Fourier E O Socialismo Do Prazer.pdf

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FOURIER.

O SOCIALISMO DO PRAZER VIDA

Gaucel e de seu ex-patrão (em Lyon) Bousquet. Em 1826 assumiu um posto na firma norte-americana Curtis &c Lamb, incumbindo-se da cor respondência da filialparisiense,que porém foi fechada um ano e pouco depois pela empresa. Aproveitava a execução da tarefa da redação de cartas comerciais para escrever também cartas pessoais. Escreveu a numerosas personali dades, solicitando-lhes apoio financeiro para a experiência do falanstério. Encaminhou apelos, por exemplo, ao duque de Devonshire, inglês, ao milionário norte-americando Rufus King, ao presidente de Santo Do mingo, Boyer,à viúvade lorde Byron, a príncipesrussos, a George Sand, Chateaubriand e Simón Bolívar. Não obteve nenhuma resposta. Levava uma vida frugal. Comia em restaurantes baratos e bebia vi nho ordinário (sempre resmungando que estava sendo envenenado). Tomava uma xícara de café depois do jantar e gostava de jogar bilhar. Permaneceu solteirão. Protegia cuidadosamente sua vida particular, sua intimidade; contudo, há razões para crer que teve algumas ligações amo rosas. Emile Lehouck chega a indicar o nome de uma de suas prováveis namoradas, Louise Lacombe (Lehouck, 1978, p. 215). Teve diversos endereços residenciais em Paris, todos próximo ao Palais-Royal, que o deslumbrou desde a primeira vez em que esteve na cidade, aos vinte anos de idade. Todas as suas habitações eram modestas. No último apartamento onde morou (e onde morreu) vivia cercado de plantas e gatos. Os vizinhos e a porteira do prédio simpatizavam com ele, porém todos o achavam bizarro. O insuspeito Pellarin, que lhe de

dicava uma admiração imensa, informa que Fourier andava pela rua falando sozinho (Pellarin, 1843, p. 177). ^ Escrevia muito, todos os dias. Atendendo a insistentes pedidos de seus amigos, dedicou-sea preparar um resumo (abrégé) de sua doutrina. O resumo se transformou no livro O novo mundo industrial, que saiu em 1829. Na realidade, não era um mero resumo, porque trazia uma importante inovação no seu pensamento: preocupado com a definição de um caminho prático para a transição à nova sociedade, Fourier in veste suas energias intelectuais no planejamento de um "falanstério" (palavra composta de "falange" e "monastério"), onde se realizaria a

12

experiência da organização de um núcleo antecipador das novas condi

ções de vida. Essa experiência demonstraria aos contemporâneos as vantagens do novo modelo e, ao se multiplicar, promoveria a verdadeira transformação da sociedade.

Em 1830, para divulgar o novo livro, Fourier lançou um folheto intitulado "Anúncio do novo mundo industrial". Mais uma vez se de frontou com uma reação desfavorável. A revista católica Universel o

estigmatizou como "materialista" e "bufão". EnaReme Française uma resenha não assinada equiparou-o a Saint-Simon e a Robert Owen, in sinuando quea única coisa que o distinguia dos outros dois erao "estilo grotesco" em que escrevia.

A resenha anônima da Revue Française foi a que mais aborreceu o escritor, que detestou serposto nomesmo saco que OweneSaint-Simon. Fourier atribuiu a perfídia a François Guizot, influente historiador e político, que era colaborador regular da publicação. Sua raiva foi tão grande que ele nem chegou a se alegrar muito com o primeiro comen tário favorável e bem fundamentado sobre o seu trabalho, que saiu no Mercam de France au XDíème Siècle, assinado por um novo discípulo: Victor Considérant.

Aconcorrência das "seitas" de Saint-Simon e Owen o preocupava cada vez mais. Num primeiro momento tinha ficado bem impressionado com asiniciativas práticas de Owen na Inglaterra e chegou a seoferecer para assessorá-lo (o oferecimento foi delicadamente recusado). Depois de algumas conversas com saint-simonianos (Saint-Simon ti

nha morrido em 1825), leu uns poucos textos publicados por eles, com pareceu a uma assembléia da "seita" e escreveu o panfleto Armadilhas e charlatanismo das seitas de Saint-Simon e Owen, publicado em 1831. Alguns entre os saint-simonianos estavam organizados de forma coesa e centralizada, como uma "igreja", em torno daliderança deProsper Enfantin; outros, porém, preservavam sua autonomia, sua reflexão crítica. E dois intelectuais saint-simonianos independentes publicaram artigos nos quais divulgavam com simpatia as idéias de Fourier: Jules Lechevalier e Abel Transon. O mestre nãoseentusiasmou, mas os discí pulosficaram gratospelaajuda. 13

)

r-

'A Harmonia não homogeneizará, não pasteurizará os prazeres, mas também não exacerbará artificialmente seus aspectos mais contraditórios, e com isso criará uma

situação muito diferente daquela que existe na civilização. Otempo do prazer se modificará, adequando-se a novas potencialidades humanas. As formas do prazer se

diversificarão, se multiplicarão, através de uma expansão das expressões mais sutis do desejo, que atualmente são cerceadas pela pressão do produtivismo,

pela perseguição obsessiva da 'rentabilidade' e pelas contingências civilizadas."

Este talvez seja um dos raros casos de um livro que engrandece sua orelha!

Foi com esse sentimento que recebi o gentil convite para escrevê-la, e é com essa certeza que me dirijo ao leitor, na

condição de aprendiz que fala do livro

de seu mestre e amigo. Sim, porque Leandro Konder não precisa de apresentações. Filósofo tão conhecido

entre nós, pensador sem preconceitos, sempre fiel a leituras não dogmáticas de autores importantes, aberto a buscar o novo que ficara escondido em outras

épocas e sempre disposto a conhecer

idéias de autores pouco valorizados. Leandro rejuvenesce as idéias, ensina que o novo se alimenta do velho e que presente e futuro não prescindem de uma visão crítica do passado. E este

traço o leitor irá encontrar fortemente também neste livro sobre Fourier.

Leandro, filósofo, escritor e ensaísta, não abre mão da sua tarefa de professor que faz mapas para nos aventurarmos pela obra, freqüentá-la, descobrir

atalhos. Com este livro sobre Fourier, o leitor pode conhecer a vida, o pensamento e o legado desse bizarro

pensador francês que tem muito a dizer

sobre os anseios, desejos, temores, crenças e utopias do mundo

contemporâneo, esse "socialista utópico"

específicos, mas que foi pioneiro em

vários aspectos do marxismo. Embora não fosse revolucionário do ponto de vista político, Fourier propunha rupturas de costumes, preconceitos e

valores do seu tempo. Como situá-lo, pergunta Leandro, no quadro das

posições de esquerda de que dispomos hoje? Serão as atuais categorias satisfatórias para dele formular um

juízo? Provavelmente não. Entretanto, esse excêntrico filósofo que é Fourier, com posições questionáveis e uma

teoria discutível, considerado louco por alguns, pode — comsua vitalidade — suscitar modos mais criativos e

bem-humorados de pensar a realidade atual na sua ambigüidade e incoerência.

Todos aqueles que se atreveram um dia — e ainda se atrevem — a sonhar com uma sociedade mais generosa e

solidária, onde justiça social e fim de

qualquer tipo de opressão possam conviver com desejo, paixão e harmonia; todos os que se inquietam e teimam em questionar o mundo e em buscar

alternativas devida mais humanas, certamente encontrarão em Fourier, o socialismo do prazer material para uma profunda e instigante reflexão.

em quem socialismo e utopia eram tão

Sônia Kramer

copo EvtlynGiumocli

•Imerocâo Nillon Kanulho

DO AUTOR

AlotZ7TTn°»aSÍh EditoraZahar, Mode™ApoexadeBrechteaHistória,Sã°RioPauJ°' de Janeiro, 19961996

1998

Rio deJaneiro

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

do prazer

Flora Iristan, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994 ' Bartolomeu, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995 '

0Mjorf«/ffoio/ffl
Fourier, o

'

Leandro Kondie r

wSÍ t raZí°brasileiros*marxismo, qTC en[0UqUeCÍda> m° Campus, 1989 Intelectuais SãodeJandrp, Paulo, Oficina de Uvros,

Campus, 1988.

Aderrota da dialética, Rio de Janeiro, Campus, 1987. WalterBen,amin, omarxismo da melancolia, Rio de Janeiro

O*$£«, nabatalhadasidéias, Rio deJaneiro, Nova Fronteira,

Barão de Uararé, ohumorista da democracia, São Paulo, Brasiliense,

O*«* í dialética, São Paulo, Brasiliense, 1981

r T"°ZaC'a e°S COmu""t"s no Brasil, Rio de Janeiro Graal 198n hukács, Porro Alegre, L&PM, 1980. '

Introdução ao fascismo, Rio de Janeiro, Graal, 1977

Marx,v,da eobra. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1967

Os marxistaseaarte, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 19fi*

Kafka, vida eobra, São Paulo, Paz eTerra 1966

Marxismo ealienação, Rio deJaneiro, Civilização Brasileira 196S

> I

COPYRIGHT OLeandro Konder, 1998. CAPA

Evelyn Grumach

I

PROJETO GRÁFICO

EvelynGrumach JoãodeSouza Leite PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS

Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Imagem Virtual

SS£2t CATAL0GACÃ0.NA-F0NTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ. KK.Íf

Kcimler. Leandro, I93fi-

FüurkT„socinlislm,lIopr.1Zer/LcaIldtoKonllcr-Ri„ tfc Janeiro: ClWItaçío Brasileira. 1998. Inclui bibliografia ISBN: K5-2(l()-()46fi^)

1lü?* CI,,lr,,I.Título. CS- ,772~m7- 2. Socialismo.

* t-ilosolia francesa. 98-074!»

CDD —194

CDU-1(44)

mK,o Branco 99 /20o andar, 20040-004, Rio de Janeiro RI Brasil

Telefone (021) 263-2082, Fax / Vendas (021) 263-4606 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL

Caixa Postal 23.052, RJ0 deJaneiro, RJ, 20922-970 Impressono Brasil 1998

dedico otrabalho ameu fílho cSo

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"*' "^"•** E

humano não razoável."

GEORGE BERNARD SHAW

^"oser

aele. Todo progresso, então, depende do ser

"O serhumano razoávelse adapta ao mundo

I «

Sumário

INTRODUÇÃO xi

Vida 1 1- FONTES

3

2. INFÂNCIA EJUVENTUDE 4 3.GÊNESE DA TEORIA 6 4- O PRIMEIRO LIVRO

7

5. DA PROVÍNCIA APARIS 9

6. AFALANGE EXPERIMENTAL 11 7.OS ÚLTIMOS ANOS 14

Pensamento 17 1•PENSAMENTO ELINGUAGEM 19 2.AATRAÇÃO PASSIONAL 21

3. ACIVILIZAÇÃO EAS MULHERES 23

4. PERIODIZAÇÃO DO MOVIMENTO SOQAL 27 5. ASPAIXÕES 6. O AMOR

29

31

7. EROTISMO EGASTROSOFIA 33 8.AS "SÉRIES" 35

9.0FALANSTÉRIO 36 10.AEDUCAÇÃO 38 11.AHARMONIA

41

12.APERSPECTIVA 44

ix

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZEi

O legado 49 1. NOSÉCULO XIX

SI

2. NOSÉCULO XX

56

3. NOSÉCULO XXI?

introdução

59

Vitalidade 63 1. ARGUMENTOS 2. O DESEJO

BIBLIOGRAFIA

65

70

75

Onome de Charles Fourier estáassociado aduas palavras "explosivas"-

utópÍoT 6****• EIe ' VÍSt° C°m° Um d°S CampeÕCS d° "S0dalism° Opróprio Fourier, contudo, não se reconheceria nessa designação: ele nao se apresentava como socialista efazia restrições àutopia Onome "socialista" passou aser usado nos anos trinta do século

XIX, quando Fourier estava velho, eera adotado, predominantemente,

pelos saint-simonianos, que ele considerava mistificadores.

Fourier se via como ura "descobridor'^como um «inventor", Para

ele os inventores não precisavam dispor de conhecimentos eruditos ou de formação acadêmica. Afirmava: «Quanto mais um inventor for ile-

trado, incapaz de desenvolver de maneira adequada suasinvenções, tan

to mais ««importante que ocorpo social lhe assegure meios para pôS

a prova (OC X, p. 25). Estava convencido de que muitas vezes as

invenções ou descobertas se devem apessoas simples, como ele, que se orgulhava de ser autodidata, um mero "caixeiro". Eadvertia- se as in

venções não forem aproveitadas, se as descobertas forem desmoralizadas

pela ironia dos eruditos, quem sairá perdendo será asociedade

Agrande descoberta de Fourier, segundo ele, foi ada «lei da atração passional Esua maior invenção foi ado caminho aser seguido para

que, com base nessa lei, ahumanidade venha asuperar a«civilização" e seja capaz de criara "Harmonia".

Como a referida invenção se inseriu no movimento histórico das

ide.associahstas, Fourieracabousendo inevitavelmente consideradopor

todo mundo um teórico socialista.

xi

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

INTRODUÇÃO

>

Adescoberta da "lei da atração passional", entretanto, lhe confere características extremamente originais. Fourier demonstra uma notável

confiança nas paixões humanas, quer que opoder delas seja plenamente liberado e rejeita qualquer repressão sobre seu desencadeamento. Não admite que sofram pressões externas moderadoras. Diz: "Não é com

moderação que são feitas grandes coisas" (OC, I, p. 186). Aenfática valorização das paixões manifesta, com certeza, a dimen são romântica da perspectiva do filósofo "caixeiro". Dentro do movi

mento gerai do romantismo, contudo, sua posição é original. Michael Lõwy eRobert Sayre oincluem no "socialismo utópico-humanista", ao

lado de Cabet, Pierre Leroux, Enfantin, George Sand eoutros (Lõwy & Sayre, 1993, p. 32). Mas sua inclusão nessa categoria genérica corre o risco de sacrificar elementos altamente peculiares do que ele criou de mais especificamente significativo.

Temos boas razões para classificar Fourier como "humanista", po rém devemos imediatamente lembrar que sua radical valorização da cria tividade humana está ligada à vinculação do ser humano aos desígnios de Deus eàProvidência Divina. Eessa vinculação faz dele um humanista bastante especial.

Temos também razões convincentes para classificá-lo como "utópi co". No entanto, não podemos deixar de registrar o fato de que ele definia a utopia como "o sonho do bem sem meio de execução, sem método eficaz" (OC, XI, p. 356). Como estava absolutamente seguro de ter um método eficaz e dispor do meio adequado, nada mais natural que não se considerasse utópico.

Na esteira do livro de Thomas Morus foram escritasAcidade do sol, de Tommaso Campaneíla, eAnovaAtlântida, de Francis Bacon, nas quais se manifesta amesma ambigüidade: por um lado, aprofunda insatisfação "l

com asituação existente, com aorganização da sociedade, com algumas das características da ideologia dominante; por outro, areprodução de critérios comprometidoscom aideologia contestada ecom aestreiteza dos horizontes da sociedade que estava sendo contestada.

No período que se segue àRevolução Francesa eno qual se realizam importantes avanços na revolução industrial, autopia começa ase re vestir com as cores do socialismo moderno, sem perc^rluTcõnffadito-

riedade intrínseca. Esse movimento éperceptível na "Conjuração dos

Iguais", de Gracchus Babeuf, com sua proposta de uma "última revolu-

Ção"_capaz de impor aigualdade política esócio-econÔmícITèTper-

ceptível também na trajetória de Henri de Saint-Simon, que élevado a conclamar os cidadãos a uma reorganização econômica da sociedade através de reformas adequadas apromover oprogresso. Em Babeuf, agenerosidade do programa igualitário tinha como con

trapartida um programa ditatorial de confiscos eviolência repressiva,

que deveria ser posto em prática inexoravelmente por uma liderança5 revolucionária ascética, abnegada, com características que poderiam res

valar para o fanatismo.

Em Saint-Simon, oesforço no sentido de isolar os parasitas da Corte

eda alta Magistratura, acúpula da hierarquia eclesiástica eos grandes proprietários de terras, leva oreformador amisturar numa mobilização conjunta os trabalhadores eos empresários, as mulheres e os grandes

Autopia, afinal, nasceu sob o signo da ambigüidade.. Na própria origem da palavra se encontra um livro que expressa ao mesmo tempo inconformismo eimpotência: áUtopia, de Thomas Morus, denunciava

comerciantes, oslojistas e os banqueiros.

em 1516 a ociosidade parasitária da aristocracia e o culto burguês do dinheiro, combatia ao mesmo tempo ofeudalismo ealógica embrionária

de Babeuf como do programa reformista de Saint-Simon. Contudo, por

do que viria aser ocapitalismo, porém não conseguia deixar de repro duzir, no interior mesmo do protesto, algumas das características mais

repressivas do quadro institucional vigente (como, por exemplo, aacei tação da escravidão).

Fourier divergia radicalmente tanto da proposta de revolução política

mais enfático que tenha sido na expressão de suas divergências, onosso caixeiro-filósofo acabou sendo posto ao lado daqueles que criticava com aspereza: aos olhos da imensa maioria dos seus contemporâneos e, mais ainda, aos olhos das gerações subseqüentes, ele foi visto como elaborador de uma utopia. Foi incluído entre os "socialistas utópicos". xiii

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

Quando nosdefrontamos hoje com essa designação, somos levados a associá-la a algumas das nossasapreensões mais vivas.

O conceito de "socialismo" está sendo rediscutido à luzda extinção da experiência soviética, do colapso do "marxismo-leninismo", da crise dasexperiências empreendidas pelossocialistas ao longodo século XX. O conceito de "utopia"também estásendoreavaliado sob a pressão dos que temem asconseqüências das tentativas de realização dos sonhos e a violência daqueles que se dispõem a acarretar grandes sacrifícios em nome daconcretização de ideais sublimes. Alguns críticos sustentam que na utopia se manifesta, mais do que uma impossibilidade prática, uma impossibilidade conceituai (Berlim, 1991). Muitas pessoas se perguntam: os utopistas não tendem a se tornar

intolerantes e autoritários em face daqueles que não os acompanham

è

nas tentativas de efetivarem suas quimeras? Os socialistas não acabam

sobrepondo seu compromisso com a "sociedade nova" ao respeito aos -.

INTRODUÇÃO

filosófica das categorias presentes na concepção econômico-social que Fourier tinha do presente seria uma das tarefas mais importantes emais atuais da história da filosofia do século XIX" (Lukács, 1971). Talvez o desafio ainda seja mais sério do que Lukács reconheceu: é possível que, para chegarmos a compreender onosso autor em profun didade, sejamos obrigados adecifrar não só as categorias econômico-sociais que ele utilizou, mas também oque está por trás de suas fantasiosas categorias cosmológicas.

Fourier émuito desconcertante. Sua obra tem comportado leituras

diversas, contraditórias. Muitos críticos recuaram diante dela, descarta ram-na, preferiram não comentá-la. Há casos em que aqueles que en travam em contato com as idéias de Fourier se limitaram a rir delas.

