Flc0401 - Trabalho Final - Minha Gente

  • June 2020
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  • Words: 2,053
  • Pages: 6
Janaína Castilho Marcoantonio – no USP 3096577 Literatura Brasileira VI – Prof. Luiz Roncari

Luta, violência e morte em Guimarães Rosa Análise da novela “Minha Gente” (Sagarana) Antonio Candido, em Literatura e Sociedade, coloca que, ao tentarmos compreender uma obra literária e situá-la em seu contexto social, não se trata de verificar que elementos externos são incorporados à obra, mas de que forma esses elementos desempenham um papel na constituição da estrutura da mesma: “Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (...), ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte”. Desse modo, ao analisar a novela “Minha gente”, de Guimarães Rosa, não procurarei apenas identificar nela elementos sociais, mas entender de que forma o autor se apropriou desses elementos para estruturar sua narrativa. A novela gira em torno de dois núcleos narrativos: a vida política de tio Emílio e o amor do Primo por Maria Irma. Ambos os núcleos são marcados pela ausência de civilidade. A civilidade é um pacto entre indivíduos que aceitam submeter-se a certas normas de conduta a fim de garantir o bem comum. A ausência de leis para mediar as disputas entre os homens resulta em sofrimento, violência e morte. *** Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda se apropria do conceito de “homem cordial” de Ribeiro Couto, e coloca que essa nossa hospitalidade, generosidade e facilidade no trato camuflam uma dificuldade do brasileiro em submeter-se a ritos sociais e em separar o público e o privado. O autor frisa que o Estado não é uma ampliação do círculo familiar, mas antes uma oposição a ele: o Estado deveria representar um triunfo do geral sobre o particular.

O que motivou Tio Emílio a ingressar na política não foi o desejo de zelar pelo bem comum, mas um interesse privado. A política se mostra a ele como um novo negócio, tal qual a criação de gado. É um jogo de poder. Assim define o Primo o interesse de Tio Emílio pela política: “Santana costuma dizer: - Raspe-se um pouco qualquer mineiro: por baixo, encontrar-se-á o político... Para mim, não é bem isso. Tanto mais que ninguém raspou Tio Emílio. Mas, acontece que ele sempre gostou de caçar e de pescar. E, de tanto ver a paca apontar a espumarada do poço, bigoduda e ensaboada como um chinês em cadeira de barbeiro...E de se emocionar com a ascensão esplêndida da perdiz, levantada pelo perdigueiro, indo ar acima, quase numa reta, estridulante e volumosa, para se encastelar...E de descair o anzol iscado, e ficar caladinho, esperando o arranco irado da traíra ou os puxões pesados do bagre...Bem, afinal, pode ser que seja Santana quem tenha razão.”

As relações políticas se estabelecem por meio de trocas de favores. É a chamada “Política dos Governadores”, sustentada no coronelismo, em que o presidente se compromete a apoiar e dar subsídios aos governos estaduais, somente dando posse a membros das oligarquias aliadas, e estas ajudam a eleger, por meio da compra de votos, trocas de favores e violência, somente deputados e senadores da situação. Em Tio Emílio essa política se manifesta pela forma utilitária com que ele trata as pessoas. Quando Bento Porfírio é assassinado, o Primo pede a Tio Emílio que intervenha e mande prender seu assassino. Ao contrário, Tio Emílio manda um capataz lhe oferecer cobertura: “Já perdi um voto, e se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco...”. O Primo também é utilizado pelo Tio Emílio como um instrumento de sua política, sendo enviado à fazenda do rival político, Juca Soares, para especular. A figura do capataz mostra uma apropriação da violência por particulares; a manutenção da ordem, que deveria estar em poder do Estado, está nas mãos dos coronéis. Os limites entre o público e o privado são mal definidos. Esta política também é sustentada no estabelecimento de relações artificiais de parentesco, como quando Tio Emílio resolve convidar Don’Ana e o marido, da fazenda vizinha, para serem padrinhos das imagens que ele havia comprado para a capelinha.

