Ficha Técnica A presente obra é publicada com o apoio da Agência de Promoção da Indústria de Publicação da Coreia (KPIPA) This book is published with the support of Publication Industry Promotion Agency of Korea (KPIPA Título na edição inglesa: The Vegetarian Título original: A Vegetariana Autor: Han Kang Edição: Maria do Rosário Pedreira Tradução do inglês: Maria do Carmo Figueira Capa: design de Rui Garrido com imagem de Tom Darrocott Revisão: Madalena Escourido ISBN: 9789722061247 Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
Hang Kang
A VEGETARIANA Traduzido do inglês por Maria do Carmo Figueira
1 A vegetariana
Antes de a minha mulher se ter tornado vegetariana, sempre pensei nela como alguém que não tinha rigorosamente nada de especial. Para dizer a verdade, quando nos conhecemos, nem sequer me senti atraído por ela. Altura mediana; cabelo cortado a direito, nem curto nem comprido; pele amarelada, com um aspeto pouco saudável; maçãs do rosto ligeiramente pronunciadas; o seu ar tímido e frágil disseme tudo o que precisava de saber. Quando se aproximou da mesa a que eu já estava sentado, não consegui deixar de reparar nos sapatos que trazia – os sapatos pretos mais vulgares que se possa
imaginar. E aquele andar – nem apressado nem vagaroso, nem firme nem afetado. No entanto, embora não tivesse nada de muito atraente, nada tinha também de repulsivo e, por isso, não havia motivo para que não nos casássemos. A personalidade passiva dessa mulher em quem eu não conseguia detetar frescura, nem encanto, nem nada de particularmente refinado, servia-me na perfeição. Não precisei de fingir inclinações intelectuais para a conquistar, nem afligir-me com a possibilidade de ela me comparar com os homens embonecados que enchem os catálogos de moda, e ela também não
ficava aborrecida se, por acaso, eu chegava atrasado a um dos nossos encontros. A barriga que começara a aparecer-me aos vinte e tal anos, as pernas magricelas e os antebraços que, por mais que me esforçasse, se recusavam terminantemente a ganhar músculo, ou o complexo de inferioridade que costumava ter por causa do tamanho do meu pénis… Podia ficar descansado, não tinha de preocupar-me com nada disso por causa dela. Preferi sempre uma vida mediana. Na escola, decidi andar com aqueles que eram dois ou três anos mais novos para poder ser eu a mandar, em vez de
correr riscos juntando-me aos da minha idade; e, mais tarde, candidatei-me a uma universidade com base apenas na probabilidade de conseguir uma bolsa que cobrisse largamente as minhas necessidades. Por fim, fixei-me num emprego em que recebia um ordenado decente em troca do cumprimento diligente das tarefas que me eram atribuídas, numa empresa cuja pequena dimensão faria com que valorizassem inevitavelmente as minhas competências banais. E, por isso, era natural que me casasse com a mulher mais trivial do mundo. As mulheres bonitas, inteligentes, sensuais, filhas de famílias ricas – essas teriam acabado por
perturbar a minha existência tão cuidadosamente ordenada. Correspondendo às minhas expectativas, ela mostrou ser uma esposa absolutamente comum, que encarava as coisas sem desagrado nem frivolidade. Levantava-se todos os dias às seis da manhã para fazer sopa e arroz e, normalmente, também algum peixe. Desde a adolescência que ela contribuía para o rendimento familiar com trabalhos em part-time. Acabara por se tornar monitora no curso de Computação Gráfica que frequentara durante um ano e fora, ainda, contratada por uma editora de banda desenhada para inserir as falas nos balões, trabalho que podia fazer a
partir de casa. Era uma mulher de poucas palavras. Raramente me pedia alguma coisa e, por muito tarde que eu chegasse a casa, nunca discutia comigo. Mesmo quando, por acaso, estávamos ambos de folga, não lhe passava pela cabeça sugerir que saíssemos juntos. Enquanto eu passava a tarde sem fazer nada, agarrado ao comando da televisão, ela fechava-se no quarto. O mais provável era que passasse o tempo a ler, e esse era praticamente o seu único passatempo. Por qualquer razão insondável, a leitura era uma coisa que a absorvia mesmo – lia livros que, pelo aspeto, deviam ser tão maçadores que eu jamais conseguiria
obrigar-me sequer a passar além da capa. Só à hora das refeições é que ela abria a porta e emergia silenciosamente lá de dentro para fazer a comida. Verdade seja dita que, com aquela mulher e aquele estilo de vida, era improvável que houvesse algo de particularmente estimulante nos meus dias. Mas, por outro lado, se tivesse uma daquelas mulheres cujo telemóvel toca de manhã à noite com chamadas de amigos ou colegas, ou cujas queixas acabam sempre por levar a discussões aos berros com os maridos, iria de certeza sentir-me muito grato quando ela se fartasse de mim. A única coisa em que a minha
mulher se revelava invulgar era no facto de não gostar de usar sutiã. Quando eu era jovem, ainda mal saído da adolescência, e namorava com ela, pousei-lhe por acaso a mão nas costas e notei a falta do cós do sutiã por baixo da camisola. Ao aperceber-me do que isso significava, comecei a sentir-me bastante excitado. Para ter a certeza de que ela estaria a tentar passar-me alguma mensagem, olhei-a fixamente com outros olhos durante um ou dois minutos, procurando analisar a sua atitude; mas depressa concluí que, de facto, ela não estava a tentar transmitirme nenhum sinal. Então, seria apenas preguiça ou pura despreocupação? Não
conseguia tirar aquilo da cabeça. Nem sequer se dava o caso de ela ter uns seios bem delineados que se adaptassem ao look «sem sutiã». Teria, na verdade, preferido que ela andasse com um daqueles sutiãs almofadados para eu poder salvar a face perante os meus amigos. Mesmo no verão, quando conseguia convencê-la a vestir um, ela desapertava-o um minuto depois de sair de casa. O fecho aberto notava-se perfeitamente sob os seus tops finos e de cores claras, mas ela não parecia minimamente preocupada com isso. Tentei censurá-la por ela preferir vestir um casaco em vez do sutiã naquele calor
de rachar. Ela procurou justificar-se dizendo que não suportava andar de sutiã porque lhe apertava os seios e que, como eu nunca usara tal coisa, não conseguia compreender como era incómodo. No entanto, eu sabia que havia muitas outras mulheres que, ao contrário dela, não tinham nada contra sutiãs, e comecei a duvidar daquela sua hipersensibilidade. Em tudo o resto, a nossa vida de casados corria sem percalços. Estávamos a aproximar-nos do quinto aniversário de casamento e, como nunca estivéramos loucamente apaixonados um pelo outro, conseguíamos evitar aquele estado de cansaço e tédio que pode
transformar um casamento num verdadeiro tormento. O único senão era que, como decidíramos adiar a ideia de ter filhos até arranjarmos casa própria, o que só acontecera no último outono, às vezes punha-me a pensar se alguma vez chegaria a ouvir aquele som reconfortante de um bebé a balbuciar «papá» referindo-se a mim. Até um certo dia, em fevereiro passado, em que me cruzei de madrugada na cozinha com a minha mulher, ainda em camisa de dormir, nunca pensara na possibilidade de a nossa vida em comum poder sofrer uma mudança tão radical. – Que estás aí a fazer? No momento em que ia acender a luz
da casa de banho, parei de repente, apanhado de surpresa. Eram mais ou menos quatro da manhã, e eu tinha acordado com sede por causa do vinho e do soju que bebera ao jantar, o que também significava que estava a demorar mais tempo do que era normal a raciocinar. – Ouviste? Perguntei-te o que estás a fazer. Já estava frio que bastasse, mas ver a minha mulher naqueles preparos arrepiou-me. Qualquer dormência induzida pelo álcool que ainda restasse dentro de mim desapareceu de imediato. Ela estava de pé, imóvel, diante do frigorífico. O seu rosto ficara na
penumbra e, por isso, não conseguia distinguir-lhe a expressão, mas todas as opções possíveis me deixaram transido de medo. Tinha o cabelo preto no ar, completamente desgrenhado, e vestia a habitual camisa de dormir branca pelos tornozelos. Numa ocasião como aquela, a minha mulher teria enfiado rapidamente um casaco de malha e ido procurar os chinelos. Há quanto tempo estaria ela ali – descalça, com uma camisa de noite de verão, direita que nem um fuso, completamente absorta, indiferente à minha pergunta insistente? Encontravase de costas para mim, imóvel, mas de uma forma tão pouco natural que parecia
uma espécie de fantasma, resistindo em silêncio. Que estaria a acontecer? Se não me ouvia, talvez estivesse a ter um ataque de sonambulismo. Aproximei-me dela e curvei o pescoço para tentar ver-lhe o rosto. – Porque é que estás aqui assim? Passou-se alguma coisa? Quando lhe pousei a mão no ombro, fiquei surpreendido com a sua total ausência de reação. Não tinha dúvidas da minha sanidade e de que aquilo estava realmente a suceder; tinha perfeita consciência de tudo o que fizera desde que viera da sala e lhe perguntara o que estava a fazer, encaminhando-me
na sua direção. Era ela que aparentava uma indiferença total, como se estivesse perdida no seu próprio mundo. Parecia uma daquelas raras ocasiões em que à noite, absorvida por uma série na televisão, nem dava por que eu chegava a casa. Mas o que é que poderia estar a captar tanto a sua atenção no brilho pálido da porta branca do frigorífico, por entre a escuridão de breu da cozinha, às quatro da manhã? – Então? O seu perfil deslizou na minha direção, emergindo do escuro. Repareilhe nos olhos, brilhantes mas não febris, no momento em que os seus lábios se entreabriram lentamente.
