Resgatar o Eu Deserdado – A Outra Face Da Sombra Muitas pessoas não encontram o seu dom divino porque evitam procurar nos lugares mais fora do vulgar. Um desses lugares é a nossa sombra, o lugar onde despejamos todas as características da nossa personalidade que não gostamos e deserdamos. Estas partes deserdadas são incrivelmente preciosas e não podem nunca ser postas de parte. Aceitar e honrar a nossa sombra é uma arte profundamente espiritual. Conduz‐nos de volta à totalidade que sempre fomos, tornando‐se assim na experiência mais sagrada da nossa vida. Existe em cada um de nós uma persona – a soma das partes que gostamos que os outros vejam em nós. É como a nossa roupa psicológica e é a mediadora entre o nosso eu verdadeiro e o ambiente em que nos encontramos, da mesma maneira que a roupa que trazemos no corpo representa uma imagem de quem somos. O ego é quem nós somos e conhecemos conscientemente. A sombra é a parte de nós que não conseguimos ver nem conhecer conscientemente. Todos nascemos completos e, com algum cuidado, todos morreremos completos. Algures nos primeiros anos de vida comemos o fruto proibido, separamos as coisas em boas e más, e damos início ao processo de construção da sombra. Neste processo cultural separamos todos os aspectos divinos que possuímos em aceitáveis e inaceitáveis. E escondemos os inaceitáveis. Este processo é maravilhoso e necessário, caso contrario não teríamos uma civilização educada e respeitadora. Mas as características que rejeitamos e não aceitamos em nós não desaparecem: limitam‐se a amontoar‐se nos cantos mais escuros da nossa personalidade. Quando já não suportarem serem ignorados, ganham uma vida própria – a vida da sombra. A sombra é composta de todos os aspectos que não foram abraçados de maneira adequada pela consciência. É o quarto do nosso ser que repudiamos. Com frequência possui um potencial energético tão forte quanto o do nosso ego. Se por acaso acumula mais energia que o ego, explode como uma raiva descontrolada ou uma indiscrição que não conseguimos evitar. Ou então caímos numa profunda depressão ou sofremos um acidente sem qualquer motivo aparente. Uma sombra com autonomia própria é um verdadeiro monstro a brincar com a nossa personalidade consciente. O processo educacional ocidental consiste em eliminar todas as características que possam ser perigosas ao todo que é a sociedade em que estamos inseridos. Apesar de nascermos completos, a cultura onde estamos inseridos exige que vivamos apenas uma parte da nossa natureza e rejeitemos a outra parte da nossa herança divina. A cultura rouba‐nos do humano verdadeiro em nós, mas ao mesmo tempo, dá‐ nos um poder mais complexo e sofisticado. Podemos argumentar que as crianças não deveriam ser sujeitas a esta divisão numa fase inicial do seu crescimento, caso contrario iremos roubar‐lhes a infância. Deveríamos aguardar até que atingissem uma idade em que fosse relativamente fácil compreender este
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processo, em vez de as expor aos perigos de aniquilarem uma parte importante de quem são. E é preciso saber quando é que as crianças estão prontas a adaptarem‐se a uma vida em sociedade. Uma tarefa nada fácil. É interessante ver como em diversos pontos do planeta as sociedades humanas atribuem diferentes características ao ego e à sombra. Num pais conduz‐se no lado direito da estrada, noutro é na esquerda. No Ocidente um homem pode passear de mãos dadas com uma mulher, mas é mal visto se o fizer com outro homem. Na Índia é o oposto: dois homens a caminhar de mãos dadas é aceite pela sociedade, mas um homem e uma mulher é um comportamento muito mal visto. No Ocidente mostramos respeito pela religião ao entrar nos templos calçados. No Oriente é precisamente o oposto: entra‐se nos templos e mostra‐se respeito ao retirarmos os sapatos. No Médio Oriente é considerado uma cortesia arrotar no final da refeição, como prova do prazer que a mesma proporcionou. Nos países ocidentais esta prática é vista como falta de educação. A forma como todo este processo se desenrola é bastante arbitrária. A individualidade pode ser vista como uma qualidade numa cultura e como um verdadeiro pecado noutra. A sombra de uma cultura pode ser a delícia social de outra. É ainda admirável como existem características muito positivas na sombra. Normalmente encontramos na sombra os aspectos mais negativos: a inveja, mentira, desonestidade e infidelidade. Mas aspectos bastante positivos também fazem parte da nossa sombra! Algum do mais puro ouro da nossa personalidade é escondido na sombra porque não encontra um lugar neste processo sócio‐ cultural em que as crianças são educadas. Curiosamente, as pessoas resistem mais depressa os seus aspectos de