Hojemacau -- 30-10-2009
Director: Carlos Morais José
O caso Pedro Chiang EDIÇÕES......
--- 30-10-2009 --O caso Pedro Chiang Decisões limitativas do futuro (3) Gabriel Lafond (de Lurcy) Bullying Encontros com a História
Jorge Godinho * --
Pedro Chiang, um empresário procurado pela justiça penal de Macau e, a pedido desta, pela Interpol, alegadamente envolvido numa das ramificações de um dos casos do exSecretário Ao Man Long, ter-se-á apresentado às autoridades portuguesas em Lisboa. Segundo a Interpol, os factos em causa serão “crimes involving the use of weapons/explosives, fraud, money laundering”. O caso tem contornos algo inéditos e convoca toda a complexa problemática da cooperação judiciária internacional em matéria penal. Numa abordagem jurídica preliminar, a principal questão que se coloca reside em saber se será possível à RAEM obter a «extradição» ou «entrega» da pessoa em causa para Macau, para julgamento em processo penal perante os tribunais da Região. Recorde-se que a terminologia “extradição” é geralmente evitada em Macau, sendo preferida a expressão “entrega de infractores em fuga”, visto que a RAEM não é um Estado soberano. A questão da entrega faz sentido, em nome do princípio da territorialidade: em princípio, os crimes devem ser julgados no sistema onde foram cometidos visto que é aí que se fazem sentir as necessidades de prevenção geral e especial, e dado que é aí que se encontram a prova e as testemunhas. Porém, dada a enorme mobilidade das pessoas, surge a perene questão de saber porque razão muitos Estados não admitem a extradição dos seus nacionais. O instituto da extradição tem milhares de anos: um tratado de paz entre um faraó do Egipto e um príncipe hitita de 1280 AC foi o primeiro a regulá-la. A regra da não extradição em razão da nacionalidade tem igualmente uma longa história, e remonta pelo menos à Grécia antiga e a Roma. Os fundamentos desta regra são vários. Por isto, a não extradição de nacionais continua a ser debatida, tendo na sua base quer opções de política criminal quer noções talvez antiquadas de soberania e da relação entre os cidadãos e o Estado, bem como, evidentemente, uma certa prudência senão mesmo desconfiança de princípio sobre o tratamento jurídico (substantivo, processual e de execução de penas) aplicável em Estados estrangeiros. Há aqui um emaranhado de preocupações: algumas questionáveis, outras sem dúvida legítimas, havendo hoje acordo no sentido de que os direitos fundamentais desempenham um papel no âmbito do instituto da extradição. É por outro lado indiscutível que a recusa da extradição pode gerar efeitos indesejáveis. Desde logo, a impunidade (se o facto não for de todo punível no Estado da nacionalidade); ou, no mínimo, potenciais benefícios, dadas as diferenças legislativas que possam existir e a complexidade prática que acarreta a organização de um processo penal no estrangeiro, com barreiras de todo o tipo.
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Trata-se, em suma, de um domínio jurídico onde não há soluções fáceis ou respostas unívocas. Um estudo de direito comparado revela diversas posições: há Estados que aceitam a extradição de nacionais ao passo que outros a recusam total ou parcialmente. A soberania estadual é, também aqui, o ponto de referência: ao nível do direito internacional geral não existe uma obrigação jurídica de prestar assistência a outros Estados. Tal obrigação, para existir, deverá resultar de tratados multilaterais, bilaterais, ou de outras fontes eventualmente aplicáveis (como Resoluções do Conselho de Segurança da ONU), sendo ainda possível prestar auxílio mesmo na ausência de qualquer instrumento, normalmente sob condição de reciprocidade. No caso presente, não existe um acordo bilateral que regule a cooperação penal entre Portugal e Macau. O tratado de extradição entre Portugal e a China de 2007 (ratificado em 2009) não se aplica a Macau visto que se trata de matéria contida no âmbito da autonomia da RAEM e não está publicado em Macau. Existe um acordo de entrega de infractores em fuga separado entre Portugal e Hong Kong e está prevista, desde 2001, a negociação de um acordo semelhante entre Portugal e Macau (por disposição inserida no acordo de cooperação jurídica e judiciária entre Macau e Portugal de 2001), que ainda não foi concluído. Ainda assim, terá interesse mencionar que o tratado bilateral entre Portugal e a China é peremptório: «A extradição será recusada se (…) a pessoa reclamada for um nacional da Parte requerida no momento em que o pedido de extradição é recebido» (art. 3). Visto que Pedro Chiang terá a nacionalidade portuguesa, importa chamar a atenção para o que dispõe a Constituição da República Portuguesa, no seu art. 33.