Existem cronistas que extraíram das insólitas concepções matéria para crônicas bem-humoradas. Opoeta brasileiro Olavo Bilac, numa crônica

numerosas dúvidas.

de 1907, falou de uma rua tranqüila do Rio de Janeiro que era lugar de reunião de cachorros felizes, de todos os tipos, e acrescentou: "Aquela rua era ofalanstério dos cachorros. Fourier, se avisse, teria asatisfação de ver, realizada por cachorros, a bela idéia que não viu realizada por homens. Ali, de fato, de acordo com adoutrina fourierista, capital, tra

Nessas condições, somos levados a indagar: o que teria a teoria de Fourier a nos oferecer, nasbatalhas que estamos travando, emcircunstân

balho e talento eram comuns" (Bilac, 1996, p. 765). Alguns escritores (como Flaubert eRalph Waldo Emerson) abomi

princípios democráticos na sociedade atualimperfeita? As condições em que os socialistas atuam hoje são extremamente delicadas. Para ter eficácia, um projeto transformador comprometido com a superação dasinjustiças precisa levar emcontamúltiplas objeções,

ciasmuito distintas daquelasem que ele se encontrava há dois séculos? A resposta a essa pergunta não é nada fácil. Uma leitura honesta dos

textos de Fourierapresenta para nós enormesdificuldades. Àsvezes ele parece, decididamente, incompreensível. Eemalgumas ocasiões o leitor contemporâneo pode passar por um trechopitoresco e ser levado a ter a impressão equivocada de que o entendeu, sem contudo tê-lo efetiva

mente digerido, pondo-o em conexão com outras passagens capazes de

naram a doutrina. Outros —poucos! —entusiasmaram-se com ela. Da

niel Guérin chegou asustentar que as bases da revolução sexual lançada por Fourier são tão audaciosas que, comparados com ele, Freud e Wi-

Iliclm Reich quase parecem tímidos (Guérin, 1975, p. 13). Ainda que Daniel Guérin possa ter exagerado, sua avaliação dá con

ta da radicalidade do ímpeto inovador de Fourier. Eé curioso que um pensador que recusava firmemente qualquer idéia de revolução política

esclarecê-lo.

(como está claro na crítica feita a Babeuf) chegue aser encarado na nossa

O filósofo húngaro Georg Lukács, em seu último livro, Aontologia do ser social, novolume dedicado a Hegel, advertia para o fato de que uma boa leitura do pensador francês precisaria averiguar o que está no

('•poça como umadrástica expressão de revolucionarismo.

fundo dassuas "generalizações insólitas". Esugeria: "Uma análise crítica XiV

Como poderíamos situar Fourier nos quadros conceituais elaborados para o mapeamento das posições teóricas da esquerda nasituação atual?

Podemos, de algum modo, considerar satisfatórias as categorias de XV

"~\

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

que dispomos para formular um juízo global sobre a filosofia desse pen sador?

Ocrítico português Ernesto Sampaio, no prefácio que escreveu para uma antologia, afirmou: "Fourier é insuscetível de reabilitação porque está fora de todos os discursos dominantes do nosso tempo" (Sampaio, 1996, p.9). Aafirmação deixa prudentemente aberta a possibilidade de um resgate feito a partir de um "discurso" radical de oposição não ab sorvido pelos critérios dominantes. Noentanto, não podemos deixar de formular para nós mesmos uma questão que vai além daquela que foi abordada pelo crítico português: em que consistiria o "discurso" contestador capaz de resgatar Fourier hoje? Decididamente, Fourier nos escapa. Somos obrigados a reconhecer que não podemos confiar inteiramente no mapa que utilizamos para atravessar o território do seu pensamento.

O presente livro tenta proporcionar aos leitores alguns elementos para um maior contato com o "enigma Fourier", sem alimentar a pre tensão de "decifrá-lo".

Aprimeira parte está dedicada a relembrar algumas experiências vi vidas que marcam a trajetória do filósofo. Na segunda parte é abordado o movimento do seu pensamento. Aterceira ea quarta partetentam refletir

sobre oseu legado esobre avitalidade que pode vir ater asuacontribuição para os debates filosóficos dos socialistas contemporâneos. De maneira geral, acabei aceitando a caracterização do pensador como um "socialista utópico", mas procurei mostrar em que consiste a especificidade da "utopia" em Fourier e me empenhei em reconstituir a

originalidade da sua fundamentação teórica de um socialismo do prazer.

xvi

Vida

I. FONTES

Informações sobre avida de François Marie Charles Fourier podem ser obtidas principalmente através da leitura de três livros.

0 primeiro se intitula Charles Fourier, sa vie et ses théories. Seu amor, Charles Pellarin, era discípulo de Fourier elançou aobra em 1838

pia Ltbrairie de 1'école sociétaire. Cinco anos depois (em 1843) saiu mn.i segunda edição revista eampliada. Éum trabalho prejudicado por .«ria ingenuidade, presente na preocupação de sublinhar as qualidades «lu mestre, omitindo esuprimindo fatos ecircunstâncias que pudessem parecer um tanto excessivamente perturbadores aos olhos de um amplo

publico leitor. Apesar disso, é um texto pioneiro e uma preciosa fonte •Ir informações. Asegunda edição, em especial, utiliza dados extraídos

íkfl cartas trocadas entre Fourier eseu mais antigo discípulo, Just Mui»on, uma correspondência que depois se perdeu e não pode mais ser
0 segundo é Vie de Charles Fourier, tem como subtítulo Uhomme

éms sa vérité, éde autoria de Émile Lehouck efoi editado por Dennrl/Gonthier em 1978. Beneficia-se de um maior distanciamento em

COkçao ao biografado eaproveita a nova perspectiva histórica criada a lmi iir dos anos sessenta. Sem idealizar Fourier, Lehouck se debruça sobre iwpcetos do personagem que Pellarin resistia aenxergar, valorizando-lhe positivamente as "excentricidades" e a "desmesura".

Eo terceiro, Charles Fourier, the Visionary and his World, resultou

(lê urna pesquisa realizada ao longo de mais de vinte anos pelo professor Dl I] «--americanoJonathan Beecher: foi lançado em 1986 pela University

FOURIER,

O

SOCIALISMO

DO PRAZER

of Califórnia Press e é a mais completa biografia disponível do escritor francês. Beecherassumesua admiração por Fourier,mas propõe, a partir do exame da trajetória do seu biografado, algumas questões que vão além daquelas com que Lehouck já se havia defrontado. Nas páginas que se seguem utilizamos dados colhidos nesses três livros.

VIDA

mais fracos. Mais confiáveis parecem ser as informações proporcionadas pelo próprio Fourier, anos mais tarde, quando recorda momentos da sua

revolta infantil contra aqueles que oobrigavam acomer coisas que ele abominava, como nabo e alho-poró.

Desde cedo Charles manifestou sua repulsa ao comércio, que era a profissão de seu pai eàqual ele estava destinado segundo otestamento

paterno. Desde cedo também ele deixou transparecer sua desconfiança em relação àestreiteza do catolicismo adotado por sua mãe (com aqual, entretanto, evitava polemizar). 2. INFÂNCIA E JUVENTUDE

Para escapar ao comércio, pretendeu estudar engenharia na Escola

Militar de Mézières, mas oingresso não lhe foi autorizado porque se François Marie Charles Fourier nasceu no dia 7 de abril de 1772, em Besançon, uma cidade atrasada, que tinha na época cerca de 35 mil habitantes. Na região, a maior proprietária de terras era a IgrejaCató lica.Aolongo do século XVIIIBesançonse mantevefechada à influência do iluminismo e repeliu as inquietações e inovações teóricas trazidas pelas "Luzesda Razão". Balzac, em seu romanceAlbert Savarus, diz que

Acabou portanto empurrado para as atividades comerciais, que não lhe agradavam. Com odinheiro que recebeu da herança do pai, tratou

"nenhuma cidade ofereceu uma resistência mais surda e mais muda ao

de fazer negócios, comprando mercadorias para revendê-las.

progresso".

Suas operações mercantis coincidiram, contudo, com os anos agita dos da Revolução Francesa. Há indícios de que Charles acompanhou inicialmente com simpatia ainsurreição popular eomovimento que pôs fim àmonarquia. Logo, porém, os conflitos se generalizaram, aguerra

Os pais de Charles Fourier (essefoi, afinal, o nome com que passou a ser chamado) eram abastados. O pai, de quem herdou o nome, cha mava-se Charles Fourrier (com dois "erres"; só mais tarde é que o filho suprimiria um "erre" do sobrenome): era um comerciante próspero, morava num casarão de três andares na principal rua da cidade. Morreu em 1781, aos 49 anos de idade. O filho,então, ficou órfão de pai antes de completar dez anos. A mãe, Marie Muguet, vinha de uma família de comerciantes ricos e era uma senhora muito católica,muito conservadora.Alémde Charles,

transformado no único varão da casa, a viúva tinha quatro filhas, as irmãs do futuro escritor, que se chamavamMariette, Antoinette, Lubine e Sophie.

Sabe-se pouquíssimo da infância de Charles. Pellarin relata alguns episódios edificantessobre atitudescorajosas tomadaspelo garoto fran zino em luta contra meninosmaiores, valentões, sempre defendendo os

tratava de uma instituição destinada exclusivamente aos descendentes de nobres. Pensou também em estudar direito na Universidade de Be sançon, mas logo se convenceu de que as disciplinas jurídicas não lhe despertavam nenhum interesse.

civil se espalhou por todo oterritório francês eojovem comerciante se viu envolvido nas ações militares.

Em 1793, aos 21 anos de idade, estava em Lyon para receber um

carregamento de açúcar, café, arroz ealgodão, que vinha de Marseille,

quando se desencadeou na cidade uma rebelião contra ogoverno repu

blicano de Paris, sob aliderança do general monarquista Précy. Para sua mais viva irritação, Charles foi compulsoriamente recrutado pelas tropas rebeladas esuas mercadorias foram confiscadas eusadas nos hospitais. Poucos meses depois os sublevados foram derrotados ese renderam, de modo que Charles passou aser prisioneiro das forças republicanas vitoriosas. Conseguiu convencer seuscaptores de que era inocente, havia

sido mobilizado contra asua vontade, porém continuou a ser conside-

I FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VI DA

»

rado suspeito de traição efoi posto sob vigilância, sujeito aperquisições policiais.

Acabou sendo recrutado novamente e mandado para participar da campanha militar do exército republicano na Alemanha, na região do Reno, onde permaneceu algum tempo, em 1794-1795, até dar baixa por

»

>

deficiências de saúde.

I

opusesse àesquerda dos jacobinos ou da "Conjuração dos Iguais" lide rada por Gracchus Babeuf.

Fourier se torna descrente em relação àluta política, em geral, tal como era praticada; ese dispõe abuscar ocaminho pelo qual aimpres cindível transformação da sociedade poderia se viabilizar. No final do século XVIII, ele, de fato, estava empenhado em avaliar as causas da situação em que se encontrava a humanidade, uma situação que lhe parecia profundamente deplorável.

3. GÊNESE DA TEORIA

Aquela altura dos acontecimentos não podia retomar os negócios que empreendia por conta própria, porque estava sem capital: além da perda das mercadorias confiscadas em Lyon, tinha perdido outra parte da sua herança em mercadorias importadas que estavam a bordo de um navio que naufragou perto do porto de Livorno, na Itália.

Decidiu então trabalhar para um comerciante, Bousquet, em con

dições que lhe permitiriam, como uma espécie de caixeiro-viajante, fazer algo de que gostava: viajar.

Estava convencido de que aRevolução Francesa tinha sido um equí voco. Partindo dapercepção lúcida e aguda de que era preciso transfor

mar asociedade, porque os seres humanos estavam submetidos àpressão

de instituições injustificáveis, os revolucionários haviam metido os pés pelas mãos e tinham acabado por não mudar coisa alguma. Analisando as relações do escritor com aRevolução Francesa, Émile

Lehouck, no clima de entusiasmo "esquerdista" de alguns ativistas po líticos dos anos sessenta esetenta, chegou asustentar que "Fourier sim plesmente ultrapassou a Revolução pela esquerda", porque "descobriu que oreformismo não levava anada" (Lehouck, 1978, pp. 62 e79). Na realidade, as coisas não se passaram exatamente como Lehouck as ca

racterizou. Se, por um lado, Fourier, no plano ideal, tinha exigências mais radicais do que aquelas que predominaram na condução do pro cesso revolucionário, não devemos ignorar que, por outro lado, no pla no estritamente político, ele não tinha nenhum programa definido que

I

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Em 1799, na época em que Hegel está formulando em Frankfurt a idéia básica da sua dialética (a busca de uma razão que fosse "a união da

união eda desunião"), Fourier, sem conhecimento algum do que oseu contemporâneo estava fazendo, faz a descoberta do princípio daquilo que ele desenvolveria em seguida como asua crítica à"civilização". Opróprio Fourier narra de maneira pitoresca oincidente em que ele fez asua descoberta: num restaurante, ao pagar uma conta, ele des cobriu que a maçã que havia sido comida por seu amigo e eventual companheiro de mesa vinha de Besançon; e que em Paris ela custava

mais de cem vezes oque valia na sua terra de origem. "Tal como para

Newton, uma maçã se tornou para mim uma bússola capaz de orientar meus cálculos" (OC, X, p. 17). Essa maçã éconsiderada "digna de se

tornar famosa". Éincluída entre as "quatro maçãs célebres, duas pelos desastres que causaram, ade Adão eade Paris, eduas pelos serviços que

prestaram à ciência, a de Newton e a minha" (OC, X, p. 17). Fourier afirma que foi apartir da "sua" maçã que se deu conta da "desordem fundamental do mecanismo industrial" e começou a desenvolver sua denúncia sistemática dos males inerentes à"civilização".

4. 0 PRIMEIRO LIVRO

Como não tinha condições para comerciar por conta própria, passou a trabalhar para François Antoine Bousquet. Como "commis voyageuf, viajava muito etinha asatisfação de conversar com "gente comum",'

> FOURIER,

O SOCIALISMO DO PRAZER

pessoas que conhecia por acaso nas diligências e nos refeitórios onde

comia. Mais tarde escreveria: "Se tive êxito no estudo da atração, devo isso em parte ao cuidado com que observei as pessoas comuns, ao fato de ter me colocado em lugares de onde podia ouvir as conversasdelas"

VIDA

peitavam (sem razão) que eleestivesse fazendo críticas veladas aos diri gentes das campanhasnapoleônicas.

Ao que tudo indica Fourier não era adepto da política de Napoleão, porém não se pode dizer que fosse hostil a ele. Em alguns momentos

(OC, VIII, p. 189).

dava a impressão de que o autoritarismo bonapartista poderia encami

Quando não estava viajando,comparecia pontualmente ao escritó rio do seu patrão, ajudava-o na contabilidade. E cultivava em Lyon um círculo de amigos com os quais se divertia e aos quais expunha suas idéias. Os companheiros — entre os quais estavam Henri Brun, J. B. Dumas, J. B. Gaucel, Louis Desarbres e Aimé Martin—ficavam impres sionados com as teorias que lhes eram expostas, mas não chegavam a

nhar transformações sociais importantes, que talvez ajudassem aprepa

aderir a elas.

Em 1803 Fourier começou a publicar alguns artigos no jornal Bul-

letin deLyon. Pela primeira vezpassou a expor por escrito algumas das suas idéias. Afiançava que a "civilização" não era o destino da humani dade e sim uma forma particular de organização da vida em sociedade,

rar o terreno para a criação da "Harmonia".

Quando Napoleão foi derrotado, em 1814, Fourier fez uma tenta

tiva de entrar em contato com ele, através de uma carta que foi inter ceptada. O conde Beugnot, ministro da Polícia, mandou seus agentes prenderem einterrogarem oescritor; depois de receber orelatório, po rém, comunicou ao rei Luís XVIII que mandara soltar oelemento, por que se tratavade "um visionário, um maluco inofensivo".

Fourier teve problemas tanto com a polícia do imperador (na era napoleônica) quanto com apolícia do rei (na época da restauração mo nárquica).

uma forma que estava impedindo os seres humanos de se relacionarem

Em 1807 terminou de escrever e em seguida publicou seu primeiro

de modo harmônico uns com os outros e todos com a natureza. Insistiu

livro, intitulado Ateoria dos quatro movimentos. Apesar dos esforços

na tese de que Deus regia o mundo não pela coerção e sim pela "lei da

do autor e de seus amigos, vendeu pouquíssimo. Um livreiro observou que o título não ajudava, dava a impressão de que era um livro de ma temática. Beecher diz que é "o mais obscuro e enigmático dos trabalhos

atração universal". Assim como no cosmo os astros se mantinham em

equilíbrio porque eram atraídos unspelosoutros,a sociedade precisava alcançar seu equilíbrio através de um sistema — a "Harmonia" — no

deFourier" (Beecher, 1986, p. 116). Acrítica foi devastadora: umrese-

qualosindivíduos pudessem liberartodasas suas paixões, que"natural

nhador escreveu que se tratava com certeza de um texto redigido no

mente" se equilibrariam umas às outras. As teorias provocaram algumas reaçõesirritadas. Leitores do jornal

Pública para internar o doente.

hospício eoutro pediu uma imediata intervenção doMinistério daSaúde

fizeram pelaprimeira veza Fourier umaacusação que ele viriaa enfren tar muitas vezes: a de que era louco. O escritor respondeu lembrando orgulhosamente que Colombo e Galileu também haviam sido conside rados malucos.

Fourierse gabava de conhecerbema geografia da Europa, que havia estudado na escola, mas também ao longo de suas múltiplas viagens. Apoiado emseus conhecimentos geográficos, também se animava a opi nar sobre questõesestratégicas (afinal, conhecia o exército por dentro). E, ao dar seus palpites, suscitava desconfiança nasautoridades, que sus

5. DA PROVÍNCIA A PARIS

Fourier, desgostoso, passou vários anos sem publicar coisa alguma. Com a morte de sua mãe, em 1812, herdou algum dinheiro e deixou seu trabalho na firma de Bousquet. Mudou-se para a região onde viviam duas das suas irmãs, procurando se reaproximar delas e de suas sobri-

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VIDA

nhas. De 1816 a 1820 viveu em casa delas. Foium período de intensos estudos. Escreveu todo um livro sobre as atrações amorosas e sexuais entre as pessoas na "Harmonia", procurando determinar em que con

dições seria possível assegurar um patamarrazoável de satisfação eróti ca, no futuro, para todos os indivíduos, homens e mulheres, jovens e velhos. Esse texto — O novo mundo amoroso — permaneceu inédito até 1967,quando foi finalmente publicado por Simone Debout. Além disso empenhou-se na preparação de um novo livro, que viria a sair em 1822,como títulodeTratado daassociação doméstica-agrícola (e que mais tarde viria a ser reeditado com o título de Teoria da unidade

universal). Mas também foi um período de conflitoscom sua sobrinha Hortense, filha da irmã Mariette: embora defendesse o amor livre e o

direito das mulheres aoprazer, Fourier ficou chocado com o fato de que a solteiraHortense, na ausência da mãe, passasse as noites fora de casa.

Segundo informação dePellarin, em 1816 o escritor tinha umplano de trabalho que o deveria levar a escrever nove volumes, que teriam, respectivamente, os seguintes temas: 1)a doutrinaabstratada atraçãoe das paixões; 2) a síntese da atração e dos equilíbrios; 3) a análise das

doze paixões fundamentais dos seres humanos e dos 810 caráteres que eles podem ter; 4) a síntese do método e a teoria da transcendência; 5) a análise crítica docomércio mentiroso edaconcorrência complicadora; 6) o exame da contramarcha das paixões; 7) a teoria da analogia uni versal e da cosmogonia aplicada; 8) a teoriaintegral da imortalidade da alma; e 9) um repertório e dicionário.

Nosanos queseseguiram à elaboração desse plano Fourier foi pro curado por um funcionário público que havia lido sua Teoria dos quatro movimentos e ficara fascinado: Just Muiron, quesetornou seuprimeiro

são. Opoeta Béranger foi processado. Henri de Saint-Simon, que logo se tornaria uma celebridade eviria aser considerado um dos expoentes do "socialismo utópico", foi acusado como "inspirador" do crime. A censura se tornou mais severa.

