A VINHA E O VINHO NA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DAS ILHAS ALBERTO VIEIRA
O vinho é uma presença indelével no devir histórico da cristandade Ocidental e esta comunhão perfeita que não pode ser ignorada. O vinho acompanhou os primeiros cristãos nas catacumbas, expandiu-se com a Europa monástica e perseguiu a diáspora cristã além oceano. A dupla presença no acto litúrgico e alimentação traçou-lhe o caminho e o protagonismo. As ilhas atlânticas são exemplo disso. Mesmo em casos onde a cultura teria dificuldades em se adaptar, como foi o caso de Cabo Verde, os europeus fizeram aí chegar algumas cepas. Apenas na Madeira e nas Canárias a fama se igualou à dimensão comercial, pautando um animado movimento com os mercados americanos. Aliás, a concorrência entre estes dois vinhos foi feroz. Primeiro foi a disputa do mercado inglês a que se seguiu no século XVIII o norte-americano. No último a Madeira conseguiu usufruir de uma melhor posição mercê dos favorecimentos dos tratados e leis de navegação. Já nos Açores as condições endafoclimáticas retiraram-lhe valor em algumas das ilhas, exceptuando-se o caso das ilhas do Pico e Graciosa onde o produto se igualou ao madeirense e canariano. Em qualquer dos casos o mercado do vinho insular foi feito a pensar no mundo colonial, não obstante os seus apreciadores terem-se iniciado no velho continente e terem aí algum lugar de destaque. Recorde-se o caso do vinho da Madeira e Canárias que desde o século XV teve presença assídua nas mesas da aristocracia europeia e o verdelho do Pico que corria nos palácios do czares das Rússia. As ilhas identificam-se perante a História norte-americana por aquilo que lhes concede, isto é o vinho. A partir do século XVIII as ilhas -Açores, Canárias e Madeira - ao conhecidas pela documentação e historiografia como as ilhas do vinho1. Esta visão unitária vai ao encontro do papel comum e competitivo que o vinho lhes atribuiu no mercado americano. Note-se ainda que em alguns dos registos alfandegários norte-americanos do século XVIII o vinho da Madeira surge juntamente com o dos Açores2.
A HISTÓRIA DO VINHO Sem dúvida que no universo do vinho das ilhas aquele que mais se evidenciou foi o da Madeira. O luzidio rubinéctar que continua a correr nos cálices de cristal é, não só, a materialização da pujança económica presente, mas também, o testemunho de um passado histórico de glórias. Prende-o à ilha da Madeira uma tradição de mais de cinco séculos. Nele reflecte-se a época de resplendor e os momentos de crise. No esquecimento de todos fica, quase sempre, a parte amarga da labuta diária do colono no campo e nas adegas, o árduo trabalho das vindimas, os borracheiros no seu passo cadenciado — denunciado pelo eco dos seus cantares — por entre as encostas da ilha. Para recriar esta ambiência torna-se necessário agarrar os restos materiais e documentos e fazê-los reviver a labuta sazonal, ou antes, desbobinar o filme do quotidiano de luta que se esconde por entre a ferrugem, a traça e o pó. 1 . GUIMERÁ RAVINA, Agustin, "Las islas del vino (Madeira, Azores y Canarias) y la America inglesa durante el siglo XVIII", in Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989, pp.900-934. 2 . A. D. Francis, The Wine Trade, Edinburg, 1973, p.216; Ch. M.Andrews, The Colonial Period of american History, H. Haven, 1964, p.112
O Vinho Madeira, celebrado por poetas e apreciado por monarcas, príncipes, generais, exploradores e expedicionistas, perdeu nos últimos cem anos o seu mercado, situação que se procura alterar na actualidade. Isto resulta da conjuntura criada, entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX. A grande procura fez nascer da água e do fogo quantidades apreciáveis de vinho velho a que sucedeu o fastio em 1814. Mais tarde a natureza fez acabar com as cepas de boa qualidade, fazendo-as substituir pelo produtor directo que se manteve lado a lado com as castas europeias numa promiscuidade escandalosa. O presente anuncia o retorno ao passado e das castas tradicionais. O Vinho Madeira, desde tempos recuados, adquiriu fama no mundo colonial europeu, tornandose a bebida preferida do militar e aventureiro em terras da América ou da Ásia. Escolhido pela aristocracia colonial, o vinho manteve-se com lugar cativo no mercado londrino, europeu e colonial. O ilhéu desde o último quartel do século XVI fez mudar os canaviais por vinhedos, os quais alastraram a todas as terras cultivadas, devorando a floresta a sul e a norte. Nesta autêntica febre vitícola o madeirense esqueceu que devia semear cereais e plantar árvores de fruto. O vinho era a sua única fonte de sustento pois com ele adquiria-se o alimento necessário, trazido pelas embarcações americanas, ou a indumentária e manufacturas inglesas. Tudo isto era trocado por pipas de vinho. Estamos perante uma troca desigual de produtos que se afirmou como lesiva para o madeirense. Viveu a Madeira, desde o século XVII a princípios do XIX, embalada pela opulência derivada do comércio do vinho. Com tão avultados proventos, o madeirense deixou-se vencer pelo luxo exuberante do meio aristocrático londrino. O incola habituou-se à vida cortesã europeia, copiou os hábitos ingleses e, nas suas quintas rodeadas de sumptuosos vinhedos e jardins passou a copiá-los até ao mais ínfimo pormenor. A presença da vinha na Madeira como nas demais ilhas era uma inevitabilidade do mundo cristão. O ritual religioso fez do pão e do vinho os dois elementos substanciais da sua prática, fazendo-os símbolos da essência da vida humana e do seu Salvador. Por isso o vinho e o pão avançaram conjuntamente com a Cristandade, levados por monges e bispos. Tal realidade veio revolucionar os hábitos alimentares do ocidente cristão, a partir do séc. VII, estabelecendo o comer pão e beber vinho como o símbolo do sustento humano. Em meados do século XV, com o processo de ocupação e aproveitamento da ilha, é dada como certa a introdução de cepas vindas do reino e mais tarde as celebres do Mediterrâneo. João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrello, que receberam o domínio das capitanias do arquipélago, sob a direcção do monarca e do Infante D. Henrique, procederam ao desbravamento e ocupação do solo com diversas culturas trazidas do reino — o trigo, a vinha e a cana. Num lapso de tempo a paisagem da ilha transformou-se. Das escarpas brotaram as culturas e o denso arvoredo foi cortado para construir habitações e erguer latadas. Nas planuras ribeirinhas do oceano, onde havia local para varar um barco surgiu o Homem na sua fúria constante contra a natureza a traçar socalcos que fez decorar de dourados trigais e de verdejantes canaviais e vinhas. No Funchal do funcho fez resplandecer os campos de trigo entremeados, aqui e acolá, por canaviais e vinhedos. Em Câmara de Lobos, depois de afugentados os lobos marinhos, subiu encosta acima de picareta na mão traçando o rendilhado dos socalcos donde fez plantar a videira pachorrentamente descansadas em vistosas latadas.
