Monografia Lilian Werneck Rodrigues - Facom-ufjf

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

LILIAN WERNECK RODRIGUES

O MÓBILE: A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM “THE L WORD” ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL

JUIZ DE FORA 2º SEMESTRE DE 2007

LILIAN WERNECK RODRIGUES

O MÓBILE: A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM “THE L WORD” ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL

Trabalho de conclusão de curso de graduação. Apresentado como requisito para obtenção de grau de Bacharel em Comunicação Social. Pela Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Orientador Acadêmico: Professor MS Cristiano José Rodrigues.

JUIZ DE FORA 2º SEMESTRE DE 2007

LILIAN WERNECK RODRIGUES

O MÓBILE: A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA EM “THE L WORD” ADAPTADA A UM ROTEIRO ORIGINAL

Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado como requisito para obtenção de grau de Bacharel em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da UFJF.

Orientador Acadêmico: Professor MS. Cristiano José Rodrigues. Banca Examinadora:

Trabalho de conclusão de curso aprovado em 14 / 11 / 2007 pela banca composta pelos seguintes membros:

____________________________________________________ Professor Mestre Cristiano José Rodrigues – UFJF - Orientador

____________________________________________________ Professora Doutora Cláudia Regina Lahni – UFJF – Convidada

____________________________________________________ Professor Doutor Nilson Alvarenga – UFJF – Convidado

Conceito obtido _____Nota Máxima 100,0 pontos_________

JUIZ DE FORA 2º SEMESTRE DE 2007

DEDICATÓRIA

À mulher que me inspira, ilumina meu caminho, me ajuda a retirar as pedras, me incentiva a conquistar meus desejos e a sonhar cada dia mais: Leda Maria, minha mãe abençoada.

AGRADECIMENTOS

Após tantos e tantos anos de luta para conseguir essa graduação, a lista de agradecimentos não havia de ser pequena. Infelizmente, não pude aqui escrever todos os “obrigada!” que gostaria de deixar registrado. Em primeiro lugar, agradeço a Deus e aos anjos que me ajudam em todos os momentos. Agradeço também, com o mais puro carinho, a meu pai, Sérgio, e à minha mãe Leda, exemplos incontestáveis de vida, força, determinação e fé. Amo vocês! Obrigada pela paciência e apoio, sempre. Agradeço às minhas irmãs, Juliane e Renata, e ao meu irmão, Serginho, além de Daniela, minha cunhada, e meus sobrinhos: Rafael, Júlia, Luisa e Luana. À minha tia Oneida, pelo apoio que me deu quando mais precisei; Não posso me esquecer do meu companheiro mais fiel, que é um pedacinho de mim: Billy! Às minhas amigas e amigos, agradeço a todos! Mas uns são partes essenciais da minha vida: ao lorde Giovane, ao anjo Márcio, à fiel Myriam, à debochada Tais e à louca Nicole; Agradeço às minhas sócias, Tais e Juliana, por acreditarem na QuebraGalho; À Rosa Berg, por ter sido a primeira a acreditar em “O Móbile” e por todo o apoio desde então; Às integrantes da lista e da comunidade de “The L Word”, em especial à Rafaela Britto, amiga de longe a quem digo muito obrigada pela atenção e pelos bons momentos de conversa on line! À Professora Cláudia Lahni, meu sincero agradecimento, por ter sido a primeira a abrir meus olhos para a importância de ser mulher. Ao meu orientador, Professor Cristiano, agradeço pela paciência e pelo carinho de tantos anos.

EPÍGRAFE

Não falo do amor romântico, aquelas paixões meladas de tristeza e sofrimento. Relações de dependência e submissão, paixões tristes. Algumas pessoas confundem isso com amor. Chamam de amor esse querer escravo, e pensam que o amor é alguma coisa que pode ser definida, explicada, entendida, julgada. Pensam que o amor já estava pronto, formatado, inteiro, antes de ser experimentado. Mas é exatamente o oposto, para mim, que o amor manifesta. A virtude do amor é sua capacidade potencial de ser construído, inventado e modificado. O amor está em movimento eterno, em velocidade infinita. O amor é um móbile. Como fotografá-lo? Como percebê-lo? Como se deixar sê-lo? E como impedir que a imagem sedentária e cansada do amor nos domine? Minha resposta? O amor é o desconhecido. [...] O amor, eu não conheço. E é exatamente por isso que o desejo e me jogo do seu abismo, me aventurando ao seu encontro. A vida só existe quando o amor a navega. Morrer de amor é a substância de que a Vida é feita. Ou melhor, só se Vive no amor. E a língua do amor é a língua que eu falo e escuto. (MOSKA, Paulinho - “Do Amor”)

RESUMO

O seguinte trabalho pretende analisar primeiramente a história da homossexualidade feminina no mundo, através de dados e acontecimentos importantes, e provocar reflexões sobre o papel e as identidades da mulher lésbica e do homem gay no contexto social, familiar e midiático. Tem como objetivo, também, relatar momentos fundamentais dos movimentos lesbianos e de suas ações pelo respeito, fim do preconceito e pela visibilidade lésbica. Além disso, em paralelo, pretende apresentar um breve histórico de fatos, assim como a importância representativa, das séries de TV norte-americanas, passando pela definição do gênero, desde os anos 50 até os dias atuais, nas quais as personagens homossexuais encontram espaço e acabam ganhando destaque. As duas abordagens paralelas encontram congruência na apresentação e análise da série americana “The L Word”, atualmente exibida em vários países. A partir de diversas identidades e situações que envolvem o universo lésbico, o seriado dá visibilidade de forma verossímil à mulher homossexual contemporânea. Como objeto da reflexão, surge um roteiro cinematográfico inédito, de título “O Móbile”, com a proposta de cinco curtasmetragens que trazem diferentes histórias de amor entre mulheres. Além de produto inspirado na série americana, o roteiro tem como objetivo maior se tornar também uma ferramenta na luta contra o pré-conceito da vida das mulheres que amam mulheres. Mulher. Homossexualidade. Série de TV.

SUMÁRIO

1.

INTRODUÇÃO.............................................................................................................10

2.

(HOMO) SEXUALIDADES HUMANAS: UMA QUESTÃO DE DESEJOS.........14

3.

4.

2.1.

A importância do sexo.......................................................................................16

2.2.

Identificações e identidades diversas................................................................22

2.3.

O início do movimento LGBT..........................................................................31

2.4.

O orgulho das mulheres que amam mulheres...................................................39

AS SÉRIES DE TV NORTE-AMERICANAS...........................................................50

3.1.

A dramaturgia seriada: definições.....................................................................52

3.2.

Os primeiros anos e o conservadorismo americano..........................................56

3.3.

A explosão da TV por assinatura.....................................................................62

3.4.

A homossexualidade nas séries americanas......................................................72

A PRIMEIRA SÉRIE LÉSBICA DA TV...................................................................82

4.1.

A Palavra L: lésbicas com glamour e verossimilhança.....................................83 4.1.1. Primeira Temporada – a rede das meninas...........................................98 4.1.2. Segunda Temporada – a amizade e o amor.........................................104 4.1.3. Terceira Temporada – tristes dilemas, histórias reais........................107 4.1.4. Quarta Temporada – vidas paralelas...................................................109

5.

“O MÓBILE”: A INSPIRAÇÃO ENCORAJA O NOVO.......................................113

5.1.

As cinco peças de “O Móbile” – o roteiro......................................................114 5.1.1. Admiração...............................................................................................119 5.1.1.1. Roteiro “Admiração”.......................................................................122 5.1.2. Diálogo.....................................................................................................130 5.1.2.1. Roteiro “Diálogo”.............................................................................132 5.1.3. Confiança ...............................................................................................142 5.1.3.1. Roteiro “Confiança”........................................................................144 5.1.4. Apoio........................................................................................................150 5.1.4.1. Roteiro “Apoio”................................................................................152 5.1.5. Perdão......................................................................................................156 5.1.5.1. Roteiro “Perdão”..............................................................................159

6.

CONCLUSÃO.............................................................................................................168

7.

ANEXOS......................................................................................................................171

8.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................176

MIA KIRSHNER: What does The L Word mean? ROSE TROCHE: What?! Someone said "Lunch"?! ERIC MABIUS: It's much more than that wink-wink, nudge-nudge. LEISHA HAILEY: I think that it represents everything you want it to. That's what's great about it. MIA KIRSHNER: Loss. LEISHA HAILEY: Legs... I'm kidding. ROSE TROCHE: The L Word means the word that's not spoken. And I love its little badness, I love its euphemistic, like...bad quality. PAM GRIER: The L Word is a show about living the life you love, loving the life you live. (THE L WORD DEFINED, 2004)

MIA KIRSHNER: O que quer dizer a palavra L? ROSE TROCHE: Quê?! Alguém disse “Lanche”?! ERIC MABIUS: É muito mais que esfrega-esfrega, nhéco-nhéco. LEISHA HAILEY: Eu penso que ela representa tudo aquilo que você quer. Isso que é o legal disso tudo. ERIN: Amor (Love) MIA KIRSHNER: Perda (Loss) LEISHA HAILEY: Pernas (Legs)... Estou brincando. ROSE TROCHE: A palavra L é aquela palavra que não deve ser dita. E eu amo essa maldadezinha em torno dela, eu amo seus eufemismos, tipo... uma qualidade má.. PAM GRIER: The L Word é uma série sobre viver a vida que você ama, amar a vida que você vive. (THE L WORD DEFINED, 2004)

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1.

INTRODUÇÃO

Uma mulher toca a campainha da casa. A porta se abre e ela entra. Cumprimenta, animada, várias amigas que estão sentadas na sala, bebendo refrigerantes e cerveja, conversando agitadamente. Parece que repassam os acontecimentos do episódio anterior. Ela se senta no meio delas. Enquanto isso, do outro lado da cidade, uma jovem garota, insegura com seu jeito de vestir, com seu jeito de andar, seu jeito de pensar, seu jeito de gostar de outras garotas, assustada, fecha a porta do quarto. Coloca o som da TV bem baixinho, e fica esperando, o tempo todo com o controle na mão, já que seu pai ou sua irmã podem entrar a qualquer momento. Em outro estado, uma mulher em seus trinta e poucos põe seu filho pequeno na cama, sonolento. Apaga a luz do quarto. Passa pela cozinha e pega a vasilha de pipocas. Entra em seu quarto. Sua companheira está lá, deitada entre as cobertas, afundada no travesseiro, vendo TV. Ela entrega-lhe a vasilha e deita, se ajeitando em seus braços. Ela recebe um beijo e sorri. Em outro país, um casal termina de assistir ao Fantástico, mesmas histórias de sempre. O marido, meio sonolento, entrega o controle para a mulher que, até então, lia o jornal. Ela resolve zapear entre os canais e percebe que um certo programa está para começar. Ela olha para o marido, ele está cochilando. Resolve deixar naquele canal para ver o que, afinal de contas, era aquela palavra com L. O leão ruge, marca registrada de um estúdio de cinema. Começa a música tema.

Meninas em vestidos apertados, que se travestem com bigodes. Garotas dirigindo rápido, ingênuas com longos chicotes. As mulheres que sentem saudades, amam, desejam. Mulheres que se entregam. Esta é a maneira que nós vivemos. Falando, rindo, amando, respirando, lutando, fodendo, chorando, bebendo, montando, ganhando, perdendo, trapaceando, beijando, pensando, sonhando. É a maneira que nós vivemos e amamos. (BETTY, 2005, disponível em , acesso em 25 nov. 2007)

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Desde 2004, essas e outras têm sido as rotinas de muitas garotas, mulheres e jovens senhoras em vários países diferentes. Quando começa, a série norte-americana “The L Word”, mostra de cara um universo antes explorado pouco e, muitas vezes, de forma equivocada. Mulheres que amam mulheres. “The L Word” é um marco importante tanto no percurso das homossexuais femininas através dos tempos, quanto da história do gênero seriado, produto cultural com significativa produção na televisão norte-americana. Para se entender por que essa série se torna esse marco, é preciso antes conhecer o caminho que percorreu. Para isso, no segundo capítulo, realizo uma busca através dos diversos significados que a sexualidade humana vem adquirindo com o tempo. Desde o estabelecimento da heterossexualidade como padrão de comportamento até a criação de movimentos organizados pelo fim desse padrão e pelo reconhecimento das diversidades sexuais, apresento fatos históricos e breves reflexões sobre a homossexualidade do ser humano, principalmente as que se refletem na vida das mulheres lésbicas. Da mesma forma, e paralelamente, no terceiro capítulo, apresento a definição do gênero série de TV e os principais acontecimentos, além dos principais e significativos produtos culturais deste estilo já lançados no mercado dos Estados Unidos. Seus sucessos, suas influências, sua projeção e seu valor de mercado incontestável, garantiram que esse espaço na televisão fosse ocupado por histórias ousadas, de boa qualidade técnica e temas inovadores. Perfeito contexto para que as homossexuais pudessem ser inseridas e, com isso, conquistassem um lugar para exercer um dos maiores direitos: sua visibilidade. As lésbicas, através das lutas dos movimentos organizados, começaram a se mostrar. E nenhum lugar poderia ser melhor para aplicar essa visibilidade do que na televisão. Por que não num gênero que tem como tradição a ousadia e a inovação? Foi assim que “The L

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Word” ganhou voz e projeção na TV. E é essa série com seus perfis identificáveis do universo lesbiano contemporâneo que apresento no capítulo quatro deste trabalho. Incentivada por essa visibilidade, e acreditando que é possível fazer mais e outras histórias, um roteiro com cinco histórias de amor entre mulheres foi criado. O processo de escrita e produção de “O Móbile”, objeto direto da influência adquirida com o acompanhamento da série “The L Word”, assim como os roteiros de “Admiração”, “Diálogo”, “Apoio”, “Confiança” e “Perdão” seguem descritos no capítulo cinco, como uma proposta de representação da homossexualidade feminina dos dias de hoje.

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ROSE TROCHE: There's that thing about people just wanting to get all the gay material into as big bucket and call it the same. That's annoying. MIA KIRSHNER: I think that people are fed up with being backed into a corner and being marginalized and told what their life style is. ERIC MABIUS: I think very quickly people are going to forget they are watching a show about lesbians, per se. LEISHA HAILEY: I hope that the world really opens their arms... [scene with Shane talking to Dana] SHANE: Sexuality is fluid. Whether you're gay, or you're straight, or you're bisexual... you just go with the flow. LEISHA HAILEY: It shows the beauty of our diversity, and the community, and reflects, somehow, what the gay community is like. OFF: Even taking the TV’s biggest gay breakthroughs into account, there has never been a series like The L Word. (THE L WORD DEFINED, 2004)

ROSE TROCHE: Tem essa coisa das pessoas insistirem em pegar todo o material gay e colocar junto num grande saco. Isso é irritante. MIA KIRSHNER: Eu penso que as pessoas estão cansadas de serem jogadas para um canto e serem marginalizadas e dizerem que aquele é o seu estilo de vida. ERIC MABIUS: Eu acho que as pessoas vão se esquecer muito rapidamente que estão vendo uma série sobre lésbicas, por si mesmas. LEISHA HAILEY: Eu espero que o mundo realmente abra os seus braços... [cena com Shane conversando com Dana] SHANE: A sexualidade é fluida. Não importa se você é gay, hétero ou bissexual... você simplesmente segue seu fluxo. LEISHA HAILEY: Ela mostra as belezas da nossa diversidade e a comunidade, e reflete, de alguma modo, como a comunidade gay se parece. OFF: Mesmo considerando os grandes avanços gays que os canais de TV fizeram, nunca houve uma série como “The L Word”. (THE L WORD DEFINED, 2004)

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2.

(HOMO) SEXUALIDADES HUMANAS: UMA QUESTÃO DE DESEJOS

O sexo, o desejo, a atração, a orientação, a cultura, as relações: o que é a homossexualidade? Neste capítulo pretendo levantar uma breve história das sexualidades humanas com foco principal nas relações entre iguais, entre os mesmos gêneros. Entre as mulheres e os homens que não se encaixam exatamente nos padrões estabelecidos, sejam pela religião, pelo Estado, pela medicina ou pela sociedade. Desta forma, é importante antes de tudo, explicar que não vou questionar a fundo os porquês de ser ou não homossexual, heterossexual, bissexual ou transexual. A ciência e a mídia tentam há muitos anos definir se é uma questão de influências, de genes ou de cultura. Como afirma João Silvério Trevisan, as “causas” da homossexualidade e toda sua discussão parecem ser dispensáveis e equivocadas. “Quando perguntado a respeito, Jean Genet respondeu que buscar a origem da homossexualidade lhe parecia tão irrelevante quanto saber por que os olhos eram verdes” (2000, pág. 31). Não existem meios de, neste momento, explicar porque uma mulher prefere ter relações afetivas e sexuais com outra mulher. Mas temos como mostrar, baseado em literaturas e relatos, um parâmetro da forma como a sociedade ocidental através dos tempos procurou transformar o amor gay1 em algo errado, imoral e criminoso. E, da mesma maneira, levantar a questão de que a realidade não é bem essa, de que na verdade, trata-se muito mais de uma questão de desejos. Algo importante que também gostaria de deixar claro é que tenho como objetivo principal concentrar-me nas mulheres lésbicas, por vários motivos. Primeiro, porque são elas

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A palavra gay é usualmente atribuída aos homens que têm relações homossexuais. Mas essa definição depende do país e da cultura em que a palavra é inserida. No dicionário on-line Michaelis (http://michaelis.uol.com.br), ao pesquisar gay, aparece como referência o termo “guei”, cuja definição é: “sm (ingl gay) pop 1 Homossexual masculino. 2 ch Veado, bicha.” Já na versão americana do site Wikipedia (http://en.wikipedia.org/), “While gay applies in some contexts to all homosexual people, the term lesbian is sex-specific: it is used exclusively to describe homosexual women. Sometimes gay is used to refer only to men.” Ou seja, em sua origem inglesa, na qual anteriormente significava feliz ("carefree", "happy", ou"bright and showy"), gay define as práticas, cultura e pessoas homossexuais, indistintamente. Como o objeto da pesquisa é uma série norteamericana, que usa muito o termo gay para se referir às mulheres, pretendo aqui usar esse termo com essa significância, não somente para os homens. Quando esse for o objetivo, usarei complementos para ajudar no entendimento.

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as personagens principais da série “The L Word”, objeto de minha análise. Segundo por ser este um universo no qual me insiro. Outro motivo é um detalhe específico dos estudos da homossexualidade, que percebi ao realizar a pesquisa para elaborar essa monografia. Os livros, textos, artigos que li e sites que visitei, confirmam o fato levantado por Trevisan (2000, pág. 11) de que muito pouco ou quase nada existe em literatura sobre a homossexualidade feminina. A maior parte é voltada especificamente para o relato e estudo dos gays masculinos, travestis ou transexuais. Sobre as mulheres, o máximo que essa literatura dedica é um capítulo ou citações. Poucos e difíceis de encontrar à venda são os livros que aprofundam o tema, como o fez Tânia Navarro-Swain em “O Que é Lesbianismo?” (2000) 2, base constante de meu discurso. Mesmo sendo este um livro de bolso, pertencente à coleção “Primeiros Passos” da Editora Brasiliense, ou seja, de poucas páginas e para leigas, o trabalho da professora e historiadora destaca-se não só como um guia mas também como uma grande fonte de questionamentos sérios sobre a forma que a história lida com as mulheres, lésbicas ou não. Da mesma forma, encontrei somente na internet outras fontes sobre a lesbianidade3, em sites, teses, trabalhos e artigos de professoras e alunas com os mesmos questionamentos que eu: por que se fala tão pouco sobre a mulher homossexual?

Questionar leva a abrir os horizontes, aprender coisas novas ou mesmo desaprender preconceitos, normas e valores afirmados pelo senso comum. Se a tradição está presente para falar do lesbianismo como um desvio, uma aberração, cabe-nos indagar o que é esta tradição que faz da lésbica um ser oculto e obscuro, que lhe reserva um espaço de perversão e de desordem num mundo que se quer transparente, definindo os seres humanos em apenas dois: mulheres e homens. [...] Assim, as relações sociais que escapam aos modelos concebidos são marginalizadas, esquecidas ou eliminadas da historiografia, este grande conjunto de histórias que compõem a memória do vivido. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.12)

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O título do livro ainda traz a palavra lesbianismo e, da mesma forma, a palavra é usada em todas as citações. No entanto, o correto seria retirar da palavra lésbica o sufixo ismo, que é associado à doença. O termo lesbianidade vem sendo adotado pelas organizações sociais de lesbianas em oposição ao termo lesbianismo por sua associação com a concepção de homossexualidade como doença, que vigorou no CID-10 (Código Internacional de Doenças) até a década de 80. 3 Durante o trabalho, usarei as palavras lesbianidade e lesbianas, mesmo não sendo muito usuais.

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A conclusão que chego é a de que, infelizmente, o machismo continua impregnando nossa sociedade, sendo encontrado em todos os lugares. Até mesmo no meio homossexual. Por isso, neste capítulo farei apenas citações sobre a história dos gays homens, travestis e transexuais. Tenho como ideal a igualdade dos gêneros e pretendo aqui não cometer equívocos sexistas que são muitas vezes levados adiante sem que percebamos. Para isso, pretendo seguir as recomendações de Assumpção e Bocchini (2002). E por isso, tentarei abordar fielmente, e com olhos atuais, a história das mulheres que amam mulheres.

2.1.

A importância do sexo

De todas as características do ser humano, uma ganha destaque inigualável dentro da sociedade moderna: o sexo. Como um definidor de gêneros, de patologias, de valores de mercado, de padrões de consumo, de dogmas religiosos, de posturas sociais e com base em seus vários aspectos, a sexualidade se transformou numa das mais importantes significantes da cultura humana. Antes de entrar mais detalhadamente em discussões dos diversos papéis da sexualidade e suas orientações, é importante ter uma noção do que é esse sexo:

O sexo é um nome dado a coisas diversas que aprendemos a reconhecer como sexuais de diversas maneiras. Certas coisas sexuais podem ser mostradas, como, por exemplo, as descrições médico-fisiológicas do aparelho genital. Outras, como descrições de sensações corporais são reconhecidas pela mostração e pela interpretação, como orgasmo, que aprendemos que é 'algo sexual' mas que poderia ser sinal de possessão pelo demônio ou espasmo muscular. Outras, como descrições de sentimentos afetivos ou amorosos, são puras realidades lingüísticas, que não podem ser mostradas e nas quais o suporte corporal é absolutamente dispensável como critério de uso correto dos termos e expressões. Outras, finalmente, como regras de parentesco e valorização moral de condutas dependem do conhecimento prático ou abstrato de instituições culturais e sociais complexas, sem relação direta com atos e condutas observáveis. (COSTA, 1996, p. 64)

A partir deste conceito de Jurandir Freire Costa, é possível perceber como as definições de sexo variam conforme os campos do direito, da biologia, da religião e da cultura.

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No entanto, uma das definições é imposta à sociedade ocidental como correta e imutável: a da divisão binária homem/mulher. Esta divisão, deixa-se claro, não no aspecto físico e biológico, cuja diferença é óbvia, mas sim no sentido de gênero social. Se pegarmos como exemplo a religião, encontramos as personagens de Eva e Adão. Como determinantes de papéis sociais, talvez não haja exemplo melhor do que uma sociedade paternalista pode fazer com a cultura de um povo. Para os católicos, Eva, a primeira mulher, surgiu em segundo lugar, a partir de pedaços do corpo de Adão, o primeiro homem. Este, uma imagem de Deus, seria o ser superior, dominador, aquele que se viu obrigado a corrigir os erros de Eva. Ela, por sua vez, era uma mulher sedutora, fraca, com o único objetivo de ser um complemento e uma ajuda ao homem, e foi dominada pela tentação. A mulher conhece a Serpente e sua “árvore da ciência e da sabedoria”, come o “fruto proibido”, comete o “pecado original” e acaba expulsa do paraíso. Numa livre interpretação, Eva toma conhecimento de seu real papel no mundo, do direito de tomar decisões, do seu poder e força, de sua sexualidade e acaba punida por isso, tendo que sofrer as dores do parto e tornando-se cada vez mais submissa ao seu Adão. No entanto, se procurarmos dentro de diferentes conceitos religiosos, como os do Judaísmo, encontramos outra versão dos fatos. Segundo o Rabino Manis Friedman4, no livro dos Gênesis da Torá, ou Bereshit5, Chava (Eva) era ou outro lado da imagem de D’us (Deus). Ela come o fruto para experimentar o sabor da vida, de estar imersa nela. A transgressão acontece pois ela parte de um mundo Divino para um mundo real, onde somente o aqui e o agora importam, onde não há ponto de vantagem a partir do qual discernir o bem do mal. Ela teve a coragem de ver o outro lado das coisas. E, com isso, entendeu a mensagem de D’us.

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Disponível em , acesso em 15 nov. 2007. Torá (do hebraico ‫ּתֹורה‬, ָ significando instrução, apontamento, lei) é o nome dado aos cinco primeiros livros do Tanakh (também chamados de Hamisha Humshei Torah, ‫ חמשה חומשי תורה‬- as cinco partes da Torá) e que constituem o texto central do judaísmo. É um substantivo feminino. Já Bereshit ‫תישארב‬, Bereshit - No princípio conhecido pelo público não-judeu como Gênesis (disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 19 nov. 2007.) 5

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Eva entendeu a necessidade de D'us de que este mundo inferior, um mundo contaminado pela morte e pelo pecado, fosse elevado e unido a Ele. Ela entendeu que os seres humanos devem deixar o Éden e descer ao mundo inferior, e ali criar um lar para D'us. [...] E assim ela comeu da árvore, e convenceu Adão a fazer o mesmo. Quando D'us perguntou a Adão: "Tu comeste da árvore?" - não foi uma repreensão ou censura. Ele estava admirando a sabedoria de Adão em ter tomado a decisão correta. Adão, em sua inocência, admitiu que fora a sabedoria de Eva, não a sua. "Ela deu-me o fruto da árvore, e eu comi." [...] O mundo agora pode tornar-se confortável para Ele, quando as coisas que O definem - Seus mandamentos - são praticados. Assim fazendo, preparamos o mundo para nossa suprema redenção. (FRIEDMAN, 200-, disponível em , acesso em 15 nov. 2007.)

Apesar de dois pontos de vista completamente diferentes sobre o mesmo dogma religioso, a primeira versão, a da Eva pecadora e submissa ao marido, permaneceu. Ora, essa representação da origem da humanidade católica não poderia estar mais envolta em preconceitos e sexismos. E foi principalmente a partir dela que a heterossexualidade se tornou o caráter normativo da representação social do ocidente, com a reprodução como único objetivo das relações sexuais. O desejo humano se tornara uma “culpa”, um “pecado”. Como acrescenta Tânia Navarro-Swain, a “Bíblia, o Alcoorão, narrativas ligadas a um deus masculino, não são verdadeiros manuais de comportamento e normatividade relativos à construção do social e dos gêneros, dos papéis femininos e masculinos?” (2000, p.28)

Dois pólos, um superior e outro inferior, marcados pelo signo do sexo, da sexualidade, da reprodução, cada um em seu papel segundo sua “natureza” dotada do selo divino. A heterossexualidade como norma e as relações assimétricas entre os corpos sexuados ficam assim instituídos no imaginário ocidental, ordenando as práticas e relações no Ocidente cristão. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p. 17)

Aliás, a reprodução não só fez da heterossexualidade uma regra como também uma necessidade em sociedades que buscavam o crescimento do Estado. A partir dela, foi determinada a forma como as famílias seriam estabelecidas. Se não houvesse a relação entre homens e mulheres, não haveria novos cidadãos. Sem novos cidadãos, o Estado não seria formado. Em algumas cidades da Grécia Antiga, como Esparta, por exemplo, era o Estado

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quem determinava quando os homens e as mulheres teriam relações sexuais e, conseqüentemente, filhos, já que eles viviam separados e tinham vidas sociais completamente diversas6. Ainda nesse contexto, somente para exemplificar, a mulher era tão pouco considerada pela sociedade, que para um jovem grego de boa posição social ser iniciado sexualmente, devia fazê-lo com gregos másculos, adultos, maduros e de boa posição político-sócioeconômico-intelectual. Mas é importante acrescentar que as mulheres, sendo banidas de todas as atividades políticas, culturais, sociais e esportivas, formavam outra comunidade, um gueto, onde tinham também sua iniciação sexual entre elas. Anos mais cedo, e nesse contexto, viveu Safo, poetisa grega da ilha de Lesbos, que foi considerada por Platão a Décima Musa7. Safo era uma mulher emancipada, que participava da política desde os 19 anos e que cantava em suas poesias o amor pelas mulheres. Era sacerdotisa de Afrodite e participava de ritos de iniciação na escola de moças que havia fundado, a que é considerada tanto a primeira escola para mulheres, como a primeira escola de aperfeiçoamento da história, com o ensino de música, canto e poesia. Suas alunas recebiam o nome de hetairai (amigas) e muitas delas tiveram relações com Safo. A que mais marcou a vida da poetisa foi Átis, que foi retirada da escola pelos seus pais. Ao perdê-la, Safo escreveu o poema “Adeus a Átis”, cujos versos líricos são considerados os mais belos de todos os tempos e são adotados como modelo de singeleza e de sobriedade da forma literária. Safo, e sua ilha de Lesbos, serviram também para denominar o amor homossexual feminino. A expressão “práticas sáficas” virou sinônimo de “práticas sexuais entre mulheres”. A palavra lésbica, por sua vez, veio exatamente do termo habitantes de Lesbos. Apesar da forte influência e da poesia de rara beleza, e como em muitos momentos da história do mundo, as vivências da mulher lésbica Safo simplesmente foram retiradas das páginas dos livros, sua obra denegrida e sua poesia queimada como heresia. (NAVARRO-SWAIN, 2000) 6

Sobre essa questão, ver Pastre (1987, p81). “Há quem afirme serem nove as musas. Que erro! Pois não vêem que Safo de Lesbos é a décima?” – Platão. Disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 15 nov. 2007. 7

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Exatamente por isso, com a visão do Cristianismo Ocidental, essa história tornouse lenda, como aconteceu com várias rainhas, sacerdotisas e guerreiras da Era Medieval. Na versão cristã, muitas vezes elas se tornavam reis, sacerdotes e guerreiros. (IDEM, 2000) Em seu período de maior poder, na Idade Média a partir do século XI, a Igreja desenvolveu uma caça contra os homossexuais e todos aqueles que se levantavam contra a moral católica. Resolveram, com muita violência, puní-los para que se tornassem exemplos, assim, centenas de lésbicas foram queimadas como bruxas, e homossexuais em geral eram usados como “lenha” para as fogueiras purificadoras da santa igreja. Somente a heterossexualidade com fins reprodutivos era o “natural”. Além da igreja, a burguesia trouxe a necessidade de se determinar quem era o herdeiro das propriedades dentro de uma sociedade paternalista e, assim, submeteu as mulheres ao domínio masculino. Com isso, aumentou mais ainda a discriminação em relação a toda atividade sexual que não tivesse na reprodução “controlada” seu objetivo. Somente a família, com um pai provedor e forte e uma mãe subjugada e carinhosa poderia existir dentro de uma sociedade burguesa, “natural e correta”.

Essas representações mediadoras das relações entre mulheres e homens marcaram de valores o discurso da história “científica”, que se inicia no século XIX; penetraram a pesquisa média e biológica quando decidem a respeito do normal e do patológico nas práticas humanas; abriram espaço para a instituição de modelos de comportamento definidores do certo e do errado, do bom e do mau, do bem e do mal contido nos sentimentos e práticas que ligam os seres humanos. A heterossexualidade compulsória, fenômeno relativamente recente na história humana, passa a ser a regra universal, o que determina a integração social nos papéis do “verdadeiro” masculino e feminino. Os limites de tolerância de práticas sexuais diversas dependem do grau de hegemonia da heterossexualidade enquanto norma absoluta ou escolha possível; desse modo, nas sociedades onde a reprodução é apenas um dos eixos e não o pivô central das relações humanas, o leque de práticas sexuais aceitas tende a ser mais amplo. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p. 17-18)

Como mostram esses exemplos, através dos tempos, a relação sexual entre homens e mulheres foi sendo forjada como o padrão de sexualidade, enquanto qualquer outra forma de desejo sexual era considerada “anormal”, “perversão” ou “desvio”.

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Apenas a re-historicização das categorias criadas pela sociedade burguesa pode livrar-nos da inversão de causa e efeito contida na interpretação naturalizante de nossa sociedade. Os anormais nada mais são do que construções sociais naturalizadas, as quais derivam de relações de poder que atribuem a eles uma posição de inferioridade e submissão na ordem social. Nossos corpos socializados trazem o passado ao presente e contribuem para a manutenção das categorias sociais e da hierarquia imposta pelo padrão de normalidade burguês. Assim, a desigualdade de poder chega aos indivíduos nos seus próprios corpos e no uso destes, dos prazeres e capacidades reprodutivas. (MISKOLCI, 2002/2003, p.13)

Mas a toda regra, exceções são bem vindas. Em várias culturas e em diversos momentos da história, o discurso normativo não se recai somente sobre o sexo, se tornando este um caráter secundário. Como explica Jurandir Freire Costa, aquilo que unifica e identifica os atos sexuais como da ordem do sexo na cultura ocidental moderna podem inexistir em outras culturas.

Os Sambia, uma tribo na Nova Guiné, tem como princípio da vida o sêmen. Conseqüentemente, o valor do sêmen é que determina a ordenação moral das práticas sexuais. A sua produção e distribuição é feita de diversas maneiras, inclusive aquelas que, na nossa cultura, estão na ordem da identificação com o sexo. Por exemplo: entre os Sambia é costume haver a transmissão de sêmen de homens adultos aos meninos através da felação para que cresçam, adquiram força e possam ser bons produtores de sêmen quando ficarem adultos (COSTA, 1996, p. 67).

Segundo os padrões atuais, essa prática seria classificada como homossexualidade, por ser realizada entre duas pessoas do mesmo sexo, e como pedofilia, por envolver um adulto e uma criança. Mas para os nativos de Sambia, isso não passa de um ritual da tribo.

Conclusão: expressões sexuais usadas para falar de sexo tais como 'o mesmo sexo' e o 'outro sexo' naquela cultura soariam tão estranhas quanto nos pareceria estranho dividir os indivíduos modernos entre 'felaciofílicos' e 'felaciofóbicos' ou definirmos alguém como 'impotente para a felação', se esse alguém, por acaso, dissesse ter nojo ou inibição para praticá-la (COSTA, 1996, p. 67).

A heteronormatividade foi, então, desde o início dos tempos, estabelecida. No entanto, sempre existiram homens e mulheres que não se encaixavam nas definições sexuais e de gênero, que sempre sentiram interesses diversos aos que eram mostrados como “corretos”

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pelo estado, pela medicina ou pela religião. A diversidade sexual é uma característica humana, e os padrões e categorias existem somente no sentido de classificação social.

2.2.

Identificações e identidades diversas

Homens com traços femininos, mulheres com traços masculinos. Homens masculinos que mantinham relações sexuais com outros homens, fossem eles masculinos, femininos ou travestidos. Pessoas que não se sentiam bem nos corpos que haviam nascido e, por isso, mudavam de gênero. Mulheres femininas que sentiam atração sexual, e que praticavam sexo, com outras mulheres, masculinizadas ou não, amigas, professoras, primas, desconhecidas, não importava. Jovens meninas e meninos que atingiam a maturidade sexual sem entender ao certo por que seu futuro deveria ser com alguém do sexo oposto se seu desejo era pelo mesmo sexo. Até certo momento da história, esses homens e mulheres não tinham uma categorização formal. Foi a partir da evolução da noção de sexo que termos e conceitos foram definidos e estabelece-se a idéia da homossexualidade na nossa cultura. Até o século XVIII, a concepção científica dominante da sexualidade era a do one-sex model, onde os humanos tinham um só sexo e a mulher era entendida como um homem invertido e, portanto, inferior. (SILVA, 2004) Por essa concepção, todas as relações seriam homoeróticas, já que envolveriam a fricção de duas partes sexuais iguais, mesmo que uma fosse o inverso da outra. A partir do século XVIII, concebe-se a noção de sexualidade através do two-sex model, que mesmo distante da noção atual, já previa uma diferenciação básica entre o homem e a mulher a partir das diferenças anatômicas.

A invenção dos homossexuais e heterossexuais foi uma conseqüência inevitável das exigências feitas à mulher e ao homem pela sociedade burguesa européia. (...) No modelo médico do one-sex model, o sexo referia-se exclusivamente aos órgãos do aparelho reprodutor. Não era algo invasivo, que perpassava e determinava o caráter, os amores, sentimentos e sofrimentos morais dos indivíduos. Este sexo absoluto, o-

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nipotente e onipresente só tornou-se teórico-culturalmente obrigatório a partir do momento em que se criou a noção da bissexualidade originária. (...) A homossexualidade será, inicialmente, definida como uma perversão do instinto sexual causada pela degenerescência de seus portadores e, depois, como um atraso evolutivo ou retardamento psíquico, manifestos no funcionamento mental feminino do homem (COSTA, 1996, p. 86-87).

A evolução dessa concepção científica de sexualidade acabou influenciando na criação de das noções sociais de sexo, identidade, papel e orientação sexual que são consideradas na classificação de um indivíduo como homossexual. Oficialmente, o termo homossexual foi cunhado em 1869, pelo jornalista austrohúngaro Karl-Maria Kertbeny8, e vinha para explicar a prática: “do mesmo sexo”. Apesar de ter sido criado por um ativista dos direitos homossexuais, no ano seguinte a palavra homossexual entra para os anais da Psiquiatria como um desvio sexual e ganha o sufixo “ismo”.

Na segunda metade do sécluo XIX, foi um militante “uranista” (como se chamava então o homem que praticava sexo com homem) quem criou o termo “homossexualismo” – visando a legitimar biologicamente a “vocação” homossexual e isentar de culpa os seus “vocacionados”. De fato, isso deu início a uma importante mudança de postura da ciência, que passou de condenação à curiosidade científica perante uma anomalia, digamos, moralmente neutra. [...] Mas, como se trata de uma faca de dois gumes, a contrapartida deve ser lembrada para evidenciar a ingenuidade da proposta inicial, pois a situação se tornou rósea apenas negativamente. (TREVISAN, 2000, p.33)

O “homossexualismo”, desta forma, passou a ser sinônimo de doença, de patologia e foi incluído em 1870 na Classificação Internacional de Doenças (CID) como Transtorno Sexual. Bem na verdade, a classificação foi uma desculpa para que os moralistas e preconceituosos criassem leis que baniam os homossexuais e puniam suas práticas com violência e clausura. E, assim, por muitos anos a sociedade burguesa considerou a homossexualidade crime, o que fez com que milhares de mulheres e de homens fossem mortas e mortos por assumirem suas orientações sexuais.

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Após o suicídio de um amigo gay que era chantageado por causa de sua orientação sexual, o jornalista começou a se interessar pelo tema. Karl-Maria Kertbeny se tornou um ativista dos direitos dos homossexuais. Em 1869, um de seus panfletos de militância trouxe o termo homossexual em substituição do pejorativo pederasta. Ele também criou os termos heterossexual e monossexual (quem se concentra apenas na masturbação).

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O estranho é que, apesar dessa classificação da psiquiatria e da medicina que separa um lugar obscuro para as lésbicas e os gays masculinos, segundo um dos pais da psicanálise, Sigmund Freud, a pulsão (sexual) não tem objeto pré-determinado no ser humano e tanto a “homossexualidade” quanto a “heterossexualidade” se desenvolvem socialmente, partindo de certas disposições individuais. Além disso, sob o nome de homossexualidade, se incluem numerosos fenômenos de ordens diversas. Isso porque, segundo ele, todos os indivíduos de nossa cultura possuem uma corrente libidinosa heterossexual e uma homossexual; sendo que a determinação da orientação predominante depende de uma série de fatores não completamente conhecidos. (BARBERO, 1988) E essa análise foi feita no início do século passado, anos antes dessa decisão de categorizar os homossexuais como transtornados mentalmente.

A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo a parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente. (FREUD, 1905, p.146, adição de 1915).

Na Alemanha, por exemplo, em 1871, através do Parágrafo 175 do Código Criminal, as pessoas consideradas gays foram perseguidas e presas. O Nazismo aumentou em dez vezes a abrangência do Parágrafo 175 e em 1937 foi criado o triângulo rosa para classificar as homossexuais masculinos e o triângulo preto para as homossexuais femininas.

Partindo do pressuposto eugênico de que os homossexuais era anormais incuráveis, como os loucos e os aleijados, o nazismo estigmatizou-os com o triângulo rosa e determinou sua eliminação como corolário obrigatório para a boa saúde da sociedade. Tal postura corresponderia, no estado tecnológico atual, à possibilidade de identificar bebês homossexuais ainda em embrião para abortá-los – imitando prática comum na Índia de interromper a gravidez quando se trata de feto feminino. (TREVISAN, 2000, p.33)

Milhares de alemães morreram nos campos de concentração, sem que fosse provado se eram “culpados” ou não, dentro dessa concepção eugênica de homossexualidade co-

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mo transtorno. Mesmo depois do fim da guerra, os que possuíam o triângulo rosa permaneceram presos por causa da citada lei, que só foi revogada com a queda do muro de Berlim em 1990. Enquanto isso, nos Estados Unidos, entrava em vigor o chamado “Código Hayes”. No início da criação do cinema, os homossexuais apareceram em cena em muitas produções. Se não de forma direta, pelo menos de forma sugestionada. O problema é que, sempre que apareciam, era de forma efeminada, caricaturada e como piada, ou então, no caso das lésbicas, com o único intuito de excitar os homens. Os gays não eram levados a sério, ganhavam apelidos e deboches, e sempre apareciam como vítimas, tristes e agoniados. Por outro lado, se uma mulher aparecia como homem, era tida como um objeto de apelo sexual para os heterossexuais masculinos. No filme “Morroco”, de 1930, a atriz Marlene Dietrich aparecia belamente vestida em um smoking, como parte de um show. Singela e sensual, atraía os olhares de todos na sala, homens ou mulheres. No final da cena, ela dá um beijo de leve em uma das mulheres da platéia, o que chama a atenção do seu futuro companheiro na trama 9. Mas, mesmo assim, eles e elas apareciam. Em 1934, a Associação dos Produtores e Distribuidores de Filmes da América (MPPDA) decidiu que o cinema precisava de uma “faxina” em prol dos bons costumes e da moral. Através de Will H. Hayes, a associação em conjunto com a Igreja Católica dos EUA, lançou uma série de normas que obrigavam os filmes a não usarem palavras de baixo calão, não mostrar nudez, não insinuar o sexo e, entre outras coisas, a não apresentar perversões sexuais (leia-se homossexualidade, transexualide, etc.) nas suas histórias. A censura dentro da indústria cinematográfica obrigou que partes inteiras de filmes fossem cortadas e que em nenhum momento fosse mencionada a sexualidade das personagens. O “Código Hayes” vigorou até o ano de 1967, quando foi criada uma nova classificação dos filmes. Essas normas foram

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Para mais informações sobre a homossexualidade no cinema, ver o documentário “The Celluloid Closet”, de 1995 (HBO), dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman e baseado no livro homônimo de Vito Russo, de 1981.

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mais um reforço à característica negativa que se atribuía às lésbicas, pois, além de não se poder falar no assunto, elas se tornaram as vilãs da história, como em “A Filha de Drácula”, de 1936, ou em “Rebecca”, 1940, ou as que se matavam ao final da história por não agüentarem a “culpa”, como em “The Children Hour”, de 196110. Logo após esse período, em 1948, o zoólogo Alfred Charles Kinsey11 lançou um instituto de estudos da sexualidade e dois livros muito controversos, mas que foram fundamentais para a quebra de diversos tabus. “Sexual Behavior in the Human Male” (1948) e “Sexual Behavior in the Human Female” (1953) foram responsáveis por escândalos, mas também por conseguir abalar, pela primeira vez em muitos anos, a heteronormatividade que se instalara. Suas obras influenciaram tanto o comportamento sexual da sociedade norte-americana, principalmente nos anos 60, que muitos lhe dão mérito pela revolução sexual que ali fora iniciada. Além da valorização do desejo em vez da necessidade de reprodução como uma das causas das relações sexuais, os estudos foram fundamentais para o entendimento da diversidade sexual de mulheres e homens. Para Kinsey, a classificação da sexualidade humana não se restringia apenas a hetero e homossexual. Ele criou a seguinte categorização: heterossexual exclusivo; heterossexual ocasionalmente homossexual; heterossexual mais do que ocasionalmente homossexual; igualmente heterossexual e homossexual, (também chamado de bissexual); homossexual mais do que ocasionalmente heterossexual; homossexual ocasionalmente heterossexual; homossexual exclusivo; indiferente sexualmente. Se os relatórios12 estavam ou não corretos e se essa categorização eram necessários, não é possível afirmar, já que, na prática, a única diferença entre um

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Neste filme, Shirley McLaine é Martha, apaixonada por Karen (Audrey Hepburn). Ela se mata após serem chantageadas por algo que, imagina-se, seja sua orientação sexual. No documentário “The Celluloid Closet” (1995), Shirley McLaine revela que, na época, a lesbianidade das personagens não foi discutida ou revelada pela equipe do filme. Afirma ainda que, se tivesse sido, com certeza Martha lutaria por suas escolhas, tentaria uma alternativa ao suicídio. Mas, segundo ela, o tema nunca foi levantado, nem mesmo em conversas com Hepburn, sua companheira de cena. “The profundity of this subject was not in the lexicon of our rehearsal period. Audrey and I never talked about this. Isn't that amazing. Truly amazing.” – (MCLAINE, 1995). 11 Ver ou o filme “Kinsey” (2004), de Bill Condon, com Liam Neeson no papel principal. 12 É com base no citado "Relatório Kinsey" que se costuma calcular em 6% as pessoas exclusivamente homossexuais, e 4% as predominantemente homossexuais, que ocupam os números 5 e 6 da "Escala Kinsey".