Ouro, escondidos na sombra, do que aqueles que são manifestamente negativos (apesar de também estes poderem ser úteis ao indivíduo). Abraçar o que de mais negro há em nós é relativamente fácil, mas aceitar o Ouro escondido na sombra é aterrador. Causa mais medo ao ego saber que possuímos um carácter nobre do que saber que somos idiotas, por exemplo. E é claro que possuímos ambos. Mas não descobrimos ambos os aspectos ao mesmo tempo. Isto porque o Ouro está relacionado com o nosso dom, e isto pode ser difícil de aceitar em determinadas alturas da nossa vida. Ignorar o nosso Ouro pode causar‐nos tantos danos como ignorar o lado negro da sombra. Muitas pessoas têm que passar por um acidente violento, ou uma doença grave, para descobrir o seu Ouro Interior. Na verdade é muitas vezes necessário passar por estas experiências intensas para podermos ver a parte de nós que se encontra adormecida ou sem uso. Ainda nos encontramos a funcionar sob o arquétipo do curador ferido, o qual aprende a curar‐se e encontra o Ouro durante o processo. Independentemente da cultura em que crescemos e da forma como fomos educados, iremos chegar a adultos com um ego e uma sombra bem delineados. Um sistema de ‘certos’ e ‘errados’. Um mundo de contradições em que não é permitido ser‐se bonito e feio, meigo e ríspido, inteligente e burro, altruísta e egoísta. © Emídio Carvalho, 2009
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O verdadeiro processo de reunir o ser total e completo original é, em si, religioso. A palavra religião tem a sua origem na palavra latina “religare” – voltar a juntar, curar as feridas da separação. Foi de extrema importância envolvermo‐nos no processo cultural que deu origem à nossa sombra, caso não o tivéssemos feito seríamos pouco mais que animais pensadores. Mas é agora ainda mais importante conseguir o feito espiritual de voltar a ser o humano completo. Fomos afastados do Jardim do Éden, e agora temos que regressar ao estado completo que apenas esse jardim permite. Mas ao ser expulsos do Jardim do Éden, e para sobreviver, tivemos a necessidade de criar uma sombra, onde escondemos uma parte importante do nosso dom. De uma maneira generalizada, os primeiros quarenta anos da nossa vida são dedicados ao processo cultural – aprender o necessário para obtenção de um salário, criar uma família, disciplinarmo‐nos de mil e uma maneiras. A segunda metade da vida deveria ser dedicada a restabelecer o ser completo original. Podemos queixar‐nos que este processo é apenas uma viagem de ida e volta, desnecessária, com a diferença que o ser completo original se encontrava inconsciente e o ser humano final será consciente. Esta evolução, por mais que lhe pareça uma brincadeira, é merecedora de todo o seu respeito e honra. Vale a pena a dor e o sofrimento que custa chegar à consciência de quem sempre foi. O único desafio é não se perder a meio do percurso e não conseguir encontrar o ser completo no final. Ser‐lhe‐á útil pensar na personalidade como um baloiço, com uma criança em cada lado oposto. Ambas as crianças são uma parte de si, e só quando as duas estão presentes é você é verdadeiramente completo. O nosso processo cultural consiste em colocar no lado direito do baloiço todas as características divinas aceites pela sociedade em que estamos inseridos, e aquelas que não são aceites do lado esquerdo. Há uma lei universal inexorável que afirma que nenhuma característica pode ser abandonada, apenas deslocada para um ponto específico do baloiço. Uma pessoa que passa pelo processo cultural com sucesso irá mostrar à luz do dia as características desejáveis pelo sociedade (o lado direito, correcto), e todas as que são proibidas irá esconder na escuridão da noite (o lado esquerdo, incorrecto). Mas todas as nossas características têm que aparecer na altura de fazer um inventário. Nada pode ficar de fora. Há ainda uma outra lei, terrível, e que poucas pessoas conhecem e a nossa cultura opta por ignorar: o baloiço tem que estar em equilíbrio para evitar a quebra. Se passamos a maior parte do nosso tempo a olhar apenas para o lado direito do baloiço, a mostrar aos outros apenas aquilo que queremos que vejam, temos que dar um apoio ás características que se encontram do lado esquerdo. O oposto também é verdade. Se esta lei for quebrada, o baloiço perde o equilíbrio e parte‐se ao nível do fulcro. O baloiço partido significa apenas a morte do indivíduo. Para evitar este final, o subconsciente irá procurar maneiras de restabelecer o equilíbrio. É assim que as pessoas mudam como do dia para a noite. O alcoólico que de repente se torna fanático na sua temperança, ou o politico de extrema direita que é apanhado com uma prostituta. Em ambos os casos passou‐se de um extremo do baloiço para o outro.
