circo, podendo até figurar em espetáculos. Como Aldegundes fosse aceito, Sertório aventurou-se a também pedir pousada e comida; em troca cantaria e alegraria aos artistas. - Já temos músicos, senhor, não precisamos mais! - Devem ser bons, não os desmereço, mas o que trago comigo é algo que eles certamente não possuem! - O que, senhor? - A alma da arte. Ela vive em mim é meu alimento. Mas aprecio compartilhar dela com todos que a amam! O homem olhou-o incrédulo. Estava acostumado com falsos virtuosos. Sertório, vendo-lhe a desconfiança, tomou a viola e começou a cantar. Ao término, muitos o rodeavam e o dono do circo tinha pulado da carroça, pedindo-lhe: - Canta mais, senhor...? - Sertório, vosso amigo e das artes. - Sertório?! – surpreenderam-se muitos. - Sertório, o trovador, raios, porque não me disseste logo? - Não acreditarias, caro senhor, foi preferível antes cantar. Então, me aceitas? - Por todo o tempo que desejares. Mas canta, canta outra! E Sertório, satisfeito, cantou e inebriou-os. E cantou mais após o jantar, até que todos se recolhessem para dormir. Entusiasmado com Sertório e com o sucesso da apresentação de Agnes, ele ofereceu ao trovador lugar em sua carroça, que era a mais espaçosa e confortável, porém Sertório recusou polidamente, preferindo ir fazer companhia a Aldegundes noutro lado da praça. Assim, sobre dois colchões velhos dormiram debaixo de uma carroça mais modesta. Manhã seguinte, Aldegundes foi chamado para os trabalhos e Sertório, mais tarde, solicitado pelos músicos e artistas a conversar. O bufão ia e vinha carregando coisas, servindo de auxiliar nas tarefas, obedecendo sem o menor rancor. Sertório cantava e ensaiava os músicos com novas canções ou corrigia-lhes aqui e ensinava-lhes acolá. Veio o almoço e depois a hora de novo espetáculo. Eles haviam construído outra urna sobre o ressalto de terra providenciando que, tão logo o fogo se extinguisse, lançassem novamente um cobertor sobre Agnes a fim de que ela não expusesse sua nudez, como já acontecido. Agnes entraria na urna e lançaria fora a capa fornecida pelo dono do circo tomada emprestado de uma equilibrista. Tendo-a largado, eles a guardariam por que não podiam, a cada espetáculo, dar-lhe uma nova, embora aquela que se queimara, ela a tivesse trazido.

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Após a fulgurante apresentação Agnes se fechara em sua dependência e dali não saíra para nada, nem para comer. Ninguém a vira mais e representava um mistério. Chegara de repente; apresentara-se ao dono do circo com aquela capa vermelha e nenhuma bagagem, gesticulando e se oferecendo para fazer esse sensacional número. Não pronunciara uma só palavra, somente sibilos, mas conseguira convencê-lo de que realizaria o que propunha. Entusiasmado com aquela extraordinária mulher, ele a aceitou dando imediatas ordens para que lhe arranjassem todas as coisas, oferecendolhe uma dependência em sua carroça, na divisão do fundo. Sentiu por ela enorme atração e quando perguntada sobre seu nome ela se abaixou e escreveu com o dedo: Agnes e ele alcunhou-a, A Salamandra, julgando-a, todavia, muda. Preocupado com sua ausência, chamou-a, perguntando-lhe se estava bem e se faria hoje nova apresentação. Ela enfiou a cabeça pela fresta da porta confirmando com aceno positivo, abrindo largo e maravilhoso sorriso. Neste dia, Aldegundes não se acalmou. Realizava suas tarefas buscando passar sempre próximo à carroça na intenção de vê-la. Não dormira aquela noite. A imagem espetacular de Agnes, seu rosto, seu sorriso, tudo dela impregnara-lhe a memória. Ele esquecia-se e aos percalços, ao ouro perdido, à maldição, à infelicidade que por toda a vida permeara-o. Agnes passara a viver nele obsessivamente, a sugá-lo, ao mesmo tempo a alimentá-lo. Desejava vê-la novamente, depois mais, a vida inteira, nada lhe importando a partir de agora - somente Agnes! A notícia sobre Agnes havia corrido pela cidade como um relâmpago, reforçada pela propaganda que os componentes do circo haviam feito neste dia para mais um incrível espetáculo. À hora anunciada a praça superlotava. Para a garantia da arrecadação, o dono do circo mandara coletar as moedas antecipadamente, não obtendo aquilo que esperava, insistindo, porém, que, ao final, todos se sentiriam na obrigação de pagar mais, tal a grandiosidade das apresentações. Porém, o lançador de facas, o equilibrista, o levantador de pesos, o lutador que desafiava qualquer adversário, os saltimbancos; nenhum destes, nem outro qualquer, prendiam a atenção dos espectadores. O público quase inteiro se postava impacientemente diante da urna de madeira parcialmente invisível, encoberta por lances de véu. Havia ruídos, nervosismo e agitação. Hoje não se viam crianças, nem mocinhas, mas homens de muitas categorias e profissões, religiosos e mulheres. Como as atrações ali exibidas não causassem mesmo maior interesse, e vozes já exigissem a presença de Agnes, o dono do circo resolveu atender. Não seria bom o nervosismo de um público assim aumentar. Anunciada sua presença, exagerada ao máximo na dramaticidade, ele mandou que retirassem o suporte que prendia os véus, deixando a urna completamente à vista e a chamou. O povo de novo se abriu em alas. Para a surpresa do pessoal do circo, Agnes surgiu vestida com outra capa vermelha, exatamente igual a que o fogo consumira-lhe no dia anterior, com o capuz enfiado na cabeça, entrando na urna sem despi-la. De onde a teria obtido?

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De novo o povo silenciou. Os homens realizaram aqueles mesmos movimentos preparatórios, aumentando propositalmente a expectativa do público, incendiando a urna por dentro, fechando-a, e depois ateando fogo nos fardos. O fogo se espalhou e cresceu. Em pouco tempo as partes da urna caíram ardentes e enfraquecidas. Agnes então apareceu inteiramente encoberta pelas chamas, a exemplo de uma fogueira. Os auxiliares, cobertor à mão, tomaram posição e se prepararam para envolvê-la tão logo o fogo se apagasse. Mas o fogo não se apagou. Em inacreditável seqüência, as labaredas escorregaram e vieram se constituir numa roda viva em derredor de seu corpo - um anel ígneo que mantinha todos à distância - deixando-a novamente nua e de braços abertos, a girar majestática. Diante da visão muitos se abismaram, porém, muitos, principalmente religiosos e fanáticos, horrorizaram-se, gritando e exigindo que terminassem com aquilo. Mas Agnes, como antes, ignorava-os. Vestida somente de irônico e deslumbrante sorriso ela girava e se mostrava. Como os protestos, desta feita, constituíssem maior volume do que os aplausos e um tumulto ameaçasse acontecer, o dono do circo pediu-lhe para que saísse de cena. Ela, entretanto, ignorou-o e a todos, permanecendo a girar e a sorrir, protegida pelo anel de fogo. Gritos de bruxa e feiticeira saíram de muitas bocas. O dono do circo, apavorado com a possibilidade de drásticas conseqüências, ordenou que lançassem baldes de água sobre o fogo, mas tudo inútil, o anel ardia e permanecia. Um dos homens ensopou-se e se preparou para pular dentro do anel a fim de arrancá-la de cena de qualquer maneira. Ela, vendo-o, fez movimento com o braço e o anel fechou-se de cima abaixo, voltando a envolvê-la em crepitante fogueira. Este mágico ato fez que recuassem apavorados, inclusive os que a aplaudiam! Foi uma confusão geral, mas de novo o fogo arrefeceu e voltou a se constituir no anel, e ela a mostrar-se como antes, bela e imponente, a girar e a sorrir. O povo agora a temia. Todos concordavam que ela não podia ser humana. E se resolvesse se voltar contra eles? Era perigosa, precisavam fazer algo! Quanto mais confabulavam, mais iam se afastando, temendo e rezando, pedindo aos céus por uma miraculosa intervenção. O pessoal do circo, igualmente confuso e amedrontado, também se afastara, a nada mais se aventurando. O dono do circo, aproveitando-se de que não reparavam nele, correra e se escondera, temendo represálias. Sertório, de longe, montado em Firmamento, contemplava os acontecimentos com impassibilidade, aguardando o resultado. Mas dentre todos, havia um só que não arredara pé e fiel espectador permanecia admirando-a. Com a mecha novamente à mão, Aldegundes apertava-a fortemente: estático, extasiado, ardente, não perdendo um só de seus movimentos! Ali estava Agnes, a mulher mais extraordinária que jamais vira em toda a sua secular vida. Ela o fervilhava, agitava-o; rolava-lhe torrentes de lavas pelo sangue; produzia-lhe indizível torvelinho de paixão! E ele ali estava: destemido, reverente, apaixonado, ansioso e apelante! Ele a via e a desejava; ela pulsava-lhe, explodia-lhe! Era o peito, o coração, o sangue, as mãos, era sua alma - toda Agnes!

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E Agnes prosseguia na sua dança do fogo, provocando novas erupções em Aldegundes, ativando fortíssima voltagem em todo o seu ser, alastrando-se dentro de um mundo outrora frio e vazio, inflamando-o em cada fímbria que possuía. A claridade das serpenteantes chamas movia-se inconstantemente em seu rosto. Os prisioneiros olhos só refletiam aquela arrebatante imagem! Súbito, ele foi acordado e tirado daquela soma de revoluteantes sensações, ouvindo os gritos da multidão, gritos mais fortes. Eram brados que se misturavam no ar, indo do pasmo ao terror, da satisfação ao medo; coisas que se produziam nas impressionáveis almas de quem a bem pouco havia aplaudido entusiasticamente. O volume dos protestos ia ganhando corpo: a massa agitava-se ameaçadoramente, embora não ousasse ainda uma ação declarada. Tendo se conscientizado do perigo, ele se tomou de tremor, que nada tinha a ver com a sucessão de abrasantes desejos que dele se haviam apossado traduzidos em incandescente paixão, e apelou-lhe quase sussurrante, procurando conter-se na excitação; - Por favor, eles vão maltratar-te! Ao escutar estas palavras, ela baixou o rosto encarando-o. Ante o ardente olhar, Aldegundes sentiu o mundo rodopiar dentro de sua cabeça e chamuscantes faíscas salpicar-lhe o corpo, cegando-o para tudo mais, produzindo um manto de trevas em derredor. Agora só ela existia. Ela era-lhe a vida, o alento, o mundo, a deusa de todas as coisas que se resumiam na sua única soberana e soberba presença. Essa ilusória sensação, porém, logo diluiu-se, como se diluiu o anel de fogo que a circundava, expondo-a ao perigo e à sanha da multidão. Aldegundes, ressurgindo do torpor, teve um lampejo de lúcido heroísmo e pulou para o ressalto de terra, segurando-a pela mão. Encorajada pela extinção do fogo, a turba urrou e avançou, vindo os homens à frente sem saber ao certo se agiam somente desejosos de agarrá-la e senti-la ou com outro objetivo ainda não definido. Vendo a carroça como alternativa mais próxima ele para lá se dirigiu, puxando-a com dificuldade, perdendo terreno para os perseguidores. Entretanto, Sertório surgiu à sua retaguarda, empinando Firmamento com estardalhaço, assustando-os e gritando para que se acalmassem. Isto valeu a ambos os fugitivos ganhar preciosos segundos e subir na boléia da carroça. Aldegundes imediatamente chicoteou os cavalos, entrando pela primeira rua que encontrou. Mas o povo, insatisfeito, correu atrás e os perseguiu até próximo dos limites da cidade, ali parando. Os mais exaltados, - a maioria fanáticos religiosos, - começou a esbravejar e a insuflar a massa, apontando Agnes como perniciosa e endemoninhada, perigosa em todos os sentidos. Precisava ser destruída, bem como seu acompanhante que com ela se pactuava e contraíra o mal. Assim, insuflados ao extremo, mais aterrorizados do que justiceiros, eles se organizaram. Como aqueles desatinados gritos e balbúrdia despertassem a atenção da polícia, ela se detivera a acompanhar o povo. Deixando-se envolver pela tempestuosa atmosfera emocional, os soldados tornaram-se também solidários com a opinião geral, e partiram a cavalo pela estrada a fim de alcançá-los.

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Neste comenos, a gente do circo, às pressas, arrumou suas coisas e fugiu pelo outro lado da cidade, dando graças que o povo os tinha esquecido, mas certo de que logo retornaria. Com efeito, o povo voltou furioso para a praça a fim de arrasar o circo. Necessitava extravasar a ira destrutiva que deles se apossara, mas não o encontrou, ficando desapontada. Por outro lado, Aldegundes tomara a estrada principal e se distanciara, perdendose depois entre o arvoredo de pequeno e marginal bosque. Julgando-se a salvo parou numa clareira, debaixo de uma trepadeira folhada que se emaranhava nos galhos das árvores, e pulou da carroça. Movendo-se rapidamente pela periferia da clareira, deu-se conta de estar a sós com Agnes. Tomado então de um arremedo de escrúpulos, buscou e achou um lençol dentre a roupa dobrada a um canto da carroça, correndo para Agnes, que já se achava no chão, cobrindo-a. Suas mãos tremiam; Agnes o perturbava com aquele olhar e enigmático sorriso. Quis dizer-lhe algo, mas não encontrou palavras. Era-lhe difícil justificar sua desassombrada e heróica atitude, o porquê de sua paixão - se estas coisas se explicam - se tanto não conseguia entender, se a confusão em si se instalara, e calou-se. Entretanto, lembrou-se da mecha e buscou-a entre o cinto e a roupa, não a encontrando. Preocupado por este fato, correu opresso para a boléia da carroça, procurando-a avidamente, remexendo pelo banco e debaixo dos panos dos assentos, agachando-se e achando-a, ali, no chão, trazendo-a triunfante, estendendo-a para próximo dos cabelos dela. Era idêntica, sem qualquer dúvida, como se lhe pertencesse, parecendo ter saído de sua farta e anelada cabeleira. Mas Agnes nem a olhou, continuando calada e sorridente, e Aldegundes baixou os olhos, tímido, embaraçado, submisso diante da estonteante figura alva e rubra. Esta atitude, porém, não durou mais do alguns segundos por que logo a via girar, lançando fora o lençol branco, abrindo de novo os braços a solfejar. Era algo forte, penetrante e agudo, um indescritível sibilo que o deixava atordoado. Ela girou mais rápido e sibilou mais forte. Aldegundes não conseguia manter os olhos abertos: fechava-os e abria-os. Via-se agora girando com ela, embora, estranhamente, permanecesse parado. Ela continuou a girar e ele percebeu que acontecia alguma coisa inacreditável: via-se e sentia-se em dois lugares ao mesmo tempo, em torno dela e aqui parado! Mas o Aldegundes que lá estava: etéreo, volátil, sensível a tudo, era um desdobramento deste daqui, embora ele próprio; como um instrumento que recebe a ação e repercute na caixa. O sibilante canto já o envolvia amplamente, prendendo-o, tolhendo-o, produzindolhe inebriante sensação. Fazia-o circunscrever uma órbita qual um planeta em torno de seu sol. Quando aquilo atingia a um auge e Agnes rodopiava com incrível velocidade, ela subitamente estancou, causando à Aldegundes fortíssima atração, indo sua projeção chocar-se violentamente contra o belo corpo de Agnes. Neste exato instante, ele gritou levando a mão ao coração, sentindo-se rasgar e queimar, o mesmo sucedendo com ela, caindo ambos ao chão. Por quanto tempo permaneceu desfalecido, não conseguiu saber. Foi dar-se conta no momento em que abriu os olhos, sentando-se assustado, vendo-a ali, em pé, a olhálo e a sorrir-lhe. Levantando-se meio atordoado, não teve tempo de pensar em nada,