Foi desta forma que a vinha conquistou o solo ilhéu em todas as direcções tornando-se o vinho um produto importante na actividade agrícola do ilhéu. Já em 1455 Cadamosto ficara deslumbrado com o que viu na área vitícola do Funchal; «...tem vinhos, mesmo muitíssimo bons, se considerar que a ilha é habitada há pouco tempo. São em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se exportam muitos deles». O vinho na Madeira do séc. XV apresentava-se já com um produto competitivo do trigo e do açúcar, com grande peso na economia local, sendo desde o início um potencial produto do mercado externo da ilha. Os testemunhos abonatórios da importância no comércio externo são múltiplos. Destes releva-se o elogio de Shakespeare em algumas das peças de teatro. Os trigais e canaviais deram lugar às latadas e balseiras e a vinha tornou-se na cultura exclusiva do colono madeirense, à qual este deu todo o seu engenho e arte. Tudo isto projectou o vinho para o primeiro lugar na actividade económica da ilha, mantendo-se por mais de três séculos. O ilhéu, desde o último quartel do séc. XVI, apostou em exclusivo na cultura da vinha, tirando dela o necessário para o sustento diário e, igualmente, para manter uma vida de luxo, sumptuosos palácios e igrejas. Se em 1547 para Hans Standen a economia da ilha assentava no binómio vinho/açúcar, já em 1578 Duarte Lopes colocava o vinho em primeiro lugar nas exportações para em 1669 o cônsul francês afirmar que o vinho era o negócio principal da ilha. A documentação dos sécs. XVIII/XIX é unânime em considerar o vinho como a principal e total riqueza da ilha, a única moeda de troca. Diz-se até que a Madeira não tinha com que acenar aos navios que por aí passavam, ou a demandavam, senão o copo de vinho. Tudo isto fez aumentar a dependência externa da economia madeirense. Contra a política exclusivista imposta pelo mercantilismo inglês manifestaram-se, quer o governador e capitão general Sá Pereira, em regimento de agricultura para o Porto Santo, quer o corregedor e desembargador António Rodrigues Veloso nas instruções que deixou em 1782 na Câmara da Calheta, quando aí esteve em alçada. Mas foi tudo em vão, ninguém foi capaz de frenar a "febre vitícola", nem de convencer o viticultor a abandonar a vinha. Vivia-se um momento de grande procura do vinho no mercado internacional e as colheitas eram insuficientes para satisfazer a grande procura. Perante tão desusada solicitação socorria-se dos vinhos inferiores do norte da ilha e até mesmo dos vinhos dos Açores e Canárias para poder saciar-se o sedento colonialista europeu. Desde o século XV que o vinho ilhéu traçou a rota no mercado internacional, acompanhando o colonialista nas expedições e fixação na Ásia e América. O comerciante inglês, aqui fixado desde o séc. XVII, soube tirar partido do produto fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que se haviam espalhado pelos quatro cantos do mundo colonial europeu. Vários factores fizeram com que o comerciante inglês se instalasse na ilha e cá se afirmasse como um potencial negociante do vinho. Merecem referência as condições favoráveis exauridas nos tratados luso-britânicos e o favorecimento que as regulamentações britânicas do comércio colonial atribuíam à Madeira. Deste numeroso grupo de britânicos merecem referência: Richart Pickfort (1638/82), W. Boltom (1695/1714), James Leacock (1741), Francis Newton (1745), R.Blandy (1811). As Canárias eram o competidor directo da Madeira no mercado europeu e colonial. Deste modo a união peninsular não parece ter sido favorável ao vinho madeirense pois se abriu o mercado colonial, usufruindo as Canárias de uma posição privilegiada na rota de ida para a Africa e
América. A situação que se anuncia em 1640 abre novas perspectivas para o malvasia da Madeira, o retorno a uma situação de privilégio do mundo português, a que se junta o britânico. A partir daqui o competidor mais directo será o vinho dos Açores, produzido nas ilhas Graciosa e do Pico. Os diversos pactos de amizade entre as coroas de Portugal e Inglaterra sedimentaram as relações comerciais entre ambos, favorecendo a oferta do vinho madeirense e açoriano nas colónias britânicas da América Central e do Norte, com a lei de navegação de Carlos II, aprovada em 16413. A situação de privilégio ao comércio de vinho dos arquipélagos portugueses repercutiu-se negativamente na economia das Canárias, travando o processo de desenvolvimento da economia vitivinícola, a partir de finais do século XVII4. E. Steckley, não obstante documentar uma época de prosperidade no comércio com Inglaterra, reafirma a crise, que se aproximava: Así pues durante dicha centuria algunos de los antiguos mercados canarios de vino se estancaron y las islas portuguesas demonstraron ser unos competidores capaces y eficientes para los nuevos mercados americanos de vino"5 Esta ideia é reafirmada no estudo de António Macíaz e Agustin Millares Cantero, que define o período de 1640 a 1670 com "de crisis del prolongado esplendor económico", que será resultado de"la oferta madeirense y de o porto" que "comenzó a sustituir a la Canaria en el mercado ingles6". A criação em 1665 da Companhia dos mercadores de Londres e a reacção popular que gerou, com o derrame dos vinhos, conduziu inevitavelmente à perda de importância do malvasia de Canárias no mercado europeu em favor do Jerez. O casamento de Carlos II de Inglaterra com D. Catarina de Bragança foi o prelúdio disso, sendo definido por Viera y Clavijo como um "golpe tan feliz para la isla de la Maderas como infausto para las Canárias"7. Acresce ainda que a guerra de Cromwell contra Espanha levou ao encerramento do mercado londrino ao vinho de Canárias, no período de 1655 a 1660, bem como ao estabelecimento de medidas preferenciais ao envio de vinho das ilhas portuguesas para as colónias britânicas. O texto da ordenança de 1663, repetido mais tarde na de 1665, era claro: "Wines of the growth of Maderas, the Western Islands or Azores, may be carried from thence to any of the lands, islands, plantatinos, & colonies, territories or places to this majesty