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Mas o baloiço pode efectivamente quebrar ao nível do fulcro se ficar sobrecarregado de um lado apenas. E aqui a pessoa só pode morrer. Ou tornar‐se psicótica. A nossa mente, tanto consciente como subconsciente, mantém um equilíbrio tão perfeito como o equilíbrio orgânico no nosso corpo físico. Da mesma maneira que mantemos a mesma temperatura, o mesmo equilíbrio ácido‐alcalino, níveis de açúcar no sangue e muitas outras polaridades. Sempre que a nossa mão direita pega no fruto da criatividade, pode ter a certeza que a mão esquerda irá pegar no fruto da destruição. É só uma questão de tempo até que aquilo que rejeitamos se manifeste. Mas é claro que nós, como pessoas boas que somos, iremos resistir a esta ideia. Adoraríamos ter o amor criativo sem o ódio destrutivo – só que isto jamais será possível. Hoje em dia estamos a criar esta ideia ridícula de que a espiritualidade significa ser‐se muito bom e amar tudo e todos, vivendo única e simplesmente do lado direito do baloiço. A imagem perfeita do santo. Só que uma pessoa assim torna‐ se altamente volátil e instável. No momento menos esperado irá cair no extremo oposto e destruir a sua vida e a daqueles que o rodeiam. Tem que haver um equilíbrio entre o dia e a noite. O fulcro do baloiço é o ponto sagrado. Temos mesmo que nos relacionar com o mundo exterior através dos aspectos do lado direito do baloiço, mas isto só será possível se mantivermos o lado esquerdo também em equilíbrio. Temos que esconder o nosso lado negro da sociedade, ou tornar‐nos‐emos um perigo. Mas não podemos nunca escondê‐lo de nós mesmos! Os monges beneditinos são um bom exemplo do equilíbrio entre o lado direito e esquerdo do baloiço. Passavam horas seguidas a orar e honrar a Deus. Mas dedicavam algum do seu tempo a produzir um rico licor feito à base de ervas aromáticas. E bebiam! Por que acha que a nossa doçaria nacional nasceu nos conventos? Dia e noite, doce e amargo, tristeza e alegria. Ambos presentes e vivenciados de maneiras diferentes. Nunca conseguirá libertar‐se da sua sombra. Lembre‐se que para criar terá que destruir. Olhe para a natureza para observar precisamente este equilíbrio – depois do terramoto surge uma paisagem diferente. O poder destrutivo da criação! Você não conseguirá fazer luz sem a ajuda da escuridão. Na Índia equilibra‐se Braham, o deus da criação, com Shiva, deusa da destruição. Vishnu senta‐se ao meio, para manter o equilíbrio entre os outros dois. Ninguém consegue escapar ao lado negro da vida, mas qualquer um de nós pode dedicar‐ se ao lado negro e manifestá‐lo sem causar danos a nós próprios nem aos outros que nos rodeiam. Mas para tal temos que ser inteligentes e deixar a razão literal de parte. A razão literal tem sido um dos nossos maiores problemas. Para compreender melhor a razão literal, vou contar‐lhe uma pequena história. Na antiga China um exército combatia contra um inimigo poderoso. O exército estava praticamente derrotado quando os generais se reuniram para decidir se
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deviam continuar a lutar ou se deviam fugir. Seis generais votaram a favor da fuga e quatro votaram a favor de continuar a lutar. O exército ganhou a batalha! No final da reunião os generais decidiram lutar porque o quatro é muito mais interessante e belo que o seis. A nossa razão literal vai querer obliterar esta história. Irá considerá‐la estúpida e sem sentido. Sempre que pensar que algo é ridículo, estúpido ou insano, diga a si mesmo que está “literalizar a razão”. Não vá por aí. O equilíbrio entre a luz e a escuridão é possível – e não muito difícil. Toda a natureza vive na polaridade – dia e noite, criação e destruição, para cima e para baixo, macho e fêmea. É assim natural encontrarmos as mesmas leis a reger a nossa mente. É como se dentro de nós existisse um irmão gémeo, com todas as características que rejeitamos. Quer o aceitemos ou não, este irmão gémeo irá seguir‐nos para onde quer que seja – como uma imagem projectada num espelho. Muitas pessoas presumem controlar completamente quem são. Isto é uma atitude que só pode conduzir a uma série de problemas complexos. Reconhecer e abraçar a nossa sombra é o mesmo que admitir que há muitos aspectos de quem somos que nem nós nem o mundo à nossa volta conhecemos. Quanto mais educados e conservadores formos, maior a sombra que transportamos ás costas. O ego e a sombra têm a mesma origem e a mesma força, até um começar a ser reprimido – tornando‐se mais forte. Tornar‐nos luz significa criar sombra, visto que um não pode existir sem o outro. Conseguir abraçar a nossa sombra é, assim, atingir um lugar sagrado – o