Resgatar O Eu Deserdado – Outra Face Da Sombra

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  Resgatar o Eu Deserdado – A Outra Face Da Sombra    Muitas  pessoas  não  encontram  o  seu  dom  divino  porque  evitam  procurar  nos  lugares  mais  fora  do  vulgar.  Um  desses  lugares  é  a  nossa  sombra,  o  lugar  onde  despejamos todas as características da nossa personalidade que não gostamos e  deserdamos. Estas partes deserdadas são incrivelmente preciosas e não podem  nunca  ser  postas  de  parte.  Aceitar  e  honrar  a  nossa  sombra  é  uma  arte  profundamente  espiritual.  Conduz‐nos  de  volta  à  totalidade  que  sempre  fomos,  tornando‐se assim na experiência mais sagrada da nossa vida.  Existe em cada um de nós uma persona – a soma das partes que gostamos que os  outros vejam em nós. É como a nossa roupa psicológica e é a mediadora entre o  nosso eu verdadeiro e o ambiente em que nos encontramos, da mesma maneira  que a roupa que trazemos no corpo representa uma imagem de quem somos. O  ego  é  quem  nós  somos  e  conhecemos  conscientemente.  A  sombra  é  a  parte  de  nós que não conseguimos ver nem conhecer conscientemente.  Todos nascemos completos e, com algum cuidado, todos morreremos completos.  Algures  nos  primeiros  anos  de  vida  comemos  o  fruto  proibido,  separamos  as  coisas  em  boas  e  más,  e  damos  início  ao  processo  de  construção  da  sombra.  Neste processo cultural separamos todos os aspectos divinos que possuímos em  aceitáveis e inaceitáveis. E escondemos os inaceitáveis.  Este  processo  é  maravilhoso  e  necessário,  caso  contrario  não  teríamos  uma  civilização  educada  e  respeitadora.  Mas  as  características  que  rejeitamos  e  não  aceitamos em nós não desaparecem: limitam‐se a amontoar‐se nos cantos mais  escuros  da  nossa  personalidade.  Quando  já  não  suportarem  serem  ignorados,  ganham uma vida própria – a vida da sombra.   A sombra é composta de todos os aspectos que não foram abraçados de maneira  adequada  pela  consciência.  É  o  quarto  do  nosso  ser  que  repudiamos.  Com  frequência  possui  um  potencial  energético  tão  forte  quanto  o  do  nosso  ego.  Se  por  acaso  acumula  mais  energia  que  o  ego,  explode  como  uma  raiva  descontrolada ou uma indiscrição que não conseguimos evitar. Ou então caímos  numa  profunda  depressão  ou  sofremos  um  acidente  sem  qualquer  motivo  aparente.  Uma  sombra  com  autonomia  própria  é  um  verdadeiro  monstro  a  brincar com a nossa personalidade consciente.  O  processo  educacional  ocidental  consiste  em  eliminar  todas  as  características  que possam ser perigosas ao todo que é a sociedade em que estamos inseridos.  Apesar  de  nascermos  completos,  a  cultura  onde  estamos  inseridos  exige  que  vivamos apenas uma parte da nossa natureza e rejeitemos a outra parte da nossa  herança divina.  A cultura rouba‐nos do humano verdadeiro em nós, mas ao mesmo tempo, dá‐ nos um poder mais complexo e sofisticado. Podemos argumentar que as crianças  não  deveriam  ser  sujeitas  a  esta  divisão  numa  fase  inicial  do  seu  crescimento,  caso  contrario  iremos  roubar‐lhes  a  infância.  Deveríamos  aguardar  até  que  atingissem  uma  idade  em  que  fosse  relativamente  fácil  compreender  este 