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porque escutou ruídos à esquerda. Era Sertório que vinha cavalgando por entre arbustos e árvores. Mas Aldegundes não chegou a vê-lo. Atrás de si, escutou ruídos mais fortes, virando-se. Eram os seus perseguidores, que os vendo, gritaram furiosos feito um bando de índios selvagens e investiram. Um deles, soldado da polícia, mais arrojado, preso à forte sugestão dos fanáticos, portando somente a idéia do extermínio, apontou sua lança para Agnes arremessando-a. Aldegundes, percebendo aquilo segundos antes, pulou adiante, recebendo a lança no peito, sendo trespassado. Não satisfeitos, eles continuaram a avançar com a mesma fúria e outro deles apontou nova lança contra Agnes. Ela, porém, levantou um braço produzindo uma cortina de fogo em derredor, assustando os cavalos que frearam, jogando-os a quase todos ao chão. Eles se espalharam e o fogo cresceu mais, lançando-lhes línguas que aterrorizavam. Acreditando mais do que nunca que se tratava de uma bruxa possuidora de forças demoníacas, impossíveis de serem vencidas, correram espavoridos, gritando por seus protetores no céu, abandonando o lugar. Logo o fogo decresceu e sumiu. Sertório que a tudo observara, aproximou-se, indo atender Aldegundes. Porém, era tarde. O bufão não mais vivia naquele pequeno e disforme corpo. Seu rosto mostrava-se pálido e os olhos estavam fechados. As mãos seguravam a mortífera lança; o sangue escorria-lhe abundantemente pelas vestes, indo manchar a verde relva. Sertório olhou em torno ouvindo um sibilante som e seus olhos puderam perceber uma forma clara e ardente que se esboçava e se afirmava. Atrás dela e em redor, formas negras pretendiam abraçar, mas não ousavam, sendo rechaçadas. Em novo seguimento, ele viu as chamas conformar-se em Agnes, mas não se sustentavam, transformavam-se ao mesmo tempo em serpente que se enrolava em torno da alma de Aldegundes, produzindo um tipo de energia que mantinha à distância as formas negras. Aldegundes, neste espaço etéreo, permanecia inerte com olhos fechados, qual seu corpo físico na Terra. Sem dúvida seria levado para regiões mais altas, a salvo das incursões das trevas, a fim de ser tratado e mais tarde conduzido ao Tribunal dos Justos onde escutaria sua sentença. Sertório, com as poucas ferramentas encontradas na carroça, cavou pequena cova ali mesmo, enterrando o corpo do bufão, envolvendoo no mesmo lençol com que cobrira Agnes. Em seguida, fez uma cruz de paus e cipós, fincou-a, e orou por ele. Depois subiu na carroça, conduzindo-a até a primeira estalagem fora da cidade, deixando-a lá com uma gorjeta e a recomendação de que avisaria o pessoal do circo onde reavê-la e aos dois cavalos. De volta ao mosteiro, relatou-lhes toda a história desde o início por que não precisaria mais reter-se à promessa feita ao bufão. Finalizando, estendeu ao principal uma pequena algibeira de couro, pronunciando em voz quase grave as seguintes palavras, que soaram como uma profecia: - Eis aqui os três dobrões que separei do ouro amaldiçoado. São como três irmãos estrangeiros que viveram as experiências do mal; três flores do pântano que realizaram a alquimia da terra; três criações que havendo mergulhado e conhecido, virão levantarse sob a plenitude da vida e sobre o ontem. São o amanhã que se desvelará para os

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homens de pouco viver. Estranho, não? Três peças, três moedas que cruzarão destinos! Anos mais tarde, dois monges partiriam para terras distantes cruzando o mar, com a missão de fundar outro mosteiro, levando entre seus objetos pessoais a algibeira de couro e os três dobrões.

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OS TRÊS DOBRÕES

RAYOM RA

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Eram-lhe confiadas as mais difíceis tarefas. Ele sempre sabia o que fazer, qual decisão tomar, qual o momento de atacar ou de aguardar. A inteligência, o apurado faro para os negócios, as perfeitas e objetivas análises: tudo isto, sem dúvida, o tornava o homem mais importante daquela importante empresa. Só não lhe tinham oferecido o cargo de presidente, isto o próprio presidente não faria. Hermes Roubard acumulava cargos e títulos e manipulava o dinheiro com extrema facilidade! Os amigos fiéis de quem é bem sucedido o rodeavam; convidavam-no para todo o tipo de distrações; as mulheres o cortejavam. Tudo lhe vinha às mãos! Possuía uma bela casa onde morava. Investia em ações, letras; obtinha rendimentos. Recebia visitas importantes, de vez em quando para retribuir às atenções promovia e organizava festas. Hermes Roubard era admirado, desejado, invejado! O tempo ia passando e sua fama crescia. Mas um dia deu-se conta de algo a incomodar-lhe. Que seria? Era alguma coisa a roer-lhe por dentro, a tirar-lhe a concentração não o deixando em paz! Cansaço! Boas férias junto de amigos certamente lhe fariam bem! O presidente aplaudiu a idéia, ressalvando, porém, que logo precisariam dele. Roubard preparou-se para a viagem, telefonou aos amigos no exterior partindo no vôo noturno! Receberam-no com grande alegria. Hospedava-se entre pessoas de reais posses e influência. Tudo fizeram, todas as distrações e prazeres lhe proporcionaram; nada lhe permitiram faltar. Mas ele não conseguia esquecer. Esquecer o quê, Roubard? Ele mesmo não sabia! Resolveu interromper as férias retornando a casa. Não lhe foi difícil arranjar uma boa desculpa. Chegou sem se anunciar ficando dias trancado. Tentava ler, concentrarse em alguma coisa. No meio das madrugadas, sob a argêntea lua, caminhava pelo enorme pátio nas floridas alamedas; sentava-se na grama, andava em redor da piscina, roía as unhas e pensava. Pensava sobre si, sua carreira, sua vida. Mas por que pensava tanto? Não sabia também responder! Uma tristeza veio acompanhar-lhe as cismas e um gosto amargo navegar em suas emoções. - Voltarei ao trabalho assim esquecerei! O presidente recebeu-o efusivamente; mostrou-lhe desde logo os assuntos que se haviam acumulado desde sua partida. Roubard procurou interessar-se, penetrar nos problemas, buscar motivações. Tudo se resolveu com incrível rapidez e viu-se novamente festejado e aclamado!

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Roubard agora não dormia. Descartava-se dos convites cumprindo somente os compromissos inadiáveis. Tudo lhe era pesaroso: o trabalho, as reuniões sociais, os dias! Mas nada se alterara externamente; ele continuava a receber abraços e felicitações! O presidente notou-lhe as olheiras. Roubard foi encaminhado ao melhor médico. Fez exames; trouxe consigo uma receita de comprimidos comprou-os e os tomou. Tudo inútil, cada dia piorava! Os amigos procuravam interessar-se. As mulheres o visitavam e o acariciavam, mas ele logo as despedia alegando cansaço. Roubard pediu licença do trabalho. O presidente quase enfartou ao ouvir aquela horrível notícia. Tentou demovê-lo. Afinal, o trabalho sempre fora sua principal distração. Ele estava decidido e a licença lhe foi concedida. Acompanhou-a grande rebuliço e preocupações por sua sorte, pela sorte da empresa! Roubard mergulhou em misantropia. Somente a governanta e os dois empregados tinham contato com ele, mesmo assim a horas certas. As profundas olheiras, a barba e cabelos crescidos e o descaso aos trajes causavam pena ou medo! Roubard proibiu abrirem os portões e ninguém mais veio visitá-lo. O tempo foi passando, os empregados foram embora temerosos de suas esquisitices. A governanta foi a última a se despedir. - Coitado do senhor Roubard, tão moço e já ficando louco! O abandono era completo: a casa desarrumada, as roupas amontoadas por lavar, a cozinha em total desarranjo, as plantas descuidadas, o gramado por aparar, a piscina vazia e empoeirada. Os bichos e plumosos pássaros que possuía em viveiros e os cães de raça tinham sido roubados pelos empregados! A caixa do correio superlotava, mas ele não recolhia a correspondência! Um dia o presidente veio visitá-lo. Roubard não se importou com sua presença ficando ali mesmo sentado sobre a alta grama. A empresa precisava dele, do seu talento e inteligência. Muitos problemas haviam surgido; enfrentavam tremendas dificuldades porque ele lá não estava. O presidente implorou, propôs-lhe dobrar sua retirada, a participação nos lucros: ele não aceitou. - Por que está jogando fora todas essas coisas, Roubard? - Porque não sou feliz! Roubard agora estava realmente só e abandonado! Nova e interminável noite começava a cair e ele se recolheu. Fazia dias que não entrava no próprio quarto. Sentou-se na cama, pensativo e pesaroso. As lágrimas afloraram quase de imediato, banharam-lhe a barba e molharam o lençol amassado. Foi um choro diferente, mais prolongado, mais sentido e ele pôde ali traduzir toda a angústia, toda a sua alma - e desejou morrer!

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A noite se prolongou. A madrugada arrastou consigo o corpo cansado e emagrecido de Roubard. Foi um sono profundo como há tempos não acontecia, e sonhou. Sonhou que caminhava pela borda de um horrível abismo, cheio de negrume e algo visguento a escorrer das paredes. Que importava este repelente aspecto, a vida não tinha face mais atrativa. Basta um pulo e tudo estará terminado! Lá embaixo só escuridão, nada mais. Aqui em cima, um homem desagregado. Mergulharei no desconhecido, quem sabe não estará lá a resposta? (Não, Roubard, ainda não!). De onde virá esta voz? (Não pule, Roubard!). Por que não? Sou tão infeliz; a vida para mim é somente uma sombra, mais negra do que as profundezas deste abismo! (Quer ser feliz?). Se quero ser feliz - ironizou - sou jovem e a vida se transformou em amargor. Onde estará esta quimérica felicidade, onde? (Vou dizer-lhe: lá adiante há dois caminhos, vê-os?). Vejo-os muito mal, somente os percebo. (Assim já está bem. Você deverá lá chegar e tomar um deles. O caminho da felicidade é o mais longo. Se realmente desejar a felicidade irá encontrar esse caminho!). Roubard acordou agitado. Em sua lembrança ecoavam as palavras: o caminho da felicidade! - Mas qual a direção, qual o rumo? - resolveu sair a procurá-lo - E se for distante? Tomarei meu carro, o procurarei! O carro estava ainda na garagem, empoeirado como tudo. Os pneus tinham se esvaziado e não havia combustível. Roubard tomava-se de indecisões. Outrora traria imediatas soluções para estes pequenos problemas. Hoje, no entanto, vacilava, suava, ficava nervoso. Procurou no depósito. Quase nada lá havia: tinham levado tantas coisas, aqueles empregados indignos! Achou um galão. Por sorte tinha ainda combustível; daria para chegar ao posto mais próximo; mas quanto aos pneus? O posto não é distante, tentarei assim mesmo. Será que andará? Porém o motor não acionou; não tinha bateria, haviam-na também roubado. Ele desesperou-se, que fazer? Hermes Roubard sem dúvida estava mudado. A misantropia na qual mergulhara tolhera-lhe os muitos de seus reflexos práticos. Sentia-se inútil, inferiorizado, sem forças de combater! Sentou-se na grama, no mesmo lugar de sempre. Quis afundar em pensamentos, mas lembrou-se do sonho, do caminho da felicidade. Vamos, Roubard, ânimo! Levantou-se e correu para dentro; abriu a gaveta retirando de lá um maço de notas. Com este dinheiro mandarei consertar meu carro. Dará? Só tenho este! E saiu. Pouco depois retornava num jipe com dois homens. Traziam todos os acessórios necessários. Terminado o trabalho pagou-lhes e deu-lhes gorjetas. Eles saíram satisfeitos da vida, desejando-lhe mil felicidades. Roubard partiu. Deixava tudo exatamente como estava. Na mente portava uma só idéia: o caminho da felicidade! Por onde ia olhavam-no curiosamente; ele não ligava a nada; acariciava aquela idéia com paixão e desejo - aquele sonho! Deixou a cidade, ganhou estradas, cortou por atalhos, cruzou sobre uma ponte e rodou por outros lugares. - Onde estará este caminho, onde? - Adiante o combustível terminou - Raios, e agora? - Nada havia por perto, ninguém para auxiliá-lo, ele abandonou o carro.

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A tarde logo terminaria, mas o Sol continuava inclemente. Ele parou à margem daquela estrada de terra para descansar. O desânimo ameaçava enlaçá-lo, ele lutava para não se entregar. Tinha forças ainda, por quanto tempo? A sede e a fome o incomodavam, porém o que isto representava diante de sua busca? Na primeira curva enorme susto: adiante da estrada, a alguns metros, os dois caminhos! Ele correu..., quanta emoção! Tão excitado ficara que somente foi reparar em alguém sentado ali, entre os dois caminhos, ao chegar. Era um monge, Roubard reconhecia o hábito. Um desapontamento o tomou! - Boa tarde, meu filho. Sente-se, descanse um pouco! - Roubard sério, um tanto arfante e sisudo, sentou-se ao lado do monge - Parece-me sedento e faminto. Tome, beba de meu cantil, coma de meu pão! Roubard quis recusar. A sede e a fome não lhe permitiram. Tomou o cantil e o pão das mãos do monge, bebendo avidamente, mastigando com instinto de lobo. O monge olhava tranqüilamente para adiante. Ao término, Roubard devolveu-lhe o cantil. O monge, com gesto sacerdotal, recolheu-o. - Chamo-me Antônio, irmão Antônio, você como se chama? - Hermes Roubard! – respondeu contrariado. - Sabe, Roubard, estou aqui há quase uma hora. Eu sabia que você chegaria a qualquer momento. Roubard deu um pulo, pondo-se de pé. Seu rosto tornou-se carmim. - Sabia, como? – encarou ao monge. - Um monge conversa com Deus todos os dias. Ele quando quer responde. Tive uma visão, você acredita em visões? - Não sei... Nunca tive uma. - Pois bem, a visão mostrou-me exatamente este lugar e a companhia de um homem como você. Juntos trilharemos o caminho da felicidade. - O senhor também, um monge? - Chame-me de você, Roubard. De agora em diante marcharemos lado a lado. Não se surpreenda comigo. Monges buscam exatamente aquilo que você busca, que todos buscam consciente ou inconscientemente. A felicidade é de todos, pertence-nos. A maioria, entretanto, não sabe como procurá-la se distanciando dela. Mas nós vamos encontrá-la. A felicidade representa para nós a coisa mais importante: mais do que o pão que comemos e a água que bebemos. Ela é como o ar, o alento etéreo, a verdadeira vida! Um monge que não a almeja e não a visualiza, jamais chegará a entender o significado da própria vida, o sentido de viver, nem um homem do mundo como você. Somos, portanto, iguais, Roubard, você e eu, e juntos estaremos até o fim! As palavras saiam-lhe impregnadas de uma forte energia que a princípio parecera não possuir. O rosto redondo e sereno transformava-se pelo estranho e arrebatador brilho dos olhos. Roubard impressionava-se com a disposição daquele sacerdote. Agora, apagava-se a inicial decepção de ter de compartilhar sua jornada! Resolveram partir. Roubard quis ajudar irmão Antônio a se levantar. Ele, com gesto de mão, recusou, pondo-se de pé. Era alto, mais do que Roubard, e forte.

