Empadas e Mortes M. D. Amado
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Empadas e Mortes Autor: M. D. Amado Ano de lançamento: 2009 Esta é uma publicação eletrônica gratuita, distribuída pelo próprio autor, com o objetivo de divulgar o seu trabalho. A distribuição e/ou publicação de todo o conteúdo ou parte dele, é permitida, desde que respeitados os direitos autorais. O autor pede que seja enviado um email informando onde será publicada a obra (ou parte dela), para simples controle e adição ao portfólio do autor (
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Dedicatória Dedico essa publicação especialmente aos meus filhos Bruno e Rafael, ao meu afilhado Gabriel e à Natália Santos Brilhante. E também ao casal de amigos Ricardo e Mirka, minhas queridas amigas Idelma Minelli e Kelly Rodrigues, minha prima Marcelina e minha irmã Dora.
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Agradecimentos Agradecimentos sempre são injustos, pois na emoção de querer mostrar o quanto somos gratos, cometemos às vezes gafes imperdoáveis, momentaneamente nos esquecendo de pessoas importantes, mas torço aqui para que isso não aconteça nesse momento: Meu amigo Wady, responsável por eu retomar o hábito da leitura no início de 2004. Richard Diegues, Camila Fernandes, Gian Celli e Rita Maria Félix, por terem me incentivado no início de tudo, lá por volta de 2004, quando comecei a brincar de escrever. Em especial ao Richard, pela oportunidade nos livros Necrópole, histórias de fantasmas e Paradigmas Volume I. Ademir Pascale e Elenir Alves pela oportunidade e confiança no fanzine Terrorzine e nas obras: Draculea – o livro secreto dos Vampiros, Metamorfose – a fúria dos lobisomens e Zumbis – quem disse que eles estão mortos? Rosana Raven (fã muito querida), Liartemis e Iam Godoy, pelo apoio e divulgação dos meus trabalhos e sites, no Flores do Lado de Cima, Ravens House e em seus milhares de blogs (risos). Eric Novello pelo apoio no Fantastik. Rober Pinheiro e Everson Probst, pela força e amizade e pelas críticas sempre construtivas do Rober (valeu pelo press release também). Agnes Mirra (fã desde o início), Miriam Castilho, Emilia Ract, Denise MG, Melissa Mell, Rodrigo Venkli, Alessandro Reiffer (com minhas reverências), Vilminha e Mensageiro Obscuro pela força que sempre me deram. Natacia Araujo, Débora Andrade, Leonardo Pezzella e Liza pela oportunidade no blog A Arte Não é Minha e pelo aprendizado com as poesias (especialmente Natacia). Aos novos amigos que vem acompanhando meus textos e poesias: Nivia Gomis, Serena, Marius Arthorius, Evandro Guerra, Adriano Siqueira, Giulia Moon, Juliano Sasseron, Luciana Fátima, Roberta Nunes, Matheus Machado, Maurício Montenegro, Nana B. Poetisa, Ângela Nadjaberg, Márson Alquati... Espero realmente não ter esquecido ninguém... Se esqueci me perdoem (ou não... risos).
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Indice Prefácio ..............................................................................................................................- 7 Não Fuja Mais....................................................................................................................- 8 A Inveja tem Cor ................................................................................................................- 9 Alvo e Rubro ....................................................................................................................- 10 Mortos Não Comem Empadas .........................................................................................- 11 Chovia Muito Naquela Noite...........................................................................................- 13 Eu Vejo Gatos Mortos......................................................................................................- 15 Dominantes......................................................................................................................- 20 Prognóstico ......................................................................................................................- 22 Puta Que o Pariu..............................................................................................................- 23 Então Era Natal................................................................................................................- 25 Não Sou um Monstro.......................................................................................................- 29 Motivos Para Esquecer......................................................................................................- 32 Não Estou Sozinho no Escuro ..........................................................................................- 34 Tábuas e Potes de Vidro ...................................................................................................- 36 O Desertor .......................................................................................................................- 38 A Torneira........................................................................................................................- 43 Fantoches .........................................................................................................................- 47 Leitor................................................................................................................................- 51 O Autor............................................................................................................................- 52 -
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Prefacio Melancólico e sanguinário ao extremo. Clichê? Não, esta não é uma palavra conhecida por M. D. Amado, pois quem conhece o gênero, sabe como é difícil mesclar o horror com o cômico. O título Empadas e Mortes confirma a minha afirmação. Afinal, já era tempo: foram 13 anos de dedicação ao terror explícito, centenas de contos e artigos publicados no site Estronho (www.estronho.com.br), e agora temos o prazer de ler e reler alguns dos melhores contos deste magnífico e promissor escritor, do qual já venho observando o seu trabalho em antologias e em seu próprio site. Como escritor e organizador cultural, estou sempre antenado no mercado literário. Este ano li dezenas de livros, tanto nacionais como internacionais, entre eles Pride And Prejudice And Zombies (Chronicle Books), uma paródia sobre zumbis criada pelo autor Seth Grahame-Smith, baseada na consagrada obra Orgulho e Preconceito da escritora inglesa Jane Austen (1775-1817). Ligado também no mundo da sétima arte, assisti ao trailer do longa-metragem estadunidense Zombieland (Sony Pictures), uma comédia de horror que será lançada em outubro de 2009 no exterior, mas que terá lançamento no Brasil apenas no final deste ano. Em uma palestra sobre literatura no ano passado, pude ouvir de um editor que as editoras estão cansadas dos zumbis. Pensei: por quê? Os únicos mortos-vivos que vemos sendo publicados atualmente são os vampiros, mas raramente os zumbis estampam capas de livros. Com esta ideia em mente desde 2008, além de ver o entusiasmo do pessoal de outros países com o tema, resolvi criar a coletânea Zumbis: Quem disse que eles estão mortos? (All Print). O subtítulo Quem disse que eles estão mortos, é justamente para mostrar que eles não estão esquecidos e, como convidado especial para compor na coletânea, claro, M. D. Amado. Como disse logo no início deste prefácio, os contos de horror do Marcelo, na maioria das vezes, são salpicados com uma boa pitada cômica, alguém que não poderia deixar de convidar para este livro de horror, pois o seu texto trará certamente um bom diferencial para a obra. Empadas e Mortes apresenta dezessete contos, iniciando com Não Fuja Mais, um conto que nos faz recordar dos malditos textos de Augusto dos Anjos, nos levando às sombras de becos sinistros, dos quais podemos sentir até o seu fétido ardor, tamanha é a descrição do autor. Um texto pesado e rico em palavras contundentes, se baseado no conceito do mais belo estilo gótico. Se você já conhece o estilo e os trabalhos deste autor, está ai um prato cheio de puro horror, se não conhece, acabe logo a leitura deste prefácio e inicie imediatamente a leitura dos contos. Conselho: após lê-los, antes de dormir, pense duas vezes antes de apagar as luzes do seu quarto, pois as palavras são poderosas, e se bem construídas, poderão se tornar mágicas e o seu conteúdo pura realidade. Que venha logo e sem delongas, o livro impresso de M. D. Amado, pois garra, determinação, qualidade e público, é o que não falta para este escritor.
Ademir Pascale Escritor e Organizador Cultural
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Nao Fuja Mais Esta noite você irá sonhar comigo. Me verá à espreita, rastejando pelas sombras de becos fétidos e escuros, seguindo o cheiro dos corpos putrefactos. Verá que eu me alimento de restos que a morte despreza. Que eu sugo o sangue já coagulado das entranhas jogadas no chão, misturadas a imundície dessa cidade negra. Eu me farto com todo tipo de bactérias, larvas e tudo aquilo que te faz sentir nojo. Assim sou eu, ou melhor, assim sou você. Sou seu lado obscuro e recôndito. Aquilo que você tenta rejeitar. Que finge não ver. Mas sua hipocrisia é em vão, porque estou arraigado em sua alma. Não tente me repelir. Não tente me expulsar, pois sou parte de cada um de vocês. Sou parte do mundo imundo que existe por trás de toda essa maquiagem frágil e inexpressiva que vocês chamam de sociedade. Sou seu verdadeiro ser. Quando venho à tona, sou tratado como doença. Como desvio de personalidade. E minhas atitudes são denominadas de atrocidades. Mas na realidade, o que faço é apenas revelar sua mente sem censura, sem pudor, sem vergonha. E sigo vigiando seu sono, esperando por um desvio no tempo, no sonho, no pesadelo, na vida. Aguardo minha vez de ser o ator principal dessa sua história medíocre de vida inútil e incapaz. Quero despi-lo dessa fantasia triste. Esse ‘você’ travestido de pessoa ‘comum’. Quando chegar a hora vou mostrar sua verdadeira face, seus verdadeiros anseios. Irei expor seus desejos mais sujos e impróprios. Sigo na calada da noite, sentindo o cheiro de podre, procurando pistas nas sombras, me energizando com restos e com sangue. Vou lambendo o chão por onde você pisa, me deliciando com farelos de sua pele e vampirizando sua energia enquanto você dorme. Não fuja mais. Não se canse à toa, pois qualquer noite dessas, vamos nos encontrar frente a frente. E você não conseguirá resistir. Sentir-se-á atraído por meus olhos negros e foscos. E numa questão de segundos sugarei essa farsa que reside em seu corpo e inundarei sua alma com minha maldade, tomando aquilo que por direito é meu. Não lute! Entregue-se a mim e seja bem-vindo ao inferno do seu verdadeiro ‘eu’.
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A Inveja tem Cor Eu não ficava bem de vermelho, ao contrário de todas as minhas amigas. Os homens ficavam fascinados com seus vestidos, blusinhas e principalmente com a lingerie. Por que eu não ficava bem de vermelho? Por quê? Não adiantava tentar nada... Nunca consegui atrair a atenção de ninguém me vestindo de vermelho. E eu adoro vermelho. Amo vermelho. Já pintei meu cabelo de vermelho imitando todos os tons de cada uma delas e nem assim obtive sucesso. Marcinha e Roberta sempre chamaram a atenção com seus cabelos ruivos. E nem eram naturais. Queria tanto ter o charme da Marcinha, ter os cabelos da Roberta, o corpo da Juliana, que vestia tão bem qualquer vestido, vermelho ou não. Os pés da Mariana e os olhos da Claudinha... Ironicamente agora nenhuma delas pode mais se vestir de vermelho. E eu estou aqui, cercada de homens, todos olhando para mim. Todos querem me levar. Mas não vou... Agora quem não quer sou eu. Vou ficar aqui no meio do salão de festas... Juliana não ficou bem de branco. O vestido de noiva ficaria melhor se fosse vermelho. Por isso abri seu ventre, para dar um bom tingimento ao tecido. Não consegui fazer com que os olhos da Claudinha se encaixassem no lugar dos meus, mas antes de arrancá-los, consegui ver como fiquei bem com o escalpo da Roberta. Não quis os pés da Mariana hoje. Ela pintou suas unhas de roxo... Não gosto. O charme da Marcinha também não sei como arrancar.
