Beautiful Maíra

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  • Words: 35,370
  • Pages: 218
PAULO BAULER

Capa: Elizabeth Kasper

BEAUTIFUL MAÍRA Edição Antropófagos Erótikos 2008

Passo por meus trabalhos tão isento De sentimento grande nem pequeno, Que só por a vontade com que peno Me fica amor devendo mais tormento. (Luís de Camões)

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É Outono Dispo-me de cores e imagens (como se fosse uma árvore) Reuno-me apenas em células necessárias. O inverno virá. De frio e energias contrárias Apago as peles com que vesti idéias e sensos. Apenas os ossos indicam um ser vivo (respiro) E também porque meus olhos permanecem abertos na maior parte do tempo No entanto, sei que sou um relógio parado, guardado em algum canto do passado Olho para o Nada com auto-complacência Que estendo aos outros Bom-dia, Nada Boa-tarde, Coisa Nenhuma Boa-noite, Vazio Absoluto Mas sou pleno do meu pequeno ser Um ser resumido Quintessência de mim

Quero ter o modo das pedras. Não dessas à beira nem Ao MEIO dos caminhos Mas pedra submersa ao fundo de algum regato escondido ao fundo de algum parque esquecido ao fundo Não tenho fé. Nem acredito em reencarnação Sei que sou carne-que-pensa carne-que-veste-os-instintos. Sobrevivência. É tudo o que sei. Afinal, é outono e preciso descansar os braços cuspir os traços os indícios e os vestígios de mim O céu é castanho escuro. A terra se amarela, amarronzeia E há um verde musgo em meu estômago, um verde-veneno que não posso vomitar Mister que alquimize um vermelho sangue veias corredeiras em cores e vidas futuras Há um único motivo de outono: Maíra se foi

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Chego em casa um prisioneiro albergado Afogado em tristeza E a noite acentua a escuridão da alma Embora as estrelas, ex-companheiras Agora que a minha própria luz é só distância Estrela morta, teimosa, sorrateira Há a morte do corpo e a morte da alma Mas tudo não morre, afinal? Há o Ser e a Essência, nossas asas E a eternidade do Nada Escolho o Nada, se me quero eterno (Risadas) Lúcifer da madrugada Sonho com o corpo frio de Maíra Sua aura suada, um espectro feito de nada a me fazer companhia (ainda) Sou, súbito, um autêntico homo erectus E me tomo na mão E me vou, e me volto E me vou, e me volto E me vou E me revolto.

Ao acaso, uma outra mão percorre as estantes Ao acaso me vem As Lágrimas de Eros E lembro Maíra insistindo, os olhos brilhando “Coincidências não existem” Mas não choro, nem sorrio Meu coração represado Muralhas Resta-me uma garrafa de merlot noir Que abro com meu canivete suiço Na precariedade do que foi, um dia, um lar É preciso descer aos infernos da realidade Esquecer de Deus Usar mais os membros Agarrar o inexorável pela gola e sacudir, sacudir Os extremos enganosos da mente em depuração É preciso cantar uma canção qualquer Algo novo, sem referenciais Que me apague os vestígios, os indícios De Maíra e de mim É preciso chafurdar na noite Virar todas as roupas pelo avesso Babar no travesseiro E lamber o chão, como um cão cata as migalhas As migalhas deixadas pelo fantasma de Maíra Nos quartos, no banheiro, no chão da cozinha Na sala E deixar que o gosto ruim na língua apague as marcas indícios, vestígios, dela E de mim

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Súbito sou um colecionador de ar, o ar fino de abril O azul clarinho do céu O cheiro do mar, o marulhar nos ouvidos Ao longe um corpo bronzeado brinca com as ondas E desliza uma prancha em direção à praia, e gargalha A alma, embora o rosto delicado Impenetrável alma de Maíra Flutuando os músculos sob massagens de óleo Que percorro, mãos soltas da mente Que vagueia por suas protuberâncias, reentrâncias, reencontrâncias Profundezas da carne O sol é companheiro, e não arde E o mar reflete em gotículas soltas a alegria do encontro Verde mar, verde, azul, verde, azul, mar Verdes num átimo os olhos claros de Maíra Duas esmeraldas marinhas de precioso quilate Os cabelos caindo louros e cachoeiros Até o meio das costas Ou ao começo dos seios

Ela é discreta, e ama ao modo das garças Leve e pacificada No se abrir, no balançar, no se lançar ao próprio gozo Gozo só dela, e o sorriso bondoso A mostrar que foi bom Maíra!, Maíra! Maíra não voltará

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As roupas de cama exibem a discórdia em que vivo Ser em desarmonia, auto-destrutivo Um homem sem face no espelho Que arrasta as patas melosas pelos labirintos A buscar mais Razões de não ser A cerveja enrola as idéias e os olhos não vêem mais qualquer diferença Entre as coisas que eram e as coisas que já não são: o pé da cama decidindo se desiste pratos na pia implorando afogamentos panelas vomitando vermes brancos Jornais velhos espalhando desinformações no assoalho Que não se asseia nem mostra a sua cor

Uma a uma as garrafas explodem no portão E um som, como se fosse mesmo música Eleva canções de bêbado No retrato, rasgado Uma quase Maíra insiste que ainda é viva E eu quase acredito em reencarnação

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Mas a morte de Maíra não foi uma morte física Não morreu tísica Nem aidética, como se morre hoje A morte de Maíra foi a morte de uma lagarta A vida, divertindo-se nas asas de uma borboleta Boba e pretensiosa como todas, as flores Que se abrem para as patas Inda se fosse outra Nem primavera era E lá ia ela vestida de asas coloridas, morrendo Maíra Vivendo uma nova Maíra Trocando a casa, o casulo, pelos jardins do éden Como se imune a todas as serpentes Sem ainda o gosto das maçãs, mas Ao sabor de todas as manhãs

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Arredo os lençóis do meio-dia O amor é (ainda) a única raison d’être Mais que as retas técnicas de Pound, a métrica de Horácio Ou as rimas ricas do nosso Bilac Amor à la Benjamin Péret Amor razão de não ser tudo o que se é Para ser de Maíra, só de Maíra Ser de todas as suas loucas, fugitivas De um paraíso que ainda respira Na sempiterna orquídea, molhada Os pêlos d’África As rubras pétalas de mel O amor é a única razão de não se ser Olhos fechados no escuro Deixar que brilhe apenas Maíra Sem ser mais nada que pano escuro de fundo Para que brilhe Maíra Maíra enluarada Maíra que gargalha sobre as minhas chagas salgadas Por um nada que se tenta ser E, no entanto, Maíra, olhos de gata Garras cravadas na alma E, portanto, Maíra, e a cama vazia feito um leito de faquir

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Tal estória da carochinha Maíra seria minha E eu já aprendia a não fumar no quarto, não jogar cinza na pia Distraía o olhar das coxas, outras que não as de Maíra E os segredos de não se ser mais que o marido de Maíra Maíra, Maíra Ah! Maíra! Agora serei de outra para mais me aproximar de ti

Havia uma rítmica E todas aquelas roupas coloridas E Maíra ali, remoendo as cadeiras como fada caipira, pronta A se abrir feito uma abóbora encantada Ao primeiro príncipe emproado que bem-te-vi que tivesse uma bmw na garagem particular, frio feito um filho de chicago a experimentar teorias neo-liberais na corja do terceiro mundo, e quente o suficiente para desejar a mulher do próximo que tivesse todos os dinheiros e que os usasse para comprar todos os brinquedos, inclusive ela e todos os silêncios, inclusive o meu que tivesse um troço extra além da paga que tivesse um troço grande e o usasse como um javali pagão

Maíra saía de fininho da festa e de mim, caía feito folha seca de outono envelhecendo o chão feita como foi feita a durar apenas a estação Sombra de Maria, espectro, apenas mais um dos laços d’alma com que se obstrui a aorta a viver sem paixão Julgar-me-ias um louco, Maíra Se te dissesse que ainda muito mais havia que as curvas da tua bunda oferecida, que os pêlos perfeitos e o cheiro nos dedos, que os belos seios, e os mamilos sempre acesos e eu, um ser fálico sátiro a te invadir Julgar-me-ias um louco, Maíra Se te dissesse que eu queria mesmo um filho de ti

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Mas sempre há daqueles bares, lugares, onde se pode ir e alguma joana helena que sempre sonha com um homem assim; e tantas kátias, e muitas déboras, e uma infindável fieira de olhares que vêm nas redes, pescador de carnes Enquanto Maíra sorri um sorriso debochado enquanto aproveita bem o seu bocado de mulher livre e desembaraçada a provar da masculinidade, espadas sem se ferir

Porque Maíra é fêmea liberta e engole os machos da espécie como uma sapa suga os insetos Porque Maíra trabalha e pode pagar as próprias sedas e os cheiros com que estende o corpo em teias como uma aranha faz quando tem fome Porque Maíra é ela mesma a própria razão de ser de todas as coisas e pessoas, e é dona de um discurso filosófico-político-antropológico que explica e justifica a existência da Deusa onipotente, onipresente, e impiedosa com todos os que duvidam da própria fé Porque Maíra é também lua nova, crescente, cheia e minguante com toda a noite a lhe servir, a engolir sóis, como quem come escargots e depois dulcíssimo champanhe entre os lençóis Porque Maíra é sempre o que sempre quer, assim máscaras e risos de nos distrair

Mas sempre há daqueles bares, lugares onde se pode ir e encontrar aquela, que num breve abrir de pernas ofereça uma nesga esgarçada de alma, a implorar por salvação eterna ciente da proeminência do macho, esta esperta raça que recolhe a vara enquanto a fêmea acha de escancarar a fenda sempre mais aberta a esticar o nervo tal que fosse estaca recolhe a vara nossa esperta raça, enquanto a fêmea esta mocha macha aflige as noites com seus berros d’água

Ecoam por isso os risos de antigas carmens, e os lábios caminham canais de impunidade, alvos laços se afrouxam ao primeiro traço, mágicos corpos que se transformam ao rubro correr das garras bebendo o hidromel sagrado que escorre sempre farto E se alegram porque obtiveram conceder ao amo um prazer ligeiro que talvez por isso faça dele escravo a pagar um preço cada vez mais alto e depois a gruta será prometida com remelexos se oferece o rabo até que dele reste quase um nada hiena escura dando sua risada

Mas sempre há daqueles bares, lugares onde se pode ir Talvez a Sorte não é tão madrasta Talvez até por muito mais carrasca Te faça face a face uma esmeralda que se guardou até saber de ti Desses mistérios que o Universo guarda entre esses seios feitos de marfim Talvez então a noite seja calma e a cama avance pela madrugada Exploda em cores como as alvoradas que para sempre quer se repetir que para sempre quer se repetir que para sempre quer se repetir que para sempre quer se repetir

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Há mulheres que estão sempre a dizer adeus Cada encontro é um lenço de cais, um beijo de aeroporto São mulheres impalpáveis, não tanto escorregadias como um sabonete mas, que sempre se esvaem como um sabonete Maíra dizia que nada é para sempre, que para sempre não existe Uma fêmea feita de talvezes, de quem-sabes, de cada vez menos Quando da primeira vez, era uma serpente de paraíso, pedindo exigindo até Todos os pecados: Primeiro, deixava que eu fizesse, tocasse, entrasse, lambesse, gozasse de todas as másculas maneiras Uma ninfa desmaiada, à mercê do mais guloso dos tarados Os olhos fechados, semicerrados, ao máximo entreabertos Assim os lábios, quando não ocupados pelas exigências de fauno Assim o dorso, quando lhe virava o corpo para um outro modo E gemia baixinho, e tudo nela era um devagarinho um gozo miudinho uma obedienciazinha Assim os seios, que oferecia os bicos rosados o rosto voltado para o lado Nem era dela a alma, que se abria em ser sugada E também embaixo, que eu usava e abusava e ela, coitada cinderela anoitecida suspirozinhos e gemidinhos até que aliviada

Quando eu pensava, então, a hora das plumagens Aí era outra que se mostrava feroz e sanguinária A cavalgar-me uma valquíria, uma amazona em temporada A provocar em mim temores e tremores em ver decepada, a alma e a prata espada Arranhando-me os mamilos, cravando-me as garras mordendo-me as carnes Até que a desse em tapas, até que a boca fossem lascas de palavras tortas Até que me acirrasse, por ofensas graves até que eu mesmo quase não fora um homem Aos intervalos era um champanhe, um vinhozinho um sorvete de creme com coca-cola Era um Debussy na vitrola, uma foto de menina cadernos de escola rabiscos e poesia Era um filme de Welles, no vídeo entrevistas famosas Uma fieira de nomes e idéias, e o que eu achava dela A parte mais gostosa, a mais bonita, o que havia de feiosa nela que não gostava muito do umbigo, os seios, não, sabia que bonitos que jeito melhor os cabelos, qual lado do rosto e a bunda, se era a gosto e o triângulo obscuro, eu que falava a vê-la sem graça

E eu expunha os motivos, que a sentia apertada viscosa, qual óleo de fábrica macia, cheirosa, sedosa por dentro e por fora Que era sinal de idade, uma ruga teimosa e as marcas de praia, e a cicatrizinha na perna o sinalzinho na outra, se as via roliças se musculosas bem proporcionadas E se voltava, se exibia, mostrava se esfregava feito uma gata pedindo comida Aflito lá ia eu de novo, esculpir novas imagens de arrogância e mansidão Das carnes de Maíra, alma de Maíra Impregnada de suores e energias Equação geométrica de curvas e retas, sinuosidades e éramos duas gotas d’água a se desmancharem no mar das tempestades epopéicas Vencida toda a masculinidade retida nos confins das entranhas, do cérebro ao coração Dos bagos ao olho da escuridão

Exausto, quase vejo, por pouco não toco em Maíra, sorrindo de satisfação

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Mas o dia, a hora mesma em que Maíra se foi ficou retida nas retinas assim como uma fotografia antiga a nos chamar de volta ao fundo dos baús Os galhos nus das amendoeiras desdentadas folhagem amarronzada espalhada frente ao portão de entrada Lá um bem-te-vi sem fala buscando cobertor E o pula-pula dos pardais ignorantes da estação das lágrimas olhinhos malvados voltados para os restos mortais dos ninhos a cravar os bicos nos ovinhos nem chocados em vão Ainda as bananeiras vadias a disfarçar com sorrisos os ventos de outono Ainda os coqueiros vaidosos a exibir os bagos prolixos e ainda o cheiro dos jasmins evasivos a mostrar toda a sua ingratidão e ela resmungando providências prosaicas, desfiando, conta a conta todo o rosário que se reza nas separações E era um final de tarde, era uma chuva miudinha dessas que convida aos abraços, amassos de reconciliação E era uma valise de mão, um passar de batom uma distribuição de malas, uma hesitação temporária quanto ao livro nas mãos, o disco, a fita de vídeo E era um coração guardado para a nova ocasião talvez que bem cedo, talvez que mais tarde E nada mesmo importa uma vez aberta a porta para as fronteiras da solidão, que apunhala a parte que ainda ama, as garras cravadas nas carnes magras

E havia um convite, uma ascenção sócio- psicológica, outros homens novos pares testemunhas oculares de uma nova história uma nova mulher E havia uma raiva, um homem apunhalado no abdômem a parir por cesárias clones e zumbís E havia ainda o silêncio, a súbita vontade de dar mais uma trepada Uma ereção atávica, sábios antepassados que tratavam mulher como mulher E havia uma lágrima dependurada na alma que não podia C a i r

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Talvez porque o sol já se ia distanciando, em sua rota mais fria Que me vinha Maíra com seus ais de família Os mil motivos de se entregar nada entregando, ou de não se entregar entregando Esfregando sempre os olhos cada vez que sorríamos ou mesmo fazíamos, um amor ligeiro como o dos coelhos Enquanto me debruçava à boca de um poço sem fundo sabendo Perigosamente distraído de tudo que não fosse Maíra seus devaneios de rainha, seus medos as preocupações mais comezinhas os caprichos de sinhazinha, os desejos tudo em nome de não perdê-la mostrando o macho moderno, liberto das algemas herdadas dos séculos de submissão da mulher Enquanto ela vigiava e velava cada conquista feita, cada passo Em direção ao alto Enquanto eu me escorregava, escada abaixo Era preciso que eu fosse um héracles para não sentir a dor dos músculos que perdiam o rumo, e o prumo do mundo às costas, um atlas mil vulcões jorrando lava vaidade, indiferença e ingratidão E esse prometeu acorrentado a seus grilhões a pagar o preço da luz na escuridão sem contar um torquemada a extorquir segredos e confissões de um herege querendo vez em quando ser o macho da relação

E a cada pomba branca que eu soltava, cada rosa Estratégia ideológica era o que pensava, e dizia nas tpms noturnas com a soturna face voltada para a lua escura O punhal de prata purpúrea, cravado e fuçando o coração Eu navegava por águas cada vez mais turvas, sob a batuta de um caronte que o meu próprio rosto no espelho mostrava, em cada ruga diária a direção do vento Era preciso soltar as amarras, abrir a jaula e deixar que o primata bebesse até c a i r Ao mais fundo dos fundos, sentir O hálito da morte, o desprezo da sorte Abandonar todos os modos, encolher-se todo Deixar crescer as barbas, as garras Reter o sêmen, a espada Encorujar os olhos, aprender os óleos Com que se massageia os bagos a não buscar sua flor Era preciso meticulosidade de padre escolher a cadeira, o gancho no teto noite após noite, a hora aconselhável o laço e o sono desperto ser seu próprio carrasco, e suicidar o amor

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Não fôssem os galhos assim retorcidos, e os vazios Notaríamos: todo dia havia uma folhinha novinha, verdinha feito um bebê pedindo colo, e os seios, e também pedindo um tempo até crescer Não fôssem os iagos, e os cuidados de Vênus E as cunhadas de Eros E o movimento dos cinzeiros, e o batom nos espelhos O sorriso dos tempos, e os velhos jargões das trevas Insistindo que o amor é besteira, é flor roxa que-nasce-no-coração-dos-trouxas Sem que se possa provar que vale mesmo a pena buscar o arco-íris nas manhãs Chuvosas, melosas, suadas, afogadas maçãs desperdiçadas na alma, karma de caim e o mel de abel a escorrer em vão

Pois afinal não somos todos duas metades desirmãs, escoando? E se o inferno é mesmo aqui, nem mesmo o demônio nos quer pecaminosamente amando E nem todo o azul que há nos céus nos basta quando o coração quer dizer eu te amo eu amo você Ah! Folhazinha miúda, verdinha, não vá me c a i r

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As pétalas da rosa no meio da sala mostravam Éramos nós que não queríamos ver Pela janela nem tanto aberta a montanha, grande e tola quanto nós podíamos ainda ser Meu corpo, um corpo largado, braços largados, pênis largado Eu era a corda mais aflita de uma guitarra do Pink Floyd chacoalhando in the wall A voz de um desertor

Maíra era como uma prima, mordida antiga cheirando a adolescência de interior Olhando para mim com todo o horror néscio dos tédios e os planos de fugir dali, subir aos céus como uma nossa senhora tupiniquim Aparecendo aos fiéis entre malhas e cetins, bordados dourados, babados coisas assim, anunciando os mistérios da moda, proferindo as regras de melhor comprar, de melhor usar, de melhor mostrar, de melhor tudo-oque-você-precisa-saber-sobre-tudo, enfim Desaparecendo sem deixar vestígios, mas haviam os vídeos A provar a existência da inteligência, da graça, do charme E tudo se resumia numa questão de fé Em si Não olvidando as viagens, e os colares Boeings para Paris, Nova york, férias na Jamaica Uma esticada às terras de James Joyce, um romance das arábias E ela amava as esmeraldas, os diamantes da África Os elegantes homens sem pátria, os marginais do ócio cum dignitat Castelos ingleses, armas, brasões, fantasmas Talvez uma visita a Marte, organizar um sabá de feiticeiras Ficar na História, anita, guerrilheira Abrir um hospício, inventar um método Liberar geral, apagar os egos masculinos Acender um brilho, um pavio que exploda os mundos paralelos aos femininos modos e fuzilar todos os que se opõem à nova ordem amazônica imperial, ou outro nome qualquer nome, menos nome de homem Podia ser helena, virgínia, podia até nepomucena Luciana, podia; valia lucrécia, geórgia, neferasta Tantas maíras quanto havia de estrelas nas galáxias

E seria abolida a gravidez ventríloqua, tudo in vitreo Ia nascer um mundo sem a tal diferença, e a engenharia genética cibernética era, aquariana E as pétalas brochas dessas rosas velhas é mesmo a hora de jogá-las fora

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Cambaxirra de outono faz ninho marrom Bem-te-vi assobia, formiga faz hora-extra E o canto da cigarra ainda é um eco do verão Maíra gargareja uma traviata enquanto descasca as batatas e eu tempero o pernil Entre beijos estalados, e os lábios molhados debaixo do avental Os pêlos se eriçam, e os braços, e as mãos e os dedos lambuzados de tempero com cheiro de queijo ao manjericão

Mais tarde um iago assustado com a minha risada recolhe suas mãos Há muito não via Maíra assim tão bonita, feliz com a nossa união Nem mesmo a malvada mandrágora azedava o gosto da couve, o torresmo e o feijão O pernil tinha vindo de um porco afogado em limão Maíra um papo de anjo o café e o charuto e o licor se chamava Beirão O Mário dizia que o bom dessa língua é ter tantas palavras findadas em ão Maíra acabava o domingo e a louça acabava e o domingo acabava e a louça e Maíra e o domingo e a louça e tudo acabava e acabava o domingo e vinha Maíra acabava gritando as palavras sem pátria e o bom dessa língua é ter tantas palavras findadas ou não, não, não, não, não, não, não, não, não, não ai!, amorzim ai!, amorzão ai, sim ai, não ai, sim; ai, não aí, sim; áááááííííí, ssssssssíííííííímmmmmmm

Nada mais Maíra que os nãos de Maíra e os seus sins

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Maíra ainda detinha o poder, apesar de tudo Apesar da lacuna no leito, meu corpo sem jeito Ia fumar na sala, conferir as estrelas, e abria as janelas Assobiava aos morcegos, deixava que a alma Navegava os espaços do Absoluto Sem nada, e nada mais encontrava Senão o sorriso de beira, seu olhar de esguelha Sua centelha e o meu fogo das cavernas Fogo sagrado que urgia não deixar acinzentar Sim, Maíra era sempre palpável como uma boca de fogão Cozinhava Maíra servia aos pedaços Retalhos da mais terrível solidão Eu era um menino, vadio que não aprendia a lição Um macho arredio, as batidas na porta Um amante fisiológico que não abdicava seu trono de macaco-rei Por isso que katchas e débras e veras Meras trocas de notas por moedas Do mesmo dinheiro: solidão

Mesmo ali, o leito, o desejo O cheiro do corpo, o tesão Sem poder tocá-la, arrancá-la dos braços de Morfeu, seus orfeus A madrugada ainda ardia, fogueira noites de São João Pobre d’eu, pobre d’eu Ficava assim querendo Nem tinha o direito Já tanto que feito Quatro danças ao leito E a tal da vontade não cedia, não ia Mesmo o nervo mole, querendo só mesmo doença talvez era a crença, e o medo de ficar broxa ou o medo que outro se não desse conta Enquanto ela dormindo, a camisola solta Enquanto eu fumava, e pensava que a vida sumia, e toda a existência se resumia nela No cheiro da pele com anaís anaís No cheiro da xota com talco de rosas No cheiro do beijo com a planta das tontas No cheiro do queijo grudado na boca Enquanto ela dormindo, as pernas sempre soltas Enquanto eu abria outra garrafa do vinho existencialista dessencializado vivendo única e exclusivamente de suas grutas e cheiros cheio dos receios de me perder de estar

Um não ser, fluido contínuo ahistórico afinal Flutuando no éter da alma de Maíra agarrado às suas tetas espirituais A beber do leite secreto e amargo Sendo assim tão claro que as trevas, e só elas é que são eternas porque nada são, apenas estão à disposição do que lhes queira acender as luzes da matéria até que morta, esta aquela que é origem de toda guerra, todo poder, toda escravidão Pacificado eu era, quando inteiro nela, dela Apêndice, cérebro, pulmão Dela, terrivelmente dela, sem a mais ínfima liberdade Desta falsidade a que chamam o

p

ç

ã

o

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Há um lusco-fusco adentrando as janelas e um maribondo preso entre as vidraças Há nuvens plúmbeas baixando sobre a casa Talvez almas se imiscuam, entre as frestas, quais baratas Escurece rápido e uma gota de suor me escorre pelo sovaco Suor que disfarço, com medo que ela perceba os tremores e os tambores do coração Do lado que ainda não lhe pertence de todo, o lodo que mantenho por baixo Não consigo olhá-la, apenas manter a órbita Tudo inalterado por mais que doa Escorrego-me feito cobra mal intencionada em direção ao ponto da picada Ela é de mármore, estátua imune às minhas intenções geográficas Vênus de malha, solto suas alças Suspendo as caixas de pandora Mas adentro a cara disforme em peles castas Mãe! Mãe! Por quê me abandonaste? Feminino cheiro, feminino seio Meio de se chegar Meio de se sair Meio de se adentrar, voltar à escuridão dos líquidos Avesso de si

Mas a máscula ira, que não nos deixa partir Miséria de todas as filosofias Matéria-prima de todas as batalhas De uma grande guerra que um dia ainda se apocalipsará Animal peludo e suarento, sem consciência de si Egoísta, carnal Substantivo Limpo da razão adjetiva Presas, garras, gosmas Roncos, gritos, roucos Gozos Que entregam de volta a alma Carne que se basta Despicienda alma desse, que agora se esvai cheio e vazio de si Dela a alma flutua Do outro lado da lua Foi bom? Foi menos? A ela só importa a alma Solta Flutuando além de todos os umbigos, rainha dos inaccessíveis mundos sem chão Impassível mãe terra cumprindo seus rituais enquanto o sorriso nos lábios espera, apenas que tudo se acabe de volta à calma dos lodaçais