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homossexual e um heterossexual é o seu objeto de desejo. Mas o fato é que como um resultado prático dos estudos de Kinsey, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria removeu a homossexualidade da lista de desordens mentais13. O mesmo aconteceu com a Organização Mundial de Saúde (OMS), que também passou a não considerar a homossexualidade como uma doença, somente a partir de 1986. O sufixo “ismo” é, então, retirado da palavra homossexual e, até hoje, luta-se para acabar com o uso em textos e notícias da imprensa dos termos “homossexualismo” e de suas associações: “transexualismo”, “tranvestismo” e “lesbianismo”. Ao mesmo tempo, ganhavam força Estados Unidos outras denominações, como butch (lésbica masculinizada), dyke (correspondente ao pejorativo “sapatão”), gay, faggot ou fag (correspondente ao “bicha”) e, na Inglaterra, o termo queer (estranho).

Este termo (queer), que em inglês significa torcido ou oblíquo (que em português poderia ter a tradução mais contextual de esquisita), era usado nos Estados Unidos e na Inglaterra em tom de rejeição e degradação para se referir às pessoas gays, lésbicas e transgêneros. Entretanto, no final dos anos oitenta foi tomado para si por pesquisadores que trabalhavam as temáticas gays e lésbicas e pelas pessoas que eram alvo da estigmatização, ressignificando-o e reapropriando-se dele de modo afirmativo para se referir a todos aqueles indivíduos cuja sexualidade (e não só orientação sexual) extrapolasse os limites da heterossexualidade binária. Como uma ave fênix, este termo se constitui em um espaço de significação aberta e volúvel que incorpora lésbicas, transgêneros, transexuais, gays, sadomasoquistas, swingers, e todos aqueles seres que não alcançam o status de sujeitos; seres “abjetos”, em termos de Butler (2002,19-20), devido à sua condição degradada e excluída, que habitam zonas invisíveis ou inabitáveis da vida social, conformando o “exterior constitutivo” da esfera dos sujeitos. (LACOMBE, 2005, p. 4-5)

No Brasil, as palavras “viado”, “bicha”, “boiola” “sapatão”, “fanchona” e “entendida” ganham também as ruas como outras denominações. Em comum, todas elas têm o aspecto negativo, pejorativo, e surgiram para agredir ou ridicularizar. Mas alguns termos foram adotados pelas comunidades de lésbicas e de gays masculinos que viraram o jogo e passaram a ter posturas positivas em relação a essas palavras. Gay, dyke, queer e entendida ou 13

Apesar disso, na CID 10, ainda em vigor, estão descritos vários transtornos de identidade sexual (F64); transtornos de preferência sexual (F65) e transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e orientações sexuais (F66).

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entendido serviram, de certa forma, para que houvesse uma maior aceitação social da homossexualidade.

Segundo antropólogos, o entendido rejeitava os termos pejorativos, ligados ao gênero, tais como viado, louca ou bicha, assim como o comportamento vistoso e afetado. Ao contrário, o entendido preferia um termo de definição de sua identidade que refletisse uma persona pública mais resguardada. Além disso, MacRae sugeriu que o entendido adotava um novo comportamento sexual „igualitário‟, que não imitava a díade ativo/passivo, masculino/feminino associada à interação tradicional, hierárquica, homem/bicha. (GREEN, 1999, p. 308)

Na realidade, muito pouco depende uma relação sexual consensual do termo que a classifica. Fugindo do conceito forjado de necessidade de procriação, o fato é que ela acontece na maioria das vezes por haver atração mútua, indiferente se forem homens ou mulheres os sujeitos dessa atração. Mas, a ciência, o estado e a religião precisam criar nomes determinantes desses sujeitos. Hoje em dia, questionam-se muito as chamadas identidades gays. Não é possível determinar uma única característica que identifique uma pessoa como homossexual. Até mesmo o uso deste termo passa a ser questionável. De fato, o que é um homossexual? O que é ser lésbica? Ou então, como levanta Navarro-Swain, como alguém pode ser uma prática sexual?

Meu argumento é que o lesbianismo não pode constituir uma identidade, já que esta denominação não é senão um conjunto de questões, de práticas, diluídas no questionamento das categorias mulher e gênero. [...] Afinal, o que é o lesbianismo em uma rede de sentidos dominada pela heterossexualidade, tal como se apresenta em grande parte das teorias feministas? [...] Não é possível esquecer a frase de Witting: „Uma lésbica não é uma mulher‟ (1980:53); definição em negativo, locus maior de resistência ao patriarcado. Mas essa própria afirmação ainda se refere ao quadro de pensamento que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência central são a sexualidade e o sexo. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.91-93)

As identidades são tão diversas e criadas de forma tão individualizadas, que não é possível generalizar estabelecendo conceitos definidos sobre o que seja a pessoa heterossexual, o gay, a lésbica, o transexual, o bissexual, entre outros.

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Neste mundo instituído por representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e o paradoxo são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades de todos os tempos. Identidades múltiplas, circunstanciais, deslocamentos imprevisíveis das pulsões em torno da pessoa, não de sexos definidos, assim seriam identidades múltiplas construtoras de uma nova ordem sexual. (NAVARROSWAIN, 2000, p. 95)

Mesmo assim, existem, como vimos, vários componentes construídos pelas relações sociais que acabam por categorizar a sexualidade humana. E é, a partir deles, que quem não se encaixa em algum padrão tenta encontrar seu lugar no mundo.

Atualmente, a maneira mais generalizada que dispomos para definir quem transa com o mesmo sexo é a categoria de “homossexual”, com todas as suas limitações. Por mais daninhas que essa categorização possa ser, enquanto restritiva e negativa, trata-se de um instrumento linguístico. [...] Se as objeções à “construção de uma identidade guei” fazem sentido, também é verdade que não se pode negar uma denominação qualquer ao desejo, ainda que por mera questão de método. [...] Pelo simples fato de existir o desejo entre pessoas do mesmo sexo, é necessário referir-se a ele sob algum tipo de denominação; caso contrário, no limite acabaríamos voltando aos tempos da sufocante e hipócrita invisibilidade (“o anor que não ousa dizer seu nome”), que só reforçava os mecanismos repressivos. (TREVISAN, 2000, p. 37-38)

A classificação pelo sexo biológico significa ser macho, fêmea ou ainda intersexual ou hermafrodita. A identidade de gênero quer dizer ser mulher ou homem, mas o papel de gênero já classifica a forma como nos comportamos na sociedade, ou seja, de formas masculina, feminina, andrógina (SUPLICY, 1986). Esse papel pode ser definido por uma série de questões, como pela vivência pessoal, pela cultura, pelo estado, pela religião, e, na sociedade ocidental paternalista, temos as seguintes predominâncias:

O papel de gênero que predomina para homem é de trabalhador, provedor, chefe da família e líder, atividades que requerem traços de personalidade considerados masculinos, tais como assertividade, confiança, racionalidade, seriedade, força, coragem e independência. A mulher deveria se responsabilizar pelo cuidado com os filhos, a casa e os relacionamentos familiares, pois tem traços femininos como dependência, cooperação, afetividade, sensibilidade e lealdade. (NUNAN, 2003)

Já a orientação sexual é exatamente a tendência de o desejo sexual ser voltada para pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto ou ainda para os dois casos. Foi daí que surgiram

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os termos homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade. Quando uma mulher sente atração sexual por outra mulher, ela acaba se orientando para ter relações homo afetivas e eróticas. Mas isso não significa necessariamente que ela precise, para isso, assumir um papel sexual diferente do seu. O mesmo se aplica com os homens. É nesse sentido que a confusão entre papel de gêneros e orientação sexual se estabelece. Os estereótipos mostram os homossexuais como seres desconfortáveis com suas identidades de gênero, querendo modificar seu sexo biológico (NUNAN, 2003).

De acordo com alguns autores, estes estereótipos provêm da premissa errônea de que os componentes da sexualidade humana são inseparáveis, e que se um indivíduo difere da norma em um destes componentes, deve diferir também em todos os outros. No entanto, a maioria dos homossexuais não está confusa no que se refere à sua identidade de gênero: tem certeza de serem homens/mulheres, e poucos adotam um comportamento efeminado/masculinizado. Neste sentido, pode-se dizer que “a tolerância para com a homossexualidade seria proveniente de uma mudança de representação dos sexos, não apenas de suas funções, de seus papéis a nível profissional e familiar, mas de suas imagens simbólicas”. (ARIÈS, 1985: 80, apud NUNAN, 2003)

Por exemplo, uma mulher pode ser forte, ter cabelos curtos, não usar saias e ter muitas tatuagens, ou seja, características socialmente masculinas, e, nem por isso, ser homossexual. E, por outro lado, existem mulheres lésbicas extremamente femininas, com cabelos compridos e que só usam vestidos e jóias. Da mesma forma, um homem pode ter características do papel sexual feminino e, mesmo assim, ser heterossexual. São muito comuns hoje em dia os chamados metrossexuais, que fazem as unhas, pintam os cabelos, usam cremes para o rosto e corpo e cuidam excessivamente da imagem. E existem aqueles homens musculosos, másculos e machistas que só fazem sexo com outros homens. Qual a diferença essencial entre esses vários tipos de seres humanos? Volto a afirmar: apenas seu objeto de desejo sexual. As características assumidas ao longo da vida, como estilo de roupas e cortes de cabelo, são variáveis individuais, construções familiares, sociais e culturais, únicas e singulares. Por isso, a mulher tem o direito de assumir o papel de gênero que lhe convier, devendo ser respeitada por isso. E, de forma clara, isso não depende de sua orientação sexual.

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A partir dos anos 70, esses vários questionamentos sobre sexo, gênero e identidade começaram a ser mais explícitos socialmente, os preconceitos começaram a ser combatidos com mais veemência, as mulheres lésbicas começaram a se questionar por que tinham que ser taxadas negativamente ou simplesmente excluídas da História que é ensinada. E principalmente constataram o fato de que eram discriminadas duplamente: por serem mulheres e por serem lésbicas.

2.3.

O início do movimento LGBT

Um dos grandes responsáveis pelo início deste questionamento a respeito de identidades foi o Movimento Feminista, uma revolução do século XX que foi fundamental não só para a liberdade sexual que aos poucos era criada, como também para a conquista dos direitos das mulheres, de uma posição mais justa dentro da sociedade e da diminuição da violência física e moral a que eram submetidas normalmente. Após a segunda guerra mundial, o feminismo sofre a influência de obras como “Le Deuxième Sexe” (1949; O segundo sexo), da francesa Simone de Beauvoir, e “The Feminine Mystique” (1963; A mística feminina), da americana Betty Friedan. No Reino Unido destacou-se Germaine Greer, australiana de nascimento, autora de “The Female Eunuch” (1971; A mulher eunuco), considerado o manifesto mais realista do women's liberation moviment (movimento de libertação da mulher), mundialmente conhecido como women's lib. Nesse momento, o que importava mais para as mulheres era descrever sua condição de oprimida pela cultura masculina, de revelar os mecanismos psicológicos e psicossociais dessa marginalização e de projetar estratégias capazes de proporcionar às mulheres uma liberação integral, que incluísse também o corpo e os desejos. Além disso, contam-se entre as reivindicações do moderno movimento feminista a interrupção voluntária da gravidez, a radical igualdade nos

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salários e o acesso a postos de responsabilidade. A partir deste momento, as lésbicas também ganham forças. O movimento feminista foi o principal responsável pelo início da libertação e visibilidade das mulheres gays.

A história do movimento das mulheres mostra a presença constante de lesbianas tanto nas práticas quanto nas políticas de reivindicações como nas reflexões teóricas. [...] O feminismo cunhou a categoria gênero, cultural, opondo-se a sexo, biológico, e assim desfez em parte a noção de essência, de um fundamento intrínseco para os seres, que definiria mulheres e homens conferindo-lhes papéis segundo sua natureza. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.87)

É importante citar também, neste contexto revolucionário, duas datas: 28 de junho de 1969 e 19 de agosto de 1983. No dia 28 de junho de 1969, um ato de violência foi responsável pela criação da primeira data em comemoração ao orgulho LGBT 14. Nesta data, policiais invadiram, como de costume, o bar gay Stonewall Inn, em Greenwich Village, Nova York e bateram em vários freqüentadores. Mas dessa vez, eles reagiram. Por quase quatro noites, os gays se defenderam dos abusos dos policiais na mesma moeda. Um ano após o incidente, cerca de 10 mil mulheres e homens homossexuais marcharam pelas ruas da cidade pedindo justiça e pregando o orgulho gay. Foi o início das Paradas do Orgulho LGBT.

Entre os anos de 1969 e 1980, a chamada identidade gay surgiu, nas grandes cidades brasileiras, juntamente com os primeiros movimentos pelos direitos dos homossexuais. A construção dessa identidade foi um processo gradual, que começou nos anos 50 e 60, mas se estabeleceu na década de 70. Ela aconteceu graças, entre outros fatores: ao espaço social conquistado por homossexuais nos anos 60; à difusão de idéias do movimento gay internacional; e a uma série de mudanças culturais trazidas pela Revolução Sexual. A partir dela, ativistas homossexuais e diversas feministas aliaram-se contra o sexismo e a cultura machista, lançando as bases para a construção de uma identidade e um movimento homossexual organizado. (SILVA, 2004, p.23)

Já no dia 19 de agosto de 1983, um grupo de mulheres realizou a primeira manifestação contra o preconceito às lésbicas. Os donos do Ferro‟s Bar, localizado no centro de

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A sigla LGBT, que traz as palavras Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros, é utilizada atualmente para identificar todas as orientações sexuais minoritárias e manifestações de identidades de gênero divergentes do sexo designado no nascimento. Incialmente, o termo mais comum era GLBT, mas cada vez mais se usa a versão LGBT com a intenção de reforçar o combate à dupla discriminação de que são alvo muitas mulheres homossexuais (por serem "mulheres" e por serem "homossexuais").

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São Paulo e tradicionalmente freqüentado por lésbicas, agrediam verbalmente e usavam de violência policial contra as clientes. Após eles impedirem que elas distribuíssem o boletim lésbico “ChanacomChana”15 no estabelecimento, as mulheres reuniram, nesta data, ativistas gays, feministas e parlamentares da época para uma passeata em frente ao bar. O jornal Lampião de Esquina16 chamou o movimento de “nosso pequeno Stonewall Inn”. Atualmente, a data vem sendo celebrada por alguns grupos lésbicos como o Dia Nacional do Orgulho Lésbico.

Ambas as datas têm muito em comum: ocorreram em dois grandes centros urbanos, Nova York e São Paulo, em tempos sombrios (no Brasil ainda vivíamos sob a ditadura militar), quando a homossexualidade era considerada doença, pecado ou semvergonhice e vítima de intensa repressão. (MARTINHO, 2007, disponível em , acesso em 10 nov. 2007)

A partir dos anos 70, a criação de movimentos organizados incrementou a luta pelos direitos e pelo fim das leis que criminalizavam a homossexualidade. A palavra de ordem passou a ser assumir-se. Melhorias foram conquistadas. Nos EUA, por exemplo, os movimentos forçaram a retirada da classificação de doença da homossexualidade pela Sociedade de Psiquiatria, conseguiram que dezoito estados anulassem as leis que puniam criminalmente a sodomia, e que fossem aprovadas leis proibindo a discriminação em locais de trabalho e moradia. Na França, várias revistas voltadas para as lésbicas surgiram nos anos 70: “Désormais”, “Quand les femmes s’aiment”, “Bulletin des archives lesbienes”, “La grimoire”, “Lesbia” (NAVARRO-SWAIN, 2000). Em 1978 também foi fundado na Europa o ILGA – International Lesbian and Gay Association17, uma associação das entidades lesbianas com as entidades

15

. Em 1979, o “LF, Lésbico – Feminista”, lança o jornal “ChanacomChana”, veiculado até 1981. A partir de 1982, o GALF – Grupo Ação Lésbicas Feministas assume a publicação e a transforma em boletim. (1979-2002..., 2004, disponível em <www.umoutroolhar.com.br/25anos.htm>, acesso em 10 nov. 2007) 16 Jornal gay vendido no Brasil, de 1978 a 1981. Para mais, ver a tese de Almerindo Simões Jr., disponível em (acesso em 10 out. 2007). 17 O ILGA é uma federação mundial que congrega grupos locais e nacionais dedicados à promoção e defesa dos direitos os homossexuais, bissexuais e transgêneros. Funcionou por um tempo como órgão consultivo da ONU neste sentido. Ver .

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gays masculinas que atualmente conta com mais de 600 organizações em cerca de 90 países do mundo todo. E foi no mesmo ano que Gilbert Baker cria um dos maiores símbolos do ativismo homossexual: a bandeira do arco-íris. Inicialmente com oito cores18, a bandeira gay (rainbow flag) foi apresentada em 25 de junho de 1978, na “San Francisco Gay Freedon Day Parade”, sendo carregada por 30 voluntários. Em 1979, ela já possuía somente seis cores e, assim, ficou conhecida no mundo todo rapidamente. No Brasil, os anos 70 também foram considerados a “Década de Ouro” para o moderno movimento de afirmação homossexual. Além da criação do jornal “O Lampião”, em 1978, dos grupos SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual, em 1979, e do “Grupo Gay da Bahia”, em 1980, foi criado o primeiro movimento lésbico organizado, o “Grupo LF - Lésbico-Feminista”.

A organização lésbica brasileira se inicia no começo de 1979 quando algumas mulheres ingressam no primeiro grupo homossexual do país, o SOMOS, formando um subgrupo que recebeu várias denominações (facção lésbica-feminista, subgrupo lésbico-feminista, ação lésbica-feminista) até fixar-se, em sua breve vida (de 1979 a meados de 1981) com o nome de Grupo Lésbico-Feminista (LF). Este grupo será pioneiro no tratamento da questão homossexual, dentro do Movimento Feminista, e da questão da mulher, dentro do Movimento Homossexual, bem como na elaboração da primeira publicação lésbica do país, intitulada ChanacomChana (MARTINHO, 2004, disponível em <www.umoutroolhar.com.br/25anos.htm>, acesso em 10 nov. 2007)

Era apenas o começo da luta pelos direitos, mas a palavra orgulho começava a figurar nos discursos dos homossexuais. Como uma das primeiras conquistas formais, fica o fim da classificação de homossexualidade como doença no Brasil, em 1985, devido a um abaixo assinado com mais de 16 mil assinaturas que o Grupo Gay da Bahia, liderados por Luiz Mott, conseguiu reunir. O Conselho Federal de Medicina não teve como negar a lista de assinaturas ao ler nomes como Fernando Henrique Cardoso, Ulysses Guimarães e Mário Covas entre elas. 18

As cores eram: rosa (sexualidade), vermelho (vida), laranja (poder), amarelo (luz), verde (natureza), turquesa (magia), azul (serenidade) e violeta (espírito), segundo o criador Baker. (disponível no site , acesso em 17 nov. 2007)

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Ao contrário do que se imaginava com a organização do movimento homossexual, na década seguinte, o que ficou marcado foram os atos de preconceito e homofobia desmedidos. Tudo porque um determinado vírus iria aparecer deixando uma cicatriz profunda na comunidade LGBT. A revolução sexual dos anos 70 trouxe como conseqüência, além da liberdade, a irresponsabilidade sexual. Muitos homossexuais masculinos se descuidaram ou simplesmente ignoraram a prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, não havia campanhas de conscientização e, para piorar, a Igreja Católica ia contra o uso de preservativos. Da mesma forma, as mulheres lésbicas não tinham onde se informar sobre as formas de prevenção nas suas relações19. Ou seja, o vírus da AIDS (SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) se proliferou tão rapidamente entre os homossexuais, principalmente os masculinos, que de forma impensada, mas providencial para os moralistas, a doença foi considerada a “peste gay”. Alguns homens célebres, como Freddie Mercury, Lauro Corona e Rock Hudson ficaram doentes e morreram em decorrência do vírus HIV20 nos anos 80. Outros, que pegaram a doença nesta década, vieram a falecer nos anos 90, como Cazuza, Caio Fernando Abreu e Renato Russo21. Isso trouxe à tona um fato que eles preferiam manter em segredo por eles, sua orientação sexual. Surgia uma nova e maligna forma de “identificar” os homens que faziam sexo com outros homens.

Não por acaso, a epidemia da AIDS foi imediatamente associada à peste. No decorrer da História, o imaginário coletivo sempre encarou as doenças de massa como castigos impostos. Tal idéia veio cair como uma luva, no caso da AIDS. Seu advento propiciou, na contemporaneidade, esse raro momento de peste que derruba as máscaras. Os fenômenos sociais aparentemente novos que a têm acompanhado constituem, na verdade, apenas a revelação de algo que sempre esteve lá, de modo latente, 19

Infelizmente, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis entre as lésbicas é algo pouco abordado pela mídia ou pela medicina. Os grupos lesbianos cumprem esse papel informativo. A rede de informações “Um Outro Olhar”, por exemplo, desde 1995 desenvolve campanhas de prevenção de DST/AIDS para as mulheres, lésbicas ou não. Ver . 20 Vírus da Imonudeficiência Humana ou, em inglês, Human Imunnedeficiency Virus. 21 Rock Hudson, ator norte-americano, faleceu em 1985. Freddie Mercury, vocalista do Queen, e Lauro Corona, ator, morreram em 1989. Cazuza, cantor, em 1991, Caio Fernando Abreu, jornalista e escritor, e Renato Russo, cantor, em 1996. A maioria deles admitiu ter o vírus da AIDS pouco antes de falecerem.

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mas rigorosamente camuflado. A AIDS nada criou. Ela está exacerbando elementos que as convenções sociomorais não deixavam aflorar à luz do dia. In peste veritas: na peste, o momento da verdade. (TREVISAN, 2000, p.436)

A forma como a AIDS foi associada à homossexualidade masculina serviu para reforçar os sistemas morais e políticos, como o núcleo familiar-monogâmico, ameaçado nas sociedades consideradas permissivas (TREVISAN, 2000). No Ocidente, ela era considerara uma doença exclusiva dos grupos de risco. Esses grupos de risco seriam exatamente as pessoas que usavam drogas injetáveis ou os homossexuais, que, segundo o senso comum estabelecido, teriam uma vida sexual desregrada e inconseqüente, com vários parceiros promíscuos. Mais uma vez os preconceituosos de plantão colocaram numa mesma categoria as delinqüências, o uso de drogas pesadas e a prática homossexual. Não adiantava o fato de ter sido retirado dos anais médicos como doença, a homossexualidade voltara a ter este estigma. A visibilidade dos homossexuais passou a ser uma coisa negativa, pois, na maioria das vezes, eles eram associados a pessoas esqueléticas, com manchas pelo corpo 22, que deveriam ser banidos da sociedade, pois continham um vírus mortal. A desinformação fez com que o preconceito aumentasse desproporcionalmente, já que, muitas vezes, as pessoas achavam que o HIV era transmitido pelo beijo, pelo abraço, por um simples carinho. O engano fez com que muitos homens e mulheres morressem sozinhos, abandonados, sofrendo em silêncio, com as dores das doenças que contraíam em decorrência da AIDS.

Acredito também que muito do pânico (sexual?) frente à AIDS pode estar relacionado com antigas culpas não resolvidas que, através da condenação do outro (o sujo), buscam purificar o acusador, num efeito de catarse. Mas a condenação, sejam quais forem seus motivos, tem efeitos de longo alcance. O terrorismo, usado como eficientíssimo instrumento de controle, irá atingir as gerações futuras muito mais do que as atuais, forjando-lhes uma imagem basicamente negativa da homossexualidade e, por extensão, instaurando novas fobias sexuais. (TREVISAN, 2000, p. 439)

22

O sarcoma de Kaposi comumente aparece como uma mancha cor-de-rosa, vermelha ou púrpura, redonda ou oval.

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Como define muito bem Trevisan em suas palavras, o terrorismo instaurado e incentivado principalmente pela classe médica da época, fez com que muitos jovens crescessem nos anos 80 acreditando que bater em homossexuais não era crime, era “prevenção”. A violência era agora, não só da polícia, como nos anos anteriores, era também dos amigos do colégio, dos vizinhos, de pessoas que passavam nas ruas e simplesmente atacavam um gay andando à noite. O cinema também não ajudava. Vários foram os filmes que incentivavam a violência contra os gays, e nos quais palavras como fag, faggot, queer eram usadas igual água como ofensas. Em 1980, por exemplo, o filme “Parceiros da Noite” (“Cruising”) com Al Pacino, trazia um policial que se infiltrava nos guetos e bares gays para descobrir um assassino serial de homossexuais. O filme, que mostrava abertamente e com violência o assassinato de vários gays, causou uma série de protestos do movimento LGBT. Curiosamente, dez anos antes, o diretor do filme William Friedkin (de “O Exorcista”), havia feito o sensível “Boys in the Band” (1970), sobre um grupo de amigos gays que preparam uma festa de aniversário. Segundo o documentário “The Celluloid Closet” (1995), esse foi um dos primeiros filmes em que nenhum homossexual era vítima, vilão ou morria no final. Em 1985, exatamente para impedir que a imagem do homossexual continuasse a ser divulgada de forma pejorativa, foi criada a Gays & Lasbians Alliance Against Defamation (GLAAD)23. Seu objetivo principal era monitorar a mídia em sua forma de abordagem das questões homossexuais e coibir qualquer tipo de difamação em filmes, jornais, revistas, programas de TV, sites ou outros meios de comunicação. A GLAAD também foi responsável pela criação de cartilhas para que os jornalistas, produtores e escritores aprendessem a usar a imagem de gays e lésbicas com sabedoria e através de retratos mais reais.

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Para mais, ver , acesso em 20 nov. 2007.

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Em meio a esse caos, que trouxe muita tristeza, violência e medo para todos, o movimento lésbico tenta, a durar penas, manter seu campo de ação através da ação mulheres como Míriam Botassi, Rosely Roth e Regina Stella Moreira Pires, entre muitas outras. Elas mantiveram-se engajadas como nunca no movimento pelos direitos, respeito e visibilidade das lésbicas. Como afirma a ativista Soraya Menezes no documentário “Lésbicas no Brasil” (2004), de Maria Angélica Lemos, a criação de movimentos lésbico-feministas só foi possível porque as primeiras lésbicas brasileiras disseram abertamente “eu amo uma mulher” e não ficaram somente nisso, também se organizaram. Míriam Martinho, uma das fundadora do movimento lésbico brasileiro, em artigo publicado em 2006 no site “Um Outro Olhar”, esclarece que após a transformação do LF – “Lésbico Feminista” em GALF – “Grupo de Ação Lésbico Feminista”, em 1981, este passou a ser o único movimento de mulheres exclusivamente lésbicas do país nos anos 80. No entanto, muitas lésbicas organizadas migraram para o Movimento Feminista, que manteve em sua pauta momentos de discussão política sobre a lesbianidade brasileira. Em 1989, começam a surgir outros movimentos lesbianos, como a Rede de Informações Um Outro Olhar. No resto do mundo, os movimentos homossexuais se mobilizaram, como no Brasil, para divulgar a prevenção contra a AIDS e para combater o preconceito. Apesar de não ter havido mudanças significativas nesta década, foi a partir da luta contra a AIDS que os movimentos se tornaram mais fortes e que as Paradas do Orgulho Lésbico, Gay, Bissexual e Transgêneros começaram a ganhar adeptos em todos os países.

2.4.

O orgulho das mulheres que amam mulheres

Os anos 90 trouxeram uma palavra de ordem: orgulho. As paradas conquistaram as ruas do mundo todo, celebrando o dia 28 de junho como o Dia Internacional do Orgulho

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LGBT. Da mesma forma, surgia no Brasil um termo que iria ser fundamental para transformar os homossexuais em um mercado consumidor desejado pela sociedade: a sigla GLS. Trazendo além das palavras “Gays” e “Lésbicas”, a nova identificação Simpatizantes, acrescentava um ar moderno, despreocupado e abrangente à comunidade homossexual.

A genialidade dessa saída foi introduzir num contexto brasileiro, a idéia americana de gay friendly, de modo simples e adequado ao nosso jeitinho. Ou seja, uma apropriação da popularíssima sigla que qualificava certos modelos de carro nas categorias GL (Gran Luxo) e GLS (Gran Luxo Super), bem ao gosto da população média e de teor profundamente contemporâneo – o que facilitou a disseminação e implantação do conceito. (TREVISAN, 2000, p. 376)

Nesse sentido, foi estabelecido um critério que permitia que pessoas não necessariamente homossexuais pudessem passear por ambientes gays e lésbicos sem medo de represálias. Era uma forma de, ao mesmo tempo, democratizar o espaço denominado território gay e, ao mesmo tempo e negativamente, permitir que as “enrustidas” mantivessem sua condição de invisibilidade sem que parassem de freqüentar o gueto. (TREVISAN, 2000) A sigla foi importante também por ter aumentado a divulgação de produções culturais voltadas e feitas por homossexuais.

O caso mais exemplar foi o Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, um amplo painel de filmes que investigam expressões marginais da sexualidade, cuja primeira edição aconteceu em 1993. [...] O que alavancou o Mix Brasil foi o fato de ter inaugurado o primeiro site GLS brasileiro na internet, em 1994, garantindo-lhe prestígio como evento cultural de ponta, que tendia para um underground não apenas glamouroso, mas de grande apelo na mídia. (TREVISAN, 2000, p. 376 – 378)

Dentro do Mix Brasil, foi criada a revista eletrônica Cio, voltada para as lésbicas, veiculada até hoje24. Foram lançados também vários jornais e revistas voltadas para o público homossexual. Entre elas, a carioca Sui Generes, sobre comportamento, e a paulista G Magazine, que mostrava em suas páginas homens famosos nus e, com isso, se tornou uma campeã de

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Ver , com destaque para os artigos da cantora e ativista lésbica Vange Leonel.

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vendas. Da mesma forma, surgiram a primeira livraria exclusivamente gay do pais, a paulista Futuro Infinito e a Edições GLS, que publicavam livros de ficção e ensaios sobre a homossexualidade. (TREVISAN, 2000) Ao mesmo tempo, o governo brasileiro começava a enxergar a necessidade mais efetiva de uma real campanha de prevenção contra a AIDS, e, através do Ministério da Saúde criou, em 1992, o Programa Nacional de Prevenção e Controle da AIDS. Aos poucos, o avanço nas tecnologias em pesquisas científicas e médicas em todo o mundo fizeram com que o foco saísse dos grupos homossexuais para as mulheres e homens heterossexuais, pessoas que contraíam cada vez mais o vírus HIV.

Desmoronava assim a fantasia da peste guei. Fenômeno previsível e óbvio, o vírus não manifestava predileções sexuais, atacando indistintamente homos e heteros – para desencanto dos arautos da homofobia. A generalização da epidemia assustou muitas áreas até então consideradas imunes e certamente as levou a se integrar com afinco numa luta que passou a ser de todos e não mais dos chamados grupos de risco. [...] Ficou claro que a humanidade era um único e imenso grupo de risco. (TREVISAN, 2000, p. 456)

O Brasil tornou-se um exemplo no mundo no sentido de dar uma melhor qualidade de vida aos portadores da AIDS. Desde 1994, os coquetéis com drogas anti-HIV passaram a ser produzido no país quase que em sua totalidade e distribuído gratuitamente. Aos poucos, o estigma visual da doença foi desaparecendo, os aidéticos passaram a viver mais tempo e em melhores condições de saúde do que na década anterior. E as campanhas de prevenção começaram a circular com mais freqüência na mídia nacional. Foi nesse momento que os movimentos homossexuais ganharam mais força no mundo.

Durante os anos 1990, uma série de fatores – como o formato de colaboração adotado entre Estado e sociedade civil na luta contra a Aids, a visibilidade que a própria epidemia trouxe ao tema das (homo)sexualidades e a expansão de um mercado segmentado voltado ao público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) – colaboraram para o reflorescimento das iniciativas militantes. Houve um aumento do número de grupos e organizações e a expansão do movimento por todos os estados do país. Registra-se uma diversificação de formatos institucionais. (FACCHINI, 2005)

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Além disso, foi neste contexto que os movimentos lésbicos brasileiros criaram mais grupos e mais encontros. Longe ainda de ser o ideal, esses grupos pequenos e com poucas mulheres levantaram o tema da visibilidade como nunca em discussões políticas, ideológicas e sociais. E, no dia 29 de agosto de 1996 foi realizado o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), no Rio de Janeiro. Em homenagem ao I SENALE, as lésbicas participantes do evento criaram uma nova data nacional para se homenagear a mulher lésbica. O Dia Nacional da Visibilidade e do Orgulho Lésbico, desde então, passou a ser o 29 de Agosto. Efetivamente, a data só começou a ser comemorada sete anos depois, no V SENALE, em 2003, com participação de vários grupos do país, como o Mo.Le.Ca., de Campinas, o Nuances, de Porto Alegre e o Além de Minas, de Belo Horizonte.Infelizmente, a comemoração do Dia Nacional da Visibilidade e Orgulho Lésbico ainda é pouco lembrada pelo país. As paradas do Orgulho LGBT tiveram, da mesma forma, seu maior crescimento proporcional nesta década, sendo que de após reunir apenas 02 mil pessoas em 1997 e 07 mil em 98, em junho de 1999 a 3ª Parada LGBT levou para as avenidas centrais de São Paulo mais de 30 mil pessoas. (TREVISAN, 2000) Era um lugar não só de comemoração, como também de muita reivindicação política, de respeito e de visibilidade lésbica e gay.

Na esteira das grandes Paradas de São Paulo, que continuaram num crescendo a cada ano, as ativistas lésbicas começam também a movimentar-se para conseguir marcar presença. A Rede de Informação Um Outro Olhar inicia esse processo em 1999 se postando no início das Paradas, quando ainda era possível fazer isso, carregando faixas relativas à liberdade de expressão sexual. Em 2001, faz a Parada numa truck, tendo em vista a necessidade de distribuir material, no que foi imitada por um outro veículo (um trenzinho) de um outro grupo de lésbicas. (MARTINHO, 2006, disponível em acesso em 10 nov. 2007)

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Em Juiz de Fora, o movimento ganha também suas forças e expressões. Em agosto de 1998, aproveitando as comemorações do Miss Brasil Gay25, o casal formado pelo funcionário público Marco Trajano e pelo publicitário Oswaldo Braga reuniu personalidades do município como o psicanalista e psicólogo José Eduardo Moreira Amorim, o advogado Marcos Amaral e representantes do Programa DST/Aids na Câmara dos Vereadores e promoveram a primeira discussão sobre a cidadania e o direito dos homossexuais. Dois anos depois, foi aprovada também na cidade mineira, uma das primeiras leis nacionais que garantia a mulheres e homens homossexuais, transexuais e bissexuais o direito de manifestar carinho em público, com pena prevista para quem coibisse ou discriminasse beijos e carinhos entre o casal. A lei número 9.791, de 12 de maio de 200026, chamada Lei Rosa, além de ter sido pioneira, permitiu que a cidade entrasse de vez no movimento LGBT. No dia 28 de junho de 2000, a partir de uma sugestão de membros do Ministério da Saúde, Marco Trajano e Oswaldo Braga fundaram a organização não-governamental MGM – Movimento Gay de Minas, que até hoje promove o “Juiz de Fora Rainbow Fest” e a Parada do Orgulho GLBT da cidade27. A virada do século e as paradas do orgulho e da visibilidade trouxeram novos olhos sobre o poder aquisitivo das lésbicas e dos gays. No início da década de 2000, várias foram as leis que garantiram o direito dos homossexuais no mundo todo. A união civil entre casais do mesmo sexo passou a ser permitida em países como o Canadá e a homofobia foi considerada crime na maioria dos continentes, numa corrente bem contrária a do início dos tempos, onde o criminoso era o homossexual.

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O Miss Brasil Gay é um concurso criado em 1977, no qual homens transformistas concorrem como misses. O concurso, que acontece há 31 anos em Juiz de Fora, foi criado como uma brincadeira carnavalesca. Não são aceitas travestis ou “siliconizadas”, conforme as regras do concurso. (disponível em , acesso em 17 nov. 2007) 26 O texto completo da lei pode ser encontrado no site . 27 Segundo dados da Polícia Militar, a 5ª Parada do Orgulho GLBT de Juiz de Fora reuniu em 2007 mais de 120 mil pessoas. Apesar de acontecer há cinco anos, pela primeira vez um trio exclusivo de lésbicas participou da parada. Além disso, a ativista do MGM Márcia Oliveira foi escolhida pelos homens do grupo a Rainha da Parada, representando tanto a lesbianidade quanto a raça negra.

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No Brasil, uma das mais significativas decisões da justiça foi conquistada após a morte de Cássia Eller. A cantora brasileira, considerada uma das maiores intérpretes do país, era assumidamente homossexual, e tinha um relacionamento de 14 anos com Maria Eugênia Vieira Martins. As duas se tornaram mães de Francisco, filho de Cássia. Em 29 de dezembro de 2001, em decorrência de três ataques cardíaco-respiratórios, Cássia Eller morreu aos 39 anos de idade. Após um período turbulento, de grande repercussão na imprensa e de movimentos populares28, a justiça concedeu a guarda definitiva de Chicão, então com 08 anos, para a companheira Eugênia. Foi um caso inédito, que abriu jurisprudência para que outros parecidos saíssem vitoriosos. Na época, apesar de Cássia Eller não ter deixado um testamento oficial, as muitas entrevistas em jornais, revistas e televisão serviram como prova do direito de maternidade de Eugênia sobre Francisco.

Em entrevista à revista Marie Claire, de outubro de 2001, Cássia, em tom profético, dizia que gostaria de se casar formalmente com Eugênia ou de pelo menos ter um documento legal que assegurasse à companheira a posse dos bens e a guarda do menino: „No caso de separação ou de morte, a Eugênia não tem nenhum documento que prove que estamos casadas há 14 anos‟, disse. „É claro que, se me acontecer alguma coisa, meus bens têm que ir para ela e meu filho. E a guarda do meu filho tem que ser dela, é ela a mãe. (BELO e LANDI, 2005, p. 37)

Casos como esse só foram possíveis porque se criou mais espaço na mídia para o assunto “homossexualidade”. Ao mesmo tempo, no mundo todo, milhares de sites na internet foram surgindo, com informações vitais para o conhecimento, tanto da causa quanto das características do universo LGBT. Isso aumentou, e muito, a chance do homossexual falar de forma sincera sobre ele mesmo em um espaço de livre acesso a todos. No III Fórum Social Mundial, que aconteceu em Porto Alegre em janeiro de 2003, nascia a Liga Brasileira de Lésbicas – LBL, durante a Oficina de Visibilidade Lésbica, que 28

Um desses movimentos foi o Projeto Experimental Teoria e Prática pela Emancipação Feminina – EMANCIPAR, da Universidade Federal de Juiz de Fora, coordenado pela Professora Dr.ª Cláudia Regina Lahni. Na época da disputa judicial, reuniu um abaixo assinado com mais de 300 assinaturas a favor da adoção de Chicão e enviou para os advogados da cantora.

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contou com a participação de dezenas de mulheres homossexuais e bissexuais de vários estados do Brasil e de alguns países da América Latina. Já no V SENALE – Seminário Nacional de Lésbicas, que aconteceu em junho do mesmo ano em São Paulo, aconteceram as primeiras reuniões e plenárias da LBL, que significou a reunião de vários grupos do país que tinham o mesmo objetivo. Na ocasião, junho de 2003, foi realizada a I Caminhada Lésbica do Brasil, em São Paulo29. Em 2005, como resultado de uma parceria entre o Governo Federal e sociedade civil organizada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, foi lançado o “Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual” 30, que prevê uma série de ações nas áreas da saúde, segurança pública, trabalho, educação e cidadania. Até hoje, as entidades homossexuais e o Programa Nacional DST/AIDS têm trabalhado pela implementação do programa no âmbito do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, as paradas do orgulho LGBT se expandiam para diversas cidades do país e do mundo, e conseguiam, a cada edição, um número maior de adeptos. Em 2007, segundo dados dos organizadores, a XI Parada do Orgulho GLBT de São Paulo reuniu na Avenida Paulista 3,5 milhões de pessoas no dia 10 de junho de 2007. Os dados também apontam esta como sendo a maior parada do orgulho já realizada no mundo31. No século XXI, a mídia começou a mostrar ao mundo as novas configurações de família, com a homoparentalidade sendo cada dia mais aceita, e com personagens lésbicas mais verdadeiras sendo inseridas em novelas, filmes, programas de TV e séries norteamericanas. Nesse contexto, no qual pela primeira vez o gay saía da posição de vítima para se tornar um dos principais públicos alvo do mercado de consumo, que encontrou nos homossexuais uma oportunidade de vender mais. Segundo pesquisas, eram neles que se concentravam 29

Sobre a Liga Brasileira de Lésbicas e os grupos atuais, ver o documentário “Lésbicas no Brasil” (2004), de Maria Angélica Lemos, e o vídeo “A Liga Brasileira de Lésbicas”, da mesma diretora, que está disponível no site , (acesso em 21 de nov. de 2007) 30 O texto completo do Programa Brasil Sem Homofobia está disponível no site , acesso em 21 nov. 2007. 31 Disponível no site acesso em 20 nov. 2007

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a maior renda salarial. Afinal, os casais homossexuais masculinos do novo século têm ótimos empregos e ganham muito bem, não tendo uma grande família para sustentar. Além disso, são taxados como pessoas de gosto mais refinado e exigente. Mas isso não é exatamente a realidade das mulheres.

As lésbicas sofrem duplo preconceito, por exemplo, tanto por serem homossexuais quanto por serem mulheres. A renda dos casais de lésbicas também tende a ser menor porque mulheres geralmente ganham menos que homens e muitas lésbicas possuem filhos pequenos. [...] Por todas essas razões o mercado para lésbicas é diferente do mercado para gays. Característica principal do mercado homossexual (sobretudo o masculino) é que pelo fato da maioria não ter filhos a renda disponível no final do mês para gastar com artigos considerados supérfluos é muito maior. Assim, estes casais poderiam viajar mais, ou gastar com artigos de luxo, por exemplo. O nível de exigência deste público também é muito maior, assim como propaganda boca-a-boca dentro da comunidade homossexual. (NUNAN, 2003)

A questão é que, de certa forma, a sociedade capitalista aproveitou dessa nova forma de se enxergar os homossexuais, como alvo de consumo, para expô-los mais. Programas de TV, comerciais, restaurantes, eventos específicos, entre outros produtos culturais e comerciais foram lançados para vender mais dentro do universo LGBT. Da mesma maneira, a chegada do novo século criava uma nova forma de estereótipo para a mulher homossexual. Foi a época do Lesbian Chic32 no Brasil, estava em voga gostar de mulher.

A mesma sociedade machista que as acusava de sapatões por reivindicarem direitos iguais para as mulheres acabou, 26 anos depois, transformando as lésbicas em fetiche da mídia e tirando as feministas e o feminismo da pauta das redações. Prova de que não vale a pena fazer certas barganhas. Principalmente do início do milênio para cá, à parte toda a evidência trazida pelas Paradas do Orgulho LGBT, começaram a surgir personagens lésbicas em novelas, seriados, atrizes e cantoras dando selinhos em amigas, cantoras hétero se fazendo passar por lésbicas, como jogada de marketing, até chegarmos recentemente à novelinha lésbica que é o seriado americano The L Word, onde sobram cenas tórridas de sexo entre mulheres em plena TV. Quem diria, não? (MARTINHO, 2006, <www.umoutroolhar.com.br/>, acesso em 10 nov. 2007)

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O termo Lesbian Chic foi criado em 1993, pela revista americana “New York Magazine” que abordava o tema e trazia a cantora lésbica K.D. Lang na capa. Lesbian Chic representava as lésbicas super femininas, ou lésbicas de batom (lipstick lesbians)

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Com o aumento exposição de mulheres lésbicas na mídia, o assédio dos homens que vêem na relação entre duas mulheres uma fantasia sexual trouxe também um novo tipo de preconceito. Muitos comentários do senso comum dizem que a maior aceitação da imagem das lésbicas acontece porque elas habitam o imaginário masculino há milênios. Ou não é fato que a mídia, principalmente através dos filmes eróticos e pornográficos, vende a imagem da mulher lésbica feminina, sensual e provocadora para os homens?

A presença de personagens lésbicas ou que passam por um momento de curiosidade/confusão sobre sua sexualidade já virou algo tão comum na TV e no cinema que comentar a respeito é quase como chover no molhado. Na TV brasileira, as lésbicas surgiram timidamente na novela “Vale Tudo”, há mais de 10 anos atrás, e tiveram sua melhor representação no casal Jennifer e Eleonora, que trouxeram a público questões como adoção e parceria civil. Na TV européia ou americana, contar as personagens sáficas seria bobagem. Mais ousados e provocadores do que seus colegas tupiniquins, os produtores norte-americanos e europeus sacaram de cara o potencial das lésbicas na TV: ao mesmo tempo que trazem a audiência do público GL, elas atendiam às fantasias masculinas e das hetero curiosas, acrescentado ao horário nobre um quê de sensualidade e desejo provocantes porém inócuos. (LÉSBICAS NA TV..., 2007, disponível em , acesso em 17 nov. 2007)

Nesse momento, o questionamento que se faz é: qual é a imagem da lésbica no século XXI? Após tantos anos de opressão à homossexualidade, será que finalmente a visibilidade é algo possível de fato? As leis, as paradas, o mercado LGBT, a quantidade de informações disponíveis sobre o assunto, será que isso tudo indica um novo tempo para a mulher lésbica?