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Alvo e Rubro O cenário em nada combina com o lençol e as roupas manchadas de sangue. Um fio de luz entra timidamente pela fresta da janela, iluminando parte do colchão, o tapete com estampa da Betty Boop e um pedaço da estante de livros. O chão de tábua corrida muito bem encerado reflete o ventilador de teto, que se encontra ligado na velocidade mínima. A porta entreaberta ensaia uma pequena dança, embalada pelo vento que vem do corredor, parecendo anunciar a entrada de alguém a qualquer momento. Atiradas de qualquer forma sobre a poltrona de tecido carmim, a calça jeans e a camiseta de malha verde clara denunciam a pressa de ir para cama na noite anterior. O celular caído no chão ao lado do par de tênis e das chaves do carro, registra duas mensagens recebidas e não lidas. Os cabelos castanhos levemente avermelhados estão jogados sobre um rosto pálido, porém de uma jovialidade invejável desenhada em traços sublimes. Não fosse pela mancha vermelha que toma conta de quase todo o ventre, a camisola de seda branca passaria despercebida aos olhos de quem, como eu, esteja admirando esse corpo perfeito. Não é um corpo de modelo, ou de atleta e muito menos de “Musa do Brasileirão” ou “Mulheres Frutas” – que de perfeito nada possuem em seus corpos. É perfeito em sua naturalidade e em suas curvas. Perfeito nas proporções. O chamado “corpo de violão”. O relógio marca oito e trinta da manhã e não despertara, pois hoje ela não iria trabalhar. Havia programado um merecido dia de folga. O prenúncio feito pela porta entreaberta se concretizou. Dona Carmem entra no quarto e se depara com o vermelho que pintara o lençol, a calcinha e as coxas de sua filha. O susto leva ao grito, que leva ao susto... — Aninha!!! Aninha!!! E Aninha, despertada de um de seus melhores sonhos, ainda meio zonza, esfrega os olhos e olha para o meio de suas pernas. — Puta que o pariu! Esqueci de por o absorvente!
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Mortos Nao Comem Empadas Era pra ser apenas mais um dia de trabalho na lanchonete... Por volta de 16:00h dois sujeitos com cara de poucos amigos entraram, olharam para o balcão de salgados e vieram na minha direção. Um deles, o maior e mais forte, foi logo cuspindo seu pedido – cuspindo mesmo, porque o homem parecia ter uma torneira aberta na boca. — Uma empada de bacalhau! — De bacalhau acabou senhor. Acabei de servir as duas últimas. – apontei levemente com a cabeça para o rapaz sentado, próximo a ponta do balcão. O sujeito estufou o peito e caminhou até onde estava o rapaz, que já ia abocanhar sua primeira empada. Não houve tempo para a primeira mordida. Levou um tiro a queima roupa. Antes mesmo de seu corpo tombar no chão, batendo com a cabeça na lixeira, o atirador falou bem alto: — Mortos não comem empadas! – e puxou o pratinho com as duas empadas para o seu lado. Assustado como todos no local, me recolhi ao fundo da cozinha. Mas de onde estava podia ver nitidamente que o homem que levara o tiro se mexia. Seu corpo se contorcia e sofria pequenos espasmos musculares. Pude ver quando a bala do revólver foi expelida de sua pele e seu ferimento se fechou. Daquele momento em diante seu corpo começou a se transformar. A primeira vista parecia crescer e escurecer. Somente depois é que notei que o escurecimento era na verdade uma grande quantidade de longos pelos negros. Seu rosto ficou desfigurado, dando-lhe feições caninas de grandes proporções. Alheio a essa estranha mutação que acontecia atrás de si, o autor do disparo terminava de comer as duas empadas, com a educação de um glutão, e dava gargalhadas com a boca cheia, enquanto conversava bobagens com o segundo sujeito que o acompanhava. Quando terminou, deu um último gole no seu refrigerante e bateu a mão no balcão dizendo que o lanche era por conta da casa. Quando se virou para ir embora, esbarrou na criatura. Tinha cerca de dois metros de altura e seus ombros pareciam desenhar uma montanha de pedras peludas. Os grandes olhos amarelos fitaram o sujeito de cima a baixo.
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Com uma das mãos ele o segurou pelo pescoço, deixando seus pés erguidos a poucos centímetros do chão. Com as garras afiadas da outra mão, rasgou seu ventre e alguns segundos depois retirou uma espécie de massa viscosa, amarelada e suja de sangue. Depois disso soltou o sujeito, que agora trazia estampado em seu rosto o pavor de estar vendo suas tripas caídas no chão imundo da lanchonete. A criatura abriu a boca e jogou aquela massa gosmenta para dentro. Antes de sair esbarrando em todas as pessoas ao redor, olhou para trás, parou por um segundo e disse baixinho: — Realmente... Mortos não comem empadas. Mas eu não estou morto e a empada é minha. Virou-se em direção a porta, deu um passo e parou novamente. Moveu levemente a cabeça para o lado esquerdo e me procurou. Olhando fixamente para mim, ironizou: — De bacalhau essa empada só tem o nome!
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Chovia Muito Naquela Noite Chovia muito naquela noite e eu estava na sala, lendo o romance “Uma fortuna perigosa”, de Ken Follett, tomando uma taça de vinho tinto barato, sentado confortavelmente em minha poltrona do papai com uma coberta sobre as pernas. Estava próximo à janela, um pouco de lado. A cortina estava aberta e os raios às vezes chegavam a assustar um pouco. Relutei em me levantar para fechar as cortinas, pois estava tudo tão aconchegante que parecia um enorme sacrifício sair dali naquele momento, mas os raios continuavam a clarear todo o ambiente e isso me tirava a concentração. Tomei outro gole de vinho e tirei os óculos, colocando-os sobre o livro já fechado, depois de ter deixado o marcador na página 250. Quando tirei a coberta de cima das pernas, senti um vento frio vindo da porta do corredor. Ainda descalço, caminhei até a janela para fechar as cortinas, mas antes de puxá-las, olhei instintivamente para fora, como sempre fazemos durante uma chuva forte. O vidro estava muito molhado por fora e um pouco embaçado por dentro, mas foi possível ver um vulto atravessando a rua. Era algo absurdamente grande e forte. Suas formas se confundiam diante das gotas de água que escorriam, fazendo-o parecer um monstro. Não sei dizer ao certo sua altura, mas com certeza era maior que o portão da casa de frente, detalhe que pude notar quando ele terminou de atravessar a rua e parou por uns instantes em frente a esse portão. Tinha uma cabeça enorme, semelhante a de um grande cachorro. Parecia estar farejando algo no ar e olhava para todos os lados até perceber em determinado momento, a minha silhueta na janela. Chegou a dar um passo em minha direção, mas alguma coisa o fez mudar de idéia. Olhou assustado para a rua de baixo e saiu correndo em sentido contrário. O mais incrível aconteceu em seguida, quando fechei as cortinas e me virei para retornar para minha poltrona. Posso afirmar com absoluta certeza que as janelas estavam trancadas. No entanto assim que me virei, uma das duas partes da janela empurrou a cortina, trazendo um vento frio e muitas gotas de água gelada. E não foi somente isso. Pude ouvir nitidamente um grito de mulher. Alguém pedia socorro e gritava de maneira apavorante no meio daquela chuva. Me aproximei da janela, que agora tinha também um rastro de sangue misturado as gotas de chuva. Os gritos pareciam estar um pouco mais espaçados e abafados. Olhei para fora tentando ver algo, mas não consegui nada além de molhar todo o meu rosto e parte do peito.
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Segundos depois, senti uma forte pancada e uma grande dor na cabeça. Alguma coisa me atingiu e agora eu estava caído ali no chão da sala com tudo molhado ao meu redor. Água e sangue. A janela estava quebrada, a cortina rasgada e a polícia lá fora. Eu via as luzes e ouvia as vozes de várias pessoas e rádios de comunicação ligados. Com muito esforço, me levantei e voltei para a janela. Pude ver que a chuva havia cessado e lá fora o corpo de mulher jogado sobre o capô de um carro chamava a atenção. Seu corpo bem claro, parcialmente descoberto e manchado de sangue do peito para baixo, estava imóvel. Um policial veio em minha direção. Estava com uma lanterna em uma das mãos e se continuou se aproximando. Fiz um sinal com a cabeça, mas parece que ele não percebeu. Chamou outro policial e ficaram olhando para minha janela. Novamente acenei com a cabeça, mas nenhum dos dois parece ter visto. Acenei com os braços. Eles então vieram novamente em direção à janela. A luz da lanterna me ofuscava a visão e quando consegui perceber algo além daquele clarão diante de mim, vi os policiais pulando pela janela. Nesse momento tive a impressão que estivessem passando por mim, sem me notar. Eles olharam para o chão molhado e para meu corpo estendido perto da poltrona. Em minhas mãos eles encontraram um pedaço do vestido daquela mulher. Ao meu lado, o seu coração. E na minha cabeça, um buraco de bala. Naquela noite, chovia muito...
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Eu Vejo Gatos Mortos Enquanto caminhavam pelo longo corredor do velho casarão, os dois amigos comentavam as estranhas atitudes de Berenice nos últimos dias. Há semanas ela vinha insistindo na idéia de que gatos mortos a cercavam por todos os lados. No início ela mesma ria de tais despropósitos. Mas com o passar do tempo, começou agir de forma estranha, olhando para todos os lados, se escondendo pelos cantos e dizendo frases sem nexo. Léo e Bia, preocupados com o estado emocional de Berenice, queriam convencê-la a procurar ajuda, mas nos últimos dias a pobre amiga não saia de dentro do sótão. Na maior parte do tempo ficava encolhida, enrolada num tapete velho e empoeirado. O casarão do século XVII abrigara no passado uma família riquíssima que tinha como principal característica, a ostentação. Faziam questão de promover festas sempre que adquiriam algum objeto de arte, móveis novos, carruagens ou mesmo belos animais exóticos que traziam de suas inúmeras viagens ao exterior. As gerações que vieram depois não eram muito diferentes e com o passar do tempo foram perdendo alguns de seus bens para custear e sustentar as luxuosas festas. No final do século XX, já completamente abandonado e deteriorado pela ação do tempo, o casarão se transformou numa pensão para estudantes. Histórias e lendas envolvendo os antigos moradores do local sempre foram uma constante entre os jovens inquilinos. Vultos no corredor, som de taças de cristal durante a madrugada, risadas vindas do porão e até mesmo gritos no meio da noite. Estes e outros fenômenos eram os temas preferido dos universitários quando se encontravam nos botecos, após a aula. No entanto quando voltavam para seus quartos na velha pensão, o medo do desconhecido invadia a mente de praticamente todos eles, incluindo-se aí os mais céticos. Mas as visões de Berenice eram inéditas. Ao menos pelo que se sabia até então. Gatos mortos andando pelo corredor e pelos jardins nunca tinham sido relatados anteriormente. Com medo do que pensariam os outros amigos a respeito dela, Bia resolveu não contar para ninguém sobre o que estava acontecendo. Ela e Léo levavam comida sempre que podiam e ficavam ao seu lado tentando acalmá-la, sem muito sucesso. — Eu vejo gatos mortos... Eu vejo gatos mortos... Mas aqui eles não me machucam. Não me machucam. — dizia sempre, com os olhos arregalados e o pavor estampado em suas pupilas.
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No final de mais uma tarde de vigilância, o casal deixou Berenice novamente sozinha. No caminho até o jardim dos fundos, conversaram a respeito: — Léo, temos que fazer alguma coisa. A Berenice tá pirada. Além do mais, ela não pode ficar enfiada nesse sótão para sempre. — Mas o que podemos fazer? Você não quer pedir ajuda para mais ninguém. Sozinhos não conseguiremos tirá-la de lá. E Bia... — ele parou próximo a porta e disse com um tom abafado na voz — Eu... Eu preciso te contar uma coisa. Olhou para os lados para ter certeza que ninguém poderia ouvi-lo e continuou: — Eu... Ouvi uma voz hoje quando chegamos ao sótão. — O que tem isso demais? A pensão está cheia hoje. É sábado. O zum zum zum não para. — Não Bia. Eu escutei uma voz no meu ouvido, enquanto estávamos no sótão. — Ah, por favor, Léo! Você também não! Já me basta uma amiga maluca. — Maluco? Mas Bia... É isso que você pensa de Berenice? Poxa, ela é nossa melhor amiga. — Léo, no começo eu achava que ela estava estressada ou deprimida, carente, sei lá. Mas cara... Tem quatro dias que ela não sai do sótão. Não para de falar que vê gatos mortos. Só come o que a gente leva pra ela e mesmo assim, porque a gente insiste. Sem falar no fato de ficar enrolada num tapete velho, mofado e empoeirado. Isso não é coisa de alguém normal, ou é? E agora você me diz que está ouvindo vozes? Ah por favor... Bia saiu para o jardim deixando para trás o amigo, envergonhado e ainda cismado. Que voz teria sido aquela? À noite Léo resolveu que ficaria com Berenice. Ia tirar a prova dos nove. Entre um intervalo e outro onde repetia a frase “eu vejo gatos mortos”, a amiga chegou a dizer que as aparições eram mais constantes durante a madrugada. Quando Léo entrou no sótão, Berenice pulou de susto. Não o esperava ali. Mas ao perceber que era o amigo, ela se acalmou e o chamou para ficar ao seu lado.
