Alberto Guzik, é dramaturgo, escritor, crítico de teatro e ator – provavelmente esqueci alguma coisa – tem 65 anos de idade e 60 de teatro. Desde 2005 integrado à Companhia de Teatro Os Satyros (na Praça Roosevelt, centro de São Paulo). No momento volta à sua paixão primeira, o palco, como ator; além de participar da coordenação de uma jornada anual de 4 dias com 24 horas ininterruptas de teatro (é isso mesmo, peças às 3 da tarde ou às 6 da manhã, sem parar), vai estrear um monólogo em dez dias e confessa: “Acho que nunca mais faço um monólogo na minha vida”.
Uma das coisas que mais me chamam a atenção na carreira de Alberto Guzik é a total ausência de comodismo. Seu espírito dinâmico e capacidade de auto-reinvenção, sempre o mantiveram com os pés no contemporâneo, no agora, renovando, ousando, correndo riscos; uma disposição impressionante para chutar as bordas da zona de conforto, uma inquietação de garoto no melhor estilo “pedra que rola não cria limo”. A primeira pergunta que fiz a ele foi:
“O que você escreveria de essencial em uma suposta ‘carta ao jovem dramaturgo’?”
A resposta? Sinto muito, jovem dramaturgo, tentei facilitar sua vida, mas Guzik, com muito bom humor, me devolveu uma pergunta:
“Você quer um resumo de 60 anos de carreira?!”.
É, eu queria sim. E espaço a gente daria, com prazer. Mas de fato isso é assunto para mais um livro (já tem 5), ou para
uma tese de doutorado (títulos não lhe faltam), nada que possa ser feito entre um ensaio e outro, convenhamos. É preciso tempo, concentração e esforço; reconheci e fingi que aceitei. Mas, devagarzinho, mineiramente como estou aprendendo a ser, consegui pinçar algumas mensagens valiosas, acredito que sim. Leiam as linhas e as entrelinhas dessa matéria, jovens dramaturgos & amantes do teatro em geral, trata-se aqui de uma sumidade no assunto; às vezes irônico, às vezes ácido, constantemente simpático, o fino do bom humor – aliás, nos sessenta e cinco minutos de conversa que tivemos (!), e apesar da seriedade com que ele trata o tema da sua vida, não foram poucas as risadas. Guzik às vezes é cético também, mas sempre com uma direção a apontar; não é do tipo que se deixa paralisar pelo caos, ao contrário, faz de uma aparente desesperança na humanidade o combustível para continuar produzindo, como quem dissesse: perdido por perdido, faço o melhor que puder.
Com vocês, o grande contador de histórias, uma das figuras mais respeitadas do teatro nacional, A FERA: Alberto Guzik.
(Primeira Parte)
WALBER SCHWARTZ: Do alto desse mirante privilegiado que você conquistou, pergunto: que teatro brasileiro você vê hoje? Em que grau evoluímos ou nos viciamos? Falo de entraves e conquistas.
ALBERTO GUZIK: Olha, Walber, quantos anos você tem?
SCHWARTZ: 40.
GUZIK: Ah, então você pegou uma excelente fase do teatro brasileiro. Evoluímos, sim, e com qualidade. Veja, há 30 anos tínhamos não mais que 100 espetáculos acontecendo em São Paulo simultaneamente, hoje esse número, no mínimo, triplicou. Acho que até mais se considerarmos todos os eventos com características cênicas; lembrando que as artes cênicas são: o circo, a ópera, a dança e o teatro. Há quem diga que a música tem componentes cênicos, eu entendo, mas a interpretação ou encenação que um músico faça em seu show – e sei que tem muita gente usando recursos cênicos na música – serve para enriquecer, sem dúvida, mas não transforma um show musical em arte cênica, necessariamente. Diferentemente da ópera, onde a representação é essencial. Portanto, excluindo os eventos predominantemente musicais, não cênicos, digo que evoluímos muito, sim, com certeza.
SCHWARTZ: Até porque não há, necessariamente, uma queda da qualidade de uma apresentação musical quando essa é gravada, por vezes ocorre até o contrário, já com o teatro...
GUZIK: Ah! Teatro gravado é uma porcaria. SCHWARTZ: Não tem jeito, né?
GUZIK: Olha, Walber, vale como registro, como documento, mas isso é outra coisa. Na Europa é costume gravar espetáculos e eu acho ótimo que seja assim, porque pela característica efêmera do teatro, essa é a única forma de você ter acesso a grandes montagens históricas; é material de estudo. Mas não é
teatro. O espetáculo é um grande acordo entre o dramaturgo, o diretor, os atores e a platéia. Ele é instantâneo, cada espetáculo acontece uma única vez, de forma definitiva, e durante uma temporada longa, por exemplo, há grandes variações entre uma apresentação e outra. SCHWARTZ: Então, apesar de toda a evolução das mídias, TV digital, DVD, internet banda larga... nem mesmo transmissão online daria jeito?