A 'lesbian chic' agora está na moda, ou seja, a mídia está dizendo à sociedade que essa mulher é legal. É legítima. (Claro que se está de olho em uma fatia de mercado promissora) [...] Se por um lado isso é negativo, por estigmatizar os outros modelos de comportamento de lésbicas, por outro ajuda a proporcionar a visibilidade de mulheres que, embora obedeçam, na aparência, os critérios de gênero aceitos socialmente, como maneira de se vestir e comportar (provavelmente sentando de perninhas fechadinhas), em suas relações afetivo-sexuais desobedecem totalmente estes padrões. São mulheres que não apenas fazem sexo com outras mulheres, mas, o que é muito mais desconcertante para a sociedade hetero-patriarcal, que não precisam de homens que as "protejam" que abram seus potes de picles e troquem suas lâmpadas. Que falem por elas e as sustentem, assim como às suas proles.Enfim, a partir da aceitação deste modelo, o imaginário social pode ser trabalhado para compreender e legitimar as lésbicas de maneira geral. (FACCO, 2004, disponível em

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, acesso em 20 nov. 2007)

O mais importante disso tudo é tentar entender que, no mundo atual e mais do que nunca, a mulher está conquistando o direito de ser mulher, de se mostrar como mulher. E, bem da verdade, assumir-se lésbica é assumir-se mulher acima de tudo. Não significa querer ser homem. Significa querer ser mulher em toda sua essência, sem se preocupar com os padrões de estilo, vestuário, comportamento. É estar segura do que se quer, e ter a liberdade de conquistar, o respeito para seguir seu desejo e o prazer de aproveitar sua vida do jeito que quiser. Muitas vezes a mulher lésbica usa a postura masculina para ser mais bem aceita na sociedade, para que não sofra a dupla discriminação de ser mulher e de ser lésbica. Porque sendo forte, sendo como os homens, não há quem se meta com ela. Ou então, usa da sensualidade para que, sendo atraente, não seja alvo de discriminação. Mas até que ponto essas caracterizações não são máscaras usadas para tentar achar um lugar na sociedade? A presença da lésbica na mídia e a existência de um mercado consumidor no século XXI que seja voltado para ela podem significar uma ajuda para que fim dos antigos preconceitos seja real. E a quebra dos estereótipos, a re-significação de termos pejorativos, a garantia através de leis que a violência sexual será punida, juntamente com a conquista da liberdade e do respeito, podem permitir que a mulher se valorize como mulher, se mostre mais, siga seus próprios gostos, entenda seu estilo, se conheça melhor. A visibilidade traz visibilidade. E quando uma lésbica se vê representada em diversas identidades de forma verossímil, realista e honesta, ela perde o medo de se mostrar, de ser ela mesma.

Numa época em que uma imagem vale mais que mil bla-bla-blás, a homossexualidade feminina ganha espaço estampando as telas de cinema e TV. [...] Na TV, a série “The L Word” (também produzida por lésbicas) chega a sua quarta temporada (aqui no Brasil assistimos atualmente a terceira). No âmbito da produção nacional de massa, duas novelas globais tiveram, nos últimos anos, casais de garotas em seus elencos. Uma nova série brasileira da HBO também vai contar com um casal de lés-

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bicas maduras no enredo. (LEONEL, 2007, disponível no site < http://mixbrasil.uol.com.br/mp/upload/noticia/2_164_62389.shtml>, acesso em 20 nov. 2007)

Com essa imagem lesbiana sendo estabelecida nos anos 2000, é importante, antes de qualquer coisa, conhecer um pouco da história das séries de TV norte-americanas. Assim, pode-se entender a importância da série “The L Word” para a identidade da mulher lésbica contemporânea, para o movimento político das lesbianas, para as representações sociais e para o imaginário coletivo do novo século.

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NARRATOR: "About women and the women who love them" The L Word is sure to make television history, and it's been a long time coming. In 1991, TV saw its first lesbian kiss on L.A. Law, shortly after, CJ, the bisexual lawyer, saw the door. A few years later, Roseanne was kissed, and even Party of Five's very own good girl got confused. But even the smallest same-sex smooches have been cause enough for uproar and fallout. But in recent years, with the success of shows like Queer As Folk, Will & Grace and Queer Eye For The Straight Guy, America has proven it's ready to experiment... or is it? GUINEVERE TURNER: I really don't understand where this trend is coming from! JENNIFER BEALS: I think it's clear that things are changing... ERIN DANIELS: I'd like to believe that America is becoming more open... GUINEVERE TURNER: It's really hard to believe but it may be true... ROSE TROCHE: QAF is SO responsible for making the show ever hit the air! If it wasn't for that show, the show wouldn't go on first. ERIN DANIELS: America's been exposed more and more, and realizing that...guess what?! Who we sleep with doesn't define who we are. ERIC MABIUS: It's the same as watching any other hour-long except that there are circumstances that we're not used to seeing on television. To that extent, it is groundbreaking. (THE L WORD DEFINED, 2004)

NARRATOR: "Sobre as mulheres e as mulheres que as amam" The L Word com certeza fará história na Televisão, ainda mais após um longo caminho percorrido. Em 1991, a TV viu seu primeiro beijo lésbico em L.A. Law, pouco depois, a advogada bissexual viu a rua. Alguns anos mais tarde, Roseanne beijou e mesmo a garota de “Party of Five” se viu confusa a respeito disso. Mas mesmo as pequenas aproximações do mesmo sexo causaram muita controvérsia e confusão. Somente nos anos recentes, com o sucesso de séries como “Queer as Folk”, “Will & Grace” e “Queer Eye for the Straight Guy”, a América provou que estava pronta para experimentar... será? GUINEVERE TURNER: Eu realmente não entendo de onde essa tendência esta vindo! JENNIFER BEALS: Eu acho que está claro que as coisas estão mudando... ERIN DANIELS: Eu prefiro acreditar que a América está se tornando mais aberta... GUINEVERE TURNER: É realmente difícil de acreditar, mas pode ser verdade... ROSE TROCHE: Queer As Folk é tão responsábel por fazer essa série estourar no ar! Se não fosse essa série, The L Word não iria adiante. ERIN DANIELS: A América está sendo mais e mais exposta, e percebendo que...adivinhe?! Com quem dormimos não define quem nós somos. (THE L WORD DEFINED, 2004)

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3.

AS SÉRIES DE TV NORTE-AMERICANAS

Através de um breve histórico das séries norte-americanas, tentarei mostrar os porquês deste gênero de ficção ter ganhado tanto espaço, projeção de mercado e até cursos especializados no Brasil e no mundo.

Uma feiticeira que torce o nariz e torna tudo possível. Uma bela gênia que sai de sua garrafa milenar transformando sonhos em realidade. Uma noviça que voa. Uma nave espacial que vai até nenhum outro homem jamais esteve. Um impagável grupo de amigos que encanta Nova York. Um detetive compulsivo que não pode ver nada fora do lugar... São incontáveis as imagens e situações que há décadas povoam o nosso imaginário coletivo, graças a uma dos maiores manifestações da cultura popular do nosso século: as séries de televisão. (FURQUIM, 2007, disponível em <www.planetatela.com.br>, acesso em 16 nov. 2007)

Algumas afirmações da crítica especializada de cinema e TV apontam as séries americanas como superiores às produções cinematográficas da atualidade em ousadia, conteúdo, investimento nas produções e sucesso com o público. Atualmente, estão sendo mais elogiadas e, de certo modo, assistidas, do que os filmes no cinema. Primeiro por serem mais curtas e por passarem na TV, na comodidade do lar. Segundo por manterem o cuidado de produção e interpretação recorrente nos grandes filmes.

Escrevo sobre cinema há muito anos e, a certa altura, começou a me inquietar o fato de todos os meus amigos comentarem quase só sobre séries e eu não saber do que se tratava. Quando comecei a prestar atenção, vi que havia ali uma nítida ruptura inclusive em relação ao que o cinema americano produziu nos últimos dez anos. Peguei o assunto e mergulhei em estudos para saber se alguém já havia pesquisado. [...] Não vejo no cinema americano hoje nada parecido com a ousadia no tratamento e a inventividade formal que as séries trazem. [...] Enquanto um filme envolve uma produção de centenas de milhões de dólares, uma série, por ser mais barata, dirigida a públicos menores e mais específicos, pode furar vários sinais, ou seja, tomar muito mais liberdades que um 'blockbuster'. E isso obviamente se reflete no modo como elas conseguem reproduzir o mundo em que estamos vivendo. (STARLING, 2006, disponível em < http://televisao.uol.com.br/ultnot/2006/12/11/ult698u11853.jhtm > acesso em 16 nov. 2007)

Por ser uma mídia que reconquista o público semanalmente, e por ficarem no ar por anos, os seriados acabam por criar uma legião de fãs que acompanham todas as tempora-

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das, não perdem as estréias, antecipam-nas através de donwloads33 na internet, revêem as reprises, compram as coleções34 que são lançadas em DVD e continuam a discussão sobre os capítulos exibidos em sites de relacionamento, de trocas de arquivo, fóruns de debates e salas de bate-papo. Já por outro lado, percebe-se que é na série de TV que a homossexualidade encontra hoje o seu retrato mais verossímil, com personagens que fogem dos estereótipos negativos. Minha pretensão neste capítulo é focar nos seriados dos Estados Unidos por ser este país, desde sempre, o mais tradicional exportador deste produto cultural, com quase duas mil35 séries de dramas, comédias, policiais, reality shows36, entre outros temas, sendo assistidas em vários países, todos os dias. Além disso, é nesse universo que se insere o contexto de “The L Word”. É um fenômeno como antes nunca visto, mas ainda pouco estudado nos meios acadêmicos de Comunicação. Infelizmente, e assim como sobre as mulheres lésbicas, pouco existe de teoria publicada sobre o assunto. Minha maior fonte de conhecimento para este capítulo foram, além da internet, os cadernos de cultura dos jornais, como a Revista da TV, do Jornal O Globo, que atualmente traz colunas específicas sobre as séries de TV e sobre os canais por assinatura. Não posso deixar de citar que eu mesma faço parte desta legião de fãs mencionada acima. E, por isso, coloco em minhas palavras muito da minha vivência pessoal e de meu gosto pelas séries de TV norte-americanas.

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Os episódios em arquivos do tipo AVI ou MPEG, por exemplo, são baixados de sites da internet. As coleções são as temporadas inteiras das séries, geralmente com 12 a 20 episódios, lançadas em DVD e vendidas nos chamados Box. Tornaram-se uma febre de vendas e de locações nos últimos anos. 35 Dados obtidos no site , acessado no dia 15 de novembro de 2007. 36 Apesar de ser gênero não-ficção, o Reality Show também é considerado uma série de TV. 34

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3.1.

A dramaturgia seriada: definições

O jornalista Ciro Marcondes Filho caracteriza a televisão como um meio fascinante. Segundo ele, esse veículo se sobressai das outras mídias por ser mais perspicaz, já que introduz uma linguagem diferente e responsável primeiro, por atrair o receptor e, depois, por ser incorporada por ele. Nessa medida, a TV muda completamente os hábitos de recepção e de percepção da sociedade e da cultura. Outra característica apontada pelo autor é a tensão entre momentos de fantasia liberada e o restabelecimento do esquema da ordem, o que seria exatamente o fascinante da TV. (MARCONDES FILHO, 1988). Para conseguir esse efeito, antes mérito do cinema, os canais de televisão criaram gêneros dramatúrgicos específicos para apresentar a ficção. Entre eles, estão o unitário, a minissérie, a telenovela e o seriado. Por definição, o unitário é o conto da ficção televisiva, a telenovela corresponde ao romance-folhetim, a minissérie ao romance de dimensões regulares e determinadas, e o seriado a uma coleção de contos com personagens fixos e objetivo autoral único. (PALOTTINI, 1998). Em comum, eles têm como característica a curta duração de suas unidades (capítulos ou episódios) em relação às produções cinematográficas e a previsão em seus roteiros dos brake, ou intervalos comerciais, com seus devidos ganchos narrativos. São esses ganchos que criam a tensão e expectativa necessárias para que a audiência permaneça na trama mesmo após esses intervalos e para que não deixe de acompanhar os próximos capítulos, garantindo assim o lucro com a produção. As séries de TV, como também são chamados os seriados, são estruturadas em episódios independentes que têm, cada um em si, uma unidade relativa. O episódio de seriado é construído de tal forma que permite a possibilidade de assisti-lo com fruição, já que, na maioria das vezes, ele tem começo, meio e fim. Às vezes não é possível entender por completo a história de uma ou outra personagem, pois ela pode ter sido apresentada em um momento

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anterior ou no piloto, ou episódio número um da série. No episódio ainda é possível enfocar determinado ângulo da vida da protagonista ou de determinadas personagens do seu mundo, uma de cada vez. A unidade total, ou temporada, é inerente ao conjunto dos episódios, mas não seguem necessariamente uma seqüência obrigatória, como as minisséries ou as telenovelas. Apesar disso, muitas vezes uma temporada, com duração que varia de 12 a 22 episódios, encerra em si uma parte da trama e aponta os indícios do que vai acontecer no ano37 seguinte. As séries também são características por não haver um tempo determinado de exibição. Como exemplo, temos “E.R.”38, sobre um pronto socorro em Chicago, que é produzida há 14 anos ininterruptos, ou “Friends”, uma das séries mais famosas de todos os tempos, que ficou 10 anos no ar e ainda é vista através de reprises. Da mesma forma, quando as séries não têm sucesso comercial ou de público, são prontamente canceladas por seus produtores executivos39. Algumas nem sequer apresentam um final para a trama, terminando a exibição dos episódios sem dar explicações para o público do desfecho da história.

A TV é um produto comercial, é um grande veículo de “classificados”, se sustenta disso. É usado como veículo de propaganda do governo em épocas e países de ditaduras, é usado como divulgador de programas criados com o intuito de vender algum produto é um adaptador de ideologias ou crenças. É uma grande e poderosa vitrine e seu foco depende de quem está no comando do veículo. Era normal nos anos 50 um episódio de uma série entrar em seu intervalo comercial e aparecer o ator daquela mesma série (usando a roupa do personagem) e fazer anúncio do produto do patrocinador. [...] foi a partir dos anos 60 que eles começaram a vender espaços comerciais por minutos e não mais o programa inteiro. Assim se livraram da dependência limitada de patrocínio. Com a concorrência de produtos cada vez maior fica mais fácil conseguir anunciantes. Mas em compensação o cancelamento de um programa é mais rápido devido à obrigatoriedade de se fazer sucesso imediato. (FURQUIN, 2005, disponível em , acesso em 17 nov. 2007)

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Ano, neste caso, adota o mesmo significado de temporada, apesar de, na escala temporal, não durar necessariamente doze meses. Podem durar de 12 a 22 episódios, exibidos semanalmente ou não. 38 Para efeito de padronização, adotarei os nomes originais das séries. Muitas tiveram adaptações para o português quando exibidas no Brasil, mas os nomes variam de canal para canal. Por exemplo, nos canais por assinatura, “ER” permaneceu dessa forma, enquanto na Rede Globo, o seriado obteve o nome “Plantão Médico”. Nos casos em que os nomes adaptados são mais conhecidos do que os originais, manterei as duas versões. 39 Nos Estados Unidos, seguindo o modelo hollywoodiano, os produtores executivos são os donos dos canais de televisão. Eles bancam a produção dos programas, contratam equipe técnica e roteiro e comandam toda a comercialização do produto. São eles que determinam o tempo que uma série fica no ar, conforme o lucro que ela gera.

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A unidade total do seriado pode ser dada pelos protagonistas, pelo tema, ou pela época, ligada, às vezes, ao local de ação. Mas, fundamentalmente, ela se dá por um objetivo autoral, uma visão de mundo que pretende-se transmitir (PALOTTINI, 1998). Com força comercial expressiva, as séries de televisão estão cada vez mais assumindo o papel que, nos anos 50, era do cinema: o de ditar regras de conduta e comportamento para a sociedade. Seus roteiros costumam adotar um tema específico, e, como têm muita liberdade de assunto, acabam voltados para um determinado público, existindo séries de drama, de comédia, de ficção, de suspense, de terror, policiais, sobre a vida de médicos, que contam histórias verídicas, de romances épicos, de famílias mafiosas, de amigos, de gays e de lésbicas, entre milhares de outros temas. Cada uma, em seu contexto, mostra a vida e a cultura com um toque de fantasia, de humor, de novidade e principalmente, de muita ousadia. O fato é que refletem, muitas vezes, a sociedade em que estão inseridas, recortando um trecho da realidade e representando-a de forma verossímil. Com essa gama de temas e formas de contá-los, as séries televisivas conquistam um número cada vez maior de espectadores e seguidoras, que acompanham fielmente a trama em cada episódio. E que a cada dia querem mais.

A apreensão de um programa de TV se dá dentro de características da contemporaneidade ausentes do literário em termos de realização, de utilização de tecnologias, de inserção de programas em uma vasta grade de programação. A TV constitui um dos veículos mais caracterizados pela voracidade que a obriga a alimentar a grade de programação diariamente de inúmeros textos de diferentes gêneros a uma velocidade de elaboração e apreensão inimagináveis em outros veículos, daí sua produção ser serializada, e baseada nas estéticas da repetição (Omar Calabrese) e da interrupção (Paul Virilio) para dar lugar aos comerciais. (BALOGH, 2006)

Ao longo de sua criação, e através dos episódios, os seriados adquirem seus significados totais. Os autores elaboram os casos, os enredos, as tramas que podem envolver aquele grupo específico e que tenham a ver com a filosofia geral da série, seu tema principal. Por sua vez, cada uma das personagens, criada e construída no começo de tudo, amadurece e se

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modifica ao longo das temporadas. De igual forma, com o passar do tempo, o público que a acompanha também se modifica, cresce. A relação que acaba se estabelecendo é de cumplicidade, de amizade, já que uma pessoa acaba “vivendo” ao lado da outra por muito tempo, conhecendo seus problemas e suas conquistas, torcendo por suas empreitadas, chorando quando devem partir. Em “The L Word”, como será visto à frente, cada temporada significa um período na vida das protagonistas. Durante cada um destes períodos, relações se estabelecem ou se desfazem e vidas se modificam. Como exemplo, é possível acompanhar, na primeira temporada, uma tenista assumir sua homossexualidade para a imprensa, enquanto um casal de mulheres decide engravidar. Já na segunda, acompanhamos a gravidez e o nascimento do bebê, enquanto a recém assumida tenista descobre-se apaixonada pela melhor amiga. Já na terceira, a criança vira o único motivo de vínculo entre as mães, recém separadas, enquanto acompanhamos a jovem e atlética tenista descobrir-se com câncer e falecer, ao final da temporada. Já no quarto ano, sentimos a falta da personagem tenista, enquanto o bebê já vira uma menininha e acaba sendo disputada na justiça pelas mães. Enquanto isso, muitas das telespectadoras passam pelos mesmos processos, principalmente por verem suas vidas representadas na tela com tanta verdade, e acabam saindo do armário, escolhendo por ter filhos na relação, investigando para saber se não estão com câncer de mama, chorando por perderem uma “amiga” de tanto tempo. Por isso, as séries, em sua maioria, são criadas a partir da verossimilhança. Se a identificação com as personagens não puder acontecer, não há o interesse por parte do expectador. As roteiristas e os roteiristas de séries, a todo momento acompanham a vida virtual que suas personagens adquirem. E pensam, em contrapartida à realidade, no que, dentro da forma que lhe foi dada, pode acontecer, e de fato aconteceria, àquele individuo de ficção? Ou de que maneira ele se relacionaria com os demais? A rigor, seriado não tem sinopse. Faz-se uma re-

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lação muito bem feita dos personagens e suas características, seu desenho pessoal, seu retrato. Deixa-se bem definido, depois de muita discussão, o que pretende o seriado, qual é a sua filosofia. E o restante é imaginação bastante livre. Os episódios precisam apenas ser interessantes e não colidir com o que ficou estabelecido como básico e fundamental no caráter dos personagens, na sua vontade, nos seus objetivos, no chamado piloto da série. (PALOTTINI, 1988) Esse piloto, ou o primeiro episódio de um seriado é, portanto, capital; nele deve-se apresentar clara e eficientemente todos os personagens principais, identificá-los, dizer o que são e como são; mostrar suas relações com os demais, seu modo de ser, suas crenças, seus desejos, seus objetivos de vida, o estágio em que estão. Deve-se dar a situação básica da comunidade ou do grupo que se quer tratar e, provavelmente, o problema inicial que deu origem ao estado atual de vida de todos. Esse primeiro episódio chama o espectador e o induz a ver a série: deve ser interessante, estimulante, curioso. Mostra as personagens e, claro, as atrizes e os atores que da trama vão participar. Outras atrizes entram posteriormente nas séries e, comumente, há muita troca de elenco entre uma temporada e outra. Já os demais episódios terão sempre algo a ver com o que foi lançado no primeiro. Se surge uma novidade total, algo que se oponha e contradiga o que foi estabelecido no primeiro episódio em termos de caracterização das personagens ou de história é mal recebido. (IDEM) Com esse formato estabelecido, com essas características tão peculiares, as séries de TV ocupam um lugar cada vez mais recorrente no imaginário coletivo e nas produções culturais de massa do século XXI. E tem sido assim desde seus primeiros episódios.

3.2.

Os primeiros anos e o conservadorismo americano

No início da TV, fim dos anos 40, os curtas-metragens produzidos para o cinema nas décadas anteriores acabaram sendo uma das origens do formato seriado. Comprados e

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exibidos semanalmente, filmes de Charles Chaplin, de “Os Três Patetas” e de “O Gordo e o Magro” fizeram sucesso entre os jovens daquela e das gerações seguintes. Mas uma das primeiras séries de TV a ser produzida foi “I Love Lucy”, que acabou se tornando referência do gênero sitcom, ou comédia de situação40, e é, até hoje, lembrada como um dos maiores sucessos televisivos de todo o mundo, estando, inclusive, na lista “The 100 Best TV Shows of ALLTIME” da Revista TIME41. “I Love Lucy” estreou em 15 de outubro de 1951 na CBS42 e, depois de 180 episódios, teve sua temporada final em 1957. Neste período, e com suas reprises, ditou moda no mundo todo ao reforçar a visão consumista, conservadora e machista do “American Way of Life” 43, tão difundido pela mídia americana nos anos 50 e reforçado no cinema pelo “Código Hayes” e sua censura. A protagonista Lucile Ball e seu companheiro Desi Arnaz repetiam o matrimônio da vida real em sua série, onde o marido, um produtor artístico, era sempre envolvido pelas trapalhadas de sua mulher, desajeitada e doidivanas. E, dessa forma, reproduziam a “forma como a família americana deve ser”. Essa série acabou definindo praticamente toda a gramática do gênero comédia, inclusive no que se refere à gravação dos episódios: três câmeras em um estúdio, com público ao vivo perante uma claque, cujas risadas gravadas são reproduzidas durante a exibição. As risadas persistem até hoje na grande maioria das sitcoms. Foi nessa época também que foram definidos o tempo padrão das séries conforme o gênero, praticado até hoje: as comédias ou séries com temas do cotidiano têm episódios com duração média de 30 minutos (sem os intervalos, 23 minutos) e os dramas, policiais, westerns e suspenses teriam a duração de 1 hora (com os descontos dos comerciais, 46 minutos). A partir deste padrão, foram criadas as grades

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Os sitcoms são comédias de situação, crônicas do cotidiano que a televisão exibe, normalmente sob a forma de seriados, com apresentação semanal de episódios que variam entre 30 a 40 min., tirando os intervalos comerciais. (DUARTE, 2007) 41 Informação obtida no site http://www.time.com/time/specials/, com acesso em 17 de novembro de 2007. Outras séries que serão citadas neste capítulo também fazem parte desta lista, como “Dallas”, “Seinfield”, “The X-Files”, “Friends”, “Sex and the City”, “The Sopranos”, “Six Feet Under”, “24” e “Lost”. 42 CBS é a siga de Columbia Broadcasting System, considerada uma das maiores redes de rádio e TV dos Estados Unidos. 43 Estilo de vida americano, exaltado após os anos 30 nos EUA como sendo ideal da classe média, com a formação de famílias conservadoras e tradicionais nas quais o homem trabalha enquanto a mulher cuida do lar. Era um reforço do capitalismo americano em depreciação do socialismo. Foi difundido no mundo pelo Cinema e, nos anos 50, pela televisão.

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de programação reproduzidas continuamente pelas redes de TV (SILVA JR., 2004). Outros exemplos de séries desta época são “Father Knows Best” (“Papai Sabe Tudo”), “Dragnet”, e “The Honeymooners”. Os anos 60 e 70 trouxeram um aumento significativo das produções televisivas de séries. São deste período grandes sucessos, que ainda seguiam os pontos de vista sexistas e conservadores das primeiras comédias e dramas, como “Bewitched” (“A Feiticeira”) e “I Dream of Jeannie” (“Jeannie é um Gênio”). Na primeira, uma bruxa faz de tudo para esconder seu verdadeiro talento e tenta se encaixar nos padrões paternalistas da sociedade, mantendo uma casa e um marido conservadores. A transgressão acontece nas atitudes de Endora, mãe da personagem, imortalizada pela atriz Agnes Moorehead. Sua maior questão era tentar entender por que Samantha (Elisabeth Montgomery) se submetia às vontades do marido em vez de simplesmente seguir sua vocação de bruxa. Já a segunda, que também mostrava elementos de fantasia, trazia uma Jeannie (Barbara Eden) que tudo fazia para conquistar o amor de seu "amo", o Major Nelson (Larry Hagman). Mesmo assim, se forem analisadas profundamente, é possível perceber traços de ousadia em suas abordagens.

[...] até séries aparentemente ingênuas e não politizadas, como I Love Lucy ou Jeanie É um Gênio, retratam mudanças políticas, sociais e comportamentais nos EUA. Lucy é uma mulher do pós-guerra que quer mudar sua situação na sociedade, quer ser um agente social e não mais dona de casa. Jeanie é a primeira mulher solteira a viver na casa de um homem. “A Feiticeira” é uma tentativa de adaptação de diferentes, ligados pelo amor, e traz pela primeira vez um casal que dormia em cama de casal, coisa impensável até então nos puritanos lares americanos. (ANGELO, 2001, Jornal da Tarde)

Neste período, destacaram-se também as séries de ficção científica, lideradas pelo sucesso de “The Twilight Zone” (“Além da Imaginação”). Criada por Rod Sterling em 1959, a série apresentava episódios isolados que abriam espaço para um comentário crítico sobre a sociedade de então, mergulhada na paranóia da guerra fria. Esse contexto fantástico acabou funcionando como pretexto para que outras séries se aprofundassem em alguns temas mais

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ousados, como a mais importante e influente delas: “Star Trek” (“Jornada nas Estrelas”), que Gene Rodenberry lançou em 1966. Menos ambiciosas, mas igualmente marcantes foram “Lost in Space” (“Perdidos no Espaço”) e os programas de Irwin Allen: “Voyage to the Bottom of the Sea” (“Viagem ao Fundo do Mar”) e “Land of the Giants” (“Terra de Gigantes”). (SILVA JR., 2004) Aproveitando a onda das revoluções, das novas estruturas sociais e sob influência da cultura pop que se estabelecia na segunda metade dos anos 60, surgiram ainda tentativas bem humoradas de brincar com a realidade.

O advento da cultura pop não passou despercebido e veio mesmo aflorar na TV da segunda metade desta década com as comédias, onde parecia haver um maior espaço para que fossem testadas inovações. Nesse momento surge Batman com seu exagero camp. E também The Monkees, que une a linguagem dos filmes que Richard Lester dirigiu com os Beatles a um psicodelismo então emergente. E o fenômeno James Bond inspirou Buck Henry e Mel Brooks a gerarem a melhor série cômica da década, Get Smart (Agente 86). Vale lembrar que todos os programas citados nesse parágrafo fogem ao modelo de sitcom gravado ao vivo. (SILVA JR., 2004, disponível em http://www.contracampo.com.br, acesso em 15 nov 2007)

No começo dos anos 70, os roteiristas começaram a ousar um pouco mais nos temas, acompanhando a onda da revolução sexual e de padrões culturais. Da mesma forma, no cinema hollywoodiano, o fim da auto-censura facilitou a entrada de temas mais liberais na televisão. Era a vanguarda das séries televisivas, com “The Mary Tyler Moore Show” de 1970, como o primeiro programa que trazia uma mulher independente, solteira, feminina e trabalhadora como protagonista. Já “MASH”, de 1972, veio do cinema e criticava a instituição militar em pleno período da guerra no Vietnã. O programa resistiu à guerra e ficou no ar durante 11 anos, fixado no imaginário das platéias norte-americanas. Seu episódio final se mantém há mais de 20 anos como um recorde insuperável de audiência. Os seriados policiais também modificam um pouco a forma de apresentar seus protagonistas. Antes calcados em investigações cerebrais, eles passam a incorporar o jeito malandro e malicioso das ruas, com ritmo ágil dos filmes de ação.

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Importante neste momento é a criação de “Charlie’s Angels” (“As Panteras”), em 1976. Trazendo, pela primeira vez, três belas e inteligentes mulheres como heroínas, Charlie’s Angels aproveitava as novas configurações sociais conquistadas com a revolução feminista do fim dos anos 60. As atrizes Kate Jackson (Sabrina Duncan), Jaclyn Smith (Kelly Garrett), Farrah Fawcett (Jill Munroe), formaram o primeiro e mais famoso trio. As três Panteras eram ex-policiais, graduadas com honras na Academia de Polícia, e integrantes da Agência de Detetives Towsend. Resolviam os casos com muita sagacidade e sensualidade, sempre tomando suas próprias decisões. O dono da agência era Charlie Townsend (na voz de John Forsythe), que só aparecia através de um aparelho de viva voz, e que passava as coordenadas através de seu homem de confiança, John Bosley (David Doyle). A série mostrava, numa das primeiras vezes, as mulheres em primeiro plano, com um chefe que nunca aparecia e um imediato que era completamente submisso a elas. A série estreou na TV ABC44 em 22 de setembro de 1976, teve 114 episódios e trocou de protagonistas várias vezes. Mas é fato que se tornou um sucesso estrondoso, principalmente por significar um marco da estética dos anos 70: os cabelos ondulados e rebeldes, as tradicionais pantalonas, as blusas de frente-única e as echarpes ditaram e ditam moda até hoje. Essa influência na cultura e na maneira de se vestir que as séries começaram a alcançar deve-se também ao fato de que, além de produzirem as séries, os Estados Unidos passaram a exportar este produto para outros países. Criou-se o termo “enlatado”, já que os programas eram enviados, assim como os filmes, em latas especiais. Na TV brasileira, o valor alto das produções nacionais, que ainda eram feitas ao vivo, com grande elenco, ocasionou a compra de muitos seriados importados, que encheram os buracos da programação dos canais.

Se a história da TV no Brasil confunde-se com a história das telenovelas, no caso da TV americana, as séries semanais configuram-se como seu principal produto de consumo no mercado interno e, em especial, para os demais países do mundo. Quase 44

Rede de TV Americam Broadcasting Company.

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tanto quanto o cinema, não se deve negar seu potencial de produto de exportação e divulgação da cultura de seu país. Quem cresceu vendo televisão durante as décadas de 1960 e 1970 foi bombardeado com fortes influências daqueles que se convencionou denominar "enlatados" em seus mais diversos formatos, incluindo séries cômicas, dramáticas, de aventura e de animação (SILVA JR., 2004, disponível em , acesso em 15 nov 2007)

De fato, percebe-se que um dos maiores responsáveis por esse bombardeamento de enlatados foi o próprio governo militar. Durante a chamada Fase Populista da TV (MATTOS, 1982a), a ditadura obrigava os canais a produzirem programas de auditório de baixo nível cultural e censuravam a exibição de filmes da indústria cinematográfica em sua grade de programação. Foi um período em que a exibição de “enlatados” atingiu o seu maior índice, chegando a 50% da programação nos primeiros seis anos do golpe militar, época em que o governo passou a adotar uma série de medidas econômicas para promover o desenvolvimento.

No Brasil, durante os 21 anos de regime militar (1964-1985), o financiamento dos "mass media" foi um poderoso veículo de controle estatal, em razão da vinculação entre os bancos e o governo. A concessão de licenças para a importação de materiais e equipamentos e o provisionamento, por parte do governo, de subsídios para cada importação têm influenciado a ponto de levarem os meios de comunicação de massa a adotarem uma posição de sustentação às medidas governamentais (MATTOS, 1982a, apud ______, 1990, p.13).

Os anos 80 chegaram com uma nova onda de conservadorismo nos Estados Unidos. O governo do republicano Ronald Reagan incentivou a volta dos valores tradicionais americanos numa fase em que a Guerra Fria começava a se tornar uma guerra quente. Como citei no capítulo anterior, o advento da AIDS provocou o crescimento do preconceito em relação ao que não se encaixasse nas normas padrão. Nessa linha, praticamente todas as sitcoms dos anos 80 retomam os valores de família e seus episódios tentam mostrar, de alguma forma, "lições de vida". É o período de “The Cosby Show”, “Family Ties” (“Caras e Caretas”) e “The Golden Girls” (“Super Gatas”) e “Cheers”, considerada uma das melhores sitcoms de todos os tempos. Isso porque, após o início moralista como suas contemporâneas, essa série começou a seguir o caminho do deboche e do humor escancaradamente irônico, linha que deu origem a

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outro nível de comédias, mais originais e politicamente incorretas, como “Seinfield” e “Frasier”, dos anos 90, “Scrubs”, de 2001, e “The Office”, de 2005, que é um dos maiores sucessos de crítica da atualidade. Um fato curioso é que “Cheers”, tão influente nos Estados Unidos, nunca foi exibido no Brasil. A partir do final dos anos 70, a estabilização de uma produção brasileira, principalmente através do crescimento da Rede Globo, que já dominava a audiência como rede nacional, fez diminuir o espaço dedicado aos seriados norte-americanos. Os canais começaram, a exemplo da própria Rede Globo, a criar suas próprias séries semanais, como “Plantão de Polícia”, “Carga Pesada” e “Malu Mulher”. Os enlatados que fizeram muito sucesso nos anos 80 foram “Dallas”, “Hart to Hart” (“Casal 20”), “McGyver” (“Profissão Perigo”), “Moonlighting” (“A Gata e o Rato”) ou “Alf” (“Alf – o ETteimoso”), mas mesmo assim eram quase sempre tratados como curinga na programação, sem que fosse respeitada uma seqüência cronológica nos episódios. Vale também destacar que nenhum desses programas pode ser incluído entre o que as redes de TV norte-americanas produziram de mais expressivo no período. (SILVA JR., 2004)

3.3.

O começo da ousadia e a explosão da TV por assinatura

A década de 90 foi um grande marco para a história das séries norte-americanas, principalmente no que diz respeito à exibição em outros países. Uma nova tecnologia se espalhava pelo mundo, chegando também ao Brasil: a TV à cabo por assinatura. Em primeiro de julho de 1990, acontecem as primeiras concessões de TV pagas no Brasil e o Canal Plus (Canal +) se torna a primeira TV a cabo do país. Outro fato que modificou a forma como as pessoas viam os seriados foi um decreto do então presidente Fernando Collor, permitindo que os canais brasileiros de rádio e televisão veiculassem programas nas línguas estrangeiras.

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No mês de agosto de 1990, o Governo Collor modificou também o Decreto Nº. 52.795, de 1963, permitindo, a partir daí que as emissoras de rádio e televisão possam transmitir programas em idiomas estrangeiros. Por serem recentes [o texto data de 1990], estas mudanças ainda não permitem que se possa avaliar que tipo de influência exercerão nos meios de comunicação de massa de modo geral e na televisão especificamente. (MATTOS, 1990, p. 18) [grifo nosso]

O que isso significou? Que milhares de pessoas, jovens e adultos, que acompanhavam as séries de TV no Brasil, puderam perceber a cultura de seu país de origem através não só das roupas, locações e histórias, mas principalmente através da linguagem. Houve, dessa forma, uma aproximação maior do universo americano, pois até então, não só o texto, como também a realidade da série era dublada para a língua portuguesa. Um dos exemplos mais claros nesse sentido foi a série “Primo Cruzado” que passou por aqui numa sessão especial de enlatados da Rede Globo, a partir de 1987. Para o público daqui, a série contava a história de Zeca Taylor, um brasileiro do interior de Minas Gerais que se muda para a casa de seu primo Larry, em Chicago, EUA. Com sotaque caipira carregado, o primo cruzado, numa alusão a moeda corrente no Brasil na época, aparecia vestido de sombrero e maracas, ou seja, roupas nada brasileiras. Na realidade, a história era completamente diferente. No original, o título era “Perfect Strangers”, algo como estranhos perfeitos, e Zeca, na verdade era Balki Bartokomous, pastor de ovelhas proveniente de Mypos, uma pequena ilha grega do mediterrâneo, que vai para os Estados Unidos para encontrar seus parentes. Ou seja, além de terem deturpado os termos com traduções muitas vezes estranhas para se encaixarem na fala das personagens, algumas dublagens de séries desvirtuavam suas verdadeiras histórias. Algo que, com a TV a cabo, pôde ser corrigido. Além do mais, a TV por assinatura permitiu que canais se concentrassem em determinado tipo de programação, como notícias, esportes, variedades, filmes, ciência e séries de televisão. Dessa forma, era possível, pela primeira vez, encontrar em um único canal vários os seriados de uma vez só. Divididos por gênero, horário e dias da semana, a programação foi ficando cada vez mais específica, conforme o público alvo que pretendia atingir.

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Enquanto isso, nos Estados Unidos, estreavam em 1990, as séries que acabaram de vez com o conservadorismo dos roteiristas: “The Simpsons”, “Twin Peaks” e “Seinfield”. Uma série em animação, um suspense policial e uma comédia sobre o nada. “The Simpsons”, lançada em 1989, está no ar há 16 anos, sendo a série mais longa já produzida, e este ano gerou seu primeiro longa metragem. Suas personagens são caricaturas que provocam em suas sátiras diversas reflexões e questionam a sua própria realidade. Springfield, cidade onde se passa a trama da família Simpson, é campo de situações possíveis e impossíveis, mas sempre refletem, debocham ou ridicularizam o modo de pensar americano. Sua ousadia, criatividade, humor e bom conteúdo são temas de diversos estudos no mundo todo. “Twin Peaks”, criada por David Lynch e Mark Frost, foi muito além do que se pensava sobre séries policiais até então, mostrando com crueza e veracidade a trama que trazia um investigador do FBI disposto a fazer de tudo para descobrir o assassino da jovem Laura Palmer. Hoje, a série é considerada um clássico e, apesar do fracasso de sua segunda temporada, figura também como uma das melhores séries já feitas por mostrar tão bem o lado obscuro da sociedade americana. Já “Seinfield” por si só já mereceria uma tese inteira. A série traz um grupo de quatro amigos em Nova York liderados pelo comediante Jerry Seinfield (interpretado pelo próprio Seinfield). Seus episódios giram em torno de um simples tema: o nada. Assim foi feito o piloto da série e lançado sem pretensões. Em pouco tempo, ela se tornou líder de audiência, segundo o instituto de pesquisas sobre televisão Nielsen Ratings. Teve nove temporadas produzidas e foi considerada pela revista TV Guide, especializada em televisão, como o melhor programa da televisão americana de todos os tempos. A virada do século traz uma infinidade de outras séries influenciadas por estas acima citadas. E, de fato, isso é algo comum de se perceber: as séries alimentam-se dos temas umas das outras para poderem representar a sociedade da época em que são produzidas. O que

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muda é o valor investido, o tipo de narrativa, o tempo de duração e a qualidade das interpretações e roteiros. Mas suas temáticas se tornaram universais, sendo repetidas ao longo das séries e por suas influências.

A novidade fica por conta da abordagem. Uma série que fale sobre sexo hoje em dia é muito diferente de uma série de até cinco anos atrás. As séries em geral são descendentes de outras produções do passado imediato ou antigo. Dessa forma, podemos pegar um personagem hoje em dia e traçar sua ascendência com muita facilidade porque uma série gera outra e assim por diante. Pegue a Carrie de “Sex and the City”, faça uma linha do tempo, você consegue chegar em séries como “Ally McBeal”, “Supergatas”, “A Gata e o Rato”, “Mary Tyler Moore”, “Júlia” e “I Love Lucy”, entre muitas outras. É a personagem do universo feminino tentando se colocar em uma sociedade machista dentro do tema dominação do sexo. [...] É a evolução das séries ou da espécie humana dentro de uma sociedade. Com a chegada da TV a Cabo as séries começaram a evoluir com mais rapidez. (FURQUIN, 2005, disponível em , acesso em 17 nov. 2007)

Como exemplo, temos “Beverly Hills, 90210” (“Barrados no Baile”) e “Melrose Place”, grandes sucessos entre os jovens no final dos anos 90. Podem-se perceber suas influências em “Dawson´s Creek”, “Buff – a caça-vampiros”, “The O.C.”, e, atualmente, em “One Three Hill” e “Gossip Girl”. Já “Friends”, de 1994, um dos maiores sucessos da televisão mundial nos anos noventa, que tinha como tema principal a amizade entre pessoas de 25 a 30 anos, garantiu o surgimento de séries como, “Ellen”, “Will & Grace” e “The Class”, das quais falarei mais adiante. No momento, é importante destacar algumas características de “Friends”. As aventuras de Rachel Green (Jennifer Aniston), Phoebe Buffay (Lisa Kudrow), Monica Geller (Courteney Cox Arquette), Joey Tribbiani (Matt LeBlanc), Ross Geller (David Schwimmer) e Chandler Bing (Matthew Perry) conquistaram milhares de fãs e ditaram regras de comportamento e vestuário. Como diferencial, a série trouxe a descentralização dos protagonistas, dando igual destaque a todos os seis amigos. Na América Latina, a série ainda é reprisada no horário nobre do Warner Channel e suas temporadas lançadas em DVD são campeãs de venda e locação.

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No Brasil, Friends possui grande audiência, apesar de ter sido exibido durante sua produção apenas por canais fechados (Sony e Warner Channel; neste último é exibido até hoje, em horário nobre: todos os dias às 19h30). Na TV aberta, já foi exibido por duas emissoras: pela RedeTV! no ano 2000 e pelo SBT em 2004 e novamente em 2006. A RedeTV! exibiu apenas as 2 primeiras temporadas e não houve muito sucesso na versão dublada. O SBT, que também passava a versão dublada, chegou a exibir o programa: nas manhãs de domingo, nas tardes de segunda à sexta e nas noites de quarta; só passou até a terceira temporada. Sem muito sucesso também. (informação disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 17 nov. 2007)

A série teve dez temporadas e fez não só a cabeça de toda uma geração como fez milionários os seis protagonistas e os produtores do programa.

Friends é um dos casos mais bem-sucedidos da história da televisão mundial. Ao fim da 10ª temporada da série, cada um dos seis atores recebia US$ 1,000,000 por episódio (totalizando 18 milhões de dólares para cada um dos 6 atores principais na última temporada). Propagandas nos intervalos do episódio final, que atraiu um audiência de mais de 52 milhões de espectadores, custaram em média US$ 2,000,000 a cada trinta segundos nos Estados Unidos e CAD$ 190,000 no Canadá. (informação disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso em 17 nov. 2007)

A importância maior de “Friends” talvez se deva a ser esta série uma das que mais lucro gerou para seus produtores. Ora, se um episódio da série pode vender um espaço publicitário de 30 segundos a US$2 milhões, pensaram seus produtores, por que não criar mais espaços como estes na programação? Além disso, nunca se viu uma série manter por tanto tempo um público cativo que a acompanhasse do início ao fim e ainda comprasse os DVDs lançados com as temporadas. Foi neste momento que as séries de TV começaram a ter ares de mega produção.

Em "Friends", "Sex and the City", "A Sete Palmos", "Sopranos" e muitas outras, encontramos uma espécie de espelho contemporâneo das nossas identidades pessoais. Eles servem pra gente olhar e se reconhecer ou reconhecer alguém do nosso círculo. Este é um dos principais truques dos criadores para tornar o público cativo. (JORNALISTA..., 2007, disponível em , acesso em 20 nov. 2007)

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O século XXI começava nas TVs norte-americanas com muito mais atenção às idéias que surgiam de roteiristas e produtores. Os novos lançamentos proliferarem em escala geométrica. Como conseqüência, os próprios canais por assinatura perceberam que era viável investir em programação própria. Nesse contexto, surgiram dois canais que se tornariam líderes em premiações por suas séries originais: a HBO e o Showtime. O Showtime é o canal responsável pela criação das séries que iriam mudar para sempre a forma como se representam os gays e as lésbicas nos programas de TV: “Queer as Folk”, do desenho “Queer Duck” e “The L Word”. Também é responsável pela controversa “Weeds”, sobre uma dona de casa que contrabandeia maconha, e “Dexter”, um assassino serial de assassinos seriais. A HBO45, ou Home Box Office, apresentou logo de cara um slogan que marcou o ideal de programação original: “It’s not TV, It’s HBO”, ou “isto não é TV, é HBO”. Ou seja, já indicava que este seria um lugar para produções nunca antes imaginadas. As principais delas são: “Sex and the City”, o épico realista e aclamado “Roma”, o fantasioso e bem produzido “Carnivale”, “The Sopranos”, a elogiada saga de uma família de mafiosos e “Six Feet Under” (“A Sete Palmos”), que apresenta com humor negro inteligente, os dilemas da família Fisher, donos de uma funerária.

As duas séries [“Six Feet Under” e “The Sopranos”] configuram o ápice do gênero, o que para muito contribuiu o formato HBO de temporadas de tamanho reduzido (13 episódios). Este torna cada capítulo passível de um acabamento artesanal mais rebuscado, que os aproxima de pequenos filmes, com roteiros muito bem amarrados e direção que por vezes transcende os limites da eficiência televisiva. A recente Deadwood (2004) tende a seguir a mesma linha de qualidade. (SILVA JR., 2004, disponível em http://www.contracampo.com.br, acesso em 15 nov 2007)

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Atualmente, pertencem à rede de canais da HBO Brasil: AXN, Sony Entertainment Television, Warner Channel, A&E, Animax, Cinemax, Max Prime, HBO, HBO Brasil, HBO Plus, HBO Family, The History Channel e E! En Entertainment Television. Ou seja, estão entre eles os principais canais exibidores de séries de TV do país. Nos Estados Unidos, a HBO pertence ao grupo TIME Inc.