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Duas folhas pesadas como os séculos caem aos meus pés agitados Já sabendo que é quase a hora dela partir Enquanto lá dentro, ainda a chave na porta, ela se debate a mente quase a conseguir Seu íntimo mundo, feito de quâsares e pêsames e adeuses também os próprios prazeres Um corpo em quase levitação, a carne ao toque das próprias mãos Seria um rei, um tzar, que impérios prometerá? Que falsas carícias? Que falsas palavras? Acariciará seus pêlos com mãos de jacarandá? Ou guardará receios, por isso que só almas a sonhar? Corredor estreito, corredor da morte e a cela da carne que encerra mais, muito mais que um homem prestes a morrer O sangue lateja de volta às cavernas Os outonos têm gelos que a gente não vê E todo homem que ama receia a primeira folha que cede com a marca dos cheiros, dos lábios, dos pêlos que não pode reconhecer

Ela ainda é fora de si, embora a hora Senhora das persianas, das roupas na corda Dos cozidos de domingo Dos sorrisos, dos gemidos Dos que constroem um mundo sem infinitos Lá dentro súbito ela é uma pausa Respiração alada Vaga Onda Maré Quase a se encher, molhada Um único cheiro Seus próprios jasmins A pata na porta trancada E há um primata na jaula Ferros feitos de alma Olhos que flecham o peito, animal Exposto à cidade alguns, piedade todos motivo de rir E agora, para onde ir? Muro, muralha, que se abre, escancara Sem que haja nada (ou quase nada) a confirmar a causa pela qual ia morrer E ele um menino, a mão espalmada A linha partida, a pandorga lá longe a c a i r

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Outono, sol poente, nuvens outossolentes Galhos suplicam abrigo, deuses e abraços Mero olhar caído sob as pálpebras Um milhão de átomos perdem as asas Maíra, iluminada Acende meus pés, queima os meus passos Ah! Quem me dera ser um tal narciso, e ela apenas eco Uma réstia, às vezes, desprende do passado e traz um bafo de verão Mas os lábios selados, os laços frouxos, outossolentes Ah! Quem me dera ser um tal sultão Ou alexandre, o magno Ou o portal dos séculos a bico de pena Ou as cavernas Ou outra Maíra, não essa tricô nas tardes Ou, que fosse só mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa E ela as águas virgens castas em que se banham as nove musas Ou fossemos errantes Bonita e Lampião Tanto que fomos samba e canção vinho e bênção hóstia e pão Que fôssemos algo para além desses outossolentes modos, de chuva prestes a cair

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Essas árvores, lá fora, que avançam, pele e osso É em vão que açoitam os ventos, pensamentos Nesses galhos secos, tais que espelhos A estender nos móveis a largura dos silêncios O leito ainda é um jeito, a dragar águas profundas Narcisos se debruçam ao poço dos desejos Ah! Águas impuras, e esse lodo lá do fundo Que venham, antes que o mergulho E é talvez um modo, de súbito Um suspiro dessintônico Um tal que virar-se em bruços Um martelo, uma bigorna Cadenciados e mudos A dar aos pensamentos Concentrar-se o único Corpo que se estende a conceder miúdos E é talvez um porte atlético Ou óculos de inteligência Tatuagem nos bíceps Todos guardados aos retalhos da memória Talvez algum antigo amigo Ao qual se negou um dia o seio direito Talvez remendos de filmes, personas de ficção Talvez criados por ela, ao roçar da própria mão

Cada vez se aproximando, esses fantasmas de cama A arder mais os desejos Tal priápicos deuses Que tudo fazem e concedem Afinal, quantos somos? E ela: Não sei Talvez, contando comigo da minha parte são seis Mas nem mesmo sei, se sou ou se é ela, não sei Galhos, pobres galhos Abraços que dóem

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Aos ouvidos assustam já os ventos dos invernos Mas umas tantas luas ainda sorrirão Para as saúvas perderem as asas Em definitiva queda Ela sorri, pelos cantos, suas teias de aranha, enquanto aos meus camaleões, me socorro Mas se sou fresta, nunca sou porta fechada

Aberta para as janelas, ela vaga distante dos meus braços nus Onda que enche, mas não rola, embora o gozo, eu sou A cada minuto da madrugada Na eternidade das senzalas Ontem mesmo, um homem pálido contava estrelas Enquanto ela abandonada ao leito era outras aritméticas, gramáticas estrangeiras Ao longe, um cogumelo mostra os chifres Eu que me volto, os lábios secos, os olhos vermelhos A cobrar deveres de quem não mais me pertence Abro o esquife, espanto os vermes famintos que adentram as carnes íntimas O beijo beija o aço frio das fechaduras Em vão as mãos percorrem labirintos E um cão uivando para a solidão cava com as patas machucadas a terra ingrata Nem há lua no céu, nem nada Que a fizesse apenas dizer dos ascos ancestrais Mas, não! E o que há com ela, que pedra, não sei

21 Como o último desejo que o carrasco Como os suspiros de um doente terminal Como os olhos brilhantes, animal No exato instante do fatal Ela me concede o último pedaço Das antigas festas de natal E passeamos as mãos dadas pelas paisagens retorcidas Derretidos nas retinas que não enxergam mais Que o cinzel dos finais A praia é cinza, embora o sol sorria ainda para os mortais E as gaivotas que mergulham simples traços Sublinhando a longitude dos sinais de um mundo que avisa: nunca mais Obrigam sugar a seiva e aliviar uma súbita sede urgência de nós Somos um sossego, e não queremos mais que essa paz A cumprir as últimas cláusulas sinalagmáticas, lá de trás: promessas de para sempre amar, aceitar rebus sic stantibus, que não dá mais Metamorfosear s qual b t e f i u t r f l e Ó tristeza do casulo que se parte! Ó, tristeza das lagartas! E esse medo de voar

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Outossolentes, nos deixamos ficar O inverno virá E a solidão é fria como os olhos de um jaguar A espreitar os pêlos acesos do medo e os suores Olhos que se águam ao menor pestanejar Melhor ficar Lamber os ossos Garantir o minimorum quase a se soltar Melhor deixar a pele descascar por si Nem apressar o couro, novo que prestes virá Talvez mesmo haja ainda, duas ou três coisas Há um hábito, é certo Das coisas já se sabe o lugar Sou um mero morcego flagrado à luz do dia Quando ela me encara, fêmina mãe d’água Banana da terra, nanico, faço ainda ser áspero Nem tanto que me jogue fora casca e tudo Em tudo quero declamá-la Mas a voz soa como os sinos das tardes sacras Ela sonha com festas de muito além Na estúpida busca de ser alguém

Há um ritmo, porém Que me envolve e me comove às tripas Mesmo o pó das entrelinhas, e o queijo comido sobre a geladeira Mesmo o choro preso na faringe Mesmo o café, o jornal, o leite de todos os dias Há um ritmo, e a quietude dos lençóis Sem que nos cobremos passagens para Artêmis Mesmo há um batuque, um certo compasso O coração, dono de todos os ais, os sins e de tantas coisas mais Há um ritmo O coração compreende com quantos paus

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Ao lento palpitar de sinos inaudíveis Cada palavra é uma janela para o infinito dos horizontes O sorriso, às vezes, ensaia adoçar Meu chifre de rinoceronte Cada palavra é uma panela a aferventar o leite Às vezes passos para pasárgada, usada e velha Cerdas de uma harpa sempre à espera Dos sons que são esferas, bolhas que arrebentam ao menor descaso do ar Cada palavra é uma dialética dos sexos, onde tudo é seixo na paisagem sem flor: Maíra amalgamada ao sofá da sala Aos pés um livro sem pressa de ser lido Feita de gestos outonais muchochos colostros de seios murchos zumbidos Abelha a moldar um reino Exército de vespas prontas a ferir Maíra e seus passeios sexta à tarde Alma a despencar como as pétalas das giraldas usadas

Maíra dos olhos abertos Pernas que se desencontram Leito pequeno para dois Maíra e suas cólicas menstruais suas dores de cabeça suas vontades de gritar ao meio das noites Maíra e seu olhar em chamas lendo os jornais querendo mais, quando já desço a serra, a artéria pedindo paz Maíra e sua concha fechada, alta madrugada Súbito um cio acorda um fauno assassino Seus lábios finos e frios, sorrindo em seu lado mais escuro Maíra e suas razões de lua embriagada Tanta plebe a contemplá-la, cabeças fálicas Inclusive eu Maíra e suas malas, seus sutiãs, suas calcinhas Na beira dos invernos infernais Gelo Ferro e Sal

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Quanto mais a gente pensa que envelhece, a alma ainda uma criança, chora rola o berço de terra, estende os braços e pede: mamãe! E toda essa grisalha barba na cara, as rugas, a papa sob os olhos escuros Os nervos gastos, o álcool e o fumo, o cérebro moldado aos inimigos moldes, todos os sapos, e os lagartos da fala, os sonhos largados com as amantes antigas, as velhas meninas de adolescências vazias, vadias a oferecer a racha em troca de ex periência e, naturalmente, gotículas de boa vida Toda essa indagação, essas rusgas, as ordens vindas de cima e a sola dos sapatos sobre os de baixo, como se fosse tudo, tudo, absolutamente necessário, e nem doesse Quanto mais a gente pensa que envelhece, a alma filha de pais separados, pede reclama, mendiga, às vezes grita pai!, mãe! tenham piedade de nós

Mas a risada e a mão espalmada, Maíra dos Tempos assassina o pai e agora cobra as palmadas na bunda a porta trancada ao prazer dos dinheiros, do poder de ser vestal do capital, vociferar mentir, matar, roubar, cobiçar, mesmo implorar um lugar ao sol, ser o próprio sol, esticar engrossar forjar um grelo, aço e fogo devassar os mistérios, cortar pela raiz as árvores do conhecimento, o bem e o mal expulsar adão de todos os paraísos, que o feminino manda pegar todas as suas costelas e enfiá-las no mais recôndito do seu cúpido sentido Maíra dos Tempos ouve minha cara vermelha, aponta lá fora mostra uma estrela que mudou de cor Ela está pálida, e seus lábios roxos mostram que um ódio, superior apaga a luz Guerreiro das trevas, alio-me aos morcegos aprendo a voar às cegas Nem há por que temer os ratos, coleciono corujas e cobras famintas se enroscam em meus pulsos um tanto confusas nas trocas de par Uma lilith vaidosa aceita dançar aos sons que brotam Do roçar raivoso dos corpos, ao avesso dos verbos Afiando o aço frio dos cutelos

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Nuvens negras baixam sobre a cidade e dançamos boleros em nossas novas núpcias, tangos bandaleônicos Ao sabor dos instintos Como se chegada a hora dos juízos Passos firmes para os niilismos, narcisos Todos os ritmos, éramos Ouvidos insinceros E loucos chapéus napoleônicos, somos bumbas-meu-boi, bergmans/niztches, batmans, beatniks, novos hippies, meninos de hitler, vampiros, o cio dos bandidos, barqueiros dos infernos, punhos metaleiros, soft dreams, heavy trips, noites do sem fim, peste de camus, primos de caim, ferros de ferir, copos de botequim, mulas sem cabeça, sacis, morganas e merlins, símios em festim, fuzis, e uma inocência imensa imersa em destruir o que resta dessa besta-fera apelidada amor Sem que ousemos, olhos nos olhos, por uma única vez contemplar o sol se pôr Sabemos, no entanto, a hora dos embora Semente que não germinou

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Maíra me olha uma rosa, as pétalas cerradas de um caule que não se aguou Sedento cio dos desesperados, agarro-me a ela e imploro um cão que implora ao dono que não se vá embora, e choro até que, fausto cobro de mefistófeles o cumprimento das promessas vagas Ela me olha, apenas, nem mesmo desprezo A vã inquietação da masculinidade rejeitada A alma esvaziada desse corpo-cálice Bebido, gota a gota, até a última garrafa Há uma calma sem cheiros, sem palavras Nos lábios que os dentes lhes servem de guarda E afloram os ossos que eu nem sabia E os pulmões regam as veias como um cotidiano gesto, apenas A cabeça, nem os pêlos se mexem Coxas, pernas, tornozelos, e os dedos dos pés E ao centro, porta renegada é apenas um desenho clássico, de um livro já gasto de quando se deixa a despicienda adolescência para nunca mais Nem pensar outra porta lá por trás

Mesmo assim um sátiro, desenjaulado Assoma e assume o cetro do carrasco Frio como a lâmina ao fio do machado Cumprindo sina por mal predestinado Ao lapso dessas horas que afinal são dele Imune aos sofrimentos, aqueles revoltados Atento que apenas à claque da gentalha Que tem na vida sua mesmo sendo chula Frente a toda morte assim tão impudica Mesmo grande ainda em vida fora a vítima Ele inda maior, agora que as risadas

Mas o riso é a medida das hienas Nem sei quem sou, quando saio Um nada na espinha, a inutilidade de todo esforço Quando caio para o lado, contrário ao dela Que se apressa a lavar o visgo Como quem cuida da louça e da panela

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Cada palavra é uma serpente língua oblíqua de fora A confundir os ódios com o amor de outrora Cada palavra é uma dentada, e ela espera que doa Cada palavra é um veneno, que mata quando se está à toa Cada palavra é redondilha, suave carícia quando se alegra

Ao tempo do adeus marcado o amor corre mais célere Apenas a carne pela carne e um mar de prazeres Naufragamos sem tábua, nem ilha qualquer à vista mas as delícias Ela gosta que aponte, antes, que aproxime, antes que acaricie com a ponta, antes Que novamente aponte, e outra até que manda: “-come!” sem que saiba a obediência instantânea ou a tortura chinesa deste ser que sou na cama, mutante E pode ser que dure, eternamente e pode ser se acabe ao mesmo instante

Cada viagem dessas, tais delícias é mais uma pétala da rosa que já se vai ao caule E os espinhos, machucam Por isso mesmo as almas se debatem Mais próximas do fim Há o medo de perder-se do corpo Trocar seu invólucro pelo outro E não voltarmos mais Quanto mais longe vamos somos uma viagem astral A reencontrar encarnações, vidas passadas - ela diz A diluir no corpo do outro o que somos - ela garante E somos de cada qual apenas encarnação fugaz E o que resta lá fora, agora que os corpos sem força para outras ambições? Senão deixar que a vida prossiga, sem nossa parte a cumprir da cidade os seus rituais Mas, a cidade resiste Em nós os nós nos prendem aos cais familiares, laborais convidamentos a ficar Afinal, se para cá viemos e somos choro e divertimento O ódio imanente dos contrários A superar, vencer no outro a diferença Para isso viemos, afinal, para ver qual razão que vence E por mérito e método se subirá aos céus Ao inferno os vencidos, inda mais terrível Se a arma escolhida terá sido o Amor Cada palavra é poderosa trombeta de Jericó A destruir as muralhas alheias, a construir seu mundo à imagem e semelhança do vencedor

Lá fora as estrelas brilham e não sabemos quais são apenas luz E as que ainda são incandescências resistindo às trevas Filhos e sinais, partículas da Vida Infinita Verbos de Deus Mas somos apenas alegres átomos em trevas, e elas nos tratam com mimos maternais Somos também um medo do que virá depois

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C a i outra folha de outono aos nossos pés cansados Uma brisa convida a filosofias: como é dura a vida de casado! Mas os lábios ainda possuem o modo dos primeiros beijos As línguas sabem o caminho para os céus Da boca ainda se debruçam palavras doces como o mel da primeira vez

Maíra se faz uma calma e passeamos de mãos dadas Ainda que ontem uma fera pronta brilhasse a jugular, e o sangue latejasse prestes a matar Mas as mãos de Maíra tecem ao contrário de Penélope Desfazem de dia o que tecem à noite Para um ulisses que nunca partiu, e as circes, que rondam são a serviço seu O sol é frágil, uma aragem fina e perfumada entre seus cabelos acaricia-me o rosto Quando ela se vira e sorri para mim uma intimidade sobrevivente Os olhos não mentem, quando me diz do amor Mas isso era ontem, agora Que importam contos de fadas? No contacto das peles calmas e ao peito a alegria de um órgão de Bach Respirando a vida que ela me dá, tudo o que só importa Enquanto os sabiás ainda cortejam as fêmeas e as frutas maduras E se os olhos se me enchem de lágrimas, elas não mancham a paz da manhã O parque, e há árvores que nem se dão conta Tropicália, que gargalha verdejantes ondas Os pássaros, e há casos que ela me conta Reminiscências de quando criança Ao som de uma música que vem de dentro Amoitada aos meus braços Como uma leoa que sabe do cetro e da juba Garras e carne Ah! As mãos de Maíra a me acariciar os majestosos pêlos

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Tenho o sono tranqüilo dos muito cansados Os sonhos apagados da memória se calam E durmo como dormem os fetos a ruminar as trevas que breve deixam para trás Talvez por isso não há sobressalto quando o cheiro mais íntimo toma a forma sinuosa e marisca Maíra, toda ela ali, a mergulhar-me em seus líquidos pintura cerimonial para o sacrifício a Kãli Me besunta o corpo em óleo profano e solta sua língua mais pornográfica O veneno se espalha, combustível à fogueira ao centro dos infernos Vultos dançam à volta, bruxos e bruxas reunidos para o batismo de um nascido cristão Arde-me o corpo, a febre pagã de todos os delírios e adentro a porta estreita dos sentidos esticados ao máximo O cheiro perfumado de Maíra e só o cheiro perfumado de Maíra, nada mais Que o cheiro perfumado de Maíra Me estica o arco aos máximos

Servo de Diana Contemplo um algo desconhecido, e um grito se vai esvaindo das entranhas da terra Nem sei se é ela, ou se ela me grita Sei do cheiro que se alarga, e das garras que me abraçam E que é bom, tão bom que bailo no éter perfumado de Maíra como se fora essa a única salvação Nem reconheço os espasmos, se é mesmo um orgasmo Sei apenas do cheiro, uma espécie desconhecida de fogo Sou inteiro um pulmão, respirando aos poros da pele A sugar todo o perfume, e há apenas um nome Maíra! A me dizer quem sou Alma que vaga para além dos destinos, sem outro instinto que não ser estrangeiro nesse mundo de cheiro O cheiro mais íntimo, o cheiro de Maíra Que outro possível paraíso? Ao manto de uma deusa que me anuncia e promete a transmutação da alma, apenas escravizada Ao cheiro da paixão

Ah! Maíra, aqueles nossos gritos E sabias do fim dos nossos rubros dias Também te perdôo, Maíra Também negarei teu cheiro, um dia Senhor de todas as mentiras Na ressurreição da carne Decerto a alma um tanto aflita (Se não nos encontrarmos em Marte, lá pelos 2222)

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As palavras são facas quando os olhos brilham sorrisos e os lábios e o corpo todo, sorrisos do avesso demônio oculto nos meandros imperceptíveis do seu rosto vestido de anjo As palavras são farpas, fincadas na alma, a endurecer o coração pela dor das ardências que não curam Ela atravessa as paredes ao ponteiro dos segundos Escorregadia como o sabonete dos antigos banhos juntos A água escorrendo pelos ombros, formando gotículas aos bicos dos seios e a boca bêbada, tenta beber a seiva Natura cachoeira, descendo ao sabor das grutas às curvas da bunda, perfeita mais que perfeita, a bunda de Maíra e eu um menino lambendo o fundo do prato de sobremesa Ela é uma gata amuada esgueirando pela casa, enquanto sou um cão inútil tentando tê-la a um canto a trocar ganidos por ronronos, como se possível ainda a antiga amizade

O coração dói, e a raiva de ontem dilui-se como as marcas do amor nos lençóis que a máquina lava e gargalha a enxaguar o ontem Vai lavando o passado, ela detergente silêncio Como se não fôssemos feitos de falas Com a calma dos riachos que se calam, quando as águas fazem as malas e buscam outros ombros Ela se prepara para o desencanto, enquanto sinto esvair a carótida da alma que tento cerzir com os fios dos cabelos soltos pelos travesseiros As palavras são gelos, e um vento outonal assobia Beatiful Maíra of My Soul

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Impossível desapaixonar pernilongos, quando a noite é mais escura e chora um choro de criança nua Há um relógio quebrado no meio da sala e a mente derrete o tempo do mundo como num quadro de Salvador Dalí In vino veritas e quero mentiras Ela, que importa a hora que chega, se chega e com vontade? Talvez ainda na boca o gosto de outro, mas guardada a última etapa para nós Uma inocência se faz com quantos nãos culpados? Talvez só avançou demais, talvez só separou a alma do corpo e outra Maíra flutua em braços clones Talvez não haja ninguém mais que uma noite apenas, um modo de me ferir, e daí? Talvez me pense na hora Quem sabe é outra a escolha e nem basta uma noite para ser feliz? Talvez o corpo não valha a fuga da alma, e eu consiga dormir In dubio veritas só quero mentir

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Outonos há, iluminados pelos anjos Aceitamos o fluxo contínuo de um mundo que vive por si Somos, todos os corpos, os fios nervosos da terra elétrons que tentam sair para os céus mensageiros da matéria E a alma acompanha, cúmplice de todas as aventuras Outonos há, iluminados pelos anjos aceitamos os galhos nus, e o abandono caminhamos sobre as folhas gastas como se fossem as nuvens de ontem porque o ar é fino, o céu é pálido e a terra é imune a qualquer espanto Abrimos janelas como quem abre os braços quando nos chega a nau do amor amigo Uma aragem fresca lava o pó das serpentes e as artérias latejam ao som dos passarinhos que havíamos esquecido esses pequeninos, feitos de cantos e vôos e ninhos As notícias da cidade são átimos, apenas frações, que Maíra salta com sorrisos de eternidade Nos encontraremos em Marte? Ah! Quem sabe Júpiter, ou um quasar será mais quente?

