(título): MARCELO MIRISOLA, O MAIOR ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DO BRASIL. (foto dele) (legenda da foto) “Me sinto em plena festa do sol. E olha que sou vizinho da Pavão-Pavãozinho. ” O lobo mau da literatura contemporânea – em época de lançamento do seu décimo livro, “Animais em Extinção” pela Editora Record – fala ao nosso colunista Walber Schwartz sobre sua trajetória, e mais: libera a publicação de uma crônica aqui no CultBlog, revela qual dos seus livros deverá ser seu testamento, aponta quem é o pensador mais brilhante em atividade no país, anuncia o crepúsculo da grande mídia impressa em contraponto à explosão do jornalismo digital, e distribui flores & petardos democraticamente. Tirem as crianças da sala – pelo menos até que ele lance um livro infantil.
A Entrevista A despeito de qualquer babação de ovo e/ou frescuras afins, é preciso dizer que esse escritor paulistano de 42 anos, dono de uma prosa feroz, lírica e desbocada, autor de dez livros geniais em menos de dez anos, e para quem a crítica especializada e a grande mídia se derreteram em elogios – até um dado momento – é, antes de qualquer outra coisa, um camarada gentil e educado. Pode convidá-lo, sem medo, para sua festinha literária ou sarau universitário; ele sabe se comportar. Em Marcelo Mirisola há um equilíbrio raro entre ausência de estrelismo e segurança, típico de quem conhece bem o próprio ofício; exatamente o oposto do que se encontra nessa horda de mascarados que inundam as tevês, jornais, revistas e casas noturnas posando de “celebridades” - vide a crônica “Receita para ser um escritor fofo” ao final da matéria. Por isso, se você espera uma entrevista recheada de palavrões e trocas de farpas, esqueça. Apesar das provocações, a linguagem é objetiva e elegante; Marcelo Mirisola só morde a isca quando quer. Tampouco esperem de mim, esse circunstancial entrevistador, qualquer coisa parecida com imparcialidade. Aliás, não sou jornalista. Talvez por isso não tenha sequer me sentido na obrigação de tentar. Considero essa matéria um presente de fim de ano aos leitores do CultBlog em reconhecimento aos 12.000 acessos mensais de vocês. Espero que gostem tanto quanto eu gostei; e que aproveitem as referências para mergulhar de cabeça no que há de melhor em nossa literatura contemporânea. (Os títulos dos livros possuem hiperlink; para saber mais sobre eles é só clicar).
WALBER SCHWARTZ: Conheci você na grande mídia: um programa da Marília Gabriela em mil novecentos e me-ajuda-aí, junto com uma escritora bonitinha que eu também queria saber quem é (era?). Logo depois veio O azul do filho morto (Editora 34, 2002) e vi você ser incensado pela crítica, desfilar em jornais e revistas de grande circulação, QUASE ganhar o prêmio Jabuti (perdeu pra quem, mesmo?), para no instante seguinte se tornar uma espécie de persona non grata nos campeões de audiência e nas festinhas literárias. O rompimento se deu quando? Será que, de uma hora pra outra, todo mundo resolveu mudar de opinião – admitindo assim que foram precipitados ao elevar você ao status de “grande talento contemporâneo” – ou será que teve alguma coisa a ver com o fato de você insistir em fazer bife de vacas sagradas? (Chico & Caetano, Saramago, Fernanda Young, Rita Lee, a Flip, o mercado editorial, a própria grande mídia...) MARCELO MIRISOLA: Foi no começo dos 00. Não