– … Tive um sonho. A sua voz era surpreendentemente clara. – Um sonho?! De que raio estás para aí a falar? Sabes que horas são? Ela voltou-se, ficando de frente para mim, e depois saiu devagar da cozinha e foi para a sala. Para aí entrar, esticou o pé e empurrou calmamente a porta. Eu fiquei sozinho na cozinha às escuras e continuei a olhar em vão, até a silhueta dela ser engolida para lá da porta. Acendi a luz e entrei na casa de banho. A vaga de frio mantinha-se há vários dias, com temperaturas a rondarem os dez graus negativos. Tinha tomado um duche poucas horas antes,
pelo que os meus chinelos de plástico ainda estavam frios e molhados. A solidão daquela estação cruel estava a começar a fazer-se sentir, entrando pela abertura negra da grelha do ventilador, deslizando sobre os azulejos brancos e cobrindo o chão e as paredes. Quando voltei para a sala, a minha mulher estava deitada, com os joelhos puxados para o peito, no meio de um silêncio tão profundo que parecia que eu me encontrava ali sozinho. Claro que só podia ser imaginação minha. Se ficasse imóvel, sustivesse o fôlego e tentasse escutar, ouviria o som débil da sua respiração vindo do lugar onde estava. Contudo, não parecia aquela respiração
profunda e cadenciada de alguém que adormeceu. Se tivesse esticado o braço e pousado a mão sobre ela, teria certamente sentido o calor da sua pele. Mas não consegui tocar-lhe. Nem sequer me apetecia chegar a ela por meio de palavras. Na manhã seguinte, logo depois de ter aberto os olhos, no curto lapso de tempo em que a realidade estava ainda longe de definir os seus contornos habituais, continuei deitado, aconchegado no edredão, distraído a contemplar o sol de inverno que se escoava para dentro do quarto através da cortina branca. Nesse momento de abstração, olhei por acaso para o
relógio de parede e dei um salto mal vi as horas; abri a porta com um pontapé e saí apressadamente do quarto. A minha mulher estava diante do frigorífico. – Estás doida? Porque é que não me acordaste? Sabes que ho…? Pisei qualquer coisa com o pé, o que me fez parar a meio do que estava a dizer. Não conseguia acreditar no que via. Ela estava de cócoras, ainda em camisa de noite, o cabelo desgrenhado e emaranhado numa massa informe em redor do rosto. À sua volta, o chão da cozinha encontrava-se coberto de caixas herméticas e sacos de plástico, de tal forma espalhados que não havia sítio
onde pôr os pés sem pisar alguma coisa. Carne de vaca para o shabu-shabu, carne de porco, duas peças de lombo de vaca, choco num saco estanque, enguia fatiada que a minha sogra nos tinha mandado havia séculos lá da terra dela, sacos de bolos congelados ainda por abrir e uma quantidade infindável de molhos e outras coisas impossíveis de identificar, arrancadas das profundezas do frigorífico. Havia um ruído de fundo, uma espécie de ruge-ruge: a minha mulher punha as coisas que estavam à sua volta, uma a uma, dentro de sacos do lixo. Acabei por perder a cabeça. – Mas o que é que te deu? – gritei. Ela continuou a deitar os bocados de
carne para dentro dos sacos, aparentemente com o mesmo alheamento em relação à minha presença que mostrara na noite anterior. Carne de vaca, carne de porco, bocados de frango, pelo menos duzentos mil wons de enguias de água salgada. – Perdeste a cabeça? Por que raio estás a deitar isso tudo fora? Abri caminho, aos tropeções, por entre as caixas e os sacos de plástico e agarrei-a pelo pulso, tentando obrigá-la a parar o que estava a fazer. Incrédulo perante a sua resistência, por momentos quase hesitei, mas a minha indignação era tão grande que rapidamente me deu força para a dominar. Enquanto
massajava o pulso avermelhado, ela disse, no mesmo tom de voz normal e calmo que utilizara antes: – Tive um sonho. Outra vez aquelas palavras. A sua expressão ao olhar para mim estava absolutamente inalterada. Nesse preciso momento, o meu telemóvel tocou. – Porra! Comecei a procurá-lo nos bolsos do casaco que atirara para cima do sofá da sala na noite anterior, até que, finalmente, no último bolso, os meus dedos alcançaram o aparelho recalcitrante. – Desculpe. Surgiu um problema, um assunto familiar urgente, e por isso…
Peço muita desculpa. Vou para aí o mais depressa possível. Não, vou já sair. Agradeço que espere apenas um pouco mais. Peço imensa desculpa. Pois, agora não posso falar… Desliguei o telemóvel e corri para a casa de banho. Fiz a barba tão à pressa que me cortei em dois sítios. – Nem sequer engomaste a minha camisa branca? Não houve resposta. Limpei-me e fui procurar a camisa do dia anterior no cesto da roupa suja. Felizmente não estava demasiado enrugada. A minha mulher não se deu uma única vez ao trabalho de espreitar da cozinha durante o tempo todo em que estive a arranjar-
me, pondo a gravata à volta do pescoço como se fosse um cachecol, calçando as peúgas e pegando no portátil e na carteira. Em cinco anos de casados, era a primeira vez que tinha de ir para o trabalho sem ela me ajudar a despachar ou se despedir de mim. – Endoideceste. Estás completamente louca! Enfiei os pés nos sapatos que tinha comprado havia pouco, ficavam-me apertados e magoavam-me os pés, abri a porta da rua e saí a correr. Vi que tinham chamado o elevador do último andar e, por isso, desci num ápice os três lanços de escada. Só depois de ter conseguido saltar para dentro da carruagem do
metro, quando este já começava a pôr-se em andamento, é que tive tempo de ver como estava pelo reflexo da minha cara na janela escura da carruagem. Passei os dedos pelo cabelo, apertei a gravata e tentei alisar as rugas da camisa. A expressão estranhamente serena da minha mulher e a sua voz incongruentemente firme surgiram-me na mente. Tive um sonho – dissera-mo duas vezes. Para lá da janela, na penumbra do túnel, vislumbrei de relance o seu rosto – era o seu rosto, mas não me era familiar, como se estivesse a vê-lo pela primeira vez. No entanto, porque tinha apenas meia hora para arranjar uma
desculpa decente que justificasse o meu atraso a um cliente e ainda alinhavar uma proposta para a reunião que ia ter, não podia perder tempo a pensar no comportamento estranho da minha mulher, ela própria cada vez mais estranha. Decidi, pois, que haveria de arranjar maneira de sair mais cedo do escritório (sem me preocupar com o facto de que, desde que tinha assumido as minhas novas funções, não houvera um único dia em que tivesse saído antes da meia-noite) e preparar-me para uma discussão. Um bosque escuro. Sem ninguém. As folhas das árvores de pontas aguçadas, os meus pés feridos. Um
lugar quase familiar, mas agora estou perdida. Assustada. Com frio. Do outro lado da ravina gelada, uma casa vermelha a lembrar um celeiro. Um tapete de palha que passa para lá da porta e o vento levanta. Enrolo-o e entro, e aqui dentro é isto: uma longa vara de bambu cheia de bocados de carne vermelha espetados, com o sangue ainda a escorrer. Tento passar para lá da carne, mas esta nunca mais acaba e não há saída. Já tenho sangue na boca e a roupa ensopada de sangue cola-se à pele. Acaba por aparecer uma saída. Corro, corro pelo vale até que, de repente, surge um bosque. Árvores
cobertas de folhas, a luz verde da primavera. Famílias a fazerem piqueniques, crianças a correrem de um lado para o outro e aquele cheiro, aquele cheiro delicioso. Quase doloroso de tão vívido. O regato rumorejante, as pessoas a estenderem esteiras de junco para se sentarem, a petiscarem kimbap. Churrascos de carne por entre o barulho de pessoas a cantarem e a rirem de alegria. Mas o medo. As minhas roupas ainda molhadas de sangue. Esconde-te, esconde-te atrás das árvores. Põe-te de cócoras, não deixes que ninguém te veja. As minhas mãos sujas de sangue. Sangue na minha boca. Que tinha eu
feito naquele celeiro? Metera à força aquela massa crua vermelha dentro da boca, sentira-a espichar sobre as minhas gengivas e o céu da boca, pegajosa do sangue carmim. Mastigava algo que parecia tão real, mas não poderia ser, nunca. O meu rosto, a expressão dos meus olhos… era, sem sombra de dúvida, o meu rosto, mas nunca o tinha visto. Ou não, não era o meu, mas parecia-me tão familiar… nada fazia sentido. Familiar e, apesar disso, não… aquela sensação tão nítida, estranha, horrivelmente sinistra. A minha mulher tinha posto na mesa, para o jantar, alface e massa de soja,
sopa de algas sem a habitual carne ou amêijoas, e kimchi. – Mas que raio…? Quer dizer que, por causa de um sonho ridículo qualquer, decides deitar a carne toda fora? Já pensaste no quanto essa carne custou? Levantei-me da cadeira e abri o frigorífico. Estava praticamente vazio – as únicas coisas que restavam eram farinha de miso, pó de chili, chili congelado e um pacote de alho picado. – Faz-me uns ovos estrelados. Hoje estou mesmo esganado. Nem sequer almocei decentemente. – Também deitei fora os ovos. – O quê?