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Guardou o cantil e jogou as tiras da sacola de couro ao ombro. Ficaram diante dos caminhos ao final daquela estreita estrada. Qual deles tomar? - O da direita! Roubard simplesmente assentiu com a cabeça, e nele enveredaram. O sol ainda manifestava a presença. O vento tocava-lhes os corpos bulindo com os seus cabelos. O farfalhar de folhas, o chilreio de andorinhas, o trinar de canários, os agudos guinchos de gaviões: essas vozes da natureza festejavam a vida parecendo chamá-los a fazer parte daquela aquarela. Rajadas mais fortes do vento em ordem ritualística dobravam os macios e flácidos capinais. O céu entremeava-se de efêmeras e rápidas nuvens que viajavam para novas plagas. Irmão Antônio, em largos e cadenciados passos, parecia sentir a mensagem da vida; assobiava um alegreto, um hino religioso ou tentava um cântico gregoriano. O capuz descansava-lhe às costas; os cabelos, fartamente ruivos combinavam bem com seu rosto corado e ligeiramente sardento. Roubard não, somente caminhava, ia sério, por vezes carrancudo. A alegria do monge o perturbava. Já não tinha tanta certeza, como ele, que marchariam juntos até o fim! Quando o sol mergulhava no horizonte, formando véu róseo e lilás, corando as nuvens e deixando nelas essa transparência temporária, irmão Antônio parou e apontou para os lados de uma plantação de milho. - Lá adiante, Roubard, vejo fumaça. Certamente é da chaminé de uma casa. Vamos chegar! - Roubard relutou, não queria isso, o monge puxou-o pelo braço, fazendo-o andar. - Vamos, rapaz! Eu não desejo dormir ao relento, tentemos algo. Quem sabe nos darão de comer e um teto por essa noite! A casa era simples e velha. As paredes amareladas mostravam manchas, o marrom das janelas descascava. Os viajantes aproximaram-se do muro, o monge destravou o portão, abrindo-o. Nenhum movimento do interior da casa foi percebido. Súbito, um cão enorme veio correndo e latindo pelo grande pátio. Roubard rapidamente retornou para o lado de fora. O monge permaneceu onde estava. Roubard, nervosamente, via o cão se aproximar e o monge parado. Ele gritou, o monge fez-lhe sinal com a mão. Que idiota vai ser mordido porque quer! O cão parou a dois passos do monge, rosnando e rangendo os dentes, tomando posição para um terrível ataque. Suas mandíbulas fremiam, os olhos mostravam o brilho do instinto aguçado. O monge simplesmente olhava-o nos olhos, e começou a falar com maciez, sussurrando as palavras. O cão passou a ganir. Ele, cuidadosamente, levantou um dos braços e com os dedos indicador e médio unidos fez o sinal da cruz, pronunciando breve prece. O cão aquietou-se, se agachou apoiando a cabeça sobre as patas, ganindo timidamente. O monge andou até ele; arcou-se, acariciou-lhe a cabeça, escovou-lhe os pelos do corpo com a mão esticada, sorrindo e falando: - Pode vir, Roubard, ele não nos fará mal nenhum! Roubard, boquiaberto, não acreditava no que vira e relutava. O monge chamou-o novamente, ele ainda temeroso entrou indo para o seu lado. Nisso apareceu uma

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mulher na janela. O monge acenou-lhe. Ela correu para dentro sem nada dizer. O monge e Roubard ali aguardaram. Logo a mulher reapareceu ao lado da casa; com ela veio um homem. Ambos caminhavam depressa. O homem, tal como a mulher, mal acreditava no que via; ao se aproximar ficou de cócoras a examinar o cão: abria-lhe a boca e a cheirava. O monge apresentou-se e a Roubard, pedindo-lhes um pouco de comida, água fresca, se possível e pousada. Explicou-lhes nada ter acontecido ao cão, haviam somente se tornado bons amigos. O homem, já de pé, um pouco refeito da surpresa, convidou-os a entrar, fazendo-os aguardar na saleta em cadeiras de treliça. O cheiro de comida estimulou-lhes o apetite, Roubard já ansiava pelo alimento. Três crianças apareceram curiosas, procurando ver quem chegara. O monge chamouas e puxou conversa, passando a mão sobre suas cabeças, beijando-lhes as testas. A maior de todas respondia vivamente às perguntas e contou que o irmãozinho estava doente. O monge levantou-se imediatamente, chamando pela mulher. Ela veio correndo pelo corredor encerado, enxugando as mãos no avental. O monge perguntou sobre o menino, a mulher confirmou que ele realmente estava doente. Vinha fazendo de tudo para curá-lo com remédios caseiros. No momento banhava-o. O monge pediu para vê-lo, ela os levou ao quarto. Lá chegando viram o homem auxiliando-a no banho à criança. O cheiro de álcool impregnava todo o ambiente. O monge e Roubard permaneceram a um canto até o final do banho. Enquanto a mulher vestia o filho, o homem contava das dores na região do ventre e rins sofridas pelo filho. Não o tinham ainda levado ao médico porque a viagem seria longa e exaustiva e temiam pela resistência dele, posto que, para dita viagem, não dispunham de um carro. Por outro lado, não fora em busca do médico pela incerteza de sua disposição em vir atender ao chamado. No passado, fato ocorrido na vizinhança, ele rejeitara a viagem, preferindo receitar à distância. Não podia mesmo se aventurar a isso, porquanto não desejava deixar a mulher a sós na angustiante situação. Ademais, a criança revelava, às vezes, alguma melhora, ficando tranqüila e sem queixas, isto os enchia de esperança. Os vizinhos? Não podiam agora solicitar os seus préstimos por causa do trabalho nas lavouras. Talvez amanhã alguém se apresentasse para uma ajuda. Eram boa gente, mas necessitavam também lutar pela sobrevivência! Terminada a tarefa, a mulher se pôs de lado e o monge passou a examinar a criança, impondo-lhe as mãos sobre as partes doentes e orando. Ao afastar-se do leito, solicitou à mulher que conseguisse algumas plantas, cujos nomes ela mostrou conhecer, indo-se imediatamente. O homem trouxe-os de volta para a saleta e o monge aguardou silenciosamente. Logo a mulher retornou com o solicitado, tendo o monge lhe pedido que o levasse à cozinha, porque ia preparar remédios. Roubard, atento a tudo, acompanhava-o. Lá chegando, o monge ordenou à mulher que pusesse água a ferver. Ela o fez e o monge lavou as plantas numa bacia de alumínio, misturando-as criteriosamente, preparando depois dois chás, tendo juntado num deles

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folhas e raiz de uma das plantas cortadas em pedacinhos. Ao término, mandou que os desse a criança com intervalos de duas horas. Jantaram todos. Roubard repetiu o prato e ainda se deliciou com os biscoitos de milho postos à mesa com café. Mais tarde, o homem desculpou-se com ambos por não lhes dar pousada dentro da casa pela falta de acomodações. Foi com eles ao paiol, e sob a luz de um lampião arranjaram duas camas, forrando palhas de milho com lençóis. Trouxe-lhes dois cobertores, despediu-se e se foi. O dia raiava, os galos cantavam. O monge abriu os olhos e se levantou. Roubard, embora houvesse feito um sono só, qual seu companheiro, não se animou, virou-se para o outro lado e pretendeu dormir mais. O monge sacudiu-o fazendo-o despertar e ele, mal humorado, pôs-se de pé. Saíram pelo quintal. O frescor da manhã vinha tocarlhes os rostos e despertá-los em definitivo. O cão acercou-se deles fazendo festa, abanando o rabo. No fundo do quintal, próximo à cerca, enxergaram um poço para lá se dirigindo. Após se lavarem, o monge espreguiçou-se inspirando profundamente, absorvendo em maior quantidade o ar matinal que ali se temperava com o odor do orvalho, da terra umedecida e das plantas que exalavam. O forte cheiro de canela vinha somar-se a tudo que emanava, e eles notaram para lá da cerca alguns troncos de madeira a ser cortados. O monge puxava assuntos, apontando para as coisas que julgava significativas. Roubard, circunspeto como sempre, fazia meneios de cabeça ou respondia monossilabicamente. O lugar exaltava as coisas naturais, isto agradava plenamente ao monge, homem atento e perspicaz, pouco a Roubard, alma distanciada da natureza. Caminharam de volta. Ao atingir o meio do caminho o estimulante odor de café fresco veio encontrá-los. A mulher assomou à porta, ao alto de rústica escada de madeira de três degraus, sorriu-lhes alegremente e convidou-os a entrar. Roubard, embora não movesse um único músculo da face animou-se, pois seu apetite fora estimulado. Ao adentrar, a mulher ajoelhou-se e beijou a mão do monge. Essa atitude espantou Roubard que se afastou um passo. Esse mesmo gesto da mulher repetiu-o o homem. Contaram-lhe, então, que o menino acordara com outra disposição sem nenhuma dor. O fato, sem dúvida, devia-se ao resultado da reza e dos chás. A pedido do monge levaram-nos ao quarto e ele examinou novamente a criança, desta vez olhando-a dentro dos olhos. Ao final, declarou que deveriam continuar com os chás por mais dois dias, prescrevendo uma alimentação especial, à base de vegetais e papas de cereais. Essa alimentação deveria conter o mínimo de sal durante os três primeiros dias. Orou mais uma vez, impondo as mãos, e se retiraram. Nada mais havia a fazer de sua parte. A conversa do café foi mais alegre, menos para Roubard que somente pronunciou três ou quatro palavras. Antes de partirem, a mulher embrulhou uma broa de milho num papel verde; fez outro embrulho menor com bolinhos e encheu o cantil do monge com água fresca. Ele guardou tudo, abençoou-os e desejou-lhes abundância, paz e saúde. O generoso casal os levou ao portão e pouco depois, à primeira curva, os viajantes desapareciam detrás das longas e dobradas folhas de um milharal.

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- A vida de um monge requer muitos sacrifícios - dizia irmão Antônio, à sombra de uma árvore, à margem do caminho onde haviam parado para descansar e tomar água - por anos a fio, desde a juventude, quando ainda é aspirante, ele se submete aos mais cansativos exercícios e rígidas disciplinas. No início há aquele entusiasmo natural, quase juvenil, próprio das almas ardentes e devotas. Ele vê naquilo o sentido da existência; a possibilidade de uma completa e inteira realização. Deixa o mundo com alegria - onde realmente nada de atrativo conseguiu encontrar - e vem entregar-se a esta nova vida, como um homem apaixonado se entrega aos braços da mulher amada da qual espera todas as compensações. Não mais toma conhecimento da vida exterior, senão superficialmente, e concentra-se o tempo inteiro neste seu novo mundo. Caem-lhe às mãos livros e mais livros; ouve prédicas; venera seus instrutores; vive intensamente a aspiração de um dia chegar a monge. Porém, vem o tempo em que o cansaço pouco a pouco o envolve e um desânimo começa a grassar em seu universo íntimo. Em conseqüência, uma legião de pequenos seres viventes, até então obstruída em suas ações, se levanta e se mistura aos reclamos de seu ego. É a primeira grande prova do aspirante! Ele já não ora com tanta freqüência; entrega-se mais longamente às reflexões da vida, aos desgostos dos desejos insatisfeitos, de tudo quanto poderia ter feito e não fez. Muitas vezes procura motivos para sair e visitar alguém. Na realidade, sai em busca de distrações, e excitase ao ver um corpo bem torneado de uma mulher, ou o sorriso malicioso de uma jovem bonita. Arde-lhe o intenso desejo julgado extinto ao abraçar a vida monástica, e quantas noites atravessa em claro, procurando abafar aqueles lancinantes apelos. Mas vem novo tempo! Se resistiu bravamente as tentações vão diminuindo, escoando como água que se misturou à terra, levando com ela muitas impurezas. Ele é promovido a neófito. Novos estímulos, novos ensinamentos, novas práticas. Ele agora traz consigo emoções mais controladas, uma aspiração melhor modelada. O entusiasmo volta a compartilhar de seus atos, e as obrigações as realiza com outro alento. Os anos vindouros virão ser consumidos naquela mesma luta, na abstinência, em disciplinas e práticas. Mas a cada tempo previsto, o demônio das tentações virá fazer-lhe periódicas visitas, saber ainda quanto lhe é devido! Um dia, ele descobre o verdadeiro valor de tudo quanto vinha fazendo e ao que tão resolutamente se entregou. O ser humano ganha novo conteúdo em suas reflexões. A vida em si começa a se despir da primeira série de múltiplos véus que a encobrem. A primeira volta da dança é completada. A natureza para ele não é mais uma sucessão de formas de vidas biológicas, orgânicas ou inorgânicas. Há algo mais: há um sentido pulsante e sumamente inteligente que nela agrega todas as coisas num plano definido não percebido antes pelo intelecto. Ele agora começa a ver com a alma, a sentir influxos de paz no coração, a perceber com maior nitidez meandros de uma infinitesimal fração do complexo vida. Paralelo a isto, sente-se agigantar; viver realmente. Nada mais o segura. Ele pretende amar a tudo, dar aos homens de seu sangue, de seu pão, de sua vida! Chegando a este elevado grau, as práticas, disciplinas e rituais, tão cansativos, que para o restante de seus irmãos de monastério continuam a ser a forma inteligível do espírito, caem-lhe desfalecidas. Não necessita mais delas. Descansa-as como um homem recuperado descansa suas muletas. Ele agora atua com a alma, com a força perene da vida que se espraia através das formas, das palavras e dos pensamentos. Ele vê realizar em si as sublimes verdades tão exaustivamente descritas e definidas

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por filósofos e estudantes de ocultismo, a despeito de muitos deles não terem chegado a conhecê-las. Neste ponto uma sinuosa dúvida há de estar se arremessando em seus pensamentos, Roubard. Você estará se perguntando por que estou aqui ao seu lado, procurando trilhar este desconhecido caminho chamado por nós de o caminho da felicidade, se tanto eu conheço, tantas coisas superiores eu descrevo, se já não deveria ser feliz? Eu lhe direi: sonhos de um monge que viveu mais da metade de sua vida encerrado em prisão de portas abertas, tentando em vão alcançá-los, que por isso angustiou-se derramando copiosas lágrimas. Não estranhe estar confidenciando estas coisas porque são a verdade. A felicidade para mim ainda é uma questão abstrata e filosófica. Mas Deus teve piedade deste humilde servo fazendo-o ter mais uma visão em meio a tantas que já tivera, desta feita anelada a um desafio de coragem e desapego: o de trilhar esse caminho prático ao lado de um irmão de igual aspiração e coragem; alguém que como eu, desejando e acalentando esta felicidade, disposto estivesse por ela a sacrificar-se, deixando para trás tudo o que possuísse e que lhe fosse amargo como o fel. Roubard nada dizia. Ouvira a tudo atentamente, observando o rosto corado do monge. A menos de meia hora não o conhecia; julgava-o um homem misterioso e impenetrável. Entretanto, neste momento, olhava-o através de uma janela aberta por ele próprio. O que dizer se, apesar de tudo, não conseguia ainda distinguir com nitidez aquela pequena parte de seu mundo interior? O monge levantou-se e Roubard o acompanhou. O sol alto viera banhar seus corpos com ardor. Eles se refugiaram novamente à beira do caminho sentado-se sob uma árvore frondosa, e comiam. Por algum tempo o silêncio acompanhou o repasto, como à mesa sacerdotal. Roubard novamente apreciara os bolinhos e a broa de milho: estavam deliciosos. Irmão Antônio, sem fome, comera somente meia fatia do pão e tomara três goles de água. Ao término, não se levantaram. Algo os segurava por mais tempo naquela tranquila paragem. Irmão Antônio, encostado no tronco, levantou os olhos divisando ao longe cumes de montanhas vestidas de uma névoa azulada que já desmaiava. Mais acima, nuvens escuras e enodoadas certamente deslizariam e trariam chuva. Ele baixou os olhos e com mãos entrelaçadas mexeu os dedos grossos. Seu semblante tomara-se de uma ansiedade qualquer, coisa que a alma sinalizava a querer retratar, tornar palavras. - Numa de minhas visões - começou olhando para adiante - enquanto orava, vi algo que permaneceu para sempre em minha memória. Eu saía à noite com lampião à mão levando uma escavadeira. Ao ultrapassar os limites do muro do monastério, encontrava um caminho. O caminho não era usual, e creio, raramente trilhado, vindo terminar num barranco. Eu descia pelo barranco com grande dificuldade, escorregava e me equilibrava o quanto podia; no sopé caminhava para a direita até achar uma pedra. Da pedra para cima contava sete palmos, depois mais sete para a esquerda e começava a cavar, encontrando um pequeno cofre envolto por uma capa de couro apodrecida. Abria-o e retirava uma pequena algibeira, perfeita, intacta. Folgava o laço e metia a mão dentro dela, encontrando três moedas de ouro, três dobrões! Com mil trovões, quantos anos teria isso? Amarrava a algibeira à cintura por debaixo da veste e