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Outras da HBO que, apesar de novas, já fazem sucesso considerável são “Californication” e “Entourage”. Por aqui, o canal HBO Brasil também investiu em produções e lançou, em 2005 e com produção da Conspiração Filmes, duas séries: “Mandrake” e “Filhos do Carnaval”. Elas foram as primeiras séries a seguir o padrão norte-americano de investimento e produção, sendo filmada em película e com altos orçamentos disponíveis. Com temática voltada para as mulheres, o sucesso estrondoso de “Sex and the City”, que conta as aventuras sexuais de quatro amigas em Nova York, não só influenciou o surgimento de “Desperate Housewives” e da série tema deste trabalho, “The L Word”, como também trouxe a visão da mulher que comanda sua própria vida, que tomas suas decisões sem se basear em preconceitos sociais, que trabalha e recebe o valor que merece por isso, que constitui sua família não por pressão, mas por desejo, que segue e atende a seus desejos sexuais com muita liberdade e que fala sobre isso com muita naturalidade. A série também influenciou comportamentos e refletiu as conquistas dos movimentos feministas nas décadas passadas. No Brasil, sua influência deu origem à série “Mothern”, produzida pelo canal GNT. Em séries com temática política, destaca-se “The West Wing”, que fez com que não só o presidente criado pelo ator Martin Sheen fosse considerado como o ideal para os EUA, como também deu origem a outra série, “Commander in Chief”, na qual Geena Davis foi eleita a primeira presidente mulher do país. Ainda pode ser citada como série de grande influência sobre outras, a cultuada “Star Trek”, que incentivou a criação de inúmeras franquias sobre ficção científica, tanto como continuações ou “gerações” da mesma história, quanto de outras originais, como “Stargate Atlantis”, a mítica “Xena: Warrior Princess” e a excelente “Battlestar Galactica”, que mistura viagem pelo espaço, suspense e política em ótimos roteiros. Seguindo o lado da ficção, mas investigando o paranormal e o desconhecido, “The X Files” se tornou uma das maiores responsáveis pelo aumento das especulações sobre extra-

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terrestres e a vida em outros planetas, levando seguidores dos agentes Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully no mundo todo. A partir dela, foram lançadas séries como “Taken”, de Steven Spielberg, “Surface” e as adolescentes “Supernatural” e “Smallville”, que conta a história de Superman adolescente. Sem falar de “Lost” e “Heroes”, atuais febres entre os serimaníacos, campeãs de audiência, que misturam muito suspense com paranormalidades e mutações genéticas. Dentro ainda dessa tendência, temos as franquias de investigação policial, com “Law & Order” (“Lei e Ordem”) e “C.S.I.”, cada uma com um tema de investigação, como “Law & Order S.V.U.” e “Law & Order Criminal Intent” ou passando-se em cidades diferentes, como “C.S.I. Miami”, “C.S.I. New York”. Influenciaram também “Bones”, “The Closer”, “N.C.S.I.” e “Dexter”. “NY PD” (“Nova York contra o Crime”) e a forte “OZ” permitiram a criação da violenta e premiada “The Shield”, de “Alias” e de “24” (“24 Horas”), todas séries de ação que fogem do padrão do policial como herói bonzinho. Em suas cenas, eles fazem de tudo, de subornos a torturas, para conseguir resolver seus casos. Esta última também se destaca por ter introduzido a narrativa do tempo real, de forma inovadora e ousada, por fazer ressurgir o astro do cinema Kiefer Sutherland e por sua direção primorosa, produção cuidadosa e altos investimentos em marketing e propaganda. “24” está em sua sétima temporada, mas uma temporada, neste caso, significa um dia na vida do agente do FBI Jack Bauer. Ou seja, cada capítulo tem a duração real de uma hora de acontecimentos, sendo 50 minutos da história menos os 10 minutos previstos pelos intervalos comerciais. Em cada minuto da trama, acompanha-se, através de quadros paralelos (um recurso da edição), a resolução de algum caso urgente de importância nacional. A série também foi responsável por mostrar o primeiro presidente negro da história das séries americanas. Na

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sétima temporada, que ainda não foi lançada, “24” traz uma mulher lésbica como presidente dos Estados Unidos. As séries médicas começaram com “E.R.” e também se multiplicaram. Hoje, as mais originais e sucedidas são a sensível e bem humorada “Grey’s Anatomy”, a sarcástica e inteligente “House” e a ousada e picante “Nip/Tuck”, que realiza com requintes de crueldade, uma reflexão da mania das cirurgias plásticas estéticas. As séries sobre dramas familiares, lançadas por “Dallas” e “Dinasty” nos anos setenta, tiveram neste século grandes representações como a leve “Gilmore Girls”, “The Sopranos” e “Six Feet Under” (“A Sete Palmos”). Essas duas últimas já pararam de ser produzidas e venceram grandes categorias das mais tradicionais premiações da televisão, como o Emmy Awards46. Atualmente, existem mais de três mil séries de TV sendo exibida no mundo todo, a sua maioria, produzidas nos EUA, conforme a lista publicada no site americano Epguides.com47. Impossível enumerá-las aqui. As citadas acima são as mais representativas deste gênero, porém a quantidade se modifica a cada semana, com as estréias e os cancelamentos de séries. Nos canais norte-americanos de TV, os seriados com maior valor de mercado investido geralmente estréiam nos meses de setembro e outubro (fall season). Já quando as temporadas destas séries terminam ou quando há uma pausa em suas produções (hiatus), estréiam as chamadas midseason series, ou séries de meia-temporada, nos meses de janeiro a abril. Essas séries, a princípio, são produzidas apenas para taparem buracos na programação. Mas algumas ganham tanta projeção com o público, que acabam se transformando em séries maiores e ficando por muitos anos no ar. No Brasil, devido ao atraso dos lançamentos das séries americanas, geralmente o midseason acontece a partir de junho e o fall season, a partir de novembro.

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Ver Site , acessado em 17 de novembro de 2007.

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Mas não é só através da TV que essas séries são acompanhadas. A internet aumentou a proporção de expectadores e expectadoras de forma impossível de ser mensurada. A pirataria, ou cópia não autorizada dos programas, é algo que preocupa a sociedade e que se tornou motivo de discussão sobre as atuais leis de direitos autorais em todo o mundo. Ao mesmo tempo em que as distribuidoras e os canais de TV tentam combatê-la através de tecnologia, é a mesma tecnologia que permite que os dispositivos anti-cópia sejam quebrados, que a programação seja gravada diretamente nos computadores e convertidos em arquivos menores e de fácil envio para outros computadores, que as coleções de séries em DVD sejam locadas, clonadas e vendidas abertamente em sites de relacionamento, como o Orkut. As séries, assim como as músicas e os filmes, sofrem do mesmo tipo de problema com a pirataria. Existe uma infinidade de sites com os chamados torrents, arquivos compartilhados entre usuários e baixados pela internet através de programas específicos. Esses torrents, de séries, filmes, vídeos, músicas, programas, etc., são compartilhados gratuitamente e, muitas vezes, sem autorização das fontes. Da mesma forma, outros tantos sites se especializam em produzir as legendas para os episódios, assim que são exibidos. Percebendo a impossibilidade de se impedir esse compartilhamento, alguns canais, como o Showtime e a Warner Channel, no Brasil, passaram a disponibilizar o programa para ser baixado diretamente de seu site, gratuitamente, logo após a primeira exibição na TV. Isso permite que uma série que passe nos Estados Unidos no domingo à noite, por exemplo, seja visto na segunda-feira de manhã por pessoas no mundo todo. Foi assim que “The L Word” chegou primeiramente ao Brasil. Enquanto a série lançada em 2004 só foi exibida pela Warner Channel no meio de 2005, milhares de pessoas já tinham visto a primeira temporada pela internet. Ou seja, as séries de TV norte-americanas estão começando a ocupar um lugar dentro dos lares das classes com alto poder aquisitivo, que têm TV a cabo e acesso à internet,

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que antes era ocupado, em sua maioria, pelas telenovelas e pelos filmes. Com produções mais livres, ousadas, criativas e trazendo atores esquecidos pelo cinema à tona novamente, os seriados estão perdendo o estigma de enlatados, para se tornarem produtos de primeira linha.

Existe essa questão de que a TV influencia a sociedade e vice-versa. No início existiram programas, principalmente americanos, que eram produzidos com o intuito de direcionar o comportamento social. Pode até ter conseguido em algumas camadas e por algum tempo, mas a sociedade não deixou de mudar por conta disso. [...] Em relação às séries de televisão, mais especificamente a americana, eles levavam uma década inteira para abordar um determinado comportamento. Muito embora os temas considerados tabus sempre estivessem camuflados nas entrelinhas. A vantagem da televisão é conseguir trazer para dentro das casas das pessoas situações nas quais elas podem se identificar e (se Deus quiser) permitir que elas se questionem; é levar para dentro das casas das pessoas um mundo de informações e imagens às quais elas não teriam acesso por falta de tempo, interesse, geografia, dinheiro ou cultura. Cabe à televisão saber utilizar essa vantagem. (FURQUIN, 2005, disponível em , acesso em 17 nov. 2007)

3.4.

A homossexualidade nas séries americanas

Há exatos dez anos, a comédia “Ellen”, se tornava um marco para a visibilidade lésbica na mídia. Sua importância é levantada até hoje pelas estudiosas da lesbiandade. Um dos sites americanos mais importantes sobre a homossexualidade feminina na mídia leva exatamente o nome After Ellen (algo como “Após Ellen”)48. Na série, que estreou em 1994 e ficou no ar até 1998, a protagonista Ellen Morgan, vivida pela comediante e apresentadora Ellen DeGeneres, é a neurótica dona de uma livraria que tem que tomar conta não só dos negócios, como também de toda sua família. Em 1997, no episódio “The Puppy Episode”, ela se vê apaixonada por uma amiga. Numa atitude inesperada, ela se declara: “Susan, I´m gay!” (“Susan, eu sou gay!”). A comediante, com essa frase, não só assumiu sua homossexualidade no programa como na vida real, passando a aparecer nas revistas com sua namorada da época Anne Heche. O episódio causou comoção nacional entre a comunidade lésbica americana e, mais tarde, teve seu roteiro premiado pelo Emmy Awards 2007. 48

Ver

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No entanto, através do documentário “Como Ellen DeGeneres Saiu do Armário”, exibido em 24 de junho de 2007 no canal brasileiro GNT, é possível descobrir que as negociações para que essa simples frase fosse dita duraram anos. Além disso, pouco tempo depois, a série, de boa audiência, foi cancelada sem maiores explicações.

O arranha-céu espinhoso que Ellen e a equipe de seu programa tiveram de escalar para tornar público algo que todo mundo [ao menos todos os gays que assistiam à série] já sabia é muito comum. Quantos gays atualmente ocupam cargos bemsucedidos e vão a festas de empresas com seus verdadeiros parceiros? Acho que são poucos. [...] Segundo o documentário, que explica não ter o outro lado porque a Disney não quis se pronunciar sobre o ocorrido, foram meses de negociações secretas até que o capítulo em que Ellen diz "I'm gay" ("Eu sou gay") fosse ao ar. "I'm gay" caiu feito uma bomba e o programa "Ellen" foi extirpado. Lamentável a decisão da Disney de encerrar um produto que rendia audiência porque parcelas radicais da sociedade americana ameaçaram boicotar a empresa para não ouvir o que Ellen queria e, segundo ela própria, precisava dizer. (BRASLAUKAS, 2007, disponível em <www.folha.com.br>, acesso em 18 nov. 2007)

A comediante, em vez de se recolher, passou a se mostrar mais do que nunca. Após algumas tentativas de retornar com uma série de ficção e a participação em alguns filmes, em 2003, Ellen lançou o programa de entrevistas “The Ellen DeGeneres Show”, premiado diversas vezes como melhor programa de entrevistas. Em 2007, foi convidada para ser a anfitriã da 79ª Cerimônia do Oscar, sendo a primeira lésbica assumida a apresentar a premiação. Durante a festa, uma das mais tradicionais de Hollywood, Ellen disse em alto e bom tom:

Que noite maravilhosa, tanta diversidade neste lugar, num ano que que tantas coisas negativas foram ditas sobre a raça, a religião e a orientação sexual das pessoas. E eu preciso acrescentar: se não fossem os negros, os judeus e os gays, não haveria os Oscars, ou alguém chamado Oscar, se você pensar bem. (DEGENERES, 2007, disponível em <www.pt.wikipedia.org>, acesso e 17 nov. 2007 [tradução nossa])

Nesse pequeno trecho de seu discurso, Ellen atacou as atitudes homofóbicas da política norte-americana e, ao mesmo tempo, o coração conservador e preconceituoso de Hollywood, que, por tantos anos, mantém escondida a homossexualidade de atores e atrizes famo-

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sas. Foi um tiro em cheio no falso moralismo dos EUA, e somente Ellen DeGeneres, uma das mais poderosas mulheres do país, poderia dizê-lo naquela circunstância. Como influência de sua atitude positiva ao assumir sua lesbianidade, as pessoas passaram a ver mais e mais personagens homossexuais aparecendo nas séries. Numa pesquisa realizada pelo professor americano David Wyatt49 desde 1999, é possível comprovar esse fato. De 1961 a 1970, apenas 01 personagem gay apareceu em série de TV. Nos anos 70 foram 58, enquanto nos anos 1980 foram 89 os homossexuais como personagens nos seriados. Nos anos 90, esse número triplica para 337 e a partir de 2000 até agora, já são 372 personagens gays e lésbicas a aparecerem nas séries de TV. Simples modismo ou maior visibilidade, isso não há como afirmar. Mas o fato é que essa presença tem ajudado a diminuir o preconceito das pessoas, a partir do momento em que mostram os homossexuais não mais como caricaturas de seres humanos, estereotipadas e negativas, mas da forma como eles simplesmente são: pessoas, seres humanos, com seus conflitos, seu bom humor, suas características únicas e seus anseios. Mesmo não sendo a forma ideal, já que obedece a padrões de consumo, a visibilidade homossexual nas séries é uma realidade bem vinda nos dias de hoje. Algumas dessas personagens e séries foram significativas. Em 1991, durante a quinta temporada de “L.A. Law”, pela primeira vez se assiste um beijo entre duas mulheres numa série de TV. As atrizes que o protagonizaram foram Amanda Donohoe (C.J. Lamb) e Michelle Green (Abbey Perkins). Já “Ally McBeal”, de 1994, também teve um breve romance lésbico. Mas, no caso, era apenas uma experimentação da personagem Ally (Calista Flockhart) para tirar de sua cabeça, a dúvida sobre sua orientação. “Dawson´s Creek” foi responsável pela exibição do primeiro beijo entre dois rapazes, e mostrou vários relacionamentos gays durante a série. 49

Segundo Wyatt, para entrar na lista, o personagem tem que aparecer em pelo menos 03 episódios da série e ser assumidamente homossexual. Aqueles que apenas parecem ser gays, mas não abrem isso na série, não entram para a compilação. A lista completa está disponível no site , acessado em 10 nov. 2007.

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“Friends” foi também uma das primeiras séries a trazer um casal de lésbicas e um pai transexual em sua trama, sem que estes fossem carregadas de preconceitos. A personagem Carol é ex-mulher de Ross Geller e, junto com sua namorada Susan, criam Ben, filho deles. A série mostra uma relação aberta na qual Ross primeiro questiona, mas depois aceita a criação de seu filho por elas. Já o pai de Chandler Bing, é cantora em Las Vegas e dona do clube “Viva Las Gaygas”. Charles Bing assume o nome de Helena Handbasket e, quando aparece na série, é vivida pela atriz Kathleen Turner. Em 1995, quando “Xena: Warrior Princess” começou a ser produzida, nem os roteiristas nem os produtores tinham em mente a revolução no meio lésbico que ela iria causar. A série, que contava as aventuras mitológicas de Xena (Lucy Lawless), apresentava como protagonista uma mulher linda, forte, inteligente, esperta e muito habilidosa com as espadas e com seu famoso chakram50, vencendo os Deuses do Olímpio sem ter sequer um “superpoder”, ela era uma mortal como outra qualquer. Era também uma guerreira autêntica, que começou como uma criminosa e assassina, mas que, ao conviver com a jovem poetisa Gabrielle (Renee O‟Connor), foi tornando-se uma heroína de coração aberto e bondoso, conhecida por ajudar a todos. Com esse contexto apresentado, muitas lésbicas se tornaram fãs da série por verem ali um relacionamento amoroso entre Xena e Gabrielle. De fato, a forma como lidavam uma com a outra, incluindo até mesmo as discussões, era uma representação perfeita de um casamento. Criaram-se grupos em vários países do mundo nos quais as lésbicas se reuniam para assistir aos episódios que acabaram por contribuir muito para a cultura homossexual feminina dos anos 90. A partir daí, a audiência do seriado aumentou muito. Seus criadores viram nisso uma oportunidade de manter o sucesso, criando uma insinuação lesbiana em torno da história.

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Chakram é uma arma indiana, cilíndrica, vazada no centro e afiada, que funciona como um bumerangue. Virou a marca registrada de Xena.

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Há seis anos [texto de 2002] ela começou a chamar atenção de um grupo de lésbicas que se reunia para beber, conversar e dançar na boate Meow Mix, em Nova York. Poucos meses depois, grupos de fãs na internet já começavam a discutir se a relação entre ela e sua companheira era simples amizade. Bastou esse agito para as atrizes Lucy Lawless e Renée O´Connor começarem a colocar “cacos” nas falas de Xena e Gabrielle, insinuando uma forte paixão homoerótica. Em seguida foram os roteiristas que entraram na dança e passaram a elaborar histórias que explorassem o amor entre as duas. Dois anos depois de estrear, o seriado inspirou centenas de bolachas orgulhosas que passaram a desfilar vestidas de Xena e Gabrielle nas paradas gays de Nova York, San Francisco, Londres e Sidney. (LEONEL, 2002, disponível em , acesso em 20 nov. 2007)

Em vários momentos da série, as personagens se referiam uma à outra como “almas gêmeas”, diversas declarações como “eu não posso viver sem você” ou “eu te amo” vinham nas falas tanto de Xena quanto de Gabrielle, e, além disso, vários beijos entre as duas foram trocados, só que de forma indireta. Num dos episódios, Xena, através da magia, encarna no corpo de um homem que acaba tendo um caso com Gabrielle. Somente no último episódio elas se beijaram de fato, no momento em que Xena morre nos braços de Gabrielle. Apesar disso, “Xena” pode ser considerada como uma das maiores representações lésbicas da TV americana.

Primeiro, porque Xena foi uma pioneira: Ellen não havia saído do armário, não existia “Will and Grace” e nem “Sex and the City”. E segundo porque, ao contrário destas séries novas, Xena elevou a relação lésbica a uma instância mitológica: o casal lésbico, mais que um fenômeno da vida urbana, cotidiana e contemporânea, torna-se um arquétipo. Assim, com força de símbolo, a relação apaixonada entre as duas heroínas ultrapassa a fronteira de tempo e espaço, atingindo as mais variadas culturas, idades, gostos e, inclusive, orientações sexuais. (LEONEL, 2002, disponível em , acesso em 20 nov. 2007)

Em “Buff – a caça-vampiros” foi introduzido o primeiro casal lésbico assumido da televisão norte-americana, que usava a magia como uma metáfora para a lesbianidade. Tara Maclay (Amber Benson) era uma bruxa iniciante que se apaixona por Willow (Alysson Han-

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nigan), uma colega mais experiente. Willow, personagem formal da série desde seu início, e Tara ficam juntas por duas temporadas e meia. Elas se tornaram um dos casais lésbicos mais cultuados entre os jovens de toda a TV norte-americana, virando ícones da cultura popular. Tanto elas quanto a personagem Jack McPhee (Kerr Smith), de “Dawson´s Creek” foram muito significativos neste contexto por atingir um público alvo até então ignorado pelos programas com temática homossexual: os adolescentes. Suas atitudes positivas, sua forma de assumir a orientação sexual ajudaram a muitos jovens a se assumirem também. Aliás, esse é um aspecto importante da presença de personagens gays na televisão. Através da identificação, as pessoas encontram uma melhor maneira de se conhecer, de se entender. E, vendo sua vida representada ali, tendem a ficarem mais confiantes sobre si mesmos. “Will & Grace” apresentou o primeiro protagonista assumidamente homossexual numa série humorística. Com roteiro bem escrito e atores carismáticos, caiu no gosto popular, apesar de reforçar alguns estereótipos como a do gay efeminado, do cuidado exacerbado com a aparência, entre outros. A série apresentava a idéia de que toda mulher deve ter na vida um melhor amigo gay, e, apesar de apresentar elementos recorrentes da chamada cultura gay, a série não abordava de forma pejorativa as atitudes do protagonista Will Truman (Eric McCormack), um advogado de Nova York, e de seu melhor amigo Jack McFarland (Sean Hayes), que fez de tudo um pouco na série. As outras personagens da série, Grace Adler (Debra Messing) e Karen Walker (Megan Mullally), volta e meia tinham tendências lesbianas. Karen, inclusive, teve como amante Liz, vivida pela cantora Madonna. Em “Sex and the City”, atriz brasileira Sônia Braga interpretou uma artista lésbica que teve um relacionamento com Samantha (Kim Cattrall), uma das personagens principais da trama. Ela aparece em três episódios da quarta temporada (2001), mas, por um lado, não foi muito positiva a sua participação para a visibilidade lesbiana. No relacionamento que se esta-

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belece, fica marcado o estereótipo de que as lésbicas não têm uma vida sexual intensa e que a única coisa que se prevalece na relação é o emocional. Várias vezes Samantha e Maria (Sônia Braga), aparecem tomando banho em uma banheira. Em determinado momento, a americana, famosa por ser a mais impulsiva sexualmente da série, se diz cansada dessa relação “onde se fala muito, toma-se muito banho e sexo, nada”. Em outro episódio, a protagonista Carrie (Sarah Jessica Parker) experimenta beijar uma garota bissexual, interpretada pela cantora Alanis Morissette, e diz que o beijo “tinha gosto de galinha”. Por outro lado, a série apresenta vários personagens gays masculinos, e o melhor amigo de Carrie, Stanford Blatch (Willie Garson) casa-se com um homem e tem um dos relacionamentos mais bem sucedidos de “Sex and the City”. “Six Feet Under” mostrou do início ao fim todos os dramas de uma relação amorosa entre dois homens, com muita veracidade. Os protagonistas.Michael C. Hall (David Fisher) e Mathew St. Patrick (Keith Charles) viveram juntos do início ao fim da série, que teve cinco temporadas. David, o filho do meio da família Fisher, conservador e republicano, era quem comandava a funerária da família. Ele e seu companheiro exemplificaram na série várias situações pelas quais passa um casal homossexual e, com isso, ajudaram a quebrar vários tabus da TV: viver um relacionamento inter-racial, assumir-se para a família e serem aceitos, sofrer violência por ser gays, fingi ser heterossexuais por causa da igreja ou do trabalho, ter alguns casos fora do relacionamento, montar uma casa juntos e adotar uma criança. E, o melhor, tudo isso sem olhar preconceituoso, estereotipado e ficando juntos, literalmente, até que a morte os separasse. Além disso, na quarta temporada, Claire (Lauren Ambrose), a irmã de David, envolve-se em uma experiência lésbica com Eddie (Mena Suvari), uma amiga da faculdade.

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Edie é assumidamente lésbica e assumidamente a fim de Claire. Claire, por outro lado, não sabe para onde correr: ela admite estar atraída pela amiga e diz se sentir „inspirada' na companhia de Edie, porém, não sabe se esta atração é sexual. Como conjecturas não matam a curiosidade nem o desejo de ninguém, Claire e Edie concretamente consumam o fato. Após conferir o lado lés da vida, ambas se dão conta que Claire veio parar na praia errada. No entanto, todo o envolvimento das duas é realisticamente bem construído: que mulher hetero já não atravessou esta confusão e que lésbica já não se viu atraída por uma amiga hetero? (LÉSBICAS NA TV..., 2007, disponível em , acesso em 17 nov. 2007)

Outro exemplo de uma experimentação da lesbianidade foi o caso que Marissa (Micha Barton) e Alex (Olivia Wilde) tiveram na segunda temporada de “The O.C.” (2003). Uma das personagens principais da série, a problemática Marissa, sente-se atraída por uma amiga. Daí, ela resolve a confusão inicial tendo um relacionamento de fato com Alex. Num determinado momento da trama, elas se assumem para amigos e família, que vivem numa das mais ricas e tradicionais áreas da Califórnia. Levam adiante o namoro e chegam a morar juntas rapidamente, mas logo depois terminam devido a ciúmes e falta de dinheiro. O estranho é que, após o término do namoro, e até o fim da série, o assunto não foi mais abordado em momento algum. Em 1999, surgia aquela que se tornaria um marco para a comunidade LGBT, a primeira série assumidamente gay: “Queer as Folk”. Produzida primeiramente no Reino Unido e depois nos Estados Unidos (2000), pela Showtime, e com um nome que brinca com um ditado inglês que diz “there is nought so queer as folk” (“nada é tão estranho quanto as pessoas”), a série conta a história de homens gays e um casal de lésbicas. Os gays da série foram caracterizados de uma forma muito natural, com sua realidade retratada nos mínimos detalhes. Há quem diga que há sexo demais na série, já que, desde o primeiro episódio, a personagem de Michael Novotny (Hal Sparks) solta a frase “the thing you need to know is: it’s all about sex” (“o que você precisa saber é: tudo gira em torno do sexo” [tradução minha]), e logo depois a cena noturna das boates gays invade a tela, mostrando um pouco daquele universo.

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A abertura de “Queer As Folk” é uma clara referência à vida noturna, a boate. Homens de corpos atléticos, dançando de tanguinha e chapéu de cowboy, estilo go go boys, que são ícones das boates GLS, sob um plano de fundo com imagens psicodélicas, coloridas em tons rosa, amarelo, lilás, e uma música eletrônica bastante animada e dançante, é um clipe da própria boate Babylon. O espectador está vendo a abertura e de repente percebe que se trata da imagem de telão de uma boate, e ali já começa o primeiro episódio, “New Boy”: Mike apresentando a boate Babylon, o que toca, quem freqüenta e o que os freqüentadores desejam naquele ambiente. (BARRETO, BEZERRA e RÉGIS, 2006) [grifo nosso]

Mas o fato é que, como nunca, viram-se na TV tantos homens homossexuais vivendo suas vidas e seus dilemas, como a traição, a aceitação das mães, a questão do casamento gay, a paternidade de uma criança criada por duas mães lésbicas, a AIDS, e a descoberta e prática sexuais em sua mais profunda verdade. “Queer as Folk”, que foi produzida até 2005 e contou com 83 episódios, teve altos índices de audiência nos Estados Unidos durante seus cinco anos de exibição. No Brasil, era veiculada pelo canal Cinemax, mas os DVDs com suas temporadas ainda não foram lançados aqui. O sucesso da série foi tão grande que o canal produtor, o Showtime resolveu ousar um pouco mais. E, em 2004, lançou a série “The L Word”.

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LEISHA HAILEY: People are gonna call it a lot of things... LAUREL HOLLOMAN: Luscious KATE MOENING: How do I describe it...? LAUREL HOLLOMAN: Lusty JENNIFER BEALS: Lusty, it certainly is one at times. LAUREL HOLLOMAN: It just simply a show that you'd have to watch ERIC MABIUS: It's so much more than you can possibly conceive of ERIN DANIELS: This is NOT a female Queer as Folk! GUINEVERE TURNER: It's a lot less drugs and a lot less dancing...it’s a show about a group of wonderful women... ILENE CHAIKEN: ...and also this guy...never forget the guy... GUINEVERE TURNER: The L Word is the first of its kind. JENNIFER BEALS: I think the show defies any kinda category... NARRATOR: This January the buzzword is The L Word, a new Showtime original series that will have America talking... or... leave it speechless. LEISHA HAILEY: I look at it as THE biggest thrill of my life, pretty much. (THE L WORD DEFINED, 2004)

LEISHA HAILEY: As pessoas irão chamá-la de várias coisas... LAUREL HOLLOMAN: Sexy. KATE MOENING: Como eu posso descrevê-la?...? LAUREL HOLLOMAN: Sensual JENNIFER BEALS: Sensual, certamente assim às vezes. LAUREL HOLLOMAN: É simplesmente uma série que você vai ter que prestar atenção. ERIC MABIUS: É, assim, muito mais do que você poderia imaginar. ERIN DANIELS: NÃO é um Queer as Folk de mulheres! GUINEVERE TURNER: Tem muito menos drogas e menos dança também... É uma série sobre um grupo de mulheres maravilhosas... ILENE CHAIKEN: ...e tem também aquele cara...nunca se esqueça do cara GUINEVERE TURNER: The L Word é a primeira desse tipo. JENNIFER BEALS: Eu penso que a série vai definer uma nova categoria... NARRATOR: Neste janeiro, o burburinho do momento é The L Word, uma nova série original de Showtime que vai dar o que falar na América... ou...deixá-la sem palavras. LEISHA HAILEY: Eu vejo isso como A grande emoção da minha vida, grande mesmo. (THE L WORD DEFINED, 2004)

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4.

A PRIMEIRA SÉRIE LÉSBICA DA TV

Quando a série “Sex and The City”, estava chegando ao fim, na segunda quinzena de 2003, logo começaram a surgir boatos sobre um novo programa que seria produzido pela rede de TV Showtime. A especulação era de que a nova série também seria sobre um grupo de amigas e suas aventuras sexuais em uma cidade. Mas, dessa vez, essas mulheres teriam, além de uma cidade diferente como pano de fundo, uma pequena diferença em relação à Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda51: elas seriam lésbicas. Os rumores aumentaram quando a campanha de marketing que começava, aos poucos, a tomar conta da internet e da TV norte-americanas anunciava: “Same sex, different city” (“mesmo sexo, cidade diferente”). E foram confirmados quando, por volta de outubro daquele ano, divulgaram o nome da série: “The L Word”. A palavra com L, que se ocultava no título da novidade, era lésbica. Sim, aquele seria um seriado sobre homossexualidade feminina. E a homossexualidade feminina em sua melhor forma: atrizes lindas e elegantes integravam o elenco, cenas sensuais eram divulgadas dos trailers antes do lançamento, muito sexo explorado de forma direta aparecia nas chamadas. Os conservadores acharam que aquilo um absurdo, alguns homens heterossexuais viram uma oportunidade de realizar suas fantasias sexuais, as mulheres heterossexuais ficaram intrigadas, e as lésbicas se dividiram: “era aquela a realidade? Qual o objetivo de se colocar mulheres tão lindas como lésbicas? Onde estão as mulheres masculinas? Será que esse seriado foi feito pra gente?”. De fato, as opiniões e críticas foram diversas, mas a verdade era que pela primeira vez se produzia uma série de TV totalmente feita por e para lésbicas. Lançada pelo canal que anteriormente havia ousado com “Queer as Folk”, a série foi uma vitória da produtora executiva e roteirista Ilene Chaiken, lésbica assumida, após três

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Personagens de “Sex and the City”, apresentadas anteriormente neste trabalho.

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anos de negociação. Quando começou a ser exibida nos Estados Unidos, “The L Word” causou muito furor e comentários negativos de várias partes. Mas a primeira temporada passou, veio a segunda, que garantiu a renovação para a terceira, seguida pela quarta e no dia 06 de janeiro de 2008, “The L Word” estréia sua quinta temporada nos Estados Unidos, com um status muito positivo, além de muitos patrocínios, adquiridos ao longo dessa jornada.

Quando se fala em mídia internacional especializada, não é incomum que se retrate The L Word como um “Sex and the city lésbico” ou um “Sex and the city lésbico, mas menos moralista”. Essa comparação pode ser feita, inclusive, no que tange a padrões de consumo, modelos estéticos e pertencimento de classe. Contudo, as lésbicas de The L Word embora estabeleçam relações de longo prazo em alguns momentos, ou desejem isso, não pautam seu discurso na idéia de “só ser uma mulher completa dentro de uma relação”, mas partem da idéia de que a orientação sexual cria uma série de inserções sociais que não poderiam ser pensadas fora desse contexto, um lugar diferenciado no mundo, cujo instrumento principal de agência é a idéia de que é bom ter este estilo de vida e que é bom estar fora do armário. (VENCATO, 2005, p. 54)

Ao longo deste capítulo, pretendo analisar a homossexualidade feminina representada nas quatro temporadas de “The L Word”. Não pretendo, nesta análise, me concentrar muito na história em si, apesar de, por algumas vezes, relatá-la para dar sentido ao resto do contexto. Meu foco principal, portanto, se tornam as várias identidades lésbicas que ali foram exemplificadas e nas diversas situações que, apesar de ficção, refletem bem as conquistas, dilemas, dúvidas, escolhas e vivências da mulher homossexual contemporânea, seja ela americana ou não.

4.1.

A Palavra L: lésbicas com glamour e verossimilhança

No dia 18 de janeiro de 2004, os americanos puderam ver, na TV por assinatura, em menos de 1 minuto e meio de programa, um casal de lésbicas dormindo nuas em uma cama de casal, cobertas apenas por um lençol, e, em cena seguinte, um beijo insinuante entre ambas que comemorava o fato de uma delas estar ovulando, ou seja, era o momento ideal para

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fazer a inseminação artificial. Se em tão pouco tempo, um programa de TV apresentava tantos tabus sem que estivessem cheios de preconceito, era o presságio do que estava por vir. “The L Word” se tornou um fenômeno da TV por assinatura e da internet, sendo lançado no ano seguinte no Brasil, também no canal fechado. Hoje, indo para sua quinta temporada, o seriado não precisa mais provar sua rentabilidade financeira e qualidade técnica. Mas quais foram as principais ferramentas que abriram o caminho para que isso fosse possível, para que as lésbicas tivessem essa visibilidade? Ainda mais estando a homossexualidade à margem do padrão heterossexual de sociedade, estabelecido através dos tempos e reforçado pelo preconceito e pela homofobia, como foi visto anteriormente. Teria o formato seriado de TV, como a vanguarda da televisão, contribuído para essa abertura? Apesar de vanguardista, nem mesmo a televisão aceitou prontamente a idéia de se produzir uma série sobre lésbicas. A produtora Ilene Chaiken, quando apresentou a idéia em 2000, foi considerada louca pelos produtores do canal Showtime. Em entrevista dada em 2005 ao programa “In The Life”, uma revista eletrônica voltada para homossexuais dos Estados Unidos, Ilene afirmou que os donos da emissora disseram não ser possível conseguir patrocínio para um programa deste tipo. Apesar da primeira negativa, ela insistiu no projeto por três anos. Somente quando os executivos constataram o inegável valor comercial de “Queer as Folk”, que além audiência, tinha conseguido emplacar no mercado com outros produtos de mershandising, como CDs, camisas, bonés, adesivos e até bonecos52, seus olhos voltaram a prestar atenção no projeto de “The L Word”. Mas o apelo principal que viram na série naquele momento era outro. Segundo o artigo “The Final Frontier: Lesbians”, publicado no N.Y. Daily News em 2003, o vice-presidente da programação original do canal Showtime, Gary Lavine, afirmava que o “sexo lésbico, garota com garota, é um prato cheio para atrair a audiência de ho-

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Para mais informações sobre os produtos, ver

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mens heterossexuais” (HUFF, 2003 tradução nossa). Ou seja, conforme os donos da TV, a audiência estaria garantida ao promover a grande fantasia masculina de duas mulheres juntas. Na bandeja, a série levaria a gays, lésbicas e mulheres heterossexuais a assistirem também. Ainda conforme o artigo, essa audiência masculina seria “educada”, através de histórias profundas e das interpretações das atrizes, que, no final das contas, iriam mostrar aos homens heterossexuais como respeitar o estilo de vida da mulher lésbica. Parece mais um discurso moralista que procura desculpar a existência de uma série sobre o tema. Mas, independente disso, foi o canal Showtime um dos grandes responsáveis por se falar tanto sobre homossexualidade na TV dos últimos anos. A produtora, neste primeiro momento, sabia que as regras a seguir seriam essas, senão sua empreitada não seria possível. Ela afirma no mesmo artigo, por exemplo, acreditar que o Showtime, assim como ela, tinha um gosto especial em contar aquelas história por ser algo totalmente ousado, inesperado e, como se revelaria aos poucos, profundamente emocional. A partir dessa idéia, o episódio piloto foi criado. O mote principal da história era simples, e a fórmula parecia repetida: a vida de mulheres em uma cidade. Como núcleo principal, “The L Word” apresentava um grupo de amigas, na faixa dos 30 anos, lindas, femininas, independentes, ricas, elegantemente vestidas, com trabalhos de projeção e boas moradias na atual Los Angeles, nos Estados Unidos. Mulheres que, num primeiro olhar, seriam caracterizadas como heterossexuais. Mulheres que, “apesar disso”, eram lésbicas. Atrizes como Jennifer Beals, Pam Grier e Mia Kirshner foram escolhidas para os papéis principais. Todas elas heterossexuais, todas elas com uma tradição de personagens extremamente sensuais, tanto no cinema quanto na TV. A atriz Jennifer Beals havia mexido com a cabeça de muitos homens e mulheres no clássico dos anos 80 “Flashdance” (1983), com sua famosa dança e sua atitude independente e forte de construtora civil. Pam Grier, também cantora, era a querida de Quentin Tarantino, com quem fez a provocante “Jackie Brown”

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(1997), uma homenagem aos vários papéis parecidos que havia interpretado nos anos 70. Já Mia Kirshner foi uma das vilãs de “24 Horas” (2001), na qual também interpretava uma assassina lésbica com muito apelo sexual em suas cenas. Além delas, Karina Lombard, Erin Daniels, Lauren Holloman, Katherine Moening, que afirmavam ser heterossexuais, foram escaladas para viverem lésbicas na série. Por outro lado, a única atriz homossexual assumida, Leisha Hailey, foi convidada a viver uma bissexual. Estava pronto o elenco principal de “The L Word”, que ainda contava com o ator Eric Mabius. Como detalhe importante, assim como a palavra lésbica, todos os títulos dos episódios começariam com a letra L53. Neste momento, é importante fazer um parêntese. Como já citado anteriormente, a internet em suas conexões banda-larga facilitaram muito o acesso às séries de TV bem antes da sua estréia oficial em outros países. Com “The L Word”, não foi diferente. Uma grande parte das espectadoras e dos espectadores do seriado, assim como da opinião da crítica especializada, foi formada praticamente ao mesmo tempo tanto aqui quanto nos Estados Unidos. Apesar da série só ter sido lançada oficialmente no Brasil no dia 10 de julho de 2005, através de downloads dos episódios, milhares de pessoas acompanhavam “The L Word” desde sua primeira exibição, em território americano, já em 2004. Com isso, prefiro neste momento tornar paralelas as exibições e citar os fatos ocorridos nos dois países simultaneamente. Isso por considerar as reações parecidas, apesar de algumas diferenças pertinentes, o que reforça meu ponto de vista da série como uma representação mais global da lesbianidade. Fechado o parêntese, volto à campanha de lançamento da série nos Estados Unidos, quando, apesar de ainda não terem visto o piloto, a comunidade lésbica dos Estados Unidos resolveu se manifestar contra a falta de representantes mais masculinizadas na série. Onde estavam as chamadas “butches” ou “dykes”? Por que todas eram tão lindas, “femmes”, de alto poder aquisitivo, bem no estilo consumista “lesbian chic” se aquela não era bem a realidade? 53

Apenas o episódio piloto não teve seu título iniciado por L. Os títulos de todos os episódios já lançados, assim como sua descrição, elenco e convidados, podem ser vistos em ou no site oficial da série: , acesso em 20 nov. 2007.

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Antes de aprofundar nessa questão, quais seriam, então, essas identidades lesbianas, construções sociais ou estereótipos, que vigoram em nossa cultura?

É possível que a rigidez da divisão binária da sexualidade humana faça com que a atração por outra mulher crie a necessidade de adotar características masculinas, físicas e comportamentais, tosca forma de encenar a sedução (BARRET, 1990: 257). [...] Temos aí o esquema da ordem heterossexual em corpos biologicamente femininos, o casal butch/femme. Outros tipos seriam a esportiva, cuja liberdade corporal inspira dúvidas, a lesbian chic, meio andrógina, com especial cuidado no visual, e, quem diria, aquela que não tem nenhum signo externo de suas preferências sexuais e, neste caso, todas as mulheres podem estar incluídas. Este último tipo é talvez atualmente o mais difundido, não como uma forma de esconder a sexualidade, mas para marcar a privacidade de opção. Afinal, por que a sexualidade teria que ser explicitada? (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.80-81)

No prefácio à edição brasileira do livro “Sexo entre Mulheres: um guia irreverente” (1998), de Susie Bright, existe uma outra concepção dos papéis butch e femme:

Butches não são mulheres que desejariam ser homens. Butches são mulheres que se sentem mais à vontade com comportamentos tidos como masculinos, mas que na verdade podem ser praticados tanto por homens quanto por mulheres. [...] Femmes, do mesmo modo não são mulheres à espera de um homem pra lhes mostrar as maravilhas da vida heterossexual. Femmes, são mulheres que se sentem atraídas por mulheres, e ao mesmo tempo gostam do papel tradicionalmente feminino criado pela sociedade. Muitas vezes, Femmes se sentem atraídas por Butches e vice-versa, mas simplesmente porque esta parece ser uma boa combinação de energias, e não porque desejem imitar modelos heterossexuais. São dois tipos culturais que, é claro, não existem em estado puro, sendo cada mulher uma mistura das duas tendências de comportamento e aparência, ou nenhuma delas, como a androginia vem demonstrando. (BRIGHT, 1998, p. 10)

Ainda conforme explica Bright, durante a revolução feminista, a relação butch e femme fora rejeitada por ser uma reafirmação da heteronormatividade vigente54. Mas atualmente, esses termos são valorizados como polaridades do modo de ser erótico das mulheres (BRIGHT, 1998). Por isso a falta dessa representação causou tanto furor, porque muitas lésbicas não se viram representadas na série que seria feita para elas.

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Um bom exemplo dessa rejeição pode ser visto na segunda história do filme “Desejo Proibido” (“If the Walls Could Talk 2”, 2000), em que uma feminista lésbica se apaixona por uma butch e acaba criticada por suas amigas.

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Isso causou alguma celeuma nos fóruns internacionais, que reclamavam que as lésbicas masculinizadas deveriam estar representadas não apenas como figurantes eventuais. Essa discussão, contudo, não teve quorum no Brasil, em que a maior parte das discussões passou mais pela idéia de que é bom ver mulheres lésbicas bonitas na TV, uma vez que no imaginário social lésbicas são comumente pensadas como mulheres masculinizadas e descuidadas. Evidentemente, este seria o argumento mais politizado e pouco citado. A beleza das atrizes geralmente é citada muito mais em tom de tietagem que qualquer outra coisa. [...] Contudo, apesar dessa ausência, não se pode pensar em The L Word fora de um movimento de política identitária americanizado e que tenta representar vários sujeitos diferenciados dentro daquele cenário social. (VENCATO, 2005, p. 54)

A questão é que “The L Word” realmente foi lançada com um apelo muito forte para o público heterossexual masculino. E, por isso, essas características acabaram sendo maquiadas para ficarem mais sexualizadas. Tanto as produtoras quanto as diretoras, em sua maioria lésbicas, aparentemente sabiam o que estavam fazendo desde o início. Sabiam que para emplacar no mercado, sexista e patriarcal como ele é, um produto feito por mulheres lésbicas, para mulheres lésbicas e com mulheres lésbicas, seria preciso como estratégia, seguir algumas regras preconceituosas. Infelizmente, essa ainda é a realidade. Felizmente, a equipe de “The L Word” não se manteve submissa ao mercado. Para alívio da comunidade lesbiana, a série se transformou logo no primeiro ano e teve modificada sua forma de abordagem, passando a mostrar lésbicas mais realistas e se tornando uma referência do que acontece na comunidade homossexual feminina. Além disso, conseguiu, como previa sua produtora Ilene Chaikn, que os homens que procuravam a série apenas para verem duas mulheres de “pegando” mudassem suas opiniões. Uma delas foi a do articulista do jornal O Globo, Arnaldo Bloch.

Um ano atrás eu disse neste espaço que a série The L word, que retrata o mundo gay feminino, era uma buesta, artificial, preconceituosa. Um ano depois, reformulo: é a melhor série da TV mundial. Mas... Melhorou tanto? Não. Apenas passei a olhar com atenção a seqüência de episódios, os universos de personagens, e descobri ali uma bela carga dramática. "Hahahahahaha!", dirão, "Carga dramática o cacilder, é um punhetódromo com faixa-bônus artística". Em parte terão razão: adoro olhar mulher se amar (até hoje, nas telas), não só por falar-me ao pau, mas também pela beleza do evento homofeminino. E, nesse aspecto, The L word capricha: com uma puta direção de cena, as transas e os sarros são cheios de verdade sem jamais resvalar no pornô ou na cafonália dos sexy hots não pagos da vida. Além disso, as tramas são boas mesmo, os diálogos ágeis e livres de bordões, a música ótima, a câmara sutil e

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a montagem capaz de surpreender. É claro que isso não basta: sem pelo menos duas trepadas por episódio eu não correria todo domingo às 23h para ver minhas sapatinhas na TV, exercendo meu lado lésbico, que é essa mania de adorar mulher e detestar homem. (BLOCH, 2006, disponível em , acesso em 17 nov. 2007)

Como mostra bem esse exemplo de pensamento masculino e machista, a estratégia deu certo. A série foi conquistando seu espaço logo na primeira temporada, e, através de sua narrativa e viradas nas vidas das personagens, mudando a abordagem proposta pelos donos do canal. Mesmo assim, uma coisa permaneceu: o sexo. A forma como a série mostra a vida sexual das homossexuais de Los Angeles nunca havia sido adotada antes. Cenas de sexo com as lésbicas, bissexuais e heterossexuais da série recheiam a trama em todos os episódios. Mas, ao contrário do que se pensa, não são cenas pornográficas ou de simples cunho erótico. São cenas bem dirigidas que, apesar de sutis, fazem cair por terra duas ultrapassadas concepções: a primeira, de que lésbicas não têm uma vida sexual ativa, que seu relacionamento é baseado muito mais na afetividade do que no sexo; a segunda, de que a relação sexual das lésbicas não é completa, já que não há a presença do falo.