– E deixei de beber leite. – Isto é inacreditável. Estás a dizerme para não comer carne? – Não podia deixar aquelas coisas continuarem no frigorífico. Não seria correto. Como era possível que fosse tão egoísta? Fixei os seus olhos baixos, a sua expressão calma de autodomínio. Só a ideia de que ela podia ter este lado egoísta, de alguém que fazia o que lhe apetecia, era já inconcebível. Quem diria que ela podia ser tão insensata? – Portanto, estás a dizer-me que de agora em diante vai deixar de haver carne cá em casa? – Pensando bem, tu geralmente só
tomas o pequeno-almoço em casa. E deves comer muitas vezes carne ao almoço e ao jantar, por isso… não vais morrer por não comeres carne a uma refeição. A resposta dela foi tão metódica que até parecia que aquela sua decisão ridícula era completamente racional e acertada. – Ótimo! Portanto, fui excluído. E tu? Estás a dizer-me que a partir de agora vais deixar de comer carne? – Ela acenou com a cabeça. – Ah, sim? E até quando? – Acho que… para sempre. Fiquei sem palavras, embora estivesse também consciente de que
escolher uma alimentação vegetariana já não era uma coisa tão rara como noutros tempos. As pessoas decidem ser vegetarianas pelas mais variadas razões: por exemplo, na tentativa de alterar a sua predisposição genética para certas alergias, ou porque não comer carne é uma atitude considerada mais amiga do ambiente. Claro que os monges budistas que fazem determinados votos são moralmente obrigados a não participar na destruição da vida, mas tenho a certeza de que nem sequer as rapariguinhas impressionáveis levam a questão tão a sério. Para mim, os únicos motivos razoáveis para uma pessoa alterar os seus hábitos alimentares são o
desejo de perder peso, a tentativa de melhorar certos problemas físicos, ficar possuído por algum espírito maligno ou ter dificuldade em dormir por causa da indigestão. Excetuando qualquer destes casos, só uma questão de pura obstinação podia levar uma mulher a contrariar a vontade do marido, como a minha fizera. Se me dissessem que ela sempre se sentira ligeiramente nauseada pela carne, eu até compreendia, mas na verdade era até o contrário – desde que nos casáramos mostrara-se em todas as ocasiões uma cozinheira mais do que competente, e sempre me impressionara o seu jeito para fazer comida. Com uma
tenaz numa mão e uma tesoura na outra, ia voltando as costeletas numa frigideira a crepitar ao mesmo tempo que as cortava aos bocadinhos, com os movimentos ágeis de quem estava habituado a fazer aquilo. O segredo da sua carne de porco frita cheirosa e caramelizada era mariná-la numa mistura de gengibre picado com molho de amido glutinoso. O seu prato mais famoso eram fatias de carne de vaca tão finas como bolachas, temperadas com pimenta preta e óleo de sésamo e cobertas depois com uma viscosa tempura de pó de arroz, como se estivesse a fazer bolos ou panquecas de arroz, e por fim mergulhadas num molho
borbulhante de shabu-shabu. Costumava fazer bibimbap com rebentos de feijão, carne picada e arroz previamente demolhado frito em óleo de sésamo. Fazia também uma sopa espessa de pato com batata aos bocados, e um caldo picante de amêijoas e mexilhões, dos quais eu me servia três vezes de uma assentada com todo o prazer. O que tinha agora na mesa à minha frente era uma desculpa para saltar uma refeição. Com a cadeira afastada da mesa e ligeiramente de lado, a minha mulher foi comendo a sopa de algas, que obviamente devia saber a água e nada mais. Espalhou arroz e massa de soja sobre uma folha de alface, depois
enrolou-a, trincou o wrap e mastigou-o vagarosamente. Não conseguia compreendê-la. Só depois é que me apercebi de que não conhecia aquela mulher. – Não comes? – perguntou distraidamente, lançando a pergunta para o ar como se fosse uma senhora de meia-idade a falar para o filho já crescido. Mantive-me sentado, em silêncio, assumidamente desinteressado daquela miséria de refeição, mordiscando kimchi durante o que pareceu uma eternidade. Chegou a primavera, e a minha mulher ainda não tinha vacilado. Cumpria escrupulosamente a sua palavra
– nunca vi um único pedaço de carne passar-lhe pelos lábios – mas havia muito que eu desistira de me queixar. Quando numa pessoa se opera uma transformação tão drástica, não há nada a fazer senão deixar andar. Ela emagrecia a olhos vistos, de tal forma que as maçãs do rosto se tornaram indecentemente salientes. Sem maquilhagem, a sua tez parecia a de uma doente no hospital. Se tivesse sido apenas mais uma mulher a desistir de comer carne para perder peso, não haveria motivos para preocupação, mas eu estava convencido de que havia algo mais além de um simples caso de vegetarianismo. Tinha de ter algo que
ver com aquele sonho de que me falara; só podia ser isso que estava por detrás daquela atitude. Embora, na verdade, ela tivesse praticamente deixado de dormir. Ninguém podia descrever a minha mulher como uma pessoa particularmente atenciosa – muitas vezes, ao chegar tarde a casa, dava com ela já a dormir. Mas, nos últimos tempos, eu entrava em casa à meia-noite e, mesmo depois de me lavar, de preparar a cama e de me deitar, ela continuava horas na sala sem vir ter comigo. Não estava a ler, não estava num chat qualquer na Internet e não estava a ver televisão por cabo pela noite dentro. A única coisa que eu
imaginava que ela poderia estar a fazer era a trabalhar nos balões de banda desenhada, mas era praticamente impossível isso levar-lhe tanto tempo. Só ia para a cama por volta das cinco da manhã e, mesmo assim, eu não poderia afirmar com toda a certeza se ela passava a hora seguinte a dormir ou não. Com o rosto macilento e o cabelo despenteado, observava-me de olhos vermelhos e semicerrados enquanto eu tomava o pequeno-almoço. Pegava distraidamente na colher, mas não se preocupava em comer fosse o que fosse. Porém, o que mais me incomodava era ela parecer andar a evitar deliberadamente o sexo. Antes,
mostrava-se em geral disposta a satisfazer as minhas carências físicas e houvera até uma ou outra vez em que fora ela a tomar a iniciativa. Mas agora, embora sem qualquer espalhafato, se a minha mão lhe tocasse nem que fosse ao de leve no ombro, ela afastava-se calmamente. Um dia, decidi confrontá-la por causa disso: – Qual é exatamente o problema? – Estou cansada. – Bem, então isso significa que estás a precisar de comer carne. É por isso que não tens energia, não percebes? Dantes não eras assim. – Por acaso… – O que foi?
– … é o cheiro. – Que cheiro? – O cheiro a carne. O teu corpo cheira a carne. Não havia palavras para responder a uma coisa tão ridícula. – Não viste que acabei de tomar duche? Donde é que esse cheiro vem, hein? – Do mesmo sítio donde vem o teu suor – respondeu, com o tom mais sério do mundo. De vez em quando, tudo aquilo me parecia mais vagamente sinistro do que ridículo. E se, por acaso, estes sintomas não passassem? Se os sinais de histeria, delírio, esgotamento nervoso, que eu
tinha a sensação de detetar no que ela dizia, acabassem por conduzir a algo mais? Ao mesmo tempo, era-me difícil acreditar que ela estivesse mesmo a ficar louca. Normalmente, estava tão taciturna como sempre fora e continuava a manter a casa em ordem. Aos fins de semana, preparava legumes para acompanhamentos que comeríamos durante a semana e até fazia noodles de feijão salteados com cogumelos em vez de carne. Na verdade, nem era uma coisa assim tão estranha, tendo em conta que aparentemente estava na moda ser vegetariano. Só passou a ser realmente estranho quando ela deixou de conseguir
dormir, e também porque as covas do seu rosto se tornaram mais pronunciadas do que nunca, como se ela estivesse a esvaziar-se por dentro. E de manhã, quando lhe perguntava o que tinha, a única resposta era: «Tive um sonho.» Nunca a questionava sobre aqueles sonhos. Já uma vez fora obrigado a ouvir aquele relato louco sobre o celeiro na floresta, o rosto refletido na poça de sangue e tudo o resto, e uma vez chegava. Por causa desse sonho agonizante, do qual eu era excluído, que não tinha maneira de conhecer e, ainda por cima, não queria mesmo conhecer, ela continuou a definhar. A princípio, o seu
corpo foi-se adelgaçando até ficar com a silhueta perfeita e retilínea de uma bailarina, e tive esperanças de que as coisas ficassem por aí, mas agora estava reduzida ao esqueleto de um inválido. Sempre que era acometido por estes pensamentos perturbadores, tentava tranquilizar-me recordando o que sabia da família dela. O pai trabalhava numa serração de uma pequena vila rural onde a mãe tinha uma loja minúscula, e a minha cunhada e o marido eram normais, boas pessoas até – pelo que, por aí, não parecia haver qualquer vestígio de anomalia mental. De resto, não conseguia pensar na família dela sem me lembrar do cheiro
da carne a fritar, do alho refogado, do som de copos a tilintarem e das conversas ruidosas das mulheres vindas da cozinha. Todos eles – mas especialmente o meu sogro – gostavam de yuk hwe, uma espécie de bife tártaro. Tinha visto a minha sogra tirar as tripas a peixes ainda vivos, e tanto a minha mulher como a irmã eram perfeitamente capazes de cortar um frango aos bocados com um cutelo de talhante. Sempre me agradara a vitalidade telúrica da minha mulher, a forma como ela apanhava baratas e as esmagava com a palma da mão, por exemplo. Na verdade, antes de tudo aquilo acontecer, ela era a pessoa mais normal do mundo.