sei se a escritora era (ou ainda é) a Clarah Averbuck ou a Gisela Rao. Fui entrevistado duas vezes no programa da Marília Gabriela. Quanto ao fato de ser incensado pelos críticos, bem, eu tinha de desautorizá-los para provar que eles tinham razão, entende? E isso começou a acontecer quando publiquei minhas primeiras crônicas na AOL. Queimei meu filminho “cult” mas me diverti um bocado. “Eu, de minha parte, creio que pior do que deixar filhos é deixar livros. Os filhos podem esquecê-lo e renegá-lo – a despeito do seu legado, de suas misérias. Até perdoá-lo. Os livros, não. São filhos amaldiçoados (os melhores, evidentemente) e mortos-vivos para sempre”. (O azul do filho morto, p. 172)
SCHWARTZ: Essa mitificação toda, essa adoração a um gênero de arte ou a um artista que beira ao irracional, onde os “fãs” (ia dizer “pessoas”) chegam a se sentir OFENDIDOS com alguma crítica mais forte aos seus “ídolos” é produto de quê? MIRISOLA: Um jardim da infância alimenta o outro. De um lado, os fãs que precisam de ídolos, e do outro, os ídolos que precisam ser queridos e de maneira nenhuma contestados. Produto, creio, de uma vaidade boboca, mas compreensível e até necessária. Eu não condeno isso, de jeito nenhum. Ao contrário, faço questão de assimilar, e usufruir. Acredito que a insensatez e a burrice são instrumentos de trabalho tão poderosos quanto a erudição, a inteligência e as escolhas erradas. Aliás, já devo ter escrito algo sobre isso... SCHWARTZ: Essas crônicas no extinto site da AOL culminaram em um livro: O Homem da quitinete de marfim (Record, 2007); na apresentação você agradece a Kaike Nanne por ter lhe mostrado que era possível “ganhar dinheiro escrevendo” (!). Hoje você escreve em outro site, o Congresso em Foco, e é muito mais presente no mundo digital do que nas mídias convencionais. Está à vontade nessa praia? MIRISOLA: Vou morder sua isca: estou ganhando meu dinheirinho, e está muito bom desse jeito. Às vezes, porém, acho que está me
faltando um canhão mais potente (um “instrumento de guerra”) para atirar meus petardos mais longe. Quando leio os colunistas dos grandes jornais e revistas, sinto uma piedade imensa dos seus leitores. Já reparou que – salvo raras exceções – não existem escritores-cronistas? Se Carlinhos Oliveira e Tarso de Castro estivessem vivos, decerto estariam na Internet – e provavelmente seriam pulverizados como eu sou. Os jornalões e revistas de grande circulação substituíram os escritores por antropólogos, psicanalistas, donas-de-casa afetadas, mauricinhos, nerds, modernetes e gente sem virilidade de todos os feitios e arrebites. Você já leu coisa mais chata e modorrenta que a Cecília Gianetti? Essa tiazinha cultural ocupa um espaço que já foi de Marilene Felinto! Cazzo! Parece que é mesmo o crepúsculo. Enquanto o bicho está pegando na Internet (apesar da pulverização...) os jornalões – sem saber? – estão publicando o próprio cortejo fúnebre. “Quando arrancos sobem da paleta até minha espinha e meu sangue fervido entope minhas jugulares e eu finalmente falo: ‘Chega!’ A partir daí não penso em mais nada e resolvo despejar toda esta inhaca sobre os costados da doce e educada fulana em questão, tão educada e solícita e um pouco assustada comigo porque começo a babar e ela, apesar de tanta deferência e porque não é besta nem nada, recua...” (O homem da quitinete de marfim, p. 190).