GUZIK: Não. Teatro só ao vivo.
SCHWARTZ: Bom, aproveito para entrar na segunda parte da pergunta. Conquistas tivemos, sem dúvida. E os entraves para uma expansão maior, quais são? Embora tenha ficado claro que a platéia ao vivo não seja um entrave, propriamente dito, e sim uma condição para a existência do teatro, não há como negar que o acesso do público ao espetáculo é um elemento limitador, a maior parte do que se produz fica nos grandes centros, não viaja, e nem sempre os amantes do teatro podem se deslocar, ou residir, nesses lugares.
GUZIK: É verdade. Nesse caso o maior entrave continua sendo o de sempre: falta de uma política pública séria e consistente para o teatro. Recentemente conseguimos viajar com “Vestido de Noiva” (Nelson Rodrigues) por 5 cidades do interior de São Paulo, um projeto do governo do estado, mas aí entra outro problema: a falta de infra-estrutura da maioria das cidades do interior. Tivemos que nos apresentar em auditórios e até numa boate adaptada.
SCHWARTZ: É fato. Tivemos aqui em Uberlândia, duas vezes, aquele monólogo fantástico do Gogol, Diário de um Louco, com o...
GUZIK:Diogo Vilela.
SCHWARTZ: Isso. Da primeira vez não tinha ar condicionado. Imagina, ele com aquelas roupas de inverno pesadas, típicas da Rússia, num ambiente fechado, com um ventilador barulhento ao fundo que quase o fazia ter que gritar. Ele não teve dúvidas: mandou desligar o ventilador e transpirou a peça toda. No final, fez um apelo às autoridades locais para providenciar um ar condicionado para o teatro. Foi atendido e convidado para a inauguração. Ou seja, a classe artística tem que fazer pressão.
GUZIK: Sem uma política pública séria, estruturada, o problema vai continuar por muito tempo. Quase ninguém consegue viajar com uma companhia de teatro, não há recursos, só quando entra um grande patrocínio, e isso é para poucos. Olha, o Paulo Autran viajou com “Liberdade, liberdade” (uns 8 atores), Édipo Rei (uns 12 atores), mas produziu do próprio bolso.
SCHWARTZ: Como é que é?
GUZIK: Isso mesmo. Ele tinha uma idéia, uma peça, ia ao gerente do banco dele e pedia um empréstimo.
SCHWARTZ: Pessoal?
GUZIK:Sim. Bancava a produção, negociava com a bilheteria e pedia apoio de companhias aéreas, hotéis etc.
SCHWARTZ: Inacreditável. E o que mais em termos de entraves?
GUZIK: Ah, tem algumas coisas que eu não entendo. Outro dia comprei um pocket book daqueles da (editora) LP&M : “Literatura Brasileira: Modo de Usar” do Luiz Augusto Fischer. Tem lá algumas páginas onde ele faz questão de expor a visão que tem sobre o teatro brasileiro: absolutamente indigente; fala de alguns dramaturgos e praticamente desqualifica o nosso teatro. Pior, não menciona Jorge Andrade. Daí me pergunto: como é que alguém pode falar (bem ou mal) de teatro brasileiro sem falar de Jorge Andrade, gente?! Muito estranho. Absurdo.
SCHWARTZ: Ah, a crítica...
GUZIK: Teve uma crítica famosa aqui de São Paulo que quando soube da instalação d´Os Satyros na Praça Roosevelt, um lugar então povoado pela prostituição e pelo varejo do tráfico de drogas, disse: ““Vocês estão loucos?! Vocês estão abrindo um teatro num lugar onde eu não ponho os pés!”
SCHWARTZ: Isso foi em...
GUZIK: 2000.
SCHWARTZ: Não é exagero dizer que Os Satyros – e depois os Paralapatões – salvaram a praça.
GUZIK: É verdade. O tráfico praticamente desapareceu dali, assim como a prostituição, pois são atividades que não convivem bem com a atividade social mais intensa, que foi naturalmente gerada no local a partir dos teatros e todos os bares e lojas que abriram ao redor. Há até o caso interessante de um pequeno traficante que virou nosso guardador de carros, cooptado pelo Ivam Cabral, um dos fundadores.
SCHWARTZ: Bom exemplo para quem ainda não entendeu o papel social da cultura.