Voltamos pisando exatas marcas deixadas quando fomos os nossos pés na praia beijados pelas ondas mansas espumas brancas de um mar agora calmo Nossas almas se abraçam e juram que se amam que sempre se amaram E há amor também no som que vem dos carros no asfalto, nos tiros dos bandidos que naufragam nos mendigos, esses meninos que estendem as mãos vazias para o Nada, nas passeatas operárias nas risadas dos exus de encruzilhada, nas contas bancárias dos sem cara que governam as mágoas e as tábuas herdadas de Moisés Que há o amor, e as agruras da raça Esses acidentes da alma não são mais que pernas e braços infantís vestindo um corpo recém saído das fraldas Maíra me deixa brincar em sua face escura a me proteger do sol que tudo mostra nenhuma culpa em ser pequeno, imperfeito ser de muito barro e pouco sopro Despedimos os corpos sem mágoa, sem choro Como um mero até logo, um beijo de portão Despidos no leito, como se nada mais acontecendo conosco, senão o amplexo carnal mais cotidiano, como um casal feito de sábados Amanhã partiremos, mas hoje, e para sempre, os registros do tempo acolhem nossos aisgêmeos de paz Hoje é sempre, amanhã é depois

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Qual a cor do sonho? Vênus esconde sua face sob um véu escuro impermeável às lágrimas que me escorrem pelo rosto Maíra dorme a sono solto de mim Inda mais escurecido contemplo seu corpo de luz e eu queria tanto que ela fosse mesmo minha para todo o sempre Quase não vejo seus traços de mulher é toda um brilho como se a alma resplandecesse apenas um halo de luz desprovido de matéria e eu me debato, como um morcego a namorar a lua lá em cima, tão lá em cima inatingível Maíra, essa que brilha Cúmplice ainda da sua face escura tenho medo da luz, e me apago Mas, no escuro os meus olhos resplandecem enormes Um sol que nasce na escuridão do quarto, enquanto lá fora me esperam os pássaros a rever antigos vôos Já me vejo deslizando ao longo dos espaços iluminados cantando as canções que nem precisei aprender E os alegres cuidados de não se deixar pegar

Pregar o fim de todas as gaiolas, voar, voar, voar E os amigos, os assobios de perigo E as tímidas sabiás a me convidar, as bem-te-vis a gritar que sim Cambaxirras, querendo casa e comida Acasalar, prosseguir a raça, voltar a voar Voar, voar, voar Ah! Maíra, que fizeste de mim? Este meu corpo rouco por tão pouco Ah! Rever os amigos que um dia deixei a chorar de alegria me acompanha o meu violão Os botequins, as esquinas, o futebol e as raparigas em flor As discussões de política, os jogos de porrinha as piadas malvadas sem preconceito nenhum

Dorme, Maíra! Deixa eu sonhar Deixa eu pensar na vênus primeva que busquei em você E você que me deixa um adolescente que tenta espiar Dorme, Maíra! Ainda há muito que pensar

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Como um espasmo atrasado de verão Uma tarde abafada invade o outono E há flores que se abrem fora de estação Maíra arde, as faces coradas E as ancas balançam como na primeira vez que a vi Ancas brasileiras, convidando mesmo que não queira Apenas brincadeira, a mostrar quem é O jeito no olhar, um quase,que todo macho sabe, um talvez Provocando mostrar o homem que é Faca de dois gumes, faca afiada A cortar entranhas daquele que compra, e não pode levar Na panela o feijão demora a ferver Ela passeia os seios e o vestido solto no corpo Mostra por quê Quer que a pegue no cio Sem dizer do amor que sentimos, será? Quer que a tome primeiro, aventureiro Pergunte depois (nome, telefone, endereço) Jamais, se ela gostou Quer um filme pornô sem sentimentos (talvez dinheiro ou algum favor)

Quer que lhe abra as pernas e beba Quer indecências Que lhe goze a boca Quer que lhe vire e desvire sem que saiba qual é agora o que quer Quer um orgasmo longo, múltiplo, saboroso multifacetado Que lhe descubra um certo ponto g Quer um urro animalesco, um jorro profundo Tapas nas nádegas, para aprender Quer que deixe marcas que doa um pouquinho, quando anoitecer Quer um pontapé na alma que a expulse de casa que lhe veja um voyeur Quer que a chame dos nomes que áspero reclame do seu pouco mexer Que a trepe, que foda como o noivo que soube de um outro homem Que a tome como alguém que teve e nunca mais vai ter Nunca mais vai ver Maíra na cama, amolecida Por dentro uma chuva ameaça cair

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Ainda que na jarra da sala uma rosa se abra e na vitrola uma guitarra espanhola acompanhe os passos de Maíra Há um algo em suas faces fogueadas que lembra dias ruins O dinheiro é um último motivo, e a vida que deseja, é um carnaval de metáforas alinhavadas com escadas de subir Ser, mais que existir E eu, pedra de impedir Mais um vício que deve largar, antes que É preciso que eu queira o que ela quer Que ela me permitirá todos os quereres Cerveja, cigarros, livros e vinhos, escrever as palavras de tentar tapar o sol com peneiras Que ela, a vida cheia, me fará nem lembrar dos amigos de outrora É preciso que eu queira, que ela E aceite a vida como ela é O dinheiro é um último motivo, a vida é um quarto sem janelas, e ela cobra pela luz

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Precário equilíbrio, ser noite e dia Cappulletos na rua, Monttechios nas esquinas A vida é luta, luta renhida Escurecer o dia, ou brilhar a lua? Quando há amor um novo reino se anuncia? Somos novos hereges a mexer o caldeirão das utopias? Há uma era de aquário, e ela sorriso de esguelha inimiga ou parceira? Parceira será sempre aceitá-la que exerça a liberdade constitucional de ir e vir quando bem (ou mal) queira? Há os dias da alegria tão intensa, mesmo sabendo do que está por vir, que Sou parceiro dos sins É mister amar que seja feliz, deixá-la partir, deixá-la voltar Deixá-la ficar, como um pássaro de Jacques Prévert: Para escrever um poema de Maíra, primeiro dizer de uma casa com a porta aberta Escrever depois algo de lindo algo de simples algo de belo algo de útil para Maíra Depois, colocar a casa ao pé de uma árvore num jardim

num bosque ou numa floresta Esconder-se atrás da árvore sem nada dizer sem se mexer... Pode ser que Maíra venha logo pode ser também que leve muitos anos para se decidir Não perder a esperança esperar esperar se preciso durante anos a pressa ou a lentidão da chegada de Maíra nada tendo a ver com o êxito do poema Quando Maíra chegar se chegar guardar o mais profundo silêncio esperar que Maíra entre na casa e quando ela entrar fechar lentamente a porta com palavras belas em seguida apagar do poema todas as trancas deixar livre portas e janelas tendo o cuidado de não deixar que Maíra perceba Dizer então do quarto da casa escolhendo a mais bela cama para Maíra Dizer do que se vê da janela a folhagem verde o frescor da brisa que adentra o sorriso do sol a festa das cambaxirras ao início dos tempos e depois esperar que Maíra queira ficar

Se Maíra não quiser ficar mau sinal sinal de que o poema é ruim mas, se ela quiser sinal de que posso assiná-lo Então pego suavemente com o amor dos olhos cheios d’água um fio dos seus cabelos,e escrevo nossos nomes no portal de entrada

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Há um sol lá fora e ela tem seus afazeres Que distanciam a grande estrela e chama um frio Assim seus olhos dos meus lábios nem ouvidos Relutam atender rubros desejos Ó, silêncio! Antecâmara dos espectros que seremos Socorro-me de Gilkas e Florbelas A compreender o inaccessível mundo que Molière tentou em vão seus desatinos Estranho ser que se alegra quanto doa A solitária sina Cada qual dos seus gestos não são corriqueiras providências São um véu feito de incertezas do que realmente quer

As mãos, mecânicas, tecem esconderijos d’alma Essas tarefas tão domésticas quanto universais E ela reclama que não quer enquanto o amor escoa aos ralos entre roupas e talheres Essas manhas de mulher Como fazê-la parar? de andar para lá e para cá, vassoura varrendo os nossos vestígios para ser só dela, o lar essa caverna Como dizer que a louça pode esperar? Que a poeira dos móveis só ela vê? Que a saia rodada e aquela blusa recortada convidam a outro fazer? A cerveja guarda os meus segredos e fala por si Sou um homem igual a qualquer outro, prestes a buscar nos botequins o avesso das flores, e as botas pisotearão impunes todas as promessas Machos cúmplices, carcaças lúgubres, as vísceras frias quando um nome qualquer de mulher Mas, ali me deixo ficar, à sombra dessa sua alma tão fugidia quanto uma nuvem branca que se dissipa ao olhar da manhã Em contraste com a carne, ela assobia um Debussy E ajeita um seio indiferente a mim Fria como o mármore da pia em que debruça a esponja ensaboada A torneira aberta espirra e acompanha as lágrimas que vêm por aí A porta emoldura as ancas de Maíra que remexem ao ritmo dos braços esticados

O balanço dos seios mostra o quanto somos sensíveis aos umbigos femininos colados às pias de cozinha E assim como nem pedem licença os cães em cio o súbito desejo me concede um direito que ela por fêmea decerto conhecerá desde quando, e desde todo o sempre fêmea, nem haveria porque assim cheirar Mas ela é uma estátua Ao se deixar apalpar, sua alma passeia Enquanto o dorso adormecido se deixa, os olhos se fecham E a minha mão lhe toca o mais macio veludo que a lua pode me brilhar Mas ela é feita de repentes e, repentinamente o dorso corcoveia e a alma doma a carne Tento ainda, algo mais suave mas ela é uníssona com o ralo da pia que suga a água suja e barulha em choro convulsivo se entrega e lava a carne e a alma como se lavasse uma travessa, um garfo, uma faca Sou mesmo um cão vadio, um vira-latas Faminto, já não enxergo nada E enfio o focinho, que mesmo carne gelada é comida, e o cheiro que transverso aos humanismos alucina, e arranco-lhe enfim as finas calcinhas e penetro uma carne que se finda É por isso mesmo que se deixa, eu sei Mas que importa agora que sou rei e amanhã mesmo não serei? Saio de casa e sei das lágrimas que Maíra lava como se nojo Meu choro escorrendo pelas pernas

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Tããññññññññññññññññññ Lightnin’ Hopkins geme a guitarra O blues adentra a alma Vasculha quase dói E nós, trás as pálpebras semi-cerradas nos olhamos curiosos do momento Bruxas voejam Asas abraçam lâmpadas Apagamos as luzes Bruxos nós somos Nesse mágico momento em que nos debruçamos, curiosos sobre as próprias almas E ali estamos nós, mais outra vez ela me olha dentro de si assim também eu olho O beijo roça os lábios, acaricia como uma brisa fresca e verdejante beija lábios impossíveis Dançamos no escuro A única percepção é somos nós e o mundo

Brilhamos no escuro Dois pontos que se juntam A paixão de estarmos juntos sem outros brilhos a ofuscar os espelhos Impossível mundo múltiplo divisível E o destino das almas, pálidas O mundo é em volta, tudo escuro Somos nós Cegos de amor profundo Olhos semi-cerrados, cegos Das próprias luzes

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O sofá da sala é frio, e ríspido Mosquitos sugam os sonhos Zumbichos Do outro lado da Terra, ela a porta fechada Minha ereção aponta na direção errada

Sei que não há mágoa, só urgência De pensar em si sem mim Um sorriso antigo me acena, convida a passear, um jantar mudar de ares e companhia Nossa vida restou linear, sem as necessárias esquinas a surpreender os gestos e as rugas Ela me castiga, machuca-me a pele na ausência do seu corpo à noite Me nega O Cheiro das madrugadas Os Pêlos, mesmo os cotovelos Maneja bem os seus açoites Blindada é a alma, do mais puro aço Intransponível, insondável O lado escuro da Lua sempre voltado para o outro lado Terra feita de trevas, e frio Chorará, talvez? Fará planos de nunca mais? Quem sabe só deseje mudar de ares, e companhia? Talvez hoje mesmo se decida e ontem foi a última vez Acordará cantando aquelas melodias? Talvez sorria de canto Uma valsa no olhar brincando, vingativa A sussurrar o nome de um outro par Ao menor motivo corriqueiro de me lembrar Que sempre há quem a queira Que é só me deixar E eu mesmo, sempre na prateleira Para quando quiser

De quantas gavetas é feita a alma de uma mulher? Amanhecerá pálida? Terei que tirar coelhos da cartola? Servir-lhe o café na cama? Qual das apologizes, atenderá suas medidas? Talvez nem mesmo diga bon-jour tristesse! Talvez que abra as janelas convidando meu sol entrar Talvez grite meu nome sem mesmo deixar a cama Me abrace, me beije, se chegue Seja feita de pernas que se abrem, e me apertem Até que eu seja a lesma, lhe prometa Nunca mais deixá-la sozinha naquela cama larga e fria Até que eu seja a lesma, e ela Se vista a mais bonita Se encharque da colônia que dei pensando em mim E saia para as ruas tão cedo que nem eu possa dizer um ‘té-logo-meu-bem Dizer que a amo, eternamente amarei

Talvez amanhã doa muito mais ainda Que já doeu um dia Talvez seja amanhã o tal eclipse que anuncia o fim E o quarto sem porta E a cama vazia seja larga e ria De mim

40 Há um tom de claro-escuro às seis Seis, exatamente às seis da tarde vivo meus dias entre o céu e a terra Horizonte ao fundo, só as montanhas me escutam os braços mudos Tudo convida ao portal dos bruxos que agem nos outonos Dentro em pouco será a noite fria e ainda os blues me afinam Vivo os séculos, segundo por segundo O mundo me arrasta ao pó das galáxias Necessário ser surdo, vegetal que despenca aos risos do passado Antigos atritos, outras estações Abismos se abrem, recolhem as asas podres e os pobres frutos que se foram Ela alheia o aleatório ser que sou, desatenta que ainda me resta a dor Com poeira o vento arranha a alma, a folha que ela não regou Dependurado ao galho áspero do que é solidão reclamo ainda o amor Árvore mater que me rejeitou Somos sombras fugidias, agora, brincando à luz opaca dos motéis Buscamos descolar os corpos ainda acostumados, devagar A não doer demais, evitando rasgar tudo de uma só vez Suamos as peles Quem sabe desgrudam mais fácil? Os corações molhados, um amor antártico, gelo e distância Estalactites p i n g a n d o

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...mas um solzinho infantilmente brinca de subir aos pés de Maíra um sol de faces rosadas, e ela se deixa ficar chinela dependurada o sorriso quase, o jeito de Iracema a virgem dos lábios de mel Sobre a cama ainda a bandeja lembra breakfasts de outrora, embora a manteiga fechada, os utensílios reunidos mostrem correção demasiada O momento lembra o apartamento da rua Vinícius, o começo dos nossos vícios Um tempo de vinho e patê queijo e salaminho política e música, e ela a única musa reinando absoluta sobre um mundo que ia ser Eu me postava muralha e espada, aço e fogo, guardião E lhe preparava a galinhazinha, a rica farofinha Ela ria e comia, depois do amor Um tempo de amor que se imaginava mais carnal Sem mistério maior que os próprios corpos ainda tão inocentes das ciladas e perigos da curiosidade desenfreada, das intelectualizações De que haviam pecados sem absolvição possível O pensamento se transmite, afinal? O amor faz a ponte, telepatias do coração? Então, por quê marulha repentina e os olhos me olham pedindo perdão por nós? Se achega, me abraça, me beija uma beata, murmura e eu ouço na alma Que Deus, que todos os deuses tenham piedade de nós

Cuidadoso eu a deito no leito, aproximo primeiro o desejo e ela se abre uma rosa ao sol da manhã Há um cheiro de incenso e ao modo dos anjos amamos A mesma moçoila e o mesmo rapaz que ainda somos E um solzinho de outono Que nos colore de luz Não há fúria, nem calma nenhuma, apenas os beijos dizem que fazemos amor Atento sou apenas à textura da pele, ao perfume dos pêlos os seios pequenos, meu peito de remador A faca e o queijo, apenas, derretendo ao próprio calor Fornalha ocupada apenas ao aço da espada Nada mais que o ofício de macho e a fêmina arte de abrir e fechar pedir e negar, harmonizar, igualar No gozo somos anjos sem corpos A tarde avança, deitados ainda estamos brincando de pombos, arrulhos e balanços brancos da paz dos paraísos, nem sacros nem profanos de volta ao Tao Quero ser Humphrey Bogart, passeando com Ingrid Bergman num conversível vermelho pelas praias do nordeste brasileiro rindo e fazendo, fazendo, fazendo amor nas terras do sem fim Quero ir a Key West conversar com Hemingway passear de barco em Angra dos Reis Queremos ser americans stars que sabem viver e não essas cabeças cortadas miséria da raça cristos sem jaça para o prazer

Queremos ser apenas un homme et une femme Jean-Louis Trintignant/Anouk Aimée naturellement bons

A noite inda é uma cama larga e mágica, tapete voador mil e uma noites Dormimos no aconchego dos braços e pernas polvos e centopéias Ainda sou dentro dela, e ela em seus sonhos murmura: Play it again, Sam!

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Em sonhos somos filhos da lua Sabemos que o tempo é brinquedo terreno Ilusão, que o sol imprime aos afoitos Afirmação da majestosa estrela E a terna Terra sabe que não se move sem ele Não há porque temermos estações, separações, amanhãs Se as almas voejam para além dos fusos, juntas quanto queiram Sempre juntos quanto nos distanciemos Quando os demais encontros não afligem, somam Elos do grande gozo

Portanto, dorme, amor, sonha e cumpre seus desejos Que eu, o corpo engatado ao seu, também vôo com os meus De manhã voltamos os corpos etéreos, recolhemos os cordões de prata E talvez voltemos filhos do sol, e nos oremos outras orações

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Os so nhos mais liin dos Sonhei! A voz de Maíra cantando fascinação por mim Que a organização da matéria faz de nós apenas turistas do etéreo Breves instantes desse amor eterno Escrito a pena d’alma nos anais akáshicos Com versos de Shakespeare Deixarei que vás, portanto Há outros carnavais, portanto Nos encontramos depois Que há tempo sobrando Nesse cofre secreto Mistérios desse amor completo E os corpos quietos, sem choro, sem dor Alegria d’alma saber quanto somos Que sempre estaremos em todo lugar Ontem hoje amanhã são uma coisa só

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Os dias passam, e um Camões me dói na alma: passando por meus trabalhos tão isento de sentimento grande nem pequeno que só pela vontade com que peno me fica amor devendo mais tormento Maíra já faz planos, enquanto antecipo dias cinzas Sofro como porco escolhido para a ceia de natal Tento mostrar-me gênio de lâmpada Crio alternativas, sorrateiro que me inclua o antigo jeito imprescindível Ela sorri de lado, navalha na carne tenra do coração Torno-me um vício único, todas as manias são maíras: vai-me amor matando tanto a tento temperando a tríaga com veneno que do penar a ordem desordeno porque não mo consente o sofrimento Porém se esta fineza o Amor sente E pagar-me meu mal com mal pretende Torna-me com prazer como ao sol neve Mas se me vê com os males tão contente faz-se avaro da pena, por que entende que quanto mais me paga, mais me deve (Coitado do Ezra, que sabia tantas línguas e não tinha a sílaba para saber Camões)

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Os pássaros, letárgicos, têm preguiça de cantar saltitar galho em galho, e as garças alvas graças, não vêm mais nos visitar Emprestamos ao outono os traços fortes da melancolia A natureza sempre sábia se cala Ao silêncio dos aflitos Maíra separa a roupa suja e leva a lavar na rua com a família Tenho o temor do sacerdote que contrariou a deusa Vênus implacável Uso e abuso do álcool, da erva que libera passaporte, passagem para o éter da imensidão angelical Anjos de brinco e batom Mas vejo que ainda há vida no mundo que habito Cães deitados, gatos ao largo pardais ciscando no pátio, indiferentes ao cinza pálido das tardes O vento queima as folhas dos coqueiros as bananeiras sorriem, desdentadas Nuvens plúmbeas ameaçam um sol envergonhado que chora raios azulados aos cantos e frestas parceiro dos ratos que espreitam Formigas trabalham rápidas, algumas escorregam Moscas e mosquitos se abrigam, aguardam e as baratas, e os morcegos dormem ainda

A essas horas, os mendigos buscam pontes, viadutos os bandidos afiam suas lâminas Há um povo faminto, meninos de rua Há doenças incuráveis, suicidas mortos de súbito Alguns gritam, há os surdos de alma Os loucos nos hospícios, os estorvos das famílias Há alugueres vencidos, duplicatas Impostos sem sentido, muito circo de lona gasta Há possibilidades jamais contempladas Mulheres grávidas crianças sem nome, sem cara Há machos na alma de um corpo fêmeo (E seu contrário) Há os que partem sem destino Os que se humilham pelo vil salário Os que perdem a gravata antes do sapato Há os que amam e não são amados Há sonhos sufocados inda nos berçários Garrafas vazias e últimos tragos

Há vida ainda no mundo que habito, e a c

b m

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a e

d n

o

me largo à deriva, sabendo, por uma violeta parra que tengo tantos hermanos que no los puedo contar y una hermana mujer moça que se lhama L

I

B

E

R

T

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Libertar-se do corpo amado é, talvez tarefa de um outro mundo, e o jugo gigante da alma nos escapa, quando julgamo-nos maiores que o aço desses pêlos o visgo desses cheiros

A

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No entanto parece fácil nadar nesse oceano De carnes salgadas, de sereias que abundam os quatro cantos Parece fácil dizer: -eu te amo, e daí? outras tantas me encantam Há tantas flores nesses jardins Há tantas conchas, e a espuma das ondas lava as areias em que deitei teu corpo nu Logo marcarei com outra a terra úmida e branca ao mesmo calor Mas mesmo o maior riso carrega dentro a antiga dor Basta um pálido prateado, ao olhar do acaso Dedilhando o azul escuro do mar Que a escuridão da noite é na alma escuridão maior E a lua, traiçoeiramente linda, lembra o quanto com ela era melhor Maíra me mata aos trâmites chineses Tecendo com paciência os dias e as noites Com que me fere a memória, para sempre Enquanto livra para si os anos melhores, frutos do próprio destino De ser maior, muito maior que ser de mim, ser por mim Ser por ela, que ser de si é ser da deusa, ser a própria deusa Encarnação e afirmação dos fêminos músculos, glúteos a mastigar os sóis Cotidianamente assim ela me vem, tão fina e pontiaguda quanto uma bachiana do Villa E a voz número cinco me enche os ouvidos dos meus próprios lamentos os que estão por vir

E os dias passam, e as noites Como se o outono fosse lá fora, apenas Contudo, nunca a natura forma esteve tão dentro ao nosso peito Nunca notamos tanto a estação das peles que se trocam Somos parceiros de um jogo que um manto frio acoberta E as pernas dessa quimera Haverá ainda amor nestes silêncios? Em qual parte da alma se esconde a praga que desbasta nossas verdes plantações? E a verdade que nunca se manifesta (nossas mútuas promessas) nem em nossos pensamentos, nem em nossas palavras nem em nossas ações? Se as doces palavras ferem mais que o sal grosso das samouras Se o sorriso acende os olhos de lúcifer Se os abraços são laços lassos quanto gatos deitados nas tardes de calor Se o gozo de néon não aquece as noites frias Mesmo o gozo colorido é sempre um medo Gozo do sem fim, gozo ansioso Gozo dos que tentam kama-sutras em leitos de pardais Uma lilith orgulhosa, ela, de todo o aço que é capaz Enquanto sigo a via escura com pés sacerdotais Ah, amor! Não te amei o mais rubro dos mortais? My red Juliet! Não adentrei contigo as grutas obscuras dos desejos mais travessos? Não esganei, por ti, todas as culpas? Não fui o manto mais escuro com que exibiste a tua avessa luz? Y tu, mujer caliente now is cold como a queimadura sem cura, y anuncia as chagas da minha alma impura para quem quiser ouvir Agora sei, mujer, o quanto quero partir

Quero partir, largar da casca seca desta árvore gasta Abandonar-me nessas folhas soltas ao cair das tardes E no entanto Maíra, Maíra e seus visgos Que ela deve cumprir o ritual para o qual afiou a lâmina sacrificial com inabalável devoção E tome tarefas, dessas, bem comezinhas sem as quais não há vida, nem separações E tome deveres de casa, óculos na testa franzida, ela ensina-me a viver Senhora do talvez, diz que nem é um fim Talvez um rissorgimento do que prometemos, cumprir o andamento Improvisar os espaços, criar os compassos da canção possível

Carniça à vista, hienas me assaltam, chegaram Os urubus Ela tem asas nos pés, e os gestos alargam o universo dos meus ais Um barco parado, um leme ao contrário É o cais que se v a i Murcham as rosas, vozes clamam lá fora E há um medo a cada instante, talvez ponto final Antigas amigas amiudam os dias Mesmo as noites não escapam da fúria assassina das horas poucas Tão poucas as gotas de orvalho em nossos lençóis E as chaves não abrem portas que outrora nem lembradas A régua e compasso são feitos os horários, agora Que a casa arrumada sempre espera alguém Que espreitará palavras, investigará as marcas Futuros vestígios de mim

Tudo se torna assim impecável Um hotel de primeira recebe as malas Há um cheiro na sala incensos da Ìndia Uma cozinha arrumada e a pia sempre limpa Discos e livros em fila educados em Harvard Há um palco iluminado lupicínios e gardéis aguardam apenas, que a platéia dessa temporada ordene se abra a jaula dos leões

Um primeiro espinho corta o ar uma flecha para São Sebastião Em coro todo um povo delira: Criisstããããããããããããããããooooooooo!!!!!