nosso centro – o qual só está disponível desta forma. Se falharmos iremos falhar nas áreas das nossas vidas que nos são mais queridas, sem nunca descobrir o nosso dom. Na Índia encontramos uma bela descrição deste processo: Sat, Chit e Ananda. Sat é a parte da nossa vida prática mundana que não reconhecemos (o lado esquerdo do baloiço). Chit são as capacidades idealizadas (o que gostaríamos que os outros vissem em nós). E Ananda é o êxtase, a felicidade e iluminação – o fulcro do baloiço. Se vivermos a vida unicamente a partir do lado direito do baloiço, iremos, consciente ou inconscientemente, equilibrar o humano em nós com um acto do lado esquerdo. Nem sequer temos que virar a nossa cara para o lado para vermos que criámos algo a partir da nossa sombra. É por este motivo que muitos artistas são pessoas difíceis na sua vida privada. A história está repleta de situações criadas pelas mentes mais geniais e excêntricas. Uma criatividade que mal se consegue expressar irá dar origem a uma sombra muito pequena. Enquanto que uma criatividade talentosa, genial, irá criar uma sombra gigantesca. O compositor Schumann enlouqueceu. O mundo também conhece o lado negro de Picasso. E todos conhecemos histórias de artistas, actores e cantores, que nos nossos dias fazem as coisas mais inacreditáveis.
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Enquanto que aqueles que mostram maior talento parecem ser também os que sofrem com mais intensidade, todos nós temos que estar conscientes da forma como utilizamos a nossa criatividade – e da sombra negra que a acompanha. Fazer um trabalho artístico, dizer umas palavras de amor, ajudar outros, tornar a casa mais bonita, proteger a família – cada um destes actos irá ter um efeito no lado oposto do baloiço e poderá conduzir‐nos ao sofrimento desnecessário. Nós não podemos recusar a nossa criatividade ou deixar de nos expressar de maneiras criativas. Mas podemos estar conscientes desta dinâmica da sombra e fazer algo simples, mas simbólico, para compensar a sombra. Se lhe acontecer algo de muito bom durante o dia, à noite encarregue‐se de ser o responsável por despejar o lixo, por exemplo. Desta forma estará, de uma maneira simbólica, a prestar homenagem à sombra. Sempre que passa por um momento de sucesso crie um insucesso simbólico. Muitas mulheres têm que carregar o fardo pesado da sombra de um homem extremamente criativo. O mesmo acontece a muitos homens, que têm que carregar o mesmo fardo da sombra de uma mulher de sucesso. Mas pior estão as crianças, que muitas vezes têm que carregar os fardos pesados das sombras de ambos progenitores. Nós vivemos agora no século mais criativo na história da humanidade, com uma tecnologia capaz de muitos milagres, uma enorme facilidade de viajar e uma nova liberdade que nos permite nunca estar só. Um verdadeiro século de liberdade! Claro que a sombra deste século só podia ser a solidão e o tédio – os opostos exactos de uma sociedade eficiente como a que criámos. A um nível global, aumentámos os conflitos, as guerras e os problemas políticos até igualarem a visão utópica de uma sociedade justa e sã. A criatividade exuberante que vemos só pode ser mantida se reconhecermos a sombra que a acompanha e expressar essa mesma sombra de uma maneira inteligente. Como podemos nós criar algo belo ou bom sem causar, na mesma proporção, danos irreparáveis? É possível vivermos os nossos ideais, fazer o nosso melhor, ser educados, conseguir um bom trabalho e viver uma vida decente se conseguirmos, em formato de ritual, reconhecer os aspectos escuros presentes. O nosso subconsciente não é capaz de distinguir entre um facto real e outro simbólico. Isto significa que podemos experienciar a beleza e a bondade ‐ e expressar o equivalente sombrio de uma maneira simbólica. Um exemplo. Eu posso trabalhar a minha sombra depois de ter que ser simpático para com pessoas antipáticas e, assim, não atirar com a minha sombra para cima de um amigo. Eu tenho que honrar a minha sombra, uma vez que é uma parte integral de quem eu sou. Não tenho que a empurrar (projectar) para cima de outra pessoa. Posso dedicar‐me a uma cerimónia de cinco minutos em reconhecimento da minha sombra depois de me afastar das pessoas antipáticas e, assim, manter o meu ambiente livre dos perigos da sombra. Há alturas em que a nossa sombra pode aparecer no local de trabalho. Eu posso escrever os melhores artigos e tentar dar o meu melhor na preparação de um seminário, através de muito trabalho e disciplina. Mas isto irá aumentar de