SCHWARTZ: Queria falar de catástrofes. Você morou em Santa Catarina de onde foi praticamente expulso por dizer que aquele estado é o “maior fornecedor de barbies para os puteiros de luxo paulistanos” (bom, se as tais barbies ameaçassem abrir o bico, São Paulo teria que reconstruir SC sozinha pra manter a estabilidade familiar de sua, vá lá, alta sociedade). Com isso, fico na dúvida: qual é a nossa maior catástrofe, afinal? MIRISOLA: A breguice é a pior das catástrofes. Nesse caso a ajuda humanitária serve apenas para agravar o estado das coisas. “Tinha até criança de 13 anos, e o Estatuto borbulhava na minha cabeça. Qual é a diferença entre a garota que faz a vida na orla de Maceió e essas barbies anoréxicas metidas a besta aqui na Fashion Week? Aqui penso que é pior. (...) Aqui na Fashion Week as garotas são enganadas por cafetinas profissionais, as bookers, e glamourizadas por uma mídia omissa e vazia...” (O homem da quitinete de marfim, p. 54)
SCHWARTZ: Ricardo Lísias – o cara que escreveu o único posfácio que eu me lembro de ter lido sem bocejar – fez uma crítica sobre “Acaju (a gênese do ferro quente)”, novela contida em Notas da arrebentação (Editora 34, 2005) onde ele associa a sua “melancolia”, Mirisola, à do Caio Fernando de Abreu; e também a sua personagem, “Ana g.”, a Ana Cristina César – poeta contemporânea do Caio. Queria saber o que VOCÊ tem a dizer sobre Caio F., Ana Cristina, Ricardo Lísias e essa tal “melancolia”? MIRISOLA: Como eu disse há pouco, é tudo matéria de trabalho. Pode incluir a melancolia aí. No meu caso Ana C. e Caio F. Abreu foram influências e encostos dos quais – graças a Deus – consegui me livrar. Aliás, essa é a melhor parte: quando nos livramos das influência e alçamos vôo próprio. O Ricardo Lísias é autor de um livro excelente: “Dos Nervos”. E, de longe, é o pensador mais brilhante em atividade no país.
“O fruto de uma trepada escrota. Ou uma dose constrangedora de amor. Era Ana g., afinal de contas, quem comprava as tinturas. Eu deveria ter – no mínimo, pela memória de Ana g. – o direito a ejaculações precoces, coelhinhos vomitados e, sobretudo, o direito de amar e ser amado acaju, bem como eu – acaju, evidentemente – amei e pareci louco aos olhos de quem não me quis. Aí enfiei o garfo na jugular daquele babaca: - O azeite, por favor (em vez de medo, deveriam é ter pena de mim).” (Notas da Arrebentação, p. 64)
SCHWARTZ: Em Joana a contragosto (Record, 2005) – disparado o preferido do público feminino – você escreve com extrema habilidade sobre um tema absolutamente banal: um pé-na-bunda. Dez gramas a menos de talento e seria apenas mais um pastiche. Ao contrário, você nos brinda com imagens fortes, originais, ternas, chocantes e belíssimas que se pregam na memória de um jeito que chega a ser esquisito (como a do “Redentor enforcado por nuvens de magnésia bisurada”) e escarafuncha sentimentos invulgares que dificilmente seriam reconhecidos sem ajuda. Correr esse tipo de risco é imprescindível? MIRISOLA: No caso desse livro, eu tinha que ser o “penabundeado” e o escritor ao mesmo tempo. Não foi fácil. Infelizmente é um livro que – ainda – não foi devidamente reconhecido. Ele trata do grande tema. Que é o confronto entre a arte e a vida. Tenho impressão que é meu testamento. Vai ser lido daqui a duzentos, trezentos anos com o mesmo impacto que é lido hoje. “Joana é meu choro incontido, um vexame engolido de dentro pra dentro, a perda que não me larga porque tenho a mim mesmo, a página impossível de virar porque a próxima sou eu mesmo que vou escrever (...) A carne não devia encontrar a alma, a beleza não devia ser tão triste quanto a solidão, e a despedida – ainda que por quarenta anos esse tenha sido meu único desejo, a única história que eu não devia ter contado.” (Joana a contragosto, p. 186)