Mesmo atendendo à extrema imprevisibilidade do seu estado, não estava preparado para ponderar a hipótese de a levar a uma consulta de urgência, muito menos aconselhar-lhe qualquer tratamento. Não há nada de errado com ela, repetia para mim próprio, este tipo de coisa nem sequer é verdadeiramente uma doença. Resisti à tentação de ceder à introspeção. Aquela situação estranha não tinha nada que ver comigo. Na manhã antes de ter tido o sonho, estava a picar carne congelada, lembras-te? Ficaste irritado. – Bolas, mas o que é que te deu para te estares a franzir toda? Nunca
foste pessoa de te enjoares. Se soubesses o esforço que sempre fiz para controlar os nervos. As outras pessoas costumam ficar apenas um pouco agitadas mas, comigo, torna-se tudo confuso e acelerado. Depressa, mais depressa. A mão que segurava a faca estava a movimentar-se com tanta rapidez que eu sentia calor na nuca, uma espécie de formigueiro. A minha mão, a tábua de cozinha, a carne e depois a faca gélida a cortar-me o dedo. Uma gota de sangue vermelho já a brotar do golpe. Mais fundo do que a sua real profundidade. Meter o dedo na boca acalmou-me. Aquela cor
escarlate, e depois o sabor, uma certa doçura a disfarçar outra coisa qualquer, deixaram-me estranhamente pacificada. Mais tarde nesse mesmo dia, quando te sentaste à frente de um prato de bulgogi, cuspiste a segunda garfada porque apanhaste uma coisa qualquer que brilhava. – Mas que raio é isto? – gritaste. – Uma lasca da faca? Olhei vagamente para o teu rosto distorcido pelo ataque de raiva. – Já pensaste no que poderia acontecer se eu tivesse engolido isto? Por pouco não morri! Por que razão nada daquilo me
agitou como seria de esperar? Pelo contrário, até fiquei mais calma. Uma mão fresca na minha testa. De repente, tudo à minha volta começou a deslizar, como se estivesse a ser levado na voragem de uma corrente. A mesa de jantar, tu, todos os móveis da cozinha. Estava sozinha; era a única coisa que restava na infinidade do espaço. Madrugada do dia seguinte. A poça de sangue no celeiro… A primeira coisa que vi foi o meu rosto ali refletido. – Que aconteceu aos teus lábios? Não te maquilhaste? Tornei a descalçar os sapatos e obriguei a minha mulher, que já tinha o
casaco vestido, a dirigir-se nervosa à sala. – Tencionavas mesmo sair de casa nesse estado? – Estávamos ambos refletidos no espelho do aparador. – Vai lá maquilhar-te como deve ser. Ela desviou-se delicadamente da minha mão, abriu a caixa do pó de arroz e espalhou-o sobre a cara com o pincel. O pó deu-lhe um ar manchado, como se tivesse ficado em montículos. O bâton, de uma cor de coral intensa que costumava usar sempre, e sem o qual os seus lábios pareciam os de um morto, conseguiu, porém, aliviar a sua palidez doentia. Fiquei mais calmo. – Estamos atrasados. Despacha-te.
Abri a porta da rua e fiz-lhe sinal para que saísse, observando impaciente a atrapalhação dela com os ténis azuisescuros. Não condiziam com o trench coat preto, mas não havia nada a fazer. Não lhe restava um único par de sapatos elegantes; tinha decidido deitar fora tudo o que fosse feito de couro. Assim que pus o carro a trabalhar, liguei o rádio para ouvir as informações de trânsito, em especial qualquer referência a problemas na zona onde ficava o restaurante coreano-chinês que o meu patrão reservara. Após certificarme de que não seria mais rápido ir por um caminho alternativo, pus o cinto e soltei o travão de mão. A minha mulher
passou um minuto às voltas com o casaco até que finalmente lá conseguiu pôr também o cinto, depois de umas quantas tentativas falhadas. – Preciso de que corra tudo bem esta noite. Sabes bem que é a primeira vez que o meu patrão me convida para um destes jantares. Só conseguimos chegar ao restaurante mesmo em cima da hora e, ainda assim, apenas por eu ter ido sempre pela estrada principal. O edifício de dois andares, com um espaçoso parque de estacionamento em frente, era claramente um lugar sofisticado. O frio daquele inverno que estava a
chegar ao fim teimava em manter-se, e a minha mulher parecia congelada, ali parada no parque de estacionamento com um casaco leve de primavera. Não tinha dito uma única palavra durante todo o caminho, mas convenci-me de que isso não queria dizer que houvesse qualquer problema. Não há mal nenhum em uma mulher estar calada; aliás, não é isso mesmo que tradicionalmente se espera delas – que sejam sóbrias e recatadas? O meu patrão e os diretores geral e executivo já tinham chegado com as respetivas mulheres. O chefe de secção e a mulher apareceram pouco depois de nós. O grupo estava completo.
Cumprimentámo-nos com acenos de cabeça e sorrisos, tirámos os casacos e pendurámo-los. A mulher do meu patrão, uma figura imponente, com as sobrancelhas reduzidas a uma fina linha e um enorme colar de jade ao pescoço, acompanhou-me a mim e à minha mulher até à mesa já posta para o que prometia ser uma refeição sumptuosa, e sentou-se à cabeceira. Todos os outros pareciam bastante à vontade, como se fossem clientes habituais. Sentei-me com o cuidado de não ser apanhado a olhar de boca aberta para os ornamentos do teto, tão elaborados como os dos beirais das casas tradicionais. Os meus olhos ficaram presos num peixinho dourado
que nadava preguiçosamente num aquário de vidro mas, quando me voltei para o mostrar à minha mulher, o que vi deixou-me sem fala. Ela trouxera uma blusa preta um pouco justa e, para minha grande humilhação, percebi que os bicos dos seus mamilos eram claramente visíveis através do tecido. Não tinha a menor dúvida: ela viera sem sutiã. Enquanto os outros convidados estavam subrepticiamente a voltar-se e a esticar os pescoços para se certificarem de que estavam mesmo a ver aquilo que parecia, os olhos da mulher do diretor executivo cruzaram-se com os meus e, apesar de ela tentar manter a
compostura, registei a curiosidade, o espanto e o desprezo que neles se espelhavam. Senti as minhas faces corarem. Cheio de vergonha da minha mulher, ali sentada, com um olhar distante e sem fazer a menor tentativa de se juntar à conversa jovial das outras senhoras, dominei-me e decidi que o melhor a fazer, a única coisa a fazer, era agir com naturalidade e fingir que não havia nada de errado. – Teve dificuldade em encontrar o restaurante? – perguntou a mulher do meu patrão. – Não, não, já tinha passado por aqui uma ou duas vezes. Aliás, até
andava a pensar em cá vir. – Ah, pois… o jardim acabou por ficar bastante bonito, não acha? Devia experimentar vir também de dia. Daquela janela ali veem-se os canteiros. Quando a comida começou a ser servida, senti que o esforço de tentar manter um ar normal, que até àquele momento tinha mais ou menos conseguido, ia fazer-me soçobrar. A primeira coisa que nos puseram à frente foi um prato requintado de gelatina de feijão-mungo coberta com pequenos pedaços de geleia de ervilhas, cogumelos e carne de vaca. A minha mulher, que desde que nos sentáramos tinha ficado a observar em silêncio o
que se passava, abriu finalmente a boca no momento em que o empregado estava prestes a servi-la. – Eu não como isso. Apesar de o ter dito quase num sussurro, os outros convidados pararam instantaneamente o que estavam a fazer, dirigindo olhares furtivos de surpresa e espanto para o corpo emaciado da minha mulher. – Não como carne – explicou ela, desta vez ligeiramente mais alto. – Não acredito! Então, você é daquelas pessoas «vegetarianas», não é? – perguntou o meu patrão. – Bem, eu sabia que noutros países existem pessoas que são estritamente
vegetarianas. E mesmo cá parece que as atitudes estão a começar a mudar um pouco. De vez em quando aparece alguém a dizer que faz mal comer carne… Pesando bem, deixar de comer carne para viver muitos anos até nem é uma coisa assim tão desprovida de sentido. – Mas não é possível viver sem comer carne, pois não? – perguntou a mulher dele com um sorriso. O empregado levantou nove pratos, deixando na mesa o prato ainda reluzente da minha mulher. A conversa prosseguiu naturalmente no tema do vegetarianismo. – Lembram-se daqueles esqueletos
mumificados que foram descobertos há uns tempos? Aparentemente, há quinhentos mil anos, o homem já caçava para se alimentar de carne, foi a conclusão a que se chegou. Comer carne é um instinto humano básico, o que significa que o vegetarianismo vai contra a natureza humana, certo? Não é simplesmente natural. – Normalmente, as pessoas tornavam-se vegetarianas porque aderiam a uma determinada ideologia… Eu próprio já fui a vários médicos e fiz testes para ver se havia alguma coisa em particular que devesse evitar, e todos eles me disseram coisas diferentes… De qualquer maneira, a ideia de fazer uma
alimentação especial sempre me incomodou. Acho que uma pessoa não deve ter um espírito demasiado limitado em matéria de comida. – As pessoas que decidem arbitrariamente deixar de comer isto ou aquilo, sem serem alérgicos a nada… é preciso ser-se mesmo tacanho – atalhou a mulher do diretor-executivo, que não parava de lançar olhares furtivos aos seios da minha mulher. – Uma alimentação equilibrada é sinal de uma mente equilibrada, não acham? – E, nesta altura, disparou a seta diretamente para a minha mulher. – Houve alguma razão especial para se tornar vegetariana? Por exemplo, questões de
saúde… ou religiosas, talvez? – Não. – A forma calma como respondeu provou que não tinha a mínima noção de como a situação estava a tornar-se delicada. De repente, senti um calafrio, porque soube instintivamente o que ela ia dizer a seguir. – Tive um sonho. Comecei rapidamente a falar para abafar a voz dela: – Há muito tempo que a minha mulher andava a sofrer de gastroenterite. Às vezes, as crises eram tão graves que nem conseguia dormir. Um nutricionista aconselhou-a a deixar de comer carne e, desde então, os sintomas melhoraram muito. Só nessa altura é que os outros
acenaram com a cabeça, em sinal de compreensão. – Bem, devo confessar que me dou por muito feliz por nunca ter sido obrigado a comer com um verdadeiro vegetariano. Detestaria ter de partilhar uma refeição com alguém que considera repugnante comer carne, só por ser essa a sua opinião pessoal, não concordam? – Imaginem que estavam a apanhar um polvo pequenino com os vossos pauzinhos e que o matavam à dentada… e que a mulher à vossa frente vos fuzilava com o olhar como se vocês fossem uns animais. Deve ser essa a sensação de estar sentado a comer com um vegetariano!