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imediato a minha sombra. Eu tento mantê‐la longe de vista e, é claro, no momento menos esperado ela salta cá para fora! Um assistente que se esquece do material que quero entregar aos participantes, trocar o local onde o seminário irá ter lugar ou até preparar‐me para uma actividade e depois esquecê‐la completamente durante o seminário! Por este motivo tenho que prestar homenagem à sombra antes de qualquer apresentação pública. Significa isto que tenho que ser tão destrutivo como sou criativo? Tão escuro quanto luminoso? Sim, claro. Mas tenho algum controle sobre a maneira como pago o preço da sombra. Posso fazer uma cerimónia, um ritual, logo depois de um trabalho criativo para restabelecer o equilíbrio. Posso escrever uma história tenebrosa, medonha, ou criar uma dança da destruição. Ambos irão prestar homenagem à minha sombra. Estes actos simbólicos servem exactamente para isso: equilibrar a minha vida, o consciente e o subconsciente, a luz e a escuridão, sem causar danos a mim mesmo ou a outros. Onde quer que se encontre, tem sempre que honrar a sua sombra, a parte da sua vida que é rejeitada. Tem que redimir os aspectos de si que considera inapropriados ou errados. Recusar‐se a ver o lado escuro da sua vida é o mesmo que acumular energia na sua sombra. Mais cedo ou mais tarde pode surgir como uma depressão, cinismo, uma doença psicossomática ou um acidente sem motivos aparentes. No presente estamos a lidar com a acumulação de toda uma sociedade que adora o seu lado de luz e recusa‐se a abraçar a escuridão. Isto tem como resultado a guerra, caos económico, manifestações sucessivas e intolerância racial. Veja a primeira página de qualquer jornal para ficar a saber qual é a sombra colectiva da nossa sociedade. Temos que ser completos, quer gostemos da ideia ou a repudiemos. A nossa única escolha é entre abraçar ou não a sombra de uma maneira consciente e com dignidade, ou atravessar um período de neuroses e mal‐estar generalizado. Qualquer forma de reparar este nosso mundo tem que começar com aqueles que têm a coragem, e o discernimento, de abraçar a sua própria sombra. Nada fora de nós, no mundo exterior, nos poderá ajudar se o mecanismo interior de projecção tiver o controle, as rédeas, da nossa vida. A tendência de vermos a nossa sombra “fora de nós”, no nosso vizinho ou no amigo, numa cultura ou nacionalidade diferente, é o aspecto mais perigoso da nossa mente. Não são os políticos e líderes “monstruosos” deste mundo os responsáveis pelo caos, mas sim a sombra colectiva para a qual cada um de nós contribui diariamente. A Segunda Guerra Mundial mostrou‐nos inúmeros exemplos do que significa projectar a sombra colectivamente. Uma das nações mais civilizadas do planeta, a Alemanha, caiu na asneira de projectar a sua sombra sobre os judeus. Se apenas uma pequena percentagem da população abraçar a sua sombra individual, é‐nos prometido que o mundo será salvo. Temos neste momento várias gerações a viver num mundo em que a sombra individual nunca é tocada. Podemos prever que dentro de uns cinco a dez anos © Emídio Carvalho, 2009
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essas sombras se tornem explosivas e mostrem a sua escuridão sobre sociedades inteiras. Aparentemente, a necessidade colectiva de expressar a sombra ultrapassa a determinação individual para a conter. E assim temos que depois de uma época de enorme criatividade será seguida por outra de enorme destruição. É necessário uma sociedade bastante avançada para manter uma guerra durante muito tempo, como foram ambas as Guerras Mundiais. Sociedades primitivas ficariam cansadas de guerrear ao fim de poucas semanas. Isto porque as sociedades primitivas nunca acumulariam uma sombra durante muito tempo, nunca se afastando muito dos seus aspectos mais escuros. É necessário uma sociedade evoluída, castrada e criativa para conseguir manter uma acção de guerra durante anos. Quanto mais avançada a civilização maior o seu poder de destruição. O que acontece à sombra, ao lado esquerdo do baloiço, se não estivermos conscientes dela e não a expressarmos de uma forma saudável? A menos que trabalhemos este aspecto de nós de uma maneira consciente, a sobra será sempre projectada. Isto é, atiramos com ela muito suavemente sobre os outros e, assim, estaremos livres de nos sentir culpados ou responsáveis. A sociedade medieval era governada por um sistema patriarcal, famosa pela tendência a cair sobre o lado esquerdo do baloiço: fortes que protegiam cidades, armaduras pesadas para a guerra, posse pela força, negação de qualquer aspecto feminino, obediência cega à monarquia, e cidades‐estado em guerra constante umas contra outras. A própria Igreja fazia parte desta politica da sombra. Apenas os indivíduos a quem chamamos de santos (nem todos são