SCHWARTZ: Você tem sido acusado de ser “o maior escritor vivo da língua portuguesa”, de ter escrito “o mais belo parágrafo da literatura contemporânea” – o último de Joana a contragosto – e de ser um “formador de opinião”. Defenda-se. MIRISOLA: Não há defesa. Sou réu confesso. “À solidão, portanto. Que monstro é esse? A primeira providência para responder ao monstro é saber quem pergunta por ele. Se for o sujeito que há três semanas ainda acreditava (ah, que insistência...) em amor com vista para o mar, a resposta evidentemente teria sido luto, morte, dor e agonia: e o fracasso absoluto sob todos os aspectos. Agora, se a pergunta for respondida pelo sujeito que escreve nesse instante, a resposta é: tudo isso e mais um pouco de morte, fracasso, dor e agonia com uma bela vista para o mar encapelado do Leme.” (Joana a contragosto, p. 32)
SCHWARTZ: E por falar em acusações, o Furio Lonza diz na orelha do seu livro-filho mais novo – Animais em extinção (Record, 2008) – que “literatura é seqüela”, que “o que vale é a inconsciência” e que sobre ela, a literatura, “não temos o menor domínio”. Você concorda com isso? MIRISOLA: Mais ou menos. Acho que existe uma construção que não pode ser desprezada completamente em detrimento da inconsciência. De certa forma, o artista tem meio que uma obrigação de manter as famigeradas musas em rédea curta. Se ele vai conseguir ou não já é outro papo. “Ela (Vanusa) era meu Aleph-mirim e ao mesmo tempo minha Sherazade às avessas. Nada mal para quem procurava uma despedida em Las Vegas, encontrar um Borges e as mil e uma noites por acidente, comi enfaut.” (Animais em extinção, p. 137).
SCHWARTZ: Em Animais em extinção, temos: pedofilia & prostituição infantil no nordeste, trombadas frontais com o movimento hip-hop de São Paulo, lista de desafetos novos e antigos, caipiras curitibanos, blogueiros debilóides, um plagiário defenestrado, executivos da Berrini que vão dar o cu na Praça Roosevelt, enfim, alto potencial incendiário. Hoje em dia você se sente mais seguro vivendo no Rio de Janeiro, entre a Pavão-Pavãozinho e a Chapéu Mangueira, que na sua cidade natal (ou qualquer outra que já tenha estado)? MIRISOLA: Me sinto em plena festa do sol. Embarcado. Deslizando suavemente pelo macio azul do mar. E olha que sou vizinho da Pavão-Pavãozinho. “Ou as guimbas da noite passada, um livro de poesias que de qualquer jeito vai se escrever sozinho na poeira dos dias, livre dos poetas e da retórica, independente das chatices e da erudição. Esse Deus... ou ‘um troço complicado que acontece quando a gente simplifica...’ podia ser mais: podia ser Vanusa.” (Animais em extinção, p. 37).
SCHWARTZ: Já está preparando o próximo livro? MIRISOLA: Sim. Estou escrevendo um livro infantil a quatro mãos. E tenho um livro de contos praticamente finalizado. SCHWARTZ: Valeu demais, Mirisola. Entrevista deve ser a parte mais chata da coisa toda, um mal necessário. Pior ainda para quem está gripado. Obrigado, mesmo. MIRISOLA: Grande abraço, Walber. -----x----Recadinho do Schwartz ao incerto ganhador de um certo Prêmio Jabuti. Não fique triste pelo fato do Mirisola não ter mencionado seu nome, caro ganhador INDEVIDO de um prêmio Jabuti. Eu até perguntei, você viu? Mas, dessa vez, ele tomou a pergunta como retórica e não respondeu, tirando de você uma das poucas chances que tem de ser lembrado como escritor. E esse INDEVIDO aí em cima, como você bem sabe e admite, não tem um pingo de dor de cotovelo de fã; isso é facilmente comprovado pelo seguinte: qualquer pessoa com mais de 8 anos de idade só sabe quem é você quando o Mirisola cita. Vá tocar seu violão e esqueça a literatura. Derrubam árvores para imprimir livros, sabia? Você não produz nada, rapaz. Nada além de barulhos e barulhinhos. Reitero, literatura não é a sua praia. Mas a vida é assim mesmo: há bichinhos que existem, bichinhos que não existem, e bichinhos que raramente existem, não é? Você até que existe, mas pouco. Não chega a ser um unicórnio azul que só habita o universo infantil, nem um extinto pterodátilo que um dia foi grande e sumiu; você lembra mais aquelas criaturinhas simpáticas, seriamente ameaçadas de extinção por perda de habitat natural, que a gente só toma conhecimento da limítrofe existência quando passa na National Geographic. Um lêmure.