© Emídio Carvalho, 2009 



  processo, em vez de as expor aos perigos de aniquilarem uma parte importante  de  quem  são.  E  é  preciso  saber  quando  é  que  as  crianças  estão  prontas  a  adaptarem‐se a uma vida em sociedade. Uma tarefa nada fácil.  É interessante ver como em diversos pontos do planeta as sociedades humanas  atribuem  diferentes  características  ao  ego  e  à  sombra.  Num  pais  conduz‐se  no  lado  direito  da  estrada,  noutro  é  na  esquerda.  No  Ocidente  um  homem  pode  passear  de  mãos  dadas  com  uma  mulher,  mas  é  mal  visto  se  o  fizer  com  outro  homem.  Na  Índia  é  o  oposto:  dois  homens  a  caminhar  de  mãos  dadas  é  aceite  pela sociedade, mas um homem e uma mulher é um comportamento muito mal  visto.  No  Ocidente  mostramos  respeito  pela  religião  ao  entrar  nos  templos  calçados. No Oriente é precisamente o oposto: entra‐se nos templos e mostra‐se  respeito ao retirarmos os sapatos. No Médio Oriente é considerado uma cortesia  arrotar  no  final  da  refeição,  como  prova  do  prazer  que  a  mesma  proporcionou.  Nos países ocidentais esta prática é vista como falta de educação.  A  forma  como  todo  este  processo  se  desenrola  é  bastante  arbitrária.  A  individualidade  pode  ser  vista  como  uma  qualidade  numa  cultura  e  como  um  verdadeiro pecado noutra. A sombra de uma cultura pode ser a delícia social de  outra.   É  ainda  admirável  como  existem  características  muito  positivas  na  sombra.  Normalmente  encontramos  na  sombra  os  aspectos  mais  negativos:  a  inveja,  mentira, desonestidade e infidelidade. Mas aspectos bastante positivos também  fazem parte da nossa sombra! Algum do mais puro ouro da nossa personalidade  é  escondido  na  sombra  porque  não  encontra  um  lugar  neste  processo  sócio‐ cultural em que as crianças são educadas.  Curiosamente,  as  pessoas  resistem  mais  depressa  os  seus  aspectos  de  Ouro,  escondidos  na  sombra,  do  que  aqueles  que  são  manifestamente  negativos  (apesar de também estes poderem ser úteis ao indivíduo). Abraçar o que de mais  negro há em nós é relativamente fácil, mas aceitar o Ouro escondido na sombra é  aterrador. Causa mais medo ao ego saber que possuímos um carácter nobre do  que saber que somos idiotas, por exemplo.  E é claro que possuímos ambos. Mas  não descobrimos ambos os aspectos ao mesmo tempo. Isto porque o Ouro está  relacionado com o nosso dom, e isto pode ser difícil de aceitar em determinadas  alturas da nossa vida.  Ignorar o nosso Ouro pode causar‐nos tantos danos como ignorar o lado negro  da  sombra.  Muitas  pessoas  têm  que  passar  por  um  acidente  violento,  ou  uma  doença  grave,  para  descobrir  o  seu  Ouro  Interior.  Na  verdade  é  muitas  vezes  necessário passar por estas experiências intensas para podermos ver a parte de  nós que se encontra adormecida ou sem uso. Ainda nos encontramos a funcionar  sob o arquétipo do curador ferido, o qual aprende a curar‐se e encontra o Ouro  durante o processo.  Independentemente  da  cultura  em  que  crescemos  e  da  forma  como  fomos  educados, iremos chegar a adultos com um ego e uma sombra bem delineados.  Um  sistema  de  ‘certos’  e  ‘errados’.  Um  mundo  de  contradições  em  que  não  é  permitido  ser‐se  bonito  e  feio,  meigo  e  ríspido,  inteligente  e  burro,  altruísta  e  egoísta.   © Emídio Carvalho, 2009 



  O verdadeiro processo de reunir o ser total e completo original é, em si, religioso.  A palavra religião tem a sua origem na palavra latina “religare” – voltar a juntar,  curar  as  feridas  da  separação.  Foi  de  extrema  importância  envolvermo‐nos  no  processo  cultural  que  deu  origem  à  nossa  sombra,  caso  não  o  tivéssemos  feito  seríamos  pouco  mais  que  animais  pensadores.  Mas  é  agora  ainda  mais  importante  conseguir  o  feito  espiritual  de  voltar  a  ser  o  humano  completo.  Fomos  afastados  do  Jardim  do  Éden,  e  agora  temos  que  regressar  ao  estado  completo que apenas esse jardim permite.  Mas ao ser expulsos do Jardim do Éden, e para sobreviver, tivemos a necessidade  de criar uma sombra, onde escondemos uma parte importante do nosso dom.  De  uma  maneira  generalizada,  os  primeiros  quarenta  anos  da  nossa  vida  são  dedicados  ao  processo  cultural  –  aprender  o  necessário  para  obtenção  de  um  salário,  criar uma  família, disciplinarmo‐nos de mil  e uma maneiras.  A  segunda  metade  da  vida  deveria  ser  dedicada  a  restabelecer  o  ser  completo  original.  Podemos  queixar‐nos  que  este  processo  é  apenas  uma  viagem  de  ida  e  volta,  desnecessária,  com  a  diferença  que  o  ser  completo  original  se  encontrava  inconsciente  e  o  ser  humano  final  será  consciente.  Esta  evolução,  por  mais  que  lhe pareça uma brincadeira, é merecedora de todo o seu respeito e honra. Vale a  pena a dor e o sofrimento que custa chegar à consciência de quem sempre foi. O  único desafio é não se perder a meio do percurso e não conseguir encontrar o ser  completo no final.  Ser‐lhe‐á  útil  pensar  na  personalidade  como  um  baloiço,  com  uma  criança  em  cada  lado  oposto.  Ambas  as  crianças  são  uma  parte  de  si,  e  só  quando  as  duas  estão  presentes  é  você  é  verdadeiramente  completo.  O  nosso  processo  cultural  consiste  em  colocar  no  lado  direito  do  baloiço  todas  as  características  divinas  aceites pela sociedade em que estamos inseridos, e aquelas que não são aceites  do  lado  esquerdo.  Há  uma  lei  universal  inexorável  que  afirma  que  nenhuma  característica pode ser abandonada, apenas deslocada para um ponto específico  do  baloiço.  Uma  pessoa  que  passa  pelo  processo  cultural  com  sucesso  irá  mostrar à luz do dia as características desejáveis pelo sociedade (o lado direito,  correcto), e todas as que são proibidas irá esconder na escuridão da noite (o lado  esquerdo,  incorrecto).  Mas  todas  as  nossas  características  têm  que  aparecer  na  altura de fazer um inventário. Nada pode ficar de fora.  Há  ainda  uma  outra  lei,  terrível,  e  que  poucas  pessoas  conhecem  e  a  nossa  cultura  opta  por  ignorar:  o  baloiço  tem  que  estar  em  equilíbrio  para  evitar  a  quebra.  Se  passamos  a  maior parte  do nosso  tempo  a  olhar apenas  para  o  lado  direito do baloiço, a mostrar aos outros apenas aquilo que queremos que vejam,  temos que dar um apoio ás características que se encontram do lado esquerdo. O  oposto também é verdade. Se esta lei for quebrada, o baloiço perde o equilíbrio e  parte‐se  ao  nível  do  fulcro.  O  baloiço  partido  significa  apenas  a  morte  do  indivíduo.  Para  evitar  este  final,  o  subconsciente  irá  procurar  maneiras  de  restabelecer  o  equilíbrio.  É  assim  que  as  pessoas  mudam  como  do  dia  para  a  noite.  O  alcoólico  que  de  repente  se  torna  fanático  na  sua  temperança,  ou  o  politico  de  extrema  direita  que  é  apanhado  com  uma  prostituta.  Em  ambos  os  casos passou‐se de um extremo do baloiço para o outro. 