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retornava. No caminho de volta encontrava um homem despido e dava-lhe a algibeira com os três dobrões. Essa visão permaneceu por muito tempo se reproduzindo em minha memória. Meses depois, tendo solicitado permissão ao conselho para ausentar-me periodicamente da vida monástica a fim de buscar no mundo o que eu não possuía, permissão esta negada de imediato, lembrei-me de procurar o tal cofre. Saí à noite, à lua cheia, enveredando pelos matos. Perdi-me várias vezes, retornando sempre ao mesmo ponto. Recomeçava atento, procurando lembrar-me do que a visão mostrarame. A certa altura encontrei o caminho. Uma incontrolável emoção agitou-me fazendo tremer-me o corpo. Apesar de um tanto diferente, um instinto de certeza me levava acreditar ser ele. Com essa certeza em mente percorri-o chegando ao barranco. Desci agarrando-me nas touceiras, mas acabei rolando para baixo. Todavia, a pedra ali estava! Seguindo a indicação, contei os palmos e cavei, encontrando o cofre e a algibeira, ei-la! O monge meteu a mão no bolso e a retirou, mostrando-a. Estava toda enrolada pelos cordéis. Roubard olhou-a sem muito interesse. O monge baixou a mão, apoiando-a na coxa. Havia nele desassossego; apertava-a fortemente como uma criança aperta um saquinho de doces. Logo seu rosto e corpo ficaram inertes. Um único e quase imperceptível movimento mostrava ali uma vida: seu polegar que mexia e acariciava a algibeira num vai-e-vem rígido, porém ritmado. Ele a segurava com mão de ferro; que representaria aquilo? Roubard inquiria-se, agora realmente curioso. Roubard incomodava-se com aquela quase inércia. A figura do monge assim parada causava-lhe certo temor e ele perguntou-lhe a primeira coisa surgida à mente: - E quanto à permissão, eles afinal a deram? O monge teve ligeiro estremecimento. - Não, eles jamais o fariam; é contra todas as regras e convenções da ordem. Um monge não pode tomar resoluções como essa. Como era de se esperar, o conselho decidiu que eu deveria permanecer cumprindo as minhas obrigações religiosas em estrito acordo com os costumes. Dar-me-iam uma licença para meditar e refletir. Isso seria passageiro, - sabiam de antemão, - logo eu voltaria a pensar como sempre, como todos, como um só corpo. Fingi aceitar tal oferta, cujas restrições impunham-me a permanência no monastério. Mas naquela mesma noite escrevi a carta de desligamento, endereçada ao Irmão Maior, deixando-a a escrivaninha. Reafirmava os meus motivos, dizendo principalmente de minha ansiedade, da necessidade de buscar em meio às agruras do mundo. A decisão, informei-o ainda, já a tinha tomado há algum tempo e ninguém conseguiria demover-me. Nada mencionei de minhas visões, como jamais houvera feito antes. Visões suscitam dúvidas sobre a sanidade de um visionário, por isso mantive o segredo. Saí, como disse, sorrateiramente, em busca da algibeira que tinha deixado no mesmo lugar em que a achara; tomei-a dali e vim encontrá-lo, Roubard. Ele agora sorria. Roubard não suportando aquele sorriso baixou os olhos. O monge se levantou e recolocou a algibeira no bolso. O caminho que trilhavam foi morrer sobre uma estrada também de terra. Tomaram-na e prosseguiram. As pernas doíam-lhes obrigando-os a parar de trecho em trecho. Uma nuvem de poeira chamou-lhes a atenção. Vinha pela estrada. Era de um

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caminhão com toldo que parou próximo a eles. O motorista meteu a cabeça para o lado de fora mostrando sorriso e dois dentes de ouro, perguntando-lhes para onde iam. O monge apontou para adiante. - Para a cidade? – o monge confirmou - É muito longe, vou para lá também. Venham subam! Eles subiram e se alojaram ao seu lado. Uma chuva intensa obrigou o motorista estacionar fora da estrada. Passaram para a carroceria e descansaram. Mais tarde, o homem resolveu cozinhar. Num fogareiro, fritou lingüiça e fez café. Comeram com broa e com os bolinhos que restaram. A noite veio alcançá-los ali mesmo e dormiram sobre lona, protegidos pelo encerado, sob a forte chuva que aumentara. Pela madrugada, o monge e Roubard acordaram com os gritos do homem. Ele esperneava e arrancava a roupa do corpo. O monge acendeu o lampião para ver melhor. O rosto do homem se transfigurava. Ele babava, rugia, puxava os cabelos. Roubard, apavorado, pulou para fora do caminhão, gritando para o monge. Seria perigoso ali permanecer com um possesso. O monge não lhe deu atenção se aproximando do homem. Ele, vendo-o de lampião a mão, fez menção de atacá-lo. O monge levantou a mão direita e recitou uma oração de exorcismo. O homem recuou, jogando-se ao chão, debatendo-se. O monge ajoelhou-se, deixando de lado o lampião, e pôs-lhe a mão sobre a testa. Esbravejou e agarrou-o pelos braços. O homem, esbugalhando os olhos, gritou horrivelmente, depois desfaleceu. O monge pôs-lhe novamente a mão sobre a testa e orou, desta vez tranqüilamente. O homem veio retornando à consciência e sentou-se. Ao ver o monge ao seu lado e dar-se conta de seu lastimável estado, chorou profundamente. Roubard, ensopado, pulou de volta para a carroceria. Pouco depois os três voltavam a deitar. Roubard não conseguia mais dormir, somente cochilava. Tentava ver o homem deitado, mas devido à escuridão somente o percebia. Acordara inúmeras vezes imaginando um novo e terrível acesso de loucura e o homem a se precipitar sobre eles a fim de matá-los. Em certa hora, resolveu levantar-se não vendo o monge ao seu lado. Preocupado, pulou para fora do caminhão. A chuva havia cessado; o sol ressurgia brando e limpo. Irmão Antônio, ventarola à mão, lutava para manter vivas uma dúzia de brasas. Ao lado havia três montes de folhas. Roubard tossiu e ele virou-se pedindo-lhe que acordasse o homem, Roubard voltou para o caminhão tocando-o no ombro com certo temor. O homem acordou assustado e acompanhou Roubard. O monge ordenou-lhe que se aproximasse. As brasas agora eram grandes. Timidamente ele obedeceu ficando a um passo. Irmão Antônio jogou as folhas no braseiro e invocou. A fumaça ora espiralava ora dançava no ar como insinuantes dançarinas, engrossava como fileiras de guerreiros, e subia. Mais folhas, mais invocação, mais fumaça. Roubard olhava curioso e espantado. O homem fechava os olhos, talvez de vergonha. Irmão Antônio ordenou que ele atravessasse a fumaça, pulasse o braseiro e de novo assim fizesse. Sete vezes ele repetiu; sete vezes o monge invocou. Roubard pouco entendia, o homem nem um pouco: o monge falava em latim. O cheiro era forte, embora agradável, e Roubard gostou.

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Finalmente o monge rezou-o à frente e às costas, apagando o braseiro. Tirou um papel do bolso dando-o ao homem. Disse-lhe para ler o que ali continha antes de dormir, durante sete dias. Feito isso nada mais teria, a obsessão terminava. Em gesto já familiar a Roubard, o homem ajoelhou-se e beijou a mão do monge. Pouco depois comiam o que havia sobrado do jantar e seguiam viagem. O homem deixou-os à entrada da cidade a pedido de irmão Antônio, agradecendo mais uma vez ao religioso, e seguiu viagem. Belas residências, homens e mulheres bem vestidos, carros novos e caros, comércio bom e variado, era o que viam enquanto caminhavam. Roubard, sujo, barbudo e com cabelos em desalinho envergonhava-se quando reparavam neles. Irmão Antônio parecia com nada se importar. Conseguiram carona num jipe dirigido por um rapaz alegre e extrovertido e se desviaram do centro, aproximando-se do outro extremo da cidade. Para onde iriam? Roubard não sabia, nem o monge. O rapaz largou-os numa rua qualquer e prosseguiram a pé. A profunda miséria que ali viam chocaria almas sensíveis. O rosto do monge contristava, a fisionomia de Roubard alterava-se. Para este seria nojo, mau cheiro do pobre. Quanto mais andavam mais miséria iam vendo. Crianças sujas, mulheres seminuas, homens desalentados, gente doente e abandonada. O monge parou e segurou o braço de Roubard. Gotas de suor sobressaíam de sua larga testa. Ele arfava ligeiramente; os olhos mostravam um tipo de ânsia, de sofrimento íntimo. Miséria assim monge algum daquele monastério poderia ter visto, nem Roubard homem refinado e de sociedade. O monge puxou-o a um canto, para trás da parede de tijolos de um casebre. - Roubard, quero dizer-lhe algo que trago guardado. Não lhe contei tudo acerca das visões que tive. Não era ainda o momento ou talvez não tivesse a certeza, mas contarei agora. Ao retornar com a algibeira à mão trazendo os dobrões, e ao dá-los ao homem despido, não lhe pude ver as feições. Também não as vi do homem com quem trilharia esse caminho. Esta certeza fui tê-la ao vê-lo chegar. Agora, novamente, a certeza está em mim, e vejo tudo nitidamente. As duas pessoas eram uma só: você! Tome a algibeira com os dobrões, são seus! Roubard olhava-o com expressão aparvalhada. O monge depositara a algibeira sobre sua mão. Os compridos cordéis apontavam diretamente para baixo como a mostrar o mergulho de um longínquo mistério. “Descubra os véus, desnude o segredo, possua-o!” Estas palavras soaram-lhe aos ouvidos. Ele, nervoso e trêmulo, dirigiu-se ao monge: - Que faço com isso, por que eu? - Suas mãos são imantadas, Roubard. Não como as de um Midas, mas de um mago que, por estranha sorte faz frutificar aquilo em que toca, atraindo o ouro e o progresso. Plante-os, um a um, em lugares diferentes, ao longo de nossa jornada. Ali ficarão como poderosos talismãs, ali atrairão o progresso! – o monge falava com grande emoção. Ainda trêmulo, ele abriu a algibeira, retirando os dobrões. Eram grandes, rebrilhavam. Irmão Antônio os havia polido, mostravam efígies, três diferentes, de

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épocas também diferentes a julgar pelos tipos. Curiosamente, em nenhum deles podia ler os anos que tinham sido cunhados, nem suas origens. - Guarde-os, Roubard; amarre a algibeira à cintura, sob a camisa. Não deixe que a vejam; não a perca! Roubard obedeceu. Uma mulher veio correndo. Era magra, mal vestida, e chorava. Segurou a mão do monge, chamando-o de padre. Seu filho estava morrendo, seu único filho; apesar de toda a miséria ela o amava e não queria perdê-lo! O monge a seguiu juntamente com Roubard. Penetraram por vielas, espremeram-se entre paredes, pularam sobre esgotos fétidos a céu aberto. Tudo era desolador; aquela gente vivendo jogada como se não pertencesse a um mundo de homens! Vez por outra encontravam abrigos em melhores condições. A grande maioria carecia de todas as coisas. Finalmente chegaram. Um menino esquelético deitava-se sobre um colchão aos pedaços. De tão fraco nem abria os olhos. O monge rezou-o impondo-lhe as mãos. Ele necessitava mais do que rezas: de alimentação. O monge chamou Roubard, mandando que a mulher aguardasse. - Tem algum dinheiro, Roubard? - Nenhum. - Então venha comigo, precisamos fazer algo! Saindo daquela parte miserável chegaram a meio caminho entre o rico e o pobre. Havia pelas imediações um grande empório, farto de alimentos. O monge e Roubard entraram, um homem gordo, de bigode, veio atendê-los. O monge explicou ao que vinham, pedindo algum alimento: produtos vegetais, ovos e vinho, se possível. O homem não se sensibilizou; nada podia fazer. O monge propôs-lhe trocar alimentos por um dia de trabalho de Roubard, talvez dois. Roubard olhou-o assustado. O homem mirou-o não gostando de sua aparência. O monge explicou que Roubard era homem de dar sorte, se aceitasse a permuta certamente seus lucros aumentariam. O homem coçou as mãos rechonchudas, o queixo, enroscou os curtos dedos nos cabelos e propôs uma quinzena de trabalho. Em troca, além dos produtos pedidos pelo monge, daria também roupas limpas para Roubard, refeição e dormida no fundo do estabelecimento. - Para dois? - insistiu o monge - Está bem, para dois. O monge abraçava o alimento. O homem nervosamente escolhia-o. Ao final, irmão Antônio, satisfeito, se foi. Roubard, mal humorado, permaneceu. Seu patrão mandou-o que tomasse banho. Trouxe-lhe roupas limpas: calças, cuecas, camisa e sandálias de couro. Estendeu-lhe ainda um aparelho de barbear com lâmina, um tubo de creme e um pincel. Juntou a isso um pedaço de sabão de coco e uma toalha grande. Resmungava a todo instante. Não sabia por que estava fazendo aquilo. Afinal não fizera bom negócio. Pouco depois, Roubard reapareceu; tinha novo aspecto, ficara mais jovem, cheirava à limpeza. O homem riu de satisfação; Roubard era simpático, isto era bom para os negócios! Deu-lhe de comer e instruiu-o como fazer, solicitandolhe sorrir sempre; jamais contrariar a opinião do freguês. O monge lutou bravamente contra a morte. Preparou sucos, caldos, arranjou mastruço, bateu vinho com ovos, saiu pelos matos em busca de ervas e raízes, orou e

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implorou. Às noites voltava para o fundo do estabelecimento onde Roubard trabalhava. Comia e dormia sobre um colchão, pelo chão, tal como Roubard. O monge tornara-se conhecido. A população pobre vinha pedir-lhe rezas, conselhos, ajuda. Ele fazia o que podia, mas não podia fazer muito sozinho. Quinze dias se passaram. Roubard acordou disposto a largar o trabalho, mas o monge disse-lhe para ficar; precisavam levar alimentos para aquela criança e para outras. A morte não havia sido vencida naquele caso. O homem apareceu satisfeito declarando que realmente a freguesia passara a freqüentar mais o estabelecimento. Seus lucros aumentavam um pouco, somente isso. Pediu para Roubard ficar. O monge olhava-o severamente; o homem aguardava. Roubard, contrariado, aceitou. Ficaria por mais uma semana. A morte foi vencida. Novos casos surgiram. Roubard foi ficando: mais uma semana, um mês. O povo admirava-os. Roubard não gostava muito disso, daquela gente mal cheirosa. Irmão Antônio atendia-a, falava-lhe, orava e curava. O homem vivia a rir de satisfação. O tempo passou. O monge vinha encontrá-lo, como sempre, às noites. Roubard andava carrancudo e mal humorado. Evitava conversar com o monge. Certa manhã, decidido, iria procurar o dono do estabelecimento a fim de deixar o trabalho. Irmão Antônio zangou-se, disse-lhe para ficar, precisavam disto. Roubard enfureceu-se, desatou o nó da algibeira, a jogou ao chão aos pés do monge. - Tome, monge, eu os devolvo! Não pense que me comprou com suas histórias. Estou farto de você, de suas ordens. Vamos, Roubard, faça isso! Fique aqui, Roubard, tome conta disso! Não tenho sido outra coisa além de um instrumento de manejo. Você está me escravizando, tirando-me a força e a capacidade de decidir e viver: atrela-me como a um dócil animal. Se não pode se agüentar sozinho volte para o monastério, seja lá outra coisa ou de novo um anacoreta! Vou retornar de onde vim e tomar o outro caminho. Até este você decidiu por mim, adeus monge! Roubard bateu a porta com violência. Irmão Antônio permaneceu. O portão rangeu e voltou e Roubard se foi! A chuva o pegara desprevenido. Roubard, molhado, abrigava-se debaixo de uma árvore. A água corria pela estrada, misturava-se à terra e empoçava. Os finos galhos balançavam, pendiam sob o peso. A natureza toda se regozijava pelo banho, pelo rejuvenescimento, pela sede que matava! Roubard, encorujado, lamentava a sorte. A barba crescia-lhe de novo, negra, quase farta. O semblante expressava angústia, mostrava olheiras, abatimento: o estômago reclamava da fome! Duras palavras ditas ao monge, afiadas e cortantes. A alma ferida arremessara-lhe as armas. Estaria arrependido? Mesmo se estivesse não desejava submeter-se mais às suas ordens, às ordens de ninguém, era independente. Trilharia o caminho sozinho! A chuva estiara. Roubard, pé na estrada lamacenta, foi em frente. De repente, vê um vulto; seria ele? Seu coração dispara: emoção, alegria? Procura controlar-se, ele vem vindo do mesmo jeito, no mesmo largo passo. Vem sério, nunca o vira assim.