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Uma hidra de lerna, sou múltiplos desejos Quero ficar, tenho cócegas de ir Ora me agarro a ela, aos pêlos dela Sanguessuga embriagada, presa à árvore larga e soberana Que estende os braços longos para o céu na direção do sol outonal Ao calor dos anjos piedosos da transmutação Ora trago as mãos pálidas habitante de um poema de Drummond sisudo, contido largo na intenção de transpor na trilha dos imortais os umbrais para além do humano amor É preciso que o universo pare, aguarde meu coração de menino

r e s

Consulto alquimistas, leio poesias, tento transmutar ouro em gozo sem o fogo de Maíra Inspeciono as bundas que enfeitam as avenidas Vasculho seios por frestas e esquinas Avalio as pernas que erguem sempiternas odes femininas Meço os lábios, as bocas o tamanho e o peso dos beijos Às vezes, ouso adentro belos olhos, percebo imagens invertidas A registrar possíveis fotografias kirlians Enquanto, um Chico Buarque canta na memória acesa: Têm dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu O tempo estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu A gente quer ter a iniciativa no nosso destino mandar Mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pr’a lá Cantar, sem a voz dos pássaros Completar a letra com o som das esferas Sem a garganta desses bardos e profetas que ajudam as almas com seus copos d’água que fazem leve a carga mais pesada

É preciso que o universo pare, aguarde meu coração de menino

r e

r c

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É preciso que o universo pare, aguarde meu coração de menino r e c s e r c

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Para isso é preciso que se volte no tempo A galopar o ginete pelos pampas infinitos da imaginação Sonhos de criança, benditos sonhos de criança E uma chica linda, bondosa Sempre a compreender, esperar Pelo dia em que hei de descansar Ser seu par, descansar minha cabeça de menino vadio ainda e sempre Sabendo apenas que o mundo gira por ela Chica bondosa, rosa cheirosa Sempre a me abrir seus braços, suas pernas Sempre a me prender os traços nos seus laços carmesins E os nossos laços d’alma, laços rosas a nos religare É preciso que se retorne aos primeiros cantos Quando nos perdemos, querendo apressar a infância as adolescências verdes e maduras Tantos caminhos e eram todos no mesmo sentido É preciso que abracemos as fadas primeiras do nosso amor Aahh, minha Maíra! Perdoa e acolha em teu regaço puro, e o cheiro Do nosso amor primeiro, o fogo aquecendo Sem qualquer pecado em se querer O teu sorriso brando, branco e rubro das pétalas da tua flor ao se abrir

Enquanto penso e choro e rio sempre sorrindo por dentro Pingos de sol atravessam as vidraças com que protegi a alma Das coisas todas Há um tempo indígena, um tempo das cavernas e modernas opções Átomos reorganizando os espaços da existência em ação Mas o que há mesmo e sempre é a sempiterna e mesma equação: Há o Cheio e o Vazio

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Maíra me alcança a mão, diz coisas do seu coração de mulher, e é silencioso o mundo, salvo pelo om primevo das galáxias Que banha a casa de sacra atmosfera Saímos para o éter das ruas as mãos dadas Como um são francisco, uma santa clara zefirellis Enquanto recolho pássaros ao ombro ela cura meninos de rua leprosos e ódios do dia a dia Dispenso trabalhos, rendas e salários, para só contemplá-la Para saber os porquês insidiosos de nos fazer esquecer do amor Com que nos brindamos os corpos e a fagulha dos olhos E a bênção das mãos e os lábios vermelhos da paixão Descemos do paraíso para a fornalha da carne com exatidão trimegista Meu corpo se encaixa, ela me abraça braços, pernas, alma Tudo se encaixa, afinal

Um planeta feito de tomadas a iluminar as trevas siderais de kundalínicas energias A soltar os nós, a fazer de nós as tochas vivas de Deus Lágrimas escorrem-lhe ao rosto quando o gozo E eu bebo da sagrada fonte da eterna juventude das almas que crêem na imortalidade do tao Nós nos amamos, só por isso confiamos na Salvação Anjos nos cercam, protegem nosso humano jeito de ser feliz

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Mas vivemos ainda o tempo do jamais crer, dizer, jamais fazer o que o próprio coração manda E essas sinuosidades em que se perde o grande amor Em cada esquina os múltiplos perigos, os convites coloridos e as vitrines expõem outras modos de ser mulher Mutações de formas, de cheiros e de pêlos, sempre uma new wave uma new age, um new way of life Estão todos usando, dizem as vendedoras de sapatos Estão todos comprando, garantem os cartazes, e sorriem Indiferente às lágrimas que virão dessas luas sempre novas na busca atônita do amarelo óvulo nesse fêmino compasso que urge atender

Mil perigos, morcegos rondam qualquer réstia de sorriso E a aura luminosa, e antenam as antenas da noite escura E os arautos das trevas a tentar quem ela é Mil estrelas invejam seu brilho no medo de se apagarem Mil perigos, e os filhos do sol no afã de queimar faces pudendas que não podem tocar Mil perigos, mil perigos rondam a mulher amada Sem que se possa prever ou guardar Reter o momento, a interseção, o ponto de exclamação Na marcha infinita das coisas que o tempo faz e desfaz É preciso voltar ao sonho primevo das fadas imemoriais

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E no entanto, é outono, irrevogável outono Das coisas que emagrecem de vida Retendo ao peito as lágrimas que não podem ainda cair Nem há como, por mais que filosofem arquitetos e casais Inverter as estações da natureza lá fora, exata a mesma latejando lentas em nossas veias Em nossos braços lassos, por mais que apertemos os nós Carnes fracas para almas de asas largas

Por isso ela é cada vez mais rarefeita Mulher feita de suspiros, fogem-lhes os gritos Com que se alçava o próprio corpo ao prazer da alma junto aos deuses Na incerteza desses raros gritos somos agora um amor possível Sem o fogo da paixão que consome, lambe o coração e arde Conhecendo o medo dessas corredeiras, das cinzas que sobram ao fogo das paixões Tal como nos ensinam os que as viveram antes de nós E os manuais, e os pais, e as leis sociais corroboram entre grades e orações Guardamos calor, economizamos. Diz um João Bosco na vitrola que Não estamos alegres, é verdade, mas porque razão haveremos de estar tristes? Apenas é que somos de volta à precária espécie Capazes de momentos, apenas Em meio a tanto que o tempo faz e desfaz Talvez Maíra possa transmutar em glória o fracasso Talvez eu enfim atenda aos silenciosos apelos do seu coração calmo quando o meu é um corcel em brasas Talvez agora possamos deixar que o tempo passe simplesmente

Quem sabe envelhecer juntos Na resistência dos casais que fincam bandeiras No esconderijo disso que chamamos lar Atravessando as dúvidas como quem aprecia um punhado de ar E no entanto, lá fora, os mambo kings cantam canções de amor Maíra, a luz apagada, estirada ao sofá da sala E eu acompanho com a alma o girar da vitrola com Tom Jobim Os sons que ferem implacáveis um coração bem-te-via: Passarim me conta/então/me diz/ porque que eu também não fui feliz/ me diz o que eu faço da paixão/que me devora o coração/ que me maltrata o coração 53

Ao longe um trovão toca a sua tuba, anuncia lágrimas aos olhos de Maíra Vidente, antevejo a Grande Bomba que mais dia menos dia destruirá meu mundo no eterno retorno ao tempo dos desertos Um vento furioso esmurra portas e janelas Assobia à flauta das frestas cantorias fúnebres Não sei por onde gemem violinos E ao toque dessa fria orquestra sou platéia em silêncio profundo Uma alcatéia enfurecida, faminta fareja os nervos de Maíra revolve-lhe as tripas atiça sua alma

Que saltita diante meus poros, corta pelos lados os lábios apontados para baixo um coração afogado em ódio difuso e angustiado Mesmo um diabo teria pena dela assim um soluço que não consegue sair Mas a paixão frustrada é avessa a toda solidariedade E em sentido inverso integro a manada em disparada Que escoceia e mata sem contemplação Sou um ser desprovido de sentimentos Que requer o alimento dos vampiros seja lá como for Um som repetido rola da mente aos braços Rolling stones gritam I can get no Satisfaction Minhas veias são as cordas eletrizadas das guitarras Que me povoam de instintos básicos e urgentes Premência da alma em não se deixar esmagar Aliando-se à carne, brusca e incondicional I can get no Satisfaction Minha mão espalmada marca o refrão Na bunda arrebitada, solto a súbita raiva e um tapa estala Uma ponta de unha me atinge o nariz I can get no Satisfaction E deito-lhe o corpo retezado ao chão Prendo-lhe as mãos, forço-lhe as pernas Quero um beijo roubado em assalto Quero mais Quero que saiba da máscula ira Quero tomá-la sem rendição I can get no Satisfaction

Mas ela prefere outra guerra Se abre me aperta me grita: vem! Desafia o macho ancestral que força viver em mim Erguendo o ventre, retorcendo a boca Na mímica obscena dos seios No palavreado das putas Na língua rija e serpentínea I can get no Satisfaction Por um triz não recuo o dardo pronto Não esbofeteio a cara desavergonhada Não lhe grito umas verdades, mas I can get no Satisfaction E me enterro todo, imprenso seu corpo Mordo o bico estendido, o pescoço Marco-lhe minha marca roxa Sugo-lhe os poros da pele E percorro todas as aberturas E enfio a língua às grutas Da rósea à mais escura I can get no Satisfaction E novamente o arco aponta a seta ao alvo Atinge em cheio o mais vermelho E cravo em cima, perfuro embaixo Aproveito cada centavo dessa paga vil I can get no Satisfaction Ao longe um trovão toca sua tuba Flautas frestas fúnebres Violinos em fúria, agora Nova carmina burana

E ela geme e grita e chora e morde E me crava garras rubras, machuca Aperta-se toda, e goza e morde E novamente goza E grita e goza e chora e morde E goza e goza e goza I can get no Satisfaction Também eu vou junto e gozo Grunhindo feito um porco, quase um medo De parti-la ao meio De arrancar-lhe um seio De fazê-la em pedaços

Anoitece Uma chuva outonal barulha na vidraça Maíra dorme Ao longe ecoa uma risada Ou será sua alma que ri, vitoriosa? Afundo a cabeça em seus braços e seios meu sono fugidio Voltam as guitarras, os tambores, e o coro de vozes I can get no Satisfaction

54 Sabemos todos que o mundo todo é em tudo maravilha quando se ama Então por que nos franzimos e da janela não vemos o céu se colorir? Mas não sabemos se merecemos desfrutar o todo ousar o amor maior Ou se mesmo nos basta primatas engatinhar como bebês Se touro de Vesta, cascos firmes, arado da terra Se búfalo branco, Manitú, os olhos cheios de sol O certo é que por ela eu desceria aos mais dantescos infernos Por ela eu partilharia os demônios e mexerias as caldeiras Por ela riria de um braço esticado em súplicas num rito macabro Mas, o que estou mesmo a dizer? Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada, canta o jogral Do nada simplesmente temos que partir Produzir vibrações, rotações, girassóis... Outossolentes preparos preparam um nada dentro em nós Estação que prefere a paz sem calor, sem temporais O amor feito de esperas, de amadurecimentos De sempre deixar para amanhã Para depois de amanhã, para possíveis reencarnações Bobagens que adiam o amor para uma pasárgada qualquer Enquanto nos fazemos seres dessintônicos tolos profanos Quando ameaçamos com um simples amor entre os humanos Como se deuses fôssemos e não tivéssemos que morder maçãs Na verdade sempre se sabe que o mundo foi um dia maravilha Quando o amor à frente já ficou lá atrás Maíra fecha, cuidadosa, a gaveta da cômoda De onde estou, encaro seu rosto no espelho Nossos olhos se encontram Nessas frações de segundo em que o mundo, maravilhoso mundo Volta a girar

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Meus pés estalam as folhas secas das amendoeiras Esse manto dourado que se estica enquanto as nudistas outonais Na alma um soul new age eleva a mente a outras dimensões Como se um cotidiano sem Maíra fosse um cotidiano atemporal Uma bolha de ar vagando pelos espaços, talvez Uma alma que aguarda a hora de nascer, descer Ao corpo carne carma Não sou alegre ou triste, nem melancólico Meus dias são os dias claros de um sol sem sombras Em que os traços delicados de Maíra são meros vestígios Embora um lobo estique o focinho em busca de um cheiro Baldado intento, que os ventos confundem Cenas tantas vezes repetidas, minhas saídas agora diferem em peso e medida Seus olhos são secos, os lábios são pálidos de curvas e movimentos Os ombros buscam a nau dos cotovelos todos desapontados Suas mãos quase não se movem frias como um freezer de hospital Nem tecem as linhas nem sublinham as malhas da separação Sabemos que os sinos do silêncio pesam mais que mil trovões Ainda quer, definitivamente quer, livrar-se de ser verdadeiramente livre Que só há liberdade no gozo do amor cúmplice, desbragado Assim ao menos lhe digo dessa imunidade ao comezinho mundo Que a todos atiça e a tudo mata Esse mundo dos sentidos ilusórios Dos cinco pontos cardeais

Mas a liberdade nela é delírio fêmino Livrar-se disso, livrar-se daquilo, mundo dos relativos modos Sempre um soltar-se, agarrar-se, de um trapézio a outro Sempiterna busca de um seguro jeito de ser De estar num mundo que assusta e nega a mulher que ela é Assim ao menos lhe digo Livrar-se do amor por mim é sentir-se segura do que deseja só para si Sem confundir-se aos alheios projetos e nem importa quais sejam Nessa nossa união que ela et pour cause chama de relação Assim ao menos continuo a lhe tentar com mil razões Enquanto ela escreve um novo leviatã Em que o homem é o lobo da mulher Para que fui desatar os seus pés de cama e mesa! Uma bola avermelhada d e s c e o sol de outono que um dia fui Agora me chega a noite mais escura, e eu m e r g u l h o fundo nas trevas, à espera que se acenda alguma estrela Que alguma lua cheia me venha Uma lâmpada qualquer me serve Qualquer réstia de luz a fazer crer que o amor se salve Dessas nossas novas feras

Um som de festa e uma catcha me observa Talvez minha alma lhe sirva de quarto escuro A revelar-lhe fotos de corpo inteiro Aproximamo-nos as perplexidades Como se nos vangloriássemos da falta de respostas Nem há mais perguntas, nem respostas interessam mais Que o momento fugaz próprio das coisas em mutação Let it be, que assim driblamos sinais de dividir Enforcamos esse nosso tempo sem platéias ou razões legais Apenas desconsideramos o passado porque já passou E o futuro porque ainda não veio Simples, não? Assim ao menos persisto em lhe dizer Nem presente somos, momento esgarçado No tecido apodrecido desses tempos nihil obstat Somos apenas carne contra a parede, uma fenda e um cacete Que em si se bastam, sem que o pensamento possa resvalar E revelar Maíra nessa outra ou a ela qualquer outro Guardado ao raso ou ao fundo dos seus baús Emudecemos, contudo, os corpos mochos No logo após esse hiato aos modos solitários Em que cada qual busca o seu lado O lado incerto que se tenta ser/se, ser/se, ser/se Sim, ó nós aqui!, as asas meladas de suor e álcool As garras pintadas das cores mais assustadoramente neutras Portas abertas para as coberturas e os porões Como queiram, senhoras e senhores, como queiram Desde que solitárias almas deixem lá fora vocês que entram Toda esperança de ser mais que poro Nós que aspiramos as almas uns dos outros As asas meladas de suor e álcool Assim ao menos nos comprazemos em dizer

Ainda as risadas da catcha alegram a noitada Avançam pela madrugada Num repente o sol já nasceu Vampiros de fábula, não tememos o sol De uma praia de águas salgadas que nos salgam corpos e almas Depois somos apenas um espelho no teto Marcado a batom Já é noite outra vez, volto outra vez, quem sabe desta vez Maíra? Súbito sei de uma única questão transcendental Que me assalta e repete, verruma na tábua lisa do meu coração linchado Arregala-se o cérebro, um mundo murado e lá dentro, caído coitado Treme um minotauro ateu Sabendo da chave da porta torta da aorta nas mãos de Maíra Súbito uma só questão, transcendental: Com qual ela dormiu?

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A verdade é que dela fiz meu santo graal, terra fêmea inda mais longe que os céus Alma nublada brumas felinas A ocultar nas garras a essência da verdadeira vida

A ocultar nos seios mesmo que rosados A ocultar nos bicos duros e inchados A boca de uma alma ávida de verdadeira vida Ao longo do seu corpo mesmo distraído Todos os caminhos espaço do possível E mesmo quando o dorso um corpo armado Das curvas que alongam um monte inda sagrado Distante dos meus passos treinados de andarilho Sem metro que mostrando o quanto da chegada Carnes altas alvas portal estreito e mágico Umbral De uma outra etapa Oculta aos pêlos crespos ásperos desenhada A direção exata a chave de um triângulo Soubesse dela antes tanto o quanto assim o quando Soubesse nem seria ao espelho um corpo santo Águas depuradas diluindo ao fogo brando Chegar mais perto dela trêfego trôpego sorrateiro Túnel dos inícios ao preço sem dinheiro Caverna dos segredos escuros que revelam As possibilidades dos másculos sucessos Adentrá-la tudo o quanto só importa Deixar correr a ira solta ao nervo ímpio Cavar escavar aflorar suas respostas Aos espasmos e gemidos de uma alma presa ao gozo Sugar lamber guardar na mente o cheiro Que aos escuros dos desertos um cão farejador Buscar no ar os ventos certos para o elo Que decerto quebrará a custo de muita dor

As noites insones o corpo rubro e as luzes De um cérebro cérbero da paixão e as cruzes A mostrar quantos de mim jazem sob a terra dela Eu que a contemplo das janelas de uma cela A boca o beijo os lábios que primeiro Cedem a entrada da alma ao corpo inteiro O gosto algo inocente do amor que se anuncia Amor que só na carne ganha carta de alforria Emoldurada aos fios macios dos cabelos A face de um anjo avesso aos bons motivos Que nem me ligue a ela pelo corpo submisso Mas sorrindo radiante se por ela há sofrimento E restará nos olhos quando finalmente Voltar a ver de frente ela que sem dó Aniquilou meu corpo e fez escrava a alma A me negar mais longe o pomo proibido Em mim arde esse fogo único motivo De conquistar do corpo todos os presentes Mesmo que a alma abandonada e só Inda que lhe entregue a última das lágrimas Mesmo que ao final não seja mais que um tolo Macho que na fêmea busca o sacro fogo Para além das aparências que dela a carne mostra Macho que na fêmea busca a própria essência A preencher por prêmio dela o cálice sedento Guardar então nos olhos a terra prometida Antes de fechá-los para nunca mais abri-los

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Ao longe, uma guitarra geme como os sinos das horas póstumas Anunciando que jazem já sobre a terra as últimas folhas de um outono tardio E o frio, que ao corpo arrepia, logo congelará nossas almas Cegando os olhos fugidios de Maíra Ah! Maíra, maíra... Beatiful Maíra of my soul Urge que escavemos trincheiras Demarquemos nossas fronteiras E as barricadas Erga-se a ponte levadiça de nossa fortaleza! Fechem-se os portões! Guarneço eu mesmo os aposentos reais, espada escura Tranco-me com a minha rainha Encho a dispensa do coração com todo o necessário Mas o inimigo já é dentro das muralhas Esgueira-se ainda, é verdade Oculta-se nas sombrias feridas, as mais recentes Aquelas antigas cicatrizes Rasteja aos nossos pés feito serpente, apronta o bote Trama ainda, a morte, de um amor que é forte, ainda Elocubra mensagens envenenadas, escolhe as setas certas As veias abertas dos nossos corações Hidra medonha, quantas dessas cabeças ainda terei de cortar? E Maíra, quanto ainda suportará estar ao meu lado ou Do lado de lá? Ó dias infames, noites insones Tuas vidraças e couraças um dia inda hei de quebrar

Engasgamos os pensamentos Nossos passos nada ficam devendo Ao rotineiro caminhar de planetas em um resto de sol que se apaga Na traiçoeira preguiça dos dias Ela repete uma coreografia sem sentido Que mesmo eu, flácido, sigo com a devoção dos micos amestrados De um circo fadado à extinção São tantas as razões, considerações sobre o amor de ontem Pré-históricas razões Ao escuro das cavernas que engolem as multidões modernas Para as quais o amor ainda é pura ficção Ainda amamos como dinossauros Amor mastodôntico, amor sobre palafitas corroídas pelo mar Amor em cadeias aos elos de ar Amando com pena e o medo das contradições necessárias Quanto à cidade, essa se impõe Amor demarcado a vaias e cochichos E todo o lixo dos antigos desabando sobre nós Quanto à cidade, ela é atenta aos desvios em que mordemos maçãs E, no entanto, atentos ao grito inaudível das galáxias Ao enlouquecido murmurar das matas Nosso amor viaja Crê na alma, aceita possíveis reencarnações Não importa se navegamos como salmões Na contramão das encostas A desovar as nossas contradições Não importa se obedecemos por fora Obedecemos, temos história Mas sabemos de memória outra dos preços do amor Ao menos assim eu lhe digo, ainda Maíra ouve sem notar as mãos que se afastam, os sorrisos murchando Ajoelhada à razão última que a cidade imprime nos jornais

Ah! Maíra, maíra! Outono é quase saudade Ouça toda a verdade retida ainda nos galhos dessas folhas que não caem

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Tais são os casais à brisa fresca das noitinhas Que anunciam a quebra das rotinas ao som dos jograis Nos bares longínquos das esquinas de um tempo que se esvai Mentem os olhares, oblíquos e normais A obter comer da carne as peles superficiais Talvez lá um ou outro brinque com fogo Da aura em torno o corpo nas danças do salão Maíra, não, quer olhadelas ligeiras, de esguelha A saber-se ainda bela aos olhos rubros do Dragão

Dançamos um blues ritmado, sabemos os passos do coração Rosto colado, palpitação, seus seios arfam, e eu Me acredito capaz de mudar o mundo, tudo Tem sentido único: manter maíra assim mão na mão meu amor enrijecido a beijar-lhe o ventre seus lábios molhados entreabertos, cálidos da ternura que às vezes alonga no tempo as asas da paixão O blues ritmado, os passos do coração, e ela a alma à flor da saia Tanto que volto a crer na ressurreição Na remissão dos pecados Na vida eterna, amém, e também Na religião dos bárbaros crucificando cristos Rindo que não sabem o que fazem Um diabo reabilitado grita que a carne é seu único pecado Sou senhor de todos os conflitos, superação, síntese, dialética, e Comunhão Super-homem eu sou, afinal divino, só porque tenho o dom De amar Tudo porque amo, simplesmente amo, terrivelmente amo, inocente Ou sacrílego, amo A terra e o cosmos E esse som das esferas, esses gemidos, esses suspiros Só porque pêndulo, e ela Minha sina

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Mas Maíra não quer que eu seja propriamente O que ela quer é que eu esteja Na exata direção da sua estrela-beatriz Embora as flores do meu maracujá apontem Direção contrária Até que ensaio os passos, tanto que a quero Me embaralho as pernas, caio aos seus pés Até quero apagar-me inteiro, deixar que ela Ser só o ferro escurecido do seu ímã Dói, quando ela grita, enfurecida Que não sei as cores certas para o arco-íris Mas sou só um cão, vendo tudo cinza Há pontos luminosos na mente escura, é verdade Mas me fogem à toda compreensão Tento braços e pés de curupira, torço o pescoço Até que a noite mais escura sussurra ordens suas Mil açoites lanhando-me o lombo de escravo fugido Ao peito arde uma alvorada ensangüentada forçando subir Ela me afoga o cérebro em lágrimas Nascente que não jorra Essas águas cavernosas, talvez Guardem mais que um monstro do Lago Ness Cerca-me os flancos, porém Doma um potro selvagem Minha casa minha baia Meus cascos minhas costas Sem sela

Levanta a saia aos joelhos, mostra Torrões de recompensa Oferece-se em cio Suga-me o sêmem mais másculo e depois Cuida o castigo Se exibe perfumosa pós o sexo O vestido mais bonito, os seios à mostra, para ir às compras Nuvens plúmbeas ameaçam debandar os pássaros Um amor bem feito pousado nos galhos nus Seu andar de requebros, seus sorrisos Toda rosa dos ventos Que olhos masculinos multiplicam com a atenção dos cios Ah! Maíra, teus lábios vermelhos inda acabam comigo

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O sol sorri seus dentes amarelos na manhã inusitada De um outono cheio de bem-te-vis Filhotes de cambaxirra disputam o bico da mãe, reclamam mais Lá fora o macho canta, satisfeito, ao cumprimento dos instintos Tudo é um ritual orgíaco e o outono tinge fios de cabelos brancos Há vigor nos músculos, e ela me atira pernas por cima Também nós brincamos de viver um dia de cada vez Com a alegria dos que não têm o que temer

Sexo com bacon, pão e ovo mexido Café com leite bem papai/mamãe Sem desprezar os jornais O leito conhece a paz dos cheiros em arreglo matrimonial Queremos mais outra vez Salada de frutas adocicada ao mel das abelhas As risadas são frívolas, é verdade Mas o que temos nós contra as superficialidades De um sol primaveril que se esquece outonal E clama caminhar pela praia asas de gaivotas? O desejo se levanta com as ondas, longe Cumprimenta o corpo de areia e espumas brancas Brinca aos nossos pés com a alegria das antigas águas limpas O sal cura nossas mazelas mais íntimas Quando o coração se deixa navegar por um mar que não existe E lá vamos nós, chapéu de palha, água de coco, fieira de flores no pescoço Drinks exóticos, e a cara de um yankee bobo dissecando ostras e caracóis Como nas love stories dos filmes que víamos quando éramos felizes E somos Fernão e Maria, capelos gaivotas Treinando as asas para os dias melhores Que o ar é fino e bom Ah! Maíra! Como é bom quando sonhamos de mãos dadas Quando cai o crepúsculo e temos a porta da noite aberta para nós E as asas da escura liberdade não assustam mais Nem os gritos dos morcegos são dentes de fúria Apenas risos diferentes, risos numa outra língua Igual quando contávamos quantas estrelas Sem medo que nascessem verrugas nos dedos Quando você lua cheia E eu teu lobisomem uivando para as varandas do céu Tuas tranças, rapunzel!

Quando rememorávamos as horas de frente para trás Brincando de nos reconhecer num passado mágico De uma outra vida em que já éramos namorados Quando eu rezava um pai-nosso-que-estás-no-céu Sabendo das tuas aves-maria, nítida advocacia em causa própria Quando afinal adormecíamos feito anjos marotos Teus cotovelos contra os meus roncos Quando meus gritos, os pesadelos pesando Teus olhos no escuro, teus sussurros que apenas um sonho Quando teu sono, meu sono profundo Falando dormindo: “amor, eu te amo...” Rindo-nos do amor, críticos profanos... (Ah! Quem já passou por essa vida e não viveu...)

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It’s a long, long, long, longo, longo, longo, it’s a long way It’s a hard, it’s a hard, hard, long way Caetano canta os sons da minha alma Concha acústica fechada Em que ensimesmo as palavras que devia gritar para ela Um modo de mostrar toda a minha solidão De fingir que não me importo se ela se for

Uma chuvinha miudinha um dia já foi nossa amiga abrasando os lençóis Também o vinho, veritas antiqua, e tantas coisas mais Que agora me apontam a porta sem volta para a implosão do coração Nem cabe falar dos motivos Sabe-se lá quais são os tais motivos que nunca se encaixam Seja de frente, seja em contrário, seja dos lados Pois só o amor se engata Não importa quantas farpas, nem qual direção A lã encharca no corpo, meus pés são heavy trips Dois cubos de gelo, nem mesmo meus eles são A alma desgruda do corpo sem no entanto liberá-lo a sossegar-se Também a mente não tem aonde ir Não há qualquer significado nos pares de enamorados que passam Nem mesmo os invejo, sábio dos infernos Então, Maíra! Tudo tem mesmo um fim Nem há como parar os braços dos relógios, seus abraços de thanatos A marcar apenas o necrológio dos corpos Nos mesmos números usados para medir cotidianas coisas A iludir que a vida mais longa Mantendo a foice à distância da alma ingênua Que a carne aponta aos espelhos Como se a sua existência fosse tal qual vê Talvez seja sempre melhor despedir os lábios Os lábios já roxos desses beijos antropofágicos Antes que a dança das línguas seja mais, seja a troca das almas Ah! Maíra, devo erguer a fronte acima do teu colo de mulher! Fomos tão longe dos nossos nós primordiais Cordão áureo esticado ao máximo varando a escuridão E o medo, que afinal venceu Ah! Maíra, devo recolher as âncoras que me prendem a teu cais! Zarpar mar aberto, naufragar No oceano das lágrimas que o céu verteu por nós Deixar-me estar sob a imensidão azul-clara que o sol Dormir sob as estrelas que apontam outras direções Sob esses olhos de Deus que tanto nos viram nus

Ocultar a alma sob as garras, deixá-las crescer, afiá-las No dorso frágil dos que nunca morreram Esvaziar o sexo Ser só um rubro furador do gelo das donzelas de espírito Nublar esses olhos para que não seja espelho d’alma Mas as frias geleiras de Aldebarã Aceitar em mim enfim o caminhante que não há caminho Que se faz o caminho ao caminhar Devo esquecer, Maíra, que eras o caminho, a verdade, e a luz Voltar ao bando, que uma alcatéia de lobos me espera E as presas me dóem

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Em vão, mulheres batem à tua porta Não abrirás! Deixarás teu coração mergulhado em fel e chumbo de tal modo Que ele não pese mais que a mão de uma criança Esquecerás todos os romances Não guardarás lembrança dos filmes de amor Esquivar-te-ás de todos os poetas Que a poesia lava a alma de todo o mal E infiltra de energia divina as fibras frias do coração Lodo ou rocha ela brota, com nome de flor do amor A poesia arreda os demônios, alegra os anjos E Deus sempre sabe dos poetas as intenções

Buscarás uma razão, uma só missão de vida Que rebobine a alma em torno um eixo pelo qual viver Trabalharás sol a sol para ter nada o que dizer Lutarás sem medo, mesmo ao mais fútil dos motivos E seja tua essa mentira que por verdade te anima Mesmo ao sítio do impossível quando Vedam o sol as flechas do inimigo Seja maior o teu sorriso, pois Combaterás à sombra. E para as noites rubras Aquelas que a simples mão não cura Tomarás as mais feias de espírito, as frias Que te aluguem o corpo, nunca (Nem que prostitutas) deixarás Que te entreguem mais que da matéria o uivo Sejas tu o descendente direto dos mercenários guerreiros Sem outro motivo que o ouro mais imune a qualquer dor Sejas teu próprio clone E te enterres a ti, tesouro valioso No recôndito mais íntimo de belzebu Que só assim ou Talvez assim Te livrarás do amor

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Quando a alma faz-se velha como são tristes esses dias! Nem é morte, nem é vida Maíra! amputada aos lábios meus Ah! não posso, não, não posso dizer-te, meu bem, adeus Marília e Dirceu, mais uma vez Tentamos ainda mais outra vez Cumprir o que falam nossas mãos entrelaçadas Que se calçam perfeitas Sábias mãos que nunca mentem, obviam A parceria do corpo O parentesco da alma Un paso adiante i outro atrás, Maíra, i a tea dos teus sonos non se move. A espranza nos teus ollos se esperguiza. Aran os bois e chove. Un bruar de navíos moi lonxanos che estrolla o sono mól coma unha uva. Pro tí envólveste en sabas de mil anos, I en sonos volves a escoitar a chuva. Traguerán os camiños algún dia a xente que levaron. Deus é o mesmo. Suco vai, suco vên, Xesús Maíra!, e toda a cousa ha de pagar seu desmo.