belonging, in Asia, Africa or America, in english built ships."8 O fim da guerra de fronteiras, com as pazes assinadas em Madrid a 5 de Janeiro de 1668 e ratificadas a 13 de Fevereiro em Lisboa, restabeleceram-se os contactos entre os dois arquipélagos9.O reforço destas relações podará ser testemunhado pela presença de Bento de Figueiredo, como cônsul castelhano no Funchal10. Mas continuaram as dificuldades de intervenção deste arquipélago no mercado colonial. Apenas com as pazes de Ultrecht de 1713 se abriram novas perspectivas ao arquipélago das Canárias. Mas isto sucede numa altura em que os vinhos madeirenses e açorianos haviam já conquistado uma posição sólida no mercado colonial britânico. Deste modo poder-se-á afirmar que o único perdedor desta conjuntura foi o 3.Rupert CROFT-COOKE, Madeira, Londres, 1961, pp.26-28; André L.SIMON, "Introduction" e "Notes on Portugal Madeira and the Wines of Madeira", in The Bolton Letters.Letters of an English Merchant in Madeira 1695-1714, Londres, 1928 4.A. Bethencourt MASSIEU, "Canarias e Inglaterra. el comercio de vinos(1650-1800)", in Anuario de Estudios Atlanticos, nº.2, 1956, pp.195308: IDEM, "Canarias y el comercio de vinos(siglo XVII)", in Historia General de las islas Canarias, tomo, III, 1977, 266-273; 5."La economia vinicola de Tenerife en el siglo XVII: relación anglo-espanola en un comercio de lujo", in Aguayro, nº. 138, Las Palmas, 1981, p. 29 6."Canarias en la edad Moderna(circa 1500-1850)", in Historia de Los Pueblos de Espana. Tierras fronterizas(I) Andalucia Canarias, Madrid, 1984, pp.319, 321 7.Citado por A. LORENZO-CÁCERES, Malvasia y Flastaff. los vinos de Canarias, La Laguna, 1941, p.19. 8.André L.SIMON, "Notes on Portugal, Madeira and the Wines of Madeira", in The Bolton Letters. Letters of an English Merchant in Madeira 1695-1714, Londres, 1928. 9.A coroa insistiu nesta nova situação, recomendando às autoridades madeirenses que publicitassem o que foi feito por meio de um bando a 8 de Maio. Veja-se Arquivo Regional da Madeira, Câmara Municipal do Funchal, nº.1215, fls.37vº.38 10.Ibidem, nº.1215, fls.58-58vº, 17 de Dezembro de 1672.
arquipélago das Canárias, que se viu a braços com uma grave crise económica, por falta de escoamento do vinho11. O movimento do comércio do vinho da Madeira ao longo dos sécs. XVIII e XIX se imbrica de modo directo no traçado das rotas marítimas coloniais que tinham passagem obrigatória na ilha. A estas rotas fundamentais juntavam-se outras subsidiárias, quase todas sob controlo inglês: são as rotas da Inglaterra colonial que faziam do Funchal porto de refresco e carga de vinho no percurso para os mercados das Índias Ocidentais e Orientais, donde regressavam, via Açores, com o recheio colonial. Também os navios portugueses da rota das Índias, ou do Brasil escalavam a ilha onde recebiam o vinho que conduziam às praças lusas. São ainda os navios ingleses que se dirigem à Madeira com manufacturas e fazem o retorno tocando Gibraltar, Lisboa, Porto. E, finalmente, os navios norte-americanos que traziam as farinhas que asseguravam o sustento diário do madeirense e regressavam carregados de vinho. Por todas estas razões o vinho ilhéu conquistou, desde o séc. XVI, o mercado colonial em África, Ásia e América afirmando-se até meados do séc. XIX como a bebida por excelência do colonialista e das tropas coloniais em acção. Regressado o colonialista à terra de origem, com o surto do movimento independentista, trouxe na bagagem o vinho da ilha e fê-lo apreciar pelos patrícios. O momento de apogeu da exportação do vinho da Madeira para estes mercados situa-se entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, altura em que a saída atingiu a média de 20.000 pipas. Mais de 2/3 do vinho exportado destinava-se ao mercado colonial americano, de que se destacam as Antilhas, as plantações do sul da América do Norte e N. York. A primeira metade do séc. XIX é pautada por uma acentuada alteração na geografia do mercado consumidor do vinho da Madeira. É o período de afirmação dum novo para cobrir as exigências de novos e velhos apreciadores. A Inglaterra e a Rússia tomaram o lugar do mercado colonial a partir de 1831. A esta mudança temos de associar a concorrência do vinho de França, Espanha e Cabo. Mais uma vez o curso da História atraiçoou-nos. O fim das guerras europeias, em princípios do séc. XIX, abriu as comportas do vinho europeu ao potencial mercado colonial asiático e americano. A retirada do colonialista das áreas colonizadas fez perder o gosto pelo vinho da ilha. Os primeiros sintomas surgem a partir de 1814, agravando-se de ano para ano. As colheitas de 1819 a 1821 mantiveram-se estagnadas nos armazéns, por isso em 1820 vinte mil pipas aguardavam comprador. O retrato verdadeiro da situação está patente na voz de desespero do homem da época: «Estão as casas ricas de vinho, pobres de sustento e de alimento». Por tudo isto a recordação do período que decorre dos anos de 1840 a 1860 faz-se com muita dor e lágrimas. Foi esta a época de maior sofrimento do incola. Hoje, passados mais de quinhentos anos sobre a introdução da vinha na Madeira, todos nós temos bem vivo um imenso rol de recordações dos tempos áureos de apreciação e comércio do vinho. Mas infelizmente a imagem passou já à História. À euforia da grande procura sucedeu-se a crise dos mercados, agravada, ademais, pela presença das doenças que atacaram a vinha (oídio e filoxera). A crise do sector produtivo, fruto de factores botânicos alastrou rapidamente a todo o espaço vitícola insular com efeitos semelhantes na economia destes espaços e no mercado do vinho. Com isto perdeu-se a ligação ancestral com as tradicionais castas europeias mas, em contrapartida, conquistou-se novas variedades americanas. Também as dificuldades conduziram à debandada dos agentes comerciais que lhe traçaram o mercado, perdendo-se, no meio desta desgraça, a maior parte da documentação particular. Por isso, ao historiador que pretende rastrear este inolvidável percurso deparam-se dificuldades na sua revelação. Apenas a Madeira conseguiu 11.G.STECKLEY, art.cit., pp.25-31.