Toda a gente desatou a rir, e eu fui registando cada gargalhada em particular. Escusado será dizer que a minha mulher nem sequer esboçou um sorriso. Por esta altura, estavam concentrados em ocupar a boca a comer, para que nenhum deles tivesse de preencher os silêncios constrangedores que se iam abatendo sobre a conversa. Era óbvio que todos se sentiam incomodados. O prato seguinte foi frango frito com molho de chili e alho e, depois desse, atum cru. A minha mulher manteve-se sentada, imóvel, com os mamilos a fazerem lembrar duas bolotas espetadas no tecido da blusa, enquanto todos os
outros iam comendo. O seu olhar pousava intencionalmente sobre as bocas dos restantes convidados, que mastigavam com rapidez, demorando-se em cada um dos seus recantos, como se quisesse registar tudo até ao mais ínfimo pormenor. Depois de os doze magníficos terem sido servidos, a minha mulher não tinha comido nada senão salada e kimchi, e um bocadinho de puré de aveia. Nem sequer tocara no pudim de arroz, porque eles tinham uma receita especial que incluía caldo de carne para lhe dar um sabor mais intenso e sofisticado. Pouco a pouco, os outros convidados foram-se habituando a ignorar a presença dela, e a
conversa voltou a fluir. De vez em quando, talvez por pena, faziam um esforço para me incluírem nela mas, lá no fundo, eu sabia que queriam manter uma certa distância de nós. Quando trouxeram fruta para a sobremesa, a minha mulher comeu uma pequena fatia de maçã e um único gomo de laranja. – Não tem fome? Por amor de Deus, você não comeu praticamente nada! – Havia algo de exagerado no tom afectuoso e sociável com que a mulher do meu patrão exprimiu a sua preocupação. Mas o sorriso reservado e apologético, que seria a única resposta razoável, nunca chegou a aparecer e,
sem sequer ter a delicadeza de se mostrar constrangida, a minha mulher limitou-se a olhar secamente para a mulher do meu patrão. Aquela expressão alarmou todos os presentes. Seria possível que ela nem sequer tivesse consciência da situação? Que não tivesse percebido a importância da senhora elegante de meia-idade que tinha à sua frente? Que se esconderia nas reentrâncias sombrias da sua mente? Que segredos seriam esses de que eu nunca suspeitara? Naquele momento, a minha mulher era-me uma perfeita desconhecida. Não sabia exatamente como agir, mas tinha consciência de que precisava
de fazer alguma coisa. Foi esse o dilema que me atormentou no carro durante o regresso a casa. Por seu turno, a minha mulher estava imperturbável, não tinha aparentemente noção do comportamento vergonhoso que tivera ao jantar. Ia sentada com a cabeça apoiada no vidro da janela, quase como se estivesse a passar pelas brasas. Como é óbvio, fiquei irritado. Queria que o marido fosse despedido? Onde raio tinha ela a cabeça? Mesmo assim, fiquei com a sensação de que nada faria a menor diferença. Não conseguiria demovê-la nem com raiva, nem com paninhos quentes, e sentia-me completamente incapaz de dar
conta do recado. Depois de se lavar e de vestir a camisa de noite, ela meteu-se no quarto em vez de se preparar para dormir na sala, como costumava fazer. Fiquei a andar de um lado para o outro até que, a certa altura, ouvi o telefone tocar: era a minha sogra. – Está tudo bem por aí? Há tanto tempo que não dizem nada… – Desculpe. É que ultimamente tenho tido muito que fazer… e o meu sogro, está de boa saúde? – Ah, connosco está tudo na mesma. O trabalho está a correr bem? Hesitei. – Sim, comigo está tudo bem. Mas
com a minha mulher… – Que tem a Yeong-hye? Algum problema? – Notava-se a preocupação na sua voz. Nunca demonstrara grande interesse pela sua segunda filha mas, pensando bem, os filhos são sempre filhos. – O problema é que ela deixou de comer carne. – Que foi que disseste? – Deixou de comer qualquer espécie de carne, mesmo carne de peixe. A alimentação dela agora resume-se a verduras. E isto já dura há vários meses. – Que estás para aí a dizer? Certamente que podes convencê-la a não se alimentar dessa maneira.
– Oh, estou farto de lho dizer, mas continua na mesma e desafia-me. E o pior é que me impôs esta alimentação ridícula também a mim. Já nem me lembro da última vez que comi carne cá em casa. A minha sogra estava sem palavras, e aproveitei o seu silêncio para fazer as coisas piores do que eram. – Ela está tão fraca. Não consigo avaliar exatamente a gravidade da situação… – Não vou permitir isso. A Yeonghye está aí? Passa-lhe imediatamente o telefone. – Ela já se foi deitar. Eu digo para lhe ligar amanhã de manhã.
– Não, deixa estar. Ligo eu. Como é que essa rapariga pode ser tão provocadora? Deves ter tanta vergonha dela! Depois de desligar, procurei o número da minha cunhada e liguei-lhe. Foi uma verdadeira agressão para os meus ouvidos quando o filho dela gritou «Estou?» do outro lado da linha. – Passa o telefone à tua mãe, por favor. In-hye, que rapidamente tirou o auscultador das mãos do filho, era bastante parecida com a minha mulher, mas tinha uns olhos maiores e mais bonitos e era, na verdade, muito mais feminina.
– Estou? A voz dela ao telefone – não sei bem porquê, mas era sempre muito mais clara do que pessoalmente – tinha o condão de me excitar. Informei-a sobre a conversão da minha mulher ao vegetarianismo, tal como o fizera com a mãe delas, ouvi a mesma sequência de exclamações de espanto seguida de um pedido de desculpas e, depois de agradecer as suas palavras de apoio, desliguei. Pensei em repetir o processo ligando para o irmão mais novo da minha mulher, Yeong-ho, mas decidi que talvez fosse um exagero. Sonhos de homicídio. Assassino ou assassinado…
contornos confusos, fronteiras cada vez mais ténues. A familiaridade esvai-se em estranheza, a certeza torna-se impossível. Só a violência é suficientemente nítida para permanecer. Um som, a elasticidade do momento em que o metal atingiu a cabeça da vítima… a sombra que se dobrou sobre si mesma e caiu lança um brilho gélido por entre a escuridão. Cada vez ocorrem com mais frequência. Sonhos a que se sobrepõem outros sonhos, num palimpsesto de horror. Atos violentos perpetrados durante a noite. Uma vaga sensação que não sei definir… mas que recordo com profundo horror.
Uma repugnância insuportável, há tanto tempo reprimida. Uma repugnância que sempre tentei disfarçar com ternura. Mas agora a máscara está a cair. Aquela sensação horrível, sórdida, repugnante, brutal. É tudo o que resta. Assassino ou assassinado, uma experiência demasiado intensa para não ser real. Determinada, desenganada. Gelatinosa, como sangue fresco. Tudo começa a parecer desconhecido. Como se tivesse ido para o fundo de qualquer coisa. Como se estivesse fechada atrás de uma porta sem maçaneta. Talvez só agora esteja a
ver essa coisa que sempre cá esteve. Está escuro. Está tudo a extinguir-se por entre a escuridão. Ao contrário do que esperara, a capacidade de persuasão da minha sogra e da minha cunhada não tiveram o menor efeito sobre o regime alimentar da minha mulher. No fim de semana o telefone tocou, e ela atendeu. – Yeong-hye – berrou o meu sogro –, continuas sem comer carne? – Era certamente a primeira vez na vida que ele usava um telefone, e eu conseguia ouvir os seus gritos excitados escapando-se do auscultador. – Com quem pensas que estás a brincar, hein? A comportares-te dessa maneira na tua
idade, que é que achas que o senhor Cheong vai pensar? – A minha mulher manteve-se num silêncio absoluto, com o telefone encostado ao ouvido. – Porque é que não respondes? Não ouves o que te estou a dizer? A minha mulher deixara uma panela de sopa ao lume e, por isso, pousou o auscultador na mesa sem proferir uma única palavra e foi à cozinha. Fiquei ali durante algum tempo a ouvir o meu sogro a libertar a sua raiva sem saber que não estava ninguém do outro lado, mas acabei por ter pena dele e peguei no auscultador. – Desculpe, sogro. – Não, eu é que estou envergonhado.