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- Roubard, companheiro, perdoe-me. Suas palavras naquela manhã calaram-me profundamente. Na ânsia de fazer pelo próximo sacrificava-o. Não tinha esse direito. Sua revolta foi espontânea e necessária. Desejo corrigir meu erro; sou pouco experiente no trato com os homens do mundo. Quer ainda compartilhar comigo desta jornada? - Sim, quero - respondeu cabisbaixo, logo prosseguindo - mas quero também pensar e decidir! - Prometo não interferir! Os dois retornaram. Irmão Antônio ofereceu-lhe pão e Roubard aceitou. Voltaram conversando e traçando planos. O dono do estabelecimento ao ver Roubard e o monge correu feliz a abraçá-los convidando Roubard a voltar para o emprego. Roubard prometeu pensar a respeito. À sós com o amigo, conversou. Precisariam de muitas coisas para ajudar aqueles infelizes. Roubard agora se animava. Finalmente, chegaram a um ponto comum e Roubard foi procurar o dono do estabelecimento: aceitaria o trabalho sob novas condições. Queria um salário e ajuda material para os pobres. Que ajuda? Inicialmente madeira e outros acessórios para que pudessem construir um galpão junto a eles. Lá o monge lhes prestaria assistência; depois de pouco em pouco levariam suprimentos e remédios. O homem coçou a mão, o queixo, levou os curtos dedos aos cabelos. Roubard, vendo-lhe a indecisão, prometeu ousadamente que dentro em pouco necessitaria aumentar o empório, tal a procura. Os olhos do homem brilharam, as gordas bochechas coraram e aceitou. O plano dava resultados. O galpão construído fora transformado em quase tudo: hospital, farmácia, central para distribuição de algum alimento e até em confessionário. Todo dinheiro que Roubard ganhava dava-o ao monge. A profecia de Roubard também cumpria-se. Em um ano o empório fora ampliado. O estoque de mercadorias duplicara, as vendas aumentavam sempre. Roubard modernizara o atendimento da clientela; criara pequenos departamentos, selecionara melhor os produtos e ampliara as opções. Instituíra entregas em domicilio; estabelecera vendas por telefone e abrira créditos especiais para clientes importantes. Patrocinava um programa na rádio local, juntara-se a outros patrocinadores em pequenos eventos esportivos em clubes ou em áreas públicas, às vezes em parceria com a prefeitura. O dono do estabelecimento levava as mãos à cabeça sempre que precisava abrir o caixa. Mas sorria largamente e acendia um charuto quando Roubard, ao final dos meses, mostrava-lhe os resultados positivos dos balancetes. Então lhe atendia aos pedidos, muitas vezes pela metade. O monge trabalhava sem tempo para meditar. Roubard de novo pensava. Como antes, vinha sentindo uma onda de tristeza e enfado. Começou a desviar a atenção do trabalho. Irmão Antônio logo notou-lhe a mudança, porém aguardou. O processo tomava corpo. Roubard já não conversava. Finalmente abriu-se contando ao monge que, como outrora, aquele trabalho o cansava e desejava fazer outras coisas. - Que coisas, Roubard?

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- Algo assim como você faz. Gostaria de saber orar, curar, conhecer fórmulas mágicas. Há um vazio em mim, uma necessidade de vida, de um estímulo interno. Quero saber meditar, abençoar, amar. Quem sabe seja isto que me faz falta! Irmão Antônio olhou-o com admiração. Seu largo rosto aclarou-se num brando sorriso. De mãos unidas à frente, sentava-se sobre pequeno banco de madeira no fundo do galpão como Roubard. Ali pouca coisa mudara, eles não faziam questão de conforto, dormiam por lá mesmo. Roubard olhava para o chão e o monge falou: - Por quanto tempo venho esperando ouvir isto, companheiro. O excelente trabalho realizado por você foi, sem dúvida, importante. Sem ele pouco ou nada poderíamos ter feito em benefício dessa gente pobre e deserdada. Todavia, a alma é insaciável; é permanentemente observadora; ela pede sempre mais, preside os dramas de nosso ser inteiro. E somente nos alivia com as coisas vindas do alto. Tudo é bom e necessário: o trabalho, o alimento, a cura. Ajudam-nos a bem viver com nossas consciências e com os homens. Porém, em certas crises de nossas vidas, o ego reclama autonomia, liberação de liames com o mundo; ele deseja novas experiências. Este é o segundo vislumbre deste seu momento, Roubard. O primeiro deu-se ao optar pelo caminho. Vou ajudá-lo! Roubard decidiu não trabalhar mais como vinha fazendo. O comerciante assustouse: - Vai deixar-me? - Não, ainda. Quero agora trabalhar três dias na semana com os mesmos ganhos. Os dias restantes quero vivê-los inteiramente com Irmão Antônio. O homem protestou, propôs aumentá-lo, o queria trabalhando o tempo todo, a semana inteira. - Aceita o que proponho ou vou trabalhar para o vizinho? O homem aceitou. Roubard passou a conviver mais de perto com a miséria. Agora a tocava, ajudando ao monge em quase tudo. Ouvia e aprendia. Ampliava-se o campo de trabalho. Os problemas avolumavam-se e a popularidade de ambos crescia. O tempo passava. O monge costumava liberar Roubard para ir visitar doentes, - àqueles cujo tratamento ele, o monge, houvera iniciado. Na necessidade da fé ou do conhecimento mais profundo do mal, Roubard somente acompanhava. Nesses casos, ia fazendo chás, aconselhando, catalogando reações, sempre ao comando do monge, e impunha as mãos. De nada reclamava: tudo realizava como vacilante discípulo em quem faltava ainda, verdadeiramente, o talento e a alma sacerdotal. Houve fracassos. Em muitas ocasiões seus esforços eram anulados. Tinha de acontecer, os recursos de que dispunham eram precários, alguns inexistentes. Em certas situações, unicamente pelo saber de algumas leis naturais, o monge chegava aos problemas, porém nem sempre às raízes ou às soluções. Não obstante, mais do que o auxílio positivo e concreto contra os males do corpo, era a presença de ambos que marcava e confortava aquela gente, principalmente a figura do monge que se assumia gigantesca e sólida ao alcance de todos. Roubard agora conseguia vislumbrar contornos, rostos e imagens enquanto meditava. Vez por outra sonhava, via-se conversando e ouvindo.

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Certa manhã o monge mandou-o visitar uma doente. Era moça bonita, inteligente, embora inculta. Ela recuperava-se e Roubard lá voltou outras vezes. Uma paixão repentina brotou em seus corações. Roubard passou a visitá-la às noites. Esta paixão ardia-lhe e o dividia. Noites em que não a visitava, desejava lá estar. Ela era ardente e cada vez mais apaixonada. Roubard já não era o mesmo. Sua atenção e aplicação ao trabalho sofriam sensíveis quedas. A custo conseguia interessar-se por um problema ou acompanhar a evolução de uma tarefa. Com efeito, não via mais o ideal da mesma maneira como há cinco anos! Finalmente contou ao monge. Disse-lhe de suas emoções e sentimentos: fragmentava-se; sentia exaustão. Não podia mais continuar daquela maneira: casavase dando novo rumo a sua vida ou partia. - Roubard, novamente o sofrimento pungente o impulsiona a decisões transcendentais. Como antes, o ego debate-se, enlaça-se nos fios de sua própria criação, querendo deles se libertar. Gritos ecoam na consciência, gritos de socorro ou de clamor pela liberdade, qualquer que seja essa liberdade. Eu também sinto inconstância. Há tempos instalou-se em mim a necessidade de partir. O pouco aqui realizado pôde trazer conforto e esperança para muitos. O caminho espera-me, chamame para que eu prossiga. Se optar por partir iremos ambos pela manhã. Caso contrário, parto eu, sozinho! Roubard não se decidia; varava a noite acordado. Nesses momentos, como outrora, estremecia, hesitava. Fora algo assim que o levara a abandonar toda a sua boa e folgada vida, a ficar praticamente nu diante de um caminho. Irmão Antônio tinha razão: o sofrimento costuma anteceder a uma grande decisão. Partir ou ficar, qual o verdadeiro destino? Um gosto amargo descia-lhe pela garganta aferroando-se em seu coração. Cansado, finalmente adormeceu. Ao despertar, uma réstia de sol entrava pela janela. Ele sentou-se na cama não vendo o monge. Sua bolsa e os demais pertences não lá estavam. A cama feita tinha alguma coisa sobre ela. Roubard quase esquecera, passara-se tanto tempo desde aquele dia! Uma dor aguda atravessou-lhe o coração e lágrimas queimaram-lhe a face. Seu grande amigo partira, porém confiara-lhe seu valioso tesouro: os três dobrões! Havia uma enxada a um canto usada em suas hortas. Roubard lançou-lhe súbito olhar e agarrou-a com decisão. Saiu do galpão e no pequeno pedaço de terra ao fundo, afastou algumas madeiras apoiadas na parede começando a cavar profundamente. Exaurido e ofegante, com mãos trêmulas, abriu a algibeira e derramou sobre a palma direita uma moeda, apertando-a firmemente. A moeda aqueceu-se; ele fundia-se nela. Não sabia o que pensar ou dizer, então decidiu jogá-la no buraco, fosse o que fosse! Tapou tudo, bateu a terra, depois entrou correndo! `A saída da cidade veio encontrá-lo. Irmão Antônio sentava-se à margem. Roubard chegou arfante e descansou ao seu lado. O monge estendeu-lhe o cantil; Roubard

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bebeu e o devolveu. O monge aguardava. Roubard permanecia calado. O monge resolveu quebrar o silêncio: - Continuamos nessa mesma direção, Roubard, ou terá alguma outra idéia? Roubard meneou negativamente a cabeça e o monge retomou - Vamo-nos, então, nossa jornada deverá ser longa! O sol vinha aquecer os seus corpos. Dentro em pouco a cidade estaria acordada e todos os pobres se descobririam novamente órfãos. Um vento suavizara em brisa, a brisa parecia abençoá-los. Já ganhavam o cenário das pradarias, das plantações. O monge assobiava, Roubard caminhava taciturno como nos primeiros tempos. Estranhamente repudiava a decisão. Não entendia que caminho seria esse, embora o caminhasse. Inquiria-se sobre esta perseguida felicidade. Vira dramas, dores e misérias. Lutara com denodo para amenizá-los. Aplicara-se; tornara-se discípulo de um monge, ao mesmo tempo seu confidente. Tudo fizera ao seu alcance, mas o caminho nada ainda acrescentara-lhe. Ao contrário, trouxera-lhe de recompensa outra profunda dor; para esta não havia agora remédios ou lenitivos! Como num filme lento a cores os cenários iam passando. Aqui e ali flores silvestres se ofereciam em buquês naturais. Irradiavam vida, coloriam-se pelo sol! Adiante, eram os altos e imponentes bambuzais. Tocavam-se lá em cima, produziam curiosas formações de arcos. As nódoas solares e os borrões das sombras escorregavam sobre seus corpos. Irmão Antônio cessara o canto, não solfejava mais. Os passos largos e o corpo forte traziam aos cenários maior vigor. O vento ao tocar-lhe os ruivos cabelos encaracolados parecia querer refrescar-lhe a têmpera, abrandar uma ardência, amansar sua vontade férrea. A natureza provocava-o; ele se impunha; ela o respeitava; ele a transformava! Ao contrário do monge, Roubard era presa fácil. Seu próprio mundo o encerrava. Não escutava o clangor inaudível ou a sussurrante voz inimaginável. Não desafiava, não detinha a percepção do intuitivo: vivia o óbvio, o tangível. Era de alma ainda indômita, atordoada. A dor e o sofrimento o polarizavam. Mas por obra do destino ali estava. Trazia nas mãos um tesouro e no ventre uma fogueira! Adiante viram um pontilhão sobre um riacho. Atravessaram-no indo procurar um local aprazível. Sentaram-se, molharam os pés, a cabeça, e comeram. Roubard falou, contou ao monge que enterrara um dobrão no lado de fora do galpão. O monge sorriu e agradeceu-lhe. Um ônibus velho parou e o motorista os convidou. Prosseguiram viagem até certo trecho e por mais dois dias viajaram a pé. Descansavam, pediam pousada e partiam cedo. No terceiro dia aproximaram-se de outra cidade. Vinham notando que a região era produtiva. A terra generosamente frutificava. Os cereais destacavam-se em maior escala.