© Emídio Carvalho, 2009 



  Mas  o  baloiço  pode  efectivamente  quebrar  ao  nível  do  fulcro  se  ficar  sobrecarregado de um lado apenas. E aqui a pessoa só pode morrer. Ou tornar‐se  psicótica.   A nossa mente, tanto consciente como subconsciente, mantém um equilíbrio tão  perfeito  como  o  equilíbrio  orgânico  no  nosso  corpo  físico.  Da  mesma  maneira  que mantemos a mesma temperatura, o mesmo equilíbrio ácido‐alcalino, níveis  de açúcar no sangue e muitas outras polaridades.  Sempre que a nossa mão direita pega no fruto da criatividade, pode ter a certeza  que a mão esquerda irá pegar no fruto da destruição. É só uma questão de tempo  até  que  aquilo  que  rejeitamos  se  manifeste.  Mas  é  claro  que  nós,  como  pessoas  boas  que  somos,  iremos  resistir  a  esta  ideia.  Adoraríamos  ter  o  amor  criativo  sem o ódio destrutivo – só que isto jamais será possível.  Hoje em dia estamos a criar esta ideia ridícula de que a espiritualidade significa  ser‐se  muito  bom  e  amar  tudo  e  todos,  vivendo  única  e  simplesmente  do  lado  direito do baloiço. A imagem perfeita do santo. Só que uma pessoa assim torna‐ se altamente volátil e instável. No momento menos esperado irá cair no extremo  oposto  e  destruir  a  sua  vida  e  a  daqueles  que  o  rodeiam.  Tem  que  haver  um  equilíbrio entre o dia e a noite.  O fulcro do baloiço é o ponto sagrado. Temos mesmo que nos relacionar com o  mundo exterior através dos aspectos do lado direito do baloiço, mas isto só será  possível  se  mantivermos  o  lado  esquerdo  também  em  equilíbrio.  Temos  que  esconder o nosso lado negro da sociedade, ou tornar‐nos‐emos um perigo. Mas  não podemos nunca escondê‐lo de nós mesmos!  Os monges beneditinos são um bom exemplo do equilíbrio entre o lado direito e  esquerdo  do  baloiço.  Passavam  horas  seguidas  a  orar  e  honrar  a  Deus.  Mas  dedicavam  algum  do  seu  tempo  a  produzir  um  rico  licor  feito  à  base  de  ervas  aromáticas.  E  bebiam!  Por  que  acha  que  a  nossa  doçaria  nacional  nasceu  nos  conventos?  Dia  e  noite,  doce  e  amargo,  tristeza  e  alegria.  Ambos  presentes  e  vivenciados de maneiras diferentes.  Nunca conseguirá libertar‐se da sua sombra. Lembre‐se que para criar terá que  destruir.  Olhe  para  a  natureza  para  observar  precisamente  este  equilíbrio  –  depois  do  terramoto  surge  uma  paisagem  diferente.  O  poder  destrutivo  da  criação!  Você  não  conseguirá  fazer  luz  sem  a  ajuda  da  escuridão.  Na  Índia  equilibra‐se Braham, o deus da criação, com Shiva, deusa da destruição. Vishnu  senta‐se  ao  meio,  para  manter  o  equilíbrio  entre  os  outros  dois.  Ninguém  consegue escapar ao lado negro da vida, mas qualquer um de nós pode dedicar‐ se ao lado negro e manifestá‐lo sem causar danos a nós próprios nem aos outros  que nos rodeiam. Mas para tal temos que ser inteligentes e deixar a razão literal  de parte.  A  razão  literal  tem  sido  um  dos  nossos  maiores  problemas.  Para  compreender  melhor a razão literal, vou contar‐lhe uma pequena história.  Na  antiga  China  um  exército  combatia  contra  um  inimigo  poderoso.  O  exército  estava praticamente derrotado quando os generais se reuniram para decidir se 