paulatinamente recuperar os seus mercados ou conquistar novos, como se prova pela situação actual. Os vinhos dos Açores e das Canárias seguem uma trajectória semelhante ao da Madeira. Note-se que foram os madeirenses que levaram as primeiras cepas para as ilhas açorianas. Todavia se no caso das Canárias a afirmação é já do século XV concorrendo de forma directa com o da Madeira no mercado inglês, a atestar pelas assíduas referências de Shakespeare, já para os Açores isso só acontecerá a partir do século XVII. Mesmo assim a grande disputa foi sempre entre o malvasia da Madeira e os caldos de Tenerife. Primeiro foi a disputa e conquista do mercado europeu a que se seguiu o mercado colonial. As Canárias ainda se intrometeram no comércio com Cabo Verde e ibero-América, mas as limitações impostas não facilitaram o trafico. O século XVII anuncia-se como um momento de viragem do mercado atlântico do vinho de que a Madeira conseguiu levar a melhor na preferência do mercado norte-americano e das colónias inglesas das Antilhas. O vinho Madeira havia-se transformado numa moda e os viticultores e comerciantes, nomeadamente de Tenerife, para sobreviver tiveram de se sujeitar a fabricar um vinho semelhante ao Madeira que era depois conduzido para as colónias por navios ingleses12. Também está documentada a prática de baldeação com o de Tenerife para depois era vendido com o rótulo de Madeira. O século XVIII foi o momento de afirmação do falso e verdadeiro Madeira13. A HISTORIOGRAFIA DO VINHO A indelével presença do vinho na História que tem provocado o empenho da Historiografia nos últimos anos. Sucedem-se, desde o pioneiro trabalho de Roger Dion (Histoire de la vigne et du vin en France. Des origines au XIXe Siècle, 1959), inúmeros textos resultantes de arrojados projectos de investigação. É no domínio da Geografia histórica que o tema mereceu maior destaque em França. A realização de um colóquio em 1977 em Bordeos marca o início da actual valorização da temática. Nas actas (Géographie Historique des Vignobles), publicadas em 1978 por Huetz de Lemps é feito o ponto da situação do tema, com a referência de 701 títulos, sendo mais de metade referentes aos vinhos franceses e suas regiões: Bordeaux, Languedoc e Burgundy. Entretanto na Universidade de Bordeos o Centre d'Etudes et de Recherches sur la Vigne et le Vin (Bordeaux) desenvolve uma linha de investigação sobre os vinhos, europeus de que resulta uma colecção dirigida por Andre Pitte com 10 volumes de que se publicaram sendo um sobre a Madeira (1989) da responsabilidade de Alain Huetz de Lemps. Na comunidade de língua inglesa o interesse pelo tema é igualmente relevante desde a década de setenta, tal como assinala Tim Unwin14. Tenha-se em consideração o incremento da viticultura na Califórnia e Austrália e África do Sul, no decurso da segunda metade do século XIX, que conduziu a variados estudos sobre o tema. Em Portugal e Espanha é também cada vez mais evidente o interesse pelo estudo da temática do vinho. A tradição francesa e inglesa do tratamento do tema levou-nos a dedicar mais atenção, nomeadamente numa perspectiva historiográfica. Assim nos últimos anos surgiram alguns estudos de grande importância para o seu conhecimento e divulgação. Em 1982 a Academia Portuguesa de História organizou um encontro sobre o Vinho na História Portuguesa séculos 12 . Burguesia extranjera y comercio Atlantico. La empresa comercial irlandesa en Canarias(1703-1771), Santa Cruz de Tenerife, 1985, pp.317-332; G.L.Beer, The Old Colonial System. 1660-1754, N. York, vol. II, 1912, p. 287. 13 . Alberto Vieira, Breviário da Vinha e do Vinho na Madeira, Ponta Delgada, 1991, p.30-31. 14 Wine and Vine. An Historical Geography of viticulture and the Wine Trade.1991
XIII-XIX. Depois foram alguns projectos inovadores. Assim temos O Marquês de Pombal e o Vinho do Porto (1980) de Susan Schneider, a Memória do Vinho do Porto (1990) de Conceição Andrade Martins e O Douro e o Vinho do Porto - de Pombal a João Franco(1991) de Gaspar Martins Ferreira, em que o vinho é recuperado para a História. E, finalmente a enciclopédia dos vinhos de Portugal, orientada por António Lopes Vieira, que contempla os Vinhos Verdes, do Dão, do Alentejo, Bairrada, Península de Setúbal, Porto e Madeira. Ainda, a Universidade do Porto mantém um Grupo para História do Vinho do Dão, que tem divulgado estudos nos últimos anos. A realização mais recente é o Grande Livro do Vinho de J. Duarte Amaral (1994) Também nós fomos contagiados por esta vaga e o vinho passou a ser um companheiro diário das nossas pesquisas. Ao longo destes anos reunimos tudo o que demais importante existe sobre ele ou com ele relacionado. Dos materiais perdidos nos armazéns fizemos um museu. Daqui passamos para a documentação dos arquivos públicos e privados, aos testemunhos dos apreciadores, defensores e mesmo detractores. Disso demos já notícia num Breviário da Vinha e do Vinho da Madeira (1990), numa compilação História do Vinho da Madeira. Documentos (1993) e o "Vinho Madeira" da "Enciclopédia de Vinhos de Portugal". No penúltimo volume procuramos reunir aquilo que consideramos mais importante para testemunhar a múltipla vivência que o vinho Madeira definiu: a economia da ilha e dos directos interventores; a insistente procura daqueles que se tornaram inveterados apreciadores; o júbilo e o agradecimento daqueles que o descobriram a genuinidade e se tornaram imorredoiros testemunhos da importância. O vinho assumiu nas ilhas uma dimensão importante, sendo de destaca o caso das economias da Madeira e Tenerife a partir do século XVII. Todavia é na Madeira que vamos encontrar um conjunto variado de textos, que procuram traçar a sua História ou fazer o ponto da situação do problema vitivinícola entre finais do século XIX e princípios do presente. Neste caso é de considerar a obra de D. João da Câmara Leme, o Conde de Canavial, considerado o mais destacado estudioso e conhecedor dos problemas políticos e enológicos. Nas Canárias os estudos são parcelares. Aqui, ao clássico estudo de Andrés de Lorenzo Caceres15 deverá juntar-se outro de A. Bettencourt Masieu16 e, mais recentemente, os de A. Guimerá Ravina17, Manuel Lobo Cabrera18 e Pedro Miguel Martínez Galindo19. A estes deverá juntar-se o estudo de George