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Uma onda de vozes, gritos e estampidos os fez de repente atentar. Súbito, um jipe carregado de lavradores quase os atropela. Empunham foices, enxadas e armas de fogo. Surge um caminhão com outros homens do campo. Eles gritam, cerram os punhos, clamam por vingança. Um trem apita, vem chegando. Irmão Antônio e Roubard, curiosos, aceleram os passos alcançando à cidade. A anarquia é geral. De um lado posicionam-se os lavradores, de outro o exército. Lojas estão saqueadas, as vitrines em pedaços. Há carros tombados, incendiados. Há sangue, gente morta, bombas explodindo, fumaça, uma verdadeira guerra! Chegam reforços do lado dos lavradores; mas muito mais do lado do exército, o trem os traz. A luta prossegue encarniçada. Levantam barricadas, novas mortes acontecem, os lavradores debandam; muitos são seguros pelos homens do exército, espancados e jogados nos vagões. A maioria consegue fugir com tiros às costas; alguns ainda caem atingidos. O monge e Roubard escondem-se à distância, temendo ser confundidos. Quando os ânimos serenam, o monge corre para socorrer os feridos. Roubard o segue. Atendem lavradores e soldados. Um oficial os vê, inquiri-os; eles explicam que estavam de passagem e ele os permite ajudar. Os feridos gravemente são removidos para o hospital municipal; os mortos levados para serem enterrados. O trem parte levando presos, gente ferida e soldados mortos. O exército passa a patrulhar ruas e estradas, vem instalar-se pelas praças, montar tendas! O monge e Roubard permanecem e tomam conhecimento de uma versão da história. Os dias se passam e a situação se tranqüiliza. O monge e Roubard conseguem pousada no fundo de um entreposto. Pilhas de batatas mal cheirosas fazem-lhes companhia. As mulheres trazem comida, viram-nos ajudar aos feridos e contam-lhes a outra versão da história. Ao final, ambos concluem que os homens do campo lutavam contra a exploração de poderosos latifundiários e comerciantes atravessadores. As autoridades policiais para não ver a cidade completamente saqueada e incendiada diante da sanha dos revoltosos, solicitaram ajuda ao exército, mas era tarde e uma grande luta fora deflagrada. O monge e Roubard, de comum acordo, iniciam um trabalho junto aos camponeses. Existe ainda revolta em muitos corações, e pobreza. Logo conseguem angariar a confiança daquela gente. O monge pratica a vocação sacerdotal, reza doentes, realiza curas, mas sem o mesmo labor diário de antes. Não deseja prender-se unicamente a isso, resolve distribuir melhor suas atividades na semana. Roubard procura fazer o melhor. O tempo vai passando, porém a situação entre as classes não melhora. Roubard e o monge não se envolvem, simplesmente trabalham. Tornam-se conhecidos por toda a região. Moram num casebre de um sítio; gente de todos os lugares vem visitá-los. Ali eles estão bem e uma paz temporária os abençoa. Porém, entre os homens essa paz não existe. Novos conflitos vêm à tona. Os líderes dos lavradores revoltam-se, fazem comícios, ameaçam. Juntam-se a eles os sem-terra. Torna-se iminente o perigo de invasões, de quebra-quebra, de queima de plantações. Há negociações, desacordos, desafios. Lavradores de vilas distantes

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apóiam, também reivindicam, rebelam-se. Fazendeiros armam-se, contratam jagunços. Chegam notícias de mortes; a situação torna-se cada dia mais tensa! - Irmão Antônio - começou Roubard - passam-se sete anos desde que aqui chegamos. Esta noite tive um sonho. Vi-me novamente retomando o caminho, deixando para trás este lugar turbulento. Não estou certo sobre a profecia do sonho, pois há tempos venho pensando em partir. Seria verdadeira a mensagem ou é simplesmente manifestação de meu subconsciente? - Não posso responder-lhe de maneira objetiva. Não tive visões a respeito. Mas, como outrora, sinto-me inquieto, parecendo, tal como a você, que algo vem me chamar e impelir-me para adiante. Se assim é partamos, não acha? Roubard acordou no meio da noite. O monge dormia e ele assim o deixou. Ao abrir a porta, o jorro argênteo esparramou-se em facho pelo chão. Não sabia porque aquela insônia, aquela vontade de andar. Percorreu os arredores e notou que ao luar conseguiria até encontrar uma moeda. Sim, era isso! Correu em busca de uma escavadeira jogando-a sobre um ombro e saiu por um caminho. Andou quase um quilometro sem rumo definido. Uma vontade repentina tomou-o e lançou-se temerariamente mato adentro. Pensava pisar numa cobra venenosa, ver-se diante de uma jaguatirica, um lobo do mato. Estava desarmado, tinha somente a escavadeira. Todavia, continuou. Adiante cortou a estrada principal em diagonal e prosseguiu por outro caminho. O ar estava leve. Somente com muita suavidade a brisa vinha jogar com a copa de uma árvore, com a folhagem de um arbusto ou balançar os compridos caules dos trigais. Tão leve como o ar e a brisa macia, um calor se espalhava em seu peito e uma sensação nervosa percorria-lhe todo o corpo. Tudo suave, estimulante, quase irreal. A luz do astro celeste infundia-se em si; sentia penetrá-lo como num conto de magia. Isto vinha criar-lhe um novo ânimo, impor uma coragem ante o desconhecido. Ele caminhava, aspirava o cheiro do mato, ouvia o ruflar de asas de uma coruja, percebia o quebrado e rasante vôo de um morcego. Mas nada realmente o assustava e simplesmente prosseguia. Adiante, formas escuras das árvores assomavam figuras fantasmagóricas, mas ele não se permitia imaginá-las assim. Olhava-as com naturalidade, eram somente formas. De repente parou. Chegara a um lugar descampado rodeado unicamente por touceiras e pequenos arbustos. Sentiu vontade de cavar e cavou exatamente ali. Após um tempo descansou. Levantou a camisa e desatou o nó da algibeira, retirando um dobrão! A moeda ofuscava-se sob os raios lunares, mas não totalmente. Um místico conúbio ali se realizava. Roubard, participante único e oficiante deste cerimonial, apertou-a na palma da mão direita, repetindo o gesto da primeira vez, transferindo-lhe calor e emoção. Seu pensamento foi encontrar o rosto redondo e plácido de irmão Antônio, como se, invisivelmente, ele ali acompanhasse a todos os seus movimentos. Decidido, arremessou a moeda para dentro do buraco murmurando palavras de bons augúrios. Este supremo ato, para o qual todos os anteriores contribuíram em seqüência incidental, precedeu a um desfecho e um frêmito tomou-o aliviando-o da emoção

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contida. Ele tapou o buraco, disfarçou-o com touceiras de capim arrancadas nas imediações, e preparou-se para voltar. Súbito, uma luz penetrante varou a noite. Um poderoso farol surgiu ao longe em medidos ziguezagues. Ele aguardou e logo ouviu o distante ruído da máquina. Viajor noturno o trem vinha chegando. Minutos depois, em reduzida marcha, passava a poucos metros de onde ele se encontrava, apitando e se anunciando. De novo se punham a caminho. Roubard, desta feita, não carregava o ingente peso da dor: ia com naturalidade. Cabelos e a barba tinham encanecido e o rosto vincara-se mais. Entretanto, algo começava a crescer em si. Invisível atmosfera permeava-o, um ar de simpatia e atração configurava-lhe certa e natural altivez, embora nada disso ele pudesse perceber. Irmão Antônio, mais avançado em idade, curvava-se ligeiramente. Seus passos, embora ainda largos e cadenciados como a marcar o compasso de um ritmo sempre constante, arrastavam-se um pouco, mostrando diferença de outrora. Segurava um cajado, rusticamente torneado por suas próprias mãos, no qual se apoiava com certa coreografia de um velho e habilidoso ator. O semblante, o conteúdo de sua expressão, entretanto, não envelhecia. Os ruivos cabelos, sim, e qual em Roubard vinham tomar conhecimento dos anos: eram ainda visivelmente crespos, porém já mesclados de branco. - Sabe irmão Antônio - começou Roubard - nestes últimos sete anos muito me aconteceu. Nos primeiros meses, preso ainda àquela paixão que me corroia, não conseguia atinar com o verdadeiro valor das coisas. Tudo me era inútil, soando-me como se tocasse a vida sem verdadeiramente senti-la. O amargor trazido em meu coração provocava rudeza em meus gestos e tudo eu fazia desejando unicamente gastar-me. Tomava as obrigações como quem toma uma anestesia a fim de poder suportar uma incisão que lhe rasga a carne ou para a extração de um dente que o tortura. Não sei bem a que altura de nossas obrigações com o povo desse lugar o torpor foi passando sem que notasse esse efeito. Mas conseguia observar que, de pouco em pouco, minhas atitudes mudavam. Por uma graça ou por um trabalho realizado, uma estranha sensação viria mais tarde tomar-me, parecendo anunciar-me uma nova época, novos tempos. Ficava a imaginar o que seria: um mensageiro do céu a revelar-me anos de felicidade? Um despertar de poderes como os têm você? Entrementes, algo mais se modificou em mim e certa trégua veio acontecer em minhas inconstâncias. Entretanto, quando a paz emocional queria instalar-se em definitivo, um grito proposital vinha feri-la e espantá-la. Ora uma criança doente chorava diante de mim; uma mulher desesperada agarrava-se a meus braços, ou um lavrador confessava-me seus dramas íntimos. Isto me comovia, fazendo-me por vezes derramar lágrimas. Um sofrimento que não era meu sacudia-me não permitindo ao meu próprio eu ausentar-se. Em outras palavras: o processo de autoconhecimento que em mim se instalara parecia querer se resguardar, manifestar-se num futuro mais propício. O momento era de atrelar-me ao mundo, de adotar atitudes solidárias. Não obstante, o pensamento voltava a me pertencer e não evocava mais a triste recordação. Os ecos da paixão, antes poderosos e retumbantes, se enfraqueciam e somente por uma associação de idéias, em momentos de divagação, voltavam à tona. Contudo, não

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possuíam mais aquela antiga força insufladora de emoções; apagavam-se à dura realidade sem nada conseguir me provocar. Não encontrei a felicidade, caro monge, você sabe. Talvez a sensação descrita seja uma mensagem profética, um aviso de que a felicidade estaria a caminho, somente a caminho. O momento, quando e onde, me é totalmente desconhecido. Não me valeram até o instante as longas meditações, as tentativas de inserir-me no todo pela contemplação, conforme você ensinou-me e pratica, para ao menos estender a mão em direção dessa irreal fatalidade, essa coroação de esforços místicos, o summus stratus de toda a peregrinação humana. Se a mensagem é corretamente interpretada, o caminho é único nessa mesma trilha, mas os sentidos são opostos: ela estará realmente vindo e eu estarei indo. Sou infeliz ainda, irmão Antônio, mas não tanto! Irmão Antônio pôs a mão no ombro daquele homem ao mesmo tempo amigo e discípulo, e falou: - Alegra-me ouvir isto, Roubard. Os anos para alguns se arrastam, para outros voam como uma máquina cruzando o céu. Em você o peso começa a aliviar-se, não em termos de corpo evidentemente, mas de alma terrena. Você não o sente mais como um homem angustiado e martirizado - não agora. A balança alteia-se e abaixa-se, e o fiel, você próprio, a controla e a ajusta. Existe ainda amargura em sua alma, porém suportável; há também ilusões que ao devido tempo estarão descartadas. Tem razão, Roubard, a felicidade é uma questão de tempo e ele preside à solução de nossos mais intrincados enigmas. Ela vem vindo, chegará um dia, haverá de chegar! Chegaram a um rio largo e navegável. Havia ali um barco a motor e um barqueiro. Roubard olhou para o monge e ambos concordaram com a inequívoca sugestão. Ao conversarem com o homem souberam existir rio abaixo uma vila, o ponto mais próximo de atracação. Tomaria-lhes o dia inteiro se não acontecesse forte chuva ou qualquer outro imprevisto. Como ambos possuíssem algum dinheiro, economizado de uma ou de outra maneira, juntaram-no conseguindo pagar as passagens. O barco tinha uma pequena cabine e um toldo encerado; ali poderiam descansar ou dormir com certa proteção. Ao cabo do tempo finalmente desembarcaram. Seus corpos doíam pelo desconforto, mostrando marcas de mordidas de mosquitos. Pisaram a relva macia um tanto úmida espreguiçando-se. Havia em meio ao cansaço e monotonia da viagem a quase alegria de estar novamente em terra firme sem a necessidade de retornar ao barco, como nas paradas realizadas durante o percurso. O barqueiro amarrou o barco e veio acompanhá-los até a vila em busca de passageiros. Era um lugar pobre sem ser miserável. O povo olhava-os com curiosidade. Ao barqueiro eles já conheciam. Um rápido comentário percorreu todos os pontos de conversa. Logo alguém suspeitou que fossem dois missionários. Estariam chegando para edificar uma igreja. Algumas mulheres se apresentaram, beijando-lhes as mãos. Roubard não resistia, já se acostumara. O monge explicava-lhes que embora fosse um sacerdote não construiriam igreja alguma. Pretendiam ficar ali, talvez para auxiliá-los noutras coisas. O povo não se convencia.

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Pararam diante de uma casa velha e abandonada. O barqueiro prosseguiu. O monge perguntou àqueles que os vinham seguindo o que acontecera com as pessoas que ali tinham morado. Eles explicaram-lhe que havia muitos anos esse lugar fora uma escola, mas a professora morrera de pneumonia e ninguém mais ensinara. Somente meia dúzia de pessoas por aqui sabia ler e escrever. - Então podemos nos instalar aqui até decidirmos o que fazer? - Sim, senhor, padre, mas vocês podem dormir nas nossas casas. Onde dormem cinco, dormem sete! - falou-lhes um dos homens reunidos em torno dos visitantes. O monge e Roubard, apesar dos convites, insistiram em ali permanecer. Havia um funcionário da arrecadação municipal sendo ao mesmo tempo conselheiro do povo. Tudo no lugar era pelo mínimo: as obras públicas e os impostos e ele veio encontrá-los na abandonada escola, oferecendo-lhes melhores acomodações. Tanto insistiu que o monge e Roubard acabaram por aceitar, indo para sua casa, ficando no quarto de hóspedes. Pela manhã, convidou-os a conhecer a vila e ao povo. Sendo homens da cidade seriam motivo de honra para o lugar e os levou numa charrete puxada por dois cavalos. Viram, então, de perto, como vivia aquela gente e as condições rudimentares de sua agricultura, completamente obsoleta e quase caótica. Mas o pequeno comércio resistia às necessidades, apesar do desinteresse por sua sorte. O povo era uma gente jovial, amável e de boa natureza. A rudeza nos gestos e no falar devia-se quase inteiramente a uma carência de educação: à seu modo eram pessoas hospitaleiras. No entanto, o monge pressentia de longe que novos métodos, adequadas técnicas de agricultura, e uma educação escolar, lhes fariam muito bem. Não seria tarefa fácil por que o espírito humano não larga com facilidade seu atavismo, a idiossincrasia. Isso, longe de desalentá-lo, estimulava-o. Além do mais, tinha Roubard, homem bafejado por aquilo a que chamavam de sorte. Quem sabe, - continuava a imaginar, - com jeito conseguisse desviar Roubard da pregação, deixando-a mais para o futuro, recolocando-o justamente nesta sua vocação de atrair os bons eflúvios do progresso material? Com sorte, acentuava ainda, coadunariam três trabalhos com maior vigor: a educação, a agricultura e o comércio, anexando ao povo novas energias. Conversou com Roubard propondo-lhe trabalharem desde logo em dois campos diferentes. Roubard reconstruiria a escola, ensinando objetivamente tudo quanto pudesse e o que de fato eles necessitassem. Ele, o monge, buscaria convencê-los a colocar em prática os melhores métodos da plantação, cultivo e colheita que aprendera na vivência com os homens do campo. Havendo bons resultados, forçariam o progresso em todas as áreas e direções, tanto quanto possível. Não houve qualquer resistência do funcionário da arrecadação diante das idéias, pelo contrário, aplaudiu-as como se fossem suas! Uma campanha foi feita junto ao povo, para cujo interesse o nome do funcionário aparecia sempre em primeiro lugar, logo se iniciando a reconstrução da escola. O funcionário orientava adultos e crianças a fim de que fossem aprender com o professor Roubard. Seria bom para a comunidade, para a vila. Aproveitava para informar ao povo, que o monge se reuniria com lavradores e donos de sítios a fim de expor-lhes suas idéias e planos para uma nova