Assim, passariam a ser compadres, e “Don’Ana do Janjão é uma mulher-homem, que manda e desmanda, amansa cavalos, fuma cachimbo, anda armada de garrucha, e chefia eleitorado bem copioso, no município no 3”. *** Já o segundo núcleo, o amor do Primo por Maria Irma, sua prima, mais uma vez se configura como uma negação à civilidade e à submissão a certas leis sociais, ao evidenciar um iminente incesto. Diante da dificuldade em lidar com esse sentimento, o Primo desce ao mundo selvagem, ao mundo animal, em que prevalecem os instintos. Essa metáfora sustenta a estrutura narrativa da novela, e é dotada de grande beleza e coerência interna. No entanto, não é dada prontamente ao leitor. Essa leitura é sugerida, por exemplo, quando o Primo apressa Santana a seguir viagem: “Vamos! Partamos! Já Circe, a venerável, me advertiu”, exclama. Circe é, para os gregos, filha do Sol e da Lua, a deusa do amor aviltado. Tinha o dom da feitiçaria e transformava os homens em animais. Vivia num castelo encantado rodeado de lobos e leões (seres humanos enfeitiçados). Foi Circe quem transformou os companheiros de Ulisses em porcos. “Minha gente” anuncia-se já em seu primeiro parágrafo como uma história de formação. O Primo, durante a viagem à fazenda de seu Tio Emílio, irá traçar um caminho de aprendizado. Ele conta que já havia aprendido muitas coisas, “mas muitas outras mais eu ainda tinha que aprender”. Ao descer da estação de trem, encontra Santana, que irá acompanhá-lo durante parte do percurso. O autor caracteriza o Primo por meio da oposição a Santana: este, inspetor escolar, culto, amante de xadrez e cujo traço físico mais marcante é a presença de “duas bossas frontais”. É um sujeito intelectual, voltado ao mundo das idéias e fechado ao mundo sensível, exterior. Tais características lhe conferem segurança para freqüentar diferentes círculos sociais, pois não se deixa afetar por hostilidades. O Primo é o seu oposto: contemplativo, voltado ao mundo dos sentidos, atento às cores, formas, cheiros, movimentos. Detém-se na realidade superficial das coisas, o que não lhe permite um entendimento mais profundo do mundo.

O caminho de aprendizado a ser traçado pelo primo é simbolizado como uma trajetória das trevas à luz, sendo entretanto necessário descer à mais profunda treva para somente então iniciar seu caminho de iluminação: “Em vôo torto, abrindo o sol e jogando sol para os lados, passou um gavião-pinhé. Em dois minutos, com poucos golpes de asas, sobrecruzou a crista da cordilheira, mudando de bacia: viera de rapinar no campo das águas que buscam o ocidente, e agora se afundava nas matas marginais dos arroios que rojam para leste. Estava tosando ar alto, mas nós olhávamos o vôo como quem se inclina para espiar um peixe num aquário. Depois, o urubu. Pairou, orbitando giros amplos. Muito tempo. Mesmo para os seus olhos de alcance, era difícil localizar o alimento. Fechou, pouco a pouco, os círculos. Descaiu, de repente, para um saco em meia-lua, entre duas vértebras da serra. Adernou. E soçobrou no socavão”.

O Primo se vê desnorteado diante do jogo de Maria Irma. Por instantes se sente correspondido em seu amor, e no momento seguinte já não sabe o que pensar. Age como um bicho, ao desejar desesperadamente o amor da prima, insistindo e implorando por um beijo. Já não dorme, não come. Maria Irma é diferente do Primo, é racional, calculista, paciente, e traça um plano bem definido para poder se casar com Ramiro, seu verdadeiro amor e noivo de sua melhor amiga: sua idéia é casar Armanda e o Primo. Duas passagens pelo mundo selvagem simbolizam a condição do Primo: na primeira delas, o Primo, acompanhado da Prima, presencia uma briga de galos: “Um gordo galo pedrês, parecendo pintado de fresco com desenhos de labirinto de almanaque, sultaneava, dirigindo preferências a uma galinha ainda mais carijó e mais gorda, vestida de fichas de impressão digital. E veio de lá, ciumento e briguento, outro galo, esse branco, com chanfraduras e pontas na crista caída de lado. Barulho. E então a galinha choca, com cloqueios e passos graves, chamou os pintinhos para longe dali (...).”