Uma das idéias preconcebidas e que aparece com freqüência na literatura é que entre as lésbicas a sexualidade não tem relevância e elas priorizam as carícias amorosas e o sentimento. Alguns exemplos: „Muitas vezes é o vínculo afetivo que é considerado mais importante, ou então o contato sexual pode ser mais uma questão de carícias feitas entre as várias regiões do corpo do que um contato voltado essencialmente para os órgãos genitais‟ (Fry, 1985: 106). Ou ainda: „Mas como muitos casais lésbicos, mesmo no século XX, o aspecto sexual de seus relacionamentos não é de importância primordial. Seus laços são baseados mais no intelecto e nas paixões compartilhadas‟ (Richards, 1993:268). Essas análises dão uma conotação negativa, de seres quase assexuados, e, num mundo onde o sexo é rei, onde a psicanálise faz lei, dar pouca importância à performance sexual reabre o espectro de doença, do antinatural. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p. 82)

A série entrou fundo na questão, mostrando não só o aspecto afetivo, como também os movimentos de conquista, a sedução e todo o processo da relação sexual em si, com direito ao desfecho final. No episódio piloto da série, por exemplo, a personagem Jenny (Mia

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Kirshner), faz sexo pela primeira vez com uma mulher. Na cena, além das carícias e dos carinhos, é visível, e bem realista, o momento em que ela chega ao orgasmo. Num misto de culpa, por estar traindo o noivo, e alegria, por sentir muito prazer, Jenny termina a cena chorando e sorrindo. Momentos como estes comprovam o que sempre se soube: tudo, na verdade, é apenas uma questão de desejos.

Uma sexualidade problemática, uma recusa do corpo e de seus prazeres, não é mais comum entre as lesbianas que entre as mulheres heterossexuais, como tantas vezes se pretende. Enquanto ligadas a experiências e identidades de mulheres, podem ter sofrido os mesmos traumatismos e violências, os mesmos abusos e assédios que as heterossexuais, num mundo onde a sexualidade masculina dita as normas. De toda forma, no processo de socialização, o que é conseqüência é tomado como causa: as meninas e as mulheres aprendem a controlar, a disciplinar, a negar seus desejos e seus corpos em nome da moral e dos bons costumes, e toda lésbica foi um dia uma menina. Uma vez anulados o desejo e a paixão, alega-se que não os possuem. (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.83)

“The L Word” traz mulheres que podem fazer tudo, menos anular seu desejo e paixão. Em suas temporadas, mostrou pela primeira vez em tom não pornográfico, situações como o uso de acessórios e brinquedos sexuais, o sexo a três, uma transexual feminina se relacionando tanto com uma mulher, quanto com um homem, o sadomasoquismo, a realização de diversas fantasias sexuais e a descoberta do sexo homossexual na terceira idade, dentre outras. Essa característica da série, as amostras da vida sexual das lesbianas que são por ela mostradas, foi responsável por um caso particular que já demonstrava o poder de influência da série. Em 2005, quando o canal Warner da TV por assinatura começou a exibir a série na América Latina, as fãs que já acompanhavam pela internet levaram um susto. As legendas pareciam não traduzir exatamente o que estava sendo dito e o texto estava sem sentido. Além disso, o intervalo comercial entrava justamente na hora “h”.

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Estranhamente, a versão que a Warner latina está colocando no ar para toda a América do Sul e Central é uma versão “light”, mutilada e picotada! Sim, caras leitoras, a Warner optou por exibir “The L Word” cortando 90% das cenas de sexo, e não foi só sexo lésbico que foi deixado de fora: cenas de sexo heterosseuxal também foram editadas. Não bastassem os cortes, nesta versão “latina” algumas palavras mais fortes são dubladas (em inglês mesmo). Termos como “pussy” (boceta), “dick” (pau), “fuck” (foda) e “dyke” (sapata) são substituídas por outras mais “leves”: “fuck” (foda) virou “fudge” (soda), por exemplo. Para finalizar o show de horrores, a tradução nas legendas é risível. Como foi muito bem observado por uma amiga, a frase "everything in the way you dress screams lesbian" (tudo no seu jeito de se vestir alardeia que você é lésbica) foi traduzida como “suas roupas criam uma barreira”. Ou seja, o próprio sentido da frase foi invertido! (LEONEL, 2005, disponível em , acesso em 20 de julho de 2005)

A articulista do site Mix Brasil, Vange Leonel, e o site The L Word BR, que assim como várias fãs, consideraram o ato de censura um absurdo, lançaram na internet a campanha para que os executivos da Warner Channel voltassem atrás.

“The L Word”, como está sendo transmitido pela América Latina, perde o sentido, a graça e a qualidade. A impressão que ficou desses dois primeiros episódios é que a turma de lésbicas retratada é um grupo infeliz, superficial, enrustido que age sem motivações razoáveis. Resumindo: a versão que você, leitora, está assistindo pela Warner Channel é um arremedo, uma obra mutilada. Por acaso nós, lésbicas, temos que nos conformar com essas mutilações e clitorectomias? De Safo, só sobraram fragmentos. Nas novelas os beijos lésbicos são proibidos. Quando finalmente é produzido um seriado que nos retrata de maneira menos envergonhada, a TV local resolve exibi-lo com cortes. (LEONEL, 2005, disponível em , acesso em 20 de julho de 2005)

Em seguida, no artigo, eram divulgados vários endereços, físicos e eletrônicos, para que fossem feitas reclamações. Ao mesmo tempo, tentaram saber, assim como outras fãs da América Latina, por que a série havia sido censurada daquela forma e por que não havia um horário de reprise dos episódios, algo normal para os outros seriados. A resposta do administrador do canal teria sido a seguinte: “Acontece que já recebemos as fitas editadas. Isto é, tem uma edição para o mercado interno dos EUA e outra para o mercado externo, onde nos encaixamos. Eis a diferença.” (THE L ..., 2005)

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Como a resposta não parecia ter o mínimo sentido, a jornalista Martha Vasconscelos e sua companheira Luriana, que são as criadoras do site The L Word BR 55, escreveram uma carta para a Warner, na qual reivindicavam o fim da censura.

O horário em que The L Word vai ao ar já é adequado para que não haja cortes. Se ainda não for, que se altere o horário! E a Warner é experiente o bastante para também não derrapar nas traduções como fez com os episódios exibidos. Reivindicamos que The L Word seja exibida na íntegra, como acontece nos países desenvolvidos! O Grupo The L Word BR atualmente tem mais de 1000 pessoas indignadas com essa atitude de extrema falta de respeito para com os telespectadores da série e do canal. The L Word sem cortes e sem censura, já!!! (MENSAGEM..., 2005, disponível em http://www.thelwordbr.com.br/reclame.html, acesso em 20 nov. 2007)

Não só essa mensagem, com centenas de outras chegaram engrossando a lista das reclamações. Se pararmos para analisar, o fato das pessoas terem visto a série anteriormente pela internet não atrapalhou a audiência do canal. Muito pelo contrário, centenas de fãs celebraram quando “The L Word” começou a ser anunciada no canal latino-americano e, da mesma forma, criticaram o canal quando este passou a exibir a versão cortada.

Os fóruns da Warner brasileira, latina e do Orkut estão repletos de reclamações de fãs e abaixo-assinados para que a rede exiba o seriado sem cortes. Telespectadoras no Chile, México, Argentina e Brasil tentaram obter da Warner latina uma resposta e tudo o que ouviram foi que a emissora já recebeu os episódios assim, editados, e que a versão exportação do seriado é diferente da que foi exibida dentro dos Estados Unidos. Por outro lado, fãs que entraram em contato com a Showtime (produtora de “The L Word” e responsável por sua venda para o exterior) disseram que receberam e-mails da empresa confirmando que não existe “versão alternativa” e que eles vendem a série sem cortes. (LEONEL, 2005, disponível em

, acesso em 20 de julho de 2005)

Após a exibição de três episódios56, a Warner Channel mudou de idéia, não só com o reinício da série totalmente sem os cortes ou alterações de falas, como criou um horário de reprise, outra exigência das fãs. A partir daí, no Brasil a série provocou a criação de diversos sites, blogs e comunidades do Orkut, todos eles para acompanhar cada passo dado pelas

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Disponível em < http://www.thelwordbr.com.br/>. Martha e Luriana também são as mediadoras do grupo “thelword_br” do Yahoo (http://br.groups.yahoo.com/group/thelword_br/), que tem 2079 integrantes e do blog . (acesso em 25 nov. 2007) 56 Para conferir a comparação entre os episódios censurados e os completos, ver , acesso em 25 nov. 2007.

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meninas de “The L Word”. Mesmo quem já tinha visto, pôde ver de novo pela TV, e, dessa vez, em sua íntegra. E, mais do que nunca, foram percebendo que ali poderiam encontrar uma identificação possível com seu mundo. Quais são, então, os tipos de lésbicas que apareciam na série? Quais são as principais identidades que elas assumem ao longo da história, para que haja essa identificação mesmo com realidades tão diferentes? Porque de fato, mulheres lésbicas lindas e ricas não são a maioria no mundo, são na verdade uma ficção criada no universo de “The L Word”.

Acho que há muitas lésbicas que gostariam de ver mais sexo na TV, mais ação, mais comicidade e mais, porque não estão esperando realidade e sim uma novela e as novelas nunca são... Elas têm temas da vida real e coisas com as quais pode se identificar, mas elas podem levar a um lado que você não verá na sua vida. Não quero ver a minha vida, ela é chata. Eu apenas vou pro trabalho, volto pra casa, sou legal com todos. Quero mais suspense, drama, sexo e coisas sobre as quais talvez fantasie ou coisas que posso ver na TV, porque é TV. (THE L..., 2006)

De forma resumida, neste momento, é possível perceber que, logo na primeira temporada, estão presentes várias representações lesbianas as que assumem o papel de “provedor” e “provida” numa relação, aquela que é amiga de todo mundo, principalmente para ser aceita em sua sexualidade ambígua, a que não se atém a relacionamento algum e que acaba “agindo como um homem agiria”, ou seja, adotando um tipo de vida promíscuo, ou a outra que não se assume pelo medo, pela insegurança e pela pressão da família conservadora. Tem também a que é sensual por natureza e tem como prática revelar o lado lésbico em outras mulheres, além daquela que nunca havia pensado em lesbianidade até que experimentou. Isso sem contar os diversos outros tipos de representação da homossexualidade feminina que aparecem através das coadjuvantes ou figurantes. Ainda nos episódios da série podem ser encontradas diversas situações como: as relações inter-raciais, as grandes diferenças de idade, o homem que nasceu em corpo de mulher, e por isso, torna-se transexual, a mulher casada e mais velha que se descobre homosse-

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xual na terceira idade, a política “don’t ask, don’t tell” (“não pergunte, não diga”)

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do exér-

cito americano, a do amor entre amigas, a do amor com uma portadora de necessidades especiais, da dor da descoberta de um câncer de mama e a da homoparentalidade, tanto no caso de inseminação artificial, quanto no caso de uma das mulheres já ter filhos.

A série se esforça em inserir personagens de etnias diversas, discute família, raça, sado-masoquismo, traição, homoparentalidade, etc., tentando dar um tom inclusivo a práticas sexuais diversas. A série traz, também, discussões acerca do sexo conjugal e do sex for fun (sexo pelo sexo), sem tentar, de modo geral, legitimar uma e deslegitimar a outra. Não há uma narrativa sobre sexo seguro na trama, nem sobre doenças sexualmente transmissíveis. O seriado gira em torno de algumas narrativas pertinentes ao grupo: homoparentalidade (no caso, com reprodução assistida), (construção de/ relação com) família, sair do armário - visibilidade, práticas sexuais, conjugalidade - traição, uso de drogas (álcool e outras), homossexualidade e trabalho, homossexualidade e lazer, homossexualidade e consumo. (VENCATO, 2005, p. 54)

Essas identidades, representadas pelas atrizes do seriado, foram somadas a outras já existentes. No processo de identificação com as personagens por parte das espectadoras, passou-se a questionar quem são as meninas de “The L Word” na vida real.

Quem fez o cabelo da personagem Shane na primeira temporada transformou-a na Rachel de “Friends” para as lésbicas. [...] Acho que “The L Word” virou uma grande parte da cultura lésbica. Pois podemos nos identificar com ele. Então todo mundo fica: “Ela é uma Carmem, ela é uma Shane, ela é uma Bette, ela, Tina. É realista para nós E me dei conta de que é uma coisa de idealização. Tipo, todas dizem: “Quero ser como ela.”, entende? É estranho como se tornou parte da vida de todo mundo. (THE L..., 2006)

Assim como em outros fóruns, a comunidade brasileira da série no Orkut, The L Word Brasil, que tem hoje mais de 13 mil membros, tem como um dos mais populares tópicos e perguntas e respostas o “quem é ela em The L Word?”, no qual a participante deve dar sugestões sobre com qual das personagens a pessoa de cima se parece. Já foram dadas mais de

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Em 1994, o então presidente americando Bill Clinton aprovou a chamada lei do “não pergunta, não diga”. A lei, em vigor até hoje no exército dos EUA, proíbe que os homossexuais e bissexuais falem abertamente sobre sua orientação sexual, relacionamentos ou que tenham atitudes de gays assumidos enquanto estiverem servindo às forças armadas. De 1994 a 2005 foram dispensados mais de 11 mil soldados homossexuais das forças armadas dos Estados Unidos. (disponível em , acesso em 25 nov. 2007)

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10.50058 respostas ao fórum. Outro muito interessante é o que sugere atrizes brasileiras caso a série fosse produzida aqui. Nomes como Ana Paula Arósio, Camila Pitanga, Letícia Sabatella, Carolina Ferraz e Maria Fernanda Cândido estão entre as sugestões. Na mesma comunidade, uma outra enquete questiona qual era o maior mérito da série. Com mais votos (45%) estava a resposta “tornar a comunidade homossexual unida”. De fato, esse é um aspecto importante. O documentário “The L World”, de 2006, mostra como as lésbicas passaram a se reunir para assistirem aos episódios em diversas cidades dos Estados Unidos, como Los Angeles, Salt Lake City, Philadelfia, San Diego e Houston. Em todos os grupos, formados por lesbianas de diversos tipos, as opiniões eram as mesmas: os encontros começaram porque nem todas tinham TV à cabo e serviram para fortalecer a amizade ou formar novas e, além disso, as personagens e situações da série, apesar de não serem perfeitas, retratavam suas vidas, desejos e anseios.

Conheço pessoas que estão bravas porque “The L Word” não nos representa e acho que isso é não entender. A série é como um livro de colorir em que você coloca suas próprias cores e coisas. Porque a função que teve na minha sociedade, meu grupo, é que todas nós nos reunimos aos domingos à noite e, sabe, é como um bando de “sapas” tendo um programa para poder rir. É uma reunião de força, e isso é realmente ótimo. (THE L..., 2006)

Isso mostra que, mesmo não representando exatamente a vida real das lésbicas, o processo de identificação é positivo e necessário. No mesmo documentário, a historiadora e ativista Leah Devun afirma:

Quanto mais opções você tiver, mais espécie de modelos poderá ter para o tipo de homossexual que há por aí, que homossexual você pode ser e seria maravilhoso se pudéssemos ter cada vez mais. Para que as pessoas soubessem que podem ser quem elas quiserem, onde quer que estejam. (DEVUN, Leah in: THE L..., 2006)

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Dados de 25 de novembro de 2007. Disponível em , acesso em 25 nov. 2007

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Desde suas primeiras exibições, o seriado também se tornou um espaço de divulgação dos movimentos e dos locais dedicados às lésbicas existente nos Estados Unidos. Na primeira temporada, aparecem eventos como o Dinah Shore Weekend,59 realizado anualmente em Palm Springs e considerada a maior semana lésbica do mundo, com sua famosa “White Party” (“Festa do Branco”, como mostra o último episódio da primeira temporada), ou como o Cruzeiro Olívia60, um dos mais antigos eventos turísticos criados para as lésbicas. O Cruzeiro Olívia, que aparece no episódio 10 da segunda temporada (“Land Ahoy”), existe desde 1973 e realiza viagens pelo caribe, além de resorts, para clientes exclusivamente lésbicas. As paradas do orgulho também aparecem, principalmente a Gay Pride Parade 2005 de Los Angeles, na segunda temporada. Nela aparecem o “Dykes on Bikes”,61 grupo de lésbicas motociclistas que desde 1976 participa das paradas do orgulho LGBT nos Estados Unidos.

Diferente da idéia de uma lésbica descuidada, as lésbicas ali retratadas constroem carreiras sexuais pautadas num tipo de consumo gay comum ao modelo americano: cruzeiros lésbicos, festas em resorts dirigidos ao público homossexual feminino e, mesmo, o acesso e realização de certas fantasias sexuais que envolvem uso de acessórios, lugares inusitados eventualmente, mas uma sexualidade que pode ser vivida intensamente pois todas, solteiras ou não, possuem sua própria casa montada, palco para encontros de uma noite ou relações mais duradouras. (VENCATO, 2005, p.56)

A série também é responsável pelo lançamento de várias cantoras e de vários grupos lésbicos, com uma trilha sonora que também se tornou febre entre as espectadoras. Nomes como o grupo Betty, criadoras da trilha de abertura do seriado, EZGirls, The Murmurs, Heart, The Organ, que antes eram desconhecidos, começaram a fazer sucesso após aparição no seriado. Engraçado notar que sempre há um show desses grupos para elas irem e, quando chegam lá, eles são muito famosos. As integrantes de Betty, inclusive, participam como atrizes de vários episódios da série, fazendo parcerias musicais com a personagem de Pam Grier (Kit Potter), que é cantora, ou se envolvendo em algum romance ocasional. 59

Disponivel em , acesso em 25 nov. 2007. Disponível em , acesso em 25 nov. 2007 61 Disponível em , acesso em 25 nov. 2007. 60

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Aliás, uma das exigências da produtora Ilene Chaiken é exatamente que se dê espaço para as lésbicas assumidas participarem de “The L Word”. Sejam como roteiristas, diretoras, atrizes, cantoras ou equipe técnica. Por isso costuma-se dizer que a série é feita por lésbicas. No documentário “The L World” (2006), Ilene afirma que sua intenção é “tentar trabalhar com todas as boas cineastas lésbicas”, quando anuncia em uma festa que o episódio que seria exibido fora dirigido por Kimberly Peirce, de “Meninos Não Choram” (“Boys Don‟t Cry”, 1999). Uma das diretoras recorrentes da série, por exemplo, é Rose Troche, que em 1994 dirigiu “Go Fish!” (“O Par Perfeito”), um dos filmes mais cultuados no meio lésbico, por ter sido quase uma “cartilha de comportamentos”. O filme ainda trazia Guinevere Turner, também roteirista da série que participou de alguns episódios como Gaby, ex-namorada de Alice.

Podemos não viver em West Hollywood ou caminhar pelas ruas ensolaradas da California, mas todas nós já vimos ou vivemos algo assim. Essa identificação foi percebida e quase todos os dias vemos uma dessas usuárias da lista contar algo que praticamente reproduz o que vimos na série. Temos percebido também que as fãs heterossexuais, por incrível que pareça, têm se identificado de alguma maneira, e também conseguem se ver nos problemas mostrados na série. Muitas até dizem estar adorando saber que as lésbicas podem ter vidas tão normais quanto qualquer pessoa hétero. (VASCONCELOS, 2006, disponível em , acesso em 20 nov. 2007)

Concluindo, a série, mais que tudo e com doses bem cuidadas de humor, drama e realidade, se tornou uma fonte de visibilidade das lésbicas e de seu movimento cultural, político e social, assim como de suas diversas identidades. Podemos ainda falar de quantas mulheres conseguiram, a partir da série, aceitar sua homossexualidade e se assumir, pois viram-se refletidas nas situações ali mostradas.

Não acredito que a mídia influencie nefasta e negativamente a telespectadores inocentes e que por isso essas mulheres enganadas pelas artimanhas da mídia cruel passem a ter esse desejo que antes não tinham. Penso que, de fato, o que acontece é que a mídia pode abrir um espaço de diálogo, apontar possibilidades, propiciar a inserção num universo antes desconhecido e que, a partir do momento em que se torna conhecido, pode se transformar em algo muito mais próximo e, quem sabe, tão pró-

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ximo a ponto de se tornar pessoal. Se a lógica da luta contra o preconceito é tornar experiências outras, distantes, em mais próximas e menos exóticas; retratar modos de vida que divergem do normativo como possíveis e legítimas, de modo a fazer com que deixem de ser vistas como marginais, tem sido comum ao seriado. (VENCATO, 2005, p.57)

Por isso sua importância pode ser considerada, apesar de tão pouco tempo de existência. Também no documentário “The L World”, a fundadora dos Cruzeiros Olívia, Judy Dlugacz, faz a seguinte afirmação: “As lésbicas permanecem um grupo privado de privilégios neste país, e a mídia conduz hoje a maioria da conscientização. Havendo visibilidade, há mudança. Havendo visibilidade e educação, os outros não podem mais te odiar.” (2006)

4.1.1.

Primeira Temporada – a rede das meninas

A primeira62 temporada de “The L Word” foi exibida nos Estados Unidos de janeiro a abril de 2004 e lançada na América Latina em julho de 2005, teve 14 episódios, sendo que o piloto foi dividido em primeira e segunda parte. No começo de 2007, foi lançada em DVD no Brasil, numa coleção que trazia 04 DVDs e poucos extras. Primeiramente, a temporada serviu para apresentar as personagens principais e ambientar as histórias. No começo de cada episódio, a diretora criou situações do passado que, além de contarem um pouco da história da homossexualidade, acabam tendo alguma relação intrínseca com algum fato no desenrolar da narrativa. Via de regra, bem no estilo novelístico, existem vários núcleos que desenvolvem suas histórias paralelas e congruentes. Assim, temos a personagem Bette Potter (Jennifer Beals), que é a diretora do museu California Art Center - CAC e, há sete anos, vive com Tina Kenard (Laurel Holloman). Tina abandona seu emprego porque elas decidiram ter um bebê através da inseminação artificial. Bette, uma mulher afro-americana forte e decidida, que assumiu as contas da casa e da

62

Ver personagens e material gráfico, além do quadro de Alice, no anexo 1.

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família, vive para o trabalho. Sua rotina intensa e estressante, assim como a longa duração do casamento, acaba refletindo na vida sexual do casal. Tina, a princípio parece submissa, mas é ela quem percebe que estão com problemas, ela quem conduz a relação para que dê certo, inclusive sugerindo a terapia. Juntas, representam o casal de lésbicas que passam a fazer tudo juntas, que se unem rapidamente, estabelecendo laços afetivos profundos e dependência emocional intensa em pouco tempo. Durante uma das sessões de terapia, no primeiro episódio, Tina solta uma frase que acaba mostrando bem como a relação duradoura entre lésbicas acaba se estabelecendo: “the lesbians urge to merge!”, algo como “as lésbicas desejam se fundir” (tradução nossa). Elas representam também a questão da homoparentalidade, com os casais se organizando para terem filhos quando conseguem uma boa situação financeira e uma relação estável. A tecnologia e os avanços da medicina permitiram que esse procedimento se tornasse mais acessível, apesar de ainda muito caro, e, por outro lado, as leis estão mais brandas no caso de adoção. Dessa forma, as mulheres lésbicas hoje em dia têm um direito que muitas mulheres do passado não tiveram: o de escolher exatamente quando e com quem querem ter filhos. A gravidez planejada, as novas estruturas familiares do novo século e a educação sexual mais aberta das crianças estão tornando mais fáceis tanto o lado dos pais homossexuais quanto de seus filhos. Como citado, o caso do filho da cantora Cássia Eller abriu precedentes no Brasil para esse tipo de caso, mas, da mesma forma, isso só foi possível porque a sociedade está adquirindo consciência dessas chamadas “novas famílias”. E abordar esse caso na série é fundamental para essa conscientização.

No caso das famílias homoparentais e dos outros tipos de famílias “alternativas”, o trabalho de desconstrução das representações sociais se faz extremamente urgente. A sociedade, em constante transformação, precisa de novos paradigmas que comportem essas outras estruturas familiares. Muito já tem sido feito pela constante luta de associações GLBT por direitos e por maior visibilidade e por magistrados, que inde-

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pendente do amparo no código civil, legislam sobre o assunto. Mas é necessário mais. A sociedade deve estar atenta a essas questões e se mobilizar para abarcar essas crianças e pais no intuito de diminuir o preconceito e a discriminação. (SERRA, 2007)

Jenny Schecter (Mia Kirshner) é uma jovem escritora que se muda para Los Angeles para morar com o namorado e começar sua carreira. É uma personagem que parece estar sempre meio perdida, sempre meio à deriva. O seu namorado, Tim (Eric Mabius) é um professor de natação carinhoso e atento, que está muito feliz por finalmente ter a amada por perto. Logo no primeiro episódio, Jenny conhece Marina, a dona do café gay The Planet, núcleo principal de encontro das personagens da série. Marina (Karina Lombard) é uma linda, sedutora e misteriosa mulher, de origem européia, que se interessa por artes, livros, música, é dona do café mais popular da região onde vivem e, ainda por cima, tem um charme irresistível. Quando Jenny conhece Marina, essa desperta nela pela primeira vez o desejo sexual por uma mulher. Jenny, conflituosa e instável, se apaixona perdidamente por ela, mas não termina seu relacionamento com Tim. A impressão que se dá nos primeiros episódios é que Tim é o homem perfeito e que Jenny está sendo a pior das pessoas ao traí-lo. E que Marina tem como passatempo desestabilizar relações. Mas, em comparação à realidade, Jenny representa a adolescente que se descobre homossexual quando se apaixona por uma mulher mais experiente, com atrativos intelectuais, boa conversa, carinho. E que, num determinado momento, tem que deixar de lado o namoradinho de escola, aparentemente o “genro perfeito”. Seus conflitos são intensos e densos, a personagem cria viagens literárias onde realiza suas fantasias, seu livro acaba se tornando seu diário, e ela retrata, assim, a primeira vez, tanto emotiva, quanto sexual, de uma garota com outra garota. Já Marina assume o papel da mulher que inicia sexualmente outras mulheres, que “ensina” como ser lésbica. Dana Fairbanks (Erin Daniels) é uma tenista profissional que tem muito medo de se assumir, tanto para a família, quanto para a sociedade, já que isso pode afetar negativamen-

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te sua carreira. Ela tem poucas experiências sexuais e é a personagem que mais questiona a lesbianidade ao longo da primeira temporada. Como uma das personagens mais bem construídas e carismáticas, é dela que partem várias conversas que mostram o universo comum das lésbicas. Por exemplo, as características para descobrir se alguém é lésbica, como o tamanho da unha ou o jeito de andar, o tipo de roupa que uma lésbica supostamente deve usar ou a existência do chamado gaydar, ou “radar gay”, que, garante o senso comum, faz com que os homossexuais se reconheçam apenas de se olhar. O processo de auto-descoberta de Dana é exatamente o momento de “sair do armário”, entender o que representa ser lésbica e, a partir daí, assumir sua própria identidade. Além disso, ela exemplifica a forma como o mercado de consumo hoje em dia tenta vender a homossexualidade ao se tornar a tenista lésbica garota propaganda de uma grande marca de automóveis, o que mostra a visibilidade lésbica se tornando muito positiva em sua vida. Shane McCutcheon (Katherine Moening) é a que todas desejam, mas que nenhuma tem. Seu lema na primeira temporada é “eu não curto relacionamentos” (“I don’t do relationships”) e por muitas vezes suas próprias amigas se referem a ela como a arrasadora de corações, a que conquista e depois abandona. Com jeito andrógeno e papel sexual não definido, a cabeleireira acabou sendo, nesta temporada, a representante que mais se aproxima do tipo butch, por seu jeito de andar, sua voz grave e sua postura “masculina”. Shane conquistou as fãs pelo seu estilo inigualável, e acabou influenciando o modo de vestir e o visual de muitas garotas. No documentário “The L World” (THE L..., 2006), uma garota americana explica que agora existem muitas “shanes” andando por aí. Nas cenas seguintes, diversas garotas aparecem com o mesmo corte de cabelo, os óculos Rayban, os tipos de calça, cintos e camisas que fazem parte do figurino da atriz ao longo da série. Mas ela conquistou também a empatia por ser, desde sempre, uma das melhores amigas que as outras personagens têm. Sincera, atenciosa e fiel às amigas, Shane não se envolve emocionalmente com as mulheres. Mas sua

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postura é de que, deixando claro para todas as partes, não há problema nesse tipo de comportamento. Essa personagem aponta para uma das questões mais criticadas quando se pensa em universo homossexual: a promiscuidade. São diversas e, em algumas vezes, simultâneas, as garotas com quem ela não se envolve, mas tem relações sexuais. Seria essa uma reafirmação desse estereótipo ou uma verdade ali retratada? A questão é que, infelizmente, não há, em momento algum da série, a discussão sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis entre as lésbicas. E isso é um problema, pois num programa com tanta influência entre as garotas mais novas, seria pertinente a educação sem demagogia que ele poderia promover. Para piorar, Shane, no passado, se prostituía nas ruas de Los Angeles. E, hoje em dia, dorme com várias garotas sem proteção. Não se trata de uma questão moralista, mas sim de alertar para o fato de que a série não aproveita a influência que tem para informar sobre um assunto tão importante e ainda tão obscuro. Alice Pieszecki (Leisha Hailey) é a personagem que, literalmente, une todas as outras. Jornalista, amiga de todo mundo, freqüenta todos os meios e, apesar de ser representada pela única atriz homossexual assumida da série, é bissexual. Alice aparece na primeira temporada para explicar uma das coisas mais verdadeiras em “The L Word”: o quadro. No início do segundo episódio, que tem o nome “Let’s do It”, Alice apresenta pela primeira vez a sua idéia do quadro. Em diálogo com o editor do jornal em que é freelance, ela tenta convencê-lo de que é uma ótima idéia para uma matéria.

ALICE: São atos aleatórios de sexo, ok? São encontros, romances, casos de uma noite ou 20 anos de casamento. A qualquer momento, se você reunir um grupo de lésbicas, pode ter certeza de que alguém já dormiu com alguém, que dormiu com outra pessoa, que dormiu com outra e assim vai. Diga o nome de uma lésbica que você conhece. Posso ligá-la à mim em 6 traços. MARC: Christine Lee. ALICE: Christine Lee. Fácil! Tá! Deixe-me pensar... Ela esteve com Grace Partridge, 2 anos atrás. Grace teve uma noite com Anya. Anya namorou com Denise que morou com Katherine Claymore, que foi minha primeira namorada na faculdade. Incrível, não?

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MARC: (SILÊNCIO) ALICE: Marc, não se trata só de lésbicas. Eu poderia colocar você aqui. E provavelmente com 6 traços, fácil! Até um, se você dormiu com Anya. MARC: E daí? ALICE: E daí? Daí que estamos todos conectados, vê? Pelo amor, solidão ou aquele mínimo, lamentável, lapso de julgamento. Todos nós! Em nosso isolamento. Nós nos alcançamos a partir da escuridão ou alienação da vida moderna ao formar essas conexões. Acho isso uma declaração profunda sobre a natureza da existência humana. (THE L..., 2004, episódio Let‟s Do It)

Na prática, a idéia do quadro é parecida com a do poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade: “João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que amava Lili que não amava ninguém.” Ou então, baseada na teoria dos seis graus de separação, que afirma serem precisos apenas seis laços para interligar duas pessoas quaisquer. Mas em versão lésbica, onde a rede de ligações entre as pessoas se estabelece através do sexo. A idéia do quadro (“chart”, como é chamado na série), permeia todo o seriado e fala das relações endogâmicas que se estabelecem no meio homossexual feminino.

É interessante pensar nesse quadro e como de fato corresponde a algo extremamente comum no universo lésbico (não apenas o troca-troca, mas também desenhar o quadro). A prática do troca-troca é, inclusive, bastante discutida nesse meio: sempre citada jocosamente, muito criticada e pouco defendida. Há argumentos que tentam defender essa prática, que normalmente falam da ausência de mulheres disponíveis no mercado, o que estimularia esta certa endogamia afetivo-sexual. Outro discurso comum é o de que é mais fácil estabelecer relações dentro do próprio grupo porque o meio gay tem muita gente que “não presta” e, nesse contexto, seria mais fácil ficar com alguém “decente” quando se está ficando com alguém já conhecido. (VENCATO, 2005, p.54)

A prática virou moda entre as fãs do seriado, e o quadro continua aparecendo em vários contextos da história. Em 2007, os produtores da série resolveram ir além das telas e criaram o site OurCart.com63, no qual é possível reproduzir exatamente o quadro de relações criado por Alice.

63

Disponível em , acesso em 25 nov. 2007.

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Segunda Temporada – a amizade e o amor

4.1.2.

A segunda64 temporada da série começou a ser exibido nos EUA em 20 de fevereiro de 2005 e suas estréias foram ao ar até o dia 15 de maio. No Brasil, foi exibido de julho a outubro de 2006. Os DVDs também foram lançados no início de 2007, logo após a primeira temporada. Ao todo, foram 13 episódios. Dessa vez, no início dos episódios, são exibidas cenas de sexo com várias versões diferentes da música tema, que é introduzida pela primeira vez na abertura da série. Se a primeira temporada foi repleta de clichês sobre o amor entre mulheres mostrando, por exemplo, como identificar lésbicas, investigando suas unhas curtas e a altura dos saltos dos sapatos, nesta segunda temporada as criadoras da série se concentraram mais nos dramas pessoais de suas personagens. A menina que tinha medo de compromisso se apaixonou pra valer, o casal que havia rompido passou a temporada inteira tentando se reconciliar, amigas de longa data descobriram sentir tesão uma pela outra e, desta maneira, personagens que antes pareciam unidimensionais mostraram outras facetas, tornando-se mais verossímeis e menos estereotipados. (LEONEL, 2005, disponível em , acesso em 20 de julho de 2005)

A personagem Marina sai da trama de forma misteriosa, devido à problemas que a atriz Karina Lombard teve com o resto da equipe de “The L Word”. Os fãs não gostaram nada da saída de uma das atrizes mais bonitas da série, e criticaram bastante o fato em comunidades e sites especializados. Mas duas novas personagens femininas iriam criar mais representações das identidades lésbicas. Carmem (Sarah Shahi) é uma DJ latia e muito atraente, que chega para, pela primeira vez, envolver Shane em um relacionamento sério. É aquela mulher moderna, antenada, jovem e que não deixa transparecer sua sexualidade. Sua beleza e sensualidade em conjunto com o charme misterioso de Shane fizeram das duas o casal mais querido da temporada. Principalmente pelas cenas de sexo que protagonizaram. É a primeira referência às mulheres latino-americanas em “The L Word”

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Ver personagens e material gráfico no anexo 2.

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„Queríamos mostrar uma personagem que retratasse a cultura latina, que tivesse vindo ganhar a vida nos EUA com todas as dificuldades e problemas‟, diz Monica Tahe, que bolou a personagem juntamente com a produtora e criadora da série, Ilene Chaiken. Tahe, que dirige um programa voltado pra as comunidades gays dos EUA com origem latina, africana e asiática da Gladd (Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação, na sigla em inglês), acredita que é difícil uma série de TV voltada para o universo homossexual consiga fugir de alguma politização. „É um assunto normalmente ligado a questões políticas‟, diz. (SEGADILHA, 2006, disponível em , acesso em 20 nov. 2007)

O sexo e o amor também uniram as personagens de Alice e Dana, que descobrem ter, além da amizade profunda, uma atração sem tamanho uma pela outra. Juntas, elas exemplificam várias fantasias sexuais lesbianas: o uso de pênis de borracha, algemas, vibradores, uniformes e troca de papéis, entre outras. Nesta temporada, a dose de humor é mais forte, bem trabalhado através da empatia que o casal provoca. Elas representam essa fina linha que existe entre amizade e amor no universo lesbiano. Não são poucas as vezes em que amigas de longa data viram namoradas ou que ex-namoradas viram amigas verdadeiras. A relação de cumplicidade que estabelecem permite que o sexo entre elas seja o “algo a mais” da relação. A outra personagem que entra na história é Helena Peabody (Rachel Shelley), a milionária inglesa que aparece para, aparentemente, comprar seus amigos. Helena começa a temporada com uma dose de antipatia, como a antagonista da relação Tina e Bette, que acabara na temporada anterior. Sendo a típica lésbica poderosa, ela usa seu dinheiro para comprar seu lugar na sociedade. Ela também usa o discurso demagógico de “ajuda aos necessitados” para se aproximar dos outros. Helena, que tem dois filhos com sua ex-companheira, acaba se apaixonando por Tina, que está grávida da inseminação artificial feita na primeira temporada. É interessante notar a projeção que Helena faz em Tina, ela claramente se diz atraída por ela porque acha mulheres grávidas sedutoras. Um detalhe curioso é que a atriz que interpreta Tina realmente estava grávida durante as gravações da segunda temporada. Por isso, sua primeira cena é de um realismo impressionante, com ela apenas de lingerie, no consultório médico,

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exibindo sua barriga. Talvez pelo mesmo motivo, uma das cenas mais aclamadas pelas fãs do seriado foi a tentativa de reconciliação entre Tina e Bette. Talvez tenha sido a primeira vez que uma cena de sexo envolvendo uma mulher grávida e sua namorada tenha sido exibida em TV. Um personagem novo causou muita polêmica na segunda temporada. Mark, um rapaz que se diz cineasta, chega para dividir o apartamento com Shane e Jenny. Ele é o estereótipo perfeito do homem machista que vê nas lésbicas apenas uma fantasia sexual. Mark engana as amigas, apesar de se dizer apaixonado por Shane, e espalha câmeras pela casa toda, filmando tudo o que se possa imaginar.

Se boa parte das telespectadoras radicais já mostravam certa insatisfação com os raros personagens masculinos, Mark despertou o ódio das mais condescendentes ao se tornar símbolo do vouyerismo macho heterossexual. [...] Como autora, entretanto, posso entender a introdução deste personagem na história, porque este tipo de conflito é muito útil para mostrar o tipo de invasão violenta a que mulheres, não apenas lésbicas, sofrem no dia-a-dia, desde que Eva e Adão foram expulsos do Paraíso. Mark conseguiu despertar a ira da feminista que existe em cada uma de nós e, quem sabe, num esforço de metalingüagem, serviu também para evidenciar o vouyerismo das próprias criadoras do seriado que, depois de ouvir por anos as aventuras e desventuras amorosas de suas amigas, resolveram contá-las num seriado de TV. (LEONEL, 2005, disponível em , acesso em 20 de julho de 2005)

A temporada termina com o nascimento da filha de Tina e Bette, uma menina chamada Angélica. Numa das cenas mais marcantes do seriado, que é precedida por uma manifestação feminista, a irmã de Bette, Kit Potter, pega a sobrinha no colo e, em seguida, passa para cada uma das amigas, que estão em círculo. Após voltar ao colo de Kit, essa diz: “Ah, Angélica, você vai ter uma vida muito interessante, sabia disso? Porque somos pessoas muito, muito interessantes. Aqui está sua mãe novamente.” E entrega o bebê à Bette, que mostra cada uma das amigas à filha e diz: “Aqui está sua família”. (THE L...2005, episódio Lacuna)

107

4.1.3.

Terceira Temporada – tristes dilemas, histórias reais

A terceira65 temporada foi exibida de 15 de janeiro a 26 de março de 2006 nos Estados Unidos e de 30 de julho a 29 de outubro de 2007 no Brasil. Também teve temporada lançada em DVD praticamente na mesma época de sua exibição por aqui. Foram 12 episódios do ano mais triste da série “The L Word”. No começo dos episódios, a idéia do quadro é retomada, desde os anos 60, traçando uma linha de relacionamentos de uma mulher conservadora, passando por Bette, Alice e terminando em Dana, assim como a história. Não deixou de ser uma homenagem à personagem que se despedia.

Dessa vez, a série se aprofunda em temas mais delicados e comuns ao nosso cotidiano, como o rompimento de uma relação estável homossexual, incluindo disputa pela guarda da filha; dúvidas de uma personagem sobre sua orientação sexual, depois de anos em uma relação homoafetiva; dependência química causada por antidepressivos, por causa de um relacionamento rompido; doença grave que poderia até ser curada se diagnosticada no início; transexualidade, entre outros assuntos. (THE L..., 2007, disponível em , acesso em 20 nov. 2007)

Como personagem nova, entra Moira, a primeira protagonista transexual do seriado. Anteriormente, elas apareceram apenas como coadjuvantes, como foi o caso de Ivan (Kelly Linch), nas primeira e segunda temporadas. Moira, interpretada pela atriz também lésbica e de traços bem masculinos Daniela Sea foi um sucesso logo nos princípio dos episódios. Primeiro por representar finalmente as lésbicas do estilo butch, cuja falta era motivo de crítica desde o lançamento da série. Segundo por ser a primeira personagem pobre da trama. Essa representação, num mundo onde todas têm muito dinheiro e são muito femininas mostrou exatamente que o preconceito também existe entre o meio lésbico. A princípio, ela começa a namorar Jenny, passa a morar com ela, Shane e Carmem, e vários conflitos por causa de sua masculinidade são criados. O ponto forte deste preconceito é o episódio de nome “Lobster”,

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Ver personagens e material gráfico no anexo 3.

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no qual ela é convidada a jantar com toda a turma. Ficando na cabeceira, Moira, que não tem dinheiro para comer nada além de uma salada, vê as outras mulheres pedindo pratos caríssimos e várias lagostas. Completamente sem lugar naquele ambiente, ela vai embora, deixando Jenny para trás. Realmente, dentro do contexto que até então havia sido apresentado pelo seriado, aquele não era o lugar de Moira. Ainda mais porque, apesar de todo discurso feminista à sua volta, ela desejava ser homem.

É um privilégio, para mim, interpretar esse papel e contar uma história que nunca tinha sido contada na TV e fico muito feliz por Ilene e a Showtime terem resolvido contá-la, pois conheço tantas pessoas que lidam com isso em vários níveis ou suas amantes ou amigos ou elas mesmas querem fazer uma transição de forma física ou estão lidando com a idéia de que o gênero é todo um espectro e não pode ser definido apenas nessas caixinhas que nos deram. (SEA, Daniela, in: THE L..., 2006)

Em determinado momento da terceira temporada, Moira decide realmente se tornar Max. E inicia, com a ajuda das amigas, o processo de transformação. Finalmente ela encontra seu lugar no ciclo das mulheres da série, ou melhor, elas começam a aceitar a força e a postura de Moira porque percebem o quanto ela sofre por ter nascido em um corpo de mulher.

Nunca vimos um evento beneficente para uma cirurgia de um transexual na TV. Isso está acontecendo mesmo na comunidade gay. É bom vê-los representados. (DEVUN, Leah in: THE L..., 2006)

Outra história que marcou a temporada foi a descoberta do câncer de mama na atleta Dana. A contragosta de várias pessoas do elenco e de milhares de fãs, essa seria a última temporada de Erin Daniels. Mas, segundo a produtora executiva Ilene Chaiken, as mulheres precisavam saber que, independente de serem lésbicas, é preciso se conhecer, cuidar do corpo, perceber que a qualquer momento um câncer pode aparecer e a prevenção é o melhor meio de se evitar a morte. Não foi o caso de Dana. A atriz representou nesta temporada os piores momentos da doença com uma coragem inigualável. Da mesma forma, Alice demonstrou ser a amiga mais fiel que pode existir, deixando claro que, apesar de terem terminado o namoro, o

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amor entre as duas nunca iria acabar. Mais uma prova da profunda relação que as lésbicas estabelecem quando têm um envolvimento amoroso real. Situações como a perda do cabelo, a fraqueza que a faz parar de jogar tênis e, numa das mais fortes cenas já vistas, a exibição do seio mutilado, fizeram de Dana uma mártir da história. Com certeza, as produtoras da série deram seu recado, incentivando milhares de mulheres lésbicas a se consultarem com mais freqüência. Infelizmente, no imaginário popular do universo lesbiano, é comum as mulheres não se preocuparem com as doenças ginecológicas, com a prevenção de DSTs, com o câncer de mama, talvez por acharem que essas são doenças de “mulherzinhas”. Um preconceito mais que equivocado. No documentário “Lésbicas do Brasil”, a cantora Laura Finocchiaro levantou a questão que merece ser refletida pelo meio: as lésbicas precisam valorizar seus corpos.

Eu fui para parada do orgulho, levantei a blusa, coloquei os peitos pra fora e disse “mulheres, metam os peitos”, porque as próprias lésbicas têm preconceito com o que elas são. Elas não valorizam o corpo, elas têm vergonha, parece. E eu tenho orgulho de ser mulher. (LÉSBICAS..., 2003)

4.1.4.

Quarta Temporada – vidas paralelas

A quarta66 temporada da série foi exibida nos canais americanos no começo deste ano, de 07 de janeiro a 25 de março e ainda não foi exibida no Brasil ou lançada em DVD. Para assisti-la no Brasil, por enquanto, somente através de downloads na internet ou adquirindo a versão importada. Após o drama da terceira temporada, os episódios começaram mais leves e menos traumáticos. A saída de Dana parece ter dado efeito na história, que apesar de mais leve, não apresenta mais tanto humor. Outra personagem que abandona a série foi Carmem, após ter sido largada no altar por Shane.

