SOBRE O BURGUESISMO E O SOCIALISMO Tradução para o português de T. Morita Por Nikolai A. Berdyaev (Texto publicado originalmente no semanário “Russkaya svoboda” em 13 de junho de 1917) Muitas palavras que ora gozam de amplo uso corrente nas ruas, carregam um caráter de efeito mágico; umas fórmulas que ora tomam o seu caminho, assumem um aspecto sacro: são aceitas pelas massas não apenas sem discernimento, mas, igualmente, sem compreensão. E a tais palavras de característica mágica pertencem os termos “burguesia” e “burguesismo”. Estas palavras possuem no momento presente uma força sobre as massas, massas estas que se sentem escravizadas por elas, cujo significado, porém, não se consegue compreender adequadamente. A palavra pende a uma profunda obscuridade, não se encontra preparada para abarcar significados complexos, e nem ilumina a escuridão, ao contrário, apenas a aumenta. A magia provoca e estimula algo de instinto obscuro, corresponde a alguns interesses, porém nada de conceito ou idéia revestido de clareza pode ser a ela relacionado. Qual seria a interpretação de “burguesia” no momento presente? Sob termo “burguesia” é compreendida não apenas a classe industrial, não apenas os capitalistas, nem o “terceiro estado”. No presente, para nós, a categoria de “burguesia” é empregada num sentido incomensuravelmente amplo. Toda a Rússia, toda a humanidade é dividida em dois mundos irreconciliáveis, dois domínios: um domínio do mal, da escuridão, do demônio – o domínio burguês; e um outro domínio divino, do bem, da luz – o domínio socialista. No caminho desta psicologia há uma reexperimentação da antiga e arcaica divisão e oposição religiosa, porém, de um modo distorcido. Os Social-Democratas, tendo envenenado as massas trabalhadoras com o ódio destrutivo pelos “burgueses” e “burguesismo”, fazem uso dessas palavras num sentido classista e materialista, e sob o seu próprio ponto de vista classista conferem-lhes um selo quase religioso. Esse sentido positivista-materialista e classista do mundo não pode, no final das contas, perdurar. E os socialistas, os materialistas estão compelidos a admitir que o “burguesismo” reflete uma certa disposição psicológica. Uma certa moldura de valores relacionados com a vida, não tanto uma condição de problema social, mas uma atitude do espírito humano em relação a ele. Uma disposição “burguesa” e uma série de valores “burgueses” podem se encontrar num homem que não pertença necessariamente à classe burguesa, de forma alguma possuidor de uma propriedade, e, por outro lado, um “burguês” que, apesar da sua posição social, pode ser totalmente destituído do “burguesismo”. É absolutamente incontestável que o “burguesismo” seja uma condição do espírito humano, e não uma posição social-classista de um homem, - ele se define pela relação de espírito à vida material, por um espírito preso e impotente para vencer a força da matéria, ao contrário da própria vida material. Os grandes inimigos do espírito burguês do século XIX foram Nietzsche e Ibsen, que não eram socialistas, nem tiveram qualquer relacionamento com o proletariado e no presente, certamente, seriam consignados ao domínio da “burguesia” uma vez que hoje a sabedoria da rua considera “burguês” todas as pessoas do espírito. E provavelmente a mais vívida expressão de espírito anti-burguês da literatura russa seria o reacionário K. Leont’ev, - toda a sua obra ao longo da vida foi um combate contra o domínio iminente do enfadonho espírito filisteu. Seu espírito era menos “burguês” que o espírito de todos os “bolcheviques” e “mencheviques” que aspiram à felicidade fugaz do seu paraíso terrestre. Na França há o notável escritor Leon Bloy, único como Católico, o reacionário dos reacionários, sem nada ter em comum com o socialismo, e ele se levantou num radicalismo sem precedentes contra as fundações essenciais do burguesismo, contra o espírito burguês reinante no mundo, contra a sabedoria burguesa. Como um Cristão, revelou o campo metafísico e espiritual e vislumbrou o mistério da burguesia, em oposição ao mistério da
Gólgota. O “burguês” prefere sempre o visível ao invisível, este mundo ao outro mundo. Nietzsche teria dito que a “burguesia” sempre ama aquilo que se encontra “ao alcance das mãos” àquilo que se encontra “remoto”. O espírito do burguesismo está em oposição ao espírito altaneiro de Zaratustra. Ibsen teria dito que o espírito burguês se opõe ao espírito daquele homem que se coloca só no caminho da vida. Para o burguês, o espírito está profunda e essencialmente em oposição não ao espírito socialista e proletário mas, fundamentalmente, ao espírito aristocrático. O domínio burguês é um domínio quantitativo. A ele se opõe o domínio qualitativo. O espírito burguês constrói tudo sobre a base da prosperidade, felicidade e satisfação. Tal espírito que se encontra diametralmente oposto a este, tende a se construir sobre as bases dos valores, e necessita gravitar de encontro com o imenso e longínquo espiritual. O espírito burguês, portanto, não ama e, de fato, teme o sacrifício, enquanto que o espírito anti-burguês possui como base o sacrifical, mesmo quando reclama o poder. O burguesismo não foi criado pelo socialismo, foi criado por um mundo velho, caduco. Entretanto, o socialismo aceita o legado do burguesismo, deseja aumentar e desenvolvê-lo e levar esse espírito a um triunfo universal. O socialismo é nada além de um reflexo passivo do mundo burguês, foi totalmente definido por ele e recebeu dele todos os seus valores. Não há nele uma liberdade criativa.