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— Eu não vou me enfiar debaixo desse tapete Berê. Pode esquecer! Fico aqui perto de você, mas não ai debaixo. — Não diga que não avisei. Ai fora você vai ser alvo fácil para eles. — Eles quem Berê? — Os gatos... Os gatos... Eu vejo gatos mortos... Eu vejo... Léo se acomodou perto de Berenice, mas não tão perto. O cheiro do tapete lhe incomodava bastante. Tentou conversar com ela, mas era impossível. Ela só repetia a mesma frase e ficava olhando para os lados. Nas primeiras horas da noite nada aconteceu e ele acabou pegando no sono. Pela manhã Léo desceu as escadas correndo à procura de Bia. Nunca havia corrido tanto na vida dele. Seu corpo doía e as feridas e arranhões que se estendiam por toda parte, ardiam como fogo. Virando no corredor, avistou Bia que entrava pela porta que dava para o jardim dos fundos. — Bia! Bia! – chegou quase atropelando a amiga. — Minha mãe do céu! O que aconteceu com você? Briga? — Bia, é verdade! É verdade! — O que é verdade? Que você brig... — Bia!!! Me escuta! Eu vi os gatos... Mais do que isso, olha o que eles me fizeram. Eram estranhos, de olhos vermelhos... Alguns pareciam estar em estado de decomposição e outros eram muito estranhos, tinham garras afiadas e... — PARE! PARE COM ISSO AGORA LÉO! – Gritou Bia, interrompendo o amigo. — Você ficou maluco de vez? No mínimo você se meteu em alguma briga por causa de um rabo de... — PARE VOCÊ BIA! – agora foi a vez de Léo interromper a tentativa de Bia. — Não está reconhecendo essas marcas? São unhadas de gatos e... Caralho, como isso arde! Bia olhou para os ferimentos, olhou nos olhos de Léo, suspirou e disse, já virando de costas e voltando para o jardim:
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— Minha nossa... Tem alguma coisa na água dessa casa. Eu vou embora daqui, antes que eu fique louca também. — Mas... Bia... Biaaaa!
Carlos, que esperava por um amigo na porta da sala, olhava assustado para Léo, que ficou com cara de paisagem enquanto Bia sumia atrás das árvores do jardim. — Ei! Acorda Carlinhos! Se estiver com sono, é melhor nem ir para a quadra. Vamos, estamos atrasados! – Disse-lhe Robson, que acabara de descer as escadas. — Cara... – ele olhava ora para o amigo, ora para o gato parado na porta dos fundos — Eu podia jurar que vi aquele gato discutindo com o outro que saiu pela porta. — Você quis dizer brigando né? O bichano tá todo detonado, coitado. A briga deve ter sido feia. — Não cara... Eu to dizendo que ouvi os dois... Tipo assim... Conversando, saca? Robson olhou dentro dos olhos de Carlos, como se procurasse vestígios de uso de drogas ou algo semelhante. — Carlinhos, você tá de sacanagem comigo, ou anda usando drogas? — É sério cara... Eu ouvi... E também vi os dois conversando. — Na boa... Eu já ouvi de tudo aqui no casarão, mas gatos que falam é a primeira vez – gargalhou — Anda... Vamos jogar bola! — Robson... Não é só isso. Eu tenho ouvido gatos miando durante a madrugada, como se estivessem dentro do meu quarto. E quando me levanto para procurá-los, não vejo nenhum por perto. Nem do lado de fora da casa. — Cara, você está usando tóxico! Sai dessa véio! Quando Carlinhos ia mandar o amigo ir se foder, uma garota baixinha, pele clara e rosto muito bonito, chegou perto dos dois e interrompeu a conversa. — Oi! Vocês viram a minha gata por ai? Ela não aparece há cinco dias.
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— Qual? A malhada de cinza? – perguntou Robson. — Não, aquela azul com listras amarelas... Por acaso eu tenho outra gata? — Opa! Calma aí! Também não precisa responder assim. — Ah, vá se foder! – deu as costas e saiu pelo corredor gritando — Bereniceeee! Bereniiiiice! Berêeeeee! Caralho de gata dos infernos!
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Dominantes É hora de escrever. Passa da meia noite e minhas mãos estão loucas para criar uma nova história. Os olhos acompanham os movimentos sobre as teclas e vigiam o que está sendo escrito. Mas a mente... Ah, a mente. Essa viaja numa velocidade incrível. Monta cenários, molda corpos e rostos. Lança idéias e sugestões que percorrem meu corpo até chegar as mãos. Em alguns momentos uma pequena pausa. Um momento de dúvida para continuar a escrita. Dar uma lida no que acabou de ser escrito também é válido para retomar o rumo. Ou quem sabe para mudar a direção. Mas as minhas mãos praticamente têm vida própria nessas horas. Muitas vezes imagino um destino para aquela personagem e elas, mãos insanas, acabam desenhando outro fim. Trocam a vida pela morte, o amor pelo sofrimento... Esperam, criam, escrevem. Mãos assassinas. É hora de escrever e elas repetem palavras e frases quando acham que devem. A mente não concorda a princípio, mas depois se entrega. Ajuda. Melhora. Os olhos também gostam de olhar para elas, quando estão em seu frenético balé da escrita. Teclas e mais teclas sendo pressionadas, formando a sua história. Montando o texto que vai fazer sentir medo ou que vai gerar comentários. Que vai agradar ou desagradar. Causar admiração ou indiferença. E o que importa é que elas continuam me dominando. Nesse momento por exemplo, acho que o texto pode parar por aqui. Pode terminar, pois já não está me agradando muito. Sinto que não está mais fluindo naturalmente, mas elas não querem parar. Não deixam. Insistem que se o texto não está bom, ainda pode melhorar. Dizem que ainda não é hora de parar, pois não estão satisfeitas. Precisam escrever. Se for preciso, escreverão até sangrar as pontas dos dedos. Agora elas voltaram ao início do texto, lá na segunda frase e fizeram uma correção. Eu falava que meus dedos estavam loucos para escrever, mas elas mudaram a frase. Disseram agora que elas é que estavam loucas para escrever. Estou lhes dizendo. Não tenho mais controle. Elas não me obedecem. Ou será que sim? Pelo que vejo, escrevem o que eu estou pensando e... “Subindo as escadas ele não enxergava nada além de um ponto luminoso no alto. Tomou aquele ponto como referência para entrar no quarto e por um fim àquela história. Seus passos pesados sobre as tábuas podres chegavam a criar novas rachaduras na velha madeira. A respiração ofegante podia ser ouvida a metros de distância.
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Quando se postou de frente para a porta, firmou o punho e ergueu o machado. Com a mão esquerda girou a maçaneta e abriu a porta rapidamente...” Ok... Já entendi. Vocês interrompem quando querem e estão apenas me dando a chance de reclamar, por reclamar, não é isso? Devo então aceitar que meus textos são feitos por vocês e não por mim, correto? Mãos... Devo cortá-las. “... quando entrou no quarto, viu o escritor debruçado sobre o notebook, tentando apagar o que acabava de escrever. Atravessou por cima da cama e atacou com toda força. Partiu o crânio do homem ao meio. Fácil assim, como se corta uma melancia com um facão. Inacreditável foi ver as duas mãos continuarem a escrever. O texto falava sobre um homem que tinha medo do que escrevia e de uma força oculta que o guiava por entre as palavras e frases soltas de um universo ficcional. Escritores... Devemos matá-los.”
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Prognostico Saiu do consultório médico desolado. Alguns exames teriam que ser repetidos, mas o prognóstico médico não era muito condizente com a tal esperança. Com certa dor no peito, de ver um rapaz tão jovem com os dias contados, o “doutor” lhe deu apenas alguns meses de vida. Ele que nunca ganhara nada em sorteios, rifas ou loterias, ganhou um lugar entre os raros casos daquela doença terrível. Um caso em cada milhão de pessoas. Atravessou a avenida, pegou sua moto que tinha comprado há apenas uma semana. Um dos sonhos de um jovem de 18 anos. Apenas um de uma lista enorme que a juventude necessita. Não tinha forças para chorar. Concentrava toda sua energia na torcida para que fosse um erro do laboratório. Uma troca de nomes, um erro grosseiro de interpretação do médico. Fosse o que fosse ele nem pensava em processar ninguém. Só queria viver. Começar a viver. No caminho de casa tomou todo cuidado possível, pois ainda não acreditava que aquilo poderia estar acontecendo com ele. Não queria morrer no trânsito e nem em lugar algum. Não agora. Pensou na carreira que queria seguir, na namorada de adolescência que sempre amou e que jurou fidelidade para sempre... Mas ao mesmo tempo pensamentos contrários lhe inundavam a mente. E se fosse realmente verdade? O que faria? O que viveria nos últimos meses de sua vida? Viagens, festas, sexo, infidelidade, curtição... O celular toca. Parou no acostamento do anel rodoviário. Era o “doutor”. Desesperado e eufórico ao mesmo tempo, o médico lhe dizia: - “Foi um lamentável engano meu jovem! O encarregado do laboratório acabou de me ligar. Houve uma tro...” Ops! Hummmm... Ah... Carretas! Carretas carregadas e desgovernadas não conseguem parar tão facilmente.
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Puta Que o Pariu Operário em tempo quase integral, escritor nas raras horas vagas. Escrever era a única coisa que o fazia se sentir um pouco melhor. Era quando esquecia seus erros, falhas e má sorte e entrava em um mundo de sonhos. Naquela manhã quando chegou ao seu posto de trabalho, o fez decidido a por um fim em sua vida repleta de fracassos. Antes, porém, resolveu escrever suas últimas palavras, destinadas... à ela. Pegou seu celular e mandou a mensagem: “Te amo a cada amanhecer. A cada gota de chuva que cai sobre seu rosto em meus sonhos, onde ainda posso ser feliz. Te amo sempre! Nunca se esqueça meu amor.” Esperou por alguns minutos a resposta. Queria receber um último “oi”. A resposta não veio... Ele suspirou profundamente, retirou as luvas e arregaçou as mangas do uniforme. Olhou para o sobe e desce da lâmina de corte da máquina e sentiu um arrepio lhe subir a espinha. Pensou em tudo no dia anterior. Pediu a um colega que trocasse de lugar com ele, dando uma desculpa de não querer conversa com o encarregado que ficava ao lado de sua máquina. Ele queria ficar longe da enfermaria. Não seria um pequeno corte nos pulsos. Deceparia suas mãos e não haveria tempo para que alguém pudesse salvá-lo. Olhou mais uma vez para o celular, na esperança de ver uma resposta. Nada... Deu dois passos em direção a máquina. Um colega ao lado tentou chamar sua atenção, dizendo para se afastar. Ele ignorou. Queria ver a morte chegando. Sonhava com ela há várias noites. Tinha curiosidade de saber como era. Se realmente uma velha senhora vestida de negro, ou uma jovem mulher linda e carinhosa. Torcia para que não fosse um homem. No entanto não houve tempo para que ele pudesse vê-la chegar. Quando viu o seu próprio sangue jorrando em grande quantidade e suas mãos rolando para o outro lado da prensa, sendo completamente esmagadas por 15 toneladas de pressão, acabou desmaiando. Nunca pode com sangue. ... Ouvia vozes... Música... Respirava lenta e calmamente. Por um momento pensou que era mentira aquilo que aprendera nos livros de espiritismo. Diziam que os suicidas tinham um triste fim. Estava se sentindo bem. Confortável. Podia sentir uma leve brisa em seu rosto. Ao contrário do calor prometido de um inferno de arrependimentos, sentia até um pouco de frio. Antes de abrir os olhos, sorriu.