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Ver personagens e material gráfico no anexo 4.

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O mérito da quarta temporada é a entrada de algumas personagens importantes: Jodi, uma artista surda, Tasha, uma oficial do exército americano, bem masculina e Phyllis, uma professora de 57 anos. Jodi, vivida pela atriz ganhadora do Oscar por “Filhos do Silêncio” (1986) Marlee Matlin é uma artista renomada que dá aulas na faculdade em que Bette é reitora. Ela é surda e se apaixona por Bette, após um momento conflitante entre as duas. A sua importância na série se dá tanto pela sua diferença quanto pela carga dramática que a dificuldade de comunicação das duas se estabelece. Como manter uma relação entre uma ouvinte e uma não-ouvinte é a grande sacada da forma como a duas se envolvem. Primeiramente, um intérprete ajuda Bette a conversar com Jodi. Depois, Bette penosamente aprende a entender o que Jodi lhe diz. Essa é a questão: a série em momento algum coloca Jodi como “deficiente”. Muito pelo contrário. Sendo uma mulher forte, decidida e, tanto quanto Bette, independente, a relação entre elas se torna o contrário do que havia com Tina. Bette é a mulher que aprende a lidar com Jodi, é quem parece ser diferente, quem tem que correr atrás para poder se encaixar no mundo da mulher por quem se apaixona. Para o público, os episódios são tão bem dirigidos que não é preciso legendas, entende-se perfeitamente tudo o que a personagem surda diz, mesmo que seja na língua de sinais. Já Tasha (Rose Rollins) é uma fechada e aparentemente brava oficial do exército que acabou de voltar do Iraque. Masculina, tensa e sempre preocupada com a questão do “não pergunte, não responda”, que pode fazer com que seja dispensada das forças armadas, Tasha acaba se envolvendo com Alice. No relacionamento das duas, o que sobressai são as críticas abertas feitas tanto ao governo americano quanto à política preconceituosa do Exército. Alice se torna a revolucionária que ataca, que não entende, que não concorda com o envio de soldados para a guerra, enquanto Tasha se torna a defensora, refletindo a postura de vários soldados americanos. É um dos momentos mais políticos em “The L Word”.

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Phyllis, vivida pela atriz Cybill Shepherd que se imortalizou como a gata de “A Gata e o Rato”, é a conselheira acadêmica e superior à Bette, que nesta temporada assume a reitoria de uma faculdade de artes. Phyllis se aproxima de Bette por que sabe de sua homossexualidade e, na verdade, está bem interessada em experimentar. Em cenas ótimas, de uma verdade pura, Phyllis acaba tendo sua iniciação sexual com outra mulher através de Alice. No dia seguinte, ótima representação do que acontece quando uma mulher assume a lesbianidade, Phyllis começa a perceber a beleza das garotas que encontra no corredor da faculdade com outros olhos, com olhos de desejo. Uma personagem mais velha era desejo das fãs desde o início da série. No documentário “The L World”(2006), duas senhoras que estão no Cruzeiro Olívia conversam com Ilene Chaiken e questionam porque tanto “sexo, sexo, sexo, cama, cama, cama”. Segundo elas, as meninas de vinte anos deitavam na cama apenas pelo sexo, mas as mulheres mais velhas deitavam e dormiam. Elas queriam ver representadas as histórias das lésbicas da terceira idade. Coincidência ou não, o documentário foi feito pouco tempo antes da personagem de Cybill Shepher entra na trama. Ou seja, isso reflete um fato constatado ao longo das quatro temporadas produzidas. Conforme as fãs e espectadoras iam colocando suas necessidades, vontades, reclamações e críticas, “The L Word” ia amadurecendo e apresentando esses pedidos. Desde o início, o público lésbico tem muita importância para a construção dos roteiros. As participações, as enquetes, os blogs, a interação televisão e internet aproximaram mais ainda a produção do seriado da realidade das lesbianas. A série se encaminha para a quinta temporada como um dos mais importantes espaços de visibilidade lesbiana, algo conquistado com muita luta e que sempre foi direito das mulheres homossexuais. A televisão, como meio de comunicação, é talvez a janela mais aberta a mostrar essas questões. O fato de existir, neste mercado consumista e na sociedade machista um programa como “The L Word” deve ser comemorado e lembrado.

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ILENE: I think those stories will resonate to people who aren't gay. MIA: What a rare opportunity, to get to do a show with a bunch of women who are interested in doing a show about real women! GUINEVERE: I think usually what attracts people to shows is unique voices, is interesting writing... ERIN: There are people trying to figure out how to label themselves career wise... LEISHA: Having a job is having a job. I think things in life are the same pretty much across the board. MIA: We've all come to a place in our lives, where we meet somebody whom is in a relationship, or that person is in a relationship... where they sorta shake our world, and it's a choice we make whether to continue on that path... ERIN: You find yourself going... "I've SO been there! I totally understand what she is feeling, or what he is feeling, in some cases." (THE L WORD DEFINED, 2004)

ILENE: Eu acho que as histórias vão refletir em quem não é gay. MIA: Que rara oportunidade, participar de um programa feito por um grupo de mulheres que estão interessadas em fazer uma série sobre mulheres reais! GUINEVERE: Eu penso que o que atrai as pessoas pra série são as vozes únicas e o roteiro interessante... ERIN: Existem pessoas tentando descobrir como rotular sua vida... LEISHA: Trabalhar é trabalhar. Eu acho que há coisas na vida bem parecidas com o que passa na tela. MIA: Nós todos passamos por um momento em que, estando em um relacionamento, conhecemos alguém em outro relacionamento... e que esse alguém meio que mexe com nosso mundo, e é uma escolha que fazemos, continuar ou ir a outro nível. ERIN: Você vai se pegar pensando... "Eu passei por isso! Eu entendo perfeitamente o que ela está sentindo, ou o que ele está sentindo, em alguns casos". (THE L WORD DEFINED, 2004)

113

5.

“O MÓBILE”: A INSPIRAÇÃO ENCORAJA O NOVO

Antes mesmo de assistir a “The L Word”, como estudante de jornalismo e como apaixonada pelo cinema e pela televisão, já me tornara uma aficionada pelo gênero série de TV norte-americano. Percebia ali uma grande oportunidade de se abordar assuntos sérios e com a devida roupagem que, muitas vezes, faltava ao cinema. Dessa forma, não só acompanhava como adquiria os seriados lançados posteriormente. Quando vi pela primeira vez a série, aquele episódio cortado exibido pela Warner Channel em julho de 2005, percebi que alguma coisa diferente era lançada. Diferente e pertinente: era preciso falar no assunto. Após tantos anos de invisibilidade, finalmente permitiram que as lésbicas se mostrassem como realmente são, com uma verdade como nunca havia sido mostrada na TV. Imediatamente procurei mais informações sobre o assunto e, assustada, percebi que a comunidade do Orkut dedicada ao seriado já possuía um número enorme de integrantes. Ao me associar, conheci pessoas interessantes que achavam importante, assim como eu, existir uma série que falasse das lésbicas com verdade e, ao mesmo tempo, beleza. Na mesma comunidade, aprendi como assistir aos episódios pela internet. Foi quando percebi o quão censurado ele tinha sido exibido pela primeira vez no Brasil. Pesquisando mais, vi que já havia várias reclamações para que o canal voltasse atrás e acompanhei a conquista das fãs. Neste momento, passei a ver a série pela internet, depois pela televisão e ainda, logo depois da exibição do episódio, participar dos fóruns do Orkut, para saber quais tinham sido as opiniões das espectadoras. Vivi, por um tempo, um fenômeno comum hoje quando o assunto é série de televisão, já que muitos fãs de várias séries continuam a viver suas temporadas mesmo quando não são exibidas, em salas de bate papo, sites e comunidades de relacionamento. E, com isso, aprendi a valorizar mais ainda o gênero seriado. Era nele que estávamos tendo o nosso espaço.

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Esse acompanhamento tão próximo foi importante porque me deu a certeza de que era possível falar no assunto. A lesbianidade não estava mais tão enfurnada nos livros invisíveis da história do mundo, não possuía mais um caráter negativo ou anormal, pelo menos no meio televisivo. Com a ajuda de uma amiga, conhecida através do Orkut, comecei a pensar sobre um roteiro com histórias de amor entre mulheres que fossem passadas na minha cidade, na minha realidade, a partir de minhas vivências. Vi aqui em Juiz de Fora um ambiente ideal pois há anos a cidade possuía uma tradição de “aceitar bem” os homossexuais. Após longos papos on-line, diversas pesquisas sobre o assunto e a descoberta de que, na verdade, muito pouco era falado sobre a mulher lésbica no Brasil e no mundo, começou a nascer em meus pensamentos a história de “O Móbile”.

5.1.

As cinco peças de “O Móbile” – o roteiro

O roteiro original “O Móbile”67 começou a ser escrito em dezembro de 2005 e teve sua primeira versão finalizada em março de 2006. Desde o início, pensava em escrever cinco histórias diferentes de amor entre mulheres, passadas na cidade de Juiz de Fora. E assim o fiz. O objetivo principal é que se tornasse uma série de TV, mas como no Brasil esse formato ainda é pouco produzido e financiado através das leis de incentivo à cultura, preferi focar minha redação do roteiro no formato curta de ficção. Através de disciplinas voltadas para roteirização, tomei conhecimento do estilo Master Scenes de formatação de roteiro, que é o que mais se aproxima das produções norteamericanas de TV, já que é o padrão utilizado pelo cinema de Hollywod. O Master Scenes permite uma contagem de tempo do filme através da quantidade de páginas do roteiro, e, des-

67

Ver blog <www.omobile.blogspot.com> e material gráfico e artes no anexo 5.

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sa forma, estabelece que uma página equivalha a um minuto do filme. Também estabelece os conceitos de story line, argumento, perfil das personagens, cenas e diálogos68. A partir desse formato, as cinco histórias foram escritas sempre tendo como critério o tempo máximo de 15 minutos. Por que usar o Master Scenes? Por que é um sistema simples, muito usado (qualquer pessoa da área de cinema que vê-lo vai saber que é um roteiro) e permite ao roteirista se concentrar mais no que é o dever dele: contar uma história. Como regra, corte o máximo possível de indicações técnicas e se concentra ao máximo no enredo do roteiro. Sempre há algum modo de sugerir algo ao diretor, fotógrafo, ator, editor e outros da área, e realmente não é necessário usar explicitamente um termo técnico... Use o bom senso.(CONCEITOS FUNDAMENTAIS..., 200?, disponível em ,acesso em 20 nov. 2007)

No princípio, não havia um nome em comum, um título maior que as definisse. Apenas a idéia que seriam histórias sobre lésbicas e cinco substantivos: “Admiração”, “Diálogo”, “Apoio”, “Confiança” e “Perdão”. A partir dessas palavras, cada história foi elaborada, seguindo uma linha de pensamento que se compara à um relacionamento amoroso, na minha opinião. Primeiro, conhece-se uma pessoa e passa-se a admirá-la. Quando a coragem vem, aproxima-se dessa pessoa e estabelece-se uma conversa, um diálogo. Com o primeiro momento do romance, o passo mais importante se torna confiar na pessoa que está ao seu lado. E, por conseqüência, a apoiá-la em suas decisões, atitudes, escolhas de vida. Com o relacionamento estabelecido, a confiança conquistada, o apoio já formalizado, só se mantém um amor se for possível perdoar. Porque os defeitos podem acabar com um amor, de uma hora para outra. E as personagens? Seriam dez as principais, cada uma com sua particular característica. Os perfis psicológicos foram sendo criados, assim com suas profissões e os casais dos quais fariam parte: uma artista plástica e uma pintora, uma dona-de-casa e uma arquiteta, duas jovens, uma surda e outra cega, duas senhoras, uma escritora e outra jardineira, uma cantora e

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Story Line é um resumo da história central do roteiro apresentada em, no máximo, 05 linhas. Argumento é a apresentação da história através de uma narrativa linear na qual as situações dramáticas serão descritas. O perfil das personagens mostra quem é o sujeito da ação narrativa. Já as cenas são todas as ações estabelecidas em um determinado momento e em uma locação, por isso em seu cabeçalho devem vir as indicações INTERNA/EXTERNA, DIA/NOITE e o LOCAL onde a ação se passa. O diálogo são todas as falas dos personagens, que podem também estar em OFF, ou seja, ele não aparece na cena.

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uma fotógrafa. Os nomes, na verdade, vieram antes de seu físico, tinham mais a ver com sua personalidade do que com qualquer coisa. Difícil escolher dentre tantos nomes fortes e especiais de mulher, mas assim ficaram: Bárbara e Nina, Ísis e Estela, Clara e Olívia, Anita e Sofia, Malu (Maria Luiza) e Renata. Quando a linha de pensamento estava pronta, foi o momento de se definir a história que seria contada. Nesse ponto, com a imagem de um móbile com as cinco palavras flutuando surgiu o título “O Móbile”, um retrato do amor em constante movimento. Esse elemento visual foi, então, inserido no contexto da personagem e, ao longo das histórias, representam suas identidades. Juiz de Fora, neste ínterim, se mostrou o pano de fundo ideal para essas histórias de amor entre mulheres. Conforme dados da 6ª Pesquisa de Demanda Turística no Rainbow Fest, realizada pelo MGM - Movimento Gay de Minas, em parceria com a Rumos, empresa júnior do Curso de Turismo da UFJF, o concurso “Miss Brasil Gay” e o evento “Rainbow Fest” atrairam em 2006 cerca de 10 mil turistas que injetaram mais de R$ 4 milhões na economia da cidade. Em agosto de 2007, segundo a Polícia Militar, a “5ª Parada do Orgulho GLBT”, reuniu cerca de 120 mil pessoas nas ruas do centro de Juiz de Fora. E não podemos esquecer a lei municipal n° 9.791, citada no capítulo 2 desse trabalho. Ou seja, a cidade, apesar da atitude negativa de alguns governantes e políticos, que usam de preceitos evangélicos para atacarem os homossexuais, como aconteceu em 17 de outubro de 200769, aprenta grupos que lutam pela cidadania e respeito dos gays. No processo de preparação e pré-produção do roteiro, foram envolvidos estudantes e profissionais de cinema, teatro e jornalismo da cidade, além de integrantes da Organização não-governamental MGM – Movimento Gay de Minas, para que fosse garantidas a verossimilhança das histórias e o teor de entretenimento.

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Ver a polêmica absurda no site , acesso em 17 nov. 2007.

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Nesse sentido, as personagens foram criadas com caráter forte e perfil coeso na tentativa de passar a credibilidade e empatia necessárias para que houvesse identificação por parte das espectadoras. Elas são mulheres reais, que se tornam exemplos por suas posturas e, sem querer influenciar ou determinar nada, trazem em cada gesto uma amostra do universo feminino, homossexual ou não. São mulheres que não se prendem a estereótipos e que não têm medo de suas opções e desejos. Demonstram seus sentimentos e opiniões livremente no mundo contemporâneo, amam, e sofrem por amor. Por isso, são personagens marcantes e verdadeiras. A pretensão é criar uma experiência compartilhada com o público de uma realidade em que a mulher homossexual escolhe e respeita seu caminho sem precisar se colocar à margem da sociedade. A idéia ou story line que apresenta o roteiro é a seguinte:

Amor entre mulheres. Encontros e desencontros, paixão, medo, descoberta, prazer. Cinco histórias de amor que se entrelaçam a partir de cinco palavras: ADMIRAÇÃO, DIÁLOGO, CONFIANÇA, APOIO E PERDÃO. Juntos, os cinco substantivos formam um “móbile perfeito”. Bailando ao vento, tão livre e ao mesmo tempo resistente. Sensibilidade e força em peças entrelaçadas pelo fio do amor. Todo relacionamento deveria ter como base as cinco atitudes traduzidas pelas cinco palavras. Esse é o retrato desta série de curtas metragens, que pretende ser uma representação fiel e contemporânea da homossexualidade feminina. (WERNECK, 2006)

Em “Admiração”, Bárbara é uma pintora que faz quadros inspirados nas interpretações de uma atriz. Por sua vez, Nina, a atriz, constrói seus personagens a partir das pinturas de Bárbara. Quando finalmente se conhecem em uma exposição, descobrem que são, na verdade, apaixonadas uma pela outra. Mas não aceitam viver o relacionamento, com medo de perderem o talento e a inspiração. Vivem, então, sua história nas telas e nas peças, distantes, apenas na admiração. Em “Diálogo”, duas mulheres se conhecem num chat da internet. Estela é lésbica, arquiteta e tem 27 anos. Ísis é heterossexual, vive um casamento fracassado e tem mais de 40 anos. Mesmo com essas diferenças iniciais, passam a conversar muito e se apaixonam pelas palavras uma da outra. No entanto, Ísis sente medo da novidade e dos estranhos sentimentos

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que tomam conta de seu coração. Decidem finalmente se encontrar, vencem o medo e dão lugar a uma paixão arrebatadora. Na vida, nada muda demais. Só o amor volta a acontecer. Em “Confiança”, Clara é surda. Olívia é cega. Fazem juntas aulas de ginástica especial, mas nunca se conheceram de fato. Na primeira vez que fazem um exercício juntas, ao se tocarem, sentem algo inexplicável. Apaixonam-se e tentam viver esse amor aparentemente impossível. A mãe de Clara não aceita o relacionamento da filha. Depois de um acidente onde Olívia quase morre afogada, Clara assume o namoro e passam a se completar. Em “Apoio”, Anita e Sofia vivem um relacionamento de amor, respeito e amizade há 51 anos. Numa manhã, Sofia levanta-se e chama a companheira. Mas Anita não acorda. Em meio à dor, Sofia prepara tudo para as homenagens e partida da mulher amada. E, depois de concluir os preparativos, ela acompanha seu grande amor e morre ao lado do caixão de Anita. Já em “Perdão”, Renata é uma fotógrafa que tem um relacionamento com Maria Luisa, cantora de sucesso, há cinco anos. Numa das brigas, Renata sai de casa e Malu transa com o baixista de sua banda. Elas terminam. A cantora descobre que está grávida. E somente o nascimento da filha de Maria Luiza traz o perdão da fotógrafa e renova a felicidade no relacionamento. Passam por cima de tudo e continuam a viver seu amor. O roteiro do filme “O Móbile – Admiração, Diálogo, Confiança, Apoio e Perdão”, foi registrado em meu nome no Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional (registro número: 381.857 / livro 709 / folha 17) em abril de 2006. Em Maio do mesmo ano, teve projeto inscrito na Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes, sem aprovação, e em Junho teve projeto contemplado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais (número de registro 1510/001/2006), com o valor de captação em R$120.000,00. Infelizmente, não foi possível captar os recursos da Lei Estadual, já que o projeto previa a produção dos roteiros como um longa-metragem e isso necessitaria de um volume muito maior de recursos

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para sua realização. No momento, para tornar viável a realização dos curtas em breve, outros projetos estão sendo apresentados tanto à Lei Rouanet – Lei Federal de Incentivo à Cultura, quanto à Ancine – Agência Nacional do Cinema e Lei do Audiovisual do Brasil. Por enquanto, em fase de pré-produção, e com a ajuda de mais pesquisas sobre a lesbianidade e suas representações contemporâneas, o roteiro vai se tornando mais elaborado a cada releitura. É a chamada “guerra do papel”, comum no meio profissional, onde cada versão do roteiro se recria e se estabelece conforme um novo olhar sobre o texto. Acredito que, de fato, a história final dos curtas de “O Móbile” só será estabelecida no momento de seus lançamentos. O texto, a narrativa, a interpretação, a direção, tudo isso torna-se fluido, também em movimento constante, se direcionando através das interações de toda a equipe técnica do filme. O roteiro como está hoje, em novembro de 2007, segue a seguir, dividido por cada história e apresentando, anteriormente a ele, suas personagens e seus argumentos. O formato apresentado segue, em parte, as regras do Master Scenes. Apenas o tipo de fonte, indicada para ser a Courier New de tipo 12, foi mantida como em todo o resto do texto deste trabalho para não haver quebra de padrão.

5.1.1.

Admiração

As personagens principais de “Admiração” são Nina Maya e Bárbara Oliveira. Nina Maya sempre quis ser atriz. Fez cursos de teatro, participou de grupos locais e nacionais. Aos poucos, se tornou conhecida do grande público e requisitada pelos melhores diretores. Hoje, aos 26 anos, é considerada a atriz de maior expressão em Juiz de Fora e uma das melhores do Brasil. Tem olhos profundos, mas sua principal marca são os gestos, precisos e delicados, fortes e sensíveis. Cada personagem que interpreta entra em sua alma, toma conta

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de seu corpo e a transforma por completo. Sua expressão corporal só não é mais completa do que seu poder de sedução no palco. Todos que a assistem se apaixonam, de uma forma ou de outra. Ela, por sua vez, sempre teve a impressão de que fica melhor dentro das personagens do que em seu papel na vida real. A insegurança sempre atrapalhou um pouco Nina a ter um relacionamento tranqüilo e saudável. Ela não conseguiu assumir sua homossexualidade e vive apenas casos eventuais, sem nunca ter se apaixonado por alguém. Como uma mulher ligada à cultura, Nina lê muito e adora artes plásticas. Sua pintora preferida é Bárbara Oliveira, conterrânea e única na arte de retratar mulheres. Desde que viu suas obras pela primeira vez, acompanha sua produção e é apaixonada por suas pinturas. Encontrou em seus traços a inspiração que faltava à suas personagens, o toque mágico. No momento, Nina ensaia para a estréia do espetáculo “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, de Rainer Werner Fassbinder, no qual interpreta a personagem principal. Já Bárbara Oliveira fez faculdade de Artes na Universidade Federal de Juiz de Fora, mas pinta desde criança. Aos 30 anos, já se considera uma mulher realizada. Bonita, ativa, divertida e feminina, Bárbara sempre foi uma mulher de convicções fortes. Aos 21 anos assumiu sua homossexualidade ao namorar Catarina, sua produtora. Já havia tido vários relacionamentos pequenos, mas nada que a fizesse se abrir para os pais e para a família. Com Catarina, seu valor no mercado aumentou, mas logo os problemas de trabalho começaram a interferir no relacionamento. Catarina e Bárbara terminaram o namoro há mais de dois anos, mas continuam sendo muito amigas e a trabalharem juntas. Suas obras retratam mulheres de diversas etnias e culturas, sempre em traços pouco definidos e cores fortes. Como num retrato fosco, embaçado, em que é preciso fixar os olhos, se aproximar, entrar e conhecer para poder perceber toda a beleza e delicadeza daquelas mulheres. Já fez exposições em todo o país e se prepara para mandar suas principais obras para um museu no exterior. Um grande colecionador comprou todas as peças, até as de arquivo pessoal, e prometeu mantê-las unidas, nesse

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museu. Aquela se tornaria uma exposição permanente de Bárbara. Somente por isso ela aceitou. Principalmente porque as obras vendidas foram as principais pintadas a partir das atuações de sua musa inspiradora: a atriz Nina Maya. Em silêncio, Bárbara acompanha a carreira e as peças da atriz e, de cada personagem que assiste nos palcos, cria algo novo nas pinturas. Na história, o ano é 2006, a cidade é Juiz de Fora. Nina Maya ensaia compulsivamente para seu novo espetáculo: “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, de Rainer Werner Fassbinder. Há dois anos, a atriz tem como inspiração principal as pinturas de uma artista de sua cidade. A partir dos retratos de mulheres pintados em traços pouco definidos e cores fortes, a atriz cria suas personagens e interpretações. Nina se inspira em uma foto de um dos quadros da pintora. Bárbara Oliveira é essa pintora. A artista, por outro lado, tem como musa a atriz Nina. Sempre acompanha suas peças, sempre observa seus gestos, falas, sentimentos e cria seus quadros com essa inspiração. Há, em seu atelier, uma parede inteira de fotos, recordações e notícias de Nina Maya. Elas não se conhecem pessoalmente e nem imaginam o que uma sente em relação à outra. Para celebrar a venda da maioria de suas obras, e para relembrar seu trabalho, Catarina, que é produtora e ex-namorada de Bárbara, organiza uma exposição em uma galeria de Juiz de Fora. Ao saber que os originais de Bárbara iriam para a França e que não os veria tão cedo, Nina resolve visitar a exposição e se apresentar à Bárbara. Na verdade, ela tem medo do que de fato possa sentir por ela. Na noite de abertura da exposição, Nina e Bárbara finalmente se conhecem. Bárbara fica sem palavras, não acredita que a atriz está ali, ao lado dela. Ao se encontrarem, Bárbara e Nina se apaixonam. Saem para uma boate e, em meio a uma dança sensual, ficam juntas. Passam a se encontrar sempre, numa química desconcertante. No entanto, o trabalho de criação das duas começa a declinar. Nina não consegue mais alcançar o texto, as falas da sua

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personagem Petra. Seu diretor, preocupado, tenta saber onde foi parar o talento da atriz. Ela sabe. E Bárbara não consegue mais pintar. Fica por horas parada diante da tela vazia, enquanto sua produtora cobra serviço. Bárbara também tem idéia do que possa estar acontecendo, mas não acredita nisso. O que elas sabem é que a fonte de admiração foi alcançada. O que era impossível tornou-se real. Enquanto elas se admiravam e se seduziam sem saber, a mágica da criação funcionava perfeitamente. Mas agora que tinham finalmente se tocado e se preenchido, a mágica da inspiração tinha ido embora. Numa tentativa desesperada de fazer o tempo voltar, elas têm uma discussão e terminam o namoro. Nina abandona Bárbara para não abrir mão do seu talento. Elas se separam com dor, com frustração, com muito sofrimento. O talento volta, elas passam a produzir como nunca. Mas nada mais é igual. O espetáculo de Nina Maya estréia, e em cada interpretação os gestos são indefinidos e as cores fortes até demais. Em todas as pinturas de Bárbara, as lágrimas aparecem. Bárbara e Nina passam a viver somente na admiração daquele grande amor que poderiam ter vivido.

5.1.1.1.

1.

Roteiro “Admiração”

INT. DIA. TEATRO. No palco de um teatro vazio, um gigantesco móbile de lágrimas de espuma balança lentamente. Sozinha, no palco, Nina segura um texto que traz o título "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", de Fassbinder. O texto traz uma foto de uma pintura presa com um clipe. Na platéia, o diretor está sentado a algumas fileiras do palco. Ele também lê o texto, com concentração. A atriz se prepara para sua fala. Ela suspira profundamente. O diretor passa a observá-la. NINA Dou-te tempo, Karin. Tempo é o que não nos falta. Temos imenso tempo.

2.

INT. DIA.(AO MESMO TEMPO) ATELIÊR. Um móbile de vidro vermelho balança perto da escada. Através dele vê-se várias pinturas, latas de tintas e pincéis espalhados por uma grande mesa central. Num cavalete próximo à janela há uma tela grande e branca. Bárbara molha um grosso pincel em uma paleta de tinta.

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Mistura a cor vermelha com a preta. Leva o pincel até uma tela branca e faz um traço forte e indefinido. Ao fundo, no atelier, há uma parede recoberta de fotos e recortes com as performances da atriz Nina Maya. NINA (EM OFF) Tempo para nos conhecer uma à outra. Havemos de amar-nos. 3.

INT. DIA. TEATRO. Nina se movimenta pelo palco. O diretor olha com atenção para a atriz. Coça a barba, num sinal de preocupação. NINA Ainda nunca, nunca, senti amor por uma mulher. Sou louca, Karin, louca!

4.

INT. DIA.(AO MESMO TEMPO) ATELIÊR. Na tela, o traço de Bárbara lentamente forma o rosto de uma mulher de expressão consternada. A pintora pára e olha para a parede de fotos. Admira o rosto da atriz numa das fotos. NINA (EM OFF) Mas é belo ser louco. Bárbara molha o pincel mais uma vez, olha para a tela. Depois, pinta compulsivamente. Termina pintando a pupila de um dos olhos. Pára e olha para a pintura. No canto inferior direito, Bárbara assina seu nome: Bárbara Oliveira. NINA (EM OFF) É loucamente belo ser louco.

5.

INT. DIA. TEATRO. Nina termina a leitura da cena. Volta à capa e olha fixamente a foto que está presa ao texto. Fecha os olhos por alguns segundos. Eduardo, o diretor, olha para Nina pensativo. Nina atira o texto no chão e finalmente percebe-se que a pintura na foto é de Bárbara Oliveira pela assinatura igual à da pintura da seqüência número 04. Eduardo levanta-se e se aproxima da boca de cena. Nina senta-se na beira do palco. EDUARDO Você está bem? Nina apenas balança a cabeça afirmativamente. Ela olha para Eduardo e sorri, enquanto ele sobe no palco. EDUARDO Nina, vamos parar por hoje. Ele senta-se ao lado dela. No teatro, apenas os dois. EDUARDO Você foi além do que eu esperava, Nina.

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NINA Não sei, Eduardo. É estranho. A Petra, essa personagem, o que ela vive, é tudo muito forte pra mim. (pausa) Esse lance dela ser apaixonada pela Karín. (pausa mais longa) Sabe? Eduardo olha com carinho para Nina. Ela ri sem graça. EDUARDO Deveria ser mais fácil pra você, não? NINA Eu acho que é pior. Você sabe que eu nunca consegui assumir isso pra mim, apesar de querer muito. Às vezes. EDUARDO Mas exatamente o quê você sente quando pensa em ficar com outra mulher? NINA Não sei. (pausa) Medo. Medo de ser isso mesmo que eu quero pra mim. (sorri) Ah!! Deixa pra lá. Vamos embora? Pra mim deu por hoje. Nina dá um beijo no rosto de Eduardo e pega o texto do chão. Levanta-se e começa a sair em direção à coxia. EDUARDO Nina? Nina pára e olha para Eduardo, com ar cansado. EDUARDO Eu preciso que você supere esse medo, Nina. A Petra precisa disso. E principalmente você precisa disso. Não há nada errado em se amar uma mulher. Eduardo pisca o olho com carinho. Nina sorri, enrola o texto que está em suas mãos e se vira para a coxia. 6.

EXT. NOITE. CAFETERIA. Bárbara está sentada com sua produtora Catarina. Elas tomam um café, em meio a papéis pela mesa. Bárbara olha para o vazio, com uma taça na mão. Catarina pega um convite e lê atenta. Nele está escrito: “EXPOSIÇÃO BÁRBARA OLIVEIRA: ANTES DAQUELA VIAGEM”. CATARINA (olhando para os papéis) Já tá tudo certo, a exposição começa na quinta-feira. O coquetel está acertado, os convites já foram enviados. O comprador chega amanhã no Rio e eu já acertei sua vinda pra cá. Ele é ótimo! O museu que ele vai abrir em Paris, com todas as suas obras, Bárbara!! Imagina isso! Bárbara parece não ouvir o que Catarina diz. Catarina pára de falar e olha para a Bárbara.

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CATARINA Mas qual é o problema, Bárbara? BÁRBARA Difícil não pensar que essa é minha última exposição na cidade. Vai demorar pra eu ter um catálogo como esse de novo. Não sei se eu consigo mais pintar desse jeito. Catarina olha para Bárbara e ri. Balança a cabeça negativamente e toma um gole de café. BÁRBARA O que foi? Eu tô falando sério! CATARINA Bárbara, eu sinceramente não sei o porquê. Mas desde que você montou aquele, sei lá, memorial Nina Maya na parede do seu atelier, você pinta um quadro novo todos os dias! Eu acho duas coisas. (toma mais um gole) Primeiro que você vai produzir como nunca agora. E depois, bom, que você está apaixonada. BÁRBARA Não seja ridícula! Pela Nina? Eu nem a conheço! CATARINA Mas eu te conheço, Bárbara. Nunca se esqueça disso. Bárbara olha com ar de reprovação para Catarina e volta para os seus documentos na mesa. Catarina ri com ironia mais uma vez e deixa a xícara na mesa. 7.

EXT. NOITE. ENTRADA DO MUSEU DE ARTE MODERNA. Nina está parada em frente ao portão do MAM, meio que escondida. Ela olha para o convite da exposição de Bárbara em suas mãos. Dá dois passos para frente, se arrepende, pára, volta e pára novamente. Repreende-se balançando negativamente a cabeça e decide finalmente entrar no museu.

8.

INT. NOITE. MUSEU PETRILLO. Nina entra no museu, admirada e nervosa. Ao longe, Bárbara, de costas, conversa com algumas pessoas. Sem ver Bárbara, Nina passa por um garçom, pega um copo de champagne, bebe rapidamente e devolve na bandeja de outro garçom, mais à frente. Ela pára, estarrecida. Reconhece à sua frente o mesmo quadro que aparece na foto presa ao seu texto. Ela coloca a mão na bolsa, como que se fosse pegar o texto, mas desiste. Vai lentamente em direção ao quadro. Pára embaixo da pintura, que parece enorme na parede. Nina observa admirada cada detalhe do quadro. Bárbara está próxima a ela conversando com visitantes, mas não percebe sua presença. Nina, sem saber que Bárbara está perto dela, olha fixamente para a pintura. NINA (para si mesma) Nossa. É inexplicável! Eu só vi esse original uma vez na vida, mas eu nunca mais me esqueci. Nunca. Bárbara pára repentinamente de conversar com as pessoas reconhecendo a voz. Olha devagar para o lado, procura a voz que ouviu. Vê Nina parada ao lado dela. Fica sem palavras, olhan-

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do para Nina. NINA É a obra mais linda que já vi. Bárbara aproxima-se de Nina. Pára ao seu lado e sorri, extasiada. Nina percebe sua presença e olha rapidamente para Bárbara, como num susto. NINA (muito sem graça) É... Oi! É... Me desculpe. Eu fico completamente fora de mim quando vejo seus quadros. Pareço uma idiota. Nem me apresentei, meu nome é... BÁRBARA (interrompe) Nina Maya. Eu sei quem você é. E sou uma grande fã sua. NINA (ri, mais sem graça) Não. Essas palavras são minhas. BÁRBARA (sedutora) Admiro muito o seu trabalho. (aproxima-se mais) Os seus gestos, a sua voz. É difícil explicar como as suas interpretações mexem comigo. É um prazer enorme te conhecer, Nina. Bárbara estende a mão. Nina olha para seus olhos, depois para sua mão. Observa as unhas bem feitas, mas curtas, e um anel muito bonito no dedo indicador. Estende sua mão com unhas compridas e bem pintadas. Cumprimentam-se. Nina tenta desviar o olhar dos olhos de Bárbara, mas não consegue. NINA Nossa. Você conseguiu me deixar sem graça. Nina tira da bolsa o texto, já amarrotado, com a foto da pintura anexada. NINA Na verdade, eu tenho que confessar. Minha inspiração é maravilhosa. Retira a foto do clipe e entrega para Bárbara, que olha para a foto e depois para o quadro perto das duas. BÁRBARA Essa foto? O meu quadro! Como assim? NINA Eu visitei uma exposição sua há algum tempo. Mas você, infelizmente, não estava. Fiquei horas olhando pra essa pintura, para os traços, para as cores. (envergonhada) Sen-

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ti coisas que... (pausa) É difícil explicar, né? Mas, enfim. Depois que saí da exposição, procurei por meses por uma foto dele. E desde então, você me acompanha. Nina pega a foto das mãos de Bárbara. Sutilmente seus dedos se tocam. Bárbara olha bem no fundo dos olhos de Nina. Bárbara se aproxima de Nina, fala ao seu ouvido. Nina sorri, fechando os olhos. Um garçom passa e Bárbara pega duas taças de champagne. Entrega uma para Nina. Elas brindam. O som ambiente fica mais evidente. Nina e Bárbara conversam, sorriem e seduzem-se enquanto os convidados apreciam as obras expostas. O som ambiente torna-se mais agitado. 9.

INT. NOITE. BOATE. O som ambiente cresce até tomar conta da boate. Bárbara entra na pista de dança com uma garrafa long neck na mão. É seguida por Nina, que olha um pouco nervosa para os lados. A música está cada vez mais agitada, a pista está cheia e as pessoas dançam freneticamente. Bárbara toma um gole da garrafa, oferece para Nina que recusa educadamente. Ela deixa a garrafa numa das mesas. Vira-se para Nina, que está bem perto dela. Nina parece hipnotizada pelos olhos de Bárbara. O som fica mais intenso, abafado. Nina desvia o olhar, sem graça. Bárbara pega a mão de Nina e leva até seu rosto. A mão de Nina desliza sobre a pele de Bárbara, seus dedos tocam os lábios da pintora. Ela fecha os olhos e beija suavemente a ponta dos dedos de Nina, que aproxima na mesma hora a outra mão e segura o rosto de Bárbara com delicadeza. Elas se aproximam mais e se beijam, lenta e sensualmente. Elas páram de se beijar e se olham. Nenhuma palavra, nenhum som se ouve. Apenas os olhos se penetram. Elas se dão as mãos, sorriem e dançam lentamente, alheias ao ritmo da música. Imagens se fundem com o beijo das duas.

10.

INT. NOITE. QUARTO.(EM FLASHES) As duas se amam numa cama toda branca. Apenas detalhes, dos corpos se encontrando, se tocando à meia luz. De frente uma para a outra, Nina beija o pescoço de Bárbara. Bárbara abraça fortemente o corpo de Nina. As mãos de Nina descem pelas costas nuas de Bárbara. Bárbara conduz a mão direita de Nina até sua coxa. Nina sente Bárbara com ansiedade. Fecha os olhos e solta um gemido. Bárbara sorri com malícia. Ela beija Nina com furor.

11.

INT. DIA. QUARTO. O sol entra por entre a cortina transparente. Ao longe, gargalhadas, sussurros e gemidos que vai ficando mais próximos. Na cama, por debaixo dos lençóis, Nina e Bárbara se amam mais uma vez. Os gemidos ficam mais uma vez abafados.

12.

INT. DIA. CAMARIM DO TEATRO. Nina está sentada na bancada do camarim. Pelo espelho vê-se seu corpo se contorcer de prazer. De repente, suas mãos puxam o rosto de Bárbara para cima e Nina a beija.

13.

INT. NOITE. ATELIÊR. Nina passa o texto para Bárbara, que ri, achando graça. Ela por alguns instantes. Bárbara sussurra algum segredo no ouvido de Nina, que ri, dando um leve tapinha no ombro de Bárbara. Ela ri de volta e se vira de costas. Nina joga o texto no chão e a abraça por trás e ficam por alguns segundos nessa posição, sentindo uma à outra. Nina começa a passar as mãos na cintura de Bárbara, sobe pelo seu peito até chegar ao seu pescoço. Percebe-se que as unhas de Nina estão mais curtas. Bárbara vira somente o rosto e se beijam. Nina a vira de frente com fúria e a empurra para cima da mesa do atelier, derrubando algumas latas vazias de tinta. Bárbara afasta tudo o que está na mesa, sem parar de beijar Nina. Deitam-se na mesa, Nina sobre Bár-

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bara. Derrubam uma lata de tinta vermelha. A tinta escorre pelo chão e encharca o texto de Nina, enquanto ouve-se um gemido de prazer. 14.

INT. DIA. ATELIÊR. Em frente a uma tela grande e vazia, está Bárbara. Sozinha no atelier, ela passa as mãos pelos cabelos. Pára por alguns segundos, pensativa. Pega o pincel. Não consegue agir, não mexe os braços. Vira às costas para a tela e vê Catarina, que está parada na porta. Catarina, de braços cruzados olha para Bárbara. CATARINA Eu só queria entender o que está acontecendo contigo. BÁRBARA Não tem nada acontecendo comigo. CATARINA Ah, é? (se aproxima) Há quantos meses você não pinta nada? Bárbara, você tem que produzir alguma coisa, cara! BÁRBARA Não adianta me pressionar. Aliás, você não é mais minha namorada pra falar assim comigo. Então, calma lá! CATARINA (respira fundo) Sim. Não sou. Sou sua empresária. Cuido do seu trabalho. E é o meu que tá na reta se você não produz nada. Então eu posso falar assim com você sim! E eu acho que você não ta sabendo escolher. Fica o dia todo por conta da Nina. E aí? BÁRBARA A Nina não tem nada a ver com isso, Catarina. CATARINA Claro que tem! Você sabe que tem. Então cai na real e descobre onde foi parar a porra da sua inspiração. Catarina sai e bate a porta com fúria. Bárbara fica olhando para a porta fechada, pensativa. Vira-se com raiva e joga o pincel na parede de fotos da Nina.

15.

EXT. NOITE. TEATRO. Nina está sentada na platéia do teatro. Olha para o texto, olha para o palco com o cenário. Eduardo chega e senta do lado dela. EDUARDO Você quer conversar? NINA Na boa, não. Só não tô conseguindo. A estréia está chegando e eu não sei onde está

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minha cabeça, meu corpo, nada. Não sei Edu, não sei. EDUARDO Nina, você é a atriz mais talentosa com quem já trabalhei. Confio plenamente no que você faz lá em cima. Mas eu tô preocupado sim. A Petra é complicada. Ela é mais velha, é densa, vive um amor impossível. Você tem que sentir essa dor que ela sente. E onde está isso? NINA Eu não sei. Nina cobre os olhos com as mãos. Eduardo a abraça com carinho. EDUARDO Mas vai saber meu anjo, vai saber. Vamos com calma. Nina olha para as lágrimas de espuma do cenário, que balançam no vazio do palco. 16.

INT. DIA. QUARTO. Bárbara está sentada na cama, de frente para a janela. Nina chega e a vê. Pára por uns instantes. Depois, chega perto da cama, ajoelha-se no colchão e abraça Bárbara por trás. Dá-lhe um beijo na nuca. BÁRBARA Oi, amor. Não te vi chegar. NINA Eu sei que não. Hei, vem cá. Bárbara se vira e Nina a puxa para o centro do colchão. NINA Precisamos conversar... BÁRBARA Não, não precisamos. Não começa! Nina se levanta. Vira de costas para Bárbara, quase chorando. BÁRBARA Não faz isso, amor... Não faz isso com a gente. Nina nada diz. Apenas olha para a porta, para o armário, para a parede. Tenta segurar o choro. BÁRBARA Eu amo você. Nina se vira. Olha para Bárbara. Chega perto dela na cama.

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NINA Eu também amo você. Amo muito. Nina beija Bárbara suavemente. E se afasta, olhando para baixo. NINA Mas não dá mais. Eu queria... Como eu queira... Mas eu não consigo. Desculpa. Nina se levanta novamente. Pega a bolsa na cadeira e vai para a porta. Pára por alguns segundos. Uma lágrima desce pelo seu rosto. Sem olhar para trás, ela sai. Bárbara fica olhando para a porta, sem acreditar. 17.

INT. NOITE. TEATRO. A platéia está lotada, em silêncio e somente as luzes do palco a iluminam. Uma espectadora abre o flyer que traz o nome da peça “AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT” COM NINA MAYA: GRANDE ESTRÉIA. No palco, Nina interpreta a última cena do espetáculo. Com muita intensidade traz uma Petra sofrida e amarga. A personagem gesticula, aponta, acusa, chora, colore cada detalhe de suas falas. Após um momento de clímax, ela se joga no chão. A platéia levanta, e aplaude com furor. A cortina se fecha num repente. Por trás da cortina, ela chora, desesperadamente.

18.

INT. DIA. ATELIER. Bárbara pega uma lata de tinta vermelha. Joga com fúria numa tela grande branca. A tinta escorre, como lágrimas. Bárbara estende a mão e começa a fazer um traço que lembra o rosto de uma mulher. Ela pára. Olha para a imagem. Chora. Ao fundo, dezenas de quadros da artista mostram mulheres tristes. Bárbara começa a pintar com as mãos. Com tinta preta sobre a vermelha, ela desenha uma grande lágrima caindo do rosto da mulher.

5.1.2.

Diálogo

Em “Diálogo”, a personagem principal é Ísis dos Santos, uma mulher com pouco mais de 40 anos, mas que, infelizmente, aparenta mais. Isso por viver a rotina doméstica sem grandes pretensões e por ter um casamento frustrado. Seu marido, Henrique, é um bom homem, mas muito calado. Quase não saem, quase não conversam e o sexo não é muito bom. Ísis sempre gostou de aventura, mas nunca teve coragem de correr atrás de seus sonhos. Por isso se acomodou na situação e, aparentemente, vive uma felicidade superficial. Um dia ela decide dar um pequeno passo de mudança: compra um computador. O que parecia bobeira se torna o grande amigo de Ísis. Ela passa horas conhecendo o mundo através da internet e decide, da mesma forma, conhecer pessoas. Conhece Estela, uma arquiteta muito

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sedutora com as palavras, com um jeito de falar especial e único. Ísis se apaixona pelas palavras, pela foto, pelo jeito de Estela, mas sofre por sentir isso. Primeiro porque é casada, segundo por nunca ter sentido nada por nenhuma mulher antes. Os desejos vêm em seus sonhos, a vontade aumenta e ela se torna, finalmente, uma mulher corajosa a ponto se ouvir seu próprio coração. Estela tem 27 anos, tem um escritório de arquitetura e seu trabalho é muito reconhecido em Juiz de Fora. É responsável por prédios e casas noturnas tidas como referência arquitetônica no país. Muito nova, terminou sua faculdade e dedicou a vida ao trabalho. Uma mulher extremamente elegante e bem sucedida. Tem um estilo esporte fino com requintes de casualidade. Homossexual, Estela sempre teve uma queda por mulheres mais velhas. Morou por tempos com uma de 45 anos, se envolveu alguns namoros breves e hoje em dia está solteira. Já teve alguns relacionamentos pela internet, mas nunca acreditou nesse meio. Só que ultimamente troca correspondência constante com Ísis, uma mulher casada. Tem medo do que está sentindo, da falta que essa mulher faz em sua vida. Na história de “Diálogo”, Ísis vive um relacionamento frustrante com Henrique. Eles moram atualmente em Juiz de Fora. Sua rotina não deixa a dever a nenhuma empregada doméstica. Varrer, passar, lavar, cozinhar e cuidar do marido. Um dia, Ísis compra de presente pra si mesma um computador. O marido simplesmente ignora o fato, o que frustra Ísis ainda mais. Com o novo brinquedo, ela encontra uma ótima fuga da rotina. Tem um prazer enorme de mexer nos programas e de aprender aos poucos como desvendar a internet. Enquanto isso, o marido percebe que está perdendo espaço na casa para a máquina, mas pouco faz pra mudar o quadro. Continua preso à sua telenovela de todo dia. Curiosa, Ísis começa a entrar em salas de bate-papo. Mas, desinteressada, não permanece em nenhuma. Até que se vê num chat para homossexuais femininas. A princípio, Ísis reluta. Mas depois aceita conversar com uma mulher que chama sua atenção. Essa mulher

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é a arquiteta Estela, que é mais nova, lésbica e solteira. Com muita conversa e horas de batepapo, a sedução por palavras faz com que se apaixonem. Começam a sentir saudades uma da outra, apesar de nunca terem se encontrado. Vivenciam no computador um romance aparentemente proibido. Paralelamente, Ísis não entende muito bem o que se passa e tenta manter a normalidade de seu casamento. Mas isso já não é possível. Ela só consegue pensar na mulher da internet, que a cada dia a conquista mais. Quando não agüentam mais de ansiedade e desejo, Estela propõe de se conhecerem. Ísis, morrendo de medo, aceita, pois tem que saber o que está sentindo. Numa tarde, se encontram no Mirante do Cristo de Juiz de Fora. Estela chega primeiro, esperando ansiosa, por Ísis. Na verdade, pensa que ela não vai aparecer. Mas Ísis vai. Enfrenta o medo e aparece para ver Estela. Não é preciso mais palavras. Não importa mais o que têm a dizer. Ísis aceita a paixão que sente. E num momento exaltado, Ísis beija Estela. Após o encontro, novos rumos se estabelecem na vida das duas. Elas passam a viver um relacionamento de carinho e respeito. Vão morar juntas e com isso, dividir a vida, descobrir segredos e compartilhar sentimentos. A rotina de Ísis não muda radicalmente só por estar com uma mulher. A diferença é que agora ela ama e se sente amada. Com isso, encontra a felicidade há tanto esquecida.