Fourier teve medo de que o seu Tratado da associação domésticaagrícola fosse proibido. Just Muiron levou os originais para serem sub metidos a uma censura prévia e o censor opinou: "A leitura de tão es

tranhos paradoxos apresenta tantas dificuldades que olivro não pode ser considerado perigoso."

OTratado, então, foi publicado. Apublicação, entretanto, não foi um sucesso. Quatro resenhas saíram na imprensa. Os resenhadores não

foram tão hostis como os que haviam comentado olivro publicado an teriormente, mas assumiram um tom condescendente, irônico, einter pretaram a obra como uma espécie de sátira. Essa interpretação não agradou nem um pouco ao autor.

Fourier decidiu se instalar em Paris a partir de 1823 para cuidar pessoalmente da divulgação de suas idéias ede seus escritos, em contato direto com os livreiros ealgumas personalidades da capital. Redigiu um folheto intitulado "Sumários eanúncio do Tratado da associação domés tica-agrícola", insistindo na seriedade de seus propósitos e reclamando

da falta de seriedade dos jornalistas: distribuiu-o ainúmeras pessoas, encaminhando-o através de cartas personalizadas. Oesforço foi inútil; aesmagadora maioria dos destinatários não respondeu às cartas eos que responderam não manifestaram em geral interesse pela obra. Oautor

comunicou melancolicamente ao amigo Muiron que aofensiva propagandística resultará na venda de três exemplares do Tratado.

discípulo. Como Muiron era completamente surdo e não conseguia fa zer leitura labial ou falar com clareza, o mestre e o discípulo se comu nicavam por escrito, através de cartase bilhetes, mesmo quandoestavam

6. A FALANGE EXPERIMENTAL

frente a frente.

O ambiente político na França estava muito tenso. A monarquia restaurada se sentia ameaçada. O assassinato doduque deBerry, impor tante figura na sucessão dinástica, foi seguido por uma ondade repres-

i

Como seu patrimônio tinha ficado reduzido, retomou as atividades co merciais, que abominava, mas podiam assegurar sua subsistência. Para

sobreviver em Paris contou inicialmente com a ajuda de Muiron, de

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i

> FOURIER,

O

SOCIALISMO DO PRAZER

Gaucel e de seu ex-patrão (em Lyon) Bousquet. Em 1826 assumiu um posto na firma norte-americana Curtis 8c Lamb, incumbindo-se da cor respondência da filialparisiense,que porém foi fechada um ano e pouco depois pela empresa. Aproveitava a execução da tarefa da redação de cartas comerciais para escrever também cartas pessoais. Escreveu a numerosas personali dades, solicitando-lhesapoio financeiro para a experiência do falansté-

rio. Encaminhou apelos, por exemplo, ao duque de Devonshire, inglês, ao milionário norte-americando Rufus King,ao presidente de Santo Do mingo, Boyer,à viúvade lorde Byron, a príncipesrussos, a George Sand, Chateaubriand e Simón Bolívar. Não obteve nenhuma resposta. Levava uma vida frugal. Comia em restaurantes baratos e bebia vi nho ordinário (sempre resmungando que estava sendo envenenado). Tomava uma xícara de café depois do jantar e gostava de jogar bilhar. Permaneceu solteirão. Protegia cuidadosamente sua vida particular, sua intimidade; contudo, há razões para crer que teve algumasligaçõesamo rosas. Emile Lehouck chega a indicar o nome de uma de suas prováveis namoradas, Louise Lacombe (Lehouck, 1978, p. 215). Teve diversos endereços residenciais em Paris, todos próximo ao Palais-Royal, que o deslumbrou desde a primeira vez em que esteve na cidade, aos vinte anos de idade. Todas as suas habitações eram modestas. No último apartamento onde morou (e onde morreu) vivia cercado de plantas e gatos. Os vizinhos e a porteira do prédio simpatizavam com ele, porém todos o achavam bizarro. O insuspeito Pellarin, que lhe de dicava uma admiração imensa, informa que Fourier andava pela rua falando sozinho (Pellarin, 1843, p. 177). Escrevia muito, todos os dias. Atendendo a insistentes pedidos de seus amigos,dedicou-sea preparar um resumo (abrégé) de sua doutrina. O resumo se transformou no livro O novo mundo industrial, que saiu

em 1829. Na realidade, não era um mero resumo, porque trazia uma ! importante inovação no seu pensamento: preocupado com a definição de um caminho prático para a transição à nova sociedade, Fourier in veste suas energias intelectuais no planejamento de um "falanstério" (palavra composta de "falange" e "monastério"), onde se realizaria a

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1 2

VIDA

experiência da organização deum núcleo antecipador das novas condi

ções de vida. Essa experiência demonstraria aos contemporâneos as vantügens do novo modelo e, ao se multiplicar, promoveria a verdadeira transformação da sociedade.

Em 1830, para divulgar o novo livro, Fourier lançou um folheto intitulado "Anúncio do novo mundo industrial". Mais uma vez se de frontou com uma reação desfavorável. A revista católica Universel o

estigmatizou como "materialista" e "bufão". Ena Revue Française uma resenha não assinada equiparou-o a Saint-Simon e a Robert Owen, in sinuando quea única coisa que o distinguia dosoutros dois erao "estilo grotesco" em que escrevia.

A resenha anônima daRevue Française foi a que mais aborreceu o escritor, que detestou ser posto no mesmo saco que OweneSaint-Simon. Fourier atribuiu a perfídia a François Guizot, influente historiador e político, que era colaborador regular da publicação. Sua raiva foi tão grande que ele nem chegou a se alegrar muito com o primeiro comen tário favorável e bem fundamentado sobre o seu trabalho, que saiu no

Mercure de France au XDÍème Siècle, assinado por um novo discípulo: Victor Considérant.

Aconcorrência das "seitas" de Saint-Simon e Owen o preocupava cada vez mais. Num primeiro momento tinha ficado bem impressionado

com as iniciativas práticas de Owen na Inglaterra echegou ase oferecer / para assessorá-lo (o oferecimento foi delicadamente recusado). Depois de algumas conversas com saint-simonianos (Saint-Simon ti nha morrido em 1825), leu uns poucos textos publicados por eles, com pareceu a uma assembléia da "seita" e escreveu o panfleto Armadilhas e charlatanismo das seitas de Saint-Simon e Owen, publicado em 1831.

Alguns entre os saint-simonianos estavam organizados de forma \ coesa e centralizada, como uma "igreja", em torno da liderança de Prosper Enfantin; outros, porém, preservavam sua autonomia, sua reflexão crítica. E dois intelectuais saint-simonianos independentes publicaram artigos nos quais divulgavam com simpatia as idéias de Fourier: Jules Lechevalier e Abel Transon. O mestre não se entusiasmou, mas osdiscí pulos ficaram gratospelaajuda.

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> FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

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7. OS ÚLTIMOS ANOS

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Pouco a poucoo escritor começava a atrair ummaior númerode leitores e admiradores. Diversas mulheres, impressionadas com a denúncia dos prejuízos que a "civilização" acarretava para o sexo feminino, aproxi mavam-se do teórico da "Harmonia": ClarisseVigoureux,LouiseCourvoisier, Desirée Veret, Flora Tristan, etc. Também alguns jovens de ou tros países vierambaterà sua porta e depoisdivulgaram suasconcepções

em seus respectivos países de origem, como Albert Brisbane (Estados Unidos daAmérica do Norte), Hugh Doherty(Inglaterra), Ludwig Gall » I

I >

(Alemanha), Giuseppe Bucelatti (Itália) e Teodor Diamant (Romênia). Formou-se um núcleo de "fourieristas" que começou a editarum se manário, intitulado O Falanstério. Fourier encaminhava artigos para a publicação, mas osseus seguidores nãoapreciavam suacolaboração. Ten taram em vãoconvencê-lo a se expressar num estilo mais acessível, mais simples, mais jornalístico. Pediram-lhe inutilmente que não insistisse nas

ásperas críticas que fazia aos saint-simonianos. O resultado desse empenho foi que o mestre se irritou com os discípulos; e, numa cartaao editorda I >

Gazette deFrance, fez questãode esclarecer, em dezembrode 1835: "Nun ca aceitei o termo fourieristà" (Beecher, 1986, p. 487).

I

Para Fourier, suas teorias precisavam passar pelotestede umaapli cação prática parafinalmente demonstrarem para todoo mundo o acer to e a seriedade do seu pensamento. A experiência da "falangeexperi

>

mental" ou "falanstério" seria decisiva.

I

»

Em 1832 articulou-se uma tentativa de organizar o primeiro falans

tério. Baudet-Dulary, umdeputadoda região deSeine et Oise, cedeuum terreno em Condé-sur-Vesgre e se dispôs a financiar parte das obras necessárias. O jornal lançou uma campanha para arrecadar os recursos

quefaltavam. Noentanto, oempreendimento passou a sedefrontar com dificuldades cada vez maiores. O arquiteto Gengembre não gostava da

VIDA

foi insuficiente e Baudet-Dulary, depois de gastar mais do que havia prometido, resolveususpenderseu financiamento. A tentativa fracassou. Nova tentativa se fez na Romênia. O discípulo Teodor Diamant conseguiu convencer um certo Manolaite Emanuel Balaceanu a financiar

a experiência em terras que lhe pertenciam. Não se sabe exatamente o que aconteceu, mas o empreendimento não deslanchou e Diamant es creveu a Fourier, em 1836, se queixando amargamente do outro (Bee cher, 1986, p. 483).

Fouriernão desistia. Até o fim procurava um patrocinador. Como disse francamente a Muiron, estava convencido de que um "grande pro tetor" era preferível a "cem pigmeus". Enquanto pôde, enviou cartas a grandes personalidades, homens ricose poderosos, dirigentes políticos de diversas filiações partidárias. Tinha vivido noAncien Regime, na Re volução, no Império, na Restauração Monárquica e nos seus últimos anos viviasob o governo do "rei-cidadão"Louis-Philippe, entronizado cm 1830. Achava que nada de essencial havia se modificado e que a sociedade só se transformaria, de fato, quando fosse encaminhada a superação da "civilização", de acordo com as teorias que expunha. Em 1834 entregou-se à redação de uma carta aos deputados e aca

bou redigindo outro livro, que foi publicado em seguida: A. falsa indús tria. Era um apelo veemente à mudança. O escritor Michel Butor, 136 anos mais tarde, o caracterizaria como a mensagem de uma garrafa lan çada ao mar por um náufrago (Butor, 1970). Sua saúde se tornou extremamente precária. Sentia dores no estô mago, urinava com dificuldade, tinha náuseas. Levou uma queda, com suspeita de fratura no crânio. O braço direitoficou paralisado. Os ami gos, preocupados, eram mantidosa certa distância: insistiaem passar as noites sozinho.

Na manhã de 10 de outubro de 1837, a porteira o encontrou morto, inteiramente vestido com roupa de domingo, de joelhos, debruçado so bre a cama.

idéia de se fazer "ruas-galerias" no vasto prédio onde se instalariam os

pioneiros e Fourier insistia nadefesa dasuaconcepção (acabou achando que o arquiteto era um sabotador). O dinheiro arrecadado pelo jornal 1 4

I

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1. PENSAMENTO E LINGUAGEM

O pensamento de Fourier não é uma construção teórica de fácil acesso.

Mesmo em seus aspectos aparentemente mais simples, ele é, de fato, muito mais complexo do que parece.

Sua coerência mais profunda não é ostensiva e pode escapar à ava

liação rápida de um leitor menos cuidadoso. Hámomentos em que Fou rier se compraz em misturar intuições fulgurantes com longas digressões argumentativas. Ou se diverte em pôr lado a lado "visões" entusiásticas c cansativas demonstrações lógico-científicas, cheias de cálculos.

Aleitura dostextos de Fourier é, com freqüência, irritante. E eleàs

vezes dá a impressão de não estar nem um pouco preocupado em ser coerente. No entanto, um exame mais atento das relações entre os di versos textos mostra que as idéias expostas em distintos contextos se

"encaixam" umas nas outras e mantêm uma perfeita coerência com o peculiar modo de pensar do nosso bizarro teórico, que Henri Lefebvre caracterizou como "semilouco" (Lefebvre, 1975, p. 5).

Uma das características que oleitor mais atento não pode perder de vista é adaimportância dalinguagem naobra deFourier. Roland Barthes

|i1 chamou a atenção para isso (Barthes, 1971). Amaneira pela qual ele «<* expressa está sempre fortemente ligada àquilo que elequerdizer. Para entendermos efetivamente o que está sendo dito precisamos observar i Qnto ele o está dizendo.

Em determinados trechos deseus escritos podemos perceber que ele as vezes é chato por convicção. Recusa-se a pavimentar com recursos retóricos agradáveis o caminho pelo qual insiste em ver seus leitores

1 9

FOURIER,

O

SOCIALISMO DO PRAZER

avançarem com espírito honesto e predispostos a compreender a pro fundidade dos problemas que nos cercam. \

Para sublinhar anovidade do que está revelando ao leitor, permite- ] se eventualmente bombardeá-lo com neologismos, como se o advertisse

de que só assimilando a nova terminologia (Fourier é um "criador de ; linguagem", lembra Barthes) lhe será possível digerir o caroço da nova

PENSAMENTO

assustador dos grandes sentimentos edos pensamentos nobres. Eé bem esse oobjetivo que se pretendia alcançar" (Debout, 1974, p. 33).

De acordo com Simone Debout, ofilósofo se comprazia em esboçar brincalhonamente ambigüidades que não cabiam nos esquemas interpretativos usuais dos "civilizados". E, na linha de Fourier, a ensaísta

sublinha aambivalência do som da palavra esboçar em francês: griffon-

ner (que soa como griffe au nez, agarra no nariz...).

teoria.

Mas o curioso é que o mesmoescritorque se empenha em espicaçar o leitor com a chatice de seus esquemas minuciosos, suas insistentes explicações "científicas" e seus neologismos é um escritor que também mantém uma relação lúdica, prazerosa, divertida com as palavras^ Há uma carta de Fourier que só veio a ser publicada recentemente e que é uma expressão eloqüente de como ele brinca com as palavras. Aproveitando uma característica da língua francesa, o fato de que em francês a palavra escrita às vezes se distancia muito do som da palavra falada, o filósofo redigiu uma carta, aparentemente dirigida a uma so brinha (Laura), aceitandoum convite para jantarno dia seguinte. Acarta está datada de sábado, 24 de agosto de 1827 (em francês: Samedi, 24 aoüt, dix-huit cent vingt-sept). Só que o signatário escreveu: Ça me dit 24, ah!ou dix-huit tes'envintcette (Issome diz 24, ah! ou então dezoito

sincronização nos movimentos de todos os seres éoque Fourier chama

te veio esta).

de atraçãopassional.

A carta está toda redigidadesse modo. Em lugar de domingo então teremos a alegria de te abraçar (em francês: dimanche on aura doncIa joiedefembrasser), o que se lê é: "Dix manchons nosrats dont Vage oie deux temps bras serre" (dez regalos nossos ratos cuja idade gansa dois

tempos braço aperta). Mais adiante aparece a referência a uma tia que insiste em estofarelamesma suascadeiras (em francês: toussesfauteuils sonttapissés parelle-même); e isso vira "toussait faute oeilsont à pisser pas, raie le m'aime"(tossia, falta olho, não são para serem mijados, eli mina o me ama).

Simone Debout, impressionada com esta carta, chegou a lhe dedicar todo um livro, na convicção de que se trata de uma brincadeira significa tiva, desmistificadora: "As palavras diferentes que se precipitam a partir das mesmasfazem surgiro que a consciência e a moral reprovam, o avesso

20

2. AATRAÇÃO PASSIONAL

Mas oponto de partida de Fourier não épropriamente uma filosofia da

linguagem: éuma intuição ontológica que oconvence de que tudo no universo está ligado atudo. Todas as_coisas estão postas numa relação de interdependência. Oque se passa amõsro, sêrèTrmmãnos, tem aver com o que se passa com a natureza emgeral e até mesmo com osastros

no céu. As vicissitudes do ser humano afetam oequilíbrio do cosmo.

Aforça que move ouniverso egarante oequilíbrio eamagnífica

"OTmpülso amoroso que leva os seres vivos ase sentirem atraídos uns pelos outros é o mesmo impulso que Isaac Newton descreveu na

física, na forma da atração gravitacional. Faltou aNewton, entretanto,

disposição para examiná-lo tal como ele age tanto no cosmo como na vida social.

Foi com base nesse impulso que Deus organizou omundo. Só que, enquanto os astros obedecem aos desígnios de Deus, os seres humanos' aqui na Terra, se afastaram dos caminhos que lhes convinham eque lhes estavam indicados pela infinita bondade divina. A"civilização", com sua peculiar mistura de lógica egoísta eirracionalidade, criou condições ins titucionais que acarretam graves prejuízos à expressão da atração uni versal. Aatração devia serreconhecida como o"impulso naturalanterior àreflexão", que "persiste apesar da oposição da razão" (OC, VI, p. 57). 21

FOURIER, O SOCIALISMO DO

PRAZER

PENSAMENTO •

O grande desafio que Fourier propõeà humanidade é o de superar

3. A CIVILIZAÇÃO EAS MULHERES

essa situação. Asociedade precisa sertransformada para que os homens venham a ser felizes, atendendo à demanda de seus sentimentos mais

A civilização teve, em seus primeiros tempos, certa eficiência na intro

"naturais".

dução de novas técnicas e novos procedimentos organizativos na eco

—5^ •

Simone Debout enfatiza a originalidade da fundamentação teórica

dessa proposta de ação transformadora: Fourier "une a teoria do senti

nomia, contribuindo para o aumento da produção de bens materiais. Desde o começo, porém, esses avanços foram acompanhados de efeitos

mento à teoria das transformações sociais" (Debout, 1978, p. 171).

colateraisbastante negativos.

Como intuição ontológica, a atração passional precisava ser escla recida, trabalhada pela reflexão, e Fourier tinha clara consciência disso. Ao mesmo tempo, contudo, o filósofo insistia, ao longo da elaboração da sua obra, na sua convicção de que a."v.erdade" daatração passional não estava sujeita à aprovação por parte dos "ideólogos", quer dizer,

preço e isso acabava por lançá-los numa competição desenfreada uns contra os outros, tornando-os cínicos, egoístas, calculistas, desprovidos de sentimentos comunitários. As diferenças naturais e fecundas entre indivíduos e grupos acabaram se transformando em monstruosas desi

dos intelectuais "civilizados" pernósticos, "sofistas", que agiam a seu ver como prepotentes profissionais da argumentação.

gualdades. As leis eas instituições passaram aser elementos de legitima ção da opressão e dos privilégios. Aordem social passou a servir para

É

Fourier não admitia quelheviessem impor padrões sancionados em orne da "ciência", critérios preestabelecidos do que devia serconsideido "certo" ou "errado".Seos pretensos "sábios" não entendiam a im

assegurar condições nas quais uma parte dos seres humanos podia satis fazer seus desejos em detrimento dos mais pobres e dos mais fracos: Essa situação vem gerando tensões internas cada vez mais graves no

portância daatração passional, pior para eles; isso seria um sinal de que

interior dassociedades. Num texto de 1806,intitulado"O descaminho da razão" (Uégarement de Iaraison), Fourieradvertia num tom sinistro

haviamadotado idéiasacumpliciadas com a repressão e não conseguiam

se assumir comosujeitos desejantes. O autor da Teoria dos quatro mo vimentos, então, era perfeitamente coerente ao entender que seria ab surdo abrir mão de sua condição de sujeito desejante assumido, cons ciente do poder da atração passional que sentia estar presente em sua

própria pessoa, para se impor o respeito descabido à lógica de criaturas cujo horizonte estava comprometido com a cegueira da "civilização".