II
O ideal da organização última deste mundo e da satisfação e felicidade final neste mundo, eliminando a sede por um outro mundo, é também um ideal burguês, se encontra dentro dos limites do burguesismo, um fenômeno globalizante e distribuição equânime do burguesismo pelo mundo inteiro. O espírito burguês é antes de tudo um espírito anti-religioso. O burguesismo é uma conformação anti-religiosa com este mundo. O desejo de defender nele um princípio eterno e estabelecer o espírito humano nesse reino preferindo-o a Deus. E esta idéia do Reino de Deus na terra, neste mundo material tridimensional é a distorção burguesa da verdadeira expectativa religiosa. No antigo quiliasmo judeu havia um burguesismo, que foi renovado por uma transformação social. O burguês se sente exclusivamente um cidadão deste mundo isolado e desta face da terra; distante dele se encontra a cidadania celeste, a cidadania de outros mundos. Para burguês o céu está sempre exclusivamente subordinado aos interesses da terra, e o outro mundo para o interesse deste mundo. Assim é a religiosidade do burguês. E verdadeiramente o anti-burguês é aquele que, coloca os valores muito acima do bemestar, o interior muito acima do exterior, o sacrifício acima da satisfação, a qualidade acima da quantidade, o remoto acima do alcance das mãos, o outro mundo acima deste mundo, a pessoa acima da massa impessoal, e que ama a Deus mais do que o mundo e a si mesmo. Isso significa o choque de dois princípios do mundo diametralmente opostos. O burguês é um destruidor do eterno em nome do temporal, um escravo de tempo e de matéria. O malogro do mundo, o malogro do homem e o conflito humano são também sua peculiaridade básica. Mas a liberdade de espírito, a vitória sobre a temporalidade e materialidade é também uma vitória sobre o “burguesismo”. Cristo condenou os bens como sendo escravidão ao espírito, como sendo instrumento de apego a este mundo limitado. O significado desta condenação não é social, mas espiritual, orientado ao homem interior, e no mínimo pode ser usado para justificar inveja e ódio ao rico. Esta inveja e este ódio é um impulso burguês sobre o coração humano e revela toda aquela escravidão idêntica do espírito humano.