© Emídio Carvalho, 2009 



  deviam  continuar  a  lutar  ou  se  deviam  fugir.  Seis  generais  votaram  a  favor  da  fuga e quatro votaram a favor de continuar a lutar. O exército ganhou a batalha!  No  final  da  reunião  os  generais  decidiram  lutar  porque  o  quatro  é  muito  mais  interessante e belo que o seis.  A nossa razão literal vai querer obliterar esta história. Irá considerá‐la estúpida e  sem sentido. Sempre que pensar que algo é ridículo, estúpido ou insano, diga a si  mesmo que está “literalizar a razão”. Não vá por aí.  O  equilíbrio  entre  a  luz  e  a  escuridão  é  possível  –  e  não  muito  difícil.  Toda  a  natureza vive na polaridade – dia e noite, criação e destruição, para cima e para  baixo,  macho  e  fêmea.  É  assim  natural  encontrarmos  as  mesmas  leis  a  reger  a  nossa mente. É como se dentro de nós existisse um irmão gémeo, com todas as  características  que  rejeitamos.  Quer  o  aceitemos  ou  não,  este  irmão  gémeo  irá  seguir‐nos  para  onde  quer  que  seja  –  como  uma  imagem  projectada  num  espelho.  Muitas  pessoas  presumem  controlar  completamente  quem  são.  Isto  é  uma  atitude que só pode conduzir a uma série de problemas complexos. Reconhecer e  abraçar a nossa sombra é o mesmo que admitir que há muitos aspectos de quem  somos que nem nós nem o mundo à nossa volta conhecemos.  Quanto  mais  educados  e  conservadores  formos,  maior  a  sombra  que  transportamos ás costas. O ego e a sombra têm a mesma origem e a mesma força,  até  um  começar  a  ser  reprimido  –  tornando‐se  mais  forte.  Tornar‐nos  luz  significa  criar  sombra,  visto  que  um  não  pode  existir  sem  o  outro.  Conseguir  abraçar a nossa sombra é, assim, atingir um lugar sagrado – o nosso centro – o  qual  só  está  disponível  desta  forma.  Se  falharmos  iremos  falhar  nas  áreas  das  nossas vidas que nos são mais queridas, sem nunca descobrir o nosso dom.  Na Índia encontramos uma bela descrição deste processo: Sat, Chit e Ananda. Sat  é a parte da nossa vida prática mundana que não reconhecemos (o lado esquerdo  do baloiço). Chit são as capacidades idealizadas (o que gostaríamos que os outros  vissem  em  nós).  E  Ananda  é  o  êxtase,  a  felicidade  e  iluminação  –  o  fulcro  do  baloiço.  Se  vivermos  a  vida  unicamente  a  partir  do  lado  direito  do  baloiço,  iremos,  consciente ou inconscientemente, equilibrar o humano em nós com um acto do  lado esquerdo. Nem sequer temos que virar a nossa cara para o lado para vermos  que criámos algo a partir da nossa sombra. É por este motivo que muitos artistas  são pessoas difíceis na sua vida privada.  A  história  está  repleta  de  situações  criadas  pelas  mentes  mais  geniais  e  excêntricas.  Uma  criatividade  que  mal  se  consegue  expressar  irá  dar  origem  a  uma sombra muito pequena. Enquanto que uma criatividade talentosa, genial, irá  criar  uma  sombra  gigantesca.  O  compositor  Schumann  enlouqueceu.  O  mundo  também  conhece  o  lado  negro  de  Picasso.  E  todos  conhecemos  histórias  de  artistas,  actores  e  cantores,  que  nos  nossos  dias  fazem  as  coisas  mais  inacreditáveis.  

© Emídio Carvalho, 2009 



  Enquanto que aqueles que mostram maior talento parecem ser também os que  sofrem  com  mais  intensidade,  todos  nós  temos  que  estar  conscientes  da  forma  como  utilizamos  a  nossa  criatividade  –  e  da  sombra  negra  que  a  acompanha.  Fazer um trabalho artístico, dizer umas palavras de amor, ajudar outros, tornar a  casa mais bonita, proteger a família – cada um destes actos irá ter um efeito no  lado oposto do baloiço e poderá conduzir‐nos ao sofrimento desnecessário.  Nós  não  podemos  recusar  a  nossa  criatividade  ou  deixar  de  nos  expressar  de  maneiras criativas. Mas podemos estar conscientes desta dinâmica da sombra e  fazer algo simples, mas simbólico, para compensar a sombra.  Se lhe acontecer algo de muito bom durante o dia, à noite encarregue‐se de ser o  responsável  por  despejar  o  lixo,  por  exemplo.  Desta  forma  estará,  de  uma  maneira  simbólica,  a  prestar  homenagem  à  sombra.  Sempre  que  passa  por  um  momento de sucesso crie um insucesso simbólico.  Muitas  mulheres  têm  que  carregar  o  fardo  pesado  da  sombra  de  um  homem  extremamente  criativo.  O  mesmo  acontece  a  muitos  homens,  que  têm  que  carregar o mesmo fardo da sombra de uma mulher de sucesso. Mas pior estão as  crianças, que muitas vezes têm que carregar os fardos pesados das sombras de  ambos progenitores.  Nós vivemos agora no século mais criativo na história da humanidade, com uma  tecnologia  capaz  de  muitos  milagres,  uma  enorme  facilidade  de  viajar  e  uma  nova  liberdade  que  nos  permite  nunca  estar  só.  Um  verdadeiro  século  de  liberdade! Claro que a sombra deste século só podia ser a solidão e o tédio – os  opostos  exactos  de  uma  sociedade  eficiente  como  a  que  criámos.  A  um  nível  global,  aumentámos  os  conflitos,  as  guerras  e  os  problemas  políticos  até  igualarem a visão utópica de uma sociedade justa e sã. A criatividade exuberante  que vemos só pode ser mantida se reconhecermos a sombra que a acompanha e  expressar essa mesma sombra de uma maneira inteligente.  Como  podemos  nós  criar  algo  belo  ou  bom  sem  causar,  na  mesma  proporção,  danos irreparáveis? É possível vivermos os nossos ideais, fazer o nosso melhor,  ser  educados,  conseguir  um  bom  trabalho  e  viver  uma  vida  decente  se  conseguirmos, em formato de ritual, reconhecer os aspectos escuros presentes. O  nosso  subconsciente  não  é  capaz  de  distinguir  entre  um  facto  real  e  outro  simbólico.  Isto  significa  que  podemos  experienciar  a  beleza  e  a  bondade  ‐    e  expressar o equivalente sombrio de uma maneira simbólica.  Um exemplo. Eu posso trabalhar a minha sombra depois de ter que ser simpático  para com pessoas antipáticas e, assim, não atirar com a minha sombra para cima  de  um  amigo.  Eu  tenho  que  honrar  a  minha  sombra,  uma  vez  que  é  uma  parte  integral  de  quem  eu  sou.  Não  tenho  que  a  empurrar  (projectar)  para  cima  de  outra  pessoa.  Posso  dedicar‐me  a  uma  cerimónia  de  cinco  minutos  em  reconhecimento da minha sombra depois de me afastar das pessoas antipáticas  e, assim, manter o meu ambiente livre dos perigos da sombra.  Há alturas em que a nossa sombra pode aparecer no local de trabalho. Eu posso  escrever  os  melhores  artigos  e  tentar  dar  o  meu  melhor  na  preparação  de  um  seminário,  através  de  muito  trabalho  e  disciplina.  Mas  isto  irá  aumentar  de 