Proponho um acordo, pois: devolva imediatamente esse prêmio que você ganhou INDEVIDAMENTE a quem de direito e eu entrevisto você também – você vai precisar, já que o seu embrulho de peixe está esgarçando. Ou, se preferir, me manda um e-mail dizendo que admite que seu livrinho infantil ganhou numa categoria em que sequer deveria ter sido levado em conta e que não chega aos pés daquele que deveria ter ganho. Combinado? Um abraço, lêmure, por enquanto fica assim; e com foto.
Os Livros de Marcelo Mirisola:
1998 Fátima fez os pés para mostrar na choperia 2000 O herói devolvido 2002 O azul do filho morto 2003 Bangalô 2003 O banquete (com o cartunista Caco Galhardo) 2005 Joana a contragosto 2005 Notas da arrebentação 2007 O homem da quitinete de marfim 2008 Proibidão 2008 Animais em extinção
Animais em extinção: minha experiência como leitor Por Walber Schwartz
Nesse livro, Marcelo Mirisola segue o estilo que o consagrou: expor as mais grotescas feridas humanas sem fazer qualquer concessão ao leitor e sem perder a empunhadura lírica. Só que a pegada, confesso, dessa vez veio mais forte do que eu esperava. Por pelo menos uma vez tive o impulso de arremessar o livro pela janela e mandar um e-mail desaforado: “Mirisola, você enlouqueceu de vez?”. Felizmente resolvi confiar nele e fui em frente, afinal, havia crédito de sobra. Vencida a primeira náusea, o primeiro grande choque, percebi que como de costume, nada ali era gratuito. Mirisola, apesar do que sugerem alguns de entendimento rápido & rasteiro, jamais fez apologia da barbárie ou reforçou preconceitos. Pelo contrário. O que ele fez e faz sempre é expô-los descaradamente, livres de eufemismos, e arremessá-los com violência no ventilador, sem um pingo de misericórdia. A arte é sua forma de reação. É
certo que quem olhar vai levar na cara; e isso, convenhamos, não é uma experiência agradável. Mas é exatamente nesse ponto que o constrangido – e resiliente! – leitor percebe que o nojento, o abjeto, o repugnante não está na ficção de Mirisola, mas na realidade que embotamos como nosso celofane colorido pateticamente colado sobre a tela da TV Telefunken P&B. Nojento, abjeto, repugnante é aquilo que está disfarçado pelo sorriso maternal de Fátima Bernardes; é o que está no nosso subterrâneo, no nosso porão, no nosso armário, no velho baú chaveado. Mirisola levanta o tapete e sacode geral. E o cheiro de merda que recende é quase insuportável por se tratar, na verdade, do NOSSO cheiro vindo do OUTRO; e isso é intolerável. Os rápidos, rasteiros, covardes, omissos, politicamente corretos se apressam a apontar: “Isso é VOCÊ, não EU! Eu sou bonitinho, eu sou limpinho, eu sou cheiroso!”. Tudo bem. Convençam a mamãe com a cumplicidade do ursinho da lata de talco pom-pom; afinal, isso aqui é mesmo um grande jardim de infância... Acontece que somos muito bem treinados para ignorar a feiúra do mundo (que é a de todos nós, exceto a dos cheirosinhos supracitados) ou, no máximo, vê-la eclipsada, suavizada pela covardia coletiva que nos vende caleidoscópios como se fossem lunetas. A arte deslocou o meu ponto de observação. Missão cumprida. Favas devidamente contadas, fecho o livro e concluo que o que choca é ver escancarados – e em detalhes tenebrosos – a minha própria omissão, a minha preguiça e o meu preconceito disfarçado de bom-mocismo. O que choca é essa postura pasteurizada que por vezes assimilo por distração e contato, e por outras simplesmente me acossa e me faz refém. Escrevo, por fim, o tal e-mail. Só que agora o teor é outro: “Mirisola, (...) Vanusa é indispensável”.