Os civilizados eram incitados abuscar oenriquecimento aqualquer

os detentores dopoder e dariqueza, dizendo-lhes queostronos estavam assentados sobre barris de pólvora,explosões revolucionárias sedelinea

vam no horizonte; e acrescentava: "Quando pensardes nessas verdades

terríveis, soberanos e proprietários, estremecei!" (OC, XII, p. 670). .Nas condições criadas e mantidas pelo regime civilizado, as desi gualdades sociais se acentuavam e as liberdades se tornavam ilusórias.

É em torno desse "caroço", dessa intuição ontológica, que o pensa

"Se não égeral, aliberdade éilusória" (OC, III, p. 162). Os privilegiados,

mento de Fourier se organiza. Ele não se desenvolve a partir de uma

oprimindo os pobres,impediam-nos de seremefetivamentelivres. Fou

construção doutrinária predefinida, mas em função da recusa radical da

rier denunciava: "Toda a classe pobre está inteiramente privada da li

"civilização" e da confiança na atração passional. Procuremos lembrar aqui alguns dos marcos do movimento do pen

berdade política ou social, reduzida a submeter-se a trabalhos assalaria

dos que aprisionam tanto a alma como o corpo. Um subalterno que tivesse opiniões contrárias às do seu chefe seria demitido, perderia o emprego. Ele não tem, portanto, liberdade social ativa, nãotem direito

samento de Fourier.

de opinião, nem mesmo nos limites do senso comum" (OC, III, p. 158). Acivilização está cada vez mais dominada pelo espírito mesquinho 11

23

A-

FOURIER, O SOCIALISMO DO

PRAZER

PENSAMENTO

dos comerciantes. Com a idéia fixa de obterem lucro a qualquer custo, os comerciantesse tornaram riquíssimose extremamente poderosos, em certos casos mais poderosos que alguns reis. Fourier imprecava: "O co merciante é um corsário industrial" (OC, III, p. 217). E explicava:

Ocasamento monogâmico, tal como está instituído pela civilização, é contrário à natureza; por isso é quase que inevitavelmente acompa

"Hoje, os comerciantes são livres, mas o corpo social não é livre nas relações com eles, pois somos forçados a fazer compras, não podemos deixar de adquirir alimentos e roupas. Comisso, ficamos nas mãosdos

elaborar uma lista contendo 76 espécies diferentes de cornos. Entre os tipos de corno se destacam: o corno putativo (que sofre as dores do uso

vendedores, entregues à velhacaria deles" (OC, III, p. 195).

^~ Astransformações ocorridas na civilização ao longo doséculo XVIII foram contraditórias. Por um lado, houve alguns avanços tecnológicos dignos de nota; por outro,contudo, o fortalecimento do espírito mer cantil agravou os males do regime civilizado. Ele passou a dar claros sinais de que estava durando muito mais do que seria razoável que du rasse. Com o prolongamento antinatural de sua existência, o sistema vinha acarretando conseqüências especialmente deletérias para a massa

dos trabalhadores e paraa metade feminina da humanidade. De fato, a civilização impunhaaos trabalhadores condições inóspi tas detrabalho, jornadaspenosas e cansativas, atividades mecânicas nada criativas; paralelamente, consagrava o casamento monogâmico, manti nha formas rudes de coerção na organização da vida familiar e impunha às mulheres uma situação insuportável. Na civilização, afirmava Fourier, a mulher é pressionada para esco lher entre a prostituição mais ou menos evidente ou disfarçada e a "es

cravidão conjugai" (OC, I, p. 150). A Revolução Francesa teria dado uma prova eloqüente dasua inépcia aorecuar diante dodesafio deabolir o casamento monogâmico, uma instituição que parecia ter sido inven tada para premiar os perversos. "Quanto mais um homem é astucioso e sedutor, mais fácil é paraelealcançar por meio do casamento a fortuna e a respeitabilidade" (OC, IV, p. 99). O resultado da preservação dessa instituição era previsível: o amor, para subsistir, era obrigado a negá-la, tornando-se subversivo. "Não tendo outro caminho para satisfazer-se, o amor se torna um conspirador permanente, que trabalha de maneira

infatigável na desorganização da sociedade, desrespeitando todos os li mites colocados pela legislação" (OC, V, p. 211).

nhado pela traição. Uma incansável campanha contra o casamento leva

Fourier a se interessar pela figura do marido traído e o filósofo chega a dos chifres antes mesmo de recebê-los), ocorno marcial (que toma drás ticas medidas militares dentro de casa para evitar que aconteça o que afinal acaba acontecendo), o corno sarcástico (que ridiculariza os outros

cornos sem se dar conta de sua própria situação), o corno resignado, o corno viajante, ocorno excessivamente absorvido pelos negócios, ocor

no de saúde frágil, ocorno politicamente hábil (que faz aliança com um dos amantes da sua mulher para combater os outros), o corno tutelado

(que obedece atodas as ordens da esposa), o corno mimado (que aceita tudo, desde que o papariquem), o corno cínico, o corno perplexo, o corno fraternal, ocorno inconformado que vive provocando escândalos, etc. (OC, XI, vol. 3, pp. 249 a 272).

Avisão satírica dos maridos traídos fazia parte de uma estratégia de apoio às esposas que traíam. Em sua Teoria dos quatro movimentos, o filósofo se solidarizava resolutamente com asmulheres e com a rebeldia

delas, explicando que era graças à persistência com que infringiam as regras que lhes eram impostas que as mulheres proporcionavam alguma alegria aos homens e a elas mesmas. Arecusa à fidelidade obrigatória abria caminho para os prazeres do adultério, partilhados pelas esposas e por seus amantes. "A felicidade do sexo masculino se estabelece na

proporção daresistência das mulheres aos preceitos da fidelidade conjugai"(OC,I,p.l38).

Trata-se de uma rebelião plenamente justificada, já que é sobre as costas das mulheres que pesa a civilização, com toda a sua carga inuma na. "Os civilizados julgam as mulheres com base em seus costumes atuais, com base nadissimulação que é inculcada nelas, quando lhes é recusada toda e qualquer liberdade; eles acreditam que essa duplicidade é um atributo natural e invariável do sexo feminino" (OC, I, p. 90). Toda a educação nas sociedades civilizadas tem se empenhado em

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25

FOURIER,

O SOCIALISMO DO PRAZER

inculcar nas mulheres um espírito de docilidade e de obediência. E é a resistência oferecida por elas que mostra o nível das liberdades efetiva mente alcançadas em cada povo. Fourier chega mesmo a sustentar que a posição das mulheres é o

melhor indicadordo nível de cultura e de progresso social autêntico em cadasociedade: "O progresso social e as mudanças de períodos históri

PENSAMENTO

oque elas têm afazer écuidar de se preservar, servindo-se, quando for ocaso, de artifícios ementiras: "É evidente que as mulheres, oprimidas, perseguidas em todos os sentidos, não têm outra saída senão afalsidade; eaculpa disso cabe inteiramente aos seus perseguidores eàcivilização" (OC, VII, p. 438).

cos acontecem na proporção em que se realiza o avanço das mulheres em direção à liberdade; e o declínio social ocorre como um resultado

da diminuição da liberdade das mulheres" (OC, I, p. 132). Trinta e seis anosmais tarde,emseuManuscritos econômico-filosó-

4. PERIODIZAÇÃO DO MOVIMENTO SOCIAL

ficos de 1844, Marx retomaria essa idéia de Fourier, escrevendo: "A \

Fourier desenvolveu uma classificação esquemática dos períodos percor

relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser humano é a relação entre homem e mulher." E acrescentando: "Com base nessa

relação pode-se portanto julgar todo o nível de cultura alcançado pelo ser humano" (terceiromanuscrito, "Propriedade privada e trabalho"). O tom com que Fourier defende a liberdade das mulheres é franca

mente polêmico. "Aliberdade amorosa desenvolve preciosas qualidades nas classes que dela mais desfrutam: as senhoras da alta sociedade, as cortesãs de bom-tom e as pequeno-burguesas solteiras. Éentreessas três espécies de mulheres que podem ser percebidos os desenvolvimentos mais felizes. Reunidas, as qualidades delas constituiriam a perfeição" (OC, I, p. 135). As primeiras são finas, galantes, agem com segurança, distinguem-se das burguesas vulgares e mesquinhas. As segundas são cordiais, generosas, simpáticas, estão familiarizadas com o prazer, são compreensivas. E as terceiras são criaturasurbanaslivres, que, recorren do à imprescindível dissimulação, podem desfrutar dasaventuras veda das às moças de "boa família". Essa posiçãose mantémao longode toda a sua obra. Fourieradverte que uma moça inexperiente, virgem, não tem "perspicácia suficiente

para perceber as hipocrisias de seus pretendentes, a delicadeza postiça deles" (OC, VI, p. 274), de modo que se arrisca a fazer um mau casa mento.

As moças, então, devem adquirir experiência na vidaamorosa, po rém devem ser prudentes; enquanto não se organizar a nova sociedade, 26

ridos pela humanidade em sua evolução social. Para ele, os seres huma nos passaram pelos períodos (1) edênico (ou primitivo), (2) selvagem

(ou de inércia), (3) patriarcal (ou de pequena indústria), (4) bárbaro (ou de média indústria) echegaram à fase da (5) civilização (ou de grande indústria).

Oque deverá vir após o55 período? Aos olhos do pensador, asupe ração da civilização apresentava inegáveis dificuldades. Segundo ele, numa primeira etapa viria atransição: ainda sob opeso das instituições civiliza

das, os seres humanos precisariam conquistar alguns direitos, algumas ga rantias protetoras, que poderiam conter e limitar osexcessos dedestruti-

vidade da civilização. Essa seria aetapa do "garantismo" (o 62 período), no qual deverá ser encaminhada a experiência do falanstério.

Ofalanstério assumiu no pensamento de Fourier uma importância crescente, na medida emque ele enfrentava as dificuldades de umasu

peração da civilização sem admitir a hipótese de mudanças provocadas revolucionariamente. Excluída a via da revolução, era preciso recorrer àvia do exemplo: uma experiência bcm-sucedida numa pequena comu nidade poderia demonstrar aos homens na prática como eles poderiam viver bem melhor em outro sistema que não o civilizado. ° í?,anstério "~9ue será abordado em outro capítulo, mais adiante

—abriria caminho para a criação do regime "societário", permitiria o início do 75 período, odo "sociantismo", operíodo da "associação sim27

FOURIER, O

SOCIALISMO DO PRAZER

pies". E o 8- período, então, seria o da "Harmonia" ou "associação composta".

Ao todo, a humanidade, em sua trajetória social, atravessaria 36 períodos,que se estenderiam ao longo de oitenta mil anos, no finaldos quais se extinguiria a vida humana, animale vegetal, e a Terra deixaria derealizar seumovimento derotação. NaTeoria dosquatro movimentos há um curioso "quadro do curso do movimento social" que explicita a previsão deum longoperíodo "ascensional" inaugurado pelaHarmonia e o anúncio de dois longos períodos de "declínio",antes do fim. Fourier, contudo, recusava-se a falar sobre os períodos que viriam após a "Harmonia", alegando que seus contemporâneos não o com

preenderiam. Preferia, de fato, concentrar-se na crítica implacável à ci vilização. Como já foi dito, em suaanálise, a civilização era reconhecida como umaorganização que podiaproporcionar avanços técnicos e prosperidade econômica. Impunha-se, porém, a ressalva: ela jamaisconseguiria tornar o trabalhoem geral uma atividade agradável; e jamais poderia assegurar bem-estar para todos. "Se o povocivilizado desfrutasse de um mínimo de conforto e fartura, de alimentação e manutençãogarantidas, ele se entre

garia à ociosidade, porque a indústria civilizada é muito repugnante. É preciso,portanto, que o trabalho,no regimesocietário,setorne tão atraen te como o são hoje as festas e os espetáculos" (OC, VI, p. 13). Além da vantagem de tornar-se prazeroso, o trabalho, no regime societário, superaria amplamente a produtividade do trabalho civiliza do: pouparia energia e obteria resultados muito melhores. Uma cozinha societária, por exemplo, economizaria 9/10 de combustível e 19/20 da

mão-de-obra utilizada nas cozinhas civilizadas. E a produçãoindustrial seria rapidamente quadruplicada. Por que, então, as pessoasse aferram às instituições civilizadas e não se dispõem a aproveitar as possibilidades oferecidas pela superação da malfadada civilização? Fourierexplica: "Existe umavenda,uma catarata das maisespessas, que cegao espírito humano. Essacatarata se compõe de 500 mil volumes que discursam contra as paixões e contraa atração, emvezde estudá-las"

28

»

PENSAMENTO

(OC, VI, p. 27). Em outro texto, ele fala de "600 mil volumes" (OC, II, p. xv). O número, afinal, não tem importância. Oque importa é que os civilizados cultos estão imbuídos de uma doutrina chamada moral, que é inimigamortal das paixões.

Amoral assume, assim, na perspectiva de Fourier, ascaracterísticas que Marx atribuirá nageração seguinte à ideologia.

5. AS PAIXÕES

Os civilizados temem as paixões porque elas escapam ao controle da moral. Quando uma paixão irrompe, nas condições devida doshomens civilizados, elaassume formas preocupantes, freqüentemente muito des trutivas. Isso acontece porque a civilização não permite que as paixões essenciais do ser humano sedesenvolvam todas ao mesmo tempo. Desde 1806, quando escreveu "O descaminho da razão", Fourier se dedicou a analisar sistematicamente aspaixões radicais dos seres humanos. Comparou-as, qualificou-as e chegou à conclusão deque elas eram doze. Ao longo detoda asua obra, defendeu a idéia deque era necessário que fossem criadas condições nasquais asdoze pudessem sersatisfeitas. "Deus nos deu doze paixões, só podemos ser felizes satisfazendo todas as doze" (OC, VI, p. 413).

Nenhuma paixão radical pode sercerceada impunemente. Fourier adverte: "Toda paixão estrangulada produz uma contrapaixão tão ma léfica quanto a paixão natural seria benéfica" (OC, VII, p. 390). As cinco primeiras entre aspaixões radicais derivam, nasua opinião, dos órgãos dos sentidos: a paixão de olhar, a de ouvir, a do paladar, a do olfato e a dotato. Todas estão sendo prejudicadas pela situação em que se encontram os civilizados, vivendo em cidadesfeias, barulhentas e fétidas, obrigados a se alimentar mal e submetidos a contatos físicos desagradáveis com a sujeira. -n

Uma segunda categoria depaixões, para Fourier, reúne aquelas que se referem a determinados afetosuniversais: a paixãoda amizade, a do 29

\JV

J

2

> FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

PENSAMENTO

amor, a da ambição e a do "familismo". São quatro paixões que lidam com as relações entre as pessoas e se distinguem das cinco anteriores,

a "cabalista" pode se corromperem mesquinharias intrigantes; a ambi ção vira carreirismo oportunista; o "familismo" resulta em nepotismo,

que se referem às relações das pessoas comas coisas. Seguem-se, finalmente, três paixões que Fourier chama de "distri-

e assim por diante.

butivas": a "compósita", a "borboleta" ea "cabalista". A"compósita" é a paixão do entusiasmo, da entrega do sujeito a uma causa, a um ideal, a algo que ele põe acima da sua conveniência estritamente pessoal. A "borboleta" é a paixão de variar, a necessidade de ir "de flor em flor", sem se fixar numa coisa só (uma espécie de contrapeso indispensável para os possíveis excessos da "compósita"). A paixão da borboleta "é a

sabedoria apresentada sob as cores da loucura" (OC, VI, p. 102). E a* | "cabalista" é a paixão "conspirativa", que leva o sujeito a se assumir ' como sujeito particular nointerior de qualquer coletividade: é uma pai xão essencial para que ocoletivo não anule as diferenças, as contradições em seu interior (as divisões internas, as tensões entre indivíduos e gru pos, é que vivificam a dinâmica da comunidade). Essas doze paixões coexistem nas criaturas e fazem de todo ser hu

mano uma unidade complexa de forças diversas. O que une as paixões

Da mesmaforma que as paixões, os prazereslegitimamente deriva dos delas também sãodistorcidos pelacivilização, ficam desequilibrados, amesquinhados, supersimplificados e empobrecidos. Fourier escrevia: "Nosso erro não é, como se acredita,o de desejar demais; é o de desejar muito pouco" (OC, III, p. 233). Na Harmonia, liberadas as paixões e diversificados os prazeres, as distorções desaparecerão: "Quanto mais

os prazeres forem numerosos e freqüentemente variados, menos se po derá abusar deles" (OC, IV, p. 551). Todos os prazeres, desde que "não sejam nocivos ou vexatórios para outra pessoa,serão úteis e proveitosos no estado societário" (OC, III, p. 23). Fourier conclamava as pessoas a se observarem e a tentarem se co nhecer melhor, cada uma abrindo espaço em seu interior para enxergar e desenvolver suas diversas paixões, na convicção de que assim elas es tavam se preparando para a vidamelhor que o futuro poderia vir a lhes proporcionar.

é uma espécie de décima terceira paixão, o "uniteísmo": parasobreviver

humanamente, cada indivíduo sente a necessidade de orquestrar sua inevitável complexidade anímica.

Cada pessoa é uma combinação peculiar das doze paixões radicais. A intensidade com que cada uma delas é vivida pode variar muito decaso para caso. Existem situações em que osujeito pode serdominado poruma

única paixão (possui um temperamento "solitonal". O protagonista do Avarento, de Molière, por exemplo, era possuído pela paixão da ambição, sob aforma da avareza. Outras pessoas podem ser possuídas por duas, três ou mais paixões, isto é, têm temperamentos "bitonais", "tritonais", "tetratonais"ou até "pentatonais". Robespierre (de quem Fourier não gostava nem um pouco) é caracterizado como uma personalidade dominada por três paixões: a "compósita", a "cabalista" e a ambição. Quando as paixõespuderemse desenvolver simultaneamente e com

total liberdade para todas, umas equilibrarão as outras. Na civilização, a "compósita" pode facilmente degenerar em fanatismo e intolerância; 30

W_

6. O AMOR

Entre as doze paixões, há uma que é especialmente maltratada pela ci vilização e à qual o filósofo dedica especial atenção: o amor. A intensidade de que é capaz a experiênciaamorosa lhe confere uma"

dimensão religiosa: "Éna embriaguez doamor que o serhumano acre dita elevar-se ao céu e partilhar a felicidade de Deus. A ilusão não é tão nobree tão religiosa nas outras paixões; elas não elevam tão alto o grau de embriaguez dos sentidose da alma; elasnosaproximam bem menos da felicidade divina e são menos capazesde fornecer o embrião de uma religião da identificação com Deus, uma religião que sejabem diferente das religiões civilizadas, já que estassão cultos da esperança pm D^ns e jiãocteassociação à sua felicidade" (OC, VII, p. 15).

31

FOURIER,

O

SOCIALISMO DO PRAZER

AHarmonia, no futuro, vai se basear num amor humano a Deus que seapoiará naexperiência de felicidade conhecida pelos seres humanos que pode lhes ensinar algo dafelicidade divina: a experiência do amor. Aj3ajxão_arru3r43sa^ejr^^ inelimináveis, que são a do corp^eajda-alma^tfxé^-a dos sentimentos espiri tuais e a da intensidade material das sensações^jQ&dvilizados muitas vezes sacrificam uma dessas dimensões à outra. Fourier sublinhatanto

ajmportância do^razerj^ico^^as^sualidade, como a do sentimento depurado, que ele chama de "celadonismo^(nome extraído de um per sonagem literário de grande sucesso no século XVII, CéladonTaTobra de Honoré D'Urfé, LAstrée). Fourier chega a criticar Cervantes por ter ridicularizado os senti mentos "celadônicos" deDomQuixoteemrelação a Dulcinéia. Na Har

monia, de acordo com o pensador francês, haverá muito apreço pelo "celadonismo", as pessoas se tornarão mais "filantrópicas" no amor, desenvolverão modos de amar mais intensos, mais^ggssasiáaisljpuissanciels). O sentimento se tornará mais verdadeiro na medida em que não estiver comprometido com a subestimação das exigências do "prin cípio material".