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Pobre coitado. Justamente naquele dia em que decidiu se matar daquela forma horrível, uma equipe de paramédicos, equipada inclusive com uma UTI móvel, estava fazendo uma demonstração de primeiros socorros na grande fábrica. A única frase que lhe veio à cabeça: - Puta que o pariu!
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Entao Era Natal Eu queria fugir de tudo e de todos naquele dia. Trocar de vida, me transformar em alguém que nunca fui. Ser corajoso, ter garra. Impor minhas vontades e me colocar em um lugar de destaque na vida das pessoas. Principalmente na vida dela... Abandonei praticamente todos os sonhos que ainda me restavam depois de mais de trinta anos de fracassos e decepções, apenas para amá-la. Disposto a seguir seus passos onde ela fosse. Mas o mínimo de desejos pessoais, planos e carências eu ainda mantinha. Mas isso nem sempre era levado em consideração. Acho que nunca foi... Ou talvez algo tenha mudado em algum momento de nossa história. Sua vida seguia conforme seus planos, apenas de acordo com os seus planos. Amor... O tão sonhado amor. Tão procurado, tão exaltado por poetas e escritores. Cantado em lágrimas por músicos e por pessoas comuns, no chuveiro, no trabalho... Na vida. Acho que eu estava me cansando desse tal amor. Talvez, cansando, não seria a palavra mais correta. Acho que desistindo seria o mais certo. Sabe... Na verdade, a palavra eternizando também se encaixaria. Confuso isso não? Tentarei explicar. É que cheguei ao ponto de amar tanto, que todo o sofrimento por qual havia passado se transformou em anestesia. Comecei a aceitar coisas e fatos sem me importar com os efeitos e consequências. Voltei a viver a vida de outra pessoa, apenas esperando o dia em que tudo terminaria. Era certo. Mais do que certo que tudo terminaria um dia. Os sonhos dela falavam muito mais alto que o tal amor. Estávamos vivendo partes de uma longa despedida. Mais dia, menos dia, o adeus chegaria. Tentei viver aqueles meses de forma a aproveitar cada segundo ao seu lado. Juras de amor cruzavam nossos olhares. Juras de amor eterno. E sinceros. Cada lado ao seu modo. Eterno seria o sentimento, contrapondo-se a proximidade do término do relacionamento. Era só uma questão de tempo. Não fosse num próximo concurso ou proposta de trabalho, seria na seguinte, ou na outra... Ou meses depois. Mas estava escrito que ela seguiria o seu caminho passando por cima de todo o seu sentimento por mim. Atropelando a saudade, o desejo e até mesmo o prazer que sentia ao ficar deitada, nua, em silêncio, de olhos fechados apenas recebendo meus carinhos e meus mimos. Naquele dia de Natal eu entendi porque meus dias anteriores estavam tão tristes e cinzentos. Não eram somente as nuvens de chuva que eu avistava pela janela. E o arrepio nos pelos dos braços não eram causados pelo vento frio que soprava em meu corpo. O que eu estava sentindo por perto era a morte de mais um sonho. O de viver ao lado dela. De fazer parte de sua vida, não como coadjuvante,
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mas sim como um dos protagonistas. E se era realmente amor o que eu sentia, estava na hora então de desistir de tudo e deixar que ela fosse feliz. Deixar que ela alçasse voo, livre de mim. Livre de preocupações práticas de uma vida a dois. Por isso estava ali, vivendo aquela longa despedida. Dando adeus aos poucos. Trocando sorrisos por lágrimas a cada despedida. Vivendo a felicidade ao seu lado e a tristeza em sua ausência. Até aqui, o leitor deve estar pensando se tratar um lamento piegas de um romântico frustrado. Mas o que relato a seguir vai mudar o contexto. Aconteceu na noite de Natal, quando decidi que eu também era alguém. Quando resolvi mostrar quem eu realmente era. Até então, em nome daquele amor, daquela paixão insana, eu havia me escondido. Tinha guardado para mim toda essência daquilo que eu sempre fui e não poderia mostrar a ela, nem a ninguém. Não sei o leitor acredita em vampiros, lobisomens, monstros do pântano ou mitos semelhantes. Se você é fã desse tipo de leitura talvez tenha se empolgado agora, achando que finalmente vai ler algo interessante. Se você é leitor de romances ou de qualquer outro tipo de literatura e não acredita nessas criaturas, deve estar pensando: perdi meu tempo lendo mais uma baboseira. A bem da verdade você talvez tenha realmente perdido seu tempo lendo uma baboseira, mas não é o caso de acreditar ou não nessas criaturas, pois não sou nenhuma delas. Ou talvez seja um pouco de cada. Naquela noite de Natal, antes mesmo da meia-noite, peguei o meu carro e parti. A cada maldito quilômetro que nos separava, eu pesava os prós e os contras daquilo que estava planejando fazer. A Lua cheia iluminando a noite me trazia fome. Fome de carne humana. O vento gelado que entrava no carro por uma fresta na janela alimentava minha sede por sangue. O amor eterno que eu jurei a ela, aos poucos se desenhava em minha mente com outra roupagem. Ele poderia se transformar em realidade. Mortos. Nós dois. Mortos. Eternamente lado a lado. Tentei controlar meus instintos, mas a cada lembrança de tudo aquilo que eu já tinha passado por ela, eles se tornavam ainda mais fortes. Já estava ficando irreconhecível. Olhei pelo retrovisor e meu rosto estava quase totalmente tomado por mim mesmo. Por aquilo que sempre fui. Na entrada de uma cidadezinha na beira da estrada, uma puta levantou a saia. Parei o carro. Ela era simplesmente horrível. Mas quando estamos com muita fome qualquer carne tem o mesmo gosto e nem sempre o prato precisa ter uma apresentação agradável aos olhos. Cerca de dez quilômetros depois da cidade, eu
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parei o carro e joguei o seu corpo no mato. Para uma mulher tão feia, ela até que tinha seios muito bonitos... E bem gostosos, literalmente falando. Quando passei em frente ao posto policial tive medo de ser parado. Não teria como explicar o sangue no banco do passageiro e também em minhas roupas. E muito menos aquele mamilo que acabará de ver sobre o painel do carro – não consegui mastigar. Parecia chiclete. Não fui parado e segui meu caminho, disposto a por um fim em tudo, para iniciar novamente juntos, sem nada mais que pudesse atrapalhar os meus sonhos. Sim, os meus. Não queria mais viver os sonhos de outra pessoa. Era a minha hora e eu passaria por cima de tudo e de todos para realizar a minha vontade. Parei num posto de gasolina para ir ao banheiro e tentar esfriar a cabeça com um pouco de água fria na nuca, pois eu já não estava tendo controle sobre meus reflexos ao dirigir. Mas o que aconteceu ali naquele lugar foi algo que chocou até a mim mesmo. Não consegui me conter ao ver aquele cachorrinho peludo, tão simpático e desprotegido. As pessoas ao redor gritavam revoltadas. Mulheres enojadas saíram de perto. Outras vomitaram sobre seus lanches e refrigerantes. Eu ria. Eu gargalhava ao despedaçar aquele bichinho tão inocente com as minhas próprias mãos. Ah, como foi excitante fazer aquilo. Talvez nem tanto quanto foi devorar os seios daquela puta, mas ali eu tinha platéia. Eu era o centro das atenções. Era o ator principal e não somente um coadjuvante. Quando dois homens vieram em minha direção com uma barra de ferro nas mãos, mostrei minhas garras. Afiadas e sujas de sangue. Um deles desistiu da investida. O outro, um tolo... Idiota do caralho, me fez matar novamente. Se eu não estivesse ainda com o estômago cheio da refeição na estrada, eu teria comido um pedacinho das tripas que lhe arranquei. Mas minha mãe havia me ensinado que comer por gula era pecado. Resolvi voltar para o carro e partir, como se nada tivesse acontecido. Caminhei tranquilamente, pedi licença a uma senhora que estava perto da porta e entrei. Ouvi gritos por todos os lados, mas eu atingi um nível tão grande de êxtase que não me permitia distinguir as palavras. Soavam como blá blá blá e eu girei a chave na ignição. Quando engatei a ré e olhei pelo retrovisor, a imagem daquele carro da polícia estacionado ali atrás me fez sorrir. Eu pensei no quanto eu fui estúpido e distraído. Não tinha visto a viatura antes. E muito menos os policiais armados na frente do meu carro. Um deles ainda estava com a boca cheia, mastigando o seu pão com mortadela, enquanto mirava a minha cabeça. Sim, eu vi um pedacinho da mortadela no canto da boca. É... Eu sei. Difícil acreditar que no meio dessa confusão toda eu me ateria a esses pequenos detalhes, mas eu sou assim.
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Segurando o volante e olhando minhas mãos, pensei nela. Pensei novamente que eu a amava demais. E que eu não tinha o direito de privá-la de seus sonhos. Era hora de desistir. Lembrei de seus beijos, do seu corpo nu sobre o meu. Olhei ao redor. Estava cercado de pessoas revoltadas e quatro policiais armados. Eu poderia me entregar. Ser preso e viver pensando nela o resto da vida. Mas era Natal... Então eu me dei um presente especial. Levantei o dedo do meio na direção do policial com a escopeta, troquei de marcha e acelerei o carro na sua direção. Não sei ao certo se eu o esmaguei primeiro contra a parede, ou se ele atirou antes. Ele quebrou as pernas. Nada demais. Eu? Bem... Eu estou livre. Caminhando pela estrada, sem pressa, sem rumo. Brincando com um pedacinho de osso do meu crânio, que peguei no chão no posto de gasolina. Caiu quando os caras colocaram meu corpo no rabecão, junto com a sacolinha com os pedaços do meu cérebro e rosto. Ela agora vai seguir o seu caminho e ser feliz. E eu vou vivendo essa nova vida, cheia de novidades e mistérios. A cada quilômetro eu vivo o meu castigo. A cada cem passos eu me transporto daquilo que vocês chamam de inferno até as lembranças que me fizeram feliz ao lado dela. Depois retorno ao inferno com um sorriso no rosto, certo de que vou cumprir minha promessa, de amá-la eternamente. Piegas, não?