5.1.2.1.

1.

Roteiro “Diálogo”

INT. DIA. SALA DA CASA. No canto da sala, um móbile brega de vidro balança perto da janela. Ísis está varrendo o chão, com ar de cansada. Uma música triste toca ao fundo, misturada com barulho de noticiário da tv. Ela pára e olha para o marido sentado no sofá. Ele está lendo o jornal e vendo TV ao mesmo tempo. Incomodado pelo barulho do rádio, ele vira a cabeça, olha para Íris e resmunga algo inaudível. Volta para frente, balança a cabeça negativamente e aumenta a TV. Ísis respira fundo, balança a cabeça, retira os óculos e coça os olhos. Continua a varrer sem pressa na direção da cozinha.

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2.

INT. DIA. COZINHA DA CASA. No fogão, a panela de pressão começa a apitar. O rádio ao lado da pia continua tocando a mesma música triste. Ísis despeja o lixo da pá dentro da lixeira. Abaixa o fogo do feijão e desliga o rádio. Ela abre a torneira e começa a lavar a louça. Suspira contrariada, torcendo a boca.

3.

INT. DIA. QUARTO DA CASA. Ísis se olha no espelho pra passar um batom. Retira os óculos. Repara numa ruguinha acima do olho. Ao longe, o som da TV continua alto e Henrique dá gargalhadas. Ísis suspira mais uma vez, larga o batom e pega um creme para peles maduras. Passa no rosto, alisando a pele como se isso fosse rejuvenescê-la instantaneamente. Finalmente passa o batom e ajeita o cabelo.

4.

INT. DIA. SALA DA CASA. Ísis pega dinheiro e um cartão de crédito na carteira de Henrique em cima da mesa e coloca em sua bolsa. Ela vai em direção à porta. ÍSIS (alto) Vou à feira. Quer alguma coisa? Henrique levanta-se rápido do sofá, vai até Ísis, abraça-lhe com carinho e beija sua testa. HENRIQUE Meu amor, eu vou pra você!! Volta à cena anterior. Henrique sentado no sofá, inerte, vendo televisão. Ísis pára de sonhar acordada. ÍSIS (alto) Vou à feira. Quer alguma coisa? Ísis espera uma reação do marido, mas ele nem olha pra trás. Apenas levanta a mão e dá um tchau. Ela sai com a bolsa na mão.

5.

EXT. DIA. FEIRA. Ísis procura maçãs perfeitas, cheira mangas, escolhe abacaxis. Pára em frente à banca de flores e admira as orquídeas. Uma em especial, branca, chama sua atenção. Ela se aproxima e sente a textura da flor. Suspira. Deixa pra lá e vai em direção às verduras, cumprimentando a dona da barraquinha.

6.

EXT. DIA. RUA PERTO DA FEIRA. Ísis volta para a casa com sacolas na mão. Passa em frente a uma loja de informática e vê um computador na vitrine. Ísis pára e olha. No monitor LCD de 20 polegadas, um comercial mostra uma mulher deitada na beira da piscina, com o laptop no colo. No filme, a mulher sorri, enquanto um garçom muito bonito traz um suco de frutas numa bandeja. De repente, quem está sentada na espreguiçadeira é a própria Ísis exatamente como a mulher estava vestida. Ela pega o suco e sorri, oferecendo para a tela do computador. Aparecem os créditos no monitor “QUINTA-FEIRA - 14 HORAS - REUNIÃO DE EQUIPE”. Ísis, do lado de fora da loja, acha graça do comercial. Na tela, aparece: “COMPUTER – TRABALHO E PRAZER DE

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UMA SÓ VEZ”. Ísis sorri e entra na loja com as sacolas. 7.

INT. DIA. SALA DA CASA. Ísis entra em casa com as sacolas da feira. A TV está muito alta. Ela passa pelo marido enquanto fala, quase gritando. ÍSIS (cínica) Comprei um computador com seu cartão de crédito, ta, benhê! HENRIQUE Hein?

8.

INT. DIA. QUARTO DE HÓSPEDES. Numa escrivaninha adaptada, Ísis ajeita orgulhosa o seu mais novo brinquedo. Na mesa, vários livros como “APRENDA COMPUTADOR NUM SEGUNDO”, “INTERNET PARA LEIGOS” e manuais de programas estão espalhados, ao lado de folhas rabiscadas. Ísis olha para a tela atenta, olha para o teclado. Ela consulta num dos livros e clica num site para fazer uma conta de e-mail. Cata letras tentando se cadastrar. Esfrega as mãos, achando tudo muito divertido. Volta a teclar, devagar. O marido chega na porta do quarto. HENRIQUE Cadê o almoço, Ísis? ÍSIS (sem olhar para ele) Está no microondas, Henrique. HENRIQUE Comida requentada de novo. Mas que saco, hein? Ele se vira e sai. ÍSIS (irônica, sussurrando) Vai se acostumando, meu filho. Ela continua digitando empolgada.

9.

INT. DIA. QUARTO DE HÓSPEDES. Na tela do computador, um site de viagens mostra lindas fotos de Paris, Londres, Nova York. Ísis, encantada, abre uma por uma, salva na sua pasta de arquivos. Demonstra que já domina mais o computador. Ela se levanta, vai até a estante e pega numa gaveta um CD virgem. Ela coloca no drive do computador e abre o programa de gravar CDS. Ela seleciona algumas músicas de seu arquivo e grava o CD. Quando ele fica pronto, ela tira-o da bandeja e escreve “PARA MEU MARIDÃO” com uma caneta preta. Ela sorri empolgada e sai.

10.

INT. DIA. SALA DA CASA

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Henrique está sentado na mesa, fazendo contas. Ísis chega por trás dele e o abraça. Ele apenas sorri e volta para as contas. Ísis suspira e senta ao lado dele. Entrega-lhe o CD dentro de uma capinha de plástico. HENRIQUE O que é isso? Um CD pirata? Ísis tenta falar, mas Henrique não deixa, interrompendo-a. HENRIQUE Eu já te falei pra não comprar essas porcarias, Ísis! Fica jogando dinheiro no lixo. Ele pega o CD e joga do outro lado da mesa, voltando para as contas. Ísis faz que vai explicar, mas desiste. Pega o CD na mesa e com tristeza nos olhos, sai da sala. 11.

INT. NOITE. QUARTO DE HÓSPEDES. Ísis está mais uma vez no computador. Ela navega na internet e entra num site de bate-papo. Olha pela porta aberta, vendo se o marido está por perto. Começa pela sala de “MULHERES CASADAS”. Não acha interessante, sai. Entra na sala “MAIORES DE 40”, faz cara de desconfiada. Sai de novo. Vê então, a sala “SEXO”. Dá um risinho safado e decide entrar. Observa que há uma sala com o nome “LÉSBICAS”. Pensa por alguns segundos. Coça a cabeça, e decide escrever o apelido “CURIOSA HETERO”. Ela clica o Enter, rindo sem graça. Logo que se conecta, uma mulher a convida para conversar em particular. O nome que aparece é ESTELA, piscando por alguns segundos. ÍSIS Ai! Será? Hum... Então tá. (escreve e fala) Alô!

12.

INT. NOITE. SALA DE ESTELA Num escritório de arquitetura muito elegante, a única luz do ambiente vem de uma luminária de cristal moderna e colorida, que lembra um móbile. Estela está sentada na frente de seu laptop. Um blues ao fundo, um copo de vinho ao seu lado e um cigarro na mão. Ela olha na tela do laptop escrito: “CURIOSA HETERO DIZ: ALÔ!”. Ela descansa o cigarro no cinzeiro. ESTELA Alô? Como assim? (ri) Agora curiosa fiquei eu. (escreve) Oi, como se chama? Estela toma um gole de vinho.

13.

INT. NOITE. QUARTO DE HÓSPEDES. Ísis responde no computador: “DEVO DIZER MEU NOME ASSIM, LOGO DE CARA?”. E vê a resposta: “POR QUE NÃO? VOCÊ JÁ SABE O MEU...”. ESTELA (EM OFF) Por que não? Você já sabe o meu... ÍSIS É... Por que não?... (escreve e fala) Meu nome é Ísis. Eu não sou lésbica. (pára de escrever) Ai! Que ridículo. Sou muito velha pra essas coisas. (apaga parte do texto).

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14.

INT. NOITE. ESCRITÓRIO DE ESTELA Estela observa, com os cotovelos na mesa, o computador. Vê a resposta de Ísis: “MEU NOME É ÍSIS”. ÍSIS (EM OFF) Meu nome é Ísis. ESTELA Ísis. Quem é você, Ísis? (volta a escrever) Você só está curiosa? (debochando) Ou quer descobrir de verdade o que é gostar de uma mulher? Estela enche um pouco mais a própria taça de vinho, rindo do que acaba de escrever.

15.

INT. NOITE. QUARTO DE HÓSPEDES. Ísis lê a pergunta de Estela. Levanta-se. ÍSIS Ai, meu Deus, o que eu tô fazendo. E a outra me pergunta isso de cara! Ela olha para a porta, ouve o som de novela na maior altura. Vai até a porta e a fecha. ÍSIS Ah! Quer saber? Ísis senta-se novamente no computador e escreve: “EU SOU CASADA. COM UM HOMEM”. Sorri, pensativa. Aperta a tecla ENTER. Ísis faz cara de vergonha. O som anuncia que uma nova mensagem chegou. Ísis lê atenta. ESTELA (EM OFF) Bom, isso não quer dizer nada. Nós podemos conversar, nos conhecer. Quero saber mais sobre você, Ísis. Quantos anos, de onde é. Tenho a noite toda pra descobrir. Ísis faz cara de surpresa ao terminar de ler. ÍSIS Abusada essa Estela...(pausa) Hum, gostei. Ísis volta a digitar, com um sorriso maroto no rosto. Vários momentos passam, imagens das duas teclando. Ísis na sala, Estela no seu quarto.

16.

INT. DIA. ESCRITÓRIO DE ESTELA. Estela está com o fone do celular no ouvido, andando pelo escritório. Uma grande planta baixa está aberta sobre a mesa. Estela aponta para detalhes da planta enquanto fala. ESTELA Sérgio, é o seguinte. Aquele móvel parma não vai ficar legal na sala. Contrasta muito com as cores da parede. A secretária de Estela entra pela porta e pede licença. Estela a chama com a mão. A secretária entra e deixa um documento na mesa. Estela agradece com a mão, pega o documento e senta-

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se na mesa. Continua ao telefone, prestando atenção. Abre o envelope, tira algumas folhas de um projeto e começa a folhear. O laptop na mesa avisa o recebimento de uma mensagem. Estela larga as folhas e puxa o laptop pra mais perto. ESTELA Sérgio? Desculpe, mas eu preciso desligar. Depois conversamos na reunião. (pausa) Pode deixar. Um abraço! Estela tira o fone do ouvido, e mexe no laptop para abrir a mensagem. Uma foto de Isis aparece na tela. Estela olha para a foto interessada. Sorri, gostando do que vê. Pega um cigarro, acende. Senta-se. Continua a olhar para a foto, rodando na cadeira, com ar apaixonado. 17.

INT. NOITE. SALA DO COMPUTADOR/QUARTO DE ESTELA Ísis e Estela conversam pelo computador. Elas teclam em diferentes momentos, com roupas diferentes, indicando a passagem de vários dias. Enquanto isso, elas trocam confidências. Ísis tenta arrumar o foco da WebCam. Estela ri do outro lado, enquanto passa a mão na tela do laptop. Elas se vêem e escrevem. Frases em Off preenchem a cena. ÍSIS Você viu aquele filme que passou ontem? ESTELA Pára com isso... ÍSIS Seu cabelo fica lindo preso desse jeito. ESTELA A primeira vez que eu fiquei com uma mulher, eu tinha 17 anos. ÍSIS Eu queria sentir seu perfume... ESTELA Eu gosto de ouvir MPB, um pouco de Jazz. ÍSIS Você é linda, sabia? ESTELA Queria te levar pra jantar... agora! É! Agora! ÍSIS Paulinho Moska, Lenine.... Bethânia? Nossa!! Amo!!! ÍSIS Nossa, aquele bar, foi você quem projetou? É lindo! ESTELA Você já viu “O Triciclo”? É espetacular...

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ÍSIS Eu gosto de documentários, de séries de tv. ÍSIS Eu casei muito nova. ESTELA Adoro cozinhar. Adoro! Acho que eu daria uma ótima chef. ÍSIS A gente podia ir pra Ibitipoca. Acredita que eu não conheço? ESTELA Quero te dar um beijo. ÍSIS Eu também quero te beijar... 18.

EXT. DIA. RUA DA FEIRA. Ísis volta para casa com o carrinho cheio de frutas. A rua está cheia de gente. Ísis observa com atenção as pessoas que passam por ela. Uma mulher loura, alta e muito bonita passa ao lado de Ísis, que vira os olhos para acompanhar. Ísis imagina a mulher loura olhando com jeito sensual para ela, piscando o olho. Ísis balança a cabeça e vê que a mulher não estava olhando de verdade. Volta os olhos correndo. Continua andando. Duas meninas mais novas vêm andando atrás de Ísis. Riem e conversam próximas uma à outra. Ao ultrapassarem Ísis, observase, no polegar das duas, anéis iguais. Ísis sorri e continua andando. Ela pára para atravessar a rua. Do outro lado, uma mulher de cabelos curtos está esperando o sinal abrir e olha para Ísis. Ísis percebe. Vira para os lados procurando outra pessoa. Do outro lado, a mulher sorri para ela. Ísis fica sem graça e olha para baixo, sorrindo. O sinal fecha. A mulher atravessa em direção à Ísis, que fica parada. Ao chegar mais perto, a mulher olha nos olhos de Ísis e pára em frente à ela. Ela pega as duas mãos e segura o rosto de Ísis, se aproximando para beijá-la. Ísis acorda. A mulher continua do outro lado da rua. Ela atravessa com pressa e passa ao lado de Ísis, que a acompanha virando o rosto. Ísis coça a cabeça e sorri, espantada com a própria reação.

19.

INT. NOITE. CORREDOR DA CASA. Ísis sai da sala do computador e fecha a porta, como se escondesse algo. Vira-se e dá de cara com o marido. Leva um susto. ÍSIS Meu Deus! Quer me matar do coração, criatura? HENRIQUE O que você tem, hein? Fica o dia todo aí, nesse computador. Nem parece que eu tô aqui. ÍSIS (irônica) Ah! Agora você sabe o que eu sinto, né?

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HENRIQUE Quê isso, amorzim. Pôxa, não fala assim comigo. (se aproxima dela) Vem cá, tô com saudade de você. Ísis faz cara de nojo quando o marido a abraça. Mas se arrepende, retribui o abraço e lhe dá um beijo. O marido começa a beijar com maior insistência. Ísis muda de idéia novamente e empurra o marido. HENRIQUE Quê foi??? ÍSIS Tô cansada. Vou tomar um banho. Ela sai pelo corredor, o marido vai atrás. Ela entra no banheiro da casa e bate a porta na cara do marido. HENRIQUE Ísis, você tá muito estranha! Fala comigo! Hei, Ísis! 20.

INT. NOITE. BANHEIRO DA CASA. Ísis pára na frente do espelho do banheiro. Olha pelo reflexo a tampa do vaso levantada. Num sinal de impaciência, coça os olhos. Ísis tira as mãos dos olhos e se observa por instantes. Vai ate o chuveiro e abre as torneiras ao máximo. Ela abaixa a tampa do vaso sanitário e se senta, com a cabeça entre as mãos, enquanto a água cai no box vazio.

21.

INT. DIA. ESCRITÓRIO DE ESTELA. Estela está no trabalho, revendo algumas plantas baixas. Um barulho no computador anuncia a chegada de Ísis num programa de bate papo. Ela larga a planta de lado e começa a teclar no laptop. Fala sozinha no escritório. ESTELA Que loucura. Não posso sentir saudade assim dessa mulher, meu Deus... (escreve) Você me faz falta. Ela espera e lê a resposta de Ísis que diz: “EU QUERIA TER CORAGEM PRA TE ENCONTRAR. MAS O MEDO É TANTO!”. ESTELA Eu também tenho medo. Muito medo. Estela escreve: “POSSO TE LIGAR? AGORA?” E espera. Instantes depois, ela lê “SIM” na tela. Pega o telefone.

22.

INT. DIA. SALA DA CASA DE ÍSIS. Ísis está no telefone, olhando pela janela. Enrola o fio como uma adolescente apaixonada. Sorri animadamente. ÍSIS Não. Ele tá no trabalho. Que bom ouvir sua voz. (sorri) Sabe, eu preciso...

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Ela pára e anda até o meio da sala, respirando fundo. ÍSIS Eu preciso te conhecer. Saber o que é isso tudo. Eu tenho sonhado com você!! E só te vi nas fotos, pela web cam. Eu sou casada. E, pior, eu nunca gostei de mulher na minha vida! Eu tô ficando completamente maluca. 23.

INT. DIA. ESCRITÓRIO DE ESTELA. Estela levanta, vai para a janela. Há um sino dos ventos do lado de fora, com um som harmonioso. Ela olha para fora, pensativa. Sorri, como que tomando coragem. ESTELA Eu... Eu também quero muito, eu preciso olhar seus olhos, sentir seu cheiro. Eu, eu... ÍSIS (pelo telefone) Eu quero te ver agora. ESTELA (em êxtase) Sim! Claro! Agora!

24.

INT. DIA. SALA DA CASA Ísis está maquiada, com uma roupa bonita, extremamente elegante. Ela passa apressada, pega a bolsa no sofá e procura algo como a chave de casa. Quando está perto da porta, ela se abre e seu marido entra. Ísis olha para ele assustada. HENRIQUE Onde você vai assim? ÍSIS (sem graça) Ah.. É... Não te interessa! HENRIQUE (assustado com a reação) Quê isso, Ísis! ÍSIS Ai! Desculpa, Henrique, eu tô atrasada, depois te falo. Ela vai falando enquanto passa entre o marido e a porta, quase correndo. Ele olha para a porta espantado.

25.

INT. DIA. RUA DA CASA DE ÍSIS. Ísis corre pela rua, segurando sua bolsa, como se estivesse fugindo de algo. Olha para os lados, correndo sem parar. Avista um ponto de táxi e acelera o passo. Pára em frente a um carro. O taxista olha espantado para ela. Ela pede para ele esperar, respira, tentando descansar. Faz um sinal de “deixa pra lá” e entra no carro.

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26.

EXT. DIA (TARDE). CAFÉ DA MATA Estela está sentada numa das mesas do café, fumando um cigarro. Ela olha ansiosa para a entrada, esperando por Ísis. O céu está azul-roseado pelo fim da tarde.

27.

EXT. DIA (TARDE). ENTRADA CAFÉ DA MATA CRISTO. Ísis chega de táxi, desce do carro, agradece ao motorista e dá uma última ajeitada no cabelo, olhando o reflexo no vidro do carro. Ela está muito bonita. O táxi vai embora e Ísis caminha tensa para a porta de entrada.

28.

EXT. DIA (TARDE). CAFÉ DA MATA. Ísis chega no caminho para o café. Vê, ao longe, Estela sentada na mesa e de costas para ela. Ísis sorri, satisfeita por estar ali e um pouco mais relaxada. Ela caminha devagar até Estela, que percebe a presença de Ísis e se vira. Estela, então, caminha também para encontrar Ísis. As duas se encontram e se olham. Ísis estende a mão, meio sem graça, sem saber ao certo como agir. Estela segura a mão de Ísis, cumprimenta, mas não larga. Estela olha para as mãos unidas. Dá um sorriso. Puxa Ísis para perto e lhe dá um gostoso abraço. Ísis aproveita o abraço e faz um carinho nas costas de Estela. Elas se afastam novamente. Admiram-se, os olhos, a boca, o cabelo. Percebem cada detalhe uma da outra. Estela tenta dizer algo, mas Ísis a cala com os dedos. Ela chega perto do rosto de Estela e elas se beijam apaixonadamente. Ao longe, o garçom do café olha desconfiado. Ele dá uma risadinha e volta para o trabalho. Ísis e Estela sentam no café, e conversam carinhosamente enquanto a noite cai.

29.

INT. DIA. COZINHA DA CASA. No fogão, a panela de pressão começa a apitar. No rádio, toca uma canção romântica da MPB. Ísis lava a louça. De olhos fechados, ela sente a música enquanto enxágua o prato. Um braço chega por trás de sua cintura e a abraça. Ela sorri e faz um carinho, percebe-se que Ísis está sem aliança. Ísis continua de olhos fechados, como estivesse sonhando. Estela carinhosamente beija o pescoço de Ísis, que abre os olhos. Estela pega o prato de sua mão. Ísis tenta pegar, Estela rouba um beijo dela. Estela aumenta o som do rádio e assume a louça. Ísis fica ao seu lado, sorrindo, passando as mãos nas costas dela. Pega o pano de prato e ajuda Estela.

30.

INT. DIA. QUARTO DE HOTEL. Henrique assiste à televisão. Na TV, passa um filme antigo em preto e branco. A barba de Henrique está por fazer, sua cara é de insone. Ele toma uma lata de cerveja.

31.

EXT. DIA. FEIRA. Estela caminha na frente, escolhendo mangas. Ísis chega perto dela e a ensina a pegar a certa. Estela faz uma careta de sem graça. Ísis paga as frutas. As duas andam pela feira com sacolas na mão. Ísis pára perto da banca de morangos. Estela continua adiante, e pára na banca de flores. Olha um vaso de orquídeas brancas. Pede para o vendedor embrulhar. Ísis se aproxima por trás de Estela. Ela dá o vaso para Ísis, que a abraça. As pessoas olham desinteressadamente para as duas abraçadas. Elas caminham entre as barracas e pessoas. O vaso de orquídeas pende dentro da sacola.

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5.1.3.

Apoio

As personagens de “Apoio” são as jovens Clara e Olívia. Clara é uma linda garota de 20 anos. Alegre, inteligente, corajosa e surda. Desde nascença apresentava problemas auditivos, mas aos 10 anos teve uma febre altíssima que lhe deixou surda dos dois ouvidos e que afetou também sua capacidade de fala. Gesticula as vogais e consoantes com precisão, mas o som não sai de sua boca. Na verdade, a surdez não é um problema. Filha de pais atenciosos, teve uma criação tranqüila, com muito amor e paciência. Moram em uma grande casa com piscina num bairro afastado. Mas Clara não sabe nadar. Ficar embaixo d‟água sempre lhe trouxe aflição. Clara sabe que sua mãe é uma mulher difícil e faz de tudo para não decepcioná-la. Sem assumir sua lesbianidade, ela já teve alguns breves namoros. Sempre desejou sair de casa, ser independente para poder viver isso de forma mais tranqüila. Mas sabe que, por enquanto, isso não é possível. Ela participa de grupos de apoio às necessidades especiais e começou recentemente a faculdade de psicologia. No momento vive uma boa fase de sua vida, começando a vida adulta com tranqüilidade e sabedoria. Às vezes sente ímpetos de loucura, como toda garota de 20 anos. Olívia tem 22 anos, toca violino na orquestra de Câmara do Pró-Música, é uma mulher linda com um talento nato para a música. Cega de nascença, Olívia soube desenvolver bem seus outros sentidos, sendo uma artista talentosa e sensível. Seu melhor amigo é também seu professor de ginástica especial. Freqüenta suas aulas há mais de dois anos. Gosta de dançar e é muito feminina. Suave. Uma mulher delicada, mas que pode ser forte e decidida, como o toque do violino. Ela nunca teve problemas em assumir que era lésbica. Ela pensa que, como não enxerga, não vê o preconceito nos olhos dos outros. Por isso se dá tão bem com sua orientação sexual. Mas, como ainda é nova e não conheceu a pessoa ideal, a pessoa em quem confiar, está solteira. Seu último relacionamento foi conturbado, e houve traição por parte da ex-

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namorada. Então ela se reserva pra poder confiar em alguém. É uma pessoa apaixonada pela vida e apaixonante, nunca se sentiu diferente por nada e soube se adaptar a todas as dificuldades. Um exemplo a ser seguido por todos. A história começa com os encontros de um grupo de pessoas muito especiais. Todas as terças e quintas, ele se reúne para participar das aulas de ginástica do professor Márcio. Ele realiza esse trabalho com portadores de necessidades especiais em Juiz de Fora há alguns anos. Pelas mãos e orientação do professor, todas as diferenças somem e todos se tornam um só. Freqüentam essas aulas, Clara e Olívia. Clara ficou surda quando era criança, o que afetou também sua capacidade de falar. Olívia é cega desde nascença e desenvolveu seus outros sentidos como ninguém. Ambas aceitam muito bem suas diferenças, assim como a maioria dos que fazem as aulas de ginástica. Clara e Olívia nunca fizeram um exercício juntas e, por isso, não tiveram oportunidade de se conhecer. Numa quinta despretensiosa do ano de 2006, Márcio une Clara e Olívia num exercício de confiança. Uma teria que conduzir a outra como uma marionete. Clara se candidata, então, a ser a marionete, o que deixa Olívia muito feliz. Nunca haviam confiado nela pra conduzir antes. Logo no primeiro toque, algo inesperado acontece. As peles se estremecem. Os corpos se aquecem. Clara se deixa levar pelas mãos de Olívia, seduzida pelos movimentos, o coração acelerado numa dança bela e completa. Algo que não necessita de luzes ou de sons para se entender. Depois da aula, Clara pede ajuda a Márcio para conversar com Olívia. Pede um contato, explica que quer conhecê-la melhor e a recíproca é verdadeira. Olívia sente que esse interesse não é apenas por uma amizade. Seu coração ficou abalado também. No primeiro momento, dúvida. Mas depois de mais algumas aulas, não há mais o que negar. Elas se gostam de verdade. E declaram seu amor, começando a namorar escondido. A mãe de Clara nunca aceitou o fato de a filha ser lésbica. Clara, por sua vez, tenta ignorar o preconceito da mãe e

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se empenha em descobrir maneiras de se comunicar com Olívia. Começa a aprender o Braile e tenta ensinar para Clara a LIBRAS. Um dia, na casa de Clara, as duas estão juntas e a mãe chega. Surpreendendo as duas, agride Olívia e a manda embora de sua casa. Desorientada e assustada, Olívia sai correndo pelo quintal da casa de Clara, que tenta impedi-la. Olívia não percebe a grande piscina que está à sua frente, tropeça na escada e cai dentro da água. Clara se desespera porque não sabe nadar. Ela não consegue gritar por ajuda, está presa e limitada, enquanto Olívia, inconsciente, está se afogando. O momento é esse. Não há palavras, sons, sinais, nada que a faça pedir ajuda. Somente ela pode salvar Olívia. E seu amor por ela prova ser maior que tudo. Clara se joga na água, quase afogando e alcança Olívia. Segura-a, como Olívia fez com ela na primeira aula. Tenta puxá-la para a beirada, mas Olívia está realmente desorientada. Clara, fraca, busca toda a sua adrenalina para salvar Olívia. E consegue finalmente puxar seu corpo para a beira. Olívia retoma a consciência e é beijada por Clara. A mãe de Clara acaba aceitando a filha, pois percebe sua felicidade com aquele amor. Resolve, assim, apoiá-las. Conclusão: nenhuma diferença é capaz de estragar o amor que sentem.

5.1.3.1.

1.

Roteiro “Apoio”

INT. DIA. SALA DE GINÁSTICA. Um móbile de fotos dos alunos balança em frente ao espelho da sala. Vários portadores de necessidades especiais fazem exercícios de alongamento. Uma música suave toca ao fundo e há caixas de som viradas para o chão. Márcio, o professor, passa pelos alunos, ora ajudando um, ora orientando outro. Ele une alguns alunos em duplas. Olívia, de olhos fechados, alonga os braços. Mais atrás, Clara a observa. Ela vira para a mãe que está sentada no banco de espera e, em LIBRAS, diz “HOJE A AULA VAI SER BOA!”. A mãe sorri e responde que sim. Márcio chega mais perto de Clara. Faz “OI” em LIBRAS. Clara o abraça. Ele chama, com as mãos, Clara para fazer o exercício com Olívia. Chega perto de Olívia e coloca a mão em seu ombro. Ela abre os olhos e aproxima as mãos do rosto de Márcio. OLIVIA

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E aí, Marcinho! Beleza? Márcio dá um beijo no rosto de Olívia e orienta sua mão direita até o rosto de Clara. Oliva faz o reconhecimento facial com delicadeza. MÁRCIO Olívia! Essa é Clara. Ela vai fazer o exercício contigo hoje, ok? OLÍVIA E aí, Clara. Tudo bem? Clara diz “OI” em LIBRAS, enquanto gesticula com a boca. MÁRCIO Ela não ouvir a gente, Olívia. Mas tenho certeza que isso não vai ser um problema pra vocês. (para o resto da turma, dizendo em LIBRAS ao mesmo tempo) Vamos começar hoje com exercícios de confiança. Márcio dá um exemplo do exercício onde um tem que guiar os gestos do outro como numa marionete. Clara segura no ombro esquerdo de Olívia. Dá um leve apertão, indicando que quer ser guiada primeiro. Olívia sorri e, com sua mão direita segura na mão de Clara a puxando para sua frente. Elas ficam frente a frente. Clara fecha os olhos. As mãos se cruzam acima do corpo, se soltam e começam a dançarem juntas no ar, como num espelho. As palmas se encostam, Clara sorri. Olívia também. A mãe de Clara observa o exercício das duas. Clara aproxima seu corpo de Olívia que a abraça. Clara fica mole como uma boneca. Olívia ergue com suavidade o corpo de Clara e começam a dançar pelo salão, como num tango. Clara mantém os olhos fechados enquanto Olívia guia seus passos. Olívia sorri. Ela passa suavemente sua mão direita nas costas de Clara, num carinho sutil. A mãe de Clara nota o gesto e fecha a cara com desconfiança. Elas dançam por mais algum tempo, indiferentes ao resto da turma. A música pára, mas Clara não desfaz o abraço de Olívia. Abre os olhos e sorri. Eleva a mão pelo ombro de Olívia, passa pela nuca e chega a seu rosto. Sente a pele de Olívia com a mão por alguns segundos. Elas se separam, deixando as mãos por último. Márcio, ao fundo, prepara outro exercício. 2.

INT. DIA. SAÍDA DA SALA DE GINÁSTICA. Márcio se despede das alunas. Olívia pára para conversar com ele. Clara vem andando com sua mãe ao lado, conversam sobre algo em LIBRAS. A mãe pára com outras alunas e Clara se aproxima de Márcio e Olívia. MÁRCIO (em LIBRAS ao mesmo tempo) Clara! Olívia gostaria de se encontrar com você para se conhecerem melhor! O que você acha? Clara responde em LIBRAS que sim, e pergunta para Márcio se ele pode passar o número do telefone para ela. Ele responde que sim, em LIBRAS. MÁRCIO A Clara tem em casa um telefone que transforma o que você diz em texto. Ela pediu para te dar o número, daí, vocês podem conversar!

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A mãe de Clara se aproxima dos três e chama, em LIBRAS, Clara para ir embora. MÃE Tchau, Márcio! Até a aula que vem. Clara dá um abraço de despedida em Olívia. A mãe observa e dá um suspiro de impaciência. Clara dá um beijo em Márcio e diz tchau em LIBRAS. Elas se afastam. OLÍVIA Gostei muito dela, Márcio. Achei que a gente se deu bem, sabe. Gostei dela. (pausa) Mesmo. Márcio ri com uma sutil ironia. 3.

INT. DIA. QUARTO DE OLÍVIA. Olívia está ensaiando violino. Toca uma melodia suave. Ela pára e olha para o telefone, na mesinha ao lado. Solta o violino em cima da cama. Pega o fone do gancho. Sente as teclas do aparelho. Pára. Volta com o fone para o gancho. Balança a cabeça negativamente. Passa as mãos no próprio rosto e dá um leve sorriso de reprovação. Vira de costas para o telefone. Volta e tenta pegar o fone mais uma vez. Chega a mão perto, mas desiste. Vira e sai de perto.

4.

INT. DIA. SALA DA CASA DE CLARA. Clara está sentada ao lado do telefone, com um livro na mão. Ela eventualmente olha para o aparelho ao lado do telefone, que indica chamada recebida. Não há indicação de chamadas. Clara suspira profundamente e volta os olhos para o livro. Fica por alguns segundos e olha novamente para o telefone.

5.

INT. DIA. SALA DE GINÁSTICA. Olívia está sentada, calçando seu tênis. Clara se aproxima dela e senta ao seu lado. Sorri ao olhar para o rosto de Olívia, que percebe sua presença e pára com o tênis na mão. Clara olha fixamente para os lábios de Olívia. OLÍVIA (sussurrando) Queria que você me ouvisse pra dizer que pensei em você. Desde o dia que te conheci. Queria saber te dizer. Queria ter te telefonado. Mas. Não, não tive coragem. Clara parece entender o que Olívia diz e sorri, olhando para baixo. Olha em volta e percebe que os alunos estão alheios às duas. Olívia calça o outro tênis. Clara pega sua mão e a puxa para perto de seu peito. Clara coloca a mão de Olívia sobre seu coração e a segura com as duas mãos, fazendo um carinho sutil. Olívia fecha os olhos sentindo o carinho de Clara. Clara olha mais uma vez e se levanta. Pega a mão de Olívia e a coloca em seu ombro. Começa a guiar Olívia para o jardim ao lado da sala de ginástica.

6.

EXT. DIA. JARDIM DA SALA DE GINÁSTICA. Clara pára onde ninguém mais pode ver as duas. Coloca-se de frente para Olívia e pega mais uma vez em sua mão direita. A aproxima de seu rosto. Olívia desce os dedos suavemente pelos traços de Clara. Sente as sobrancelhas, os olhos, a curva do nariz e chega aos lábios. Olívia subitamente aproxima seu rosto do rosto de Clara. Pára por uns instantes, sentindo a respiração de Clara, tentando achar sua boca. Os lábios se tocam, se reconhecendo. Olívia ouve um

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barulho vindo da sala de ginástica. Pára de repente. Volta o corpo para trás. Clara estende a mão até o coração de Olívia. Balança a cabeça negativamente. Puxa o corpo de Olívia para mais perto. Abraça-lhe com paixão. Ficam abraçadas por alguns segundos, de olhos fechados. Separam-se. Clara passa a mão no rosto de Olívia e sai. Olívia fica parada sorrindo. 7.

INT. NOITE. CASA DE CLARA Clara está sentada na mesa da sala e escreve algo. Sua mãe se aproxima e observa textos que ensinam braile sobre a mesa. Ela pára ao lado da filha e toca seu ombro. Clara olha para ela. MÃE (em LIBRAS ao mesmo tempo) Pra quê você tá querendo aprender isso? Clara responde em LIBRAS “PORQUE EU QUERO, ORAS”. A mãe olha para a filha e puxa uma cadeira. Senta-se perto dela. Clara desvia os olhos, fingindo que a mãe não está ali. A mãe toca mais uma vez no ombro de Clara. MÃE (em LIBRAS ao mesmo tempo) Como assim porque você quer? Que desaforo! Já sei! É aquela menina, né? A cega!!! Clara se levanta, colocando a cadeira com raiva para mais perto da mesa. Olha para a mãe com indignação. MÃE (em LIBRAS ao mesmo tempo) Eu não acredito. A gente já conversou tanto sobre isso. Você não gosta de mulher!! Entendeu? Clara chega bem perto da mãe e diz em LIBRAS “E SE EU FOR LÉSBICA?”. A mãe se levanta. MÃE (em LIBRAS ao mesmo tempo) Se você for lésbica? O que você quer dizer com se você for lésbica? Qual o seu problema, Clara? Você não acha que já é difícil demais pra mim você ser... (pára de falar) Clara, com calma e ironia, em LIBRAS, completa a frase da mãe. “EU SER SURDA?”. MÃE (em LIBRAS ao mesmo tempo) Não, minha filha. Desculpe. Não. Clara junta seu material da mesa e sai da sala. A mãe fica sentada, sem saber o que fazer.

8.

EXT. DIA. PRAÇA DO BOM PASTOR. Olívia está andando pela praça. Pára na barraquinha de flores. Sente a superfície das folhas, cheira algumas rosas. Sente a textura da pétala. Sorri. Chama a vendedora e indica o buquê que quer levar. A vendedora faz o arranjo e entrega para Olívia. Esta tira a carteira da bolsa e conta as notas dobradas. Entrega para a vendedora duas notas de R$10,00. Agradece e se vira

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a procura de um dos bancos. Ao longe, Clara observa Olívia comprar as flores. Ela se aproxima silenciosamente. OLÍVIA Não adianta chegar de mansinho. Eu sei que é você quem está aí. Clara sorri. Olívia entrega-lhe o buquê. Elas se abraçam. Olívia fecha os olhos. Clara segura sua mão, meio que escondido dos outros. OLÍVIA Fico imaginando qual a cor dos seus olhos. Qual o jeito do seu cabelo. Quais os tons que gosta de usar. Eu sei que você não escuta o que estou falando. Mas eu sei que você me sente. Eu sei. E você sabe o que eu sinto. Clara tira um papel do bolso e entrega para Olívia. Ela abre e sente algo escrito em Braile. Enquanto ela lê o que está escrito, seus olhos se enchem de lágrimas.

OLÍVIA Sim. Eu quero. Quero ser sua namorada. Elas se abraçam. As rosas nas mãos de Clara e a carta nas mãos de Olívia. 9.

EXT. NOITE. QUINTAL DA CASA DE CLARA Clara e Olívia estão sentadas no num banco, na beira da piscina. Clara está sentada por trás de Olívia e a abraça. Na frente das duas há papéis, uma régua de braile e um furador. Olívia pega o papel e lê com os dedos. OLÍVIA Então tem uma piscina aqui e um cachorro no fundo da casa. Deve ser bonito aqui. (pega o furador e a régua e escreve em braile) Você gosta de nadar? Olívia entrega o papel à Clara que lê com os olhos e com os dedos e balança a cabeça negativamente. Escreve algo. OLÍVIA Você não sabe nadar? Nossa. Eu vivo batendo nas beiradas. (ri) Até que tá aprendendo rápido o braile! Hei, lê isso aqui. Olívia pega o material na frente dela e escreve em braile algo como “QUER DORMIR COMIGO HOJE?”. E entrega para Clara. Ela tenta ler e vai rindo enquanto descobre o que está escrito. Pega um lápis e escreve embaixo para não esquecer: “QUER DORMIR COMIGO HOJE”. Depois, pega o furador e escreve na frente, em braile: “SIM. ONDE?”. E entrega o papel para Olívia. OLÍVIA Faz pergunta difícil não.

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Olívia se vira e dá um beijo no rosto de Clara. Ela não percebe que a mãe de Clara acabou de chegar em casa e observa as duas na piscina. A mãe larga a bolsa e a sacola que traz nas mãos. MÃE (gritando) Clara!! Clara! Solta essa menina! Olívia escuta e se assusta. Levanta e deixa cair os papéis e o furador. Clara não entende o que acontece. Vira pra trás e vê sua mãe andando em direção às duas. Pede para a mãe parar com as mãos. A mãe se aproxima das duas mas não pára e empurra a filha para o lado. Dirige-se à Olívia. MÃE Hei, mocinha! Quem você pensa que é! Você está na minha casa e me desrespeita assim! Sai daqui! OLÍVIA Me desculpe. Não foi minha intenção!!

MÃE Eu vou entrar e fingir que nada aconteceu. Você vai embora agora. Entendeu? A mãe vira às costas e entra na casa. Clara se aproxima de Olívia e a abraça, tentando impedir que vá embora. Olívia segura as mãos de Clara com nervoso e a afasta. OLÍVIA (nervosa) Não. Eu vou embora. Não me segura, por favor! Olívia solta as mãos de Clara e sai correndo, sem saber ao certo para onde ir. Clara tenta gritar por ela, mas os sons são inaudíveis. Olívia corre na direção da piscina, desorientada. Não vê a escada e tropeça. Bate a cabeça na borda e cai dentro da piscina. Clara se desespera e tenta gritar pela mãe. Chega perto da piscina e tenta alcançar o corpo de Olívia que se afunda devagar. Clara percebe que Olívia está inconsciente. Grita em silêncio mais uma vez. Olha para os lados, tenta enxergar ajuda. Toma coragem, se levanta e se joga na água, tentando nadar como pode. Clara alcança Olívia e a puxa, mas quase se afoga. Recupera-se como pode e chega na beirada da piscina. A mãe de Clara chega na janela e vê a filha salvando Olívia. Enquanto isso, Clara segura a cabeça de Olívia e tenta acordá-la. Ela começa a recobrar a consciência e vê Clara na sua frente. Clara a beija e enxuga seu rosto. A mãe chega na piscina e estende a mão para ajudar Olívia. Clara conduz a mão de Olívia até a mão de sua mãe. Ela ajuda Olívia a subir na escada. Clara a segue e a abraça. A mãe observa a felicidade da filha. Passa a mão pelos cabelos e cruza os braços. MÃE Fazer o quê, né? (se abaixa perto das meninas) Eu amo você, minha filha, do jeito que você é. Se é o que você quer... (sorri) Clara não ouve a mãe mas entende o que ela fala. Segura sua mão. Olívia tosse um pouco.

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MÃE (carinhosa) Olívia, você está bem, menina?

OLÍVIA Sim, senhora. Eu tropecei. Desculpe. MÃE Não precisa se desculpar. Mas, você gosta mesmo de Clara, menina? OLÍVIA Eu amo sua filha. Amo de verdade. Clara observa a conversa das duas. Sua mãe se vira e diz em LIBRAS para Clara “ELA GOSTA DE VOCÊ” e sorri. Clara abraça a mãe. Elas se separam e a mãe se levanta para buscar uma toalha. Clara fica ao lado de Olívia, no chão da piscina, sentindo os cabelos da namorada com carinho. Beija sua testa e coloca sua cabeça próxima ao coração. Olívia fecha os olhos e sorri.

5.1.4.

Confiança

Em “Confiança”, Anita, 84 anos é escritora e tem como grande paixão sua mulher Sofia. Além dos livros, passa seu tempo produzindo móbiles de cristais com animais em origami, que distribui pela casa e dá para as amigas. Nasceu em plena “Semana da Arte Moderna” do Brasil e seu nome é uma homenagem à pintora brasileira Anita Malfatti. Seus pais eram artistas e ativistas do Modernismo e fizeram questão dos estudos da filha. Ela formou-se em filosofia em Paris. Voltou ao Brasil em 1948, quando terminou seus estudos. Publicou diversos romances no Brasil e escreve até os dias de hoje. Apesar de viajar muito por todo o país, escolheu Juiz de Fora para morar desde seu retorno ao Brasil. Anita se apaixonou por Sofia assim que a conheceu. Mas fez a côrte por muito tempo antes de se declarar. Ia até a floricultura de Sofia e levava livros, presentes e bombons para ela. Saíram algumas vezes para conversar, se encotraram muitas vezes para tomar um café, e o namoro por olhares durou meses. Quando Anita tomou coragem para revelar seu amor, Sofia já estava completamente apaixonada e não resistiu por um segundo em aceitar o romance.