Foi um choque para mim ouvir aquele homem patriarcal pedir desculpa. Conhecia-o havia cinco anos e nunca ouvira tais palavras saírem-lhe por entre os lábios. Vergonha e empatia eram coisas que não condiziam com ele. Nunca se cansava de se vangloriar de ter recebido a Ordem de Mérito Militar pela sua missão no Vietname e, além de falar sempre muito alto, a sua voz era a de um homem com ideias muito rígidas. Eu, no Vietname… sete vietcongues… Como seu genro, conhecia muito bem o princípio do monólogo. A minha mulher dizia que ele lhe tinha batido até aos dezoito anos. – …seja como for, vêm ambos cá no
próximo mês e, nessa altura, vamos acabar com isso. A reunião de família, marcada para o segundo domingo do mês de junho, ia ser decididamente da maior importância. Mesmo que ninguém o dissesse abertamente, era fácil perceber que estavam todos a preparar-se para dar um valente sermão à minha mulher. Quer estivesse consciente disso, quer não, o certo é que ela não parecia nada perturbada. Tirando o facto de continuar de modo deliberado a evitar dormir comigo – agora até se deitava de calças –, à superfície continuávamos a ser um casal normal. A única coisa que mudara era que, de manhã cedo, quando
eu tentava agarrar o despertador para o desligar e depois me sentava na cama, ela costumava estar deitada ao pé de mim, direita que nem um fuso, a olhar para o escuro de olhos esbugalhados. Depois do jantar no restaurante, os meus colegas da empresa tinham começado a tratar-me com uma frieza óbvia, mas, quando o projeto pelo qual eu fora responsável começou a dar um lucro nada despiciendo, toda essa acrimónia pareceu ficar completamente esquecida. Às vezes dizia para mim próprio que, apesar de a mulher com quem vivia ser um pouco estranha, nada de particularmente mau daí resultaria. Achava que podia continuar a sentir-me
bem, desde que pensasse nela como uma desconhecida, ou então uma irmã, ou até uma criada, alguém que põe a comida na mesa e mantém a casa arrumada. Mas não era fácil para um homem na primavera da vida, cujo casamento sempre correra sem o menor atrito, aguentar um período tão longo sem satisfazer as suas necessidades físicas. Por isso, enfim, uma noite, ao chegar tarde a casa depois de ter bebido um pouco demais num jantar com colegas, agarrei na minha mulher e obriguei-a a deitar-se. Enquanto ela se debatia, prendi-lhe os braços e baixei-lhe as calças, e sentime inesperadamente excitado. Ela resistiu com uma força
surpreendente, sem nunca parar de me rogar pragas e insultar, mas ao fim de três tentativas lá consegui penetrá-la. Quando aconteceu, ela ficou imóvel no meio da escuridão, a olhar fixamente para o teto e com o rosto inexpressivo, como se fosse uma «mulher de alívio», arrastada contra sua vontade, e eu o soldado japonês que exigia os seus serviços. Assim que acabei, ela voltouse de lado e afundou a cara no edredão. Fui tomar um duche e, quando voltei para a cama, estava lá deitada, de olhos fechados, como se nada tivesse acontecido, ou como se tudo se tivesse milagrosamente resolvido durante o tempo em que estivera a lavar-me.
Depois desta primeira vez, foi mais fácil para mim tornar a fazê-lo, mas de todas as vezes era assaltado por premonições estranhas e de agoirentas. Eu era, por natureza, bastante insensível e não tinha o hábito de perder tempo com esquisitices, mas a escuridão e o silêncio da sala causavam-me arrepios. Na manhã seguinte, quando estava sentado à mesa a tomar o pequenoalmoço com a minha mulher – que mantinha os lábios firmemente cerrados, como de costume, sem prestar a mínima atenção ao que eu dissesse –, nunca conseguia esconder um sentimento de repugnância ao olhar para ela. Não aguentava a forma como aquela sua
expressão de mulher que sofrera uma experiência muito amarga, que passara por momentos terríveis, pesava na minha consciência. Foi numa noite, três dias antes da reunião de família. Nesse dia, a humidade em Seul atingira um máximo histórico, e por todo o lado o ar condicionado soprava em força. Depois de ter passado o dia todo no escritório, comecei a sentir arrepios e, por isso, fui para casa mais cedo do que era habitual. Quando abri a porta e vi a minha mulher, entrei rapidamente e fechei logo a porta; a entrada dava para um patamar com vários apartamentos, e a última coisa que queria era que alguém passasse e
espreitasse lá para dentro. Ela estava sentada a descascar batatas, encostada ao móvel da televisão, com umas calças de algodão finas, mas sem nada vestido da cintura para cima. Emagrecera tanto que os seios eram dois altinhos abaixo das clavículas terrivelmente salientes. – Porque é que te despiste? – perguntei-lhe, tentando forçar um risinho. – Porque está calor – respondeu, sem levantar a cabeça nem parar o que estava a fazer. Rangi os dentes. Olha para mim, desejei, mas sem lhe pedir em voz alta. Olha para mim e sorri. Prova-me que a tua resposta foi só uma piada. Mas ela
não sorriu. Eram oito da noite e a porta da varanda encontrava-se aberta, o que significava que o apartamento estava bastante fresco, e os ombros dela cobertos de pele de galinha, como minúsculas sementes de sésamo. As cascas de batata estavam empilhadas sobre folhas de jornal. Num montinho encontravam-se umas trinta batatas. – Que tencionas fazer com tanta batata? – perguntei, fingindo-me perfeitamente calmo. – Cozê-las. – Todas? – Hum-hum. Ri-me hesitantemente e esperei que ela risse também. Mas não o fez, nem
sequer levantou a cabeça. – É que… enfim, estava com fome. Sonho com as minhas mãos à volta do pescoço de alguém, a estrangular essa pessoa, a agarrar-lhe nas pontas ondulantes do cabelo comprido e a arrancá-lo todo, a espetar-lhe o dedo no olho gelatinoso. Nestas longas horas ao amanhecer, a rua pintada com um cinzento de pombo, a minha determinação vacila, mas os meus dedos enclavinham-se para matar. O gato da casa ao lado, aqueles seus olhos brilhantes que me atormentam, os meus dedos podiam apertá-lo até eles deixarem de brilhar. Sinto as pernas a tremer e a testa coberta de
suores frios. Torno-me uma pessoa diferente, ergue-se dentro de mim uma pessoa diferente, que me devora, nessas horas… A saliva acumula-se na minha boca. O talho. Tenho de fechar a mão sobre a boca. A saliva escorre desde o fundo da língua até aos lábios. Escorre por entre os lábios, a gotejar. Se ao menos conseguisse dormir. Se me fosse permitido libertar-me deste estado de consciência, nem que fosse só por uma hora. A casa está fria nestas noites, e são tantas que já lhes perdi a conta, aquelas em que acordo e ando descalça pela casa. Fria como arroz ou sopa deixados a arrefecer.