© Emídio Carvalho, 2009 



  imediato  a  minha  sombra.  Eu  tento  mantê‐la  longe  de  vista  e,  é  claro,  no  momento  menos  esperado ela salta cá para  fora! Um  assistente  que se esquece  do material que quero entregar aos participantes, trocar o local onde o seminário  irá  ter  lugar  ou  até  preparar‐me  para  uma  actividade  e  depois  esquecê‐la  completamente  durante  o  seminário!  Por  este  motivo  tenho  que  prestar  homenagem à sombra antes de qualquer apresentação pública.  Significa  isto  que  tenho  que  ser  tão  destrutivo  como  sou  criativo?  Tão  escuro  quanto  luminoso?  Sim,  claro.  Mas  tenho  algum  controle  sobre  a  maneira  como  pago  o  preço  da  sombra.  Posso  fazer  uma  cerimónia,  um  ritual,  logo  depois  de  um trabalho criativo para restabelecer o equilíbrio. Posso escrever uma história  tenebrosa,  medonha,  ou  criar  uma  dança  da  destruição.  Ambos  irão  prestar  homenagem  à  minha  sombra.  Estes  actos  simbólicos  servem  exactamente  para  isso: equilibrar a minha vida, o consciente e o subconsciente, a luz e a escuridão,  sem causar danos a mim mesmo ou a outros.  Onde quer que se encontre, tem sempre que honrar a sua sombra, a parte da sua  vida  que  é  rejeitada.  Tem  que  redimir  os  aspectos  de  si  que  considera  inapropriados ou errados.  Recusar‐se a ver o lado escuro da sua vida é o mesmo que acumular energia na  sua sombra. Mais cedo ou mais tarde pode surgir como uma depressão, cinismo,  uma doença psicossomática ou um acidente sem motivos aparentes.   No presente estamos a lidar com a acumulação de toda uma sociedade que adora  o  seu  lado  de  luz  e  recusa‐se  a  abraçar  a  escuridão.  Isto  tem  como  resultado  a  guerra,  caos  económico,  manifestações  sucessivas  e  intolerância  racial.  Veja  a  primeira página de qualquer jornal para ficar a saber qual é a sombra colectiva  da nossa sociedade.  Temos  que  ser  completos,  quer  gostemos  da  ideia  ou  a  repudiemos.  A  nossa  única escolha é entre abraçar ou não a sombra de uma maneira consciente e com  dignidade, ou atravessar um período de neuroses e mal‐estar generalizado.   Qualquer forma de reparar este nosso mundo tem que começar com aqueles que  têm a coragem, e o discernimento, de abraçar a sua própria sombra. Nada fora de  nós, no mundo exterior, nos poderá ajudar se o mecanismo interior de projecção  tiver o controle, as rédeas, da nossa vida. A tendência de vermos a nossa sombra  “fora  de  nós”,  no  nosso  vizinho  ou  no  amigo,  numa  cultura  ou  nacionalidade  diferente, é o aspecto mais perigoso da nossa mente.  Não são os políticos e líderes “monstruosos” deste mundo os responsáveis pelo  caos,  mas  sim  a  sombra  colectiva  para  a  qual  cada  um  de  nós  contribui  diariamente. A Segunda Guerra Mundial mostrou‐nos inúmeros exemplos do que  significa projectar a sombra colectivamente. Uma das nações mais civilizadas do  planeta, a Alemanha, caiu na asneira de projectar a sua sombra sobre os judeus.  Se  apenas  uma  pequena  percentagem  da  população  abraçar  a  sua  sombra  individual, é‐nos prometido que o mundo será salvo.   Temos  neste  momento  várias  gerações  a  viver  num  mundo  em  que  a  sombra  individual nunca é tocada. Podemos prever que dentro de uns cinco a dez anos  © Emídio Carvalho, 2009 