reconhecidos), os mosteiros Beneditinos, e algumas sociedades esotéricas, evitavam o jogo da projecção da sombra. Hoje em dia temos verdadeiros negócios multimilionários dedicados a conter a nossa sombra. A indústria do cinema, da moda e literatura oferecem‐nos formas acessíveis e fáceis onde investir a nossa sombra. Os jornais oferecem‐nos diariamente um pacote de desastres, crimes e horrores que servem para alimentar a nossa natureza sombria no exterior, quando na verdade deveria ser incorporada em cada um de nós como uma parte da nossa personalidade. Somos deixados como sendo menos do que completos quando investimos a nossa escuridão em algo fora de nós. A projecção é sempre mais fácil que a assimilação. É sempre uma página suja da História aquela em que as pessoas obrigam outras a carregar a sua própria sombra. Os homens atiram com a sua sombra para cima das mulheres, os brancos sobre os negros, católicos sobre os protestantes, capitalistas sobre os comunistas, muçulmanos sobre hindus. Bairros irão ter um bode expiatório numa das famílias, e esta família terá que carregar a sombra de todas essas pessoas. Em verdade cada grupo, inconscientemente, designa um dos seus membros como a ovelha negra e obriga‐o a carregar a sombra para benefício de toda a comunidade. Poderemos argumentar que as sociedades medievais conseguiam aguentar com a sua sombra projectando‐a no inimigo. Mas o Homem Moderno não pode
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continuar a fazer este jogo. A evolução da consciência exige que cada um de nós integre a sua sombra se quisermos avançar para um Mundo Novo. Por vezes recorremos a um animal de estimação para carregar a nossa sombra. O meu pai, por exemplo, é um homem atencioso, calmo, extremamente pacífico a maior parte do tempo. Ao mesmo tempo, bate nos cães, atira‐lhes com pedras e bate‐lhes. Ainda não conseguiu ver que os seus cães são o escape da sua sombra. As ‘asneiras’ dos animais são apenas a nossa projecção. Provavelmente a maior, e mais perigosa, asneira é atingida quando os pais projectam a sua sombra nos filhos. Isto é tão vulgar que muitas pessoas têm um trabalho árduo para se verem livres das sombras dos pais antes de poderem abraçar as suas próprias sombras. Se um pai atira com a sua sombra no filho de cinco anos, isto irá criar uma ruptura a personalidade da criança e dá início à guerra ego‐sombra numa idade muito precoce. Quando esta criança se tornar num adulto irá ter uma enorme sombra sobre si (muito mais do que a sombra fruto da cultura, que todos carregamos), e terá ainda a tendência a colocar parte dessa sombra sobre os seus filhos. Se deseja dar aos seus filhos a melhor das oportunidades na vida, o melhor dos presentes, retire a sua sombra deles. E, ao fazê‐lo, irá crescer tremendamente ao resgatar a sua sombra. O meu pai, enquanto eu vivi na mesma casa, era um homem muito passivo, deixando que a minha mãe tomasse todas as decisões. Como resultado, sinto que tenho duas vidas a solucionar – a minha e vida que ficou por viver do meu pai. Isto é um fardo demasiado pesado, mas pode ter uma dimensão criativa se eu aceitar o fardo conscientemente. Mas estas coisas só são possíveis quando temos a maturidade suficiente para saber o que estamos a fazer. Raramente conseguimos esta sabedoria antes dos quarenta ou cinquenta anos de idade. É quase impossível imaginar o peso do sofrimento que é passado de geração em geração. Não poderíamos dar aos nossos filhos, ás gerações mais jovens, melhor presente que assumirmos a nossa sombra. Já me foi perguntado várias vezes se é possível impedir a projecção. Sermos capazes de rejeitar a projecção da sombra de outra pessoa. Isto só é possível se tivermos a nossa sombra consciente. Normalmente, quando está a ser a projecção de outra pessoa, a sua própria sombra vem cá para fora e começa um ciclo de abusos inevitáveis. Quando a sua sombra é como um depósito de combustível, afastem todos os fósforos! Irá explodir mais cedo ou mais tarde. Para recusar ser a projecção da sombra de outro não pode ripostar. Em vez disso, simplesmente deixe que o touro parta a loiça toda, sem um único pestanejar. Muitos relacionamentos funcionam assim: disfuncionalmente. Projectando as respectivas sombras no outro. Quando alguém quer projectar a sua sombra sobre si, irá sentir uma necessidade de responder ao ataque. Em vez disso, mantenha‐se calmo, não se torne frio e distante, apenas calmo. Eventualmente a outra pessoa irá aperceber‐se do jogo. Nesse momento só pode acontecer uma de três coisas: atirar com as suas projecções para cima de outra pessoa, explodir num ataque de raiva ou ver o que facto está a fazer e assimilar a sua sombra.