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Nao Sou um Monstro Ela me achou em meio aos livros. Numa tarde de um dia qualquer, se aproximou de mim. Reconheceu-me de uma publicação. Escrevo. Faço das palavras e frases, colchas de retalhos não coloridas. Tons de cinza e pedaços negros de tecidos, feitos de fios de imaginação. Sangue e espíritos sempre foram minhas preferências, embora não me faça de rogado diante de qualquer tema. Pode parecer a princípio, que eu seja convencido ou que “esteja me achando”, mas garanto-lhes que não se trata disso. Apenas não tenho medo das escritas. E somente das escritas. No começo fui encantado pelas mesmas virtudes ou dons. As palavras. E talvez não há ninguém melhor que ela, para proferi-las. Seja falada ou escrita, embora sua naturalidade com as letras jogadas em meios literários seja muito mais destacada. Teus olhos chegaram até mim com um brilho de novidade. Com ar de encanto e descoberta. A voz trouxe um tom de maturidade. Em pouco tempo estava em teu colo. As tardes de caminhadas no parque nos inspiravam a desenhar os mais belos poemas. Enquanto que nas manhãs de passeios de barco, ao som das cores do mar, rabiscávamos o pudor, sobrepondo-o com as mais devassas fantasias sexuais. Mas em pouco tempo as coisas foram tomando outra forma. Aquela mulher quase perfeita mostrou teu corpo frio. Tuas mãos tocavam minha nuca com a brancura do pólo norte. Mantinha-se distante por vezes, a ponto de não me ver à sua frente. Meu sorriso ardia. As roupas se soltavam ao vento. A via nua de preconceitos, mas também de culpas. Mas eu não era visto por ela da mesma forma. Em alguns momentos, seu olhar sobre mim era de estudo. Teses. Então aconteceu. Não sei como, mas um dia acordei preso a certas correntes. Meu corpo jogado em um calabouço de estranhas sensações. De um lado o característico cenário de um lugar como esses: podridão, escuridão e umidade. O ar pesado da tortura do tempo invadia minhas narinas, enchendo meus pulmões de bactérias. Atrás de mim, um ambiente puro. Paredes pintadas de um verde claro quase balsâmico. Uma brisa fresca batendo em meus cabelos e costas, trazendo um pouco de esperança. Se movesse minha cabeça levemente para a direita, era capaz de escutar Brahms. Sem muita precisão, poderia dizer que era um concerto para violinos. Voltando-me novamente para frente, a composição era permeada pelo som de gotas e ratos.
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Fui julgado. Ou talvez justamente o contrário. Não tive veredicto. Mas ainda assim era estudado. Observado. Monstro. Em poucos dias depois de estar nesse lugar, vi meus pés sendo cobertos por escamas. As unhas enegrecendo e tornando-se afiadas. O mesmo acontecia com minhas pernas, aos poucos. Minhas coxas ainda não tinham sido tomadas por tal revestimento. Ainda sentia frio em meu corpo nu. Certa noite, minha garganta começou a coçar. Tentei pigarrear. Tentei ouvir minha voz e apenas sons guturais brotaram de dentro de mim. Senti meus lábios enrijecerem. Me veio em mente um de meus contos, onde um homem lagarto era um terrível raptor de mulheres, afim de que elas lhe servissem como parideiras de sua prole. Mas ali eu era o prisioneiro. Na manhã seguinte, confirmei quase sem espanto, a minha condição. O sol iluminava parte de meu tétrico lar provisório e abaixo de mim (comentei que estava pendurado com as mãos presas?), o reflexo na poça de urina me mostrou no que me transformei. Em algumas poucas horas no dia, sentia sua presença atrás de mim. Como se ela mesma tocasse os violinos. Todos ao mesmo tempo. Remédio para minhas dores. Lavagem cerebral para que não me revoltasse. “Não sou um monstro...” – eu dizia com certa carga de amargura na voz. “Nunca disse que era” – a resposta chegava numa voz doce, carregada de dúvidas. Fim de algumas semanas. Senti meu corpo mais forte. Estava tomado por completo por essa criatura que me veste. Foi quando ela ficou diante de mim, na parte suja. Pegou uma enorme chave enferrujada e abriu os cadeados. “Você está livre. Não preciso mais observá-lo. Não vejo porque ficar mais com você.” “Agora que me tornei... isso?” O silêncio calou os violinos. Exterminou os ratos e tapou as goteiras. Nosso olhar se cruzou, entornando lágrimas e trevas. “Eu não era um monstro”, eu repetia baixinho. “Nunca disse que era” – vinha novamente a mesma
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resposta automática. E simplesmente, como se desliga um aparelho eletrônico, ela virou as costas, pediu desculpas e disse adeus. Meus braços ainda formigavam. Senti o gelado líquido que me tomava as veias. Minha língua, agora bi-partida, sentia no ar o perfume de sua inocente maldade. Antes que a porta se fechasse, ela olhou para trás. Sorriu suas lágrimas. No final do corredor, pude ver através da fresta da porta, outro homem. Ele carregava arrependimentos. Levava palavras fúteis e decoradas. Era seu retorno. Pedi um último olhar. “Eu não sou um monstro... Abrace-me!” Violinos. A brisa. Minhas garras. Bebi seu sangue até a última gota. Sempre fui um psicopata das letras.
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Motivos Para Esquecer No espelho do banheiro estava escrito com batom: Eu sempre te amei. Seus olhos vidrados na frase, nem se davam conta da sua própria imagem refletida. Não conseguia perceber seus olhos fundos, a cor pálida, cabelos despenteados e um olhar perdido no passado. Estava parada ali há horas. Em cada letra, em cada pedaço coberto pelo batom, existia um momento de alegria, um instante de tristeza, passagens rápidas por fases de sua vida juntos. Do dia em que se conheceram até o dia anterior. O único dia de todos, que ela queria apagar da memória. Talvez fosse isso que ela estivesse tentando fazer naquele momento. Mas tentava em vão... Uma briga de casal. Uma briga idiota como outra qualquer, como todos os casais. Dessas incontáveis discussões que não levam a lugar nenhum e que sempre retornam de tempos em tempos. Um bom dia, um beijo e uma brincadeira inocente. Aquele dia teria começado como todos os outros dias perfeitos que eles sempre tiveram, não fosse um detalhe. Um único e pequeno detalhe: a perda do controle. Sua cabeça agora começava a doer. Ela não se lembrava mais do motivo da briga. Tentou relembrar todos os passos daquele dia, mas algo parece ter bloqueado sua mente. Lembrou de tudo que aconteceu desde que acordou naquela manhã. Lembrou-se de gritos, portas batendo, ironias, lágrimas... Mas o motivo de tudo aquilo ter acontecido se perdeu. Por um instante tirou os olhos do espelho, olhou para o quarto e viu as colchas jogadas ao chão. O lençol fora do lugar e roupas jogadas pelo quarto. Sorriu ao se lembrar de como ele a pegou na cama, após terem feito amor, fazendo muitas cócegas em sua barriga. Perto da porta, ao lado da cômoda, ela viu o porta-retratos caído, com o vidro quebrado. Era sua foto de casamento. Caiu quando ele derrubou a porta do quarto e ela foi lançada sobre a cômoda. E a porta nem estava trancada na hora. Por algum motivo, ele deve ter pensado que estava e já subiu as escadas com o intuito de entrar a qualquer custo. Seus olhos estavam vermelhos como nunca haviam estado antes. Ele arfava e chegava mesmo a babar pelos cantos da boca. Ela nunca teve tanto medo dele como na noite anterior. Depois de derrubar a porta, ele ficou olhando-a por alguns segundos. Ela chorava em silêncio. Abraçando suas próprias pernas, se encolheu no canto do quarto, quase se enfiando debaixo da cama. Ele estava muito nervoso, totalmente fora de controle. Suas garras estavam completamente esticadas e suas veias do pescoço pulsavam de tal maneira que era
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possível ver de longe os movimentos e era quase audível o som do sangue que por ali corria. Ela voltou seu olhar para o espelho e novamente leu: Eu sempre te amei. Ainda não conseguia se lembrar porque a briga começou. Abaixou a cabeça, deixou seu corpo escorregar pelos azulejos e ficou de cócoras no chão, segurando os cabelos e deixando que as lágrimas novamente corressem por seu rosto, enquanto lembrava os últimos passos de seu amado. Ele estava incontrolável daquela vez. Ninguém conseguiria detê-lo... A não ser ele mesmo. Depois de quebrar a TV com as próprias mãos, ele arrancou a porta do guarda-roupa, abriu uma de suas gavetas e pegou um revólver. Tirou todas as balas. Olhou fixamente para ela. A voz não saia e ela não conseguia implorar que ele não fizesse aquilo. Tentava mover-se, sair dali daquele canto, pular em cima dele para tomar a arma, mas era como se ele mesmo estivesse controlando seu corpo. Era o que ele queria. Que ela ficasse paralisada. Depois de jogar várias roupas pro alto, encontrou o que estava procurando. Ela ainda não tinha tido coragem de olhar. Desde que tudo aconteceu, ela não conseguiu olhar para o lado, perto do vaso sanitário. Então tomou coragem, respirou fundo primeiro olhando para o teto e foi lentamente virando a cabeça em direção ao corpo caído no chão, agora já sob a forma humana. Sem vida, sem raiva, sem ódio, sem medo. A bala de prata atravessou seu peito e conteve sua fúria. Ele preferiu não machucá-la.
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Nao Estou Sozinho no Escuro Falta energia há algumas horas. Já anoiteceu e o céu está nublado. Chovia até agora há pouco e ainda ouço os carros passando sobre o asfalto molhado da avenida. As velas acabaram e não me resta outra coisa a não ser me deitar e aproveitar os poucos minutos que ainda me restam de bateria no notebook. Não fosse pela luz da tela, estaria completamente escuro aqui no quarto. Ouço o som macabro do vento nas arestas da janela. O som dos carros começa a diminuir e estou com uma sensação estranha. Acho que não estou sozinho aqui dentro. Sinto a presença de alguém. Eu percebo que alguém entrou na minha casa. Mas não escutei nenhum barulho de porta, chaves ou mesmo de janela se abrindo. O vento uivou mais forte dessa vez e escutei o barulho de uma latinha rolando na rua. Um carro passa... Tem alguém aqui dentro. Tento me mexer, mas não consigo. Minhas pernas não se movem. Escrevo para tentar disfarçar uma pequena lasquinha de medo que começo a sentir. A sensação de que alguém se aproxima está aumentando. Parece que está no quarto agora... Meu Deus! Sinto a cama afundando ao meu lado. Como se alguém estivesse deitado comigo... A lasquinha de medo agora é um bom pedaço incômodo de pavor. Ainda não consigo mexer minhas pernas e tenho medo de olhar pro lado. No entanto não consigo eliminar as imagens periféricas. Pelo canto do meu olho, eu vejo uma sombra se aproximando de meu ouvido... Meu Deus!!! Estou com medo! Com muito medo... Não consigo falar ou gritar. Só me resta escrever... A sombra... Agora começa a tomar forma. Não vou mover meu rosto... Não vou. Não quero! Mas... Não adianta. Vejo um olho... A luminosidade da tela do notebook está refletindo no rosto feminino que vejo ao meu lado. Ela tem olhos negros... Minha Nossa!!! Eu senti... Por Deus, eu juro que senti o toque gelado de um nariz em meu rosto. Estou tremendo... Tenho que voltar várias vezes para corrigir o que escrevo. Meus dedos estão... Meu Deus! A sua mão... Ela vai me segurar. Tem unhas compridas, parecem pintadas de preto... Não, é roxo... Deu pra ver agor... Ela me tocou... Meu coração está disparado. Estou tremendo cada vez mais, mas não consigo parar de escrever. Socorro... Alguém... Me ajudem... Ela beijou meu rosto. Um beijo frio, muito frio. Me arrepiei por inteiro. Acho que... Acho que vou me virar. Espere... Agora que reparei que... Minha mãe do céu! Não tem nenhum corpo ao meu lado... Na posição em que está o rosto e a mão, tinha que
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dar para ver o corpo deitado e eu o sinto afundando a cama perto de meus pés também. O que será isso meu Deus? Vou me virar...