  essas sombras se tornem explosivas e mostrem a sua escuridão sobre sociedades  inteiras.  Aparentemente,  a  necessidade  colectiva  de  expressar  a  sombra  ultrapassa a determinação individual para a conter. E assim temos que depois de  uma época de enorme criatividade será seguida por outra de enorme destruição.  É necessário uma sociedade bastante avançada para manter uma guerra durante  muito  tempo,  como  foram  ambas  as  Guerras  Mundiais.  Sociedades  primitivas  ficariam  cansadas  de  guerrear  ao  fim  de  poucas  semanas.  Isto  porque  as  sociedades  primitivas  nunca  acumulariam  uma  sombra  durante  muito  tempo,  nunca  se  afastando  muito  dos  seus  aspectos  mais  escuros.  É  necessário  uma  sociedade  evoluída,  castrada  e  criativa  para  conseguir  manter  uma  acção  de  guerra  durante  anos.  Quanto  mais  avançada  a  civilização  maior  o  seu  poder  de  destruição.  O  que  acontece  à  sombra,  ao  lado  esquerdo  do  baloiço,  se  não  estivermos  conscientes dela e não a expressarmos de uma forma saudável?  A  menos  que  trabalhemos  este  aspecto  de  nós  de  uma  maneira  consciente,  a  sobra será sempre projectada. Isto é, atiramos com ela muito suavemente sobre  os outros e, assim, estaremos livres de nos sentir culpados ou responsáveis.  A  sociedade  medieval  era  governada  por  um  sistema  patriarcal,  famosa  pela  tendência a cair sobre o lado esquerdo do baloiço: fortes que protegiam cidades,  armaduras pesadas para a guerra, posse pela força, negação de qualquer aspecto  feminino,  obediência  cega  à  monarquia,  e  cidades‐estado  em  guerra  constante  umas contra outras. A própria Igreja fazia parte desta politica da sombra. Apenas  os  indivíduos  a  quem  chamamos  de  santos  (nem  todos  são  reconhecidos),  os  mosteiros  Beneditinos,  e  algumas  sociedades  esotéricas,  evitavam  o  jogo  da  projecção da sombra.  Hoje  em  dia  temos  verdadeiros  negócios  multimilionários  dedicados  a  conter  a  nossa sombra. A indústria do cinema, da moda e literatura oferecem‐nos formas  acessíveis  e  fáceis  onde  investir  a  nossa  sombra.  Os  jornais  oferecem‐nos  diariamente  um  pacote  de  desastres,  crimes  e  horrores  que  servem  para  alimentar a nossa natureza sombria no exterior, quando na verdade deveria ser  incorporada em cada um de nós como uma parte da nossa personalidade. Somos  deixados  como  sendo  menos  do  que  completos  quando  investimos  a  nossa  escuridão em algo fora de nós. A projecção é sempre mais fácil que a assimilação.   É sempre uma página suja da História aquela em que as pessoas obrigam outras  a carregar a sua própria sombra. Os homens atiram com a sua sombra para cima  das  mulheres,  os  brancos  sobre  os  negros,  católicos  sobre  os  protestantes,  capitalistas sobre os comunistas, muçulmanos sobre hindus. Bairros irão ter um  bode expiatório numa das famílias, e esta família terá que carregar a sombra de  todas essas pessoas. Em verdade cada grupo, inconscientemente, designa um dos  seus  membros  como  a  ovelha  negra  e  obriga‐o  a  carregar  a  sombra  para  benefício de toda a comunidade.  Poderemos argumentar que as sociedades medievais conseguiam aguentar com  a  sua  sombra  projectando‐a  no  inimigo.  Mas  o  Homem  Moderno  não  pode 

© Emídio Carvalho, 2009 



  continuar a fazer este jogo. A evolução da consciência exige que cada um de nós  integre a sua sombra se quisermos avançar para um Mundo Novo.  Por vezes recorremos a um animal de estimação para carregar a nossa sombra. O  meu  pai,  por  exemplo,  é  um  homem  atencioso,  calmo,  extremamente  pacífico  a  maior parte do tempo. Ao mesmo tempo, bate nos cães, atira‐lhes com pedras e  bate‐lhes. Ainda não conseguiu ver que os seus cães são o escape da sua sombra.  As ‘asneiras’ dos animais são apenas a nossa projecção.  Provavelmente  a  maior,  e  mais  perigosa,  asneira  é  atingida  quando  os  pais  projectam a sua sombra nos filhos. Isto é tão vulgar que muitas pessoas têm um  trabalho  árduo  para  se  verem  livres  das  sombras  dos  pais  antes  de  poderem  abraçar as suas próprias sombras. Se um pai atira com a sua sombra no filho de  cinco  anos,  isto  irá  criar  uma  ruptura  a  personalidade  da  criança  e  dá  início  à  guerra  ego‐sombra  numa  idade  muito  precoce.  Quando  esta  criança  se  tornar  num  adulto  irá  ter  uma  enorme  sombra  sobre  si  (muito  mais  do  que  a  sombra  fruto da cultura, que todos carregamos), e terá ainda a tendência a colocar parte  dessa sombra sobre os seus filhos.  Se deseja dar aos seus filhos a melhor das oportunidades na vida, o melhor dos  presentes, retire a sua sombra deles. E, ao fazê‐lo, irá crescer tremendamente ao  resgatar a sua sombra.  O  meu  pai,  enquanto  eu  vivi  na  mesma  casa,  era  um  homem  muito  passivo,  deixando que a minha mãe tomasse todas as decisões. Como resultado, sinto que  tenho duas vidas a solucionar – a minha e vida que ficou por viver do meu pai.  Isto  é  um  fardo  demasiado  pesado,  mas  pode  ter  uma  dimensão  criativa  se  eu  aceitar o fardo conscientemente. Mas estas coisas só são possíveis quando temos  a  maturidade  suficiente  para  saber  o  que  estamos  a  fazer.  Raramente  conseguimos esta sabedoria antes dos quarenta ou cinquenta anos de idade.  É quase impossível imaginar o peso do sofrimento que é passado de geração em  geração. Não poderíamos dar aos nossos filhos, ás gerações mais jovens, melhor  presente que assumirmos a nossa sombra.  Já  me  foi  perguntado  várias  vezes  se  é  possível  impedir  a  projecção.  Sermos  capazes de rejeitar a  projecção da sombra de outra pessoa. Isto só é possível se  tivermos  a  nossa  sombra  consciente.  Normalmente,  quando  está  a  ser  a  projecção de outra pessoa, a sua própria sombra vem cá para fora e começa um  ciclo  de  abusos  inevitáveis.  Quando  a  sua  sombra  é  como  um  depósito  de  combustível,  afastem  todos  os  fósforos!  Irá  explodir  mais  cedo  ou  mais  tarde.  Para recusar ser a projecção da sombra de outro não pode ripostar. Em vez disso,  simplesmente deixe que o touro parta a loiça toda, sem um único pestanejar.  Muitos  relacionamentos  funcionam  assim:  disfuncionalmente.  Projectando  as  respectivas  sombras  no  outro.  Quando  alguém  quer  projectar  a  sua  sombra  sobre  si,  irá  sentir  uma  necessidade  de  responder  ao  ataque.  Em  vez  disso,  mantenha‐se calmo, não se torne frio e distante, apenas calmo. Eventualmente a  outra pessoa irá aperceber‐se do jogo. Nesse momento só pode acontecer uma de  três  coisas:  atirar  com  as  suas  projecções  para  cima  de  outra  pessoa,  explodir  num ataque de raiva ou ver o que facto está a fazer e assimilar a sua sombra. 