Crônica Mirisola escreveu essa crônica em resposta a uma resenha sobre “Notas da Arrebentação” publicada na Folha de S. Paulo em 2005 em que era acusado, entre outras coisas, de ser “Pop”... (POP?). Não Saiu. O editor da Ilustrada alegou que ele havia “excedido o número de toques” (!) e que a resposta era de tom “pessoal” (?!). Francamente. Saldo da presepada: Mirosola perdeu a chance de se defender – com muito humor, diga-se – e o autor da resenha de dar uma tréplica; os leitores deixaram de rir um bocado e refletir sobre o assunto com mais subsídio; e os peixes da feira do dia seguinte, sem dúvida os maiores prejudicados, perderam a chance de ser embrulhados por material de melhor qualidade do que o habitual. Aqui sai.
Para ser um escritor fofo (receitinha) Por Marcelo Mirisola
1. Sexo indefinido, de preferência Pan. Isso inclui chiuhahuas, lobisomens panamenhos, videntes e, de repente, até o Ney Latorraca – qualquer coisa, menos homem com mulher. Por excentricidade, até que é legal o(a) fofo(a) correr um risco de ser bissexual, contanto que não se empolgue com o papai e mamãe – é pra ser “fofo” não é pra ser subversivo! Porque esse "horror hétero", além de "causar gente", é kitsch e, também, pode ser associado às igrejas neo-pentecostais ou ao novo Papa. Essas tribos não são fofas, cuidado. Por essas e outras, que Érika Palomino é clubber e também escreve livros, portanto é fofa e é “escritora”, e todo(a) fofo(a) devia querer ser como ela... 2. O escritor(a) fofo (a) não precisa derreter os miolos ou fiar-se naquela antiga e ultrapassada capacidade cognitiva da razão, depois que inventaram o "insight", o(a) fofo(a) tem a obrigação de ter um blog (de preferência com fundo de oncinha); esse tal de “insight” facilitou muito a vida dos manés, digo, fofos. Hoje em dia qualquer um pode ter “insights” e se dependurar em ganchos, misturar alhos com bugalhos, fazer suas interpretações místicas e dispensar uma coisa para chegar à outra, equivale a dizer: chegar na “Loca”... ou a lugar nenhum: o que é absolutamente a mesma coisa – desde que não descuide jamais daquele blaiser de oncinha que comprou num brechó da Vila Madalena. 3. O endereço do(a) fofo(a) é muito importante. Pra ser fofo tem que morar em São Paulo. Em primeiro lugar, Vila Madalena. Depois, Rua Augusta e adjacências... isso inclui centrão, Copan e Santa Cecília. Agora, se o fofo que é citado nos saraus de Higienópolis, quiser morar na periferia, vai ganhar um bônus: nesse caso, além de vender bonés e camisetas, pode fazer cara feia, e posar de ma-cho... também é “bacana” co-assinar roteiros de filmes “ER” (“ER” de eterna retomada), e ter um réptil em casa; serpentes e lagartos albinos estão na moda. Esses seres adoram samba de raiz, e ambientes lounge, tipo Ódoborogodó. Olheiras profundas e pálpebras
caídas são recomendáveis, e necessariamente o fofo deve ter muitos quilômetros de noites viradas em claro, aí é “bacana” morar nas imediações da Rua Augusta: sempre vai ter uma boate aberta até às dez horas da manhã, e um pão chapado na padaria da esquina, que é a cara do fofo ... 4. Digamos que, além de se auto-mutilar, você é enfadonhamente gay, e morou com um druída na Islândia, no fundo é tudo a mesma coisa: o que vale é a performance e o jogo de cena, se bobear ganha uma bolsa da Petrobrás, e aí é que nunca mais vai precisar fingir que é amiguinho do traficante... exija qualidade somente da droga que você consome, o resto é fornecedor, digo, contato. 