E deve ser afirmado taxativamente que dentro do socialismo não há nada que se opõe ao espírito do burguesismo, não há nele qualquer antídoto contra o supremo reino do burguesismo no mundo. Um trabalhador pode não ser menos burguês típico que um industrial ou comerciante, sua posição economicamente oprimida não lhe garante qualquer sorte de qualidades espirituais, e, de fato, isso freqüentemente priva-o até da nobreza de caráter. Burguesismo não se restringe à pertença a uma classe particular, embora todas as classes possam ser cativadas pelo espírito do burguesismo. Na essência, toda psicologia classista é burguesa, e o burguesismo é superado apenas quando o homem chega acima da psicologia classista em nome de valores mais altos, em nome da verdade. Os operários e lavradores, na sua psicologia puramente classista, nos seus interesses, podem ser espiritualmente burgueses do mesmo modo que os industriais, os mercadores e os latifundiários, indiferentemente dos interesses dos primeiros serem mais justos que os dos últimos. Para um socialismo classista que busca uma pretensa criatividade para uma nova cultura, é fatal que todos os valores mais elevados, os valores da cultura espiritual, os valores da “ciência e arte” sejam criados pela burguesia, no sentido social classista. A classe operária não criou qualquer espécie de valores, nem descobriu os rudimentos de uma nova cultura, ou um novo paradigma espiritual do homem. Ele toma emprestado tudo da burguesia que o mantém despojado espiritualmente e se torna fatalmente “burguês” na medida do seu crescimento de ser cultuado a sua consciência, sua partilha da bênção da civilização. Por cinqüenta anos da sua heróica existência, o proletariado socialista – essa “classe de messias” – nada criou. Na esfera de preocupação religiosa, o proletariado socialista se apropriou do ateísmo burguês e da velha filosofia materialista burguesa, na esfera moral a velha moralidade utilitária burguesa, na vida da esfera artística herdou a alienação burguesa da beleza, a repulsa burguesa ao simbolismo e o amor burguês ao realismo. O nível da cultura proletária não se ergueu mais que o completamente arcaico, banal e em relação a um seguimento mais cultural, ao há muito decrépito “iluminismo”. A baixeza intelectual do movimento socialista é surpreendente. Seria assim que o Cristianismo entrou no mundo decadente da antiguidade com as suas boas novas da nova vida? Onde é possível encontrar os sinais de uma criatividade proletária original? Não são os impulsos de criatividades, antes os compromissos de interesses que orienta a psicologia classista. O valor do socialismo em si foi criado pela burguesia, pelo segmento cultural burguês ao qual pertenciam também os primeiros socialistas utópicos e Marx, Lassalle, Engels e os ideólogos russos do Social-Democrata e dos revolucionários sociais. Para o proletariado, o socialismo é uma interpretação de seus interesses e instintos imediatistas. E apenas para os ideólogos vindos do seguimento cultural burguês ele tem sido uma idéia, um valor. Como os interesses de instintos gananciosos de alguma classe particular pode se transformar numa idéia e valor para figuras separadas que emergira de outras classes?, - esta é a questão mais interessante da psicologia e da ideologia do socialismo.
III
O socialismo, no final das contas, é também burguês, de um burguesismo eqüitativo e universalmente difundido, o ideal de um apego sem fim como servos deste mundo num bem-estar burguês. Seria estupidez esperar do socialismo uma vitória sobre a cultura “burguesa” moderna – ele apenas a promove de um modo mais extremo na busca do seu fim. O burguesismo deve ser procurado não em forma exterior do socialismo, mas no seu espírito interior. Esse espírito considera a quantidade muito acima da qualidade, o bem-estar acima do sacrifício,
o mundo acima de Deus, - esse espírito se apega a este mundo, move-se por necessidade e não pela liberdade. O socialismo até o momento presente não trouxe nenhuma espécie de valores, senão os valores da segurança, satisfação e saciedade materiais. Espiritualmente vive pelos valores criados pelo mundo “burguês”, sua criatividade, suas ciências e artes, suas descobertas. As promessas de formas manifestas de criatividade puramente proletária, puramente socialista, não foram completadas, e o movimento socialista se distancia cada vez mais do cumprimento dessas promessas. O espírito socialista se posiciona com uma atitude hostil contra toda sorte de originalidade pessoal criativa, na qual apenas se vislumbra um antídoto contra o “burguesismo”. O socialismo representa espiritualmente um nivelamento, levando todos a um nível mediano de estupidez, e obtém certa elevação do nível de igualdade com o caro preço do desaparecimento ou eliminação de todas as alturas. Ouçam as conversas dos Social-Democratas, leiam seus jornais, suas brochuras, seus livros. Todos dizem uma única coisa, todos batem a mesma tecla, escrevem a mesma linguagem, repetem as mesmas palavras, relembram aqueles