F. Steckley. Publicado em 1981 na Revista Aguayro20. Para os Açores é reduzida a atenção dada à cultura e produto, não obstante ter conseguido uma posição de relevo na economia de algumas ilhas açorianas, como foi o caso do Pico e Graciosa. Concordamos com o Pe. Fernando Augusto da Silva, quando diz que a História do vinho da Madeira está por fazer, mas face ao modelo de análise atrás apresentado21. "Está ainda infelizmente por elaborar uma completa monografia sobre os vinhos da Madeira, em que se faça a sua História, desde meados do século XV até a Época que vai decorrendo, nos variados e interessantes aspectos que ela nos oferece. Deveria para isso proceder-se a um largo trabalho descritivo e de pormenorizada coordenação, que além de abranger as diversas fases de indústria e dos processos de vinificação, fornecesse também informações seguras Acerca da escolha apropriada do solo e do plantio de bacelos, tratamento eficaz das videiras, fabrico e conservação 15
. Malvasia y Falstaff. Los vinos de Canarias, La Laguna, 1941. . "Canarias e Inglaterra. El comercio de vinos(1650-1800)", in Anuario de Estudios Atlanticos, nº 2, 1956. Publicado em livro em 1991 17 . Burguesia extranjera y comercio Atlantico. La empresa comercial irlandesa en Canarias(1703-1771), Santa Cruz de Tenerife, 1985. 18 . El comercio del vino entre Gran canaria y las Indias en el siglo XVI, Las Palmas de Gran Canaria, 1993. 19 . La Vid y El Vino en Tenerife en la Primera Mitad del siglo XVI, La Laguna, 1998. 20 "La econmía vinícola de Tenerife en el siglo XVII: Relación Angloespañola en un comercio de lujo", Aguayro, Las Palmas de Gran Canaria, 138, 1981. 21 . Elucidário Madeirense, vol. III, p. 392. 16
dos mostos, preparação dos produtos destinados ao embarque, o comércio interno e no estrangeiro, a análise rigorosa dos chamados vinhos generosos e a cuidadosa conservação da celebrada fama de que universalmente gozam, constituindo outros tantos objectos de investigação e estudo, para o que seria indispensável aproveitarem os valiosos elementos que se encontram dispersos em diversas publicações"22. Se por um lado esta argumentação merece a nossa aprovação quanto à necessidade de fazer a História do vinho, por outro discordamos da metodologia a ser empregue para uma tal investigação. Uma monografia histórica não se fica pelo mero enunciado dos aspectos enológicos ligados à vinificação ou à viticultura e além disso a investigação deverá ser executada por especialistas de cada matéria, não confundindo o campo das ciências agronómicas e naturais como o da História. A recolha dos elementos "dispersos em diversas publicações" faz parte de uma das fases da investigação bibliográfica e, devido ao restrito panorama bibliográfico insulano, apenas se prestará a fazer o ponto da situação da questão. A iniciativa nunca deverá ser um ponto de chegada, mas antes um ponto de partida para um esboço e concretização prática de uma investigação arquivística dos núcleos documentais que contemple os arquivos privados e oficiais. Neste caso e no que concerne ao comércio não deverá restringir-se apenas aos arquivos dos portos de partida mas também os de destino. O confronto da informação permite completar as lacunas e em alguns casos rastrear as actividades ilícitas. A monografia que o Pe. F. Augusto da Silva pretendia realizar não era histórica mas antes um esboço de enciclopédia à boa maneira do elucidário. Assim o entendeu o mesmo ao traçar em o Elucidário Madeirense23 um esboço breve do que pretendia, no que muito se aproxima o Pe. Eduardo Pereira24. Pouco ou nada avançam aos trabalhos de Paulo Perestrelo da Câmara e Álvaro Rodrigues de Azevedo e, por isso mesmo estes dois últimos, até ver, ainda não perderam a actualidade e importância. O escrito de A. R. Azevedo atem-se mais aos documentos do arquivo local, às suas deambulações históricas e políticas, mas mesmo assim é de considerar um primeiro esboço de história local em que o vinho tem lugar de destaque25. Se a isto juntarmos a monografia de J. Reis Gomes, e algumas referenciadas avulsas e parcelares, temos feito o inventário da bibliografia sobre o vinho até à década de setenta, sem que algo se possa alinhavar de novo. Hoje felizmente que o panorama é distinto e contam-se já inúmeros trabalhos. Os ingleses dedicaram maior atenção ao vinho Madeira. A posição hegemónica na exportação e consumo ditou a necessidade de conhecimento. Aqui convém destacar as monografias de Henry Vizetely, de André L. Simon, Ruppert Crooft-Cooke e as recentes de Noel Cossart e Alex Liddel. Da nossa investigação salientamos D. João da Câmara Leme, o Conde de Canavial, uma destacada figura da sociedade madeirense, da segunda metade do século XIX, que se evidenciou como um escritor, cientista, naturalista, industrial, jornalista26. Do vasto espólio bibliográfico merecem aqui referência os estudos que fez sobre o vinho e a crise vinícola de 1850-1851, 1870. Ele foi pioneiro do associativismo cooperativo, quer com a apresentação de uma sociedade anónima que promovesse a rede viária da ilha para transporte das mercadorias, por meio de um 22
. Idem, ibidem, p. 392. Vide vol.I - Balseira (p. 113), Estufas (p. 408); vol. II, Filoxera (pp. 31/2), Indústria Vinícola (pp. 148/54), Mangra da vinha (p. 315), Míldio (p. 347); vol III, Os Vinhos (pp. 389/95), Vinhas (pp. 381/9, Vinhas e uvas do Porto Santo pp. 387/9), Vinho de Canteiro (p. 389), Vinho de roda (p. 389). 24 Ilhas de Zargo, vol. I, pp. 275/301. 25 Anotações às Saudades da Terra, pp. 728/30; veja-se igualmente a sua colaboração nos jornais locais nomeadamente na "Discussão" e "A Madeira". 26 Não existe qualquer monografia sobre esta personalidade insulana, apenas dispomos de alguns elementos em dois jornais locais: - "A Luz", nº 1 (1881), p. 2, e o "Diário de Notícias", nº 5, pp. 2/3. 23
cabo aéreo, quer com a criação da companhia fabril do açúcar madeirense, quer, ainda, com a criação de uma associação de proprietários, viticultores e negociantes de vinho, isto é uma associação vinícola da Madeira, ou Real associação vinícola da Madeira, como solução para a crise vinícola da segunda metade do século XIX. Esta faceta do ilustre madeirense do século passado mereceria um estudo mais demorado, que não cabe no curto espaço desta referencia.