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Ser‐lhe‐á fácil recusar a projecção de outro e terminar com um ciclo eterno de ódios se a sua própria sombra estiver sob controle. Encontrar‐se na presença da sombra de outro e não reagir exige uma capacidade humana de génio. Ninguém tem o direito de atirar com a sua sombra sobre você, e você tem o direito de se proteger. Todavia não é fácil conseguir escapar a este jogo. Em qualquer relacionamento pergunte‐se se está a reagir emocionalmente. Se a resposta for afirmativa, pode ter a certeza que há sombras a serem projectadas. Atirar com a nossa sombra para cima de outro é um abuso e causa muitos danos – não só sobre aqueles em quem projectamos, mas também sobre nós. Ao projectarmos a nossa sombra estamos a perder uma parte essencial de quem somos. Temos uma obrigação de nos unirmos ao nosso lado mais negado para que possamos crescer enquanto seres humanos e, em simultâneo, não temos qualquer direito de atirar estes aspectos rejeitados para cima dos outros. O problema é que a maioria de nós vive dentro de uma teia complexa de troca de sombras, a qual rouba uma parte significativa de cada uma das pessoas envolvidas. Por outro lado a sombra, a nossa sombra, contém uma quantidade enorme de energia e vitalidade. Um individuo com bastante cultura possui também uma sombra densa. Se ele estiver consciente desta sombra tornar‐se‐á uma pessoa com um poder pessoal bastante acentuado. Por vezes podemos ser bastante úteis a outros ao carregar, conscientemente, a sua sombra. Fazêmo‐lo quando aceitamos as acusações do outro, sabendo que não são verdadeiras, sem ripostar. É uma forma de esperar, de dar tempo, para que a outra pessoa possa tomar consciência da sua própria sombra. Mas isto só é possível se a nossa sombra estiver sob o domínio consciente, quando a expressamos de maneiras saudáveis. Só poderemos amar os nossos inimigos depois de sermos capazes de amar a nossa própria sobra, o nosso inimigo interior. É ele o responsável por grande parte da nossa infelicidade e dos nossos problemas. Quando amamos o inimigo interior, descobrimos um mundo de alegria e poder. Para abraçar a nossa sombra podemos pegar nos arquétipos de Céu e Inferno. O Céu representa o consciente e o ego, enquanto o Inferno representa o subconsciente e a sombra. Ao abraçar a sombra estamos a amar na totalidade a separação existente entre Céu e Inferno. O diabo (a nossa sombra) foi inicialmente uma parte do Céu, e terá que eventualmente regressar a casa. Significa isto que cada um de nós tem que abraçar a sua sombra, o seu diabo interior, por forma a poder experienciar o Céu que há em si. Se serve de algum apoio, atrever‐me‐ia a dizer que Deus ama mais a nossa sombra do que o nosso ego, uma vez que a sombra é autentica, enquanto que o ego é uma falsa construção da personalidade. A nossa sombra pode ser‐nos útil em muitas das tarefas do dia‐a‐dia, se apenas a soubermos escutar. Um exemplo muito específico: antes de dar uma palestra, ou um seminário, pego numa toalha e encharco‐a até ficar com mais do triplo do peso original. Depois agarro‐a com bastante garra e atiro‐a com toda a minha força contra uma parede, ao mesmo tempo que deixo sair um grito. Assim, © Emídio Carvalho, 2009
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expresso a minha sombra egoísta e enraivecida. Depois disto posso ensinar e dar o meu melhor. Depois da destruição só podemos ter acesso à criação. Destruição e criatividade são apenas dois pólos do mesmo aspecto. Ao experienciar um dos pólos abrimos caminho para que o outro oposto se manifeste. Já mencionei antes que há maneiras de expressar a nossa sombra de maneiras saudáveis, através de cerimónias e rituais. Esta é uma forma criativa de abraçar a totalidade que somos. Para tal precisa, antes que tudo, de possuir os elementos da sua sombra numa mão e do seu ego noutra. Uma tarefa nada fácil. Como é que pode saber qual a parte da sua sombra se ela se esconde nos cantos mais escuros do subconsciente? Num ritual simples pode expressar um aspecto da sua natureza não vivenciada. Terá