Esse texto estava na tela do computador de um homem encontrado morto em sua casa, por volta das 21:20h do sábado, dia 18 de outubro de 2008. Seu corpo estava completamente seco. Sem água, sem sangue... Nada. Apenas pele e osso. Curiosamente, os olhos estavam arregalados. Os legistas não encontraram nenhuma explicação lógica para o acontecido. O lençol estava com pequenos rasgados, causados muito provavelmente pelas unhas do homem, que deveria estar apavorado no momento em que se deparou com essa... “coisa” descrita por ele. A polícia não encontrou sinais de arrombamento na casa. A porta estava trancada, as janelas fechadas e os cachorros no quintal, quase mortos de fome e sede. Um fato intrigante é que o homem nos conta que estava sem energia em sua casa e que ele estava utilizando as baterias do notebook. Mas os vizinhos dizem que não faltou luz naquele dia. E quando entramos em seu quarto, o computador estava ligado, usando a tomada como fonte de energia. Conferimos na companhia de luz e não houve registro de chamada ou de reparo na rede elétrica da rua, ou mesmo da casa.
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Tabuas e Potes de Vidro “I Never Dreamed” do “Black Label Society” toca agora... O tempo nublado e ao mesmo tempo abafado remexe minha memória e sinto os pulsos cortados. O sangue escorria de meus braços naquela noite em que resolvi deixar que o amor, sentimento altamente destrutivo, morresse dentro de meus poros. As noites de depravação e tortura que se seguiram então são hoje pinturas abstratas escorrendo tinta pelas paredes do meu ego. As vitimas que fiz, ou melhor que tomei para mim, foram as mais belas insanidades de tons rubros. Meu estranho ritual de abrir as ataduras e fazer correr novamente meu sangue sobre os cadáveres era a sensação mais próxima que eu tinha em relação a prazer... “Fire it up”... ainda “Black Label Society”... Essas guitarras mais roucas e pesadas me lembram o êxtase com que eu arrancava os corações e olhos daquelas pessoas. Sem olhos para se encantarem pelo físico e sem o coração para sentir aquela maldita palpitação que nos faz tremer o corpo quando achamos que encontramos a pessoa certa, não haveria mais amor. Sem amor eles não se destruiriam. Sei que isso parece contraditório, mas eu os libertei de um erro. O maior de todos... A mistura ficou até interessante em minhas estantes. Olhos azuis, verdes, castanhos e até vermelhos (obviamente com lentes coloridas que não quis tirar) – jovenzinhos metidos a vampirinhos da moda. Os corações estão etiquetados com os nomes das pessoas por quem se apaixonaram. Procuro organizá-los em ordem alfabética, pois sempre fui muito chata com essas coisas. Mas não tenho identificação para os olhos. Não sei porque, mas nunca quis. Talvez porque tenho medo de me apaixonar. Talvez porque eu prefira vê-los apenas como pequenas bolinhas coloridas. Tive que parar por um tempo. A polícia chegou perto de me capturar quando comecei a usar a internet para marcar encontros virtuais. Mas tenho sede. Tenho fome. Me falta prazer e preciso voltar às ruas. As pessoas precisam de salvação. Não usarei mais a internet. Enviei alguns currículos e fui aprovada em alguns lugares. Começarei por uma conceituada empresa que oferece preparativos para o mais feliz dia da vida de dois pombinhos apaixonados. Terei em minhas mãos todos os dados necessários. Endereços, horários de ensaios... “Suicide Messiah”, acho que não preciso mais falar sobre a banda. Agora preciso ir. Tenho que comprar mais tábuas para novas estantes e bonitos potes de vidro que vi numa feirinha de artesanato. Logo minha coleção
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aumentará e ainda preciso dar um jeito de roubar mais éter do hospital de meu pai... “Rasteje através das chamas que comem sua carne. Afogado nas águas que conhecem você melhor. Pode entrar eu tenho esperado por você aqui. Nos seus joelhos, onde você deve rastejar. Voando tão alto você nunca vai cair. Pode entrar nos esperávamos você aqui. Curve-se, você fez sua escolha. Ele nunca da, ele sempre pega. A queima elétrica que alimenta o fogo. É apenas seu messias suicida...” (Black label society)
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O Desertor Lucius, como era conhecido entre os vampiros, era na verdade Mário Lúcio. Tinha 34 anos quando foi mordido por seu próprio tio Demétrius, que optou por manter seu nome mesmo depois de se tornar um dos mais terríveis vampiros de sua geração. Lucius sempre teve idéias revolucionárias quando ainda era um simples funcionário público. Vivia se metendo em confusões com sindicatos e associações. E esse ímpeto rebelde não mudou depois que deixou de ser um mero mortal. Há algumas décadas vinha amadurecendo a idéia de que a raça de sanguinários – como ele mesmo gostava de denominar seus semelhantes – deveria ser exterminada, ou no mínimo levada a quase extinção. Achava que a matança e a “contaminação” já haviam fugido ao controle dos mestres há muito tempo. Encontrar vampiros que partilhassem de suas idéias não era tarefa fácil. Tentou por alguns anos arrebanhar seguidores, mas acabava por ter que destruí-los quando percebia que estavam a ponto de denunciá-lo. Desistiu do suposto exército rebelde e passou a agir sozinho, usando como armas fatais: traição e emboscadas. Era mestre na arte da conversa e dissimulação. Mais do que a grande maioria dos vampiros. Sempre foi fácil atrair suas vítimas para a morte definitiva. Desde que começaram a correr boatos sobre um traidor entre os vampiros, ele não teve mais residência fixa. Tinha medo que alguma eventual testemunha ocular não percebida por ele pudesse por tudo a perder. Se escondia cada semana em um lugar diferente. A metrópole era grande o suficiente para abrigá-lo em dezenas, talvez centenas de porões, sótãos, depósitos e buracos imundos, sem que houvesse necessidade de repetir o mesmo local. Dois dias atrás, num final de tarde, ele ouvira vozes no galpão onde estava morando provisoriamente. Homens falavam em reativar a fábrica. Escondido num banheiro escuro, ele decidiu que era hora de partir. Iria para um albergue. Precisava de um banho, que há dias não tomava. Apesar de sua rebeldia contra a própria espécie, era obrigado a se alimentar, como qualquer vampiro. Tinha uma peculiar visão do que era fazer justiça. Escolhia presídios ou locais onde poderia encontrar criminosos de toda estirpe. Se for para matar em nome de sua sobrevivência, que fossem sacrificados os piores indivíduos da espécie humana. Depois de satisfazer sua sede, ele os decapitava e incinerava os corpos, evitando assim que se tornassem novos sanguinários. E lá estava ele, admirando a tocha humana diante de seus olhos, enquanto com um lenço, limpava os cantos da boca. Um vento gelado entrava pelo basculante daquele barraco imundo, cheirando a mofo e carne queimada. Seus cabelos compridos pareciam dançar um balé desencontrado, no ritmo do sopro frio do vento em suas costas e do
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bafo quente do fogo à sua frente. Quando percebeu as chamas lambendo aquilo que um dia fora um par de cortinas na janela, decidiu ir embora. Que o fogo consumisse tudo. Pouco lhe importava. Antes de sair, ainda pegou alguns papelotes de droga que estavam sobre a mesa. Um pouco para uso próprio. Um pouco para servir de isca. Nessa mesma noite, antes de sair do albergue para sua refeição rápida, pegou em sua mochila uma caixinha de madeira onde guardava algumas recordações. Na verdade, era apenas um disfarce para o seu registro de mortos. Fazia pequenas marcas com canivete, no interior da caixa e também em sua tampa. Sua memória não era boa para números. Então registrava na tampa, através de uma combinação de riscos horizontais e verticais, o número de vampiros destruídos. As iniciais de seus nomes eram marcadas no interior da caixa. Com o passar dos anos, ficou tão confiante no sucesso de suas missões quase semanais, que passara a escrever as iniciais e a aumentar a contagem de mortos antes mesmo de iniciar a abordagem das futuras vítimas. Abriu seu canivete e fez a ducentésima trigésima quarta marca na tampa. No interior da caixa, fez um minúsculo “D”. Era hora de acertar as contas com o titio. Sexta-feira. Demétrius com certeza estaria em uma das danceterias da área nobre da cidade. Só se contentava com mulheres lindas e de preferência novinhas. Fazia delas suas escravas sexuais até se cansar, o que se dava geralmente depois de duas ou três semanas. Depois disso as abandonava a própria sorte. Lucius sabia que seu tio não era presa fácil como tantos idiotas que ele havia despachado para o inferno. A aproximação deveria ser feita com muito cuidado e paciência. Já não o via há meses. Não poderia simplesmente aparecer do nada e lhe oferecer drogas ou alguma preciosa informação, argumentos utilizados por ele para atrair suas vítimas para as armadilhas. Não seria difícil encontrar seu tio. Bastava prestar a atenção em carros esporte importados, rodeados de vampiras patricinhas. Em poucos minutos de caminhada Lucius viu um BMW conversível com três mulheres ao redor e uma em seu interior. Era Karime. Uma das favoritas de Demétrius. Das que ele nunca descartava. Atravessou a rua com olhar fixo na garota, que imediatamente percebeu estar sendo observada e voltou-se para Lucius. — Karime... — Lucius, você por aqui. Anda sumido rapaz.
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— É... Andava meio entediado com essa coisa de badalações, festas, barulho... Lucius detestava música eletrônica. Achava que não passava de um monte de barulhinhos irritantes com uma batida maçante para acompanhar. Preferia os clássicos. Passando a unha do dedo indicador no rosto de Lucius, com uma leve pressão, Karime questionou se Demétrius sabia que ele estava de volta. — Acredito que não, mas o que há de errado? Não posso mais passear pelo seu território? Rever a... Família? – perguntou com ironia. Karime se ajoelhou sobre o banco do passageiro e se aproximou de Lucius, parado ao lado da porta. Os olhos vidrados da sedutora sanguinária o encararam e seus lábios quase tocaram os dele. Vagarosamente, passando a ponta do nariz em seu rosto, ela chegou até seu ouvido esquerdo e sussurrou: — Por que não pergunta diretamente a ele? Ela se afastou, olhou de soslaio para sua direita, dando a entender que Demétrius estava se aproximando. Ficou parada, encarando Lucius. Ela o devorava com os olhos. Ele não se fez de rogado e também demorou a desviar seu olhar. Notou que a cada década ela parecia estar mais linda e sensual. Porém algo em seu olhar dizia que ela estava diferente. Não era a mesma Karime de anos antes. Tinha algo de perverso em seu doce tom de voz. — Ora vejam só! Meu querido sobrinho! — Demétrius... – Lucius meneou a cabeça. — Meu Deus... Opa... Força de expressão – Demétrius riu sozinho de sua piada — Quanta formalidade! Me chame de tio, ora essa. — Você sabe que não sou dado a esse tipo de tratamento – disse Lucius, tentando disfarçar com um sorriso a sinceridade com que falava aquilo. Depois de uma gargalhada que ecoou pelo quarteirão, Demétrius chamou Lucius para a sua casa. Iam dar uma festa para receber as novas amigas que trazia com ele. No carro foram Demétrius, Karime, Lucius e as duas novas vítimas de seu tio. Na mansão a festa já havia começado bem antes deles chegarem. Mulheres
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seminuas pulando de colo em colo, rindo e bebendo. Duas ou três trepavam ali mesmo no salão principal. Demétrius passou por uma dessas, puxou-a pelos cabelos, arrancando-a de cima do homem que a penetrava. — Eu não lhe disse que essa noite você deveria se guardar para as minhas novas amigas? — Eu só estav... — Estava porra nenhuma! Já para cima e leve essas duas com você. Vá para o seu quarto, pois o meu receberá um convidado especial. E não vá se servir antes de mim... Não ouse! As três seguiram até o fim do salão e subiram a grande escadaria forrada com tapetes cor de vinho. Demétrius virou-se pra Lucius e quase sussurrando lhe disse ao pé do ouvido: — Não sei o que diabos você está querendo e por que resolveu aparecer depois de tanto tempo. Depois conversaremos melhor. Só quero que saiba que não sou nenhum idiota. Por enquanto, divirta-se... E olhando para Karime, Demétrius completou: — Com quem quiser. Uma ponta afiada de gelo parecia ter corrido pela espinha de Lucius. Não gostou daquilo. Seria mais difícil do que ele pensara. Seu tio já se armara todo. Talvez o melhor caminho seria aproveitar a primeira chance e agir de surpresa. Para isso usaria Karime. Sabia das perversões de seu tio. Se fosse para cama com ela, certamente mais tarde Demétrius apareceria para a “festa” e provavelmente muito bêbado. Era sua chance. Já no quarto, Karime serviu um pouco de Absinto e Lucius provou o delicioso corpo daquela a quem sempre desejou. Nem o absinto era capaz de lhe dar tanto prazer e excitação quanto aquela boca macia, com dentes perigosamente afiados. Por alguns minutos ele desejou que Demétrius não mais aparecesse no quarto. Queria que aquela noite fosse eterna. Cerca de uma hora depois, como previsto por Lucius, Demétrius apareceu no quarto. Karime estava sentada na beirada da cama, nua e ainda suada. Em seu colo, o notebook aberto. Demétrius se aproximou para ler o que ela escrevia. Na tela, a palavra eliminado foi surgindo aos poucos, ao lado do nome de Lucius. Em seguida
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um clique e a confirmação: Documento “Lista dos Prováveis Traidores” salvo com sucesso. Ao lado da cama, perto da cômoda, a cabeça de Lucius esbarrava na calcinha de Karime. Antes de sair, Demétrius beijou-a na testa e resmungou: — É realmente uma pena... Eu gostava desse lençol.