Desorballando os prados coma sono, o Tempo vai de Parga a Pastoriza. Vaise enterrando, suco a suco, o Outono. Un paso adiante i outro atrás, Maíra! Valho-me de poetas galegos, como esse Xosé María Díaz Castro E é outono - as folhas caem Mas não os galhos, braços nus por minha Maíra Sou jacarandá, duro e muito escuro Ah! Maíra! Será que meu destino é ser sozinho Passarinho, para melhor cantar? (Ao menos é assim que lhe recito e digo) A tarde verga ao peso do sol que se horizonta. O concreto das ruas se amacia aos pés de Maíra. O livro me escapa das màos, missão cumprida A casa volta a ser um lar, há Discursos no silêncio O calor do corpo ameaça dissipar-se Mas a alma se achega, primeiro Navega pelos cômodos Me abraça, me beija, me fala em pensamento Que já me vem vindo, já, já Já ela me chega A tarde verga ao peso do sol que se horizonta São as cores do meu corpo quando assim a sinto achegar

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(E a vocês, monstros que nos cercam (de todos os sextís) Não direi que os desprezo, bem sabem vocês Ao que servem Ao que vergam A alma limpa que vos deram Quando nasceram A todos vocês, desassistidos do amor primevo Lépidos algozes dos fora da ordem Esquecidos de si mesmos, seus rabos presos Nem vos digo que os odeio Também não vos direi que por iguais os amo A todos quantos necessitam de manuais, regulamentos A tornar rendosa toda inveja e vilania Em verdade vos digo tudo quanto quero No claro brilho dessas minhas lágrimas, essas águas cristalinas A jorrar naturas da fonte em que me inspiro A esses que conspiram sem pudor contra os sorrisos de cupido Em verdade vos digo, apressai-vos - víboras! Que ela é novamente minha, que estamos novamente juntos)

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Bilhete sobre a cômoda: De que vale tanto que te exibo, Maíra Se meus raios bons não te atingem E só me vês naquilo igual contigo Quando opacos meus olhos tão escuros Quando zonzo tonto os teus caminhos As patas feridas nessas armadilhas Berro feroz e os inimigos tremem Atacam-me e partem a acoitar contigo E agradam-te sorrindo os teus sorrisos Tais que fossem parte mesma tribo E te alegras com os louros mais mesquinhos Pelo ouro que prometem e eu renuncio (Ah, Maíra!, bem que podias Por um pouco, um pedacinho Ver-te com meus olhos verdes Esses espelhos de um louco amor guerreiro

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Dir-se-ia no entanto haver nada de errado entre nós, salvo Por esse réquiem de Mozart que ela ouve todo final de noite

Enquanto mexo e remexo penso em fazer amor Ela se esquiva arremata coisas do cotidiano Súbito se abre feito abóbora, se transforma Em lasciva cinderela até a meia-noite, esotérica Não há nada de errado entre nós, mas Fumo um cigarro trás o outro, após o sacerdócio de eros Estamos sós, ensimesmados, é verdade, mas Não é assim com todos os casais? Não conversamos mais que os familiares conversam Ou colegas de trabalho, e O corpo enjoa um pouco desde que exilamos os fogos infernais Mas nos amamos, e sabemos que é impossível ser feliz sozinho Corpos, almas, mãos entrelaçadas, tudo o que nos importa Âncora, asilo e cais Naufragamos nos perdemos nos salvamos, para que mais? Acaso as estrelas se entediam em ter o mesmo escuro firmamento? A natureza inteira não é só repetição comezinha? Mas somos humanos, aventureira espécie E buscamos no mínimo os máximos que sempre nos faltam Olhamos o infinito, assim dentro como fora de nós E sorrateiros esticamos os braços da mente, as mãos da alma Desistimos pelo medo, que afinal somos finitos, e Frágeis Recuamos quando Deus pesa em nosso peito E os gritos abismais lembram seus direitos Ela dorme agora Quanto a mim, meus olhos são faróis de pálida luz Sem que a nau da mia Maíra se anime à noite escura

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Tentar adentrar o sonho de Maria buscá-la no mais íntimo dos chãos Onde todas as possibilidades se afirmam Decifrar as pegadas, qual direção? Mergulhar em sua alma quando a concha faminta se contenta só provar, e A Fome grita que já é pronta, e ainda não Acercar-me do corpo em absoluto repouso Prestando toda atenção ao ritmo da respiração Qualquer variação é sinal de que me ouve e vê intra-muros Pode fugir então virar de bruços Talvez eu aproveite essa bruta ereção, mas não O que eu quero é decifrar a alma que vaga em busca dos céus Da janela faróis acesos são mil outras razões E ela dorme o sono solto dos tigres saciados Das borboletas que esvoaçam as asas, bailam Como se essas rosas fossem toda a vida a sugar Acreditar na vida e as rosas que cresçam Essas rosas. brotos de anteontem agora abertas a sono solto Essas rosas que cresçam Achegar-me pé ante pé como um marido bêbado Encolher-me ao fiapo de leito como se fosse sempre Decifrar monossílabos de um corpo ausente Absolutamente, nem que ela confesse algo ao dente Nem que ela murmure um nome mais recente Absolutamente, como um marido bêbado Que se encolhe todo, e dorme

Ela entreabre um olho talvez ainda dorme Talvez, ainda dorme, talvez, quem confia num só olho entreaberto? E eu só o medo de jogar-me fora antes que o sol se levante Ou que ela estranhe estrague a bruta ereção Que me trasforma no homem mais poderoso do planeta Mas a pata autóctone atônita autônoma quer porque quer tocá-la Aproxima as garras e há um cheiro que sente pelos dedos e há os pêlos É bom! Ah! É muito bom! Ela se move se encolhe mostra as polpas e tudo o mais Talvez ainda dorme, talvez Palpito rijo o cajado de cetim Que súbito escorrega abrupto um bruto independente Que jeito?, se o portal estreito abre-lhe assim as trancas do Bonfim Não me conheço nem me vou inteiro Fico ali, meeiro Adormeço, um marido bêbado afogado em cheiros Ela se move, dorme, talvez Talvez ainda dorme Nunca saberei

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Dessa cumplicidade que se achega de mansinho Começa com um olhar um sorrisinho mesmo um resmunguinho Dessas palavras que segredam alma a alma o que o coração afaga Igual cuidado quando se arruma rosas dentro um vaso de porcelânea Dádiva, nós assim nos amávamos

Agora somos rolinhas na mira das espingardas Pássaros assustados Trocando os passos Caçador e caça Temos medo em beber das taças trocadas mesmo só amor Talvez amargue amanhã Mas, e daí? Morrer de amor... Sempre se morre O coração pára de bater Mais cedo ou mais tarde Sempre mais cedo... seja lá com que idade Com o passar do tempo vemos Que os antigos erros não passavam de uma outra maneira Vazar uma fronteira que nem sonhávamos Mister estar preparado para esses modos que ainda dóem Mesmo que eu... mesmo que ela Dói mais quando eu... dói mais quando ela Sabemos das muralhas Ah! Sabemos que o amor sempre vence... Mas que não é para agora Nossas migalhas de um pão que ainda é semente do trigo bom Não é para agora que tudo quanto certo ainda ameaça duvidar Quem sabe o mundo real seja já um passado remoto E todos estejamos a arremedar os mortos?

Well, well, well Não se chega impunemente ao último portal da paixão carnal Carnaval de células, idéias e os átomos Que se completam, endereçam antropolatrias Oh! My Juliet! (Oh! Ro-meu!) E ai de quem na Terra ousar amar, ultrapassar os Céus de Zeus Ou seja lá

Que o amor concedido é feito dos sons que não têm fome Nem vísceras, é uma outra lida Impossível aos homens e fêmeas que habitam o planeta E o que temos é castigo, nunca bênção ou dádiva É por isso que me olhas assim, Maíra e assim eu também te olho Conspirarás com tuas fêmeas-gêmeas, e eu também transpiro Mas, façamos um trato: Cada qual acertará um chute em cheio no traseiro da síntese (poupemos o meio, todos os meios) Sejamos a contradictio, a contradança O vive la diference! Continuemos lutando! Lutando garantimos o gozo nosso de cada dia Carta de alforria para a guerra dos sexos! Eu te como, tu me comes E ficamos combinadíssimos assim! (Ao menos é assim que lhe digo enquanto rodo a cabeça em seu colo) Ela sorri e gesticula que eu deliro Cerra os olhos, corta-me a língua com dedos e jasmins Um norte no nariz empinado mostra que medita (me amará ainda?) Quanto a mim, todo em focinhos penso que a terra é uma úmida razão

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Os laços se afrouxam e as montanhas não se movem mais Os pássaros apenas assoviam, nada mais Apenas cumprem seus minúsculos destinos, passarinhos tais que as formigas, aracnídeos e outros mínimos Não somos tão diferentes, pensamos os instintos Inventamos pés e asas superlativos Mas engatinhamos nossos sentimentos como bebês E só os aceitamos pela sobrevivência da espécie que há em nós Nossos sentimentos são a expressão possível da matéria sob o Espírito Mas que pensamentos se lhes comparam em furiosa sensação de Vida? Os raciocínios são sempre a seu serviço, e ainda bem! Motor solar a imputar inteligência aos escassos sentidos Rasgando a escuridão da carne Como uma lâmpada que se acende no porão dos instintos Que necessitam de compasso e direção Senão voltamos a comer com a mão Eis o que é o homem naturalmente bom! Amar é resolver as dificuldades, domar os cavalos selvagens Prontos a disparar pelos prados da imaginação inconsciente Sempre a um passo do apocalipse now Amar é mediar instinto e inteligência Por isso todo amor é perigoso Poder terreno e sobrenatural Unidade de carne e alma, terra e céu, criatura e criação Amar é freqüentar os olimpos, brilhar junto às estrelas São semideuses os que amam, enquanto amam, o que ainda é para poucos (Ao menos é assim que lhe digo e Maíra finge que ouve)

Crescemos em direção ao sol Nossas penas de cera e mel Vencendo gnomos e sílfides em cada morte prometéica Cada vez mais ateus Como um pêndulo preso a um lado do grande sino Que assim não pode tocar Somos a razão, dizem uns, a construir o admirável mundo novo Somos feitos de emoção, replicam, o humano habita em nós E há o instinto versus espírito Água versus fogo Macho versus fêmea Versus, versus, versus assim Deus nos soprou os barros Portanto amar é anti-higiênico. A saúde social depende da assepsia Esses germes comprometem as teias das penélopes que tecem Enquanto O Príncipe, esse ulisses trimegisto, não vem Ora, que esses ulisses se lixem, também as circes Há muito mais em jogo, meu amor! (Ah! Maíra, se este gole de vinho diz que já estou bêbado É porque é vinho bom Mas cerveja me deixaria louco, meu bem) Mas tanto as razões, as emoções, as sílfides ou o espírito Os cavalos selvagens, as penélopes ou os ulisses trimegistos Nada a faz ficar mais que uma ou duas noites O suficiente para provar a superioridade fêmina Sobre um macho que o ocaso quando ela Se liberta dos frágeis elos da corrente que prendeu suas avós Imprescindíveis seres essas mulheres libertas Enquanto ela diz que está muito feliz E com dinheiro

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Um perfume invade a tarde e eu tenho um corpo que arde em desejo A esperar por ela Aprendo coisas, coisinhas mesquinhas que agora se agigantam Varrer a casa. Lavar a louça. Trocar a roupa de cama. Deixar o banheiro com asseio de hotel. Arrumar a balbúrdia da sala, os livros e os discos As roupas de ontem Como fazê-la ficar? Não deixar que se vá após o amor? Talvez hoje ela me veja com olhos de Julieta Talvez perceba finalmente que nunca haverá outro tão ardente Asseio o corpo, perfumoso sabonete e a água o mais quente Que me amacie o rijo caule para a flor que o sustentará Escolho as roupas que combinem com sua cor Atento sou aos mínimos detalhes (por Deus! Que nada me escape!) O vinho branco é do mais doce Os que a minha terra produziu, os que vieram da Germânia longe E que seus lábios do próprio doce provem! O queijo, nem tão forte nem tão fraco, mas Que ela sinta o raro que há em meus cuidados! O coração arde mais que o corpo que carrega E a mente é mera escrava dos caprichos que ela ordene Sou de Vênus sacerdote, Marte escondo a outra hora Se, guerreiro, tiver sorte!

A tarde conspira a favor E uma brisa alegra o navegar Mesmo a chuva que inicia em si bemol Convida ao calor do cobertor Há um só perigo: Saturno, e eu vos digo Que os ponteiros de um relógio cortam mais que o aço fino Como ela virá? Mesmo virá? E se... tudo quanto a antiga musa canta não cessar? E se as veias inda abertas deixem correr o veneno que ainda há? Yesterday, all my troubles seems so far away... Raios claros de sol abrem espaço entre as nuvens cinzas Toca a campanhia O coração dispara, a têmpora lateja Abro-lhe a porta com uma camisa nova The sunshine in É a era de aquário, enfim

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Temos agora sorrisos sábios Sabemos todos os truques, nossas brigas perderam todo sentido Agora que nos juntamos apenas para os sorrisos E ela me fala em amálgama, cimento de tutâncamon Coisas de alma

Ah, Maíra! Que magia nos desdobra? Que deus nos socorre na hora do embora? Eros não é, está longe, lá fora, se ocupa de auroras Talvez lilith e seu modo escuro de amar No entanto, ainda jogo maçãs aos seus pés Como um noviço camponês da Grécia de outrora Noivo renitente No entanto, quero fingir que é bom assim Que me valem suas coxas, seus lábios, seu trote e seu rebolado Sua gruta cada vez mais escura e profunda Ah! E seu cheiro bom bem ali No entanto, não, nem é tão bom assim Sua carne se dissolve a cada vez Secam-se as antigas águas corredeiras E há nas mentes mais gente em nossa cama Ah, Maíra! Venha da próxima vez Com a verdadeira Maíra (Ah! Ia esquecendo de falar dos coqueiros a cochichar com os ventos)

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Repassando passadas opções de liberdade desistida Sabemos que somos apenas os restos deixados pelas hienas Regorjutados pelos urubus ameaçados da nossa extinção Nós, antes animais raros entregues apenas ao manjar dos deuses

Nós, que um dia lutamos em obscuros idiomas Nas noites profundas Aos sóis de quarenta graus Por um amor que enterraria para sempre os antigos casamentos Ou que morrêssemos sacerdotais Nós, que amamos mais que os desastrados amantes dos romances Que venceríamos os mil braços da cidade dentro e em tornos de nós Que jamais os braços da cidade em torno e dentro de nós A ordenar os modos dos lábios e os horários das pernas abertas A marcar os hectares do corpo, fronteiras A rosnar os possíveis e os impossíveis gozos A exibir seios e testículos decepados no altar dos casais exemplares Nós queríamos mais, muito mais, o amor mais livre e prazeroso Um mundo nascido do sexo mais livre A cada um conforme sua vontade, de cada um conforme seu gosto Nós, que até ousamos dois casais Nossos tatames genitais Dois em um e o seu contrário Tentamos mais, o imaginário e os manuais de magias sexuais E agora que dois seres até que bem iluminados Tanta escuridão ou tanta luz, não nos encontramos jamais Somos um feitiço de áquila sem que o filme tenha o seu final feliz Ainda mais amarrados ao rugir das calçadas A espreitar o roçar do luar em cada novo olhar Silencioso pranto, silencioso riso Sem saber se somos ou existimos, sem nada mais ter com isso E num esgueirar de olhos nos sabemos em verdade Que somos corpos feitos de centelhas sem que o incêndio da alma Alma que ainda geme feito um bebê com fome Sem que as tetas cheguem dos céus ao berço Sábios e perplexos somos agora almas maduras Não nos culpamos. Ultrapassamos os graus E ao peito trazemos algumas medalhas do graal Sem que o nosso santo cálice seja por isso mais perto ou mais longe

Ah! E essa via tão estreita que imune aos casais Um de cada vez, quem vai na frente? Quem segue atrás? Tanto faz, que agora a solidão é galardão Estranho riso de sal e mel Tanto faz que o primeiro, ou o depois Que a solidão não culpa ninguém Pois não há mesmo ninguém E nem se importam os deuses citadinos Nem é próprio de culpar-se a mãe natura Por que razão então nos apontaríamos os antigos esboços? Se somos agora meras sombras do que fomos Quando a folia da carne e as dentadas na alma Uma espada de dâmocles jaz aos nossos pés E isso é tudo quanto basta A sabermos que estamos verdadeiramente sós

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Maíra estende os braços despidos de ornamentos E eram ricos os braços de Maria, esses enfeites Com que as fêmeas se embelezam de certezas Apenas um anel de prata ao saturnino dedo talvez explique Tanta indiferença nesses últimos dias Quero mais que um cálice de vinho por dia Às minhas coronárias de atenas

Quero o champanhe que ria orelha/orelha Quero navegar à revelia dessa séria sina Que sonegou as carnes ao incomum dos dias Ela se esquiva, suficientemente esguia A impedir minhas patas mochas da preguiça Das tantas tentativas O tabuleiro propõe um jogo sem que rima Versos livres com carta de alforria Nessa linguagem com que os deuses se divertem ainda Ah! Nossas antigas rimas, podiam ser que sim Podiam nem dizer, podiam ser ou não ser Essas outras rimas, Maíra, rimas que não se vê! Essas arrimas, Maíra, significam o quê? Ela assovia uma canção tenorina Nem tão longe uma coruja cinza pia Uma gata resvala a telhas soltas com as patas presas na lua A mesma lua que prateia o champanhe na taça vazia Minhas lágrimas pesam como chumbo sob as estrelas Ameaçam desobedecer e cair O véu da noite mais escura desamarra os cordões do coração Ela me estende os braços despidos Me convida a lhe servir A taça borbulha as pratas espumas da lua. Uma coruja cinza pia. Uma gata grita uma canção tenorina Lágrimas escorrem ao ritmo das sábias e tristes ancas de Maíra Quero mais que um cálice de vinho por dia

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O girassol que colhi à beira dos caminhos Tu só dizias - lindo! - às pétalas claras, ao amarelo-ôvo Um sol esponjoso ao centro de tudo do mundo Abraçando teus seios O girassol que pousei preso aos teus cabelos lisos e macios Iluminados por mim Os fios negros e sedosos combinando Com teus lábios de cetim - ái de mim! Esses beijos mil beijos com gosto de primeira vez O girassol que plantei ao fundo dos teus olhos A traduzir o tempo os erros os ventos As terras do sem fim As cores que - rainha - um reino em que eu poderia Servir O girassol que guardei para sempre Preso ao teu ventre Campo aberto a todas minhas sementes O girassol, Maíra! Mais que tu, ou mesmo eu É que nos dá adeus

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Era improrrogável aquele amarelo-ovo em plena lua batendo a porta para os nuncas que vagasse lobisomem bêbado pelas ruas A mão peluda escorrendo dinheiro pelos ralos as patas firmes de um centauro o sexo aflito, tábua corrida em night-bares, estreitos lares muitas lareiras, pouca fornalhas Uma garganta a rosnar para o infinito Um uivo longo, um breve alguns ganidos Era imponderável aquele amarelo-claro já era o sol desvendando os mistérios mais ocultos Apenas um menino imberbe e pouco siso - menos ainda, um berço vazio a correr trôpego pelas dunas A mão tão pequena

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Ah, Maíra! Aceitar que sejas apenas mais uma entre tantas Não a encarnação da Deusa, deusa entre tantas De um Olimpo que não sonega o assédio aos mortais terráqueos Esta a maior dor: não ter revelado a Uma Condenado a não ser o Um Amamos para a plenitude de nós mesmos Eis o castigo: quando fracassamos, voltamos ao plural dos vencidos Tanto que investimos calcinha e paletó, tanto que aprendemos kamas-sutras de cor, carlos zéfiros tanto que tentamos do bom e do melhor tentativas e eros Agora um beco de histórias de terror assusta os gatos Vitória aos mortos-vivos Aos vingativos roedores das vísceras expostas do nosso amor Vitória aos vermes Em que também nós nos tornamos, agora com os outros clones e zumbís Pessoas feridas são perigosas, sabem que sobrevivem E que não viverão jamais a plenitude sonhada Chegamos aos limites, às fronteiras possíveis Não podemos dizer que fomos cercados, que fomos vencidos Não somos as vítimas Somos, enfim, tais quais os que iguais nos antecederam: Escolhemos sobreviver

Sem a coragem de encarar o espelho, tememos qualquer sombra que adentre os instintos Falhamos, e do medo fez-se o músculo Será, no entanto, que nenhuma alegria hasteará sua bandeira? Claro que esta é uma questão de somenos, salvo quando rimos Não te preocupes, Maíra, se hoje também não queres

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Pois não querias ver crescidas as minhas espigas As que plantei para as fogueiras de junho/julho Quando o frio das noites nos fazia mais próximos E um fogo com sabor de eterno queimava as partes cavernosas De todos, moças e velhos Não querias ver bonitas as minhas flores Com que costumávamos saudar as primaveras Quando receávamos magoar as borboletas, amarelas E uma brisa fresca e sempiterna insistia, insistia Que fizéssemos amor, e brincadeiras

Não querias ver límpidas as minhas águas marinhas As que represei para o verão de brasas e suores Quando o calor das noites te fazia despudoradamente nua E um hálito quente percorria nossas espinhas Em kundalínicas poesias Mas mantiveste abertos os ouvidos Para o triste som das folhas que caíam No outono dos dias, na friagem emudecida Nas amendoeiras despidas Sem o canto dos bem-te-vis que só eu inda ouvia Bem distante, é verdade Porém mais próximo que o teu sorriso Perdido na dura eternidade Agora, és toda outono, querida - não reclames! Se me faço um vento frio em teus finais de tarde

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A montanha em frente geme suas encostas Nem é o vento que sacode, busca a saída Nem capricórnio algum ensaia sua subida cascos sobre pedras É Maíra quem se socorre das rochas como se fôssem vivas

Pétrea alma, a contemplar o lago mais embaixo Narcisíaco espelho A refletir um novo jeito Sem que a vasta imensidão onde as estrelas Enfeitiçada de si As pedras cobrindo os pés, e embora os veios das incertezas Orgulhosa da opção mais fria Até que bem combine com toda a sua beleza Da mulher que é Da alma que se aceita, plena Oh! Via estreita Que maíra vou? Aquela que aciona meus alarmes pelas madrugadas? Que toca as fibras mais íntimas de quem não sou? Devo ser a presa fácil entre suas presas e garras Ou partir seu ventre ao meio Provar que a mulher é a parte detrás? Respiração boca/boca, novo sopro da deusa Gosto a gosto Ela garante que toda eternidade é em troca Desses momentos, que nem por fugaz se tenha Moto-contínuo que afasta todo medo De não me ter nunca mais Ela quer uma planta rasteira sob a sombra dos seus galhos Seguir-me uma eva é trair-se, lilith que é Preservar-nos como manguezais de praia, insignificantes Grandes apenas no que temos de secreto e amargo - sob as patas dos que constróem as cidades, aço e fôrma sem contar com os nós - não, isso seria como abdicar ao trono inglês