© Emídio Carvalho, 2009 



  Ser‐lhe‐á  fácil  recusar  a  projecção  de  outro  e  terminar  com  um  ciclo  eterno  de  ódios se a sua própria sombra estiver sob controle. Encontrar‐se na presença da  sombra de outro e não reagir exige uma capacidade humana de génio. Ninguém  tem o direito de atirar com a sua sombra sobre você, e você tem o direito de se  proteger.  Todavia  não  é  fácil  conseguir  escapar  a  este  jogo.  Em  qualquer  relacionamento  pergunte‐se  se  está  a  reagir  emocionalmente.  Se  a  resposta  for  afirmativa, pode ter a certeza que há sombras a serem projectadas.  Atirar com a nossa sombra para cima de outro é um abuso e causa muitos danos  –  não  só  sobre  aqueles  em  quem  projectamos,  mas  também  sobre  nós.  Ao  projectarmos  a  nossa  sombra  estamos  a  perder  uma  parte  essencial  de  quem  somos.  Temos  uma  obrigação  de  nos  unirmos  ao  nosso  lado  mais  negado  para  que  possamos  crescer  enquanto  seres  humanos  e,  em  simultâneo,  não  temos  qualquer  direito  de  atirar  estes  aspectos  rejeitados  para  cima  dos  outros.  O  problema é que a maioria de nós vive dentro de uma teia complexa de troca de  sombras,  a  qual  rouba  uma  parte  significativa  de  cada  uma  das  pessoas  envolvidas.   Por  outro  lado  a  sombra,  a  nossa  sombra,  contém  uma  quantidade  enorme  de  energia  e  vitalidade.  Um  individuo  com  bastante  cultura  possui  também  uma  sombra  densa.  Se  ele  estiver  consciente  desta  sombra  tornar‐se‐á  uma  pessoa  com um poder pessoal bastante acentuado.  Por  vezes  podemos  ser  bastante  úteis  a  outros  ao  carregar,  conscientemente,  a  sua  sombra.  Fazêmo‐lo  quando  aceitamos  as  acusações  do  outro,  sabendo  que  não são verdadeiras, sem ripostar. É uma forma de esperar, de dar tempo, para  que a outra pessoa possa tomar consciência da sua própria sombra. Mas isto só é  possível  se  a  nossa  sombra  estiver  sob  o  domínio  consciente,  quando  a  expressamos de maneiras saudáveis.  Só  poderemos  amar  os  nossos  inimigos  depois  de  sermos  capazes  de  amar  a  nossa  própria  sobra,  o  nosso  inimigo  interior.  É  ele  o  responsável  por  grande  parte da nossa infelicidade e dos nossos problemas. Quando amamos o inimigo  interior, descobrimos um mundo de alegria e poder.  Para abraçar a nossa sombra podemos pegar nos arquétipos de Céu e Inferno. O  Céu  representa  o  consciente  e  o  ego,  enquanto  o  Inferno  representa    o  subconsciente e a sombra. Ao abraçar a sombra estamos a amar na totalidade a  separação  existente  entre  Céu  e  Inferno.  O  diabo  (a  nossa  sombra)  foi  inicialmente  uma  parte  do  Céu,  e  terá  que  eventualmente  regressar  a  casa.  Significa  isto  que  cada  um  de  nós  tem  que  abraçar  a  sua  sombra,  o  seu  diabo  interior, por forma a poder experienciar o Céu que há em si. Se serve de algum  apoio, atrever‐me‐ia a dizer que Deus ama mais a nossa sombra do que o nosso  ego,  uma  vez  que  a  sombra  é  autentica,  enquanto  que  o  ego  é  uma  falsa  construção da personalidade.  A nossa sombra pode ser‐nos útil em muitas das tarefas do dia‐a‐dia, se apenas a  soubermos escutar. Um exemplo muito específico: antes de dar uma palestra, ou  um  seminário,  pego  numa  toalha  e  encharco‐a  até  ficar  com  mais  do  triplo  do  peso  original.  Depois  agarro‐a  com  bastante  garra  e  atiro‐a  com  toda  a  minha  força  contra  uma  parede,  ao  mesmo  tempo  que  deixo  sair  um  grito.  Assim,  © Emídio Carvalho, 2009 