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A Torneira Tudo começou com a torneira da pia da cozinha. Quando a fechou, um filete de água insistiu em sair. Ele então girou mais forte a torneira e escutou um estalo. Ela abriu novamente jorrando a água com toda força. Novamente ele a fechou e dessa vez tomou mais cuidado, usando de menos força para fechá-la. Outra vez o filete de água. Bem devagar, ele girou a torneira até o final. Cessou. Naquele dia recebeu a notícia de que um dinheiro que deveria receber não havia sido depositado. Tentou entrar em contato com a pessoa que lhe devia e não conseguiu. Também naquele dia sentiu um aperto no peito ao fazer amor com sua namorada. Pareceu-lhe que aquela era uma das últimas vezes que se encontrariam. Não sabia porque, mas algo dentro dele tentava o preparar para o fim daquele romance. Chegou a comentar por alto com ela, que sentia algo estranho. Um pressentimento ruim. Ela, cansada de ouvir essas coisas vindas dele, com sua habitual falta de paciência e estupidez iniciou uma discussão sobre os constantes pensamentos negativos dele. Inutilmente ele tentava explicar a ela, que era algo muito forte e que ele não conseguia controlar essas emoções. Bateram portas, saíram pisando duro e se deitaram, virados de costas, um para o outro. No dia seguinte ele desceu para fazer o café e encontrou a torneira da cozinha pingando. Enquanto a água fervia, tentou arrumar a torneira. Desparafusou, olhou seu mecanismo e acabou por assumir que não entendia muito daquilo. Colocou tudo novamente no lugar, reapertando fortemente o parafuso. Enquanto estava ali a torneira não mais pingou. Ainda sentia aquele aperto no peito. Aquele seria o dia da partida de sua namorada, que morava em outra cidade e eles demorariam em se encontrar novamente. Subiu e a viu ainda dormindo. Não quis usar o banheiro do quarto para não acordá-la. Fechou a porta do quarto e foi no outro banheiro. Lavou as mãos e fechou bem a torneira, confundindo-a momentaneamente com a da cozinha. Entrou em seu escritório e foi ler notícias na internet. Perto da hora do almoço, resolveu descer para preparar a comida. Quando passou pelo banheiro ouviu um barulho. Notou a torneira aberta, desperdiçando enorme quantidade de água. Ficou nervoso, pois calculava que tinha ficado ao menos duas horas sentado em frente ao computador e por todo esse tempo a água foi desperdiçada. Fechou a torneira, abriu vagarosamente a porta do quarto para ver se ela tinha acordado. Ainda não. Fechou a porta e começou a descer as escadas. À sua cabeça veio a imagem dele fechando a torneira do banheiro. Ele tinha certeza que havia feito.
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Quando o almoço estava quase pronto ela desceu. Deu-lhe um abraço terno e carinhoso. Pediu desculpas pela discussão do dia anterior e o beijou. Ao se separarem, ela olhou para a pia e perguntou ironicamente se ele era sócio da companhia de água e esgoto da cidade. Ao olhar na mesma direção que ela, notou a torneira com um filete de água. Aquilo já começava a irritá-lo. Durante a tarde os dois revesaram momentos de brigas e juras de amor, como já vinha acontecendo há alguns dias. A noite ele a levou até a rodoviária e se despediram de forma diferente das outras vezes. Ele não quis ficar para ver o ônibus partir e ela não fez cara de que estava se importando com isso. Quando chegou em casa subiu e foi direto para o seu quarto. Quis tomar outro banho. Ao entrar, notou a torneira semi-aberta e imediatamente ironizou em pensamento, que ela o havia criticado pela torneira da cozinha e havia deixado a do banheiro aberta. Mas quanto estava sob o chuveiro, um pensamento lhe veio em mente. Três torneiras. Duas nos banheiros e uma na pia, esquecidas abertas, com defeito, fechadas e misteriosamente abertas novamente. Coincidência? Pela manhã, na segunda-feira, ele já desceu as escadas com a roupa de cama nas mãos. Passava da hora de lavar. Preparou tudo e abriu a torneira da pia da área de serviço para que pudesse encher a máquina de lavar. Notou que havia um vazamento por cima da torneira, fazendo com que parte da água saísse por ali, ao invés de descer pela mangueira. Mais uma torneira. Coçou a cabeça nervosamente, esfregou as mãos no rosto e foi fazer um café. Notou que a torneira da pia da cozinha havia piorado. Por mais que tentasse fechá-la com cuidado, ela continuava pingando num ritmo um pouco mais rápido que no dia anterior. Ligou para o homem que lhe devia. Ouviu uma série de desculpas e a promessa que no dia seguinte teria o seu dinheiro. No mesmo dia, durante a tarde, bateu o carro. Estava com ele apenas há três dias. Era um carro mais velho, porém muito conservado e o chateou bastante ver o estrago causado. Os dias foram passando e as coisas piorando na vida dele. O homem ainda não havia mandado o seu dinheiro, as coisas no trabalho não estavam nada bem, a empresa dele enfrentava sérios problemas financeiros e ele se encontrava cada dia mais desanimado para trabalhar. Não conseguia render. Não tinha mais concentração no que fazia. Sua constante briga com a torneira da pia só não era maior que sua luta com a sua memória, pois todos os dias saia pensando em comprar outra torneira ou chamar alguém para arrumar aquela. Mas quanto retornava do trabalho, olhava para a pia e se percebia seu esquecimento em resolver aquele problema. Todos os dias. Sempre assim. E a torneira pingava cada vez mais.
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Num final de semana em que não precisava acordar cedo, ele despertou por volta de 9 horas da manhã. Entrou no banheiro e viu sua torneira aberta. Soltou um palavrão em voz alta e a fechou. Saiu do quarto, passou pelo outro banheiro e deu uma conferida na torneira. Estava fechada. Foi até o quintal colocar ração para os cachorros e viu o chão da área todo molhado. A torneira da máquina de lavar estava aberta e jorrando água por cima. Outro palavrão. Voltou para a cozinha e somente então notou que o pinga-pinga da pia havia aumentado consideravelmente. Quase arrancou os cabelos de tanta raiva. Imediatamente pegou a chave do carro e resolveu sair para comprar outra torneira, mas o toque do telefone o deteve. Era seu sócio. Numa conversa rápida e direta, teve a notícia de que eles teriam que fechar a empresa. Estava tudo acabado. Desolado, desistiu de sair e se jogou no sofá chorando de nervoso. Dois dias antes havia terminado o namoro por telefone. O homem que o devia sumiu e não atendia mais o celular. A empresa havia falido. Desejou morrer. Desejou de verdade, de coração. De repente o silêncio tomou conta de tudo. Não havia mais o barulho dos carros na avenida. Os vizinhos não faziam mais a algazarra de sempre. Os cachorros estavam quietos e ele não ouvia mais o som da serra elétrica da madeireira ao lado. Por outro lado, mais nítido do que nunca e bem mais alto, ele começou a ouvir o pinga-pinga na torneira da pia. Aquele som parecia invadir sua cabeça. Teve a impressão que seu coração acompanhava o ritmo dos pingos caindo sobre a pia de aço inoxidável. Tentou se levantar, mas algo o segurou. O barulho foi aumentando e ele fechou os olhos. Tentou gritar, mas sua voz não saiu. Colocou as mãos tapando as orelhas, tentando sem sucesso, fazer com que o som diminuísse. Olhou para o lado e notou a porta do lavabo aberta. De onde estava viu que a torneira estava aberta e jorrando água com muita força. Olhou para o chão da cozinha e viu que tudo estava inundado. Voltou novamente seu olhar para o lavabo e viu a água transbordando na pia. Das escadas que davam acesso ao segundo andar, começava a escorrer muita água, quase formando uma pequena cachoeira nos degraus. A sala começava a se parecer com uma piscina e ele não conseguia se mexer. O celular tocou. Viu pelo identificador que era sua namorada, ou ex, no caso. Tentou atender, mas sua voz não saia. Do outro lado ela tentava dizer que o amava e que estaria ao lado dele sempre. Pedia desculpas e queria tentar de novo. Mas ele só queria pedir socorro e não conseguia. O nível da água subiu rapidamente. Nervoso ele atirou o celular contra a parede e concentrou suas forças em suas pernas, tentando mais uma vez se levantar do sofá. Não conseguiu. Não entendia como aquela água toda estava entrando pela casa e muito menos compreendia por que ela não estava escapando pelas frestas das portas.
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A água já lhe cobria o peito e subia cada vez mais rápido. Tinha desejado morrer, mas agora o medo da morte lhe percorria o corpo. Sem conseguir se segurar, ele literalmente se borrou de pavor. Os olhos arregalados olhavam ainda incrédulos para água que já lhe cobria o queixo...
Parou de escrever... — Que droga! Odeio quando acontece isso. — O que foi amor? – perguntou sua esposa, desviando momentaneamente o olhar, do livro que lia. — Ah, estava tão empolgado aqui escrevendo um conto e justo perto da cena final, eu perdi o fio da meada. Não consigo finalizar. — Você está cansado querido. Descanse um pouco. Venha comigo tomar um bom banho e fazer amor. Está precisando relaxar. Tem enfrentado muitos problemas essa semana. Esqueça de tudo pelo menos hoje. Esqueça esse conto ai também e venha. Vamos! Fechou o notebook e com um sorriso concordou com sua esposa. Disse para ela se adiantar, porque ia apenas beber um pouco de água e já iria ao seu encontro no banho. Desceu as escadas ainda pensando em como terminaria o conto. Se o homem morreria afogado ou se escaparia. Seria um sonho ou ele realmente morreria daquela maneira bizarra em sua própria sala? Entrou na cozinha ainda absorto em seus pensamentos. Pegou o copo quase que automaticamente, sem ao menos perceber seus movimentos para abrir o armário. Abriu a geladeira, pegou a garrafa e ao começar a despejar a água no copo, olhou para a pia da cozinha. — Puta que o pariu! Esqueci de comprar a torneira de novo!