mesmos pensamentos estúpidos. Não se encontra pessoa, pensamento pessoal, criatividade pessoal. E tudo isso chega a ser enervante. Descem a um denso e cinzento nevoeiro e prometem um paraíso cinzento, um paraíso do não-ser. O ideal do socialismo – não é criativo, antes, expansivo, não é elevado, mas eqüitativo e plano. O mundo “burguês” – é , de fato, um mundo meio-leviano e pecador, nele não há valores duradouros. O socialismo deseja afirmar-se como que o burguesismo no grau máximo, um “burguesismo” sagrado, um burguesismo eqüitativo, correto e holístico. A religião do socialismo cai na tentação do pão rejeitado por Cristo no deserto. O socialismo faz do pão uma religião e pelo pão trai a liberdade espiritual do homem. Dostoievski revela-o na sua lenda sobre o Grande Inquisitor. E Vladimir Soloc’ev também o revela na sua história sobre o Anticristo. Cristo rejeitou a tentação do pão e ensinou a orar ao invés do pão de cada dia. Creio, que o espírito do socialismo classista e materialista, particularmente na sua forma de Social-Democrata, é um espírito profundamente burguês, um espírito profundamente anti-Cristo. Mas digo isso não como um inimigo do socialismo. Creio que no socialismo há sua grande verdade e sua grande questão. Mas penso também que a culpa da mentira espiritual e inverdade do socialismo não se conserva sobre ele, mas sobre aqueles seguimentos sociais, que primeiro enredou o caminho do burguesismo, o caminho da escravidão do espírito pelo materialismo e afirmação classista. O socialismo nada possui além de uma natureza reflexiva, apenas leva adiante o processo, não o inicia, espiritualmente é destituído de iniciativa e é apenas complementar. A verdade tal qual é no socialismo só pode se concretizar num espírito diverso, numa atmosfera espiritual diferente, numa consciência não materialista, e sem ódio entre as classes, sem a pretensão de se estabelecer por força o Reino de Deus sobre a terra através de algum cataclismo revolucionário, mas antes, preservando a liberdade espiritual interior.. O espírito de ódio e malícia entre as classes leva à negação de imagem de Deus no homem, rompe a idéia da humanidade e deixa-a numa contradição irreconciliável com as esperanças do próprio socialismo. A ganância social é um pecado humano, mas a ganância social estabelecida como máxima santidade já é o próprio espírito de Anticristo. Tudo possui dupla face dentro do socialismo e da democracia, - a verdade se mistura com mentira, a luz com escuridão, Cristo com Anticristo. A vida mundial está entrando num período em que não há mais uma clareza cristalina, não há fronteiras facilmente reconhecíveis separando o domínio da luz com o domínio da escuridão O espírito humano é colocado diante do maior das provações e tentações. Tentações do maior dos males podem surgir disfarçados de bem. Há necessidade de vigilância e sobriedade de espírito a fim de discernir a dupla natureza do socialismo que avança sorrateiramente pelo mundo com uma promessa de um novo domínio. E incapazes de discernimento são aqueles que permanecem em condição de embriaguez primitiva e escravidão espiritual. A uma escuridão ainda mais profunda foram remetidas as massas do
povo russo – as sementes de ódio contra os “burgueses” e o “burgesismo”. O significado destas palavras odiosas permanece equivocado pelas massas. E do modo como as massas assimilam estas palavras conjuradas sobre “burguesia” e “burguesismo”, tende a aumentar algo perigoso não apenas ao destino da Rússia, do estado russo, da economia do povo russo, mas – mil vezes mais importante – para o destino da própria alma do povo russo, uma alma feminina, abatida e débil, que não freqüentou a severa escola de auto-disciplina e auto-direção. A pregação de ódio contra a “burguesia” e o “burguesismo” também faz do povo russo “burgueses”, distorce a sua semblante Cristã. Por enquanto vivemos ainda uma calma e uma espécie de benevolente anarquia, tão característica da tribo russa. Porém, logo poderá irromper algo muito mais vexatório. E então a responsabilidade recairá não sobre o povo, mas sobre aqueles seguimentos da Inteligência, que ao não aperceberse do profundo significado das palavras, tendem a espalhá-las irresponsável e superficialmente. Assim, dentro da alma russa se elimina o que é sagrado, dando lugar à regra dos interesses especiais. Mas a própria Inteligência deveria estar pregando que a divisão básica dentro do mundo e da humanidade permanece não numa divisão temporal do domínio “socialista” e “burguês”, mas antes entre o domínio da verdade e da mentira, do bem e do mal, do Reino de Deus e do demônio, de Cristo e de Anticristo. No sentido espiritual da palavra, apenas o Cristianismo enfrenta e responde eternamente ao “burguesismo”. Somente nele o homem interior sairá vitorioso contra o homem exterior.
Nikolai Berdyaev 1917 Parte da coletânea “Campos Espirituais da Revolução Russa” (artigos escritos entre 1917 e 1918). Nota do publicador. Não tenho concordância com o pensamento gnóstico de Nikolai Berdyaev