7. EROTISMO E GASTROSOFIA

Areferência às orgias pode causar espanto aos leitores. Fourier conside

rava "naturais" os impulsos orgiásticos, embora admitisse que na civili zação as orgias eram manifestações de grosseria. Nas orgias dos civiliza-

dos^jgcreyjaAudo épuro materialismo; osentimejnjonãoJ^rriJiêlínum

Jices^ojLelas" (OC, VII, p. 326). NoJu^uroi_contui^ se™bjHdji&^^

muita uma

^Corte do Amor^TBirigida por umjvíinistroe^.PresíaBã^oTulnPontí-

fice, quecuidarãodeassegurarjm|ões deliciosas^impatiasjrratuas, en contros de efeitos duradouros entre os participantes, voluntários. (OC, VII, p. 309), de modo que a bacanal e a orgia "serão enobrecidas como ato de unidade e função santa" (OC, VII, p. 220).

FourieTcõnfírplenamente na legitimidade de todas as manifesta

ções do amor. Nada oescandaliza. Nenhuma "mania lúbrica" lhe parece desprezível ou meramente ridícula, já que cada uma delas expressa aseu modo um impulso significativo da atração passional. "Cada um tem sua razão em suas manias.amorosas, jáque o amor é a paixão da desrazão" (OC, VII, p. 384).

Os que se destacarem na capacidade_de cultivar generosamente a

paixão amorosa serão honrados pela comunidade a que pertencerem:

receberão o título de "anjos" e farão parte de um novo "angelicato". TanxoJiomens como mulheres~serão.respeitados em suas escolhas pes soais na vida amorosa, quaisquer que venham a ser as opções feitas; a coletividade, entretanto, prestará homenagens aos que se mostrarem mais dadivosos em suas atividades, porque o caminho das experiências múltiplas é o do aprimoramento individual e o daconveniência coletiva.

Eocaminho da felicidade corporal eodo fortalecimento do sentimento, da religiosidade.

"Quando uma mulher estiver bem provida de todo o necessário amoroso, dispondo de plena liberdade, contando com a assistência de

uma boa variedade de atletas materiais em orgias e bacanais, tanto sim ples como compostas, então ela poderá encontrar em sua alma uma

ampla reserva para as ilusões sentimentais" (OC, VII, p. 98). 32

í

PENSAMENTO

Não existe, para Fourier, nenhum motivo para que o homossexuaIismo seja condenado. O filósofo conta que, por acaso, aos 35 anos de idade, presenciou uma cena de amor entre duas lésbicas e ficou viva mente emocionado, possuído de intensa atração pelo que vira. Oincesto

também lhe parece natural, como decorrência da junção de duas paixões radicais, o amor e o "familismo" (OC, VII, p. 253).

De passagem, Fourier fez uma referência ao Marquês de Sade, consi derando-o oautor de um "sistema moral" que refletia adeficiência em seu

criador de duas paixões radicais: a borboleta", que lhe teria permitido ligar-se avárias pessoas e, pela variedade, atenuar sua destrutividade; ea "compósita", que lhe teria possibilitado oequilíbrio que só a dedicação entusiástica aum ideal positivo pode proporcionar (OC, VII, p. 391). Há também uma rápida observação^sicanalítica" sobre uma certa

Madame Strogonoff, uma senhora njssa.que torturava sua lindaserva porque se sentia enciumada de.vê-Ja tão bela. Fourier diverge da interpretação 33

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

e^dizqueela de fato sentia-se atraída gejaserva enão ousava.assumir sua homossexualidade. Se reconhecesse a paixão que a movia, talvez asduas

JiyessemjpoaKblse!^

amantes (OC, VII, p. 391).

Além do amor, Fourier considerava extremamente importante apai

PENSAMENTO

paração da galinha —"a mais preciosa das aves domésticas", "o mais saudável dos comestíveis" —a cozinha harmoniana chegaria a inventar três mil tipos de pratos à base de frangos e ovos (OC, V, p. 341).

xão derivada do paladar. Segundo ele,na Harmonia seriam conferidos

títulos honoríficos e recompensas materiais não só aos que se notabili zassem por "virtudes amorosas", mas-também-aos-que-se-destacassem

8. AS "SERIES"

por.conhecimentos científicos, por talentos artísticos e por"realizações gastronômicas". Haveria-títulos de "santidade" e "heroísmo".

Como autodidata, o filósofo estudou nutrição porsua conta e che gou à conclusão de que as crianças tinham suas razões para apreciar os

doces, já que oaçúcar é altamente energético. Agula, a seu ver, possuía sua própria sabedoria. O prazer da alimentação saborosa é "o mais ge ral", é "oprimeiro e também o último que oser humano experimenta", um prazer "do qual ele desfruta desde o seu nascimento até a sua morte" (OC, VII, p. 126).

Os civilizados banalizam, vulgarizam e corrompem esse prazer. Em geral, engolem sem atenção uma comida que não foi preparada com ca rinho. E, quando algo lhes agrada, devoram oalimento com voracidade, tornam-se glutões, exageram, prejudicando tanto o prazer como a saúde. '*

Fourier propunha que a paixão que se manifesta no paladar fosse

estudada seriamente por uma nova ciência, a "gastrosofia". A"gastrosofia" deveria ser capaz de superar o elitismo da gastronomia, contri buindo para "obem-estar da multidão dos operários" eproporcionando "ao povo os refinamentos da boa comida, que acivilização reserva para os ociosos" (OC, VI, p. 304). Além disso, ela deveriarelacionaro sabor

e opoder nutritivo dos alimentos com os diversos tipos de temperamen tos humanos.

Os 810 temperamentos (ou caráteres) por ele cuidadosamente ca

talogados se tornariam muito exigentes em matéria de paladar. Assu mindo suas preferências particulares, afirmando seus respectivos gostos, eles estimulariam uma grande diversidade de sabores na preparação dos pratos. A demanda cada vez mais refinada criaria uma oferta cada vez

mais ricamente variada. Fourier assegurava, porexemplo, que na pre34

Os seres humanos são dotados de uma sociabilidade natural ese juntam ou se articulam, segundo Fourier, de quatro modos elementares: a ami

zade, a ambição, o "familismo" e o amor. Sempre inclinado às aproxi mações analógicas, o pensador socialista relaciona esses quatro modos elementares da articulação aos quatro elementos que afísica clássica dos antigos gregos conhecia: aamizade correspondia à terra, a ambição cor

respondia ao ar, o "familismo" àágua; e oamor —vinculado àenergia "aromática" —contribuía para a fusão dos laços promovida pelo "uniteísmo", correspondente ao fogo (OC, rV, p. 539).

Aanálise prosseguia: aamizade era o modo de associação elementar que predominava na infância; o amor, najuventude; a ambição, na ma turidade; e o "familismo" na velhice.

Fourier advertia: as relações humanas no estado societário não se

prenderiam aesses quatro modos elementares. A"falange experimental" deveria permitir que nela se formassem espontaneamente aschamadas "séries".

Por mais variadas que sejam as inclinações dos indivíduos, por mais peculiares que sejam as características que elas possuem, as pessoas desco brem afinidades entre elas; então, se aliam a determinadas criaturas em torno dessas afinidades e a partir de uma certa contraposição a outras criaturas, unidas porafinidades diferentes. Assim seconstituem as"séries".

As "séries" reúnem os seres humanos a partir de convergências im portantes, porém vivem também das divergências existentes entre aque

les que as constituem. Nenhuma concórdia pode presumir aeliminação das discórdias, que são elementos insuprimíveis da realidade humana. O que levou Simone Debout a observar: o paradoxo maior de Fourier 35

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER PENSAMENTO

está na insistência com que ele se empenha em "fundar o acordosobre a diferença" (Debout, 1978, p. 11).

Asérie ganha vitalidade porforça da diversidade das preferências

de seus integrantes. Por isso, uma "série" equilibrada deve ter, em seu interior, divisões e subdivisões. Ateoria de Fourier valoriza energica mente as diferenças de grupos e de indivíduos. O número ideal de integrantes de uma "série" deveria ser de cin

qüenta pessoas, com um grupo mais influente no centro e outros grupos menos influentes mas necessários à direita e à esquerda. As "séries" de veriam se inserir num conjunto de cerca de 400 pessoas, organizadas em torno das atividades produtivas por elas reconhecidas como imprescin

díveis àsobrevivência eao bem-estar material. Essa organização, contu do, só se legitimaria aos olhos de todos se não manifestasse incompati bilidade com o prazer.

Quatro desses conjuntos de 400 pessoas comporiam a "falange ex perimental". Se tivesse muito mais de 1.600 membros, a falange se tor naria caótica: se tivesse muito menos, tenderia a mostrar-se incapaz de assimilar numa escala "de massa" as contradições entre indivíduos e pequenos grupos, que se amesquinhariam infecundamente.

9. O FALANSTÉRIO

Fourier denominava "falanstério" o edifício onde estaria instalada a fa^

lange experimental. Essa instalação precisava ser minuciosamente pre parada, em todos osseus pormenores, jáque o destino dahumanidade dependia da experiência. __ Cominfinita paciência, seu idealizador fez e refez cálculos destina

dos averificar qual seria adimensão mais desejável para apopulação do falanstério: chegou aonúmero de 1.620 pessoas de diferentes condições sociais, na maioria_agricultorese artesãos, porém assegurando a presenç^e_urna-nnnoHa^e^apkalistãX^rtls^j intelectuais.

Aárea deveria ser relativamente próxima a uma cidade, com terra 3 6

fértil, colinas, bosques eum rio. Os indivíduos selecionados para aex

periência deveriam ter várias idades, formações distintas, diversos níveis

de cultura ede conhecimentos. "Quanto mais variedade nas paixões

enas faculdades, mais fácil será harmonizá-los em pouco tempo" (OC

iy p. 428).

'

Dos 1.620 habitantes do falanstério, 415 seriam homens adultos,

395 seriam mulheres adultas, 810 seriam crianças (OC, IV, p. 442). Aremuneração de serviços e trabalhos seria feita de acordo com uma avaliação que levaria em conta três fatores: ocapital investido (4/12), as tarefas práticas realizadas (5/12) eotalento ou os conheci

mentos demonstrados (3/12). Odinheiro circularia no falanstério eaju daria a fazer o sistema funcionar.

Um "areópago" ou conselho superior, integrado por representantes

de cada ' série", zelaria pelo bom funcionamento das atividades neces

sárias, indicando as tarefas que estivessem por ser realizadas, sem jamais dar ordens ou fazer imposições, "já que aharmonia nãoadmite nenhuma

medida coercitiva" (OC, IV, p. 447).

Os comportamentos se estruturariam apartir de convicções livre

mente adquiridas enão no cumprimento de ordens. As pessoas desen

volveriam hábitos mais racionais que os da civilização, porque tomariam consciência das vantagens oferecidas por tais hábitos para todos epara cada um. No falanstério seriam feitas cinco refeições. As pessoas, ávidas de participar das muitas coisas boas da vida, acordariam bem cedo (às três emeia da madrugada) etomariam odesjejum às cinco. Asegunda refeição seria às oito, aterceira às 13, aquarta às 18 horas. Ehaveria uma ceia às 21 horas.

No estado societário, os médicos edentistas receberiam da comu nidade uma remuneração tanto mais elevada quanto menor fosse onú mero eagravidade das doenças edos problemas dentários das pessoas (ao contrário do que se pode observar no critério adotado na civiliza

ção). Aeficiência dos médicos edentistas, já na falange experimental,

seria medida pelos resultados da medicina preventiva (OC, V, p. 68).

Fourier faz uma descrição precisa da arquitetura do falanstério, que terá "ruas-galerias" bonitas, limpas eagradáveis, cobertas eprotegidas

FOURIER.

O

SOCIALISMO DO PRAZER

dos excessos de vento, frio, calor ou umidade, pelas quais as pessoas poderão passear despreocupadamente. Haverá zonas de barulho (para crianças, cozinha, festas, ocupações ruidosas) e zonas de tranqüilidade (para repouso, leitura, meditação). Haverá também salas especiais (os "seristérios") planejadas para sediar as reuniões dos integrantes das di

PENSAMENTO

também não se apoiaria nas concepções elaboradas pelos grandes teóri cos e pedagogos da civilização.

Fourier comentava sarcasticamente que Condillacsó conseguiu for^)

mar um cretino, Rousseau não educou seus próprios filhos, oprincipal/ ^~

discípulo de Sêneca foi oimperador Nero eofilho de Cícero só conse-/

versas "séries".

guiu se destacar como beberrão. Mesmo os maiores educadores civiliJ

A economia do falanstério não elimina a propriedade privada e mantém o dinheiro,bemcomopráticas demercado. No entanto,Fourier

zados acumularamestrondosos fracassos.

está convencido de que as práticas do mercado e o uso do dinheiro no

riam certamente lidos esem dúvida muito apreciados, mas encarados co

falanstério não assumirão ascaracterísticas que podemser vistas no fun cionamento do mercado tal como sevêna civilização, porque a preser vação da dimensão comunitária influirá decisivamente nas ações dos indivíduos. A civilização é inumana e o mercado emque se apoia a sua economia também é inumano. Riviale observou que, na civilização, "o mercado, apresentado como substituto ao mesmo tempo da virtude e do poder, encontra-se, segundo Fourier, invadido pelo vício e pelavio

mo monumentos divertidos da infância da humanidade (OC, II, p. 22).

lência" (Riviale, 1996, p. 56). O falanstério criará uma situação que nunca existiu antes. Serítín-

do-se livres, seguros da legitimidade de seusdesejos e de suaspaixões, os indivíduos terão apreço pela organização que lhes possibilita a vida que levam e não terão nenhum motivo paraa competição exacerbada e destrutiva que a civilização lhesimpõe. No mundo inteiro se poderá notar uma curiosidade crescente a res

peito do que se passa no falanstério. Turistas acorrerão emgrande nú mero (sobretudo ingleses!). Quem vier visitar o local deverá pagar in gresso e isso constituirá uma boa fonte de renda.

y

Nas bibliotecas do falanstério, os livros dos filósofos do passado se

Aeducação das crianças seria feita, predominantemente, pelas pró prias crianças: as crianças um pouco mais velhas ensinariam oque soubes sem às outras, um pouco mais jovens eávidas por imitá-las (OC, VI, p. 218). Aintervenção dos adultos ficaria reduzida ao mínimo indispensável. Taj_como o trabalho, a atividade educativa deverá ser prazerosa.

Uma fungõTelevante~será cumprida pelas artes, a ópera, amúsica, a dança, oteatro, amímica, apoesia, apintura, acomposição dos cenários. Todos terão acesso àfruição da arte eà expressão artística: "Não haverá

mais artistas de teatro (comédiens), porque todos oserão" (OC, V, p. 78). E ninguém serápago para sê-lo.

O falanstério não pode deixar de ter um bom teatro, onde serão

encenadas peças, óperas magníficas, espetáculos de qualidade assegura da pelo intercâmbio com outros falanstérios. Aexpressão artística, en tão, floresceria livremente, sem ser atrapalhada pelo moralismo, que resulta em chatice eafugenta o público (OC, IX, p. 766). Para cuidar das crianças muito pequenas, haveria babás, que seriam pagas pela comunidade e serevezariam em turnos de no máximo duas

horas. Seriam pessoas qualificadas e respeitadas pelas mães. Naturalmente gulosas, as crianças serão também desde cedo ins

truídas na arte culinária edesenvolverão conhecimentos gastronômicos (mais tarde, gastrosóficos). Todos os seres humanos, em última análise,

10. A EDUCAÇÃO

Aeducação no falanstério não assumiria as características dasexperiên ciaseducacionais que têm sido realizadas pelassociedades civilizadas. E

serão cozinheiros competentes (OC, V, p. 105).

Para se reconhecerem parte da natureza e poderem se identificar com ela mais profundamente, as crianças aprenderão a tratar com cari-

38 39

:

> FOURIER, O

SOCIALISMO DO PRAZER

PENSAMENTO

»

nho os animais, que se tornarão mais felizese mais hábeis na Harmonia.

Haverá educação musical para os bichos (OC,V, p. 92). A educação societária levará em conta em cada fase de desenvol

vimento as necessidades da criança e sempre cuidará de lhe propor cionar meios de enriquecimento individual e condições para se inte grar mais plenamente na coletividade. Ultrapassado o período inicial (o dos recém-nascidos, nourrissons), virá a fase dos lutins e dos poupons; em seguida, uma etapa importante, a dos bambins (de 35 a 54 meses), na qual a criança será estimulada a aprimorar suasfaculdades corporais.

Apartir dequatro anos emeio, quando se torna querubim, a criança passa a ganhar seupróprio dinheiro, prestando pequenos serviços à co munidade e tendo direito à suaprópria remuneração (OC, W, p. 446). O período seguinte é o dos serafins (dos 6,5 aos 9 anos), ao qual se seguem as fases dos liceanos (dos 9 aos 12 anos) e dos ginasianos (dos 12 aos 15 anos).

Querubins e serafins formarão "pequenos bandos" que prestarão ajuda nasplantações; liceanos e ginasianos formarão "pequenas hordas" que cuidarão dos animais e da limpeza. Os integrantes das "pequenas hordas" usarão uniformes vistosos, receberão medalhas e homenagens detodos, desfilarão emparadas e se incumbirão detrabalhos repugnan tes,comopor exemplo a remoção dosdetritosdofalanstério. Umcódigo

de honra transformará "em filantropia religiosa o exercício das funções mais triviais" (OC, V, p. 148).

Finalmente, aos 16anos, a educação entrará em seu último período, e só então Fourier entende que venham a ser abordadas as questões

interligadas do amor e do sexo. Até chegarem aos 16 anos, ascrianças sãoconsideradas rigorosamente assexuadas e assim devem permanecer, de acordo com o paradoxal pensador. Dos16aos 19 ou 20, osjovens deverão serencaminhados para uma transição prudente, sem precipitações, para o exercícioda liberdade de amar. Fourier sustentaque no falanstério existirá estímulo para o "vestalado", quer dizer, para uma castidade voluntária de jovens dos dois sexos, ao longo de dois ou três anos.

40

Aprimeira relação amorosa não deve serbanalizada; com freqüên cia, ela será vivida entre um jovem e uma mulher madura ou entre uma

jovem e um homem maduro, já que "a naturezaama oscruzamentose gosta de aproximaras idades afastadas" (OC, "V, p. 262).

11. A HARMONIA

Fourier, conforme jáfoi dito, estava absolutamente convencido de que existia uma forte relação deinterdependência entreo quesepassava na Terra e o que acontecia no cosmo. Havia, segundo ele, uma interferência

mútua entre o cósmico e o histórico. Na medida em que retardavam a organização da sua vida nos moldes da Harmonia, os seres humanos acarretavam danos aos astros.