5. Um dicionário uóóóó com termos usados por travestis é imprescindível. Você ainda não tem uma amiga traveca? 6. Se você, fofo(a), não conhece o Xico Sá, pare por aqui. Até eu, que sou um tiozinho que dorme às nove da noite, o conheço. O Xico bordeja acima do bem e do mal, e se você realmente é um(a) fofo(a), deve obrigatoriamente ter freqüentado o Xico Sá; seja no balcão de um bar improvável no Largo do Paissandu, seja na cama de um hotel duas estrelas na Peixoto Gomide ou, sei lá, seja nas gerais do Ulrico Mursa ... você não sabe onde fica o Estádio da Portuguesa Santista? Informe-se, e peça o telefone do Xico Sá para uma amiga sua, se ela não souber, considere-se desde já um off-fofo. 7. No mínimo você tem que ter dez tatuagens bem visíveis. Todavia essas tatuagens jamais poderão aparecer mais do que você. Seja arrogante. Ao contrário do que parece, fofura e arrogância são irmãs siamesas. Se quiser, o(a) fofo(a) pode tatuar poemas do Arnaldo Antunes no antebraço, ou tatuar listinhas de supermercado na bunda – mas é fundamental que as reproduza (e ao próprio corpo, principalmente a bunda) em público: para platéias que queiram aplacar suas conscienciazinhas pesadas em lugares culturais, tipo Itaú (12% ao mês) e afins. Sucesso garantido em Paraty. Um dia, o(a) fofo(a) vai dividir a caneca com o Jô, e o gordo vai se dirigir a ele(a) na primeira pessoa do plural, “nós escritores”. Capricha no inglês,
fofo(a), e capricha nas citações de bandinhas norueguesas, e não se esqueça de revelar autores obscuros. Se a iguana que está fazendo sexo com você ficar de fora, nem você nem ela desfrutarão da condição de gênios e de fofos, e o Jô não vai perdoá-los por essa falha. Lembre-se: falta de talento passa, mas falta de oportunismo e falta de vaidade são crimes fatais para o candidato a escritor fofo: se for o caso, leve uma cola; você pode, você é fofo, logo tem liberdade para fazer o tipo, “cheguei da balada agora, falou comigo?” Quando for citar as bandinhas norueguesas – porque você, além de escritor(a), também é vocalista de uma banda fofa – não descuide da pronúncia, que deve ser tão impecável quanto o desconhecimento no inglês, e dos idiomas que você enrola, é isso, afinal de contas, que faz de você, e da iguana que o ajuda no aluguel, seres fofos e ... iconoclastas. 8. Essa palavra é mágica! O(A) fofo(a) é iconoclasta acima de qualquer coisa. Se conseguir – acho muito difícil... – tente ser mais iconoclasta do que arrogante. Deve ter um ideograma japonês para “iconoclasta”: se ainda sobrar um lugar no seu corpo, nem que seja na testa, estampe o ideograma imediatamente. Se lhe perguntarem o que significa, responda com aquela sua cara de enfado e inteligência, que só você sabe fazer: cara de iconoclasta com sobrancelhas arqueadas. Você vai arrasar! 9. Não precisa ser ecológico, mas é “bacana” ser Pró. Pró qualquer coisa, pró-aborto, pró-maconha, pró ativo, ou pró passivo, tanto faz. Nada de ter opinião própria e ser ostensivamente a favor disso ou daquilo, você é Pró e basta – essa postura Pró vai ajudá-lo(a) a conquistar a simpatia da hostess do Vegas, que se não for um ácaro, deve ser necessariamente pró e provavelmente um réptil, e decerto irá reconhecê-lo(a) como um igual, e vai liberar sua entrada. 10. Importante demonstrar que você é blasé, e fingir que não está na fissura 24 horas por dia (tirando o traficante, ninguém vai perceber). Faça o tipo distraído, finja que é um peso estar novamente no programa do Jô; ele também é um hostess e vai saber reconhecer um igual, e uma iguana. Paradas e passeatas são coisas diferentes. Não me queira mal. Às vezes é