No entanto me deseja mais que as pernas e os abre/fecha da flor que nasce desses matagais Que não há terreno propício ao amor sem que a alma goze também Que o amor ignora quaisquer outras razões, tem suas próprias asas E por si se morre Por si se muove, e nós Corsários de tantas esferas Secretamente teimamos Que as regras giram em torno aos lençóis Que jamais haverá amor sem as peles imantadas de êxtase Mesmo que as idades, mesmo que as algemas da cidade Em troca do respeito assexuado, essa moeda vil Por mais que se cubram de vergonha as partes pudendas Do que as almas desejam, e - por isso! - o corpo reclama Por mais que se aceite, apenas, as diferenças formais Ah! Jesus! Tão iguais em essência e conteúdo Que amar o próximo como a si mesmo é mesmo amar demais Que mal há que nos beijemos nesses pontos obscuros do ser? A alma vibra ao desvendar a carne amiga Que lhe concede harmonia e prazer E a uníssona maneira, única maneira De completar as lacunas entre o Existir e o Ser Fora, fora!, com esses que anunciam a alma sem crer senão em energia, em estados mentais ou em concessão divina, provação a ocupar a carne um território inimigo carente de superação Que pai, por menor, quereria seu filho de volta ao úter-paraíso? Somos um espaço múltiplo A exercer com a carne cada qual dos seus milímetros Há alma no cheiro que desprende dela e na língua que brinca e navega Há alma na alva pele das nádegas e na vermelhidão da palma de um prazer transverso

Há alma nos gritos e no rugir dos tigres soltos dessas grades Há alma nos olhos, gratos, lacrimosos e no gozar mais íntimo, logo quando a tempestade acaba Não, Maíra, não há amor possível sem que as almas Ocupem da carne cada qual dos seus milímetros Ocupem da carne cada qual dos seus milímetros

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Por isso, e mais um quilo, alevanto âncoras Para não perdê-la No dia-a-dia das tristezas Das marés que esvaziam Sem que voltem a irrigar os desertos De uma praia chamada solidão a dois Melhor tê-la ao coração ainda morno Como um momento retido em inútil fotografia Um momento verdadeiro Mesmo que sonso, mesmo que matreiro Só verdadeiro nos olhos que brilham ao pequeno nervo Por isso, parto; abandono minha terra A buscar lejos mis proprios supuestos Para que a comprehenda, quién sabe? Sus motivos de geléra

Alargar velas ao máximo Ventos que me sopram cada vez mais Quién sabe?, lejos, más lejos Puedo saber un póco más Aportar outras terras, quién sabe Saberé un póco más? Velas ao vento, marinheiro! São apenas sereias, nadie más Velas ao vento, mariñero! Que lengua hablarás, tanto faz! Velas ao vento, mariñero Que esperas da mujer?, quanto ainda esperarás? Lobo das marés, me avanço Empino a proa contra as águas fêminas Largas e impalpáveis, e essas ondas Que avançam, ferozes, e se desmancham Alternam ritmos, aguardam Queda e naufrágio Velas ao vento, mariñero! Velas ao viento! Que la tierra misma es sempre más allá Ah! Vuelver a la casa Ah! Vuelver a ver sus ojos felinos mismo mornos, mismo fríos A namorar-me as tripas Ah! Maíra Aportar-me en sus brazos Atracar-me en su cuerpo, y lançar fuera todo lo que sonhé en mar más alto

Mas o vento amplia a alma, enfuna os sonhos Que nos levam ainda mais para lá Onde as quimeras que verdadeiramente assustam ganham existência e ser Navego, e essa cósmica poeira Atinge os olhos, terrenos olhos de ver para crer Velas ao vento, marinheiro velas ao vento Hás de esquecer corpo e olhos Que te fizeram crescer Velas ao vento, marinheiro Ver para crer Olhos que escurecem Existência e Ser Buscai, marinheiro! Razões de não crer Razões de não querer Velas ao vento! Que depois desta noite, amanhã Serás sol a amanhecer Velejai! Através dessas janelas que a alma escancara Ao lado que será O lado de allá Mais outra vez, Maíra Mais outra vez para sempre Canto canções de adeus

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Adentro a porta estreita do seu quarto e o leito Aguarda um corpo quente e redimido Lençóis a um só tempo branco e vermelho Exibem casais em eros aos trabalhos de um templo Erguido a Vênus Ela é lânguida, e os rubros lábios desmentem A inocência e o acaso de um quadro de Goya, por exemplo É o tufo exagerado dos pêlos que vejo, em seguida E o cheiro Que incendeia os cinco sentidos Mostra que a alma Adentra os segredos Da carne cúmplice Por um pouco, receio Como um místico Macular o que vejo Ah! O que vejo! Ao presto nervo quanto desafio!

Passos gigantescos para uns músculos de menino E o sorriso mais felino a mostrar que sabe disso Tão bela visão, tão terrível! Que veneno alquímico faz disso possível? Trêmulo, ainda Aproximo Os braços em brasas Ao cruel destino De lançar-me aos seus pés, beijar-lhe o umbigo Curvar-me ao centro do mundo feminino Deixar que as lágrimas Escorram sossegadas De tanto siso Ao encontro das línguas, pororoca dos conflitos A levantar as águas A um sol castiço Única maneira: - não pensar mais nisso! Adentrar a porta estreita desse leito Mais que merecido Ó Maíra Beatrix Suba ao patíbulo! Que a carne me abre Bem mais doce paraíso

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E porque esta me abre o paraíso É com esta que eu fico Feita da matéria mesmo, imperfeita A evoluir comigo Não, Maíra! Nem que te cubram o corpo de jóias te perfumem aos sândalos das Índias Nem que sejam diamantes tua tiara de rainha de uma eternidade mesquinha Te ofereço mais, carne mui amada Uma alma que não se deixa estátua Nunca separa ou se acaba Que tua pele clara não carregue a morte dos mármores Ó, Brancas Almas! Máscaras deste mundo de gósmicas risadas E essas sementes ainda nem plantadas Mundo de portas fechadas Em que as espadas são ainda arado e chave O Um não ama, o Um não se basta Se salva se Uma se impõe a mesma marca Nem importa se a água ou o lábaro das brasas Ó Maíra! Estás tão grávida Das estrelas que jorrei em tua alma

Ó, impávida guerreira! Que decisão arriscarás? Quedarás mui tranqüila a envelhecer os ais? Ou é que as asas te coçam, nada mais?

Há um sorriso giocondo, e eu o brilho de uma lâmina de dois fios Atento e presto tenho a alma de um tigre no corpo envelhecido

Como se um velho cisne, também navego só em águas poluídas por dúvidas obscuras Mas é só mexer um pouco as asas que nossas penas se lavam No lago dos que amam nadar a sós com seu par Ah, Maíra Recusa a tiara dos diamantes eternos Há vida ainda por detrás dessas carnes de sal Há vida ainda por detrás desses olhos de gesso A olhar que não vê Misterioso Kubainacã, me torno agora Que o frio dessas águas me fez crescer

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O outono afina os roucos grunhidos, e os gritos ancestrais dos machos goliríacos Alivia o ranger das presas Faz com que seja De todo rancor um hábito que despe suas insígnias Ó, Bendita estação que despe todos os motivos da pele antiga Talvez o medo de perder os ódios conhecidos pelo amor inda noviço Forma sem matéria, espinho escondido Maíra navega perplexa Pelo tanto que ainda havia Nem idéia fazia das próprias profundas, dos meus braços de moinho Tantas valkírias em selvagem correria Mil éguas e as patas já doloridas Cavando sulcos de arado no barro da própria alma Então não era o macho, apenas! Não, Maíra, há muito mais em jogo, meu amor! As barreiras são lisas pedras sem beira E as sombras e as circunferências é de ti que agora riem Nem seriam companhias dessa que peca e reza Ao sabor das armadilhas Maracujás, camomilas Outras tantas químicas, nada pacifica E as teias tecidas com esmero cerebelo são labiríntico destino Sem volta, sem início, perdido lá atrás Embora persista o apito desse trem que nem partiu

Ela é atenta a cada gesto dos objetos peregrinos a cumprir desígnios Que mãos invisíveis fazem, por comezinhos, um ser tão aflito? Qual motivo o pouso de um passarinho magoa ouvidos tão finos? E meus zelos companheiros, em quê?, são ritos demoníacos

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Partogênese de uma outra mulher, assisto assustado, as acrobacias de Maíra nas linhas da própria vida A libertar-se da sina ensaiada com tanta disciplina a alçar seu cetro de rainha Os atos por trás os panos O palco emudecido As poltronas vazias Mostram um teatro antigo que um novo tempo fechou Não há culpas, nem portanto, compreensão Ela apenas é Embora sem exatamente ser Quanto a mim, sou feito de gestos que não tocam os mesmos pontos Que nem acariciam nem dóem Como a sombra bruxuleante de uma vela soprada sem nenhum desígnio

Muito mais dos que dela ainda se acercam, e cercam Mais do que ela mesma Sei Que está a trocar as penas velhas pelas asas e garras, fênix de uma era que se aproxima (acredita) Nova estrela de salém Sei que também eu mudarei os panos Que defenderei tronos sem lei Sei que embora atenção e zelos à toda prova Nunca a alcançarei Sei que trocarei as pernas, sei das botas que eu calçarei Sei que - então, tudo bem! O mundo que um dia será também eu serei Enquanto isso, entretanto - ó maíra! Abre-te parêntesis! Dessa boa e glútea gruta sombria

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Mas, não!, ela garante, nem se trata de não me querer mais (um velho baio ao qual ainda não arrancaram os testículos) Nem é que um garanhão qualquer a faça arder enlouquecida Nenhuma carmina miranda tropical

É preciso apenas que brilhe, destino estático Ser inatingível, brilho que a si se baste Mais os admiros da raça Abandona-la a seguir seu rumo curvilínio, espiralado ou Deitá-la ao colo rude dos nervos retesados, e cobrir de rosa suas belas nádegas ou Acomodar-me aos seios ainda inteiros, e sugar dos seus mamilos o universo inteiro É preciso aceitar a mininitude do corpo (escapar da cidadela dos mártires de Cléo e Daniel a Julieta e Romeu Aceitar que o grande amor é estória episódica e se manterá acesa tanta chama a passos cada vez mais fracos nas calçadas e nas camas, que afinal, reclamarão seus fins de dormir É preciso acordar dos sonhos Antes que esses sinos nos façam ajoelhar perante um altar qualquer

Então, o que se há de fazer agora que ela se maqueia para sair só? Deixar cantar na vitrola um just fuck you E calar na garganta o rugir desses cães que nunca ladram Ah, Maíra! Querias assim, assim será! Querias assim desde antes que eu nasci

E no entanto entendo que também tu tentaste Que este mundo não girasse assim, impávido às dores Do eixo que agüenta o peso dos ventos, o calor dos jeitos De se amar mesmo assim Agüenta, mundo! E eu Rego e espreito

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E assim se vai dissolvendo a menina que enxerguei primeiro, em meio às próprias curvas de mulher pronta, e o cheiro das roseiras, antes que da noite as damas a perfumassem por inteiro O primeiro beijo e antes O encontro das mãos, as peles em êxtase, pelo que mais viria sem ter vindo nunca d’antes O toque perigoso dos pêlos e os seios Com todo receio de apressar as sementes Desvanecem-se leves os suspiros Os diálogos interrompidos a meio, os folguedos e brinquedos dos olhos, e os passos feitos de pseudos desencontros, até que os lábios vermelhos

Se agrisalha a alma, no entanto Lobo lambendo as feridas escuras da carne A um passo de um amor ao próximo Hiatos há na incompreensão dos sisos Arrancados à boca sã Nem há que voltar, forjar sorrisos Nem o choro dos aflitos condiz com a solenidade dos livros abertos à meia luz Como esse em que um ghesa poeta diz: Das árvores os braços desnudos debruçam-se sobre a casa Os gatos dormem. Os cães dormem Da janela dos fundos uma suéter sem mangas, no varal Uma cadeira de balanço. Para frente e para trás O telefone dorme Anoitece lá fora, no céu Ela se movimenta a passos e gestos. Velhos passos. Velhos gestos É hora de soprarmos as cicatrizes Outono, ó outono frio de maio

Certamente amanhã de manhã haverá um jogo De velhas cartas na mesa

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Ouça, maíra Por acaso deixei de ser o mesmo rockin’boy? E quanto aos meus boleros, não te agradam mais? Ou tudo é desde sempre adrede preparado para o final infeliz? Funcionários de Caim, tínhamos de nos trair? Veja estas árvores, desnudam-se sem pejo algum E, por quê nós, também nós, não nos despimos das folhas secas herdadas dos nossos avós? Espera, Maíra, ouça, maíra Pára, por favor, de lavar essa louça De ruminar por dentro a demência do nosso tempo Pára com esse barulho ensurdecedor, please Arranca do peito essa flor de Baudelaire O amor não pode ser um simples meio de vencer batalhas outras Essas guerras eunucas de sexos assexuados A separar os machos das fêmeas Espécies sempre a se livrarem do apêndice que perdeu seu molar Não aceitemos um tempo de regressões Um tempo feito de estáticos status Como crescermos e multiplicarmos fosse uma ordem genética E Deus dissesse coisas tão óbvias quanto despiciendas (Aliás, existirão vidas passadas anteriores a Jeová?) Ah, maíra Nada fará que o nada seja o contrário do nada Pára com essa louça, Maíra, pára!

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Vivemos em constante interseção Uma conversa em meio ao trânsito, como naquela canção: olá, como vai?/eu vou indo, e você?/ o sinal/ vai abrir/ adeus Somos bilhões de seres humanos, mas só alguns de nós olhamos para as estrelas, gritando a importância de cada qual O amor é muito mais que um meio de organizar a carne em alas e filas Ou de melhor servir à sina coletiva em direção às estúpidas utopias Há sempre dois caminhos na mesma linha Paremos os carros, tomemos um chope ali na esquina Enquanto isso o mundo gira Quem sabe o tira-gosto desminta esses constantes adeus, amor da minha vida Mesmo que beijos feitos de cerveja

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Acordo um sono em sobressalto quando ela mexe um braço machucado pelas sombras

No escuro do quarto, seco sua fronte suada É preciso cuidado, ao acordá-la Por isso que a beijo, leve como um lapso de tempo, que o passado soterrou sem deixar mácula Seu gemido é carne fraca Para tanta alma Trago-a com calma Ao peito largo como a madrugada Que o pesadelo ainda mais alarga Movo-lhe o outro braço, certo do que faço Mais que um modo físico, pois há mais de um mundo, mais muito mais que um só mundo Confundo assim os lados, aguardo que o resultado deixe meu pulmão respirar Embora a lágrima pendurada, dois segundos me olham até esboçam sorrir Se vira para o lado leste Salvei-lhe, talvez, uma das vidas Agora posso voltar a dormir

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Um som medieval convida a meditarmos passados imemoriais, arquétipos Ela esboça rascunhos, meras possibilidades Com fé sacerdotal

De fora, um súbito calor dos trópicos anuncia (como uma febre in extremis) Que o tempo da colheita de energias é feito pelas formigas Não para ela, cigarra a soltar a voz na casa Imune ao meus galhos nus Psicologias são, por hoje Mestras de uma aluna pronta a caminhar nas trevas sem que as sombras nada mais que servas de sua lua, tontas do seu esplendor Ah! Que maíra vou? Se sou um soldado chinês do século dezesseis E também fui pajé de amazônicos cipós e arrasta-pés Ela é uma donzela afegã que nunca foi beijada Uma donzela morta quase à hora das entregas Ressucitada na época das belas cortesãs em pele de cinderela Decerto já nos encontramos antes, diz ela Sabe-se lá quando Até possível tenha sido uma irmã Ah! Que maíra vou? Acompanhar-lhe a trama, talvez também cante essas canções a cronus E lhe decepe os bagos tal que uranus Os dias alternam mantras hindus e cantos gregorianos Ah! Deus! Prova de amor maior não há

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Os ventos uivam lá fora, enquanto Tremem todas as fibras do meu coração terreno Tudo quanto ouço dessas intempéries prenhes de sabedoria Pequenos somos, pouco importa quantos de nós sabemos A raça sobrevive justo pelos defeitos Quantos aprendemos a ouvir os ventos? Quanto medo tivemos que suportar, nós pequenos seres bípedes dotados do sopro sobre o barro Chegamos ao final dos séculos contados até vinte Tivemos as bombas de átomos e de nêutrons E tudo quanto pudemos fazer de mal a nós mesmos O pensamento avançou em direção ao firmamento Aprofundamos ao máximo nossos terráqueos tormentos Afora nós e as máquinas, tudo veio e se foi As idéias são roupas Nossas mentes, manequins Apenas o gozo sobrevive incólume, percorre nossa espinha dorsal Verdadeiro eixo da vida soprada pelo coração Esse caule sagrado que nos curva, nos totemiza Faz com que olhemos de cima os demais animais E em verdade vos digo, amada minha Duma só costela vos fiz rainha Jamais se esqueça, querida Das tantas costelas que ainda me sobram servir Somente palavras, garanto Brain storm, nada mais que palavras, mas palavras são janelas paulofreirianas de libertação

Ela se volta sobre a maciez das penas cinzas Em arrulhos de colombina apaga a luz das lamparinas E me impõe velejar em sua noite escura

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Para enxergar à noite é preciso, primeiro: ter medo Muito medo e respeito Que a noite é perigosa, poderosa, e sempre cobra Daqueles que violam seus segredos Tem que ser dela amigo muito sincero Amar em suas sombras, descobrir o que há de belo No mais avesso dos brilhos Saber das fases da lua E tanto quanto ela o permita da sua face obscura Acreditar num são jorge e num dragão Escolhendo de pronto o seu lado, a sua missão E arredar logo de si qualquer esperança De ser um homem inteiramente bom A fé deve ser absoluta Em si e nalguma crença oculta E sua própria luz à distância se ofereça Tanto que o confundam com o caminhar de uma estrela Para enxergar à noite é preciso levar a alma sempre escurecida Tanto quanto ela mesma, e se possível Nunca desatar dela o umbigo Conhecer de toda a verdade toda a mentira E, fundamental: que a noite é clara, que escuro é o dia

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Hoje o mar é tranqüilo como uma missa de domingo Molhamos os pés na beira e lavamos a alma inteira Quase abraçamos os coqueiros sorridentes Esses irmãos que sentem, ela garante, nossas auras luminárias Ela está bem. Eu estou bem. Quero cobri-la de eu-te-amos É pouco, muito pouco Mas com que outras letras, outras sílabas dir-se-á mais? Que o eu-te-amo de todos os jograis Eu-te-amo soa como um café com leite matinal Tão usual e confortável quanto um chinelo velho (e quem consegue jogar fora o seu chinelo velho?) Tão providencial como a fresta num vestido de festa o seio flagrado (qual não deixa escapar o olhar?) Ao repentino encanto de um trejeito, de um pensamento fortuito Essas palavras que os sátiros desperdiçam E as ninfas pesam exato o que querem dizer Qualquer saltimbanco das esquinas, sejam desses que príncipes desses que mendigam As podem dizer sem compromisso Talvez por isso meus lábios se calam após o beijo Tremendo ao coração tais mágicas palavras Talvez a alma ( also sprach maíra) as fale à alma Abraço-lhe os ombros e a maresia embriaga e espalha meus pudores Tão tolo quanto se lhe desse dessas flores nos bares da noite esses eu-te-amos O sol se esconde, ainda os seus rubores É hora de voltar à casa, ela, sempre pragmática Só as mãos se encontram

Ao peito um escândalo, três palavras lutam por sobreviver Finalmente as sussurro, entre seus cabelos, sou de volta um menino Maíra me sorri como quem diz: - e daí? Outono, ó outono! O que ainda mais vai ser?

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Vivemos um tempo de paz, nós Que tanto nos espinhamos por pequenas coisas Divergências apenas quanto às velocidades e graus de inclinação Com que a Terra deve girar E qual eixo Nossa geração esgota sua força renovadora Aprofundamos as sondas No vasto mar do que lutamos Não somos imunes ao que geramos Abdicamos, é verdade, como todas as que nos precederam Mas não desistimos de pensar e amar como seria se Afiamos o gume dos punhais e espadas da raça Escolhemos cada qual as setas e o alvo de cada qual Cada qual um só e seu combate, nosso bom combate Sulcamos a terra com as nossas unhas Adubamos com amor e dor Espalhamos nossas sementes de liberdade desbragadamente Agora essas árvores Cada qual se pense à sombra da que lhe pertence E cuide seus frutos

Maíra ainda anda em círculos Teoriza ser próprio da mulher realizar múltiplas tarefas a um tempo só Desde as remotas cavernas Que um só dedo é pouco e os seus nervos, que acabam por arrebentar, débeis cordas da lira que toca sempre a mesma ópera Por isso que se lança e rodopia danças de ventre, musicalidades, literaturas, negócios, modas, artesanatos, perfumes, ervas, informáticas, cartas para os jornais, dietas vegetarianas, etc., etc., etc., Nada escapa à sanha da santa alternativa, sempre divergente ou sorridente Essa tempestade de meteoritos em queda sobre as mentes do nosso tempo Seu corpo é um templo místico e íntimo Aos outros, permite-se lampejos pequenos brilhos Somente eu, garante, somente eu A nudez total de Afrodite Talvez um dia eu saiba exatamente o que é isso e o que é aquilo E se nos vem, como agora, uma aragem mais fria fica tão triste, mas tão triste Que me viro mico de circo a provocá-la rir, a fazê-la ver viver que a vida é a via dos dias Ora, direis, alternativas

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A casa está quieta, quase às escuras Meus braços cansados não alcançam as luzes Desses dias que se sabe há sempre um dia Ela chega emudecida, calada Mesmo as mãos, inda mais caladas Calado me fico Rola um Villa, baixinho Ela se senta frente a frente Mexe os cabelos Se escorrega de volta para a porta De lá me olha, mais calada ainda Calado, eu, sem respirar As cordas da viola arranhando o coração Quando se vai parece que se vai para sempre E eu reparo que uma meia de seda tem o fio escuro pelo avesso

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São de mais os perigos desta vi---da Pra quem tem paixão principalmen-----te Quando uma lu-----a chega de repen-----te E se dei-----xa no céu, como esqueci-----da Canto em dueto com Vinícius, aumentando ainda mais a saudade A voz amiga celebra a dialética de toda poesia Única forma perfeita de vida Debruçado à janela busco lá fora o motivo que me apodreça o casulo E me erga as asas ao vento dos aflitos Desde que os braços de Maíra sou um homem sozinho Num mundo coberto de rostos sem sorrisos Nem as mulheres todas, nem o saldo dos amigos (que porventura) Adoçarão este amargo vinho Até que eu mesmo encontre o fio final Ao desenrolar dos novelos que me embaraçam em Maíra O telefone toca, se grita Me vingo (que também grite sozinha) Quero odiá-la, mil princípios Abortados aos inícios Seu rosto bonito, seus gemidos Nem Mozart, nem Rodin Chegaram perto disso

A perfeição na paixão é algo assim como o Cântico dos cânticos (mas só Salomão em sua glória) Um morcego esvoeja, chega-me quase ao rosto úmido Me viro e me crispo, quase o persigo (mas vingança é prato que se come frio) Lá vem ele de volta, até que pequenino Súbito sei que está sorrindo, brincando (mas logo com quem, comigo!) Uma grande nuvem cinza apaga a lua iluminada e burra Me visto, deslizo às ruas (inda aos ouvidos o telefone trina, soluça) Sozinha

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Esta katcha bonita que Deus soprou em meu caminho A vizinha casada (aos até quando) que rebola, gulosa, querendo trair As nádegas navegando impávidas às areias brancas da praia As atrizes que mostram tudo e tonteiam mãos solitárias Essa beleza ligeira que passa, às vezes um seio em meio ao tráfego Esse perfume de avalon a serviço de modernas morganas As curvas e bicos apontando o norte magnético da terra Os lábios vermelhos dos cartazes vendendo sex-machines Adolescências inquietas sem nem desconfiar das causas

O cio dos passarinhos que faz do mundo um grande ninho de amor O êxtase solitário dos que desistem de caçar Os cheiros guardados ao raso da memória vã O gosto dos beijos que as chaves dos portais primeiros Lua cheia de sedas vestindo a escuridão de trás Esta katcha bonita que Deus despiu e deitou sob meu cetro de rei Este fogo que se espalha de quatro e o gemidos que me fazem mais Este fogo, esta katcha, esta lua, esta gruta obscura e o gozo que já vem Vindo Tudo isto, Maíra, é só porque preciso manter viva a chama Do meu amor por você E estas carnes que as minhas mãos puxam e levantam elevando a terra aos céus Estas peles alvas e as róseas marcas e a divisão dos sulcos feitos ao natural arado de Deus Estes gomos projetados contra o alto, os bicos aços afiados à minha boca ávida de línguas e lábios Estes pêlos do triângulo basto e perfumado enrodilhando aos dedos meus elétrons Estes olhos que se arregalam e rebolam e se fecham se apertam com sabor de dor e medo Estas rédeas feitas aos fios de seda destes cabelos que me imploram domar Esta fonte molhada de brasas em que forjo a espada ao botar e tirar tão rápido quanto devagar Estas trombetas que a princípio se gemem e logo são gritos novas muralhas de Jericó Esta carne que se espreguiça tonta e prazeirosa e todas as outras Tua alma se adona, Maíra Só faço te amar