FORMAS DE VER E ESTUDAR O VINHO Na actualidade é cada vez mais evidente o interesse pelo estudo do vinho. É grande a atenção por parte do público e da comunidade científica. Já na segunda metade do século XIX, momento definido por uma conjuntura de crise da viticultura europeia, deparamos com igual euforia editorial sobre a temática da vinha e do vinho. Aqui somos confrontados, para além das discussão das soluções económicas e técnicas, com estudos descritivos da realidade e História da cultura e comércio do produto. Assim definimos dois conjuntos de publicações, de acordo com a posição que se coloca o seu autor: 1. Os estrangeiros, nomeadamente os ingleses, que procuravam divulgar junto dos consumidores alguns aspectos do vinho que corria diariamente à sua mesa. 2. Os nacionais que, motivados por conjunturas de crise, intervém no sentido de apresentar soluções. Estas vão sempre de encontro às suas causas. Assim, quando a crise se situa na esfera comercial, tivemos os tratados em prol do proteccionismo e no caso do mesmo incidir na área da produção, provocada pelo oídio ou filoxera, então surgiam as soluções miraculosas para debelar a crise. A segunda metade do século XIX foi o momento de consciencialização para a dimensão científica social, económica, cultural e histórica do vinho. Os estudos científicos adequam-se ao combate de praga mas espicaçam a curiosidade de todos e permitem a publicação de inúmeros trabalhos de diversa índole. Em muitos dos casos a recorrência à História é o necessário alento para esta aposta no debelar das doenças e fazer com que a cultura retorne a assumir a essa adequada dimensão na sociedade e economia. Durante este momento sucederam-se exposições27, congressos28 e estações vitícolas29 e eneológicas, associadas à edição de publicações periódicas especializadas30. No caso das ilhas foi na Madeira que encontramos maior produção bibliográfica, quer de autores nacionais, quer estrangeiros. O vinho da ilha conquistara uma dimensão inusual que se justifica esta desmesurada atenção. Disso fizemos já eco num estado publicado onde compilamos o que de mais importante se publicou sobre ele31. No caso dos Açores o tema perde-se em referências dispersas e faz falta ainda uma monografia que destaque a importância que assumiu o produto no devir económico açoriano. Deste modo é ainda difícil abalizar do real valor histórico e económico. A tradição do verdelho tão apreciado 27. Em Espanha tivemos em 1877 a Exposición Vinicola Nacional.Em Portugal: Exposição Histórica do Vinho do Porto(1931-32). 28 . Para Espanha: 1878 - Congreso antifiloxerico de Madrid, 1886; Congreso de Viticultores.Em Portugal: Congresso Vinicola Nacional (1895). 29 . Em Espanha: Málaga, Zaragoça(1880), Sagunto(1881), Unidad Real(1882), Tanagona(1882). Em Portugal: Quinta de Nalaria(1887), Douro(1957), Régua(1929). 30 . Revista Vinícola Jerezana(1866) The wine and spirit Market (França-1871), The wine trade review (Londres. 1864), Revista do comércio de vinhos (1896) O País vinhateiro (1884), Anais do Instituto do Vinho do Porto(1940), O vinho(1935), Vinicultura(1934). 31 História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993
pelos czares da Rússia é hoje quase só uma miragem que só se torna realidade nos Biscoitos (Terceira) e em alguns recantos do Pico. O passado constrói-se ainda de referências avulsas da documentação e testemunhos de viajantes e apreciadores. Na Madeira a atenção tem sido votada nos últimos anos para o sector comercial, difundindo-se alguns trabalhos de grande interesse para o século XVIII. Todavia faz falta um estudo sistemático da cultura e do produto final que contemple os cinco merecidos séculos de História. Também subsistem algumas dúvidas para alguns campos que reputamos de grande interesse. Em primeiro lugar no que concerne à diversidade de castas não temos informação segura sobre o momento da presença na ilha e a dimensão que cada uma delas assumiu no computo total da produção da ilha. A isto acrescem as dificuldades em conseguir definir de forma precisa as técnicas de vinificação e os diversos tipos de vinho mais comuns e que deram fama ao vinho Madeira. Para certa literatura tudo se reduz à malvasia e de modo especial à da Fajã dos Padres. A análise da realidade vitivinícola não pode esquecer ainda a estrutura produtiva e formas de evolução. Há que ter em conta ainda o grupo de mercadores que serviram de suporte ao mercado do vinho e dele tiraram o maior rendimento. Neste caso o estudo das casas comerciais é um tema ainda em aberto que se torna merecedor da nossa atenção tendo em conta a disponibilidade de alguns e importantes arquivos empresariais32. Os estudos de História da Empresa encontram aqui um campo aberto e de grande interesse. A par disso não deverá esquecer-se a envolvência do vinho na sociedade e as implicações que daí resultam. Assim, no caso da Madeira é comum definir-se um modelo de criação artística e urbanística influenciado pelo vinho, o que levou alguns apressadamente a definirem de cidade do Vinho. A propriedade do termo é discutível mas não impedem de consideramos as relações do vinho com a arte e mesmo o quotidiano insular. No caso madeirense a sociedade oitocentista vai buscar as raízes ao forte impacto da vinha e do vinho. Nesta campo faltam estudos que nos relevem esta dimensão. Ainda a um nível mais restrito poderá partir-se para um novo tipo de abordagens da temática. Primeiro a arte do vinho, lavrada em gravuras, avulsas ou ilustrativas e livros, e rótulos. O rótulo para além da expressão plástica muito peculiar, pode ser também um espelho da época através das temáticas dominantes e das