Aoshomens, aliás, cabia alterar o movimento dos astros. Deus criara

o universo e, para coroar suacriação,criara o ser humano,criatura livre,

incumbida de completar a obra divina. "Parece inconcebível que Deus tenhaassociado a uma função tão elevada uma criatura tão desprezível como nós; parece incrível que ele tenha nos incumbido de cuidar do

movimento dos astros, de intervir nele e de modificá-lo. No entanto, é essa a atribuição do homem" (OC, VII, p. 467). Por quê? Porque "Deus querfazer de nósseus associados e não seus escravos" (OC, II,p. xxvii). Osastros dependem denósmais doquenósdeles. O Sol, porexem

plo, está doente, porque aTerra, corrompida como está, não correspon de ao que ele esperava dela. A Lua,coitada,já morreu: o que os civili zados contemplam com enlevo é — declara Fourier sarcasticamente —

apenas um cadáver. E Mercúrio não está nada bem: precisamos atraí-lo para uma órbita em torno da Terra, afastá-lo um poucodo Sol. Os planetas são bissexuados: são masculinos pelo pólonorte e fe mininos pelo pólo sul. Avida de cada planeta se beneficia dasrelações sexuais entre o norte e o sul. Além disso, os planetas copulam uns com os outros através de "jatos aromáticos". O espaço sideral é todo cruzado 41

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

pelos jatos aromáricos, "como balas num campo de batalha" (OC, XII, "Cosmogonia", p. 23).

Fourier considera a eletricidade e a luz movimentos "aromáricos".

Para ele, os seres humanos deveriam se preparar para descobrir novos segredos da natureza tanto no reino animal, vegetal emineral como no ainda pouco conhecido reino "aromai" (OC, IV, p. 219). "O aroma éo que há de mais forte na natureza material" (OC, II, p. 191). Júpiter e Marte, pormeio do pólo norte, copulam —aromaticamente —com o pólo sul da Terra; Saturno, por meio do pólo sul,

copula com o pólo norte da Terra: essas cópulas influem no apareci mento de plantas e animais; das primeiras, nasceram o camelo, o boi e a vaca; das segundas, nasceram o cavalo e o jumento (OC, VII, pp 469-471).

Outras cópulas aromáticas geraram flores e frutos. ATerra, copulando com Saturno, engendrou atulipa; com oSol, engendrou a uva; com Mercúrio, engendrou omorango; ecopulando consigo mesma (pó lo norte com pólo sul) engendrou avioleta (OC, IV, p. 244). Apersistência da civilização na Terra está causando graves prejuízos ao intercâmbio com o Sol e osplanetas. Uma das evidências disso está na proliferação de catástrofes e no aumento do número de animais ve

nenosos erepugnantes. ATerra corre orisco de morrer em pouco tempo.

Ovisionário advertia: "Nosso globo está em perigo iminente etem ape

PENSAMENTO

ATerra está ansiosa pela mudança. Aaurora boreal é, segundo Fou rier, "uma efusão inútil de fluido prolífico" (OC, I. p. 40) eum sinal do

que ela poderá fazer na nova era que ainda não pôde começar. Sobre o pólo norte vai se formar uma "coroa", um "anel luminoso", que influirá na incidência dos raios do Sol. As regiões geladas vão se tornar extraor

dinariamente férteis: São Petersburgo produzirá uvas eVarsóvia produ zirá laranjas. Aágua dos oceanos deixará de ser salgada ese transformará numa espécie de "limonada" (OC, I, p. 45).

Mais surpreendentes ainda serão as mudanças que ocorrerão com os seres humanos, que terão um enorme desenvolvimento, tanto físico

como espiritual. Os órgãos dos sentidos passarão por um fantástico aper feiçoamento: nosso olho poderá enxergar no escuro e fitar o Sol sem danos; nosso olfato superará ofaro dos cachorros, nosso ouvido escutará novos sons sutilíssimos, nosso tato e nosso paladar vão se refinar de

maneira espantosa. Chegaremos adesenvolver acapacidade de respirar debaixo da água.

Os indivíduos viverão mais (cerca de 140 anos), dormirão menos e

melhor (cinco horas bastarão para o repouso) e —respeitando as exi gências impostas pela paixão da borboleta —nunca ultrapassarão adu ração de duas horas em nenhum trabalho. Os dedos do pé, que na civi lização são inúteis, desenvolverão importantes habilidades ese tornarão meios eficazes para o aproveitamento de novos instrumentos musicais a

nas 432 anos de existência vindoura" (OC, VII, p. 488). Atragédia só pode ser evitada se os seres humanos conseguirem finalmente se reor

serem inventados (OC, VI, p. 208).

ganizar no estado societário e criar a Harmonia.

altura. Ocabelo nunca deixará de crescer, de modo que não existirão

AHarmonia proporcionará mudanças notáveis. ATerra recuperará seu viço, sua saúde. Os animais daninhos epeçonhentos desaparecerão.

Deixarão de existir ratos, vermes, insetos nocivos, animais selvagens perigosos. Em compensação, surgirão novas espécies de animais, dispos tos aservir aos homens: antileões, anticrocodilos, antibaleias que ajuda rão os navios, antitubarões que ajudarão os pescadores, etc. (OC, IV, pp. 254 e255). ATerra ingressará numa nova "adolescência" (OC, XII, p. 53). Aatmosfera se purificará, atemperatura se elevará, as calotas po lares derreterão.

As pessoas aumentarão de estatura e terão mais de dois metros de

carecas. Quem ao envelhecer perder os dentes será agraciado com uma

nova dentição natural (OC, VIII, p. 441). Depois da 16* geração criada na Harmonia, os seres humanos desenvolverão um membro-extra, que Fourier chama de "arquibraço", eque de fato será um rabo (como'o do macaco), um prolongamento da coluna vertebral, com uma forte mão

na extremidade, para poder agarrar com firmeza quaisquer objetos. Fou rier garantia que o"arquibraço"seria de imensa utilidade para nós (apud Beecher, op. cit., pp. 340-341).

Todas essas intuições se baseiam numa opção metodológica feita por 42

43

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

PENSAMENTO

>

Fourier, caracterizada pela legitimação daanalogia. As"ciências" desen

volvidas pela civilização são áridas, limitadas, pobres, não estão em con dições de investigar as conexões que a analogia nos revela. Fourier preconiza a criação de "novas ciências". O teórico do falanstério, bem-

humorado, sustenta: "A analogia é a mais divertida das ciências; ela confere uma alma a toda a natureza" (OC, XII, p. 201).

12. A PERSPECTIVA

sua ação era a críticaà civilização. Escreveu: "Mesmo que fosse verdade

que as novas ciências aindafossem equivocadas, romanescas, continua ria a ser seguro que sou o primeiro e o único autor a indicar um caminho

para associar as desigualdades e quadruplicar a produção através do emprego daspaixões, temperamentos e instintos que a natureza nosdeu.

Eesse o ponto sobre o qual deve serconcentrada a atenção, e não sobre as ciências que estão sendo apenas prenunciadas" (OC,VIII, p. 443). O adversário é a civilização. O essencial é superá-la. O máximo em penho precisa estar dirigido para libertar osseres humanos das cadeias que acorrentam suas paixões, amesquinham seus prazeres e os atrelam

Para Fourier existiam cinco ramos do movimento universal, interliga dos. O primeiro seria o movimento físico-mecânico, material, aquele que Isaac Newton estudou e explicou. O segundo seria o movimento

aromai, da comunicação entre os astros, que ainda estava para ser cien tificamente explicado. O terceiro, o movimento orgânico das formas e das cores dos seres vivos. Oquarto, o movimento instintual, dos ani mais. E o quinto, afinal, era o movimento passional ou social dos seres humanos.

Fourier se orgulhava de ter sido o pioneiro desbravador que havia lançado luz sobre esse último movimento e o chamava de movimento "pivotal". Aos seus olhos, o movimento passional era o "coordenador"

(OC, XII, p. 160), o"arquétipo" dos demais, achave para acompreen são dosoutros(OC, IX, p. A2). Nessas condições, o campo onde lhe cabia travar a batalha decisiva na propagação de sua doutrina nãoeraa cosmogonia, não era o das es tranhíssimas imagens analógicas, mas o daradicalidade crítica em face da

civilização, com seu sistema de repressão e desvirtuamento das paixões^Era a civilização que estava estorvando o movimento passional, coordenador dosoutros quatro ramos do movimento universal. Em seu

último livro publicado —Afalsa indústria —ele procurou deixar isso

bem claro. Em nenhum momento manifestou qualquer dúvida arespeito

ao trabalho.

Nas sociedades civilizadas o trabalho não pode deixar de assumir formas desagradáveis oumesmo repugnantes, porque resulta da impo sição por uma parte da sociedade de determinadas atividades a outra

parte da sociedade. A predominância dos interesses particulares dos grandes comerciantes sobre os interesses dos produtores acarreta uma situação na qual as tendências parasitárias tendem a se generalizar. "Os que trabalham na manufatura e na agricultura criamriquezas. O comer ciantenão produz nada, é um mero agente distribuidor,um servidordos

produtos que o mantêm" (OC, XI, p. 15). Além de não produzir, o comerciante tende a promover uma desqualificaçâo da cultura p lima legitimação da.incultura. Diz muito sobre a civilização — anota Fourier

— "o fato de que a atividade que exige menos estudo, a atividade do comerciante, seja a mais lucrativa" (OC, XI, p. 22). Fourier chega a falar em "despotismo",em uma "ditadura dos co merciantes" (OC, I, p. 222).Um comerciante não precisa serculto, sen

sível, patriótico, para ser bem-sucedido. Freqüentemente severifica, ao contrário, que a incultura, a falta de patriotismo e a insensibilidade fa vorecem o êxito. E o patronato se aproveita do fato de ser mal formado para encarar como "normal" a pobreza característica do mundo dos trabalhadores, que o cerca.

fundadas sobre a analogia. Porém insistiu na idéia de que o essencial na

..Potóer se escandaliza com o fato de que, na civilização, a riqueza paralelamente engendre a pobreza. "Para que existam alguns ricos", es creve, "é preciso que existam muitos pobres" (OC, IX,p. F6). Ospobres

44

45

davalidade de suas concepções cosmogônicas, de suas "novas ciências"

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

se_sentem mais infelizes na medida em quevêem mais riquezas acumu

ladas nas mãos dos ricos. Impedida de participar do aumento da riqueza, a classe pobre passa a ter um aumento de privação, pois "enxerga uma variedade maior de bens, mas são bens dos quais ela não pode desfrutar" (OC,XI,p,35).

Acivilização não pode sequer assegurar à massa dos trabalhadores

condições materiais que lhe garantam a tranqüilidade da subsistência, porque, se isso acontecesse, como o trabalho nas sociedades civilizadas

épor definição inumano, ninguém trabalharia. Éanecessidade que obri ga os trabalhadores atrabalhar; por isso, énecessário que eles se sintam aguilhoados pela necessidade.

-**Na geração seguinte, Marx se concentrará na análise crítica do"J modo de produção capitalista everá no movimento operário osujeito de uma transformação revolucionária da sociedade, aforça material ca paz de forjar uma nova sociedade (e a Harmonia para ele se chamará comunismo). Fourier, contudo, empreendia sua crítica radical do capi

talismo (para ele, acivilização) no âmbito da troca, no nível da circulação das mercadorias. Enão lhe era possível discernir no proletariado indus-

I trial incipiente da França onúcleo de ações decisivas na criação da so ciedade nova.

Se nateoria deFourier não havia espaço para o reconhecimento do

papel aser desempenhado pelo proletariado na história política das dé cadas subseqüentes, isso não impediu, contudo, que alguns trabalhado res fossem tocados pela mensagem do seu socialismo utópico. Aproposta de ação encaminhada porFourier, entretanto, tinha ca racterísticas muito peculiares enão correspondia às disposições subjeti vas da maioria dos trabalhadores mais combativos.

No projeto do falanstério, o pensador fundia duas aspirações de quase impossível combinação: a da revalorização doespírito comunitá rio ea da mais completa liberdade individual para todos. Sua exacerbada preocupação com a defesa da autonomia das pessoas o distinguia de outros teóricos socialistas da primeira metade do século XIX, porele tidos como "coletivistas". Sua perspectiva o levava a condenar as hierar quias da"igreja" dos saint-simonianos, o "comunismo" deRobert Owen

PENSAMENTO

e aestruturação da Icâria de Étienne Cabet. Para Fourier, quaisquer formas de convivência que fossem impostas e não-voluntárias resulta

riam num acumpliciamento com a repressão civilizada. Assim, jamais poderia ser aceita a comunidade que, tal como Cabet queria, determi nasse aos trabalhadores oque cada um deveria produzir elhes pagasse, não em dinheiro, mas in natura.

A perspectiva da criação no falanstério de uma comunidade onde

cada um faria oque desejasse encantou algumas almas rebeldes, seduziu alguns espíritos inquietos echegou asensibilizar diversos trabalhadores

politizados. Um exemplo desse efeito se encontra na carta que aoperária Desirée Veret, muitos anos após amorte de Fourier, escreveu, emocio

nada, para Victor Considérant, dando testemunho do vigor com que fora tocada pela utopia fourierista: "A utopia étão velha quanto omun do organizado. Ela éavanguarda das novas sociedades efará asocieda de, aHarmonia, quando ogênio dosJiomensiizer-dela-uma-realidade"

{in Rancière, Jacques, 1988, p. 407).

Como já foi dito, porém, os fourieristas eseus simpatizantes perma neceram minoritários. Os trabalhadores politizados, em sua maioria,

preferiram seguir os caminhos indicados nas ações enas teorias de Marx, Engels, Proudhon, Lassalle, Bakunin, Blanqui e outros.

Aobra de Fourier, contudo, não foi esquecida; não desapareceu. Teve, de fato, um efeito diferenterExerceu uma influência mais difusa, que só pode ser notada com maior clareza quando se observa um movi

mento mais lento, que se desenvolve ao longo de um período mais ex tenso, de maior duração.

Olegado do pensador manifestou sua vitalidade numa história que não era a daprecipitação dos conflitos mais agudos e mais imediatos da

luta política. Aeficácia alcançada pela perspectiva de Fourier, tal como

foi exposta em seus escritos, aparece num tempo especial: otempo dos sonhos recorrentes, que sacodem, na cultura, a poeira das estratificações, dos hábitos mentais envelhecidos, mas preservados pela inércia e

pelas manhas da ideologia. Um tempo de mudanças sociais sutis, de transformações humanas complexas, que levam, às vezes, vários séculos para se efetivarem.

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I

1. NO SÉCULO XIX

Após a morte de Fourier, os discípulos se dividiram. Henri Desroches

aborda, comdisposição polêmica, essa divisão, em seu livro La société

festive, caracterizando duas grandes tendências que se definiriam pelo tipo de relação que pretendiam manter com o mestre: "de um lado, a posição atestatória da ortodoxia teórica, que se tornava praticamente conformista; de outro, a posição contestadora da dissidência, aferrada ao seu inconformismo" (Desroches, 1975,p. 177). A principal corrente dos fourieristas teve como líder Victor Consi

deram, que desenvolveuao longo de váriasdécadasintensa atividade de

proselitismo./ Constituíram-se contudo, à margem da atuação do grupo liderado por Consideram, outros grupos autônomos que tomavam suas próprias iniciativas. Eforam tomadas asprovidências iniciais paraa ins

talação de falanstérios, em diversos locais, sem que no entanto os pro jetos tivessem podido ser levados adiante.

Um dos falanstérios que chegou a serplanejado em sua fase inicial, segundo informação contida num livro intitulado Organisation du travail, publicado em 1845 pelo Dr. A. deBonnard (cf. Desroches, 1975), deveria ser instalado no Brasil. Suzana Munhoz da Rocha, em 1993,

relembrou ahistória do grupo de franceses que, em 1841, sob aliderança do médico homeopata Dr. Benoít Tules Mure,de Lyon, fundou a "Co lônia Industrial do Saí", no município de SãoFrancisco, em Santa Ca tarina, na mesma região onde, após o fracasso da experiência, os imi grantes alemães viriam a fundar Joinville (Munhoz da Rocha, 1993). Recentemente foi publicado um estudo sobre esse fascinante episó>

>

51

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

dio que liga diretamente ofourierismo ao Brasil: Fourier: utopia eespe rança na península do Saí, de Raquel S. Thiago (S. Thiago, 1995). A experiência durou pouco, porque surgiram graves dissenções entre oDr. Mure e seus sócios, os fourieristas Jamain e Derion. Foram trocadas acusações: Jamain e Derion acusaram o Dr. Mure de uso indevido do

dinheiro da associação ede autoritarismo; eforam acusados por ele de anárquicose influenciados pelo saint-simonismo.

pensador. Victor Considérant influenciou um militar de nome Hippolyte Renaud, queescreveu um livro intitulado Solidarité, e a leitura desse

livro marcou oescritor Émile Zola, de modo que alguns críticos pude ram descobrir ecos das idéias de Fourier no romance Le travail, do autor de Germinal. Também Eugène Sue, em uma parte da sua obra de ficção (Les mystères de Paris e Les sept pechés capitaux, entre outros), acolhe impressões de algum contato com as idéias de Fourier. Oque não signi bém o escritor russo Tchernitchévsky, autor do Que fazer?, ficou mar

vergências arespeito dequais aspectos dadoutrina deveriam serrevistos

globalmente, como informa Wanda Bannour (in Lefebvre, 1975).

Havia também grupos de autodesignados discípulos de Fourier que renunciaram aos esforços no sentido de criar um falanstério e faziam experiências mais modestas, considerando "revolucionária" a linha se

guida por Victor Considérant. Stanislas Aucaigne publicou um livro in

fica, evidentemente, queZolaeSue tenhamsetornadofourieristas. Tam

cado pela leitura das idéias de Fourier, sem contudo tê-las adotado Entre a ação estrita dos discípulos, que disputavam emtornodahonra

de serem os herdeiros mais legítimos e os sucessores "oficiais" do mestre, de um lado, e, de outro, a influência difusa, exercida sobre autores que ficavam impressionados com sua grandeza ou lhe dedicavam admiração, porém não se comprometiam com a assimilação de suasidéias numa di

titulado Théorie sociétaire de Charles Fourier, Arthur d'Auglemont or ganizou uma cooperativa de consumo, Jean Czynski criou uma "padaria verídica" para fornecer pão aos associados, todos convencidos de que

reção socialista prática, Fourier deixou também um legado que veio a ser assumido por pensadores socialistas como, por exemplo, Marx e Engels,

eram os autênticos "herdeiros", aqueles que haviam compreendido o

ricas do autor da Teoriados quatro movimentos, adaptando-os auma pers

essencial das lições do mestre (Desanti, 1970, pp. 209-210). Paralelamente às querelas dos discípulos, entretanto, as idéias de

Fourier exerceram uma influência ampla edifusa nos anos que se segui

que procuravam aproveitar elementos significativos dasconstruções teó pectiva filosófica distinta e até contrastante com a dele. •

Nos escritos de Marx e de Engels há muitas dezenas de referências

aFourier. Engels, mais doque Marx, explicita com freqüência suafranca

ram aoseu falecimento. Balzac, porexemplo, ridiculariza os fourieristas no romance inacabado Les comédiens sans lesavoir, caricaturando um

simpatia em relação ao teórico do falanstério. Em 1845, quando Marx

pintor de talento que adere às concepções teóricas do "mestre", mas se torna ridículo ao reduzir sua pintura amero instrumento de propaganda da seita. Contudo, o mesmo Balzac, na Revue parisienne (25-8-1840),

publicados em alemão textos de "excelentes escritores socialistas estran geiros". Para o primeiro volume da coleção, que conteria escritos de Fourier, Engels chegou a traduzir algumas páginas do autor francês. E escreveu para Marx, em Bruxelas: "Fourier criticou as relações sociais

comparou o espírito radicalmente inovador de Fourier aode Jesus Cris to; e prestou ao teórico socialista a homenagem de reconhecer: "Ele

concebeu a tarefa colossal de adaptar o meio às paixões, destruindo os obstáculos e prevenindo os conflitos."