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Fantoches Há milênios venho intuindo meus escolhidos a fazerem o que eu bem entendo. Não sujo minhas mãos, pois não é preciso. Sempre tive quem fizesse isso por mim, ou até quem transferisse essa tarefa a terceiros, levando assim apenas a fama, o que para mim sempre foi uma ótima e deliciosa forma de me esconder. Enquanto recomeço minha escalada por essas rochas imundas, cheias de musgo e sangue, relembro algumas das mais belas atrocidades que provoquei direta ou indiretamente. Ah, como isso me dá um cruel sorriso de satisfação. Sinto meus poros arderem com a acidez do ar por onde passo agora, mas me deleito com essas lembranças. Poderia citar inúmeras passagens antes da era cristã, mas quero partir justamente dessa época, pois é minha preferida. A traição de Judas não se deu como esses tolos homens da igreja insistem em divulgar. O buraco era mais em baixo, mas de qualquer forma eu estava lá. Procurando uma forma de acabar com toda aquela politicagem que um dia dividiria os homens ainda mais. Mas quando percebi que não conseguiria, deixei as coisas seguirem conforme os tais desígnios de Deus. A única coisa que me restou foi aproveitar o ensejo e me divertir um pouco. Crucificações eram tão comuns naquela época. Eu só soprei algumas palavrinhas nos ouvidos das pessoas, para que caprichassem mais no sangue e na dor. Eu tinha plena convicção de que aquela coisa toda não poderia ter acabado daquele jeito. Mas hoje, se eu fosse um tolo cristão, daria graças ao senhor por não ter conseguido fazer o que pretendia. Se tivesse conseguido, teríamos menos conflitos religiosos pelo mundo. Meu fracasso foi uma vitória em longo prazo. Gargalho ao ver o nome de Deus ser usado para matar. Às vezes penso em como é injusta essa minha condição. Tendo tantos poderes de persuasão e facilidade de me locomover por onde quero na superfície, aqui sou obrigado a me submeter a todo esse esforço para chegar ao topo. O ambiente é até agradável, com todas essas almas perdidas e suas faces estúpidas, transbordando desespero. Mas tem hora que cansa. Voltando às minhas memórias e ainda citando o conflito religioso, acho que a melhor época foi durante as cruzadas. Ah, Urbano II... Grande cara. “Aos que morrerem em combate contra os pagãos muçulmanos, prometo a salvação de suas almas”. Pelas chamas do meu reino, quanta bobagem! Nunca me diverti tanto. Corpos mutilados, cabeças separadas dos corpos... Eu brincava de trocá-las de lugar. Era engraçado. Mouro com cabeça de cristão e vice-versa. Toda aquela baboseira de
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credos, raças e todo tipo de idiotice preconceituosa. Para nós, as almas são incolores e desprovidas de razão ou credo. Deliciava-me junto com meus comandados, entre os banhos de sangue e os gritos incessantes de espíritos errantes. Aos que tinham o privilégio de ver com nossos olhos, o cenário eram da mais pura beleza e desarmonia. Um mar de cadáveres e moscas. A podridão depois de alguns dias e as larvas se alimentando da carne, enquanto pateticamente alguns mortos tentavam reaver seus corpos. Deixávamos que sofressem essa dor por alguns dias, até que nós, ou aqueles que vestiam branco, os conduziam ao seu destino. Após cada massacre, continuávamos visitando o meu amigo Urbano II e seus sucessores. Não podíamos deixar que estúpidos servos de Deus tirassem nossas idéias das mentes daqueles que comandavam a tão poderosa igreja. Foi preciso ir e vir várias vezes. Revezávamos entre os campos de batalha e os aposentos das santidades. Soprávamos-lhes palavras e frases. Cuspíamos idéias sórdidas em seus pensamentos. A fama acabou por ficar com eles. Só queria e ainda quero, apenas o resultado. A fama é prejudicial. E por falar nela, meu grande e famoso amigo: Vlad III. Homem de coragem, bruto e com a maldade arraigada. Mas também precisou de uns pesadelos em seu leito para aceitar o meu jeito de brincar. A primeira vez que atravessou uma lança no corpo de um homem, Vlad se ajoelhou e orou ao seu Deus, implorando perdão. Dei-lhe logo um belo safanão para que deixasse de ser covarde. Em poucos dias ele já havia empalado e ordenado a matança de centenas de homens. Ganhou o apelido de “empalador” e depois ainda levou a fama de vampiro. Sou obrigado a rir... Diziam que ele gostava de sangue. Não era ele. Era eu quem bebia todo o sangue que escorria daqueles “palitinhos humanos”. Hummm... Ainda sinto o delicioso cheiro da morte e o sabor enferrujado do vermelho daqueles corpos. O único incômodo era o agradável clima da Valáquia. Vampiros... Que tolice! Essa superfície que não chega. Acho que estou ficando molenga com o passar dos séculos. Antes eu fazia esse percurso com menos tempo. Minhas mãos já estão feridas. E ainda tenho que passar por toda aquela camada grudenta e viscosa. Ora bolas... Isso não é justo. Gostei de Londres. 1888. Enganar a polícia foi tão fácil. Não foi um feito de grandes proporções, como eu prefiro, mas a energia era intensa e sombria. Montaram um verdadeiro circo à procura de um único homem. Deram-lhe até um nome: Jack, the ripper. Ah, como eu ri desses tolos. Nunca existiu um Jack. Eram
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vários Jacks. Todos levados por mim a cometer aqueles assassinatos exatamente da mesma maneira. E eu dormia calmamente nos aposentos da rainha. Por que prostitutas? Ora... Não me lembro. Eu devia estar entediado, de saco cheio de energias sexuais. Aliás, eu já havia brincado em Londres cerca de mil anos antes, quando incuti na cabeça dos Vikings que eles deveriam destruir a cidade, que ainda se chamava Lundenwic. Acho que acabei fazendo um enorme bem a eles. Afinal Londres é um nome muito mais fácil de pronunciar. Londres... London... Deviam me agradecer... Malditos ingleses. Não me recordo de quem teria sido a primeira idéia de promover uma batalha entre os homens, mas esse sujeito deveria ter um altar erguido em sua homenagem. Não fosse por ele, eu e muitos outros não teríamos tanto prazer. Já fiz tantas coisas interessantes nessas estúpidas guerras humanas. Lembro-me de ter acompanhado os generais japoneses nas duas guerras mundiais. Desde a invasão da Manchúria, seguindo minha canção que se repetia em suas mentes, eles mataram milhares de pessoas, inclusive indefesas criancinhas filipinas em Manila. Não estou bem lembrado da letra, mas era uma melodia suave e repetitiva... “seguir a diante, matar para viver... seguir os sorrisos apagados das criancinhas...”. Ou algo assim... Na verdade eu já os tinha deixado anos antes, mas minha semente rendeu bons frutos. Foram milhões de pessoas mortas em combates e massacres. Chineses, birmaneses, indonésios, filipinos... Estupros foram centenas, talvez milhares. Minhas pequenas sementinhas do mal, de olhinhos puxados. Eu acompanhava tudo à distância, pois já estava bem longe deles, trabalhando com aquele que talvez tenha sido minha mais ilustre vítima. Homem inteligente, culto e educado. Só queria o melhor para seu povo. Era amante das artes. Isso até me conhecer. Infiltrei-me em sua vida e me instalei em teus sonhos. A descoberta do anti-semitismo, alguns anos antes de se tornar um líder, foi um presentinho meu. Um pequeno investimento para o futuro. Hoje ele é odiado por milhões de espíritos espalhados pelos quatro cantos do mundo e por todas as dimensões onde ainda vivem algumas das mais de cinqüenta milhões de vítimas de nosso expurgo. Seu nome é citado em livros, pesquisas, trabalhos e ainda causa muita discórdia por esse mundo afora. Talvez tenha sido minha maior obra prima até hoje. Alguns idiotas ainda tentam reviver seus feitos e seguir o que não se pode mais recriar. Não entendem que essas coisas não podem se repetir. A maldade está na novidade. A crueldade surge do inesperado. Finalmente pareço me aproximar da superfície. Maldita sina sem sentido essa. Protocolos infernais, com o perdão da palavra.
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Nas últimas décadas tenho estado mais calmo. É... Até que pensando melhor, acho que estou mesmo me tornando um moleirão. Tenho me limitado a incentivar gangues, quadrilhas de traficantes, contrabandistas e terroristas. Estou mesmo é precisando de algo maior. De enormes proporções. Superar todos os números somados até hoje. Dizimar a humanidade... Não, espere... Não posso dizimar. Senão perco meus propósitos e minha diversão. Mas até que uma quase destruição total não seria tão ruim. Quase consegui isso há alguns anos, mas os malditos tinham que inventar uma trégua. Saudades da guerra fria. Bom, mas enquanto não penso em nada grandioso... Ah, finalmente... Cheguei. Pelo visto meu senso de direção também está piorando com o tempo. Onde diabos eu estou? Enquanto não me vem nada de espetacular à mente, vou brincar mais um pouco de estuprar, matar, viciar... Quer dizer... Eu não. Vou escolher alguém. Alguém que possa aos poucos montar um cenário de destruição em massa. Que seja inteligente e que tenha potencial de liderança. Alguém desconhecido por enquanto. Preciso de tempo para moldar as idéias e guiar o seu caminho de acordo com os meus interesses. Que tal você? Sim, você mesmo. Não quer conversar um pouco? Preciso me apresentar?
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Leitor Caro leitor, já que teve paciência de chegar até aqui, peço que deixe um comentário na página dedicada a esta publicação, no link: www.mdamado.com.br/empadas Críticas também são bem-vindas. A opinião do leitor é muito importante para o prosseguimento dos meus trabalhos (ou de minha total desistência, caso seja um verdadeiro fracasso). Se preferir escrever um email, envie para
[email protected] e entrarei em contato (se até lá eu não tiver entrado em depressão por consequência de um suposto grande número de rejeições aos meus textos).
Obrigado, Abraços horripilantes, M. D. Amado (o autor apreensivo).
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O Autor M. D. Amado (Marcelo Dias Amado) é natural de Belo Horizonte, MG. Foi cuspido no mundo em 17 de janeiro de 1969, sendo que 69 é sua dezena preferida. Analista de Sistemas por acidente, começou a escrever em 2004, inspirado nos contos de escritores nacionais como Richard Diegues, Rita Maria Félix e outros. Fã de Ken Follett, Edgar Allan Poe, Ray Bradbury e H. P. Lovecraft, brinca com as palavras sem compromisso com gênero ou estilo literário. Mantém desde 1996 o site Estronho e Esquésito (www.estronho.com.br) onde além de publicar textos e curiosidades inusitadas, abre espaço para escritores nacionais de literatura fantástica publicarem seus contos e poesias, além de divulgarem seus livros e trabalhos literários diversos. Em seu site particular (www.mdamado.com.br) mantém um portfólio com diversos contos, minicontos e poesias. Alguns desses textos estão aqui nesta publicação eletrônica. M. D. também possui minicontos, poesias e textos publicados nos fanzines Terrorzine e Flores do Lado de Cima, além de ter participado de alguns blogs literários, como o A arte não é minha em 2009 e da lista de discussão Cryacontos. O autor já participou das seguintes antologias nacionais: Necrópole 2 – Histórias de Fantasmas (2005, Ed. Alaúde, Org. Richard Diegues); Paradigmas Vol. 1 (2009, Tarja Editorial, Org. Richard Diegues); Draculea – O livro secreto dos vampiros (2009, All Print, Org. Ademir Pascale); Metamorfose – A fúria dos lobisomens (2009, All Print, Org. Ademir Pascale) e é convidado especial na antologia Zumbis – Quem disse que eles estão mortos?, mortos? que será lançada em breve pela All Print, também numa organização de Ademir Pascale.
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M. D. Amado é um dos autores convidados nesse livro
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