mensagens escritas33. Também faz falta um levantamento exaustivo das referências que o mesmo mereceu na literatura. Em prosa ou em verso o vinho é uma referência constante. A Etnografia é uma preciosa auxiliar do conhecimento e definição da ambiência que envolve a cultura da vinha e o fabrico do vinho. O folclore e tradições que a actividade definiu no passado confundem-se ainda com a realidade global. A tecnologia tradicional parece ter sido esquecida nos armazéns. Assim são poucos os lagares tradicionais que persistem e falta quem providencie o seu estudo e inventariação. O fabrico do vinho tinha lugar em lagares de madeira e pedra. Hoje são raros os lagares e o fabrico do vinho adequou-se às inovações tecnológicas para que o produto esteja conforme os padrões de qualidade. No caso das Canárias é evidente nas ilhas de Tenerife e El Hierro o interesse dedicado a estas estruturas de madeira. Já nos Açores é fácil encontrar no Museu do Vinho dos Biscoitos um conjunto único de lagares e lagariças de pedra, a que se pode juntar idênticas infra-estruturas hoje com carácter museológico no Pico e Graciosa. 32
Cf. Alberto Vieira, Guia Para a História e Investigação das Ilhas Atlânticas, Funchal, 1995, p.167. 33 . Cf. José de Sains-Trueva, Heráldica de Prestígio em Rótulos de Vinho Madeira, in Islenha, nº.9, 1991, 62 e segs; F. Guichard, A Linguagem do Rótulo. O Vinho entre o Dito e o não Dito, in Os Vinhos Licorosos e a História, Funchal, 1998, pp.71-80.
Na Madeira são poucos os lagares de tabuado como os de pedra. E estes últimos, circunscritos apenas ao Curral das Freiras, Ponta do Pargo e S. Vicente, jazem ao abandono.
O VINHO MADEIRA. UM CASO SINGULAR DA HISTÓRIA E LITERATURA. O Vinho é um tema que atrai a atenção de todos, cativando poetas e literatos34. Por outro lado o vinho é hoje uma questão cultural sendo cada vez mais o público interessado em conhecer a sua história. O publico consumidor parece que manifesta interesse em estar bem informado e conhecedor daquilo que bebe. Deste modo não será de estranhar que esta atitude esteja na origem da profusão de estudos e de grupos de trabalho especializados na elaboração da História. O vinho Madeira demonstra até à saciedade a situação. De facto ele é, desde tempos recuados, indispensável na garrafeira dos apreciadores do fino rubinéctar em todos os recantos do Ocidente. Não é preciso ser escanção para reconhecer e apreciar as qualidades aromáticas e gustativas, basta apenas um pouco de atenção no momento de o degustar. Os epítetos proferidos por poetas, escritores, políticos e viajantes, que tiveram a possibilidade de o provar e apreciar poderão ser um bom caminho para isso. Todos ficaram deslumbrados com o aroma e trago e ninguém se escusou a tecer-lhe os maiores elogios. Talvez você, leitor, seja tentado a visitar alguma das vetustas adegas madeirenses e a juntar a opinião à destes que conseguimos recolher. Nós, contrariando o hábito daqueles que só encontram tal referência elogiosa ao vinho Madeira em Shakespeare, iniciámos este rol de referências com aquele que terá sido o primeiro a testemunhar e divulgar em toda a Europa as qualidades. Alvise de Ca da Mosto, nome sugestivo em questão de vinhos, foi o primeiro a fazê-lo nas suas Navegações, escritas em 1455 e depois em várias edições impressas que correram mundo. Este veneziano, habituado aos vinhos nobres do Mediterrâneo, não hesita em afirmar que os da ilha eram "bons" e para que não restassem dúvidas reforça a ideia apontando-os como "muitíssimo bons"35. Passados oitenta anos Giulio Landi36, celebra, de novo, o rubinéctar madeirense, comparando-o "ao grego de Roma". Quanto à malvasia ele refere que da sua colheita se extrai melhor vinho que o tão celebrado de Cândia. Em 1567, outro italiano, Pompeo Arditi37, retém a mesma observação comparativa. Foi a partir daqui que se soube em toda a Europa que os vinhos da ilha poderiam rivalizar com os demais afamados do Mediterrâneo, o que lhes assegurava um espaço na mesa real ou do aristocrata. Shakespeare (1564-1616) foi um dos mais atentos observadores da realidade e, certamente, um dos apreciadores. No trama que deu corpo às imortais peças, o vinho madeirense, europeu, canariano é um dado fundamental. Primeiro diz-se, com base na peça Ricardo III, que o Duque de Clarence, em finais do século XV, se teria afogado na Torre de Londres num tonel de malvasia madeirense, quando na peça apenas se refere malvasia38, sem qualquer pista da proveniência39. Diferente é todavia o que sucede na peça Henrique IV onde o dramaturgo coloca o beberão John Flastaff a negociar com o Diabo a alma por "um copo de Madeira e uma pata de capão"40. Esta referência na obra de Shakespeare ao vinho Madeira é mais um testemunho da importância que ele adquiriu no mercado londrino, correndo com frequência nas tabernas britânicas, e a prova de que foi a bebida mais solicitada pela aristocracia e casas reais europeias: 34
. Alves Redol escreveu um conjunto romances com designação "Ciclo Port Wine: Horizonte Cerrado(1949), Os homens e as sombras, Vindimas de sempre: Cf. J. Duarte Amaral, O Grande livro do vinho, Lisboa, 1994. 35 . António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37 36 . Ibidem, p.86 37 . Ibidem, p. 159 38 . Ricardo III, Lisboa, s.d., p.66(acto I, cena IV) 39 . Note-se a confusão evidente entre o vinho da Madeira e das Canárias nas peças de Shakespeare. Cf. The Merry Wives of Windsor, London, 1979, p.79. 40 . Henrique IV, Porto, 1973, p.19(1ª parte, acto I, cena II)