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época na agricultura. Era pensamento seu - dizia ainda o funcionário referindo-se a si próprio - que houvesse maior progresso da vila, pois ocupavam os últimos lugares na arrecadação do município. Precisavam mudar aquela situação, ser notados no cenário político, evoluir, seria bom para todos, para as futuras gerações. Passado um tempo a escola reabriu começando a ser freqüentada por algumas crianças e pouquíssimos adultos. Era somente uma turma. Em relação às idéias do monge, não houvera qualquer interesse, nem reuniões. Para não ficar totalmente alheio ele foi visitar os produtores e conversar com cada um deles. -Os meios para trabalhar a terra continuarão os mesmos por enquanto, explicava-lhes. Entretanto, plantaremos maiores quantidades, negociaremos. - Eles argumentavam que as vilas vizinhas, ou cidades, eram distantes e de todas as formas produziam para seus próprios sustentos. - Haverá coisas que não plantam ou a produção seja insuficiente necessitando importar; ademais, há a estrada de ferro. Vocês venderão para outras cidades, ganharão dinheiro, comprarão equipamentos modernos! Tudo inútil havia realmente forte resistência a novos métodos e depois de repetidas tentativas o monge finalmente desistiu. Não se saíra bem naquele papel. Isso talvez coubesse melhor a Roubard! Como alternativa, uniu-se a Roubard na escola, passando a assisti-lo. Mais tarde, viriam os jovens. Estes se interessavam de fato e aprendiam tudo rápido. Uma vez por ano os dois professores partiam para outras cidades em busca de material escolar e didático. Traziam livros, cadernos e acessórios para o ensino procurando sempre modernizar o que faziam. Alguns anos consumiram nesse labor, mas não muitos. O cansaço ou alguma coisa já conhecida de outrora viria novamente encontrá-los. Decididos a não se deter por mais tempo, partiriam pela madrugada sem nada avisar. Haviam ganho dois burros para se locomover pelos lugares distantes e agrestes da região, nas visitas que faziam para educar ou auxiliar as pessoas, e resolveram levá-los. Desta feita, foi Roubard quem julgou tomar a decisão e sem excitação ou especial motivação mística cavou no fundo da escola, com ajuda de Irmão Antônio. Antes de jogar o último dobrão dentro do buraco, realizou o pequeno ritual de aquecimento da moeda na palma da mão, pronunciando palavras de bons augúrios. Ao romper do dia já estavam longe. Iam pelo mato rio abaixo. Paravam muitas vezes para descansar. Não agüentavam mais as agruras de uma jornada como aquela com a mesma disposição de outrora. Estavam quase velhos, precisavam cuidar-se. Por dois dias viajaram no lombo dos animais, dormindo sob árvores, armando barracas e fazendo fogueiras. Conseguiam pescar e comer peixe frito. Ao final do terceiro dia cruzaram uma ponte; adiante tomaram uma trilha desconhecida embrenhando-se mais ainda mato adentro, deixando o rio para trás. Pouco andaram logo acampando. Dormiram mais uma noite sob o cricrido de grilos, o coaxar de sapos, o piar de corujas. Ao crepúsculo de um novo dia levantaram-se, mas não foram muito longe. A poucos metros dali viram um casebre de pau-a-pique com telhas de barro cozido. Curiosos, aproximaram-se e chamaram. Ninguém veio atendê-los, eles abriram a porta: estava

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abandonado! Percorreram o quintal notando a existência de um galinheiro vazio; mais ao longe viram um pequeno curral de porcos, também vazio. Um córrego vinha cortar a terra por entre capins e matos. Ao fundo, bem mais distante, dois pequenos morros impunham-se como duas colinas gêmeas. Em derredor, se mostrava um extenso campo de agricultura semi trabalhado. Havia por ali uma horta com hortaliças e verduras; havia aipim, abóbora, pés de milho e frutas, todos carentes de cuidados pelo abandono. Um cacarejar chamou-lhes a atenção e viram uma galinha vermelha sair do mato, acompanhada de meia dúzia de pintos. Eles riram e sentaram-se. Ficariam por ali o quanto desse, até que o dono voltasse. O dono não voltou, eles foram ficando. Pretenderam modificar o panorama do lugar, dar melhor produtividade à terra semeando-a, mas não tinham ferramentas nem sementes. Um viajante passou fortuitamente pelo lugar: era um mestiço forte. Ao vê-los aproximou-se. Perguntado acerca do dono do lugar não soube responder, era a primeira vez que tomava esse caminho. Os dois não se identificaram, dizendo somente terem chegado para morar e Roubard teve uma idéia. Disse estarem a enfrentar imensas e inesperadas dificuldades e procurou barganhar. Ele traria-lhes uma lista de coisas e em troca receberia seu burro de cargas. Os olhos do mestiço brilharam e entrou para discutir a barganha. Com as ferramentas que conseguiram e demais coisas que as acompanhou, principalmente sementes, uma nova fase iniciou-se naquele solitário lugar. Aos poucos iam modificando o antigo cenário. A horta crescia, o verde se esparramava. O campo de agricultura fora limpo em grande área, no milharal brotavam belas e saudáveis espigas. O galinheiro fora reconstruído, possuíam agora galinhas e ovos. O mestiço voltou e o monge ofereceu-lhe o seu burro. De novo barganharam. Equipavam-se uma vez mais de necessários utensílios, conseguindo estabelecer-se com certo conforto. Por três vezes mais, ao longo de dois anos, o mestiço retornou trazendo-lhes coisas, recebendo o dinheiro que possuíam. Vinha sempre remando e atracava mais abaixo na grande volta do rio, há meia hora dali. Quando o dinheiro acabou o mestiço não voltou mais. Suas vidas decorriam agora com poucas nuanças. Quando não estavam a cuidar das plantações, ou a fazer reparos na casa, meditavam ou descansavam. Pouco conversavam, somente o essencial; tinham se tornado autênticos eremitas! O tempo forjara-lhes definitivas e indeléveis marcas. Roubard não possuía mais um único fio negro em sua barba e cabeleira. A testa sulcava-se profundamente. O monge perdera os cabelos e ganhara rugas. Seus corpos dobravam-se ante o peso dos anos. Com dificuldade se locomoviam. Muitas vezes adoeciam e procuravam tratar-se com ervas e plantas. Por grande sorte, ou pela vida natural que levavam, não tinham contraído nenhuma doença grave ou incurável. No entanto, já não podiam dizerse completamente esquecidos do mundo, pois outras pessoas que por ali passavam os chamavam a fim de pedir água, algum alimento ou mesmo entravam para descansar. O mestiço tinha espalhado que no casebre moravam dois homens bons que não desejavam sair de lá para nada.

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Certa ocasião, um homem resolveu procurá-los. Tinha uma dor de cabeça incurável. Soubera anos atrás na cidade por onde passara, que um padre milagroso tinha morado ali perto num sitio de um lavrador. Fizera muitas curas e desaparecera de repente com seu auxiliar sem deixar vestígios. Por instinto ou intuição suspeitava de que seriam as mesmas pessoas de quem falara o mestiço. Ao saber de ambos saiu a procurá-los, explicando ao monge o motivo de sua vinda, implorando que o curasse. Irmão Antônio avaliou o seu problema dizendo-lhe que um espírito doente o perseguia, estando colado a ele. O homem pediu-lhe para afastá-lo de si. Irmão Antônio mandou-o aguardar saindo pelas redondezas, voltando ao cabo de meia hora com ramos de plantas e uma braçada de diversos galhos verdes. Ordenou-lhe que se despisse completamente e o homem sequer relutou. Estando completamente nu, irmão Antônio sapecou-lhe as plantas por todo o corpo. Conforme ia batendo grunhia, resmungava ou dava ordens ao espírito. Depois lhe impôs as mãos à cabeça, rezou e fez o sinal da cruz diversas vezes. Finalmente, com dedos unidos bateu-lhe três vezes no coração e três na testa, afirmando ter arrancado o espírito obsessor que não mais o perturbaria. Mandou-lhe - ao chegar a casa - que ateasse fogo nessa roupa que vestia e nas demais que possuísse, jogando as cinzas no rio ou num cemitério e comprasse novas. O homem vestiu-se, beijou-lhe as mãos e foi embora. Duas vezes ao ano, por alguns anos, esse homem agradecido voltou, trazendolhes roupas, cobertores, calçados, algum mantimento, sementes, às vezes até garrafas de vinho ou licores. Irmão Antônio e Roubard agradeciam e aceitavam. Em ocasiões, ele dormia na casa partindo ao amanhecer, não sem antes pedir ao monge uma reza ou uma benção. Certa tarde chuvosa e fria, enquanto sentavam próximo ao fogão a fim de aquecerse, o monge começou a recitar qualquer coisa. A voz saía-lhe rouca e pausada. Fechara os olhos deixando as mãos pousadas sobre os joelhos. Falava com grande dificuldade, não tanto pela idade, mas por uma razão até então não entendida por Roubard. Passado instante, a voz foi se tornando vibrante. O rosto se transformava do inexpressivo ao jovial; a recitação, ainda vibrante, era agora acompanhada de gestos. Roubard, a princípio assustado, seguia com atenção a sucessão de movimentos do companheiro. Os sons pronunciados pelo monge enchiam aquele pequeno espaço, estremeciam o corpo de Roubard deixando-o algo atordoado. Iam do grave ao agudo, cresciam ou decresciam, tornavam-se fortes ou mansos ou verdadeiramente mântricos! Aos sons seguiu-se uma invocação em linguagem desconhecida. A cabeça erguiase, os braços abriam-se para cima. Depois uma sussurrante prece - suave como um bálsamo ou bela poesia. A prece atraiu ao ambiente uma paz que a tudo permeava. A cabeça do monge então pendeu para adiante. Roubard levantou-se indo ampará-lo.

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Manhã seguinte, gemendo e com imensa dificuldade, Roubard arrastava o corpo inerte de irmão Antônio. Envolveu-o num lençol branco e o depositou na cova aberta no fundo do quintal. Fincou ali uma grande cruz, desejando que significasse quão grande tinha sido aquele homem. Depois chorou muito e soluçou. O inverno passou, também a primavera. Roubard, mais só do que nunca, pensava. Não tinha mais disposição para se mexer ou trabalhar. Lembrou-se do monge. Haviam se decidido ao mesmo tempo por um motivo mais forte para viver. Encontraram-se na mesma encruzilhada diante de um único destino. O caminho trilhado prometia levá-los ao encontro da felicidade, daquilo que se elegia em seus pensamentos como o cume, a coisa mais importante, a única motivação que julgavam existir para continuar respirando. Ao invés disto que haviam encontrado? Miséria, dor, trevas, sangue e mortes. Em verdade, a felicidade jamais houvera se apresentado. Existiria de fato ou seria quimérica ilusão construída pelo demônio, justamente para enganar homens sem esperanças? Julgara-se a certa altura da jornada menos infeliz. Adiante, viveria de emoções insulsas jamais da realidade. Ao experimentar certa trégua em suas íntimas lutas, atribuíra-a ao próprio trabalho que o mantinha ocupado, às experiências acumuladas. Nunca a uma possível aproximação desta mística forma de um sonho louco! Ainda era a mesma pessoa solitária e infeliz. Afastara-se definitivamente dos homens; tornara-se, por fim, um morto-vivo. As visões que costumavam povoar seu mundo íntimo enquanto meditava, provaram-se também ilusórias; eram amorfas, escorregadias, intangíveis, nada mais do que isto. Pareciam rir de sua dor, de sua tolice em tentar. Louco e demente eis o que sempre fora. Louco e demente fora também seu companheiro de infortúnios, um monge curioso conhecedor de fórmulas mágicas, de cânticos e técnicas construídas pela imaginação. As visões quixotescas, as intuições, os sonhos de atingir o inexistente, os três dobrões! De onde os teria obtido se nada vindo dele possuía realidade ou formas concretas? Cansa-me este lugar agora que meu companheiro partiu. Vou-me embora. Adeus, irmão Antônio, adeus, monge! Deixo-o só. Perdoe-me se não suporto mais olhar para estas coisas. A todo instante vêm lembrar-me de minha vida, de nossas vidas. Sei que não adianta fugir por que a natureza não deixará de enviar sua executora impiedosa a fim de retomar aquilo que me deu emprestado para se divertir. Porém, assim mesmo vou andando, talvez para apressar este encontro último! E Roubard se foi. Vestia-se como um pobre que realmente era. Levava ao ombro a bolsa de couro velha e encoscorada, a única coisa que lhe lembrava do amigo. Ao chegar ao rio sentou-se à margem para novamente descansar. Queria também molhar os pés, refrescar-se. As pernas doíam-lhe, respirava com dificuldade; o calor era forte, consumia-lhe energia. Súbito, o ruído ritmado e acelerado de um motor penetrou-lhe os ouvidos e viu um barco subindo. O barco aproximava-se rapidamente, Roubard assustou-se. Quis correr, teve medo, entretanto tropeçou e estirado. O condutor do barco, moço alto e forte, percebendo os movimentos daquela pessoa, desviou seu curso para a margem

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aproximando-se. Ao notar que se tratava de um pobre velho que o olhava assustado, pulou do barco, rindo e debochando, ajudando-o a se levantar. Roubard, mediante essa disposição, acalmou-se um pouco concatenando as palavras com dificuldade, dizendo-lhe que pretendia ir rio acima. Depois de tanto tempo era-lhe tão difícil falar, dialogar! O rapaz, penalizado, apoiou-o e o colocou sobre o barco o levando. Pouco conversavam por que Roubard não sustentava os assuntos e mal respondia. O barqueiro assobiava e cantava. Por todo este dia viajaram. Roubard trouxera frutas e as comia. O rapaz ofereceu-lhe peixe frito e pão. Roubard pôde alimentar-se melhor. Finalmente o barco veio encostando à margem. O rapaz atracou informando-lhe que ficaria por ali. Adiante havia uma cidade; lá Roubard conseguiria outro tipo de ajuda. Roubard, num impensado gesto, abraçou-o fortemente desejandolhe sorte. Era tudo estonteante! Os carros correndo e buzinando pela estrada; casas, comércio, rádios, músicas explosivas, restaurantes, lojas, aparelhos de televisão! Roubard encolhia-se quando ouvia o ronco mais forte do motor de um veículo; levava as mãos aos ouvidos. As pessoas olhavam-no, caçoavam dele, de seu modo de se conduzir, das esquisitices. Entrara diretamente no movimento da cidade. Via gente bem vestida, apressada. Via mais carros, mais lojas, ouvia mais barulho por toda a parte! Meio atordoado atravessou a rua; foi sentar-se num banco no meio da praça. Descansou e observou. Há quanto tempo não via gente assim, cidade! Achava-se desconcertado, fora do ritmo da vida. Tudo era tão diferente: as pessoas, as roupas, a maneira de falar, de ser! Não entendia porque corriam tanto, da pressa! Passou as mãos nos cabelos brancos, alisou a longa barba e virou-se para o lado a fim de acompanhar o voo solitário de um pombo. Pelo menos esse não participava daquela confusão dos diabos, ou não contribuía. O pombo insinuou-se entre árvores, ultrapassou-as e descreveu um semicírculo. Roubard seguiu-o com olhos atentos: admirava seu desprendimento, a independência do voo! Em lance calculado, o pombo imprimiu um novo ritmo ao bater das asas, ganhou velocidade, subiu abruptamente e pousou no telhado de um largo edifício, o maior daquela quadra. O pombo aquietara-se. Roubard trazia os olhos para o frontispício do prédio deslizando-os com lentidão, lendo o que ali estava escrito. Ao término estava tenso, mal podendo acreditar. As palavras em peças de aço brilhoso anunciavam: “ACADEMIA ANTÔNIO E ROUBARD”. Roubard atravessou a rua sob buzinas, sendo quase atropelado. Estava boquiaberto. Diante do prédio releu o título. Quantos anos teriam se passado, dez, quinze, mais ainda? Perdera a conta, nem sabia em que ano estavam. A escola, a vila: tudo se transformara! O incontido progresso chegara, alcançara-os. O dobrão fora o responsável, mudara o rumo e a história do lugar. Irmão Antônio estava certo, mas o que fizera seria bom?