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Por vezes Maíra me volta e a natureza abraça a casa Sorrindo aos nossos próprios lábios contentes Os braços e as pernas e os pequenos gestos dizem que nosso amor vence todos os motivos Uma esperança pousa em meu rosto e ela para de respirar Que é preciso deixar que a esperança brinque pelo tempo que bem quiser A atender o pedido da alma, que a esperança guarda e recarrega e leva para um tempo encantado, um lugar encantado que a vida um dia distraída vai visitar Portanto, é mister esperar que a esperança ela mesmo voe e enquanto isso Deixar-se sonhar com o sol sustenido Que deseja a vida seja nesse ritmo Toda a minha carne vibra os misteriosos sons das esferas Meus rasos ouvidos Guardo para quando se for seu sorriso lindo Quando a hora da goela e o vinho Do homem que estarei sozinho Buscando nem pensar que o amor é mesmo a serviço Da mulher Mas, que importa? Por ora Maíra aqui, a afiar as lâminas Neste meu coração de pedra lascada Triscamos as armas de meras faíscas Nos arredamos, suspensos em corda bamba De tudo que se inflama ao só atrito dos cios com a paz dos armistícios Muito embora os olhos brilhem Os nervos se aguçem Aos silêncios mais escuros

Apenas sugamos o prazer dos corpos Que se fazem inéditos Imunes ao vicioso círculo Dos meros casais casados Nem mesmo casuais nós somos Há um eterno fluir, a cada vez mais etéreos No que há de infinito nos tempos Que vieram - dizer passado é pouco Dizer presente - e dizer que sempre serão Dizer futuro é ainda muito pouco, embora Ao abraçarmos as almas, O kosmos e suas risadas Oculto ao canto bendito dos bem-te-vis que namoram Todo o tempo se encolhe como uma folha de papel em chamas São três horas da manhã, agora Mas há quanto tempo ela se foi mesmo? Só sei que se foi ao modo como esta lua cheia desce por trás as montanhas Ao modo de um sol se pôr

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Pinkfloyds me mostram quão longe chega a vibração das almas No etéreo espaço dos sonhos abertos por cada qual Solto-me a alma aos amplos espaços da noite buscando por ela Seu cordão de prata, meu cordão de prata Serão suficientemente longos nossos fios magnetizados pelo carma Do tudo de bom que nos embaraça? Aproveito que o sol se recolhe e abrem asas os anjos da noite Misteriosas vias marijuânicas esticam os corpos, alargam os espaços Caem os véus e os laços Mas não consigo alcançá-la senão em minha própria mente Bobagem! Quero carne! A alma não basta Aos meus rijos braços Assovio alto O infinito se cala, mostra os degraus de uma escada de lágrimas E nem é dor, é saber dos acordes perfeitos, sempre maiores E a cada passo o outro mais alto A mostrar como fomos tolos E quantos ainda faltam à estrada que some ao horizonte dos céus Deus, ó Deus das alturas! Quero apenas a mulher que amo Seus pêlos, seus cheiros, seus olhos brilhando, seus beijos dizendo Eu te amo Agora o som dessas guitarras, que me esticam ao máximo os mistérios da carne, as obviedades da alma O som dessas guitarras é o som desses degraus

Vozes amigas cantam em retaguarda Protegem-me os flancos e a régua Que mede as distâncias todas que me separam Da minha maíra amada Agudos e graves, delírios De guitarras feito enxadas A sulcar a terra sem que as sementes Queiram ainda vir à tona Maíra, maíra, queres que eu sumo da tua vida? Uvas se derramam ao largo do cálice Recolho as lágrimas de um cristo que prometeu Pinkfloyds mostram quão longe chegam as vibrações da alma E tudo é apenas porque hoje ela não veio Colher as pitangas e as mangas que chegam fora de época Tudo que plantei para ela Mas ainda resta uma garrafa de vinho nessa missa Em que imolo um cordeiro feito de carnes impuras E a alma se recolhe à sua mesquita, enquanto Um sol arde às costas da noite Maíra e seus fios de penélope aracnídea Com que tece as redes dessas circes

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Amor e Liberdade me sinto Como um peixe que escapou do anzol e nem por isso carece ver a cara da Sorte que puxou a linha em vão Mergulho nas águas, que bom ser nada! Ó iaras, mães das minhas lágrimas O que dizem vocês dessas águas salgadas? As ondas me forçam a carne em suas vontades Me faço uma palha Leve como essa réstia de sol que me entreolha Quando os braços e pernas nadadeiras Mergulho de encontro à força dos pais netunos Que soltam suas gargalhadas Na praia sereias aguardam, apenas Que me salve Sentada sobre uma toalha de seda amarela, lá está ela essa ninfa que me basta Conversa amenidades, apenas como se fossem mesmo amenidades, apenas Sabe quanto ainda me espera de cerveja e vinho só de pensar em voltar ao colo de maíra E quanto à hora dos sacrifícios também sabe Quem sofre mais nas despedidas

Tudo prometo, a mim e a esta nova musa Seus olhos desconfiam, estes olhos claros Mas nela cresce o desejo, e percebo Que ainda sou dono do meu grande nervo O mar nos acolhe a nudez dos amplexos E adentro carnes e águas a um só tempo Netuno se recolhe aos seus aposentos Homem, sou senhor de um vasto reino Gozando ao sabor das ondas minhas próprias espumas brancas De volta às areias, ainda nas beiras, sei o que há nesse marulhar Maírááááá... maírááááá... maírááááá...

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Tudo que precisamos é Vida, nada mais que Vida Chamemo-la Deus, se assim nos agrada ateus Chamemo-la Amor Se lançamos fora o pudor ao flagrar a marca da rosa em nossos corações Mas, libertas quae sera tamen Totem erigido a meu próprio favor, agora eu sou Máscula força, músculo duro e implacável, bárbaro Sem nada polpar às cidadelas conquistadas Adentrar implacável esses reinos de carnes flácidas Libertar-me, vencer essas fêminas algemas Antes que a raça pereça ao mudo som desses badalos Totêmico sou, e afirmo a força do meu corpo em brasas De tudo careço. Desde o avançar das marés cheias Aos ventos nas encostas, mesmo um fogo fortuito lambendo as matas O zumbir dos insetos, mesmo suas mordidas O desafio dos equinócios sem porta Os pombos que nos atingem a testa e dizem que é sorte Mesmo as armas que detonam desgraças Esse dia-a-dia das feiras e das risadas que movem toda fala O olhar que de súbito nos assanha e cala O ruir das idéias, verdadeiras ou falsas Que nos importa viver uma vida que não libertas quae sera tamen? Liberto-me de ti, maíra Já te faço um fantasma, miasma em evaporação Tuas aparições, maíra, somente me falam à alma Nada mais reclamam

Porém (e há sempre um porém) Se afinal me vieres com tua grinalda perfumada de jasmins Ah, Maíra! Só um último pedido Enquanto me algemas, reza a Deus e ao Outro por mim

Libertas quae sera tamen, bah! A boa e velha forca me aguarda (E eu vou comendo amendoim)

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O outono se vai indo de mansinho, como resvala uma onça tocaiada Quando menos se espera, os espelhos dos olhos revelam As definitivas cicatrizes que se exibem vaidosas Ninguém se acredita nessas vis imagens das idades As que nos mostra a física dos detalhes Quem sou? Essas rugas na carne, esses grisalhos? Ou o menino escondido ao fundo do porão desse navio, clandestino? É outono, Maíra! Só isso! Essas marcas que nos chegam de tanto nos ferirmos São apenas as cascas das árvores que nos plantamos Essas cascas ásperas que nos protegem a alma

Apagar as marcas não podemos Mas outros verões virão, primaveras Após o frio dos infernos Afastemos as moscas que pousam, buscam fazer ninho E tanto quanto os teus duendes, transformemos as rugas em linhas da vida É outono, apenas outono Juntemo-nos as peles nuas Que a fria estação já espreita a próxima esquina Mas ela cultiva suas próprias plantas de liberdade e independência Não quer flores de estufa, ganhar o mundo é o que ela quer Enfrentar as selvas desse mundo que fere e premia Realiza todos os sonhos, mesmo os pesadelos de queda A verdade é que soprei minha própria liberdade aos seus ouvidos atentos E agora, que sabe o gosto das frutas silvestres Ela é corpo e alma entregues à sua própria causa de alargar o ego E encerra o amor em torre medieval Faz de mim um máscara de ferro, algo assim Diz que um dia serei o rei, um dia, o fêmino reino consolidado Uma águia alça vôo para o longínquo Eu apenas assisto, passarinho campesino Que suas asas se façam um traço no céu mais alto Assisti-la fazer as malas da raça dói menos, é verdade Anestesia os nervos das reações No entanto, sei que precisa cumprir a própria lenda pessoal Esse novo ópio de um povo nascido castrado, desnatura mater Liberto à força das másculas máquinas assexuadas Antes que os anos aquarianos iniciem o novo périplo das constâncias Vai, Maíra! Ó, fêminas pasárgadas! Acolhei minha menina! Que a espécie avança seus próprios sacerdócios

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A vida torna-se estéril quando nos arrancamos as raízes da terra Quando fazemos da matéria mero alimento das fornalhas da alma Que a carne é sagrada e se agita partícipe das refregas do vasto universo Quando nos tornamos tão imunes quanto as sombras, meros reflexos Da vida que arde solta à volta Sem que sequer ao tato seja possível Mas vida não é nada sem que os sentidos A força das indiferenças todas é a maior fraqueza Pobre ser inatingível, o coração fechado às amarguras Sem que o sofrimento, sem que as alegrias Nem os instintos, amortecidos, e são eles a maior vida Se os banquetes são sem graça sem os talheres de prata, os cristais e o frisson da festa Que se dirá sem que haja carne? Deitar-se com as mais belas mulheres, qual vantagem? Se em nenhuma delas se goza as divergências dos sexos na carne, na alma Mesmo o vinho da melhor safra, sem Baco É desprovido dos bons motivos a se esvaziar a garrafa Caminho pelo frio das pedras sempre ao meio das vontades Soterradas como antigas cidades cobertas de cinza e lava Sem que as gargalhadas das tavernas O cobertor-de-orelhas que se tem em casa As disputas comezinhas, as brigas por dá cá uma palha

Vida cortada ao meio, vida pela metade Tenho as mãos pálidas E o frio das brasas que um dia Ela soprou-me aos lábios Terra iluminada aos meus fogos de artifícios Acesos por braços e pernas e mãos cálidas A fazer da carne adentrando a carne o jubileu das almas E congelo ao mero sopro das brisas outonais Já é inverno em minha alma Embora ao peito, mesmo sem causa Uma estrela germina e apenas aguarda A voz que as estradas de um coração distante Menestréis da Carne, nossas almas se perderam, assustadas (Se as peles nos davam tudo o que bastava!) Ao conhecer os corpos os suores todas as vontades Almas sequiosas por matéria amniótica, agora Que os laços desabam, desfazem-se os nós mais górdios dos modos Agora, talvez No etéreo espaço cósmico em que tudo se reencontra Em meio às nebulosas dos sonhos e pensamentos vivos Talvez agora Nossas almas dialoguem E se busquem as mãos na escuridão dos desejos mais secretos Numa união to-tao

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O tempo passa não passa. Também eu apenas um corpo Caminho sem o canto dos pássaros ou o encanto dos sábios Os livros, os discos, os quadros - tudo se cala Os amigos minguaram Pairo no éter dos relapsos Automáticos hábitos me bastam Sem que os ponteiros dos relógio me alertem para nada Somente as noites - que a noite acende ocultas falas Que me faço um mago Capaz de ver nos sonhos esotéricas trucagens Que me suga de volta aos raios Daquela que encontro nas vastas pastagens da imaginação Ela é tão pálida! Não me inquieto, também eu sou transparente Nossos modos vagos, desprovidos de átomos, até me agradam Somos velhos amigos trocando impressões de alma, confidências Aquietando os instintos básicos Compreendemos e aceitamos o essencial que afasta Fêmeas e machos Condenados ao exílio dos adversários, ambos vencidos Derrotados pelas fronteiras impalpáveis Dos estados mentais mais fortes que metais Essa impossibilidade das metades De fincar sua bandeira à outra parte

Conhecemos nossos limites, não há culpa nem lágrimas Nada atiça prosseguir na liça Inexorável empate Azeite e água ao blefe das androginias arquetípicas, fusões de alma, argh! Nunca fomos uma só carne, uma só alma Amputados aos inícios por deuses da crueldade Talvez os séculos futuros, quem sabe, nos construam os unos E a Espécie costure os pares Carne com carne, alma com alma Até lá Macho e Fêmea Deus nos criou A tarefa é nossa Almas gêmeas, bah! Esses narcisos idiotas a retocar a própria imagem nos espelhos dos egos

Os ventos sopram forte nesta madrugada cinza Arredam nossos tolos e presunçosos miasmas Ó outono! Ó sábia natura! Ó força infinita das alturas! Ó mistério das profundas! Qual maria é a maíra do meu amor futuro?

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Sei dela pelos sussurros à boca pequena Pelos olhares oblíquos, pelos sorrisos das hienas Os urubus que traçam círculos à minha janela Sei dela que seu tempo corre em linhas transversas Uma estrela sobe Arreda para o alto o corpo das carícias Meu próprio corpo se esvazia entre os lençóis Das fronhas se apaga o cheiro dos cabelos Mas resiste ainda em segredo o amor soterrado ao fundo dos riachos Ainda represados ao peito Sei dela que a alma se agita, que o corpo congela Mente que sublima, aproveita a energia divina Capricornianas serras que se cega em subir Sei que ouve sons de outros paraísos Que homens mais bonitos, por isso, por aquilo Só eu sei, porém, que aguarda ao fundo do peito o dia De me contar tudo com espantosa alegria (Um dia ainda vamos rir disso tudo, meu bem!) Jurando ter mantido limpa a saliva Prometida ao dia de envelhecermos juntos Sei, inda mais que ela mesma, das vezes que duvida Sei dela que as árvores agitam os galhos, se esticam aos ventos A abreviar os vazios Sei dos seus poréns, sei dos seus depois E ainda sei do seu talvez

Mas ninguém segura uma estrela que sobe Tentar prendê-la é queimar-sd ao rastro da luz que deixa Ao fogo das energias em combustão É tentar agarrar-se à cauda de um cometa É preciso (e é tudo o que ela realmente quer) Que a veja por inteiro, primeiro, brilhando na imensidão dos escuros Conhecer qual sua grandeza, quem é ela afinal entre tantas Saber seu nome de ambição É em vão que ainda tento apertar minhas próprias cravelhas Que desafino enquanto não me voltam os sons Ainda busco seu brilho na noite escura, essas certas noites Em que a alma vôa pelos firmamentos da antiga paixão Mas vago sem o exato timão, a vasculhar luz à vista Nesses oceanos de saudades que a noite desperta E que os dias logo adormecem E é assim que acontece nessa exata noite em que a lágrima acorda o sono Sobe, amada minha, sobe, seja esse meu último adeus Caminha tua estrela aos olhos dos que ainda precisam saber do amor E qual seu preço em dor

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Esses casais de enamorados que buscam os vãos das praças Esses obreiros iletrados, essas moçoilas já com as mãos em calo Sonhando com algo mais que vai nos beijos, além dos instintos Nessa valsa inaudível aos que simplesmente passam E acham que o amor é feito de brasas Os que em si mesmo atiçam ao fogo das vontades Ah! Esses que simplesmente passam e quando um olho flagra um gesto mais ousado Esses que pensam que devassam a intimidade das almas Esses, descuidados das rosas e dos pássaros que enfeitam os jardins dos que se amam Se ao menos se perguntassem quando o último laço mais que a carne Talvez pudéssemos, Maíra, ousar tentar de novo ser feliz Melhor deixar assim, esperar o momento das almas prometéicas Que tal contrária sina não apaga, ainda mais revela, a parceria Saber que tudo o que se passou, passou para a essência plena da vida Como Penélope ao desmanchar os dias só apagava as formas vazias E o templo que pela fé erguia era o sopro das eternas liças Também eu penelópo-me a esvaziar o cálice amargo das lembranças Mesmo as licorosas noites, mesmo o graal dos dissabores Dia a dia bebo dessas dores, e essa saudade que não me deixa Abdicar das garrafas carregadas de mensagens ao éter Talvez pudesse despejá-las ao vasto mar dessas mulheres Que ao corpo apetecem, esses lábios que pedem Os beijos que guardo trancados, esses, os beijos da alma Como se fôsse isto possível

Também ela, eu sei, tanto que eu também Nos damos à carne solta e prazerosa aos inversos da alma Dessa fome que não se sacia Dessa sede que não se basta

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Mas o paraíso que me abriu Maíra é carne e alma Todas as possibilidades estranhas que a carne clama Sem que a alma se macule com pecados Nem mesmo os delírios mais dionisíacos avançariam tanto Nessas delícias que muitas vidas sonhadas e vividas As carnes entrelaçadas, as almas alongadas em tantos seres plenos Tantas possibilidades de felicidade Que o fim de cada taça era o início das garrafas E que Deus guarde essa morada em sua casa! Mesmo agora, ao sózinho dos meus vinhos Quando os frios se convidam entre as frestas Minha alma se aquece e a carne se toma de súbita fornalha Em que forjo aos futuros minha espada Espalhando dessas brasas campo infértil Aos domingos, deliro, como quando hoje, pela manhã, soube do arco-íris Tinha toda a cor dos outonos, eu e os mil sóis do portal norte Ela era ao sul uma dádiva, e banhava-se a nudez do corpo e da alma E era meu seu portal de entrada Quando nos juntamos e as lágrimas de Íris Adentramos o templo ao paraíso

Mas o Amor não foi feito para pensarmos nele, não é Pessoa? ( - Mas para sentirmos e estarmos de acordo... (Pensar é estar doente do coração (Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... (Se falo de maíra não é porque saiba exato quem ela é, (Mas porque a amo, e amo-a por isso, (Porque quem ama nunca sabe o que ama (Nem sabe por que ama, nem o que é amar...) Outono, ó outono que nos ensina a jogar fora as peles estéries! E reter na medula a descoberta da própria essência Abrir mão dessas armadilhas que nos desviam da verdadeira vida Para só manter acesa a chama interior que move a Terra

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O outono chega ao ápice dos meus frágeis sóis Movimento-me ao tempo de Jó e mais os Reis Tiro o pó da alma que resta às estantes de livros Assobio os sons que os discos Paro de sofrer, sem que isso seja ainda mais que o sofrimento Dou-me a comprar gravatas, freqüentar pessoas E às mulheres sou ainda as antigas cantigas de bem-dizer Com novos repertórios Estico-me em gulas à direita e à esquerda Sem que seja tanto o pasto ou a sobremesa A vida me ensina, sou de frágil sabedoria Mesmo as comezinhas

Tenho as minhas verdades, mas Se querem mentiras também as dato Saber com quantos paus se faz uma jangada é pouco ou nada Saber lançar-se ao mar corpo e alma nessa balsa... Sou tal aquele poema que fala do espelho olhando na cara Nem santo nem canalha, humano Rosto de quem erra e falha, mas que tem lá os seus dias de glória Vejo alegria fingindo que finge que finge que é Vejo tristeza fingindo que finge que finge que é Mas nenhum espelho verá minha face sem que o cheiro de maíra Sem que os olhos de Maíra Mesmo que a distância alargue em oceanos Mesmo que as galáxias, os escuros e as cores E esta noite, particularmente esta noite Em que sinto tanta falta dela E a voz de uma Lavelle canta Forget the few

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Ela bebe o whisky dos bem-sucedidos tal o hidromel dos olimpos Solta suas vozes íntimas aos ouvidos mais comuns Se enche dos sóis da ribalta Se espalha entre as próprias cifras e jorra feito uma fontana de Trevi Depura-se, reduz-se ao melhor dos sucos de frutas Oh! Maíra! Quanto de bagaço restará para mim? Nem dizem as fotos, nem os sorrisos, nem As Novas Cartas Portuguesas

Apenas espero as esferas que ouço sem que o roçar dos sinos Entre os morcegos e os bichos das noites em que ainda me escondo Mas, em permanente estado de poesia eu vivo Caminho feito um cristo, em seu melhor momento Quando não havia ainda milagre nem cruz A mim me basta essa maíra das cavernas do meu coração Que me queima as veias e me isola das tentações da alma escura Que me guarda castiço de tanto que só a ela eu amo Em permanente estado de poesia eu sigo Soubessem, ousassem saber do tanto que nesse pouco digo Na batuta das orquestras de cordas se faz o outono dos anos A compreender com todos os sentidos o esticar dos focinhos O cérebro, este argonauta, aponta a direção do sol Mas a alma prefere aconchegar-se à escuridão Seu rosto se multiplica em fotos E conheço a pouca verdade das imagens Olhos que tanto vêem, olhos que tanto escondem dos demais sentidos Fotos sem tato, sem cheiro Só por isso sou ligeiro em atracar-me aos sonhos verdadeiros As fotos não datam tatos, e eu ainda agarro-me ao seu velho travesseiro Outossolente, sou senhor do entendimento da própria fragilidade Inda mais frágil quando me forço forte Somos mesmo todos frágeis, fêmeas e machos Corpos de cargas ao peso das raças Raças em permanente estado de extinção Raças sobrevivendo de superação e aglutinação Alimentando-se da carne e da alma dos que se vão Somos novos peixes e exploramos os oceanos Somos novos pássaros, voamos Somos leões, micos e lagartos Somos boi no pasto, somos gatos E cães, farejando

Tudo que fazemos é apropriarmo-nos uns dos outros, antropofágicos Exatamente como os canibais faziam aos guerreiros vencidos Sempre forja de uma nova espécie, tentáculos da criação Enfim, na fragilidade das esperas, espero Ao menos sei, outossolente, que a alma nunca espera em vão

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Ah! Esta voz amada ao telefone como guizos Ao pescoço de uma gata entre almofadas A ronronar carinhos e cios New York, new york, ela canta, uma Liza Minelli A reclamar o périplo dos sentidos Voar, voar até o umbigo do mundo Onde a felicidade de todos os contos de fadas Nova Roma! Nova Constantinopla! E alçaremos o vôo largo das águias através do Atlântico Tapetes mágicos a fazer do mundo a nossa casa E If...és capaz de dar segundo por segundo ao minuto fatal todo valor e brilho Decidir, com o coração frio Se há Deusa por baixo dessas cinzas Que o amor, acostumado aos noturnos delírios Possa vir à tona das luzes feéricas dos avisos e das telas da mente eufórica Assim como uma rosa púrpura do cairo Para ser o lúdico eterno do resto das nossas vidas

Com a certeza do goleiro que se coloca para o pênalty E é ela quem bota a bola na marca Quem treme? Quem tem A Fortuna sob as traves? Com a certeza que move os atos impensados das adolescências Um gigante de aço e asas desliza novos sonhos para Maíra Guardar que ela volta, ou Deixar que fique bailando em sonhos sua alma na memória vasta Eternamente amando o amor das esperas Numa felicidade que se conquista ao contrário das físicas Desses brilhos feitos ao solitário Espírito, embora a carne Mesmo a alma ainda implore navegar por essas peles

Lá fora tudo é céu e um sol feito noviço Brinca uma lua tardia de masculina sina Espalhando rubores dessas cores com que os anjos e seus arco-íris No espelho os pêlos grisalhos apontam na direção dos fracassos Embora o corpo se aprume rijo, a confidenciar que me desembaraço Mas entre a mulher que se tem em sonhos, e A mulher com quem se arrisca a vida, inda mais Maíra Vai uma distância que não se mede aos gritos Aceitar, enfim, ser sua mera sombra Ainda mais Maíra? Que sorriria irônica a cada vez que a coleira me apertasse o colarinho E toda aquela vida social e coisas que mais E todas aquelas walkírias Ainda mais Maíra? Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto...

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Aos outonos flagramos a ira dos frutos abortados por tardios Lançando-se coléricos contra o piso À mais leve brisa dos motivos que os cérebros abertos às energias Algo impulsiona, no entanto, levar adiante essa pedra ao peito Atravessar becos boêmios ao escuro dos próprios olhos animalescos Enquanto Carrega a carne um São Sebastião vestido de flechas e o sangue palpita e escorre, escorrega por entre as névoas de um coração sacralizado pelos espinhos da humana incompreensão quanto ao do the right thing

A verdade é que ainda nos ensinam antigas lições Apontam o nó górdio, os ossos ao fundo dos abismos O precário equilíbrio e o sempre Sempre o do the right thing por trás de tudo isso, inclusive the left thing Fadados a ser, macho e fêmea Inimigos íntimos

Mas volta e meia o gargalhar das bestas sacode as consciências As nossas próprias bestas Cavalgadas pelos anjos a serviço de Deus

Continuamos antigos Giramos ao máximo os botões da antiguidade Sugamos ao máximo a seiva da renascença Perplexos ao máximo com Rousseau, Marx e Freud, agora Somos antigos com velocidade total Trocando os trajes cerimoniais Cocares por roupas espaciais Tacapes e espadas por mais Sorrateiro, o amor prossegue a escalada da carne Sempre tão carne A bulir com a alma o êxtase dos seus deuses imortais Isso! Isso! Cada qual escolha seu lado Nos encontraremos todos na reta final, portal dos antigos quanto nós, esses mortos que governam Talvez a nossa rebeldia cada vez mais jovem, velozes contra o Senhor Tempo, talvez vençamos Se vencermos, ah!, se vencermos Afinal, talvez possamos nos amar em paz Abraçarmo-nos com ambos os braços Acarinhar-nos com ambas as mãos Beijarmo-nos com ambos os lábios Atracar sem pejo veleiro e cais Maíras tremem de medo quando expostas aos sóis das razões Íntimas dos tempos escorreitos Íntimas dos sonhos mais tolos Guardiãs das difusas coisas Rainhas das noites Sabendo dos dias apenas as raras confidências Que os sóis segredaram em seus lençóis Enquanto eu, cá de onde estou Ao início de todos os horizontes Onde uma nova luz ainda esconde seu verdadeiro nome Eu nado náufrago ao sabor da escuridão Sem saber por quanto tempo Sem saber por quanto preço

Ah! Mas se Maíra... ao colocar um travesseiro ou ao largar sua bolsa às pressas E, ao voltar em direção à janela, dissesse: “Não é absolutamente isso, Não é isso que quis dizer, em absoluto.” Até um Mr. J. Alfred Prufrock me daria razão 111

Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Maíra Raquel, me deu Maíra Lia Que os tijolos vermelhos dessas muralhas da China Mais os azuis botões dessa camisa De que a Terra gira, gira e não se livra Na escuridão das noites em que me exila Onde lágrimas são estrelas, luz divina Marcam-se no pasto os bois de cada estância Assim os homens se marcam a cada canga Salomés inda lhes servem nas bandejas Cabeças de Eros, os braços, as asas e os pés

Aparam pontas de estrelas fossem garras Que não feitas de luz E os arco-íris que cedo se desmancham Se desmancham porque nós nunca aprendemos Que a alma não tem cor Mas, se amar no escuro o escuro amor preciso for E um sol que a noite esconde e a lua estúpida Nem por isso a alma deixa de crescer Decerto, envelheço - perco definitivamente o senso! Para estar assim a dizer coisas tais que estas Começo a servir outros sete anos, Maíra Dizendo: - Mais serviria, se não fora Pera tão longo amor tão curta a vida!