conveniente cometer uns trocadilhos, e umas rimas infames: o ideal seria cometer rimas e trocadilhos simultaneamente, será que você é capaz? Dessa forma, você vai conseguir circular entre os manos do Jardim Ângela, e abrir portas na USP, nunca se esqueça: proficiência e erudição andam de mãos dadas. Só treinar. 11. Onde você colocou aquele blaiser de oncinha? Não esqueça de combinálo com o coturno pink, e o cachecol inglês (para dar um ar de sobriedade)... os velhinhos da academia podem estar de olho, nunca se sabe. 12. Se você, fofo, for tátil e sensorial, bom de "cheiros" e de trago, e tiver um namorado que é garçom na Vila Madalena, melhor ainda. Arrume um apelido engraçado para esse garçom: algo que remeta a servidão e fofura: que tal, Chocotone? Também é “bacana” ter um livro infantil no currículo. Interessante publicar em revistas literárias com projetos gráficos arrojados. O fofo tem que "sujar as mãos" e caprichar nos pitis em forma de resenha (os ilustrados da Folha, e as revistas literárias adoram!), contanto que consiga disfarçá-los. É “super-bacana” que se preocupe com o layout de seus livros e, se for o caso, você fofo(a) pode amputar a falange do mindinho, e sangrar na própria capa. Isso é muito chique. 13. O principal é não escrever nada que valha a pena ser lido, nunca, jamais. Esqueça Dostoiévski. Seus contemporâneos (não me inclua nisso, por favor) e as Iguanas albinas lhe bastam. Cadê sua boina à Guevara, fofo? 14. Outra coisa. Tem que participar de workshops e oficinas literárias. Existem profissionais qualificados no ramo. Gente séria que organiza antologias e escreve de graça em jornais importantíssimos do Paraná. Para ser um(a) escritor(a) fofo(a) nos dias de hoje, tem que conhecer uns pistolões e matadores - o que não é muito difícil. Eles dão canja na Mercearia São Pedro. Você ainda não foi à Mercearia São Pedro? O melhor sanduíche de carne assada da cidade. Ainda não foi? Não? Então vá! Os mesmos fofos que dão workshops e oficinas literárias, e que se sodomizam em confrarias patrocinadas por grandes bancos, lançam livros geniais toda
semana na Mercearia São Pedro. Vai lá, fofo(a) – não esqueça de fazer cara de mau; em seguida, providencie uma mandinga para me derrubar, fura meus olhos! Mas deixa o Marquinhos atrás do balcão, e fora disso, tá bom? 15. Agora, chique mesmo, é lançar livro na Casa do Saber, junto com a mamãe. E, se além de chique, você quiser desfrutar de uma experiência mais radical, e tiver a fim de se dependurar em ganchos, e aparecer em todo canto posando de princesa da Nova Geração, procure o Chocotone – as purpurinas estarão garantidas. Um mundo fashion de prêmios literários, e festas do cabide se abrirá... mas lembre-se de que você não pode escrever nada "cerebral", e, de cerebral, tenha em “mente” apenas isso: "Um dia ainda vou sentar no sofá da Hebe". Mas não conta pra ninguém. E não vai aceitar o convite, claro. 16. Última dica. Se lhe convidarem para escrever mais uma resenha sobre meus livros, é conveniente lê-los antes, e esquecer o sofá da Hebe por meia horinha. Faça esse esforço. Caso contrário, posso dedicar outro chamegoresposta a você, fofo(a). 17. O novo Papa não é pop, nem eu. -----x-----Publicado em: 22/04/2008 no Congresso em foco.
FIM
(Sérgio & Lilian, favor alterar minha foto e trocar a minha apresentação para: “Schwartz lê e escreve; necessariamente nessa ordem.”) Abraços!