brinde em momentos de alegria e de grande solenidade foi, também, companheiro em momentos de aflição. O Madeira, da conquista dos salões e palácios da vetusta cidade de Londres, passou ao Novo Mundo, sulcou os oceanos e firmou-se, mais uma vez, nas imponentes vivendas das colónias britânicas, disseminadas a Ocidente e Oriente. Em finais do século dezasseis Gaspar Frutuoso o pároco da Ribeira Grande, que certamente não dispensava o uso do vinho Madeira nos actos litúrgicos41 (vimos com assiduidade recomendações no sentido de que este vinho fosse usado na missa), não se esquece de tecer um dos ditirambos mais elogiosos. Diz ele que "o vinho malvasia he o melhor que se acha no Universo"42. Os elogios mais assíduos são ditados no século dezoito a época nobre do vinho Madeira. Ele ganhou inúmeros apreciadores que teimavam em exaltar as propriedades e a preferi-lo a todos os outros ou demais bebidas alcoólicas, que começaram a concorrer. Esta loucura pelo Madeira foi grande nos Estados Unidos da América do Norte. George Washington e convivas regalaram-se com ele na boda em Maio de 1759, enquanto John Adams exclamava, com alegria no seu diário, que sempre bebeu "grande porção de Madeira", não vendo "nenhum inconveniente nisso". Ademais, segundo constatou o último estadista, ele é diferente de todos os outros, pois mantémse "salutar e agradável no calor de Verão ou no frio do Inverno"43. Thomas Jefferson não atraiçoou a preferência dos antecessores e mesmo em Paris não prescindia do Madeira, pois era "de superior qualidade e o melhor"44. Foi certamente com a inspiração do aromático malvasia que se formou o grande empório. Com ele se celebrou a independência, acto que é anualmente recordado da mesma forma. Os europeus, levados por esta exaltação dos políticos americanos, despertaram de novo para o vinho Madeira e choveram elogios em catadupa. Em 1795 o Dr. Wright45 exclamava: "Se Homero o tivesse bebido, afirmaria que o Olimpo renascia apesar de os deuses estarem já fora de moda". O mesmo recomenda o uso pelos pacientes idosos, pois é "uma das bebidas mais úteis e eficazes para as pessoas de idade a quem as funções físicas começavam a falhar". Daí o epíteto de leite dos velhos. Diz-se até que a longevidade do Conde de Canavial terá resultado do Madeira que bebia todos os dias em jejum. Os mercadores madeirenses ligados ao comércio do vinho, em representação de 29 de Setembro de 180146, definiam o vinho Madeira como o resultado da combinação perfeita das condições mesológicas com as castas e nunca resultado de quaisquer artimanhas laboratoriais ou do mais sofisticado processo de vinificação. Esta observação e tanto mais actual, quando hoje se fala já em vinho biológico: " superioridade que distingue de todos os outros, o vinho da Madeira é o resultado de uma combinação feliz de circunstancias favoráveis, as quais, por dependerem do local, sempre foram e continuarão a ser privativas desta ilha. O clima, a configuração da terra, e a natureza do torrão, não dependem de contingências, nem admitem imitação pela industria humana, e essas vantagens, adjuvadas de uma muito particular agricultura, e de muito custo, e de um trato simples, mas laborioso, conspiram produzirem o vinho da Madeira, licor singular e inimitável, que, nem o tempo, nem o ar, nem o gelo do pólo, nem a fervura do trópico, podem prejudicar, antes sendo a sua essência simples e imutável, as provas as mais rigorosas, e o lapso de longos anos, só servem a demonstrarem, a semelhança da verdade e sua nativa pureza" O vinho da Madeira não foi apenas companheiro dos grandes momentos festivos e de euforia, 41 .Livro Quarto das Saudades da Terra, vol. II, 1981, p.47. 42 . Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 43 .T. B. Duncan, Atlantic Islands, Chicago, 1972, p.250-251 44 .Ibidem. 45 . Eduardo C. n. Pereira, Ilhas de Zargo, vol. I, Funchal, 1967, p.602 46 . ARM, Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal, t. 13, fls. 107vº-111
pois também se postou de guarda nas dificuldades e solidão, como sucedeu com Napoleão Bonaparte. O deposto imperador recebeu, aquando da passagem pelo Funchal em Agosto de 1815, das mãos do cônsul britânico uma pipa de Madeira, que foi companheira no exílio de Santa Helena, até à morte. O general, talvez receoso de segundas intenções da oferta, nunca provou o vinho e à sua morte em 1820, o cônsul solicitou a devolução, o que ocorreu passados dois anos. Com este vinho da volta fez-se uma garrafeira importante para gáudio dos coleccionadores, sob o título de Battle of Waterloo. W.Churcill, quando em 1950 fez férias na Madeira, teve oportunidade de apreciar este vinho que Napoleão nunca bebeu. As qualidades profilácticas do vinho Madeira foram mais tarde reforçadas pelo Dr. Vicente Henriques Gouveia47 que destacou a acção bacteriológica sobre o bacilo do Erbert, enquanto Samuel Maio recomendava o uso na cura da gota. Perante as inestimáveis e inimitáveis qualidades organolépticas e profilácticas Warna Allen concluiu que estávamos perante um vinho imortal, que por isso mesmo não devia ser ignorado e ultrajado. O Vinho das ilhas ganhou raízes pela necessidade dos primeiros povoadores mas cedo se espalhou a fama da qualidade fazendo com que o mesmo acompanhasse as rotas comerciais do Novo Mundo e os tradicionais mercados europeus. Fama e comércio foram também sinónimo de interesse científico e editorial. Daqui resulta que a Madeira se apresenta como um caso raro no domínio da Historiografia da Vinha e do Vinho. O vinho foi e continuará a ser um referencial importante de definição da ilha e da labuta de cinco séculos das gentes insulares. E as ilhas continuarão a ser uma referência no percurso histórico do vinho do mundo antigo para o novo.
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