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Sofia tem 79 anos e uma origem humilde. Os pais vieram do campo e sempre trabalharam em fazendas com criação de gados e plantas. Quando se mudaram para Juiz de Fora, Sofia já sabia que seguiria os passos da família. O pai montou uma floricultura, que Sofia fez questão de manter. Sofia continua criando plantas exóticas em casa. É apaixonada por suculentas e tem a criação mais elogiada da cidade. Foi conquistada por Anita aos poucos. Abriu seu coração para essa nova experiência e se apaixonou completamente, passando logo após a dividir sua casa com ela. Casadas desde 1955, aprenderam muito juntas. Sofia fez somente o primário, mas Anita ensinou a ela tudo o que sabia sobre arte, cultura, letras e filosofia. Em “Apoio”, Anita e Sofia são duas senhoras que se amam há 51 anos. Apaixonaram-se e construíram juntas toda uma vida. Sempre conviveram na sociedade de Juiz de Fora com muita discrição. Apesar de Anita se tornado uma escritora famosa e, com isso, ter enfrentado preconceitos por sua orientação sexual. No entanto, nem Anita, nem Sofia faziam questão de abrir ou de esconder seu relacionamento. Eram mulheres muito ativas e felizes, casadas em amor. Atualmente, Anita está terminando um livro que tem como tema o sopro da vida. Numa noite, Anita sofre um ataque de coração. Ao acordar, Sofia percebe que a amada está morta. Mesmo com dor e a tristeza, Sofia prepara tudo para que a companheira possa descansar em paz. Enfrenta até mesmo o preconceito das agências funerárias ao querer comprar um lote duplo no cemitério, para serem enterradas lado a lado. Para ajudar nos preparativos, Rafaela, a sobrinha preferida de Anita vai passar uns dias com Sofia. Ela sempre amou as duas com muito respeito e carinho. Numa noite, antes de se deitar, Sofia lê o livro inacabado de Anita. Lembrando-se da história sobre a qual haviam conversado tantas vezes, Sofia senta-se à maquina de escrever e termina com suas próprias palavras a obra de Anita.

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No dia do funeral, Sofia recebe os cumprimentos ao lado do caixão de Anita, sempre pensando no momento em que poderá ficar a sós com ela. Quando isso finalmente acontece, Sofia entrega-lhe o livro e declara seu amor eterno, desejando que em breve se reencontrem. Sofia senta-se ao lado do corpo de Anita, segura-lhe as mãos e parte para encontrá-la em outra vida. Seu desejo é cumprido. Anita e Sofia continuam unidas, para todo o sempre.

5.1.4.1.

Roteiro “Confiança”

1.

EXT. DIA. QUINTAL DA CASA. Na viga de madeira da varanda, um móbile, de origamis e cristais, balança suavemente. Um disco de vinil antigo toca na vitrola. Sofia remexe na terra de um vaso. Ao lado, há uma muda de suculenta sobre uma bandeja de isopor. Anita está deitada numa espreguiçadeira, ao fundo. Ela lê um livro, ri sozinha. Sofia escuta o riso e se vira para olhar Anita. Sorri com carinho, enquanto passa a mão na testa enxugando o suor. Um risco marrom de terra marca a testa. Anita percebe o risco e se levanta. Caminha lentamente até Sofia. Pega um lenço em cima da mesa e delicadamente limpa a testa de Sofia. Sofia beija as mãos de Anita, pegando de volta o pano. Sorri. Anita balança a cabeça, achando graça.

1.

INT. DIA. COZINHA DA CASA. Anita pega a água fervente na leiteira e entorna sobre um filtro com pó de café. A fumaça do café toma conta do ambiente. Sofia se aproxima ao lado de Anita com duas xícaras vazias. Espera pelo café. Anita faz sinal de “calma” com as mãos. Sofia espera encostada na pia, olhando para Anita.

2.

INT. NOITE (FIM DE TARDE). SALA DA CASA. Anita digita vagarosamente na máquina de escrever antiga. Pára e observa a folha escrita até o meio que está na máquina. Na mesma mesa, uma pilha de folhas, algumas xícaras vazias, folhas dobradas e, vários origamis pequenos jogados. Atrás de Anita, uma grande estante, com livros assinados com seu nome: ANITA DE OLIVEIRA. Na mesma sala, ao lado da estante, Sofia está fazendo pontos de tricô. Uma música clássica envolve o ambiente, onde vários móbiles de origamis estão pendurados no teto. Anita pára por alguns segundos, sentindo dores no braço esquerdo. Respira fundo e volta a escrever.

3.

INT. NOITE. QUARTO DA CASA. Sofia está sentada na penteadeira. Tira aos poucos as presilhas que seguram seu coque, se olhando no espelho. Coloca uma por uma as presilhas dentro de uma caixinha de música sobre a penteadeira. Anita chega por trás de Sofia. Coloca carinhosamente as mãos sobre seus ombros. Pega a escova que está sobre a penteadeira. Começa a mexer nos cabelos de Sofia, procura por outras presilhas. Solta o coque de Sofia, que fecha os olhos sentindo o carinho. Anita escova lentamente os cabelos de Sofia.

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4.

INT. NOITE (MAIS TARDE). QUARTO DA CASA – CAMA DO CASAL. Sofia está deitada lendo uma revista de plantas à meia luz. Na mesinha de cabeceira, fotos em preto e branco das duas mais jovens. Anita senta-se na beira da cama e ora por alguns segundos. Sofia olha para Anita e sorri. Anita se deita ao lado de Sofia, que solta a revista, vira-se para ela e a abraça por trás. Dá-lhe um beijo no rosto. ANITA Boa noite, meu amor. SOFIA Durma bem, minha amada.

5.

INT. DIA. QUARTO DO CASAL. A luz entra suave pela janela. Anita ainda está deitada. Sofia entra no quarto vagarosamente. Vai até a janela.

SOFIA Amada, está na hora. O café já está pronto. Senta-se ao lado de Anita. SOFIA Anita? Vamos, querida! Sofia passa sua mão sobre as cobertas, mexendo em Anita. Ela não reage. Sofia insiste. Anita continua sem reagir, os olhos fechados. Sofia coloca a mão sobre o rosto de Anita. Pára de repente. Afasta-se devagar. Pára e se levanta. Olha para Anita, balançando a cabeça, sem acreditar. Ela se afasta ainda mais, chegando à janela. Sofia chora. 6.

INT. DIA. ESCRITÓRIO DA CASA FUNERÁRIA. O agente funerário está sentado na mesa, em meio a catálogos de caixões e coroas. Sofia está sentada à sua frente, olhando fixamente para as fotos dos catálogos. O agente parece procurar algo. Sofia respira profundamente. AGENTE Bom, senhora Sofia. Esta é a melhor opção para a sua amiga. (vira o catálogo para Sofia) Um caixão belíssimo. O preço é um pouco alto, mas te asseguro que compensa. Sofia continua com os olhos fixos no catálogo. O silêncio se estabelece por alguns segundos. AGENTE Se a senhora quiser, tenho outras opções mais em conta. SOFIA Eu quero saber sobre o cemitério. (para si mesma) Não entendo porque nunca nos preocupamos com isso. (ri sem graça) Era de nosso desejo sermos enterradas juntas. AGENTE Ah...Desculpe. Não está disponível nesse caso.

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Sofia se aproxima mais do agente, a mesa e os catálogos entre eles. SOFIA. Eu que peço desculpas, mas que caso? AGENTE Cova dupla somente para casais. Sinto muito. Sofia ajeita os óculos com paciência. Respira fundo mais uma vez. SOFIA Meu rapaz, seja ao menos sensível. É o mínimo que sua profissão lhe pede. Não preciso ser mais clara! Preciso? Sofia olha no fundo dos olhos do agente. Ele desvia os olhos, procura em documentos, coça a cabeça e sorri sem graça. AGENTE Será arranjado, senhora Sofia. Não se preocupe, por favor. O agente volta para os papéis e Sofia retira os óculos, coçando os olhos com impaciência. 7.

EXT. NOITE. JARDIM DA CASA. A noite está clara. Sofia está sentada na espreguiçadeira onde Anita sentava-se sempre. Observa ao lado o livro que ela estava lendo. Pega o livro e abre na pagina marcada. Leva o livro ao coração. O vento forte faz barulho no móbile. Um dos origamis do móbile se desprende e cai no chão. Sofia se levanta, pega o origami do chão e o coloca entre as páginas do livro.

8.

INT. DIA. SALA DA CASA. Toca a campainha. Sofia se apressa para atender. Abre a porta e vê uma garota jovem bonita parada, com malas na mão. Rafaela, a garota, entra e abraça Sofia. Rafaela deixa as malas no chão. Sofia fecha a porta e indica o sofá, convidando-a para sentar. Elas se sentam. RAFAELA Eu vim assim que soube, Sofia. O que aconteceu com minha tia?

SOFIA Os médicos não me explicaram direito. Disseram que foi um ataque do coração. Mas eu não entendo. Ela estava bem na noite anterior, sabe? Ela estava bem. RAFAELA Eu sinto muito, sinto mesmo. Eu nem sei direito o que dizer. Ou o que eu posso fazer. SOFIA ..(se levanta) Rafaela, sua tia te amava muito. Você sabe disso, né?

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Vai até o aparador e pega uma foto de Anita com Rafaela criança. Admira a foto. Vira-se e entrega a foto para Rafaela. RAFAELA Sim, eu sei. Ela adorava brincar comigo. Leu milhares de livros pra mim. SOFIA ..(senta-se no sofá) Que bom que você pôde vir. Eu fico muito, muito feliz. Rafaela segura as mãos de Sofia. RAFAELA Sofia, nunca se esqueça que você é minha tia também. Eu quero ajudar, no que for. Vou ficar aqui até tudo se resolver, tá? SOFIA Oh! Minha filha... Obrigada! Eu tô tão cansada. Sofia olha para a máquina de escrever em cima da mesa. Sorri. Levanta-se e vai até a máquina. Retira o papel da máquina. RAFAELA Esse era o livro que ela estava escrevendo? SOFIA Sim, uma história linda como sempre. Ela me contou tudo o que ela queria escrever. Passamos dias conversando sobre o assunto. Era sobre o sopro de vida. Aquele que surge quando uma criança nasce. Ou que nos assusta quando a gente se apaixona. E quando a gente se arrisca! Ou quando escapamos da morte. Sofia não se contém em lágrimas. Rafaela se aproxima e lhe abraça. 9.

INT. NOITE. CORREDOR DA CASA – SALA DA CASA. Sofia sai do quarto e fecha a porta. Está vestindo uma camisola, preparada para dormir. Com um copo vazio na mão, se dirige à cozinha. Na parede do corredor, várias fotos de Anita e Sofia. Fotos delicadas das duas juntas, a maioria em preto e branco, sempre muito bonitas. Sofia passa pelas fotos de cabeça baixa, não querendo olhar. Ao chegar na sala, pára olhando para a mesa da máquina de escrever. Aproxima-se. Pega o papel escrito até a metade que está sobre a mesa. Puxa a cadeira e senta-se. Observa a pilha de folhas ao lado da máquina. Começa a lê-las, uma a uma. Primeiro devagar, depois mais rápido. Pega a folha escrita pela metade e recoloca na máquina. Começa a escrever na máquina. Suspira fundo, escreve a página toda. Troca a página por uma em branco e continua a escrever. A noite cai enquanto Sofia termina o livro de Anita.

10.

INT. DIA. CASA FUNERÁRIA. A sala está repleta de cadeiras vazias. Ao fundo, uma grande coroa de flores ao lado de um caixão de madeira reluzente. O agente funerário distribui santinhos pelas cadeiras. Rafaela ajeita as flores, olha para o caixão. Suspira fundo, olhos fixos na janelinha da tampa. Sofia chega e pára na porta, um maço de folhas na mão esquerda, um arranjo de flores na outra.

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Sente-se tonta e segura na cadeira. O agente funerário vai ajudá-la. Juntos, caminham por entre as cadeiras até uma poltrona, ao lado do caixão. Rafaela agradece ao agente funerário e auxilia Sofia a se sentar. Sofia coloca o maço de folhas no colo e sobre ele, as flores. Algumas pessoas chegam, passam pelo caixão, cumprimentam Sofia e Rafaela e se vão. Sofia não tira os olhos do caixão de Anita. O salão fica vazio novamente. Rafaela acompanha duas senhoras até a porta. O agente funerário cochicha algo com Sofia, que diz que sim com a cabeça. O agente abre delicadamente a tampa superior do caixão e se retira. Anita está muito bonita, quase um sorriso nos lábios. Sofia se levanta e puxa com dificuldades a cadeira em que estava para mais perto do caixão. Ela coloca as flores sobre o corpo de Anita. Senta-se com os papéis em suas mãos. Sofia olha para o rosto de Anita. Ajeita o cabelo que cai na testa da mulher. Faz um carinho nas mãos de Anita. Segura suas mãos por alguns instantes SOFIA Anita, você me ensinou a amar. A amar a nossa vida, amar as palavras. A amar ainda mais minhas plantinhas! Amar tudo o que passamos, tudo. Todos os momentos, ruins, bons, nossos. Você me ensinou que o amor é esse móbile que fazemos de pedras, papéis, linhas. Sempre diferente, a cada dia inigualável. Ai, Anita. Você foi o único e verdadeiro amor de toda a minha alma. (pára e olha para o maço de papéis) Eu não sei se era bem isso que você queria, mas é a sua história. A nossa história. Obrigada por sempre ser você mesma, Anita, minha amada. (coloca os papéis ao lado das flores) Espero te reencontrar logo, meu amor. Sofia senta-se ao lado do corpo, a mão direita ainda unida às de Anita. Olha por alguns instantes para o rosto de Anita. Beija a ponta dos dedos da mão esquerda e delicadamente toca nos lábios de Anita. Sofia recosta seu rosto em seu braço direito. Adormece. Rafaela volta ao salão e vê Sofia. Aproxima-se e a chama. Tenta uma vez, Sofia não responde. Tenta outra vez, e ainda nada. Na terceira tentativa, o braço direito de Sofia pende ao lado de seu corpo. Rafaela se afasta ao perceber a morte de Sofia.

5.1.5.

Perdão

As protagonistas de “Perdão” são uma cantora e uma fotógrafa. Maria Luisa Cordeiro é essa cantora de 28 anos, com uma carreira sólida e público fiel. Mulher envolvente, voz sensual, feminilidade mesclada com masculinidade. Faz sucesso principalmente entre jovens, com repertório pop-rock. Além de dar voz a canções de outros compositores, tem suas próprias músicas e conquista a cada dia novos fãs. Adora MPB, blues, soul, rock antigo, jazz. Seu estilo é uma mistura gostosa desses ritmos com um toque eletrônico. Começou a cantar nos barzinhos de Juiz de Fora e já tem três discos gravados. É uma mulher talentosa em todos os sentidos, principalmente na administração da própria carreira. Sabe

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muito bem onde pisar e o que fazer pra conseguir o que quer. Mas, por outro lado, é um pouco inconseqüente no amor. Já fez muitas loucuras e não se arrepende delas. Vive, há cinco anos, com a fotógrafa Renata, com que tem um relacionamento estável mas desgastado. Somente com essa mulher conseguiu sossegar um pouco, depois de trocar infinitas vezes de namorada. Ela não se considera bissexual, mas teve alguns breves encontros sexuais com homens. Como marca registrada, as mãos fortes, os dedos alongados, anéis expressivos e uma pulseira de couro que sempre a acompanha. Presente da mãe, amuleto de sorte. No palco, é uma mulher sensual e forte. Sexy, na medida certa, seduz sua platéia como ninguém. Ela sabe que precisa amadurecer um pouco pra valorizar o amor que sente por Renata. Nunca pensou em ter filhos. Renata tem 32 anos, é jornalista e repórter fotográfica. Trabalha num jornal de Juiz de Fora e faz trabalhos free-lance para agências de notícias do mundo todo. Seu trabalho é admirado como um dos mais realistas e sensíveis do país. É uma mulher sensata, calma e com forte personalidade. Difícil tirá-la do sério, e uma das coisas contra a qual tem lutado é o ciúme que sente de Malu. Conheceu a cantora num de seus shows, quando foi contratada para fotografá-la para uma revista. Apaixonaram-se rápido, e um ano depois foram morar juntas. Mas Renata já passou por momentos de traição com Malu. Somente ela para saber o quanto perdoou e o quanto ainda ama a mulher. Ela é o braço forte, a estabilidade de Malu, e tem opiniões bem colocadas e decididas. Ponderada, demora a tomar decisões. Mas quando as toma, sabe que é pra valer. Como quando assumiu sua homossexualidade, para os pais e para os irmãos. Foi repreendida, expulsa de casa. Mas, como ela já conhecia a família, só contou quando tinha estabilidade financeira e um apartamento montado. Então, enfrentou bem a situação e hoje em dia tem um convívio tranqüilo com a mãe e com os irmãos. Renata sabe que seu relacionamento não está indo bem. Há tempos não se sente valorizada por Malu e sente falta da namorada. Já passou por cima de muita coisa pra ficar

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com ela. Só que agora a paciência está se esgotando, o limite está chegando e Renata sente que precisa tomar uma atitude. Mesmo porque pensa em, algum dia, ter filhos com Malu e com a estabilidade atual, não é possível. Mais racional do que emotiva, Renata sabe que precisa ouvir mais seu coração. A história de “Perdão” começa na última apresentação da temporada 2006 de shows de Malu Cordeiro, que está com platéia lotada. Ela entra no palco da casa de shows mais famosa de Juiz de Fora e todos vão à loucura. O solo do guitarrista introduz os primeiros acordes da canção. No palco, entre caixas de som e os outros integrantes da banda, Malu encanta e empolga seu público. Com 28 anos, já é uma cantora de muito sucesso e sua voz grave e forte agita todos na casa de shows. Iluminação marcante, a música toma conta de tudo. No fundo da coxia, Renata, namorada de Malu, acompanha o show com sua câmera fotográfica. O baixista da banda, sempre teve uma quedinha pela cantora, mas ela está com Renata há mais de cinco anos. Pode-se dizer que têm um relacionamento estável, mas enfrentam as dificuldades da rotina e do trabalho estressante. Renata é repórter fotográfica do jornal local e recebeu, recentemente, uma proposta irrecusável de emprego em outra cidade. Malu, sem saber de nada ainda, continua seus shows, onde faz questão de ser agradável até demais com as fãs. O ciúme já causou muitas discussões, mas atualmente, elas passam pela fase da indiferença, uma das piores de um relacionamento. O solo da bateria encerra o show. Malu é ovacionada por sua platéia, composta na maioria por jovens garotas. Renata aplaude com carinho, mas não deixa de sentir a costumeira pontada ao ver o assédio das meninas. Após o show, a conversa mais séria sobre o futuro. Uma conversa que acaba em discussão, em descontrole, em lágrimas. Malu, como sempre, ameaça ir embora e sai de casa. Mas, dessa vez, quem realmente vai é Renata. Ela junta suas coisas e deixa um bilhete. Enquanto isso, Malu sai pelos bares da cidade e acaba encontrando

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o baixista de sua banda. Para se vingar de Renata, Malu vai para a cama com Giovane. Quando volta pra casa, vê que Renata pegou suas coisas e saiu de casa. Elas se separam, Renata aceita o novo trabalho e vai morar no Canadá Após algumas semanas, Malu começa a passar mal. Sem acreditar muito na possibilidade, descobre que está grávida. Grávida de seu baixista, que, nessa altura do campeonato, voltou a ser apenas seu baixista. Renata continua fora do país e elas pouco se falam. Malu não consegue parar de pensar no quanto queria sua namorada por perto, em como errou e no que poderia fazer pra que Renata a perdoasse. E, aos poucos começa a se apaixonar pela idéia de criar uma filha com ela. Mas ainda não tem coragem de contar da gravidez. Um dia, andando pela rua, elas se encontram. Renata, mais abatida, com malas, acaba de voltar para a cidade. Malu, já com oito meses, denuncia a gravidez em uma linda barriga. Renata não consegue acreditar no que vê. Malu diz que é uma menina e pede à Renata que escolha um nome para sua filha. Mas ela fica sem reação e foge, sem entender o que aconteceu. Malu tenta, porém não consegue segurar a namorada. O resto da gravidez ocorre sem problemas, mas Renata ainda não sabe se volta ou não para Malu. No dia em que a menina nasce ela aparece no hospital. Renata leva um móbile de presente para a filha. E diz que gostaria que a menina se chamasse Myriam. Ao se reencontrarem, decidem esquecer todo o passado. Tudo o que Renata quer é sua família de volta, seu amor e agora, sua filha.

5.1.5.1. 1.

Roteiro “Perdão”

INT. NOITE. CASA DE SHOWS. Luzes diversas desenham um móbile de cores por entre a nuvem de fumaça. A platéia lotada aplaude animadamente. A bateria começa um solo, e logo em seguida é acompanhada por acordes do guitarrista. O baixista começa a marcar o compasso. Na coxia, Malu Cordeiro enxuga o suor do rosto enquanto bebe uma garrafa de água com gás. Renata está do outro lado do palco, dentro da coxia, com a câmera fotográfica profissional na mão. Ela focaliza o rosto de Malu quando ela bebe a água e bate uma foto. Malu se prepara para entrar, vê Renata e

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pisca o olho para ela. Renata gesticula com os lábios “EU TE AMO” de dentro da coxia. Malu sorri e pega o microfone da mão do assistente de palco. Ela entra animada no palco. Os aplausos e gritos tomam conta da casa de shows. O outro assistente de palco lhe entrega o violão folk e ela rapidamente passa a correia pelas costas. A música alucina o público, mulheres gritam por todos os lados pedidos de casamento e elogios mais ardorosos. Renata fotografa a platéia de dentro da coxia e passa as mãos no cabelo. Balança a cabeça com reprovação. Malu, empolgada, se aproxima do baixista e finge uma cena de sedução com ele. Com os instrumentos frente a frente, chega o rosto bem perto do dele e canta bem perto de seu ouvido. Giovane, o baixista, aproveita o momento e aproxima mais seu corpo do dela. Ela pára de tocar e dá um estalinho nos lábios do baixista. Renata fotografa a cena, abaixa a câmera e visualiza a foto no visor LCD. Pensa por alguns instantes e apaga a foto. A música acaba no palco. Malu levanta os braços e a platéia aplaude de pé.

MALU Valeu! Obrigada!! É sempre uma delícia tocar pra vocês!! Boa noite!!! Os outros músicos se aproximam de Malu e a abraçam. Giovane faz questão de ficar ao lado dela. Eles agradecem juntos e saem do palco. Antes de entrar na coxia, Malu sente um puxão no braço. Olha e vê uma menina com seus 18 anos, bonita, de boné, e sorri. Vai para a ponta do palco, tentando se esconder de Renata, que a espera na coxia. Enquanto isso, Renata conversa com a empresária de Malu, que, empolgada, fala sem parar. Ela percebe que Malu sai com a menina e tenta se desviar da empresária, mas ela não a deixa sair. Malu, na beirada do palco, conversa intimamente com a menina, que ri e vira o rosto. Malu passa as mãos pela costa da menina e sobe até sua nuca. Renata, ao longe, vê a cena, ainda tentado sair da conversa da empresária. Malu chega mais perto da menina, e dá um estalinho no canto de sua boca, enquanto pega o papel e caneta das mãos dela e escreve, além do autógrafo, um número de telefone celular. Ela fala algo no ouvido de Malu, que se afasta sorrindo e entra na coxia. Malu se aproxima e dá um beijo carinhoso em Renata, que parece meio relutante, mas finge que está tudo bem. No fundo, está magoada com a atitude da namorada. Giovane, de dentro da coxia, observa com malícia, enquanto abre uma garrafa de cerveja. Ele vira a garrafa sem tirar os olhos das duas. Elas param de se beijar. Renata olha por trás dos ombros a menina que estava antes perto de Malu correr para as amigas com o papel na mão. Ela volta para a frente, sorri amarelo e sai abraçada com Malu para o camarim. 2.

INT. NOITE. APARTAMENTO MALU E RENATA. Uma música suave acalma o ambiente. Renata coloca duas pedras de gelo num copo. Depois, mais três em outro. Pega a garrafa de whisky e enche os copos. Mexe com os dedos as pedras e pega os copos. Malu, que acabou de sair do banho, chega por trás, beija a nuca de Renata e rouba um dos copos de sua mão. Renata sorri. Malu se deita no grande sofá. Renata bebe seu whisky, com olhar distante. MALU Ai... Eu não agüento mais isso. Ainda bem que esse foi o último show. RENATA Por enquanto, né, amor. Daqui a pouco começa tudo de novo. (ela senta no braço do sofá) E, vem cá, você gosta. Vai, confessa! Malu senta e se aproxima de Renata. Passa a mão em sua coxa.

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MALU É... Eu gosto... Sinto-me, sei lá, viva. RENATA É, eu sei. Pena que eu não consiga fazer isso com você. MALU Hei, o quê é isso? De onde você tirou essa idéia infeliz? Renata se levanta, bebe mais um gole do whisky e chega perto da janela. Observa a vista, com pensamento longe.

RENATA Você sabe que a gente não tá bem, Malu. Há quanto tempo a gente... (hesita) não transa? MALU Ai, não. (ela se levanta) Rê, a gente tá junta há cinco anos, cara. É difícil mesmo. Sei lá, rotina, trabalho, estresse. Isso tudo atrapalha. Você mesma não tá afim! RENATA Meu anjo, não fala isso. Você sabe o quanto eu quero você, sempre. (se aproxima de Malu) E você sempre me escapa. Arranja uma desculpa. Por quê? (falando mais baixo, quase sussurrando) Aliás, eu sei o porquê. Porque você fica com essas menininhas por aí... (pausa) E, sinceramente, (aumenta bem a voz) eu não agüento mais. Malu vira às costas e pega o maço de cigarros em cima da mesa. Acende um. Malu olha pra ela, como se não soubesse de nada. Renata olha para ela por uns instantes, depois volta a olhar pela janela. RENATA O problema é que eu amo você mais do que eu me amo, né? Você vive jogando isso na minha cara. Malu continua quieta, parada, atônita, sem acreditar que a namorada sabe de suas traições. Vira de costas. RENATA Mas sabe, Malu. Sério. Eu cansei. Eu vou mudar. (pausa longa) Hoje eu... (hesita) hoje eu recebi uma proposta de emprego no Canadá. MALU (se vira rápido) Como é que é? RENATA Uma revista de exploração científica. Quer minhas fotos. Lembra? Eu já mandei algumas pra lá. Agora eles querem me contratar.

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Malu apaga o cigarro no cinzeiro com raiva e se aproxima de Renata. MALU E você só me diz isso hoje? Como assim? É lógico que você disse não, né? RENATA Eu ainda não respondi. Mas eu tô pensando. Eu sempre quis trabalhar com isso. (pausa) E, na boa, será que vale a pena eu desistir? Pela gente? Pela família que eu sempre quis ter e você não? Malu fica exaltada. Pega o maço de cigarros e acende mais um. Vai até o bar e completa seu copo com mais whisky. Vira num gole só. Renata observa, silenciosa. Malu vai ao som e coloca um CD de rock. Aumenta o volume quase no máximo e começa a gritar a música. Renata fecha os olhos, com impaciência. RENATA Pára com isso, Maria Luiza. Toda vez é a mesma coisa. Malu continua a gritar, indiferente. Renata acaba de tomar seu whisky e continua na janela. Malu vai para o quarto, cantando alto a música. Renata enche mais uma vez, calmamente, seu copo. Ela vai atrás de Malu. 3.

INT. NOITE. QUARTO DE MALU E RENATA. Renata pára na porta do quarto, bebe mais um gole. Malu pega roupas dentro do armário e coloca numa bolsa de viagem. Renata respira fundo, parada na porta. Malu continua a pegar roupas no armário. Ela fecha a mala e olha para Renata. RENATA (calma) Onde você vai? MALU Eu vou embora. Quer saber? (grita) Eu vou embora! Malu pega a bolsa e se dirige para a porta do quarto. Renata tenta impedi-la, mas Malu a afasta. RENATA (com calma e ironia) Você sempre vai embora assim. Faz as mesmas gracinhas e depois volta, como se nada tivesse acontecido. Me pede desculpas e, como eu te amo, eu sempre digo que sim. Malu olha bem fundo nos olhos de Renata. MALU Não se preocupa! Dessa vez é pra valer. Malu sai do quarto. Renata continua bebendo seu whisky. A porta do apartamento bate com força na sala. Renata atira o copo na parede, quebrando-o com raiva.

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4.

EXT. NOITE. PORTA DO BAR. Malu para o carro na porta do bar. Sai de óculos escuros do carro. Olha para os lados e entra apressada no bar.

5.

INT. NOITE. BAR. Malu pára no balcão e pede uma dose de whisky. Uma fã chega perto dela e começa a puxar papo. Ela tenta ser simpática, mas demonstra impaciência olhando para os lados. Giovane está parado do outro lado e vê Malu no balcão. Ele se aproxima. GIOVANE Oi, linda! MALU Gio!! Meu gato!! (sussurrando) Me tira daqui. Giovane puxa Malu pela mão até a parte de cima do bar, onde o DJ anima a pista. Começa a dançar com ela. Insinuante, Giovane passa a mão pelo corpo de Malu. Ela está meio bêbada e não liga. Também se insinua para ele. Um casal de lésbicas atrás faz comentários estranhando os dois juntos. Giovane se aproveita da bebedeira de Malu e a beija. Malu recobra a consciência e dá um tapa no rosto de Giovane. Ele ri, sem entender. Malu vai para um canto, cambaleando. Giovane vai atrás. Ela o abraça, pedindo desculpas. E beija-o.

6.

INT. DIA. QUARTO DE GIOVANE. Malu fuma um cigarro na janela, somente com uma camiseta. Olha para trás. Giovane está deitado na cama, dormindo, coberto somente pelo lençol. Malu pega suas roupas no chão e sai do quarto, sem acordar o baixista.

7.

INT. DIA. CASA DE MALU E RENATA. Malu chega em seu apartamento com a mala na mão e procura por Renata. Olha na sala, na cozinha e no quarto, mas ela não está. Pára em frente da cama e percebe a porta do armário de Renata entreaberto. Abre a porta e vê o armário vazio. Um bilhete está pregado no espelho. Malu lê o bilhete: “EU SABIA QUE VOCÊ IA VOLTAR. MAS DESSA VEZ É DIFERENTE. PENSE MAIS EM QUEM VOCÊ AMA ANTES DE FAZER SUAS BESTEIRAS. EU PENSEI. PENSEI EM MIM MESMA E VOU CUIDAR DA MINHA VIDA. CHEGA DE FINGIR QUE ESTÁ TUDO BEM. AMO VOCÊ.”. Malu têm as mãos trêmulas. Ela amassa o papel após ler o recado e se abaixa encostada no armário. Entre as mãos, as lágrimas caem do rosto de Malu.

8.

INT. DIA. ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. A banda de Malu ensaia no estúdio. Malu está abatida, mas leva a música de forma tranqüila. Giovane olha de vez em quando pra ela, tentado puxar seu olhar. Malu tenta ignorar a presença dele. O guitarrista erra um acorde e Malu perde a paciência. Joga o microfone de lado e sai do estúdio. Os músicos fazem que não entendem.

9.

EXT. DIA. JARDIM DO ESTÚDIO. Malu toma um ar no jardim. Coloca a mão sobre a boca como se segurasse um vômito. Respira fundo. Sente enjôo. Encosta-se na parede. A empresária da banda se aproxima dela. EMPRESÁRIA

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Malu? Tudo bem aí? Malu faz que sim com a cabeça, mas continua com a mão sobre a boca. EMPRESÁRIA Você tem passado mal direto. Tem que ver isso! (pausa) Eu sei que é estranho te perguntar, mas você tá grávida? Malu tira a mão da boca, olha pra empresária e fica sem reação. Olha para os lados, olha novamente nos olhos da empresária e, com os olhos cheios d‟água, balança a cabeça afirmando que sim. EMPRESÁRIA Ai! Meu Deus. Malu vira-se de frente para o muro e coloca a mão sobre os olhos. A empresária olha para o estúdio e grita. EMPRESÁRIA Aí, galera! Por hoje chega, ok?! Ouve-se barulho de vozes dentro do estúdio. Os músicos saem. Giovane vem andando com a case na mão e olha para Malu. Ela continua de costas. Giovane pára por alguns segundos. A empresária chega e dá um tapinha nas costas de Giovane. Aponta educadamente a porta. A empresária se coloca atrás de Malu e cruza os braços. EMPRESÁRIA Malu, me explica. O que aconteceu? MALU Eu não sei! Foi um vacilo! Eu não sei onde tava com a cabeça, cara. EMPRESÁRIA (chega mais perto) Vocês estavam tentando? A Renata queria? Você nunca comentou nada comigo! MALU (virando-se com raiva) Eu nunca quis! E nem sei se quero. Ela queria. Tentou me convencer por muito tempo, ela ia engravidar, a gente ia adotar, sei lá. Mas ela queria muito. E agora? Onde ela está? O que eu faço? (senta-se) Tudo o que eu queria era ela de volta. EMPRESÁRIA Mas ela já sabe? Malu faz que não com a cabeça. EMPRESÁRIA E quando é que você vai ligar pra ela? E vai falar isso tudo que me falou?

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MALU Eu não vou contar nada. Ela nunca vai entender. EMPRESÁRIA (pega as mãos de Malu) Você não conhece a sua namorada. Malu olha para a parede, sem reação. 10. INT. NOITE. CASA DE MALU E RENATA. Malu está deitada no sofá. Ela está com seis meses e sua barriga começa a aparecer. Uma música tranqüila toca ao fundo. Malu pega o porta-retratos na mesinha ao lado com uma foto de Renata. Ela abraça o porta-retratos com ternura por alguns segundos. Malu pega o telefone celular, se levanta e digita um número de 15 dígitos. Após alguns toques, uma voz em francês anuncia a secretária eletrônica de Renata. Malu espera o bip. MALU Hei. Só queria dizer que sinto saudades de você. Todos os dias. Eu errei, amor. Muito. Mas... (passa a mão na barriga) ...eu preciso de você. Volta pro Brasil, volta pra mim. Me liga, pelo menos. Você sabe que eu te amo. (com a voz sumindo) Por favor. Malu desliga o telefone e olha para trás. Um carrinho de bebê, algumas sacolas com fraldas e uma caixa de um berço estão no meio da sala esperando para serem arrumados. Ela faz carinhos na barriga, sentindo o bebê. Fecha os olhos e sorri. 11. EXT. DIA. CALÇADÃO. Malu caminha apressada por entre as pessoas. Está com sacolas na mão, a barriga já denuncia os oito meses de gravidez. Renata vem pelo outro lado, puxando uma mala de rodinhas. De repente, ela vê Malu, que não percebe Renata. Ela vê a barriga e se assusta. Malu continua andando, sem olhar pra frente e passa por Renata. Ela chama por Malu. RENATA Maria Luiza? Malu para bruscamente, não acreditando na voz. Vira-se procurando Renata. Encontra seus olhos e abre um sorriso de felicidade e carinho. Ela se prepara pra falar algo, mas vê o olhar de Renata se desviar para sua barriga. Malu o acompanha olhando para baixo. Elas se aproximam. MALU Eu não quis te contar por telefone. Renata não consegue falar. Estende a mão e sente a barriga de Malu. MALU É uma menina. Eu queria que você escolhesse o nome. Renata balança a cabeça em reprovação. Ela dá um abraço em Malu. Fica por alguns segundos, mas Renata a afasta delicadamente. Sem olhar pra seu rosto, pega sua mala e vai embora pela rua. Malu acompanha com os olhos, sem saber o que fazer.

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12. INT. NOITE. APART-HOTEL. Renata olha para a cidade da janela do quarto. Sobre a mesa há um copo de whisky, um par de óculos de grau jogado e várias ampliações de fotos de Malu e de Renata. Renata se aproxima da mesa, bebe um pouco do whisky e coloca os óculos. Observa as fotos cuidadosamente. Pega uma foto em que ela aparece abraçando Malu. Renata suspira fundo. Pega outra foto onde Malu está sozinha. Passa delicadamente os dedos sobre a barriga de Malu na foto. Segura o choro olhando para o rosto de Malu na foto. 13. INT. DIA. QUARTO DO HOSPITAL. Malu está deitada no quarto do hospital. Sua empresária está ao seu lado, com uma câmera digital. A enfermeira traz o bebê. A empresária acompanha o bebê com a câmera. Malu aconchega sua filha em seus braços. Empresária chega mais perto. EMPRESÁRIA Ai! Que coisa mais linda essa menina. Benza Deus. (brincando com a menina) Como é que essa coisinha fofa vai chamar? Renata está parada na porta, mas só agora Malu percebe sua presença. Ela traz um presente nas mãos.

RENATA Eu pensei em Myriam. O que você acha? Malu não contém as lágrimas. Chama Renata para perto dela e se abraçam. A empresária pede delicadamente licença e sai do quarto. Renata chora. Ela sente o rostinho da filha e Malu a entrega com carinho. Renata segura desajeitada a menina. MALU Eu acho perfeito. É maravilhoso, meu amor. Renata beija Malu. RENATA Me perdoe. Fica comigo. Eu não sei viver sem você. (olhando para o bebê) E quero mais do que nunca amar você. MALU Eu quem tenho que te pedir perdão. Por tudo, sempre. Você é a mulher da minha vida. E eu preciso de você. Nossa filha. Nossa filha precisa de você. Volta pra sua casa. Elas se beijam. Renata pega o presente e entrega para Malu. Ela abre. É um móbile de pequenos duendes pendurados em luas. Renata pendura o móbile perto das duas e se senta ao lado de Malu e de Myriam. Elas se abraçam. O móbile balança suavemente na brisa de fim de tarde que entra pela janela.

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ILENE CHAIKEN: People who are gay, at one time or another, have dealt with those issues of sexuality, in a way that has dominated their lives, more than the people who never have to go through the process of coming out. JENNIFER BEALS: It infiltrates every aspect of your life. LAUREL HOLLOMAN: Sexuality in our show it's sort of two things: it can be the driving force for one character, but it might be the aspect, for another character. KATE MOENING: They have more things going on than just their sexuality, like every human being does in their life. MIA KIRSHNER: I can only speak for Jenny, but I don’t think the character's journey is about what her sexual orientation is; it's about where her life is going and who rocks her world... KATE MOENING: And that's what I like...it that it doesn't just end with the sexuality. MIA KIRSHNER: I never wanted to be a part of a series that was about gay women, because I think it marginalizes gay women. I wanted to do a show of people's relationships with one another. ERIN DANIELS: If you're a woman feeling love, regardless of loving a man or a woman, it's still love. The emotion doesn't change. ROSE TROCHE: We understand desire from within ourselves. We have it in us. ERIN DANIELS: There are a lot of issues that are talked on the show that anyone can relate to. I mean, there's a couple trying to get pregnant, that's having a hard time.

ILENE CHAIKEN: As pessoas que são homossexuais, uma hora ou outra, teve que lidar com essas questões da sexualidade, de uma forma que isso foi dominante em suas vidas, mais do que para as pessoas que nunca tiveram que passar pelo processo de se assumir. JENNIFER BEALS: Isso está infiltrado em todos os aspectos da sua vida. LAUREL HOLLOMAN: A sexualidade na nossa série é um pouco de duas coisas: pode ser a energia de uma personagem, como também pode ser o aspecto de outra. KATE MOENING: Existe coisas mais importantes do que suas orientações sexuais, como cada ser humano que entra em suas vidas. MIA KIRSHNER: Eu só posso falar pela Jenny, mas eu não acho que a jornada da personagem é sobre sua orientação sexual; é sobre pra onde sua vida está seguindo e quem balança seu mundo... KATE MOENING: E é isto que eu gosto. Ela não encontra justificativa apenas no sexo e sexualidade. MIA KIRSHNER: Eu nunca quis fazer parte de um série sobre lésbicas porque eu achava que elas marginalizavam as mulheres homossexuais. Eu queria fazer uma série sobre os relacionamentos de uma pessoa com outras. ERIN DANIELS: Se você é uma mulher que ama, não importa se está amando um homem ou uma mulher, continua sendo amor. A emoção não é diferente. ROSE TROCHE: Nós compreendemos o desejo que existe dentro de nós. Nós temos esse desejo em nós. ERIN DANIELS: Existe tanto assunto falado na série que nunca foi abordado antes. Eu quero dizer, há um casal de lésbicas tentando engravidar, e estão passando por um período difícil. (THE L WORD DEFINED, 2004)

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6. CONCLUSÃO

Após passear um pouco sobre a história da homossexualidade, principalmente da feminina, e conhecê-la melhor, a certeza que tenho é que as coisas mudam. O tempo e a luta permitem transformações nos pensamentos, na forma como lidar uns com os outros, na realidade que o ser humano vive dentro de uma sociedade, dentro de um estado, dentro de uma família. A homossexualidade hoje é, visivelmente, mais aceita do que nos séculos passados, isso é fato. Mas ainda há muito que alcançar, mudar, re-significar, construir no que diz respeito a identidades, papéis, gêneros. No que diz respeito à forma como as pessoas lidam com o sexo e com suas vertentes. Na maneira como um ser humano é taxado pela sociedade em que vive conforme suas características físicas, emocionais e sexuais. Os seres humanos são todos diferentes, isso é uma verdade incontestável. Não há ninguém no mundo igual a outra pessoa, nem mesmo se for sua irmã gêmea. Nesse mundo de diferenças, onde, como já foi dito por Tânia Navarro-Swain, o sexo é rei, a televisão se tornou através dos tempos um dos mais fortes meios de conscientização social. Ditando regras, modismos e valores morais, a TV tomou com força total o lugar do cinema no quesito influência do espectador. Por isso, quando um produto cultural tipicamente televisivo, mas com características cinematográficas como o seriado surge, não é possível deixar de lado sua importância. As séries de TV foram construindo o imaginário coletivo americano desde os anos 50 e do brasileiro desde os anos 70, com seus diversos enlatados. Hoje, mais do que nunca, a série norte-americana toma conta das rodas de conversa, dos estudos de comunicação, das salas de TV e dos sites da internet. Antes restrita aos canais fechados, agora elas são acessíveis por downloads e voltaram a ser exibidas em poucos canais abertos brasileiros. Numa forma de juntar as duas histórias paralelas, surge a primeira série sobre lésbicas do mundo. “The L Word” mostrou pela primeira vez a vida das mulheres homossexuais

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e, apesar de algumas críticas, o fez com muita fidelidade. As pessoas se viram ali retratadas e se vêem até hoje. É fundamental perceber a importância de mercado que a série teve, já que, mesmo com um tema tão difícil, ainda, de ser abordado, segue para sua quinta temporada. Coisa que muitas séries importantes não conseguiram. É um fato a ser comemorado pelo movimento LGBT e pelos movimentos lesbianos, como a Liga Brasileira de Lésbicas. Se ver na TV é uma conquista para as mulheres que, tanto por serem mulheres, quanto por serem lésbicas, foram tão e duramente discriminadas ao longo dos anos. E, como não podia deixar de ser, a visibilidade traz visibilidade. E outras pessoas perceberam que era bom, importante, essencial contar as histórias das lésbicas nos meios de comunicação. Hoje existem mais livros sendo lançados, apesar de ainda poucos sendo distribuídos para as grandes livrarias. Quadrinhos sobre lésbicas estão sendo feitos, filmes com grandes e consagradas atrizes são lançados, mais séries de TV vão surgindo. Dois exemplos de influência direta de “The L Word” são a latino-americana “ChicabuscaChica”70, exibida pela Terra TV, na qual cada episódio tem 10 minutos e só é exibido pela internet, e na americana e engraçada “Exes & Ohs”71, lançada por um dos primeiros canais a cabo voltados para o público homossexual, a rede LOGO. “Exes & Ohs” foi criado a partir do curta metragem “The Ten Rules: A Lesbian Survival Guide”, de 2002 e seu título é uma gíria americana para beijos e abraço. As duas séries têm suas características próprias, mas trazem mulheres reais, lésbicas, verossímeis e relatos de ficção e comédia, mas em tom muito verdadeiro. Nesse contexto atual de sociedade em que vivemos, não foi preciso muito para ver que era possível escrever um roteiro sobre lésbicas. Por isso “O Móbile” foi criado. Ressalto aqui a importância de se perceber ser esta apenas a proposta de uma representação da realidade homossexual, não necessariamente a ideal. Assim como a sociedade, eu, como autora, tenho meus próprios vícios que foram estabelecidos através de anos e anos de histórias mal con-

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Ver em , acesso em 26 nov. 2007. Ver em < http://www.logoonline.com/shows/dyn/exes_and_ohs/videos.jhtml>, acesso em 26 nov. 2007

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tadas sobre a homossexualidade feminina. É difícil e dolorosa a retirada desses pré-conceitos enraizados em nossa geração, mesmo com toda a informação e visibilidade que a mídia, através de produtos culturais como a série de TV, tem oferecido à comunidade LGBT. Minha pretensão torna-se experimentar uma nova abordagem da homossexualidade feminina em curtas histórias que têm o seu lado de fantasia. E com personagens das mais diversas identidades, assim como é a própria lesbianidade. Outra pretensão, que vem como conseqüência, é que se criem, com essas personagens, novos perfis identitários, assim como vem acontecendo com “The L Word”. A visibilidade lesbiana vem provocando uma nova forma de se enxergar a mulher lésbica, que deixa de ser “caminhoneira”, “sapatão”, “sandalinha”, “vampira”, “bolacha”, “fancha”, “entendida” e passa a ser, dentro de suas milhares e milhares de personalidades nômades e modificáveis, de fato mulher. Essa abordagem pode até ser vista como idealizada demais, com poucos problemas sendo enfrentados pelas personagens, com um mundo que encara com demasiada tranqüilidade a existência de relações lésbicas. Mas é essa exatamente a proposta. Apesar das histórias parecerem positivistas demais, mostrando, assim como na série, uma sociedade que não existe de fato, a idéia é criar uma realidade diegética em que as mulheres, ou os homens, tenham a liberdade de se amarem e se desejarem. Ou seja, através da ficção retratar um tipo de relação social que, espera-se, um dia se torne verdadeira. A mesma que os movimentos lésbicos e gays buscaram ao longo das décadas, a mesma relação que vem sendo retratada através da série “The L Word”. A relação social que não vê na orientação sexual uma característica determinante do ser humano perante a sociedade, a igreja e a família, que permite que isso seja apenas mais uma das características que ele apresenta. Relações que valorizam a mulher e apresentam seu papel de merecido destaque no mundo. Enfim, relações de amor, simples e puramente.

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ANEXOS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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