°: “3. A extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo”. Esta redacção, que resulta da quarta revisão constitucional, não configura uma proibição absoluta de toda e qualquer extradição de nacionais, mas impõe uma série de condicionalismos, repetidos na lei sobre cooperação judiciária internacional em matéria penal, a Lei n.° 144/99, de 31 de Agosto. Tais condicionalismos incluem desde logo uma limitação material: só no âmbito de factos qualificáveis como terrorismo ou “criminalidade internacional organizada” é que a extradição ou entrega será possível. A julgar pela nota de imprensa do CCAC de 14 de Abril de 2008, estará excluída qualquer questão de terrorismo, carecendo de apoio factual a alusão a explosivos constante da página da Interpol, ao que parece. Restará apurar a questão do crime organizado internacional. Se o requisito da criminalidade organizada estivesse preenchido (e tal parece difícil: ao que se sabe, nenhum dos casos conexos ao processo Ao Man Long envolve criminalidade organizada), importaria de seguida indagar os dois outros que a Constituição portuguesa formula. Em primeiro lugar, surgiria a questão de saber se há reciprocidade, garantida por tratado; vimos já que não há acordo bilateral, mas esta matéria teria ainda de ser relacionada com as convenções da ONU contra a corrupção e sobre crime organizado (em vigor em Portugal e na RAEM), e com o citado acordo de cooperação jurídica e judiciária entre a RAEM e Portugal de 2001. Por fim, dever-se-ia decidir se Macau garante um processo justo e equitativo, nomeadamente face às exigências da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para cujo conhecimento é necessário ter em conta a vasta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Este ponto configuraria como que um julgamento do sistema penal de Macau, matéria da máxima sensibilidade. Porém, todo este percurso parece inviável. Em especial, a China, tal como Portugal, igualmente rejeita a extradição de nacionais. Neste ponto, os dois Estados estão de acordo. Se a extradição não puder ter lugar, que fazer? Ao abrigo do princípio aut dedere aut judicare (o Estado requerido deve extraditar ou julgar), que visa evitar espaços de impunidade (na terminologia de influência anglófona: “santuários” ou “safe havens”) o julgamento terá de ter lugar em Portugal, para o que Portugal deverá solicitar a Macau os elementos necessários e a RAEM terá de adoptar as providências adequadas. No tratado bilateral de extradição entre Portugal e a China, os passos a dar são regulados nos seguintes termos: «a Parte requerida, a pedido da Parte requerente, submeterá o caso à autoridade competente respectiva para efeitos de instauração de processo criminal de acordo com o seu direito interno. Para este efeito, a Parte requerente fornecerá à Parte requerida documentos e meios de prova relativos ao caso”. É necessário ter ainda em conta a legislação de Macau sobre cooperação judiciária internacional http://www.hojemacau.com/news.phtml?id=36943&today=30-10-2009&type=espuma (2 of 3) [15/11/2009 12:56:27]
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(a Lei n.° 6/2006, de 24 de Julho, que regula a matéria nos artigos 71.° e seguintes). A competência para desencadear o processo cabe ao Ministério Público. O pedido de entrega é de seguida transmitido ao Chefe do Executivo para decisão. Porém, nos termos do art. 94.° da Lei Básica e da Lei n.º 3/2002, de 4 de Março (que estabelece o procedimento relativo à notificação de pedido no âmbito da cooperação judiciária), quando a RAEM pretenda apresentar pedidos de cooperação judiciária internacional, incluindo de entrega de infractores, deve primeiro, através do Chefe do Executivo, notificar o Governo Popular Central, que decidirá, em termos vinculativos para a RAEM, se o pedido deve ou não ter sequência; se não houver resposta no prazo de 15 dias, a RAEM poderá dar andamento ao pedido. Este mecanismo resulta do facto de que está em causa o relacionamento entre Estados. O pedido pode ser rejeitado com fundamentos ligados à defesa nacional, relações externas, soberania, segurança ou ordem pública do Estado, matérias que não cremos que tenham cabimento neste caso, pelo que nada obstará à apresentação do pedido a Portugal. O “bottom line” é que quer a China quer Portugal se contam entre os Estados que resistem à extradição de nacionais, pelo que tudo aponta no sentido de o julgamento dever ter lugar em Portugal. Este resultado deve ser encarado como perfeitamente normal e expectável, atentas as posições convergentes dos dois Estados sobre a questão de fundo. O único aspecto curioso em toda esta temática é que só agora tenha surgido um caso concreto, atendendo ao elevado número de portugueses residentes em Macau; outros se poderão seguir. *Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Macau (
[email protected])
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