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Alguém o esbarrou, ele se desequilibrou caindo sentado. Ouviu palavras de zanga, escárnio e impropérios. Mandaram-no procurar o albergue no final da rua. Roubard estava cansado. A emoção somava-se ao desgaste natural da viagem, antinatural para ele ao absorver a atmosfera super dinâmica e nervosa da cidade. Foi se arrastando para o final da rua, encontrando o albergue. Entrou e sentou-se no chão. ] Uma mão sacudiu-o, acordando-o. Dormira sem sentir, desfalecera de cansaço. Havia movimento, fila; pisavam-lhe os pés, ele se levantou. Hora da comida! Entrou na fila, recebeu um prato, foi servido indo sentar-se ante comprida mesa sobre um longo banco ladeado por companheiros de sorte! Tendo comido, um homem chamou-o fazendo-o entrar numa sala. Despiram-no. Ele não esboçou a menor reação por que vira que lhe dariam novas roupas: era tudo tão estranho, seria verdadeiro? Estenderam-lhe roupas usadas, mas limpas: ele as vestiu. As que vinha usando estavam sujas, amontoaram-nas com outras. Procurou a velha bolsa. Estava a um canto para ser também jogada fora. Ele a agarrou e saiu. Retornou à praça; ficou ali a contemplar a obra. Fizeram-lhe companhia, perturbaram-no, ele se levantou saindo sem destino. Um objeto rebrilhou no chão. Era um porta-níqueis de metal dourado. Ele o pegou e o abriu, havia notas e moedas. Recolheu-as colocando-as no bolso, largando o porta-níqueis no chão. Adiante, tomou o primeiro ônibus que viu parado. O ônibus saiu da cidade ingressando numa estrada. Roubard desejava reconhecer um lugar, uma casa, a memória não ajudava. Final da viagem. Roubard, sem saber para onde ir aguardou. Outro ônibus parou e ele o tomou. Foi levado a lugares mais afastados do centro da cidade. Adiante, viu uma estrada de ferro e em seguida a estação. Excitou-se, tomaria o trem, viajaria para mais longe! Roubard instalou-se no banco, relaxou e dormiu. O trem sacudia; o banco era duro e desconfortável; ele dormia e acordava. Antes do sol se levantar, Roubard estava atento à janela; observava o panorama que aos poucos se tornava mais nítido. Viu campos de plantios e lavouras bem tratadas. Surpreendia-se com as dimensões de cada reserva, com a quantidade de máquinas, algumas estranhas e desconhecidas para ele! Caminhões enfileiravam-se pelas estradas transportando homens àquela hora da manhã, dirigindo-se para várias direções e sentidos ou circulando em torno dos campos. A julgar pelo que via os homens estariam sendo transportados para fazerem a colheita. Com efeito, adiante viu campos e colheitas. Meia hora depois o agente anunciava a próxima cidade já entrando em seus limites. Algo lhe despertou os sentidos, mas não identificava exatamente o que seria. Na medida em que o trem se interiorizava, Roubard procurava atentar para o tamanho da cidade. Seria grande, muito maior do que a anterior de onde vinha! Dizeres de boas vindas indicavam o nome daquela cidade e ele finalmente lembrou-se. Excitado levantou o vidro. Queria observar, ver o que suspeitava! À margem da estrada de ferro viu muitos armazéns, silos e entrepostos. Constituíam enorme área para a estocagem dos produtos agrícolas e manufaturados. Havia movimento; entra e sai de caminhões; via homens com papéis e pranchetas à mão.

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A parada foi rápida. Logo o trem partiu. Um passageiro veio sentar-se no banco da frente. Roubard sem conter-se o tocou ao ombro perguntando-lhe acerca da cidade, das relações entre lavradores e comerciantes. Surpreso, respondeu-lhe que há muitos anos não tinham qualquer problema entre classes. Isto pertencera ao passado. Pequenos e grandes proprietários agiam com normalidade: plantavam e colhiam; os produtos eram trazidos para os armazéns das cooperativas. Se problemas existiam quanto a preços, decorriam das oscilações do próprio mercado, seriam de outra ordem. Os lavradores, além do mais, tinham sindicato para representá-los, levavam suas exigências às esferas legalmente constituídas. Negociavam, faziam suas reivindicações. Havia escolas, hospitais, o livre culto das religiões. Nada lhes faltava nas relações capital, trabalho e sociedade; tinham todas as instituições necessárias à vida moderna e as faziam funcionar da melhor maneira possível. O dobrão, pensou Roubard, o segundo deles. Havia-o enterrado próximo dali, não lhe restava a menor dúvida, ele açoitara o mal, atraíra o progresso e o impulsionara! O trem prosseguiu. Para Roubard a viagem terminaria numa estação qualquer. Cansado de tanto viajar sobre trilhos resolvera ficar. A fome incomodava, restava-lhe ainda algum dinheiro e parou numa birosca de beira de estrada comendo pão, ovos, lingüiça frita e tomando café. Comprou mais e acondicionou na bolsa, depois seguiu a pé. Uma chuva veio pegá-lo no caminho, precisou andar depressa, mais do que normalmente fazia. Por sorte encontrou uma ponte sobre pequeno rio, protegendo-se debaixo dela. Como a chuva apertasse, ele ali permaneceu na companhia de uma velha mendiga, com quem dividiu o alimento que trazia. A mulher soltava palavras sem nexo, de vez em quando concatenava idéias e conversava com lógica. Mas depois de gastar pequeno repertório coerente voltava a dizer tolices. Num desses momentos de breve lucidez, perguntou-lhe de onde ele vinha. De muito longe, de tal cidade, respondeu Roubard. E para onde você vai? Para uma cidade onde estive há muitos anos. E qual é o nome desta cidade? Apesar do tempo, esse registro não lhe desaparecera da memória porque era ponto base de seu destino, de sua vida, como lhe foram as cidades que há bem pouco deixara para trás. Assim, informou-lhe o nome. A velha mulher, com riso, afirmou-lhe ser ali mesmo. Mas esse não é o nome da cidade, falou Roubard desanimado, desconfiando que ela começasse de novo a fugir da razão. Foi mudado há muitos anos, eu me lembro sim. Foi pouco depois que meu noivo me deixou, fugindo em companhia de um padre. Nós íamos nos casar, mas ele fugiu, Roubard fugiu! Ela gargalhou e tossiu. Não fuja, Roubard, volte! Gritou e gargalhou de novo! Roubard levou um tremendo choque, trazendo a mão ao coração. O sangue subiulhe ao rosto asfixiando-o por segundos e nada mais enxergou. Quando isto foi passando, outra dor mais profunda arrancou-lhe um novo pedaço da alma. O arrependimento fazia-o pagar por aquilo que deixara em aberto no livro do destino. Ele se levantou e ajoelhou-se diante da mendiga: - Perdão, eu não sabia o mal que lhe estava causando. Eu só pensava em mim!

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Tomou-lhe as mãos e quis beijá-las, ela arrancou-as com violência e gargalhou até cair de costas. Lágrimas inundaram-lhe os olhos, descendo pela barba. Ela silenciara aquietando-se; unicamente os soluços de Roubard eram agora ouvidos. Pela manhã a mendiga ainda dormia; ele deixou-lhe todo o alimento que restara. Nada mais tinha para dar-lhe e orou fervorosamente, pedindo que sua alma finalmente encontrasse a paz. Saiu cautelosamente temendo despertá-la. As pernas mal obedeciam, o peito doía, ele arfava. Parava de trecho em trecho, respirava com dificuldade e descansava. Súbita tonteira sobreveio-lhe; ele quis agarrarse, mas não tendo onde se apoiar caiu desfalecido. Ao acordar estava sobre uma cama; via soro, balão de oxigênio, enfermeiras. Quis levantar-se, não lhe permitiram. Que aconteceu? O senhor foi encontrado desmaiado à beira da estrada por nossa ambulância. O médico colocou-o na maca trazendo-o para o hospital. O senhor teve enfarte, precisa repousar. Não, eu tenho de prosseguir! Por favor, fique quieto, senão vai piorar! Seguraram-no, obrigaram-no aquietar-se, deram-lhe anestésico e ele dormiu. Ao acordar, alimentou-se. Resignou-se por dois dias. Mas, à noite, enquanto na enfermaria todos dormiam e pelo hospital a vigilância interna relaxava, ele arrancou os tubos de soro e medicação, vestiu-se, pegou a bolsa e evadiu-se. Chegando à rua saiu a andar pelo quarteirão. Mas se sentindo cansado buscou refúgio num horto, encontrando uma gruta à beira de um lago nela permanecendo. Algo familiar veio novamente mexer com sua memória, trazer-lhe recordações não definidas, agitar com o subconsciente. Como o dia raiasse, ele voltou para as imediações do hospital. No caminho encontrou um negro avançado em idade e perguntou-lhe acerca daquele hospital. O homem contou-lhe que fora construído há muitos anos. Ele se lembrava de toda a sua história porque era morador das redondezas. Dois missionários, um padre e um homem comum, haviam chegado. O bairro era muito pobre, miserável mesmo, eles tinham vindo para ajudar o povo. Construíram um galpão de madeira e à moda deles transformaram-no em hospital e em muito mais coisas. Trabalharam com dedicação pelo povo. Mas um dia se foram sem nada avisar abandonando o galpão. Coincidentemente, no mesmo dia, veio um grupo de universitários, estagiários de medicina e assistentes sociais que faziam um mapeamento das comunidades carentes, segundo um programa de governo. De seus relatórios da miséria daquela gente, a atenção do governo foi sendo despertada e como os jornais e a televisão passassem a se interessar, uma comissão oficial de estudos foi enviada para definitivamente tratar do assunto. Ao constatarem o abandono da população, fizeram planos para a construção de um hospital, iniciando a obra no exato lugar do galpão. Demoliram muitas casas transferindo moradores. Depois foi a vez de outras casas na periferia do hospital, até que finalmente quase todo o bairro veio a ser demolido. O hospital ampliou-se, outros prédios vieram fazer parte do bairro, segundo um projeto urbano muito bem elaborado. Com o correr dos anos o bairro cresceu, o comércio expandiuse, mas o hospital permaneceu atendendo principalmente à população pobre.

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O homem se foi, Roubard sentado no meio fio sob uma árvore refletia acerca da história. Uma leve tonteira veio cortar-lhe a reflexão; ele buscou inspirar com mais vigor, seu corpo inteiro doía-lhe, os pés inchavam, as pernas tinham ficado endurecidas. A tonteira foi passando, mas uma fraqueza veio instalar-se. Tinha fome, talvez a fraqueza fosse devido a isto. Levantou a cabeça e viu dois pobres caminhando em sua direção. Ao passarem adiante perguntou-lhes onde havia comida. No albergue do hospital, estamos indo para lá. Roubard os seguiu a certa distância, estava fraco demais para acompanhá-los. No albergue comeu boa comida e saiu. Aquela cidade não lhe causava nenhum bem, queria deixá-la o quanto antes. Estava muito cansado, as dores não passavam, de vez em quando sobrevinham-lhe novas tonteiras. Um gosto estranho subia-lhe pela garganta, quase vomitava. Como não tivesse dinheiro para viajar resolveu esmolar. Sentado na esquina com uma lata à mão recebia migalhas de dinheiro. Durante três dias assim ficou, comia no albergue do hospital e por lá também dormia. Juntara somente pequena quantia, insuficiente ainda para adquirir uma passagem de ônibus. A saúde abalava-se cada vez mais. No final deste mesmo dia, por engano ou por desígnio, jogaram dentro da lata uma nota dobrada. Ele a retirou e alegrou-se. Com ela poderia agora adquirir a passagem; sobraria troco para comprar comida! No albergue deram-lhe roupas limpas, ele comeu ali pela última vez. Problemas vieram mudar os seus planos e não pode comprar a passagem por que não tinha documentos. Além de tudo, quem iria viajar ao lado de um mendigo? Ele saiu da rodoviária desalentado e triste. Somente ali tinham exigido tal coisa, desprezavam-no. Habituara-se às chacotas e ao escárnio, não ao desprezo. Estava, porém, decidido e se pôs a caminho com todas as dores e dificuldades. Ao deixar os limites urbanos da cidade e palmilhar a estrada, passavam-se três dias. Ele tossia muito, descansava a todo o momento. Roubard não agüentava mais. Ao longe, dentre confusas imagens, viu um grande veículo imaginando que seria outro ônibus. Quem sabe aqui lhe permitiriam viajar nele? Meteu a mão no bolso retirando o dinheiro que possuía mostrando-o. Era um caminhão. O motorista ao vê-lo quase se lançando no meio da estrada, freiou o veículo. Roubard pediu-lhe ajuda, iria até onde seu dinheiro pagasse. O motorista puxou-o para dentro da cabine. O caminhão transportava carga coberta por um encerado; por várias horas viajaram. Roubard, estafado, dormiu. O dinheiro que segurava esparramou-se sobre o banco. Ao pararem num posto de gasolina, próximo a um restaurante, o motorista acordou-o. Roubard, assustado, ajeitou-se. O motorista disse-lhe que ia deixá-lo ali porque poderia comer e descansar. Roubard quis dar-lhe todo o dinheiro, mas ele recusou e prosseguiu viagem. Roubard piorava; as dores por vezes aumentavam, ele levava a mão ao peito. Comprou um pão, tomou café e saiu a caminhar. Ingressou numa estrada qualquer e afastou-se do movimento pesado da rodovia. A estrada veio cruzar um caminho no qual ingressou. Via casas, quintais, pequenas plantações, arvoredo. A tarde estava agradável, a temperatura amena. Mas Roubard não tinha condições de sentir plenamente todas essas coisas. De vez em quando via pedaços mais profundos do

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céu, via nuvens brancas. Queria ver mais, desejava respirar o ar campestre, rever pastagens, sentir o bucolismo da vida pacata. Dores profundas e lancinantes vinham interromper esses desejos, tolher os seus passos, trazer-lhe angústias. Ele cambaleava, levava a mão ao peito, gemia. O gosto estranho na garganta lembrava-lhe sangue; o rosto queimava, a cabeça latejava: assim mesmo ele prosseguia! Uma imagem livre, sem conecção alguma, assomou dos labirintos de sua mente: era irmão Antônio! Ele sorria-lhe. Idiota, pensava Roubard. Veja a que estou reduzido, ao que cheguei. De seus gloriosos e místicos sonhos nada restaram. Os dobrões, aqueles traidores talismãs. Trouxeram esperanças inúteis, coisas e mais coisas. Vejo agora, sinto claramente. Por minhas mãos eles escorregaram infiltrando-se na terra, no mundo dos homens, semeando o progresso e a edificação de monumentos. Monumentos a quê? À cegueira humana, ao orgulho das classes. Veja, Roubard, aqui há escolas, os homens aprenderão coisas, serão doutores. Ali, Roubard, guardarão seus produtos, os alimentos; a fome e o desconforto não os alcançarão. Aqui, Roubard, o hospital magnífico atende aos esquecidos, aos que não têm onde cair mortos! Malditos dobrões, malditas moedas de ouro. Enganaram-me o tempo todo, enganaramnos seu monge cabeçudo! Parte de minha vida carreguei-os julgando-os portadores de alguma profética verdade, da anunciação de uma nova vida. Mas eles eram somente três moedas: a magia estava em minhas mãos. Eu sou o culpado! Uma dor mais forte fê-lo cair de joelhos gritando. Ele suportou aquilo por quase um minuto. A dor atenuou e ele se levantou. Na mente aquele rosto ainda sorrindo. Estou indo monge, estou indo! Deu mais alguns passos e chegou ao final daquele caminho, ali se deitando. Fechava os olhos, via confusas imagens, deformações. Abria-os e essas coisas continuavam. Um peso fez com que os cerrasse em definitivo: a dor agora o torturava mais e começou a ouvir muitas vozes. Quis prestar atenção, não as entendia. Aos poucos vieram a ser abafadas: uma só voz passou a ecoar claramente: era forte, enérgica, ele a conhecia muito bem: - Nós vamos encontrá-la, Roubard, precisamos dela. Ela representa para nós a coisa mais importante; mais do que o pão que comemos e a água que bebemos! - Fala-me agora, monge, recorda-me de nosso início! Um som agudo como a vocalização de um cântico, penetrou-lhe os ouvidos. Ouvia agora palavras estranhas entoadas como música, como mágicos sons! Seu corpo estremeceu e convulsionou num derradeiro frêmito; uma paz imensa e grandiosa que nunca conhecera o tomou, um sorriso de felicidade veio rasgar seu rosto inerte e ele assim permaneceu! Naquele lugar onde dois caminhos vinham se juntar e prosseguir numa estrada, acharam o seu corpo. Removeram-no dali e o enterraram como indigente. Tiveram a idéia de fincar uma cruz de paus entre os dois caminhos, no exato lugar onde ele terminara os seus dias. A cruz suportou muitos anos. Os braços abertos estariam a espantar a quem desejasse um dia iniciar semelhante caminho sem estar preparado. Pois para tal empreitada, era requerido o despojo de todas as ilusões e prazeres mundanos e do próprio desejo da felicidade. Não fosse essa a firme disposição a caminhada seria vã e não valeria a pena ser tentada!

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