Adifusão das concepções de Fourier se fazia muitas vezes por ca minhos indiretos, que prescindiam da leitura dos textos originais do 52

j

LEGADO

Os grupos que empreendiam as experiências práticas eram, natural mente, levados a fazer "adaptações", abandonando algumas das minu ciosas prescrições de Fourier. Enas "adaptações" surgiam, é claro, di e quais normas deveriam ser obedecidas a qualquer custo.

>

O

estava exilado na Bélgica, Engels tentou criar uma editora na qual seriam

existentes com tanta agudeza, graça e humor, que a gente perdoa gos tosamente suas fantasias cosmológicas, que também se baseiam numa genial visão do mundo" (MEW, vol. II, p. 606).

Marx eEngels não levavam asério acosmologia de Fourier, acópula dos astros através de jatos aromáricos, mas viam em seus escritos um

53

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER O

"espírito verdadeiramente poético", como se lê na Ideologia alemã (MEW, vol. III, p. 448), e o defendiam contra as críticas do "autêntico

filisteu alemão" Karl Grün. Os autores da Ideologia alemã lamentaram que Grün fugisse dodesafio de abordar as concepções de Fourier sobre

LEGADO

otrabalho vai se tornar uma atividade agradável, espontânea, prazerosa, nas condições da Harmonia.

Marx e Engels estavam convencidos de que a visão utópica era a

educação, que lhes pareciam ser "de longe o que havia de melhor, no

expressão de um momento histórico marcado por limitações nos hori

seu gênero" e continham "as mais geniais observações" (MEW, vol. III,

mento operário epela ciência tinham levado a uma superação das limi tações epor isso mesmo tornavam não só dispensável como prejudicial

p. 501). Já na Sagrada família, Marx e Engels elogiavam Fourier por haver denunciado afraseologia oca que se disfarça por trás do conceito de "progresso" (MEW, vol. II, p. 88) epor ter percebido que na civili zação o modelo de comportamento virtuoso preconizado pelos mora

listas só poderia vir aser adotado, de fato, por milionários (MEW, vol. II, p. 213).

Em uma carta a Paul Annenkov, Marx fez uma comparação entre Proudhon eFourier eafirmou que este era mais "profundo" (MEW, vol. TV; p. 491). Engels, no prólogo de seu estudo sobre aguerra camponesa na Alemanha, incluiu Fourier entre as "cabeças mais significativas de todos os tempos" (ME\^ vol. VII, p.541).

Engels também defendeu Fourier contra os ataques feitos por Dühring, que considerava ofrancês um "idiota" (MEW, vol. XX, p. 29). Em Do socialismo utópico aosocialismo científico, reconhece-se a Fourier o mérito de ter "desvelado impiedosamente a miséria moral e material

do mundo burguês". Eé nesse texto que Engels chega a asseverar que Fourier "maneja a dialética com amesma mestria que seu contemporâ neo Hegel" (MEW, vol. XIX. pp. 196e 197). Aorigem da família, da propriedade privada edo Estado cita Fourier

em diversas passagens e exalta sua "brilhante crítica da civilização" (ME^ vol. XXI, p. 170). Com uma desenvoltura que não se manifesta em Marx, Engels se divertia com as críticas de Fourier ao casamento monogâmico e aos costumes sexuais dos civilizados.

Havia, é claro, alguns pontos nos quais as divergências entre Marx

e Engels, de um lado, e Fourier, de outro, saltavam aos olhos. Já foi mencionada a recusa da cosmologia fourieriana pelos autores do Mani

zontes do pensamento crítico, porém os avanços realizados pelo movi a persistência da perspectiva da utopia. Outro teórico dosocialismo que entrou em contato com asidéias de

Fourier, no século XIX, foi Pierre-Joseph Proudhon. Oautor de Oque é apropriedade? trabalhava numa tipografia eparticipou da impressão de O novo mundo industrial e societário, em 1829. A leitura do livro de Fourier — seu conterrâneo, já que Proudhon também era nascido em

Besançon —marcou-o profundamente. Nos anos seguintes, entretanto, assumiu posições asperamente críticas em relação aoautorda obra. Acu sou-o dequerer instaurar uma "pornocracia". Escreveu: "A metafísica de

Fourier não passa de rapsódia e plágio, sua classificação das paixões é

errada, sua moral édetestável" (cit. por Rude in Lefebvre, 1975, p. 36). Na seguncla metade do século XIX, os (poucos) socialistas que evo cavam Fourier'recordavam-no com simpatia eserenidade, como se perce be, por exemplo, no estudo que lhe dedicou o bravo social-democrata

alemão August Bebei (Bebei, 1886). Ou, ainda, nas referências que lhe são feitas de passagem pelo brilhante social-democrata italiano Antônio La-

briola, que fala na "exuberância de um gênio não disciplinado" e numa "fantasia luxuriante e irrefreada" (Labriola, 1964). Percebia-se uma certa dificuldade para lidar com os aspectos mais excêntricos da obra do "visio nário". Notava-se a preocupação de adequar a imagem dele às conve

niências de um partido de massas que se dispunha a apresentar uma face "respeitável" àopinião pública. Por isso Bebei, discretamente, aponta ele

mentos de "anarquismo" na perspectiva de Fourier, sugerindo que tais elementos devam ser, na medida do possível, neutralizados.

festo comunista. Mas há também a rejeição explícita por Marx da tese de Fourier de que, para deixar de ser oque énas condições da civilização, 54 55

0

) FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

2. NO SÉCULO XX

No século XX, redefiniu-se uma corrente que tratava de incorporar edecididamente não-revolucionária. E. Poisson, por exemplo, retoman do a"leitura" de alguns dos discípulos que repeliam as posições de Victor Considérant por achá-las muito "radicais", reduzia o pensador a um mero teórico do "cooperativismo", caracterizando-o como "opai incon

testável da cooperação" (Poisson, E., 1932, p. 11). EHenri Bourgin, já em 1905, propunha que se esquecesse aquela parte da obra que estava prejudicada pela "loucura" de Fourier e não apresentava mais nenhum

ticas de Fourier ao capitalismo, porém lamentava as "puerilidades da sua imaginação", derivadas de seus "desejos de pequeno-burguês" (Ga raudy, 1949).

Fourier passou a ser visto, em geral, como um pensador que tinha

tido um papel histórico importante na medida em que havia prenuncia do Marx eEngels, mas havia sido superado pelo movimento que passara por ele elogo assumira um caráter mais amadurecido, na trajetória que ia "do socialismo utópico ao socialismo científico" (conforme se podia

ARevolução Russa de 1917 deu origem àUnião Soviética, àTerceira Internacional eaomovimento comunista mundial, que viria aseorientar pela doutrina do "marxismo-leninismo". Entre os"marxistas-leninistas" prevalecia um espírito decididamente hostil ao reformismo moderado

a dizer que a crítica social elaborada por Fourier se situa num nível

bem como a parte sensata dadoutrina do autor de O novo mundo in

dustrial esocietário, quer dizer, aparte que correspondia às necessidades do socialismo reformista no início do século (Bourgin, 1905).

que havia prevalecido no campo da social-democracia. De modo que na interpretação de Fourier era natural que os representantes danova cor

rente de pensamento e ação procurassem resgatar a dimensão radical, revolucionária, que existia na obra de Fourier, independentemente das intenções de seu autor.

Logo se manifestaram, contudo, algumas dificuldades. A enfática

valorização do desejo por parte de Fourier, por exemplo, não cabia nos parâmetros das análises inspiradas pelo "marxismo-leninismo". A con

vicção fourierista de que acomunidade, na Harmonia, deveria congre gar indivíduos desejantes inequivocamente autônomos, independentes, livres, não combinava com arígida disciplina imposta pela "ditadura do

proletariado" epelo partido bolchevique, como formas de organização da vida comunitária.

Compreende-se então que os "marxistas-leninistas", em sua maio

J

fique, que Roger Garaudy publicou em 1949. Garaudy elogiava as crí

lerno título do famoso panfleto de Engels). Uma das poucas exceções nesse quadro da abordagem "marxista-leninista" do fenômeno Fourier nos é proporcionada pelo filósofo hún garo Georg Lukács. Ao longo de sua vasta obra, Lukács serefere a Fou rier em diversas ocasiões, embora não lhe dedique nenhuma análise desenvolvida. Faz contudo observações sintomáticas que mostram uma percepção aguda do interesse que a perspectiva original do pensador

interesse, para que fossem reaproveitadas algumas das suas idéias úteis,

)

LEGADO

trições se encontra no livro Les sources françaises du socialisme scienti-

elementos das teorias de Fourier a uma perspectiva socialista reformista

>

O

francês pode ter para nós. No livro sobre ojovem Hegel, Lukács chega superior à deHegel (Lukács, 1973, vol. II,p. 652). Enoensaio dedicado

a Büchner, nó volume dedicado aos autores realistas alemães do século

XIX, Lukács inclui Fourier entre os poucos "grandes pensadores" que se recusaram a aceitar a contraposição ética entre o ascetismo jacobino e o niilismo moral cínico (Lukács, 1964). Além da vertente social-democrática e da vertente comunista dos

"marxistas-leninistas", há uma terceira tendência que marca a "recep ção" de Fourier no século XX: aquela que tem em alguns autores pró ximos às posições anarquistas e em alguns escritores surrealistas seus representantes mais destacados.

André Breton, o "Papa doSurrealismo", escreveu uma Ode à Char

les Fourier que se tornou famosa. Nela, opoeta exalta ofilósofo por ter compreendido que as paixões, inclusive aquelas que a moral atual con dena, "constituem um criptograma indivisível que ohomem é desafiado

ria, fizessem graves restrições a Fourier. Uma manifestação dessas res-

adecifrar". Evê sair da cabeça de Fourier uma águia que arrebata com

56

57

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER O

suasgarras o animal símbolo da obediência cega e do conformismo es

túpido: a ovelha de Panurge (da história de Rabelais).

Vale apena lembrar também que ocineasta espanhol Bunuel, ligado ao movimento surrealista, põe na boca do personagem Don Lope, no filme Tristana, palavras que Fourier com certeza aplaudiria: "Abaixo o trabalho que temos de fazer para ganhar a vida! Esse trabalho não nos

honra, como dizem. Só serve para encher a barriga dos porcos que nos exploram. Em compensação, o que fazemos porvocação, enobrece o homem. Seria preciso que todos pudessem trabalhar assim." E não pode deixar de serrecordado igualmente o ensaísta Daniel

Guérin, escritor prolífico, de posições libertárias, militante da extrema esquerda, defensor combativo do movimento gay e grande admirador de Fourier, de quem difundiu as idéias sobre o amor e o casamento

LEGADO

desse ponto de vista: "O que a utopia anula é osocialismo enquanto política, éomovimento operário enquanto movimento puramente po lítico. (...) O que faz para nós toda a modernidade do fourierismo é o seu apoliticismo ferrenho" (Bruckner, 1975, p. 14). De certo modo, ariqueza dasignificação do fenômeno Fourier não

cabe na apresentação de uma das suas facetas, não comporta aredução forçada do seu legado a um dos seus aspectos. Oque há de mais fasci nante no velho pensador francês é o conjunto diversificado das suas características, a integração numa totalidade extraordinariamente sur

preendente de traços peculiaríssimos (ainda mais notáveis pelo fato de se juntarem e se articularem numa inédita interdependência).

(Guérin, 1975).

Próximos aessa linha se acham intelectuais representativos daquilo que desde os anos sessenta se tem chamado de "anova esquerda". Éo caso, por exemplo, de Herbert Marcuse, que emEros ecivilização elogia Fourier por ter se aproximado bastante da compreensão da liberdade como sublimação não repressiva, porém também o critica por terima

ginado um sistema de administração do trabalho livre no falanstério, ignorando o fato de que só o trabalho alienado pode ser organizado e administrado pela rotina da razão (Marcuse, 1968). Ás vezes, no interior da revalorização dos elementos tidos como

3. NOSÉCULO XXI?

Que aspectos da obra edo pensamento de Fourier estarão vivos ao longo do século XXI? Aarticulação das suas concepções continuará asuscitar

espanto e curiosidade ou haverá interesse apenas por alguns aspectos determinados dasua filosofia? Seus escritos constituirão uma referência

significativa em debates ou reflexões importantes? Ou serão freqüenta dos somente por historiadores eruditos euns poucos especialistas? Os textos em que o filósofo seexpressa diretamente, com seus cál

mais "delirantes" da doutrina fourierista, se manifestam tendências que, enfatizando a fecundidade das formas mais bizarras da inquietação de

culos minuciosos eseus argumentos pretensamente científicos, serão li

Fourier, chegam a promover certa "despolitização" dasua obra. Claude Morilhat aponta, com olhar vigilante, duas expressões dessas tendên

ferirão antologias e coletâneas? E, se o caminho for o da difusão das

cias, advertindo para os riscos que podem acarretar aum esforço sério de análise de Fourier: podem incorrer numa unilateralidade simetrica-

mente oposta à dos críticos que punham sumariamente de lado o que

lhes parecia prejudicado pela "loucura" do filósofo (Morilhat, 1991). A. Vergez escreveu: "O grande erro dos primeiros discípulos foi o de terem feito desse poeta revolucionário um economista reformador"

(Vergez, 1969, p. 57). ERBruckner dá um passo adiante na explicitação

dos? Seus livros merecerão traduções ereedições? Ou os editores pre

coletâneas, os fragmentos das coisas que Fourier escreveu proporciona rão uma compreensão suficientemente matizada da sua filosofia?

Adifusão das idéias de Fourier passará predominantemente por ou tros caminhos que não o das edições de seus textos? Seu pensamento

será adaptado a relatos ficcionais, será apresentado através de imagens ou de narrações orais?

Dominique Desanti conta que no final dos anos sessenta esteve nos

Estados Unidos e conversou com o líder de uma comunidade hippie

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59

)

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER O

intitulada "Togetherness", instalada ao sul de São Francisco, que durou

18 meses. Orapaz lhe declarou que ogrupo era "fourierista". Apesqui sadora francesa lhe perguntou seele e seus companheiros haviam lido Fouriere o sujeitorespondeuque não,esclarecendo: "Nos falaram dele"

(Desanti, 1970, p.8). Comunidades dotipo da"Togetherness" voltarão a aparecer? Invocarão a inspiração de Fourier, mesmo sem tê-lo lido,

simplesmente porque ouviram falar dele? Em que medida essa espécie de eco dissolve e banaliza o legado de Fourier? Eem que medida, de algum modo, contribui para revitalizá-lo?

Qual a imagem de Fourier que vai preponderar? Ado teórico que prenuncia confusa mas agudamente tendências sociais que posterior mente se apresentaram de maneira mais desenvolvidae mais nítida? Ou

a do nebuloso mas carismático "guru" que viria a inspirar algumas ex pressões importantes de rebeldias individuais?

Quantos concluirão que ele era um "louco", quantos sustentarão queele eraum "gênio"? E, numa zona intermediária, como se articula

rão os juízos dos críticos que vierem a considerá-lo um "louco genial" ou um "gênio tresloucado"?

O autor de O novomundo amoroso seráevocadocomo um "sonha

dorsublime", conforme a caracterização de Stendhal, ouserá recordado

como um "velhote lúbrico" (salacious old man), nas palavras de Ralph Waldo Emerson?

Quais os cientistas que o estudarão com maior freqüência? Os his toriadores? Os sociólogos? Os cientistas políticos? Oscríticos literários? Os psicólogos? Ou os psiquiatras?

Qual a avaliação da sua obra que prevalecerá? Ade uma negação dafilosofia pormeio deum implacável acerto decontas com osfilósofos

em geral, todos encarados como cúmplices da civilização e coniventes com a difamação sistemática das paixões humanas? Oua deuma refimdação da filosofia, capaz de reabilitá-la pelo avesso, através de uma ou sada ampliação darazão, para incorporar aomovimento dareflexão as

LEGADO

socialista que permaneceu prisioneirade critérioseaspirações ainda exageradamente individualistas? Ou, ao contrário, será criticado sobretudo

por nao ter conseguido ser suficientemente conseqüente na defesa das

diferenças individuais, escorregando para uma perspectiva que, apesar de seus esforços, continua sendo muito "coletivista"?

Seus escritos serão vistos como aexpressão de um ateísmo disfarça do, de uma redução panteísta de Deus ànatureza? Ou serão considera dos testemunhos de uma fé genuinamente religiosa erepresentativos de

uma concepção peculiar discutível porém sincera da onipotência divina?

Os exegetas que oautor de Ateoria da unidade universal vier ater sublinharão seu lado pessimista, sua convicção de que aTerra um dia

morrera eahumanidade se extinguira inexoravelmente? Ou preferirão sublinhar seu lado épico, otimista: sua inabalável confiança nos magní ficos resultados da liberação de todas as doze paixões radicais dos seres humanos?

Poderíamos nos alongar nesse elenco de questões que a obra de

Fourier poderá vir asuscitar na leitura aque for submetida ao longo do

século XXI. Formular as indagações pode ser um exercício divertido e estimulante, desde que não nos iludamos quanto àpossibilidade de for mular respostas conclusivas para as perguntas que fazemos. Ofuturo

em ultima análise, éimprevisível. Eodestino do legado de Fourier pode

nos reservar algumas surpresas.

Uma coisa, entretanto, pode ser constatada desde já: aobra de Fou rier conta com alguns trunfos poderosos nessa virada do milênio Quan

do vier aser interpelada pelas gerações vindouras, ela poderá contar com alguns fortes argumentos para se impor ao reconhecimento eà admiração de seus novos leitores.

Nas páginas seguintes, que concluem este livro, tentaremos anteci

par alguns desses argumentos.

riquezas do sonho e da fantasia?

Em sua abordagem da relação entre indivíduo e coletividade, Fou rier será predominantemente criticado por ter elaborado uma teoria 60

61

/

Vitalidade

1. ARGUMENTOS

Ao longo de sua vasta obra, Fourier cometeu numerosos equívocos e escreveu diversas tolices. Não há nenhuma razão para que as bobagens ditas pelo filósofo sejam sonegadas ou camufladas.

Alguns exemplos de derrapagens do pensador podem ser facilmente recordados, sem qualquer esforço de pesquisa. Nas páginas que dedicou à educação no falanstério, na Teoria da

unidade universal, ele —que em determinados momentos prenuncia a aguda percepção de Freud sobre a libido —comete a ingenuidade de supor que meninos e meninas de até 16 anos são assexuados.

Nos manuscritos publicados pela Phalange, reclama, preconceituo-

samente, ák "avareza" dos judeus; eexpressa otemor de que os judeus venham a ter na França tanto poder como tinham na Polônia (OC, XI pp. 36-37).

Seu pânico diante da possibilidade de que algum plagiário lhe rou basse alguma idéia assume, às vezes, dimensões um tanto cômicas. Suas

opiniões políticas se ressentem, em certas passagens, de uma surpreen dente superficialidade. Em Afalsa indústria manifesta uma curiosa sim

patia pela política econômica do ditador do Paraguai, Gaspar Rodriguez de Francia, que estaria de certo modo encaminhando medidas próximas às de uma transição para a economia societária. Escreve: "Embora sem

teoria, ele tem um instinto para aordem combinada" (OC, VIII, p. 431). Sua recusa aenfrentar odesafio da atuação política leva-o ao ponto de afiançar que o falanstério resultaria de "uma operação alheia aos assuntos políticos eadmissível sob qualquer governo" (OC, IV, p. 56). 65

FOURIER,

O

SOCIALISMO

DO

PRAZER

Não teria nenhum sentidoprocurar mitificarFourier, ignorando os elementos problemáticos de seusescritos. Como disse Henri Lefebvre — que o admirava—, ele tem algumas passagens que são "pura e sim plesmente ridículas" (Lefebvre, 1975, p. 12). Emalguns momentos, é impossível deixarmos de nos espantar com

algumas de suas características mais paradoxais. Ésurpreendente, por exemplo, como o pensador, tão apaixonado pela liberdade individual, se preocupa com a descrição minuciosa da ordem que deveráreinar iio falanstério, mesmo nas orgias!