que agarrar nesse aspecto e satisfazê‐lo, sem causar danos a si ou a outros. Pode criar uma estátua em barro, escrever uma história, pintar um quadro, ou criar uma dança! Pode ainda queimar algo. Qualquer forma de manifestar um aspecto escuro da personalidade sem causar danos. Lembre‐se sempre que uma cerimónia, um ritual, é autêntico e real para o subconsciente se as emoções equivalentes ao acto estiverem presentes. A nossa mente não consegue distinguir entre um acto interior e outro exterior. As qualidades da nossa sombra podem ser experienciadas, do ponto de vista do Eu, tanto no exterior como no interior. Qualquer sociedade culturalmente avançada está carregada de cerimoniais. As sociedades menos avançadas expressam a sombra de maneira inconsciente: através da guerra, violência, doenças psicossomáticas e acidentes imprevistos. Deixo aqui alguns aspectos opostos. Irá descobrir que possui, conscientemente, ou o aspecto da direita ou da esquerda. Aquele que acredita não possuir deverá expressar num ritual pois, por mais que lhe custe, ele está presente na sua sombra. E não adianta muito fazer este processo do ponto de vista intelectual. Se não sentir, no seu coração, o que está a fazer, de cada vez que estiver com outra pessoa irá projectar. • • • • • • • • • • • • • •
Ganhar; Comer; Actividade; Posse; Acção; Criatividade; Sexo; Decisão; Sucesso; Liberdade; Escolha; Sobriedade; Mais é melhor; Justiça.
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Perder; Jejuar; Passividade; Pobreza; Descanso; Destruição; Celibato; Indecisão; Insucesso; Obediência; Obrigação; Êxtase; Mais é pior; Injustiça.
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Imagine que tem um dia de enorme sucesso. Tudo lhe correu bem! Pode, uma vez em casa, fazer um ritual do insucesso. Por exemplo, despejar o lixo pode ser transformado neste ritual. Ou a sua criatividade foi invulgarmente alta durante um projecto. Pode ritualizar a destruição através de uma escultura em plasticina, a qual é destruída no final. Mantenha sempre presente na sua mente que a virtude só é possível na presença do seu oposto. A luz não teria qualquer significado sem a escuridão, o masculino sem o feminino, o cuidado sem o abandono. A verdade chega‐nos sempre aos pares. Este é o grande mistério da dualidade, do paradoxo. O maior, e mais difícil, paradoxo dos nossos tempos é o amor e o ódio. A nossa sociedade é fracturada em mil pedaços por esta dicotomia e é fácil encontrar mais erros do que sucessos na tentativa de reconciliar estes dois pólos opostos. Contudo, é impossível viver humanamente sem a presença de ambos. O ódio sem o amor torna‐se brutal. E o amor sem ódio torna‐se insípido e fraco. E no entanto, quando duas pessoas se aproximam uma da outra, mais cedo ou mais tarde dá‐se uma explosão. A maioria das discussões entre casais centra‐se à volta da colisão entre o amor e o ódio. Conseguir experienciar ambos é um atarefa árdua e difícil para a maioria das pessoas. Mas a menos que o faça irá escorregar sempre nesta ratoeira. Um verdadeiro paradoxo é capaz de uma devoção e união únicas. Manifeste o ódio de uma maneira saudável, através, por exemplo, de uma dança. Ou escreva uma carta de ódio, a qual depois queima... Com ódio! O fundamentalismo é sempre sinal de que se abraçou um dos opostos de algo, enfraquecendo o outro. A maior parte da energia do fanático (fundamentalista) é gasta num esforço louco para manter metade da verdade longe de vista, enquanto a outra metade governa. Este tipo de comportamento está intimamente relacionado com o acto de “ter razão”. Esteja preparado para deixar partir a necessidade de ter razão, a qual é sempre um acto do ego. Mas afinal o quê que a sombra tem haver com o paradoxo? Tudo. Não é possível existir um paradoxo – aquele lugar sublime de reconciliação – enquanto não abraçarmos a nossa sombra e a elevarmos até ao ponto da dignidade. Abraçar a nossa sombra é o mesmo que preparar o terreno para a maior experiência espiritual permitida ao ser humano.
© Emídio Carvalho, 2009
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