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Espeto espécies marinhas de bom paladar O garçom serve um liebfraumilch Flagro um novo olhar Busco os lábios, primeiro - o colo, os seios Distinguir as curvas da carne e as da alma Impregnada dos pequenos gestos de mulher faminta Uma súbita energia me incha o músculo Um querer sem pensar Do que mais importa

Há uma elegância no achegar-se O cardápio surge à meia altura O sorriso discreto e confiante não é para mim É para o mundo, que lhe louva os pedidos É preciso ter as cartas certas para estas ocasiões De preferência um baralho novo E apostar O licor é néctar do tempo Também o café Há mais que o mínimo necessário De mistério A ponta de mapa surge ao portal das últimas horas Os tesouros de ali-babá A carta tem nome de infância Junta as pontas em ímã Ela sabe o que quer, também quero Um querer sem pensar Do que mais importa Para além e acima dos trópicos Maíra sorri Sabendo de mim Um querer sem pensar Do que mais importa Essa é do tipo que usa meias de seda certas Cinta-liga Carnes muito brancas, perfume, maciez Sedas de Salomão É lento o balançar do cais de atracação Suave é a tarde, azul é o mar Há uma alegria incontida em chegar Uma penélope larga agulhas e linhas no sofá Dá a ulisses seus direitos Sábia quanto o tempo Um querer sem pensar Do que mais importa

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Ao telefone a voz de Maíra soa como aquela melodia: -Vem! Me-u me-ni-no va-di-o! Vem! Sem men-tir pra vo-cê

A hora se inclina e toca meus cucos um claro bater metálico Os sentidos me tremem. Sinto que posso... E colho o dia plástico Nada estava acabado antes de eu ver: todo o devir aguardando em quietude. Maduros meus olhares: a cada um , como uma noiva , chega a coisa ansiada. Nada é pequeno para mim: gosto de tudo e tudo eu pinto sobre ouro com grandeza e bem alto o levanto - sem saber de quem vai a alma libertar. Explico o súbito parentesco com Rilke: Lá, onde Maíra espera, luz ao fim do túnel Lá é já primavera Meus passos de outono Descanso meu próprio livro de horas Também sou peregrino das calmarias Meus heróis morreram cedo, mitos, arquétipos Restou São Eros E a virgem maíra, é claro!

Tudo que penso sinto vivo leio um único motivo Uma única direção tem o sol E essas luas que vão e voltam, trocando a posição do mundo Há mais os reis e os tiranos mais comezinhos Esses dinheiros... Também em nós os gatos se espreguiçam E os lobos sonsos Afora as madrugadas, ainda muito largas Talvez quando os orvalhos chegarem às flores pálidas... Ainda há mais: os morcegos, esses amigos Cujo único atributo é esvoejar comigo em círculos E as corujas que no escuro beijo aos repentes da alma Não! Ainda não! Lá é já primavera, ainda Talvez quando se outonar o olhar das milhas Mas terá que ser antes das damas todas cheirarem Essas palomas das noites invernais Quem sabe, quem sabe mesmo, este não faz a hora Espera que dela a hora de lhe pertencer Ainda restam discussões com Deus Manchas d’alma e as marcas como um mapa Das barbas diárias ao espelho, sem narcisos Nunca mais que o necessário ao balé dos caranguejos Era uma fonte tão límpida e clara, no entanto As águas que banhavam a minha Maíra Não sei de onde, se ouviam Sons de uma lira antiga e clássica Para que eu ficasse assim ao sabor de uma brisa

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Ah! E tem este meu tugúrio, meu casulo Que me alimenta em tudo, ou quase tudo A permanecer contemporâneamente vivo É verdade, sim, é verdade que a tal morte me espreita, os olhos frios Piscando lentos como os carros que sinalizam dobrar as esquinas e seguem em frente Como em All that jazz, ela é maravilhosamente feminina De tanto, que às vezes quero alcançá-la Especialmente nas manhãzinhas chuvosas Tudo nela é leve e doce afrodisíaco Olhos de jade entre ametistas Lábios raros rubis de rainha A pele envolta em véus tão finos Que palpitam os segredos mais recônditos Num convite insano Bye-bye, love; bye-bye happyy...ness, bye-bye tender...ness La-lá, lari-lalá la-ri! A morte e a morte de Quincas Berro D’água A morte da Rosa do Gabriel Garcia Márquez A morte do tupi do nosso Gonçalves Esse I-juca-pirama que não é mais aqui Morrerei preso a este casulo escuro? Não! Voar é preciso, romper estas paredes de aço Forçar as grades da solidão bizarra, forçar soltar as garras Segurança é ausência de vida Liberdade para as borboletas

Além-mar está Maíra Maria e suas chávenas de chá, suas pequenas manias Suas ambições de Rainha de Sabá, seus truques, suas mentiras Sempiternas verdades femininas E a velha perplexidade que ainda mais me faz amar E este bom vinho, feito à própria mão de pater liber Boa noite, Bizet Bom dia, Ravel Laaa... Lari-lari...lari-la-lá!... Larilá...

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Minha abadia, minhas iluminuras Em cada homem seu próprio tempo desliza pelas encostas Escorre à revelia das cidades Há horários, naturalmente Corpos obedientes trafegam nos metrôs e outros meios de se fazer presente Todos os circos, e os pães de cristo Os bolsos vazios dos piões de menino E se nas aquarelas esgotam-se as tintas A cada qual a sua cor

Crescem em mim asas de condor A alma é um arqueiro zen O alvo é a própria carne Arco e seta, agulha e linha a costurar aflito semente e trigo e ainda Soprar o joio Transcender tudo que as pedras do caminho Deixar fluir o sangue mastigado Dar as costas a vontades submersas Afinal, a vida é mesmo muito curta para tanto retrato Não se pode comer o bolo e guardar o bolo (Voltar as antenas para o spacecake de onde uma marilyn maíra nua) Não se pode o melhor dos dois mundos (Deixar que qualquer face da moeda) Minha cara, ou (Sua Coroa, seu Cetro, suas Tiaras...) Outovalências, aceitar o grisalho que transita em cada volta Mas pintar os cabelos da vida sem tanta força Aprender a olhar para o outro lado, distrair-se das comezinhas liças Rir dessas batalhas, divertir-se Sobretudo, fingir que se acredita O sol é poente, e até os vermelhos se disfarçam Misturar rosáceos com crustáceos Muquecas de siri mole (sempre à capixaba) Do cabernet ao merlot, um savignon às vêzes Tudo o que ela sempre quis Que um dia foi Sobretudo, jamais estremecer (nem o mais leve...) A longa lança cravada ao peito dos dragões a cada noite Talvez, quem poderá dizer?, talvez Nossas cadeiras de balanço se curvem para trás Ao mesmo jeito das vêzes que caminharmos à frente Outocientes, nós E essa moeda que não cai

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...ou, não... Abrir mão dessas peles quais cerdas de um violão do Tom Da maciez dos lençóis ao forno das pernas dessas centopéias de verão Abrir mão do mundo, vasto mundo, talvez chamar-se raimundo Passar a contar as horas do lado de fora das portas Usar coleira e cabresto, carregar papéis em pastas de couro Acomodar os fundilhos no sofá, ligar a televisão da sala ...ou, não... Talvez mandar tudo às favas É verdade que sou um homem sensível ao seu anaís-anaís Um Henry Miller sobe ao telhado Um Hemingway limpa a espingarda O beco dos machos se chama solidão ...ou, não... As deliciosas flores do mal até que as pétalas Ser ou não ser já é questão de somenos, quem se importa? EXISTÊNCIA é o verdadeiro dilema deste fin de siècle Das batatas fritas às viagens na primeira classe Marilyn maíra nua e seus spacecakes Sou um homem feito de talvezes E o tempo escoa pelas torneiras abertas o sangue das baratas tontas

...ou, não... Em nada adianta abrir as janelas para os dias cinzas E este sol que nem ilumina Amanhã serão os mesmos pássaros Os mesmos ratos os mesmos gatos Os mesmíssimos cães que ladram A mesma gente andará em círculos A TV quebrará, talvez compremos outra Talvez consertemos A mesma máquina de lavar terá outros botões As mesmas roupas serão mais longas, ou mais curtas As mangueiras darão mangas; as pitangueiras, pitangas Tanto abacateiros quanto cajueiros minguarão em terrenos alagados Talvez Maíra nunca mais mude o corte de cabelo Talvez nunca mais pendure máscaras trás as portas Talvez troque travessas por laços e guizos ...ou, não...

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Guardar o coração de aço e navegar Aceitar que as águas mais leves que o ar Submergir e voltar, ím par Submergir e voltar, ím par Submergir e voltar, ím par (We all live in a yellow submarine...glub, glub, glub) Qualquer nau é mais leve que a célula mater Alargar a alma da carne, ím par Cantar e acreditar Aquáá Aquáá Quan-do vo Fêz-se noi

ri ri

ús...! ús...!

cê foi em te’m meu vi

bo ver

ra

When the night! has come! And the land is dark And the moon is the ónly light we’ll see No I won’t! No I won’t Just as long Stand by me Stand by me

be afraid! be afraid as you stand

Benditos sejam vós, jograis, trovadores Que não nos deixam mentir aos prórprios piões

Caminho pela noite e as estrelas companheiras Dessas luzes que não queimam Sempre acendem o desejo de buscar no mais longínquo As explicações do que somos, de onde viemos, para onde vamos Com elas me faço um Gauguin interestelar A pintar e amar as taitianas de al-di-lá Noutros primitivos paraísos Les hommes naturellement bons Muitas luas cheias a sorrir e garantir que basta amar Sim! Irei buscar maíras onde houver, no mais mínimo dos átomos Na plenitude do espaço azul escuro desses portículos de luz Satisfazer-lhes as mil vontades Ser feliz Ah! Mas o que estou mesmo a dizer?! Caminho pela noite e as estrelas são meras alegorias E o vasto vestido de noiva de Maíra E esta lua cheia, alma de Maíra a brilhar de alegria Só porque eu, cavaleiro Prometo que sim, serei inteiro

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Na mesma calçada a catcha me pára, convida-me às ilhas Que nenhum mapa explica E a voz de sereia, hidromel, maresia, e uma leve brisa Sorrindo que as filhas da noite amiga São parte do tudo que vai com o Uno Caminha junto, desliza E as luzes agora coloridas A mostrar que a terra em que ela habita Abre as promessas mais profícuas Tem de tudo o que se precisa Lâmpadas brancas, movimento Metais, velocidade, belezas gregas Músicas para meus ouvidos, melodias Sacras e profanas, sagradas famílias As que se formam por ousadia Eletronic games, tantas realidades How to make more money Ela desliza, rainha Das coisas comezinhas, exibe-se mais nua Que a serpente quando mostra a língua Serpenteia os quadris, me toca as peles Dona das macias ancas de madame Butterfly

Junta-se uma outra, inda mais amiga É tudo um grande e belo jogo, afirma-se Mãe de todos os paganismos, tão novinha ainda Não é por dinheiro, precisa O brilho aceso nas retinas Ah! Se todos buscassem apenas ser feliz Quanto eu lhe daria, de zero a dez E na próxima esquina Há mais Uma terceira onda de flautins, harpas doces Nem de longe o rufar dos tambores Apenas os motores, os sinais verdes E as vitrines Paus d’água libertam jasmins, damas da noite Mariposas travessas pelos botequins Há calma e uma friagem arde Aos poucos se aquecem olhos, avermelham Já são brasas, e o corpo Segue um rito rotineiro, e esses traseiros Realmente sabem tudo sobre ser mortal Arfam os seios, apontam contra o peito estreito Já fui remador, hoje sou veleiro Esta gazela, tem pescoço e veia Minhas garras, a cava do vestido, e nada mais Por baixo, só a pele em seda Gritando: - me crava, se é pouco Tenho mais, muito mais Que precisa um lobo Para ser feliz Na arena um touro sangra e expira a alma pelo nariz Pela boca escancarada, pelos furos no couro, tremulam flâmulas e espadins

Caminho pela noite e uma estrela companheira E uma lua branca ainda sorri pra mim No horizonte o sol se ensaia e sangra Meu corpo se deita entre as folhas secas De um outono que já se vai ao fim

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A mosca presa à vidraça zumbe agoniada No rádio velhas canções já não dizem nada Um súbito calor, raios como flechas O cérebro cheio de frestas O coração é chumbo, assim o mundo Os olhos não abrem, não fecham Tudo é mudo de sentido Nenhuma roupa combina, não há cor Que assim me queira Os músculos são mornos, dentes que não mordem Nem sorriem Há um vago vácuo na garganta E a boca, fronteiriça, não encontra a língua Assim os braços, assim as pernas Assim as mãos se viram as caras Mesmo a tarde nem é dia Ou noite ainda

Sei que ninguém tocará a campanhia Não há portas, só janela e nuvenzinhas Nada me tocará os nervos, tirim-tirins, telefonias Na geladeira as prateleiras são carentes de alegrias Resta o vinho E uma taça comprada logo ali naquela esquina Restam as sombras Que se esgueiram em fotos cinzas Mesmo os livros, esses amigos mais antigos Trancam suas páginas, e as palavras Nem assombram nem convidam Deus se cala E a natura mãe cuida da própria casa Quererão, talvez, dizer Há um tempo de plantar, um tempo de colher E esse tempo de esperar sem mais porquês

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Duas colheres - o pó de café - e meio litro de leite A louça lavada, antes de sair O paletó, a gravata Um tanto mal passada, a camisa E a máquina rosna uma roupa suja Papéis seguem seu rito mesquinho Sempre a mesma paga em dinheiro Lá se foram os sonhos de guerreiro, meninos acabam por desistir

Capulletos sorriem, e Montechios Agora dividem o reino Foram-se os Guevaras, os Bolívares, os Rondons O amor troca de nome, relação Essa insustentável leveza do ser Há um novo Shopping Multiplicam-se os canais de TV Somos todos magos, magros de fé Alguns esperam milagres lotéricos Outros aguardam Ets Satélites traçam estradas e a voz viaja Pelos quatro confins Sempre panes et circenses Nada mais há que pensar Somos átomos, moléculas, DNAs Qualquer problema chama-se o técnico (ou seja você o técnico) Vivem aos farenheits, os que decoram livros Admirável mundo novo, admirável gado novo Ingressos para a Era de Aquário a trinta centavos Há cada vez mais Servos do Senhor Jesus Cristo É Nosso Rei Sabemos todos nosso lugar na fila To do the right thing, ...ou não! Tanto faz trocar de mão Mudam as moscas, mas as marcas das patas ainda causam confusão Esvazia-se a taça amarga do século Ao doce das últimas gotas de sucaril A dois mil chegarás, de três mil não passarás Esotéricos profetas já começam a anunciar A velhice inicia aos noventa Tem nervos de aço o pênis plástico E muito ouro sob as faces da mulher Fecho o pensamento e adentro o lar estreito É Maíra quem me faz só Duas colheres, o pó de café E meio litro de leite

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Um cara se despe de discos e livros e filmes Reduz roupas ao mínimo As noites são feitas de sonos E lá um ou outro programa de TV Antes de deitar, toma um copo de vinho Reza, antes de dormir As manhãs são sempre horas certas O trabalho é algo como um hábito Nenhuma preocupação com as guerras Quando almoça, não janta; quando janta, não almoça Barbeia-se regularmente, mantem o corte do cabelo E as comezinhas contas são pagas em dia Tal que lhe queriam, carrega uma pastinha Mero accessório, todavia O terno é sempre cinza; branca, a camisa Vez ou outra vai todo azul marinho Nunca se queixa, nem alguém lhe sopra confidências Lá uma ou outra fêmea lhe espreita, logo desiste Sem que o cérebro seja mais que um fio frio Guarda uma fotografia na gaveta de cima Que nem lhe umedece a retina Esse cara, Maíra, anda a me rondar a alma E me estende em gestos falsos os seus braços de assassino (Mas acho que já te falei sobre isso em minha última carta)

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Esta me jorra luzes amarelas ao solar de entrada Mil fogueiras se acendem nesta noite Dançam os ciganos. Atacam em fúria os violinos E uma lua veste igual maíra fosse minha O vinho roça as línguas e os beijos têm gosto de pouco A noite avança e a brisa brinca de bolinar as velas De um candelabro guardado para essas épocas Em que a mulher quer au grand complête Beijamo-nos mais e mais e mais Lambuzamo-nos ao azeite dos camarões Deslizamo-nos as mãos, aveludamo-nos os pés Os olhos são faíscas das primeiras pedras Almas doces nós somos, o coração em mel Licorosos fluidos escorrem em nossos corpos Somos imortais, somos eternos Sem que junos ou iagos se apercebam Engrenamos nossas carnes como um carro zero Tudo se encaixa, cada palavra é arauto de uma nova risada Da alma, que se banha em fonte rara Da carne E como é bom o marulhar de logo após o amor! As nossas mãos entrelaçadas respiram iguais A intimidade dos corpos nus é quase nada A intimidade da alma aconchegada E esse espelho em que vejo aos olhos dela que sou mais E pensar que tudo em volta segue sua rotineira sina Que amanhã, mesmo nós, voltamos a girar nossos ponteiros Em círculos de um mesmo eixo Mas enfim tudo tem lá o seu sentido

Por ora, a noite avança e nós Somos o sal da terra A não deixar perder de vista Que há paraíso sob as cinzas das almas grisalhas Novamente o sol da manhã encontra a cama desfeita Novamente não sei se sonhei Ou se essas hienas que agora mostram os dentes têm mesmo razão

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O que dizem essas pessoas que sussurram sem que as mãos acompanhem os sentidos? E esses sorrisos que desdenham o que é divino? Que alívio exibem aos repentes dos amores que se findam ao arder das paixões mais impossíveis E, no entanto, eu vos afirmo: Mais fácil um camelo passar o fundo de uma agulha que qualquer deles saber do paraíso Arrumo as malas e parto em direção ao norte magnético da terra Onde aponta a ponta da bússola do meu coração Asas metálicas, eu vou Sei o que me espera

Rasgar as leis que nos impedem ser feliz É dever maior que obedecê-las Sigo as estrelas, elas não mentem Deixo que brilhem na escuridão da alma essas três maíras E solto um sol preso na garganta de um bem-te-vi que ama Nesse amanhecer com Vinícius e Ary Bem Bem

te te

ví! ví!

Lá vem raiando a madrugada, acorda!, que lindo! Bem Bem

te te

ví! ví!

O véu da nuvens que esvoaçam, e passam Parecem nos dizer que não existe beleza maior Do que o amanhecer Bem Bem

te te

ví! ví!

E no entanto maior que a do céu, maior que a do mar Maior que toda a natureza é a beleza que tem a mulher namorada Bem Bem

te te

ví! ví!

São tantos os seus encantos Que para os comparar Nem mesmo a beleza que têm as auroras do mar Bem Bem

te te

ví! ví!

E a alma de maíra em meio à passarinhada em algazarra Responde: Ví!... Ví!... Ví!... Vem! Vem! Vem............meu-me-ni-no-vadi...ô...

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Live in New York city is like a film Adentrar as telas de Scarlets e Pato Donalds Ela é minha rosa púrpura do Cairo A realidade não é o avesso do sonho A realidade é sonho servido em gotas, segundo as bulas todas Das nossas almas tontas Liberty Statue - por um espirro te prendem, mas Lêem teus direitos Com a mão esquerda limpa-se o traseiro Walk!, don’t walk!, o resto é de somenos, but Cem anos de império - disse o cowboy presidente Versus os Cem Anos de Solidão dos Souths And bright for all O mundo que vale O resto vive de resto nos restos, pindamonhagabas, periferias Ok! Kiss my ass, focking you, sheet for all Que lá vou eu, like a rolling stone Conversar em som original Adeus, dublagens! Oh! Beatiful Maíra of my soul

Conversar em som digital Adeus, amada língua!, deixo-te a lamber tuas feridas Ah! Lúcifer bright in the sky, and God coça a cabeça Oh! Beatiful Maíra of my soul Pacem in terra, guerra nas estrêlas God save the Queen, and the Brooklin All the rhythms In english, please (Eu-vou-para-Nova York... eu vou! Eu-vou-procurar-Maíra... eu vou! Oh! Oh! Oh! Beatiful Maíra ... of my soul!) The sun is ashamed, guy The sun is ashamed Wake up, guy - please It’s just a dreaminess - but Come together - please...please...me

125 Ela é uma gata, áspera Por sobre os telhados, os seus domínios Afirmando em tudo os seus motivos, e Embora os pêlos muito lisos, o dorso macio, e A vontade de apalpar aquelas carnes Tenho as mãos crispadas, e A expressão de um cão contendo o seu focinho Só porque é inequívoco Que ela se encontra nos cios, e eu Alma danada Hei de trair a minha raça

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É fim de outono e já me preparo para morrer (Qualquer dia é um bom dia para se morrer) Ser a síntese dos sonhos, a lágrima na beirada, pronta para cair Ao colo da mulher amada Antes fadada a ser sempre apenas mulher, carne ingrata Por mais que floresçessem girassóis nessas grinaldas Mas, agora (Ah! Deixa pra lá, nem se pode comer omelete sem quebrar os ovos) Vou em marcha apressada, terra magnética Atravesso atmosferas, quase sem ar Vou em marcha alegre, como para Aída foi Verdi Sem o trenzinho do Villa, o caipira Tonto como o grande Gomes, sem as vozes do Brasil Vou em direção a Vésper Sem que por isso Deus me reserve um alighieri Ora, direis - é pouco! Lograr do mundo a sua bela Aquela, que o amor da carne e a alma cármina Driblar Afrodite e sorrir o sorriso esperto de Eros Ora, direis - é pouco! Mas soubessem de Marte e seus berros Soubessem de uma Vênus nua ao leito Soubessem de Thorn e seu martelo E das idas e vindas desse arco Soubessem desse amor tudo quanto sei!

E no entanto ainda nos resta esse paraíso que Dante criou: Com peras douradas pende E cheia de rosas bravas A terra por sobre o lago. E nós, qual amados cisnes Ébrios de beijos Mergulhamos as nossas cabeças Na água santa e casta

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Chove uma chuva cinza E a janela é um retângulo pequeno para um mundo assim tão largo Vejo estreito Mas o estreito que eu vejo é tão mais largo Que o tolo pensamento em que me espalho Alargar esses quadrados, esticar os compassos Dessa régua carpinteira em tudo quanto faço Arquiteto que em maíra se resume a geometria Pouco importa se me perco no que falo Nessa gruta tudo busca o mais sagrado Dos humanos é o maior desiderato, e Deus (que é pai) Sempre cuida muito bem do filho amado Mesmo que me atirem as tais pedras Me esmaguem as pérolas com seus escuros cascos Invistam contra mim os cornos e os galhos Que a vida de um guerreiro mais se mede em tais verdades Mesmo que ela disso pouco saiba, ou nada

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Maíra in the sky with diamonds Maíra, beatiful maíra of my soul Oh! Maíra! Quer sejam os rouxinóis, quer sejam as cotovias Apagaremos as fronteiras das noites com os dias Oh! Maíra, se queres, esse céu também me serve Sem que eu peça, me irás mostrando O que anseio saber, por tê-lo já visto Na luz em que confluem o ubi e o quando Maíra, ó maíra, o outono se finda e a alma Arde e tem pressa de adentrar o paraíso (Joga a chave, meu amor!) Maíra, ó maíra, beatiful maíra I’m going, I’m going to do todas essas rimas em you, fool, moon Juro que largarei, por tí, todas as minhas rimas em v-ão (Só permita uma única observação: Como são largas as asas deste avião!)

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Saber que essas guerras dos contrários que nos repudia São as mesmas guerras dos contrários que nos une No eterno devir da síntese do amor e da vida E não é assim com todos os que passam da guerra aos sacerdócios? Ainda penso, por vêzes, que os céus me abandonaram, mas No escuro brilha a face sem face de Deus E os Seus lábios sem lábios me sorriem: Ó homem de pouca fé... Amanhã o sol também se levanta

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It’s autumn The naked trees escape their arms to the infinite nothing Almost winter We wait for the snow as we waited our souls And we never, never, never saw the snow, our souls We open the bottle to celebrate it The endless of all And the red wine brings a kind of fire We are happy, and warm souls we are Suddenly, it begins to snow In Central Park

( É outono/ As árvores nuas escapam seus braços/ para o infinito nada/ Quase inverno/ Nós esperamos pela neve como esperamos pelas nossas almas/ E nós nunca, nunca, nunca vimos/ a neve, nossas almas/.Nós abrimos a garrafa para celebrar/ o sem fim de tudo/ E o rubro vinho traz uma espécie de fogo/ Nós somos felizes, e almas quentes nós somos./Súbito, começa a nevar/ No Central Park)

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