Não se consegue ver nada para lá do negrume da janela. A porta da rua, uma mancha escura, range de vez em quando, mas nada acontece, ninguém bate à porta. Quando volto para a cama e ponho a mão debaixo do edredão, todo o calor desapareceu. Dormir em lapsos de cinco minutos. Mal deslizo para lá da consciência atordoada, lá está ele de volta – o sonho. Já nem posso chamar-lhe isso. Olhos de animais a reluzirem com um ar selvagem, a presença de sangue, uma caveira desenterrada, aqueles olhos de novo. Uma sensação que me vem da boca do estômago. Acordo a tremer, as minhas mãos, preciso de ver
as minhas mãos. Respirar. As unhas continuam macias, os dentes suaves. Agora só posso confiar nos meus seios. Gosto deles, não podem matar nada. Mão, pé, língua, olhar – tudo armas, sei que nada está a salvo delas. Mas os meus seios, não. Com os meus seios redondos está tudo bem. Por enquanto. Então, porque será que continuam a encolher? Já nem sequer são redondos. Porquê? Por que motivo estarei a mudar tanto? Porque está todo o meu corpo a ficar aguçado – que será que vou rasgar? O apartamento soalheiro, voltado a sul, era no décimo sétimo andar. A vista para leste estava cortada por outros
edifícios, mas nas traseiras ainda se viam as montanhas ao longe. – Vamos lá esquecer todas as preocupações – declarou o meu sogro, pegando na colher e nos pauzinhos. – Procuremos desfrutar plenamente deste dia! Ainda antes de se casar, a minha cunhada In-hye já conseguia manter um apartamento com o que ganhava como gerente de uma loja de cosméticos. Até ao momento em que engravidara, o tamanho da loja triplicara e, depois de ter dado à luz, insistia em passar por lá – embora só à noite e por pouco tempo – para ter a certeza de que tudo corria sobre rodas na sua ausência. Quando o
meu sobrinho Ji-woo fez três anos e foi para o infantário, ela voltou a estar o dia inteiro na loja. Tinha inveja do marido dela. Tirara o curso de Belas-Artes e gostava de assumir uma pose de artista, mas não contribuía nem com um chavo para as despesas. Herdara umas propriedades, mas isso não significava que levasse dinheiro para casa – na verdade, a sua atividade resumia-se a estar sentado e não fazer rigorosamente nada. Agora, que In-hye tinha arregaçado as mangas e voltado ao trabalho, o marido ficara à vontade para se ocupar da sua «arte», sem uma única preocupação a perturbar a sua confortável existência. E, além
disso, In-hye era uma excelente cozinheira, tal como a minha mulher fora em tempos. Ao ver sobre a mesa o almoço que ela confecionara tão rapidamente, senti um súbito e doloroso ataque de fome. A silhueta elegante e composta dela, os olhos grandes, as pestanas postiças e a sua maneira recatada de falar fizeram-me arrepender amargamente das muitas coisas que, de uma forma ou de outra, acabara por perder por me ter deixado empurrar para o tormento em que agora vivia. Sem elogiar a casa ou agradecer à irmã por se ter dado ao trabalho de fazer a comida, a minha mulher sentou-se em silêncio a comer arroz e kimchi. Eram
praticamente as únicas coisas que ingeria. A maionese tinha ovos e, por isso, também não fazia parte do seu cardápio – nem sequer tocou com os pauzinhos na salada, cujo aspeto fazia crescer água na boca. O seu rosto parecia ter sido mergulhado em lixívia, devido à insónia prolongada. Qualquer pessoa que se cruzasse com ela na rua pensaria tratarse de uma doente que fugira do hospital. Mais cedo nesse dia, pouco depois de termos entrado lá em casa, ela fora chamada ao quarto principal; passado algum tempo, a minha cunhada foi a primeira a sair de lá e, pela sua expressão de incredulidade, calculei que
a minha mulher tivesse vindo sem sutiã. E o cálculo estava correto porque, quando olhei para ela mais de perto, vislumbrei os seus mamilos acastanhados como nódoas no algodão da blusa. – Quanto é que pagaram de entrada por esta casa? – …Queres mesmo saber? Ontem estivemos a consultar o site da imobiliária; o preço do apartamento já subiu entretanto para cerca de cinquenta milhões de wons. Porque no próximo ano ficará concluída a extensão da linha do metropolitano até aqui, percebes? – Tenho a certeza de que o meu cunhado tem jeito para este tipo de
coisas. – Eu não fiz nada. Foi a minha mulher que tratou de tudo. Enquanto a nossa conversa educada e agradável ia decorrendo em assomos intermitentes, as crianças pareciam incapazes de estar quietas, sempre a baterem-se e a fazerem um barulho descomunal, intervalando apenas para encherem a boca de comida. – Cunhada – perguntei –, foste tu que fizeste esta comida toda sozinha? Ela esboçou um meio-sorriso. – Bem, comecei a preparar tudo anteontem. E, aquelas ostras temperadas, fui de propósito comprá-las ao mercado porque sei que a Yeong-hye gosta… e
ela nem sequer lhes tocou. Sustive a respiração. É agora, pensei. – Já chega! – gritou o meu sogro. – Tu, Yeong-hye! Depois de tudo o que te disse, eu, o teu próprio pai! A esta explosão seguiu-se a reprimenda de In-hye: – Tencionas mesmo continuar com isso? Os seres humanos precisam de certos nutrientes… Se pretendes fazer uma alimentação vegetariana, senta-te e faz um plano de refeições como deve ser, um plano equilibrado. Olha bem para a tua cara! Até àquele momento, o irmão da minha mulher, Yeong-ho, tinha guardado para si a sua opinião e, por isso, a
mulher dele decidiu falar: – Quando a vi, nem a reconheci. O meu marido já me tinha falado do que estava a acontecer, mas nunca imaginei que ser vegetariano podia fazer assim tanto mal ao corpo. A minha sogra trouxe pratos com carne de vaca frita, porco agridoce, galinha estufada e massa com polvo, e pousou-os sobre a mesa à frente da minha mulher. – Essa história do vegetarianismo vai acabar neste preciso instante – decretou. – Isto, isto e isto, despacha-te a comer tudo. Como é que foi possível chegares a esse estado deplorável, quando não há nada no mundo que não
possas comer? – Então, estás à espera de quê? Vamos a comer – berrou o meu sogro. – Tens de comer, Yeong-hye – disse In-hye em tom de conselho. – Se comeres, ficas com mais energia. Toda a gente precisa de uma certa quantidade de energia para viver. Nem os sacerdotes que se recolhem nos templos levam a sua austeridade tão longe. Podem conservar o celibato, mas conseguem manter uma vida ativa. As crianças estavam a olhar para a minha mulher de olhos esbugalhados. Ela ia observando os membros da sua família com uma expressão vazia, como se não conseguisse perceber a razão
daquele súbito rebuliço. Fez-se um silêncio tenso. Observei as faces morenas do meu sogro; o rosto da minha sogra, tão cheio de rugas que custava a acreditar que tivesse sido outrora uma jovem, com uma enorme preocupação estampada no olhar; as sobrancelhas ansiosamente franzidas de In-hye; a atitude pretensiosa do seu marido, como se quisesse deixar bem claro que só ali estava por acaso; as expressões passivas, mas de óbvia reprovação, de Yeong-ho e da mulher. Esperava que a minha mulher dissesse qualquer coisa em sua defesa, mas a única silenciosa resposta que ela deu a todos aqueles rostos furiosos foi pousar
sobre a mesa os dois pauzinhos em que pegara. Uma leve vaga de constrangimento percorreu a família ali reunida. A minha sogra pegou num bocado de porco agridoce com os pauzinhos e pô-lo mesmo à frente da boca da minha mulher, dizendo: – Toma. Vá, despachate e come isto. De boca fechada, a minha mulher lançou à mãe o olhar de alguém que desconhecia por completo as regras de etiqueta. – Abre a boca imediatamente. Não gostas? Então, experimenta isto. – Tentou fazer a mesma coisa com a carne de vaca frita e, ao ver que a minha
mulher continuava de boca fechada, pousou a carne e pegou numas quantas ostras. – Desde criança que tu adoras isto. Estavas sempre a comê-las… – Também me lembro – atalhou Inhye, apoiando a mãe e dando a sensação de que a irmã recusar-se a comer ostras era a gota que ia fazer transbordar o copo. – Penso sempre em ti quando vejo ostras, Yeong-hye. Quando os pauzinhos que seguravam as ostras se aproximaram da boca da minha mulher, ela desviou-se de um modo violento. – Come isto imediatamente! Já me dói o braço… O braço da minha sogra estava
mesmo a tremer. Por fim, a minha mulher levantou-se. – Não como. Pela primeira vez em muito tempo, falou de uma forma clara e distinta. – O quê? – gritaram em uníssono o pai e o irmão, ambos furiosos. A mulher de Yeong-ho, expedita, agarrou no braço do marido. – Vou morrer do coração se não acabares já com isto – gritou o meu sogro à filha. – Não percebes o que o teu pai te está a dizer? Se te mando comer, tu comes e mais nada! Esperava que a minha mulher respondesse qualquer coisa do género «Desculpe, pai, mas não consigo comer
aquilo», mas ela limitou-se a dizer «Não como carne» – com toda a clareza e aparentemente sem quaisquer mostras de arrependimento. A minha sogra juntou os pauzinhos num gesto desesperado. O seu rosto de velha estava prestes a desfazer-se em lágrimas, que iriam brotar-lhe dos olhos e percorrer silenciosamente as suas faces enrugadas. O meu sogro pegou num par de pauzinhos, agarrou um bocado de porco agridoce e pôs-se de pé à frente da minha mulher, que lhe virou a cara. Ele inclinou-se ligeiramente para empurrar a carne até à cara da minha mulher, a disciplina rígida de uma vida
inteira incapaz de esconder a sua idade avançada. – Come isto! Ouve o que o teu pai te está a dizer e come. Tudo o que te estou a dizer é para teu bem. Porque insistes em agir como se fosse isto o que te está a pôr doente? O afeto paternal que quase embargava a voz do velhote impressionou-me muito e, contra a minha vontade, comecei a chorar de comoção. Provavelmente, todos os presentes estavam a sentir o mesmo. A minha mulher empurrou com a mão os pauzinhos, que estremeceram sem ruído no espaço vazio. – Eu não como carne, pai.