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  expresso a minha sombra egoísta e enraivecida. Depois disto posso ensinar e dar  o meu melhor. Depois da destruição só podemos ter acesso à criação. Destruição  e criatividade são apenas dois pólos do mesmo aspecto. Ao experienciar um dos  pólos abrimos caminho para que o outro oposto se manifeste.  Já  mencionei  antes  que  há  maneiras  de  expressar  a  nossa  sombra  de  maneiras  saudáveis, através de cerimónias e rituais.  Esta é uma forma criativa de abraçar  a totalidade que somos. Para tal precisa, antes que tudo, de possuir os elementos  da sua sombra numa mão e do seu ego noutra. Uma tarefa nada fácil. Como é que  pode saber qual a parte da sua sombra se ela se esconde nos cantos mais escuros  do subconsciente?  Num ritual simples pode expressar um aspecto da sua natureza não vivenciada.  Terá que agarrar nesse aspecto e satisfazê‐lo, sem causar danos a si ou a outros.  Pode  criar  uma  estátua  em  barro,  escrever  uma  história,  pintar  um  quadro,  ou  criar  uma  dança!  Pode  ainda  queimar  algo.  Qualquer  forma  de  manifestar  um  aspecto escuro da personalidade sem causar danos. Lembre‐se sempre que uma  cerimónia,  um  ritual,  é  autêntico  e    real  para  o  subconsciente  se  as  emoções  equivalentes ao acto estiverem presentes.  A nossa mente não consegue distinguir entre um acto interior e outro exterior.  As qualidades da nossa sombra podem ser experienciadas, do ponto de vista do  Eu, tanto no exterior como no interior.  Qualquer  sociedade  culturalmente  avançada  está  carregada  de  cerimoniais.  As  sociedades  menos  avançadas  expressam  a  sombra  de  maneira  inconsciente:  através da guerra, violência, doenças psicossomáticas e acidentes imprevistos.  Deixo  aqui  alguns  aspectos opostos.  Irá  descobrir que  possui, conscientemente,  ou o aspecto da direita ou da esquerda. Aquele que acredita não possuir deverá  expressar  num  ritual  pois,  por  mais  que  lhe  custe,  ele  está  presente  na  sua  sombra. E não adianta muito fazer este processo do ponto de vista intelectual. Se  não sentir, no seu coração, o que está a fazer, de cada vez que estiver com outra  pessoa irá projectar.  • • • • • • • • • • • • • •  

Ganhar;  Comer;  Actividade;  Posse;   Acção;  Criatividade;  Sexo;  Decisão;  Sucesso;  Liberdade;  Escolha;  Sobriedade;  Mais é melhor;  Justiça. 

© Emídio Carvalho, 2009 

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Perder;  Jejuar;  Passividade;  Pobreza;  Descanso;  Destruição;  Celibato;  Indecisão;  Insucesso;  Obediência;  Obrigação;  Êxtase;  Mais é pior;  Injustiça. 

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  Imagine que tem um dia de enorme sucesso. Tudo lhe correu bem! Pode, uma vez  em  casa,  fazer  um  ritual  do  insucesso.  Por  exemplo,  despejar  o  lixo  pode  ser  transformado  neste  ritual.  Ou  a  sua  criatividade  foi  invulgarmente  alta  durante  um projecto. Pode ritualizar a destruição através de uma escultura em plasticina,  a qual  é destruída no final.  Mantenha sempre presente na sua mente que a virtude só é possível na presença  do seu oposto. A luz não teria qualquer significado sem a escuridão, o masculino  sem  o  feminino,  o  cuidado  sem  o  abandono.  A  verdade  chega‐nos  sempre  aos  pares. Este é o grande mistério da dualidade, do paradoxo.  O maior, e mais difícil, paradoxo dos nossos tempos é o amor e o ódio. A nossa  sociedade  é  fracturada  em  mil  pedaços  por  esta  dicotomia  e  é  fácil  encontrar  mais erros do que sucessos na tentativa de reconciliar estes dois pólos opostos.  Contudo, é impossível viver humanamente sem a presença de ambos. O ódio sem  o  amor  torna‐se  brutal.  E  o  amor  sem  ódio  torna‐se  insípido  e  fraco.  E  no  entanto,  quando  duas  pessoas  se  aproximam  uma  da  outra,  mais  cedo  ou  mais  tarde dá‐se uma explosão. A maioria das discussões entre casais centra‐se à volta  da  colisão  entre  o  amor  e  o  ódio.  Conseguir  experienciar  ambos  é  um  atarefa  árdua e difícil para a maioria das pessoas. Mas a menos que o faça irá escorregar  sempre nesta ratoeira. Um verdadeiro paradoxo é capaz de uma devoção e união  únicas. Manifeste o ódio de uma maneira saudável, através, por exemplo, de uma  dança. Ou escreva uma carta de ódio, a qual depois queima... Com ódio!  O  fundamentalismo  é  sempre  sinal  de  que  se  abraçou  um  dos  opostos  de  algo,  enfraquecendo o outro. A maior parte da energia do fanático (fundamentalista) é  gasta  num  esforço  louco  para  manter  metade  da  verdade  longe  de  vista,  enquanto  a  outra  metade  governa.  Este  tipo  de  comportamento  está  intimamente relacionado com o acto de “ter razão”. Esteja preparado para deixar  partir a necessidade de ter razão, a qual é sempre um acto do ego.  Mas afinal o quê que a sombra tem haver com o paradoxo? Tudo. Não é possível  existir  um  paradoxo  –  aquele  lugar  sublime  de  reconciliação  –  enquanto  não  abraçarmos a nossa sombra e a elevarmos até ao ponto da dignidade. Abraçar a  nossa  sombra  é  o  mesmo  que  preparar  o  terreno  para  a  maior  experiência  espiritual permitida ao ser humano.             

© Emídio Carvalho, 2009 

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