GUZIK: E em breve o Teatro de Cultura Artística, referencia para a sociedade paulistana que fica a um quarteirão d´Os Satyros, deve voltar a funcionar. Mas acredite, ainda há morador da vizinhança que reclame; preferiam o tráfico e a prostituição que, uma vez trancados dentro de casa, não viam nem ouviam. SCHWARTZ: Impressionante como esses vizinhos lembram a personagem do monólogo que você está ensaiando. Vamos falar um pouco dele? GUZIK: Vamos. Mas, olha, acho que nunca mais faço um monólogo na minha vida...
(Segunda Parte)
SCHWARTZ: E por quê? Muito solitário?
GUZIK: Solitário, sim. E, na verdade, nunca quis fazer monólogos. Não sinto essa necessidade de ter as atenções totalmente voltadas pra mim. Gosto de dividir o palco. Sinto falta do olho-no-olho, da troca, da cumplicidade entre os atores, gosto muito disso; sem falar que ajuda um bocado. Nunca pensei em fazer um monólogo pra brilhar. Monólogo é feito punheta.
SCHWARTZ: Você trabalhou sozinho?
GUZIK: Chamei o Jô Kowaliki para me dirigir...
SCHWARTZ: Hum... tipo, rede de segurança?
GUZIK: Exatamente! Precisava de companhia! Mas, na verdade, eu sei que a responsabilidade é toda minha.
SCHWARTZ: Então, direção em teatro...
GUZIK: Ajuda, é um apoio, mas não determina a qualidade do espetáculo. Houve até uma onda de dramaturgos dirigindo suas próprias peças. O Naum Alves de Sousa, o (Fernando) Bonassi, até o (Samir)Yasbeck decidiram fazer isso. Mas, na minha opinião, o resultado é indiferente. Pode
ser até que com um diretor que não tenha tanto apego ao texto a coisa funcione melhor. Eu acho que não adianta muito. O teatro é o reino do ator.
SCHWARTZ: Mais alguém participa do espetáculo?
GUZIK: Tem o Chico Ribas que faz o diretor de cena. SCHWARTZ: E o texto... GUZIK: O texto é o Monólogo da Velha Apresentadora, escrito por Marcelo Mirisola. Conhece?
SCHWARTZ: Conheço. É fogo alto. Você fez uma adaptação?
GUZIK: Não, nenhuma. O Mirisola é que acrescentou algumas coisas, mas o texto foi concebido já para teatro, está pronto. Mesmo assim me deu muito trabalho. Mirisola é um escritor muito intenso, provocativo, visceral... o texto dele tem uma quantidade enorme de elementos. Tem o grau absurdo de deturpação da realidade da apresentadora reacionária, grandes ironias, estou absolutamente encantado. É uma grande comédia, sem dúvida!, mas ao mesmo tempo é apavorante. Estou muito feliz apesar da pedreira. A intensidade, a cor, está tudo ótimo, mas é como eu disse, acho que nunca mais faço isso! (risos)
SCHWARTZ: É forte, né?
GUZIK: Muito. Chego a temer alguma reação da comunidade negra.
SCHWARTZ: Será? Mas está claro que é uma crítica e não apologia racista, não? Como nos livros...
GUZIK: É, espero.
SCHWARTZ: E cenário, figurino...
GUZIK: Ah, tudo muito simples. Como fiz a Aurora em A Vida na Praça Roosevelt (espetáculo da Cia Os Satyros) montado – com peruca, figurino, seios postiços, maquiagem pesada... (foto) – não quis repetir isso agora para não ficar “mais do mesmo”, sabe? Então eu entro sem caracterização, converso um pouco com o público antes de começar, coloco uma peruca, passo um batom e isso marca a entrada da personagem. Logo eu que sempre abominei a idéia de ator falar com o público antes do espetáculo... acabei fazendo. (risos) Mas o método de aprendizagem do teatro é esse mesmo: tentativa e erro.
SCHWARTZ: E como se deu esse encontro com o autor? Como o texto chegou a você?