A segunda é a passagem em que o Primo aposta 2 mil réis com o moleque Nicanor, “um toquinho de gente preta de oito anos”, que ele não é capaz de domar um

cavalo. É uma das passagens mais bonitas da novela. Descreve a lenta aproximação do moleque Nicanor, sua paciência, sua astúcia: “Meu irmãozinho cavalinho...Híu! Híu!...Irmãozinho...”... até que finalmente consegue domar o animal. “Ei! Anda, égua magra! Pinguacha!... Irmãozinho que nada! Já viu cavalo ser irmão de gente?!...” Nicanor é a figura de uma criança, frágil, capaz de domar o cavalo não por sua força física, mas por sua esperteza, subvertendo a lei da natureza; estabelece uma distinção entre gente e bicho, colaborando para o início da ascensão do Primo. Mudando sua estratégia, o Primo resolve então passar uns dias na fazenda de seu tio Ludovico, e lá recebe duas cartas: a primeira é a de seu Tio Emílio, contando sobre a vitória nas eleições; a segunda é de Santana. Na carta, Santana retomava o jogo de xadrez que eles vinham jogando na viagem. Ao contrário do que supôs o Primo, Santana não havia perdido o jogo, e apresentava na carta a solução. Duas vitórias, como que a ensinar o Primo que era preciso dominar a situação, revertê-la a seu favor. *** A história de Bento Porfírio, apesar de secundária, tem importância fundamental na construção da narrativa, por dois motivos: em primeiro lugar, o episódio da morte de Bento Porfírio ilustra, como já foi dito, a forma utilitarista com que o Tio Emílio lida com as pessoas, apesar de, na visão do primo, e no âmbito familiar, ser tão “justiceiro e correto”. Em segundo lugar, por expor mais uma vez uma situação de violência motivada pela não-submissão aos ritos sociais. Também aqui a atitude humana próxima do mundo animal é realçada por meio de alusões ao mundo da natureza. Num dia de pescaria, Bento Porfírio, ao confidenciar ao Primo seu caso com a prima de-Lourdes, é assassinado pelo marido da moça, que escutara toda a conversa sem ser visto. É morto pelas costas: uma morte traiçoeira, assim como a natureza traiçoeira do rio em que pescavam: “Ali, há uma gameleira, digna de druidas e bardos, e, na coisa água, passante, correm girinos, que comem larvas de mosquitos, piabas taludas, que devem comer os girinos, timburés ruivos, que comem muitas piabinhas, e traíras e dourados, que brigam para poder comer tudo quanto é filhote de timburé.”

*** Ao voltar à fazenda do Tio Emílio, o Primo encontra Maria Irma na companhia de Armanda. Os dois imediatamente se apaixonam: “De você...sempre gostei. Sempre! Antes de saber que você existia...”. E Armanda: “É com você que eu vou casar”. Maria Irma é Ísis, a deusa-pássaro que conduz os dois a um encontro já predestinado. Numa leitura superficial, a novela poderia parecer mais uma história de desencontro amoroso, tendo como pano de fundo o coronelismo no sertão mineiro das décadas de 30 e 40. Longe disso, a história fala de algo muito mais amplo e ultrapassa o regionalismo para se impor como uma história universal, propondo um olhar sobre a condição humana. Toda forma de violência que permeia a novela – seja nas lutas pelo poder, seja no adultério seguido de assassinato, seja ainda no sofrimento causado por um amor não correspondido, é apresentada nos mesmos termos que a violência encontrada na natureza, na briga de galos, no rio traiçoeiro habitado por traíras. É uma violência que ganha terreno frente à incapacidade humana em estabelecer certos códigos de civilidade, que permitiriam uma convivência mais harmoniosa. Nesse sentido, a obra não apenas incorpora elementos externos, mas faz uso deles na criação de uma lógica interna extremamente trabalhada, que lhe confere o status de obra de arte.

Bibliografia ROSA, Guimarães. “Minha gente”. In: Sagarana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, 57ª Edição. Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo, Abril Cultural, 1973. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo, Publifolha, 2000, 8ª Edição. HOLANDA, Sergio Buarque de. “O homem cordial”. In: Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, 3ª Edição.

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