Um levantamento dos aspectos mais frágeis dos escritos de Fourier

poderia levar o pesquisador, entretanto, a perder devista o fato de que os tropeços e as falhas não invalidam os aspectos mais fortes do legado do filósofo.

Lembremos rapidamente alguns argumentos que podem nosajudar a reconhecer a importância da sua obra, a vitalidade dassuasidéias.

Comecemos pela reflexão que ele desenvolve acerca dotrabalho. É possível que Marx tenha tido razão quando o criticou por pretender uma impossível assimilação do trabalho à gratuidade prazerosa da brin cadeira. Talvez se trate, realmente, de uma meta inalcançável. Havia,

porém, no exagero da formulação utópicauma cargadinamizadoraque impulsionava os trabalhadores e seus aliados no sentido de lutar para conquistar melhores remunerações e melhores condições de trabalho. Já em 1803, na "Lettre au Grand Juge", Fourier preconizava uma legislação que garantisse aos trabalhadores uma remuneração com um teto "mínimo decente". Em certo sentido, a idéia antecipava, com mais

de um século de antecedência, aquilo que viria a ser a lei do salário mínimo (Alexandrian, 1979).

Nos movimentos de reivindicação por condiçõesde trabalho menos inóspitas, os trabalhadores também encontravam na perspectiva de Fou rier um programa radical que lhes permitia ir além dos pequenos avan ços e das modestas conquistas parciais, para continuar e aprofundar a luta numa direção mais ambiciosa, que passava pela denúncia do des gaste provocado por umamesma ocupação constante ao longo demais de duas horas. Os trabalhadores, mobilizados pela convicção apaixona

66

VITALIDADE

da de que otrabalho pode edeve se tornar "atraente", travaram impor tantes batalhas políticas, obtiveram alguns êxitos e podem ainda con quistar novas e expressivas vitórias.

Outro argumento que pode ser apresentado em favor de Fourier se

apoia no seu pioneirismo em relação àpreocupação com apreservação do meio ambiente nas cidades modernas. O historiador Alexandrian chega asustentar que, "entre outras antecipações, foi Fourier quem in ventou a ecologia" (Alexandrian, 1979, p. 96).

De fato, com seu horror àirracionalidade destrutiva da civilização, Fourier foi levado auma campanha permanente de denúncia da degra dação ambiental nos centros urbanos, insalubres, fétidos, barulhentos e feios. Epropôs, entre outras medidas concretas, que fossem feitas leis capazes de enfrentar a expansão da especulação imobiliária, definidas normas para proteger áreas verdes etomadas medidas práticas enérgicas para impedir a construção de prédios que desrespeitassem os direitos dos cidadãos.

Não apenas as cidades, mas também ocampe é, para ele, motivo de preocupação. São impressionantes suas advertências a respeito da des truição das florestas pelos predadores industriais, bem como sobre a poluição^das fontes de água potável (OC, VI, p. 391).

Numa linha de pensamento que oaproxima de Rousseau (a quem fazia seyeras restrições!), Fourier se apoia na "natureza" para criticar ações históricas dos seres humanos. Aênfase posta no "natural" pode

facilmente enfraquecer acapacidade de reconhecer plenamente aforça da dimensão histórica dos fenômenos sociais. Em certo sentido, porém, a referência à "natureza" mitificada, em sua contraposição àhistória, proporcionava à perspectiva de Fourier um terreno com base no qual ele podia alertar contra um ponto de vista "produtivista", que tende a reduzir demasiado sumariamente a natureza a algo que o ser humano deve apenas "dominar" e "utilizar".

Como observaram Schérer e Hocquenghem, Fourier não nega a importância decisiva da produção, mas ressalta uma "aliança" dos seres humanos com anatureza, uma interdependência que deriva necessaria67

» FOURIER,

O SOCIALISMO DO

VITALIDADE

PRAZER

> rriente do fato de que por ambos os pólos passa um mesmo movimento de "fluxo produtivo desejante" (in Lefebvre, 1975, p. 97).

Aperspectiva fourierista, então,manifestaria suavitalidade na con tribuição que pode dar para a correção de uma postura utilitária, ime-

diatista, que dificultou para os marxistas o aprofundamento da reflexão deles sobre a gravidade dos problemas com que se defronta a luta em prol da preservação do meio ambiente. Um terceiro argumento a ser considerado é o que aponta o papel pioneiro de Fourier no desencadeamento dos movimentos que têm de nunciado nestes dois liltimos séculosas formas — ora sutis e disfarçadas,ora ostensivas e descaradas — de discriminação das mulheres. Maria Monetti, em seu livroLameccanica dellepassione, sublinhou a importância do papel desempenhado nesse campo por Fourier (Mo netti, 1979). Nenhum filósofo antes dele havia denunciado com tanta nitidez e com tanto vigor o sistema criado pela civilização para incutir nas mulheres um espírito de docilidade e obediência. Vale a pena observarmostambém que, na perspectivadessepioneiro da reivindicação da igualdade dos sexos no plano dos direitos e das possibilidades concretas de afirmação pessoal, nunca era negada a rei vindicaçãodas diferenças a serem assumidas.A luta contra todas as for mas de discriminaçãodeveria ser acompanhada pela disposiçãodas mu lheres para assumirem uma identidade feminina diversa da masculina. O pensador prevê que no futuro "as mulheres em associação resgatarão rapidamente o papel que a natureza lhes atribui, o papel de rivais e não de subordinadas do sexo masculino" (OC, VI, p. 141).

Exibindo sua simpatia transbordante pelo sexo feminino, ele sus tenta que "a mulher, em estado de liberdade, vai superar o homem em todas as funçõesespirituais e também em todas as funções corporais que não forem atributos da força física" (OC, I, p. 149).

Outro argumento capaz de indicar a vitalidade do pensamento de

> *

>

neamente em torno de afinidades, mas também de contrastes; em torno de discordâncias e concordâncias; em torno de cumplicidades e rivalida

des. Não foi por acaso que ele escolheu apalavra "rivais" para caracterizar a relação dasmulheres livres, no futuro, com oshomens. Preservando o imprescindível espaço da afirmação da personalida

de, a "série" impulsionaria ao mesmo tempo omovimento pelo qual os indivíduos seriam levados voluntariamente a ultrapassar os limites res tritos de uma preocupação exclusiva de cada um com seu próprio um

bigo (Urias, 1992, p. 121). Com isso, aidéia da "série" pode, ainda hoje, nos estimulara aprofundar nossa reflexão sobre os meios de combinar

o apreço pela singularidade pessoal com arealização livre mas necessária dos valores comunitários.

Um dos pontos mais obviamente problemáticos na obra de Fourier é a correlação que ele postula, analogicamente, entre osfenômenos huma

nos e os fenômenos cósmicos. Trata-se, com certeza, de uma correlação arbitrária, cujo pressuposto é uma visão do mundo como uma imensa máquina, comoum todo regido por umaracionalidade mecânica e carac

terizado por certa homogeneidade básica (Oliveira, 1996, p. 100). No entanto, mesmo reconhecendo o que o recurso à analogia tem dearbitrário, podemos argumentar que, nocaso deFourier, a desenvol tura por ele permitida propicia uma abordagem instigante, ainda que

confusa, de questões que na época ainda permaneciam fora dos quadros mapeados pela razão constituída.

As fantasias que apareceram no exercício das analogias fourieristas careciam de cientificidade, porém em alguns momentos apontaram para aspectos ainda indecifrados da nossa experiência, para a inesgotabilidade

do real, para a infinimde dialética do movimento da realidade. Philippe Riviale fala numa "reserva de significados" (Riviale, 1996, p. 49). Explorando, ainda que por vezes canhestramente, esse tesouro inexaurível designificações que nosescapam, Fourier, emsuas desenvoltas

Fourier é justamente aquele que chama a atenção para a sua constante

estripulias teóricas, contribuiu e —podemos argumentar —pode con

preocupação comas diferenças, umapreocupação queaparece claramente

tinuarcontribuindo paraque as ciências sejam mais ousadas e maiscria

em seu conceito de série. As "séries" constituiriam um nível de articulação

tivas ao enfrentar o desafio permanente da autocrítica, da revisão dos

de indivíduos e grupos no falanstério. Essa articulação se faria esponta-

saberes tidos como adquiridos.

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FOURIER,

O SOCIALISMO

DO PRAZER VITALIDADE

Da contribuição do filósofoà luta pelo fortalecimento de uma pos tura mais energicamente autoquestionadora por parte dos cientistas de

riva, igualmente, uma importante colaboração que ele presta à reflexão

sobre atemática daideologia, que viria ateremseguida umaimportância crescente para a teoria do conhecimento.

Fourier se insurge contra a concepção legada pelos "ideólogos", que, tendo à frente Destutt de Tracy, queriam apresentar a ideologia como uma ciênciageral das idéias, capaz de sintetizar os conhecimentos

proporcionados por todas as ciências: umaespécie de "ciência das ciên cias". Contrapondo-se a essa concepção "positiva"da ideologia, o teó rico do falanstério adotou uma concepção "negativa" da ideologia, caracterizando-a como uma distorção do conhecimento que se dá em ligação com a divisão social civilizada e com aspressões promovidas por setores privilegiados poderosos. Em sua concepção de ideologia, então, Fouriernão só se antecipou a Marx, comofez algumas observações queaindatêm o poder de chamar a nossaatenção para fenômenos ideológicos complexos e sutis, ligados aos sonhos, às aspirações, às fantasias e sobretudo aos desejos dos seres humanos.

2. O DESEJO

O tema do desejo — um tema central no pensamento de Fourier —se presta a infindáveis controvérsias. Em face dele, há quem formule a suspeita deque a valorização entusiasticamente positiva do desejo acar reta, hoje, um grave erro político.

A exaltação dos desejos não estásendo feita exatamente pela pro paganda que, na civilização, acompanha e estimula o consumismo? O hedonismo frenético dos alegres compradores não é, de certo modo, a realização perversa das aspirações fourieristas? As mercadorias encantadoras que hipnotizam o público nas prate leiras dos supermercados, mas também nas telas do cinema e da televi-

são, no marketing eno merchandising, não proporcionam aos civilizados a perspectiva dos prazeres que o filósofo anunciava na Harmonia?

Areivindicação do "direito ao prazer" que aparece de forma pio

neira em Fourier não teria sido atendida eao mesmo tempo miseravel

mente degradada pela abominável civilização?

Impõem-se algumas considerações arespeito dessas interpelações. Antes de mais nada, devemos lembrar que odesejo, na perspectiva

de Fourier, nunca se limita aos prazeres que conhecemos no presente,

porque, nas atuais condições em que nos encontramos, até os prazeres que sentimos podem sofrer distorções causadas pelos mecanismos da

civilização. Precisamos, então, pensar sobre odesejo em termos que

abranjam também, necessariamente, os prazeres futuros, que estarão ao alcance dosseres humanos na Harmonia.

Odesejo, por conseguinte, tal como Fourier ovaloriza, éatual, mas também é prospectivo. E, a propósito, Nicole Beaurain observa que, nessa prospecção, odesejo talvez seja "o desejo do desejo" (in Lefebvre,' 1975, p. 233).

Encarado desse ângulo, odesejo não pode se reduzir às formas que lhe são impostas pelas circunstâncias em que nos achamos. Omercado, que nos envolve, que nos arrasta, exige uma competição exacerbada,' fortalece oegoísmo das pessoas não só nas operações de compra evenda, mas também no plano da sensibilidade, das afeições. Deformados, os

indivíduos passam aatribuir uma importância maior aos prazeres obti dos na contenda de uns contra os outros do que aos prazeres partilhados. Alguns tendem apreferir oprazer na negação dos prazeresalheios, como se viu no caso do Marquês de Sade, que Fourier, de passagem, criticou. Aansiedade que reina na vida sexual dos civilizados tende atorná-

los bisonhos na arte das carícias eos incita aapressar, canhestramente,

o momento da penetração.

Fourier está absolutamente seguro de que os seres humanos livres e

felizes que viverão na Harmonia desfrutarão de prazeres muito su

periores aos dos civilizados, prazeres que não se assemelharão em

nada àsatisfação mesquinha epobre que épropiciada pelo imediatismo consumista.

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> ) >

J

71

FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VITALIDADE

AHarmonia—afiança o pensador—apresentará "opções deprazer

de hora em hora; até mesmo dequinze em quinze minutos. Assim, por meio da própria multiplicidade dos prazeres, serão evitados quaisquer excessos. Asucessão freqüentedos prazeresconstituirá uma garantiade moderaçãoe saúde" (OC, VI, p. 235).

Entre os civilizados, osvoluptuosos sacrificam asaúde, seenfraque cem, porque são inseguros, lançam-se ao prazer com sofreguidão, são

incitados a isso. Na Harmonia, haverá tranqüilidade, segurança emocio nal, autoconfiança, equilíbrio espontâneo. Os civilizados são induzidos pelo medo (e pelo conservadorismo) a imaginar a liberação das paixões como uma situação caótica, sem leis, anárquica. Fourier, contudo, estáconvencido deque"a totalliberação do desejo e o aniquilamento da lei não conduzem ao caos, pois a ordem é inerente ao livre desenvolvimento das paixões" (Morilhat, 1991, p. 198). AHarmonia não homogeneizará, não pasteurizará os prazeres, mas também não exacerbará artificialmente seus aspectos mais contraditó rios, e comisso criará umasituação muito diferente daquela que existe na civilização. O tempo do prazerse modificará, adequando-se a novas potencialidades humanas. Asformas do prazer sediversificarão, se mul tiplicarão, através deuma expansão das expressões mais sutis dodesejo, que atualmente são cerceadas pela pressão do produtivismo, pela per seguição obsessiva da "rentabilidade" e pelas contingências civilizadas. Fourier sepreocupacoma infiltração demodos depensare desentir equivocados entre pessoas empenhadas em transformar a sociedade e superar a civilização. Os critérios da civilização se infiltram nas convic

ções dossocialistas e os induzem a misturar preconceitos comseus an

com formas de perseguição contra homossexuais ou condenaram como "decadentes" e "devassos" comportamentos que, no plano da vida se

xual, destoavam das normas constituídas. Sugeria-se, às vezes, que as opções feitas na esfera privada deveriam ficar rigorosamente subordina

das ao controle das conveniências da organização política que atuava na esfera pública. Afelicidade pessoal, se não se satisfizesse com as alegrias da luta política, deveria aguardar que fosse criada asociedade nova para vir a ser objeto de um investimento significativo.

Fourier jamais poderia concordar com isso. Para ele, os seres huma

nos não deveriam se limitar avalorizar odesejo em sua forma presente, deveriam abranger em sua busca da felicidade as formas possíveis do desejo futuro, mas não deveriam —de modo algum! - abrir mão de seus direitos à busca da felicidade desde já.

Com basenas idéias por ele desenvolvidas, os socialistas não podiam largar nenhuma das duas extremidades da corrente do desejo: nem a extremidade do futuro (prospectiva), nem a do presente. Caberia aos

socialistas, nas lutas que vão travando, pavimentar aestrada pela qual, assumindo seus desejos, as criaturas fossem ao mesmo tempo transfor

mando asociedade etratando de ir conquistando afelicidade pessoal de cada uma. Apavimentação dessa estrada uniria oideal de prazer futuro àreivindicação dos prazeres presentes. Enão poderia legitimar osacrifício da geração atual no altar das gerações vindouras. Fourier repeliria qualquer aliança estratégica entre moralistas con

servadores e moralistas pretensamente revolucionários, ainda que o acordo invocasse anecessidade de uma união em torno de princípios

seios de inovação.

éticos para barrar uma onda de "lama".

Em certosentido, o filósofo parece mesmo ter pressentido um mo vimento que se tornou facilmente perceptível mais tarde e que levaria socialistas assustados coma onda de "permissividade" a manifestar rea çõesde tipo "moralista" diante das mudanças na esfera dos costumes.

"dique" construído sobre normas morais. Aproclamação de valores éti cos não funciona e, se for acompanhada de medidas repressivas, também

No século XX, o fenômeno viria a alcançar dimensões surpreen dentes. Em numerosas ocasiões, dirigentes e militantes destacados de organizações socialistas tomaram atitudes que implicavam conivência

Em primeiro lugar, porque ele não acreditava na eficácia de nenhum não conseguirá resolver o problema.

Em segundo lugar, porque ahegemonia nessa aliança caberia para ele aos conservadores, que estariam sendo mais coerentes que os "revo lucionários", já que ocompromisso do conservadorismo é, de fato, com

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FOURIER, O SOCIALISMO DO

PRAZER

a resistência à mudançae com a preservação de privilégios sociais, po

Bibliografia

líticos, econômicos e culturais.

E, em terceiro lugar, porque a maneira de neutralizar a "lama", a seu ver, não consistiria em denunciá-la e proibi-la, tentandosuprimi-la, masemaumentar a proporção da águalimpa dasdoze paixões radicais, que acabaria por diluir e anulara "lama". Fourier nãoignora a importância dos valores éticos navida humana, no empenho dos seres humanos decombater asinjustiças e construir um futuro melhor. No entanto, ele se recusa a admitir que aos princípios

morais sejam atribuídos poderes para comandar ditatorialmente ascria

OC = Oeuvres Completes, edição dos escritos de Fourier em 12 volumes

lançados nos anos sessenta pela editora Anthropos, abrangendo

turas desejantes, que somos todos nós.

Para poderem serefetivamente adotados por pessoas quenãosejam inteiramente abúlicas (e, portanto,ineptas para viver), os valores éticos precisam passar pela mediação dosdesejos delas. Osdesejos sãoexpres sões imediatas, inelimináveis, da condição humana; os valores éticos,

vol. I: Théorie des Quarre Mouvements vol. II, III, IV, V: Théorie de 1'Unité Universelle vol.VI: Le Nouveau MondeIndustriei et Sociétaire vol. VII: Le Nouveau Monde Amoureux vol. VIII, LX: La Fausse Industrie

reconhecidos como absolutamente necessários, são no entanto constru

vol. X, XI e XII: manuscritos publicados em La Phalange.

ções históricas. Por isso a convicção de Fourier era a de que os juízos moraisdeveriam, por assim dizer,dialogarcomosdesejos, numa postura modesta e prudente, sem alimentar a pretensão absurda de pronunciar contra eles condenações irrecorríveis.

Ospressupostos filosóficos da posição assumida pelo nosso excên trico filósofo são questionáveis. A teoria das doze paixões é discutível.

Sobre Fourier

Alexandrian. Le socialisme romantique. Paris : Seuil, 1979. Arantes, Urias. Charles Fourier ou Vart des passages. Paris : L'Har-

Contudo a perspectiva que Fourier defendia, quando confrontada com a nossa realidade contemporânea, é bastante interessante. Nas condições atuais de desenvolvimento tecnológico, com a auto maçãoe os avanços da informática, o terreno do lazersetorna um campo

Armand, Félix. Fourier, textes choisis. Paris : Édirions Sociales,

debatalha quetende a assumir uma importância política cada vez maior. E nelese apresenta, como questão crucial, a problemática do prazer. Fourier contribui, decisivamente, para que os socialistas da virada do milênio sejam convocados a encará-la de frente. Com isso sua obra

Beecher, Jonathan. Charles Fourier, the Visionary and his World. Berkeley: University of Califórnia Press, 1986.

nos dá mais uma clara demonstração da sua vitalidade.

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