GUZIK: Ah, Mirisola é Praça Roosevelt, né? Ele morou lá bastante tempo. Nos encontramos no La Barca (bar e café anexo ao Satyros) no começo de 2008. Já o conhecia há algum tempo, mas não havia uma grande proximidade entre nós. Mirisola não é de muita badalação, de ficar em mesa de bar até altas horas, etc... é muito na dele, até tímido, de forma que eu não sabia sequer o que ele achava
de mim como ator; apenas nos encontrávamos eventualmente por lá. Daí a gente começou a conversar e ele me convidou para fazer uma leitura desse texto no lançamento do *livro (nota do Schwartz: o Proibidão, Selo Demônio Negro, da editora Amauta – esgotadíssimo, nem o autor tem) e acabou não dando certo, houve uns desencontros e eu fiquei com esse texto. Acabei fazendo a leitura nas Satyrianas, no projeto que batizei de Drama Mix, uma jornada de 78 horas ininterruptas de apresentações teatrais que acontece anualmente no Satyros em setembro, outubro... era pra ser apenas isso, uma leitura, mas o sucesso foi tão grande – lotava de gente pra ouvir em todas as sessões – e Mirisola gostou tanto da forma como eu li, que resolvemos levar para o palco. E aí está: estréia no dia 11 de fevereiro , próxima quarta-feira às 23h (detalhes em breve no site de Os Satyros).
SCHWARTZ: Você sempre esteve presente em grandes veículos de comunicação: O Estado de S. Paulo, Zero Hora, Vogue, Isto é, Jornal da Tarde, etc... hoje você faz crítica teatral na Internet e mantém o blog Os Dias e as Horas(além de ser colaborador da Bravo!). Como você encara a expansão, embora pulverizada, da informação online?
GUZIK: A grande mídia está em crise.
SCHWARTZ: Ainda bem? (risos)
GUZIK: É, ainda bem... (risos)
SCHWARTZ: E a sua produção literária? Além de Risco de Vida (Editora Globo,1995), indicado para o prêmio Jabuti,
você escreveu o ensaio TBC: Crônica de um Sonho(Editora Perspectiva 1986), Paulo Autran/Um Homem no Palco (Editora Boitempo, 1998), vencedor do prêmio Jabuti de livro-reportagem, O que é Ser Rio, e Correr? (Editora Iluminuras, 2002), seu primeiro de contos e Um palco Visceral (Imprensa Oficial, 2006). Sei que você tem um romance pronto: Um palco iluminado. Sai quando e por qual editora?
GUZIK: Não sei se sai. Não sei nem se gosto dele. Gosto e não gosto, sabe?
SCHWARTZ: Ô, se sei...
GUZIK: Acho que gostei de tê-lo escrito e gosto dele pra mim. Não sei se quero publicá-lo. Ainda não decidi isso. Mas tenho a biografia de Naum Alves de Sousa (Imprensa Oficial, no prelo), O Teatro (Imprensa Oficial, no prelo) e o romance A Estátua de Sal e Sodoma (ainda sem editora) tudo para esse ano, espero.
SCHWARTZ: Alberto, já tem mais de uma hora que estou te alugando. Ficaria duas, três, sem esforço, mas sei que você tem ensaio daqui a pouco. Muitíssimo obrigado em nome do CultBlog e seus leitores, foi um grande prazer pra mim, obrigado de novo e sucesso sempre. Grande abraço.
GUZIK: Querido, o papo foi ótimo. Se você puder descer aí do seu (sic) suldeminas pra subir aqui até o planalto paulistano, vou adorar ter você na platéia da Velha! Sintase tentado e, se puder, venha!
Vá me informando de tudo sobre (sic!) suldeminas. Quem sabe, de repente, a gente não leva a peça praí, com Mirisola e tudo?! Abração!
Schwartz em off: ok, seria ótimo, mas é Triângulo Mineiro, Alberto, Triângulo Mineiro... se você for pro suldeminas vai errar uns 500 km! (risos).
Do blog do Alberto Guzik:
Entrevista
ficou legal a entrevista que eu dei pro cultblog pra falar um pouco de tudo e também da estréia da "velha apresentadora", no dia 11/02, no satyros 1. a rede tem isso de legal. o walber schwartz, que escreve prum site lá no sul de minas, uberlândia, uberaba, aquela região, me conhece por ser fã do mirisola e da praça roosevelt. daí soube por um texto do mirisola da estréia da "velha" e descola meu contato via uma amiga comum, maria clara spinelli, emergente atriz. então me pede uma entrevista. manda as perguntas por mail. respondo by phone, uma longa conversa, gostosa, inteligente. e hoje recebo do walber mail dizendo que o texto tá no ar. não só tá no ar como eu tou na home do site. acessem: http://www.cultblog.com.br . falei tanto que o walber foi obrigado a dividir a entrevista em duas partes. a primeira ficou ficou porreta, como diria meu amigo wellington, do recife. falo muito da roosevelt, dos satyros, de teatro. entrem lá e vejam.
(Schwartz em off: Alberto, é Uberlândia, Triângulo Mineiro, pista dupla da Marginal à João Naves de Ávila, ok? Abraços, querido).