Num abrir e fechar de olhos, a palma da mão dele cortou esse espaço. A minha mulher protegeu a face com a mão. – Pai! – gritou In-hye, agarrando-lhe o braço. Os lábios dele contorceram-se, como se a sua agitação ainda não tivesse passado. Havia já algum tempo que eu sabia que o temperamento dele era muito violento, mas era a primeira vez que o via efetivamente bater em alguém. – Senhor Cheong, Yeong-ho, venham cá os dois. Aproximei-me da minha mulher com alguma hesitação. Ele tinha-lhe batido com tanta força que se via o sangue através da pele da bochecha. A
respiração dela era entrecortada, e parecia que a sua pose se tinha finalmente desfeito. – Vocês os dois, prendam os braços da Yeong-hye. – O quê? – Se ela comer uma vez, volta a comer. Isto é uma vergonha, toda a gente come carne! Yeong-ho levantou-se, com ar de quem achava todo aquele episódio muito desagradável. – Irmã, és capaz de fazer o favor de comer? Nem sequer era muito difícil fingires. Era preciso fazeres isto à frente do pai? – O que estás para aí a dizer? –
gritou o meu sogro. – Prende-lhe imediatamente os braços. E o senhor Cheong também. – Porque está a fazer isto, pai? – Inhye agarrou no braço direito do progenitor. Depois de ter pousado os pauzinhos, ele pegou com as mãos num bocado de carne de porco e aproximou-se da minha mulher. Ela estava a recuar hesitantemente quando o irmão a prendeu e a obrigou a sentar-se. – Porta-te bem, irmã, está bem? Come o que ele te der. – Pare com isto, pai, por favor – suplicou In-hye, mas ele afastou aquela filha e empurrou a carne contra os lábios
da minha mulher. Da sua boca fechada com toda a força saiu um gemido. Não podia dizer uma única palavra, pois, se abrisse a boca para falar, a carne entraria. – Pai! – gritou Yeong-ho, aparentemente para o dissuadir, embora não tenha largado o braço da minha mulher. – Mm-mm… mm! O meu sogro esmagou a carne sobre os lábios da minha mulher, enquanto ela se debatia num grande sofrimento. Afastou-lhe os lábios com os seus dedos fortes, mas não pôde fazer nada perante os seus dentes cerrados. Então acabou por se exaltar de novo
e deu-lhe mais uma bofetada na cara. – Pai! Apesar de In-hye ter saltado para ele e o ter agarrado pela cintura, no momento em que a força da bofetada fez a boca da minha mulher abrir-se, ele conseguiu enfiar a carne de porco lá dentro. Quando se percebeu que os braços de Yeong-ho já não estavam a aguentar mais, a minha mulher soltou um rugido e cuspiu a carne. Dos seus lábios saiu um grito animalesco de aflição. – … Desapareçam! A princípio, endireitou os ombros e correu em direção à porta, mas depois voltou para trás e pegou na faca da fruta que estava sobre a mesa de jantar.
– Yeong-hye? – A voz da minha sogra, que parecia prestes a quebrar-se, desenhou uma linha trémula sobre o silêncio brutal. As crianças começaram a soluçar, sem conseguirem reprimir o choro por mais tempo. De maxilares cerrados, fixando com o olhar, à vez, cada um de nós, brandiu a faca. – Agarrem-na… – Afastem-se! O sangue começou a escorrer-lhe do pulso. Foi um choque ver a loiça branca salpicada de vermelho. Quando os seus joelhos cederam e ela caiu, dobrada, no chão, o marido de In-hye, que até àquele momento estivera sentado,
comportando-se como um espectador desinteressado, tirou-lhe a faca da mão. – Que fizeram vocês? Pelo menos, vão buscar uma toalha! – Com toda a perícia de alguém treinado nas forças especiais, estancou-lhe o sangue e tomou-a nos braços. – Alguém desça imediatamente e ponha o carro a trabalhar! Procurei os meus sapatos. Apanhei dois que não eram o par um do outro e, por isso, tive de os ir trocar antes de conseguir abrir a porta da rua e sair. … o cão que cravou os dentes na minha perna está preso à moto do pai. Com a sua cauda chamuscada atada à ferida da minha canela qual ligadura –
um remédio tradicional que a mãe insistiu em aplicar –, saio e fico parada junto ao portão principal. Tenho nove anos, e o calor do verão é sufocante. O Sol já se pôs e, mesmo assim, ainda sinto o suor a escorrer. O cão também está a arfar, com a língua vermelha de fora. Um cão branco, bonito, ainda maior do que eu. Até ele ter mordido a filha do homem grande, toda a gente na aldeia achava que era inofensivo. O pai prende o cão à árvore e chamusca-o com uma lamparina mas diz que não vai bater-lhe. Diz que ouviu algures que prender um cão a uma moto e fazê-lo correr até morrer é
considerado um castigo ligeiro. Põe a moto a trabalhar e começa a guiar em círculos. O cão corre atrás dele. Duas voltas, três, continuam às voltas. Sem mexer um músculo, fico do lado de dentro do portão a ver o Whitey a revirar os olhos e a arfar, cada vez mais exausto. Sempre que os seus olhos brilhantes se cruzam com os meus, faço um ar ainda mais feroz. Cão mau, porque é que me mordeste? Ao fim de cinco voltas, o cão começa a espumar da boca. Caem-lhe pingos de sangue do pescoço que está a ser apertado pela corda. Sem parar de gemer por causa da garganta ferida, o
animal é arrastado pelo chão. À sexta volta, vomita um sangue vermelhoescuro que lhe goteja da boca e do pescoço cortado. Quando o sangue e a espuma se misturam, fico hirta a olhar fixamente para aqueles dois olhos brilhantes. Sete voltas, e ainda à espera de conseguir ver o cão, o pai olha para trás e confirma que ele está inerte, preso à moto. Olho para as quatro patas a tremerem, as pálpebras muito abertas, o sangue e a água nos seus olhos mortos. Nessa noite houve festa em nossa casa. Vieram todos os homens de meiaidade das ruelas do mercado, todos aqueles que o meu pai considerava
valer a pena conhecer. Diz o ditado que para curar uma ferida causada por uma dentada de um cão é preciso comer esse mesmo cão, e eu meti um grande bocado na boca. Não, na verdade comi uma tigela cheia, misturado com arroz. O cheiro a carne queimada, que as sementes de perilla não conseguiam disfarçar, picava-me no nariz. Lembro-me dos dois olhos que me fitaram quando o cão estava a ser obrigado a correr, quando estava a vomitar sangue misturado com espuma, e como, mais tarde, tinham parecido tremeluzir, a boiar na sopa. Mas não me importo. Não me importo muito. As mulheres ficaram em casa a
tentar acalmar as crianças, Yeong-ho ficou a cuidar da minha sogra, que tinha desmaiado, e eu e o meu cunhado levámos a minha mulher às urgências do hospital mais próximo. Quando já não estava numa situação crítica, foi transferida para um quarto com duas camas, e só nessa altura é que reparámos que ambos tínhamos a roupa salpicada de sangue seco. A minha mulher adormeceu com uma agulha espetada na mão, por onde corria o soro. Ficámos a observar em silêncio o sorriso do seu rosto adormecido. Como se estivesse lá inscrita uma solução qualquer. Como se, continuando a observar o seu rosto, alguém
conseguisse descobrir a resposta. – Importas-te de sair por um momento? – pedi ao meu cunhado. A expressão dele dava a ideia de que gostaria de desabafar comigo, mas limitou-se a um prudente «está bem». Tirei vinte mil wons do bolso, era tudo o que tinha comigo, e dei-lhos. – Vai comprar roupa limpa. – Não é preciso. A minha mulher traz-me roupa quando cá vier ter mais logo. Yeong-ho e a mulher apareceram ao fim do dia, com In-hye. Aparentemente, o meu sogro ainda não se tinha acalmado. A mãe continuava a insistir em ir ao hospital, porém, Yeong-ho
garantiu-lhe que não a deixava sequer aproximar-se. – Mas que raio aconteceu naquela casa? – exclamou a mulher de Yeong-ho. – E à frente das crianças… – Devia ter estado a chorar porque tinha a maquilhagem esborratada e os olhos inchados. – O teu pai excedeu-se, sabes? Como é que ele foi capaz de bater na filha à frente do marido? Ele foi sempre assim? – Sim, ferve em pouca água – admitiu In-hye. – Não vês como o Yeong-ho sai a ele? Mas, com o avançar da idade, não está tão mau… Yeong-ho não parecia nada satisfeito.
– Porque é que estás a deitar as culpas em mim? – Embora, pensando bem – continuou In-hye –, como a Yeong-hye se recusou a dizer-lhe uma única palavra, era inevitável que ele se irritasse… já sabes como é… Ela é filha dele… – Obrigá-la a ingerir a carne à força foi um exagero, mas o que é que a fez decidir deixar de comer? E depois aquela história da faca? Nunca tinha visto tal coisa na vida. Como é que ela vai conseguir encarar o marido? – A mulher de Yeong-ho parecia ainda em estado de choque. Enquanto In-hye vigiava a minha mulher, troquei de roupa, vestindo uma
T-shirt do marido, e fui aos balneários no andar de cima. Lavei o sangue seco com a água morna do duche. Vi-me ao espelho e franzi a testa. Sentia um formigueiro pelo corpo todo por causa daquela cena. Não parecia real. Naquele momento, pensar na minha mulher não me causava qualquer choque ou confusão, mas antes um forte sentimento de repugnância. Depois de In-hye ter ido para casa, as únicas pessoas que se encontravam na enfermaria, além de mim e da minha mulher, eram uma menina que fora internada devido a uma complicação no intestino e os respetivos pais. Estavam sempre a lançar-me olhares furtivos,
enquanto eu me mantinha à cabeceira da minha mulher, e conseguia perceber perfeitamente que segredavam entre si. Aquele longo domingo estava prestes a acabar, e em breve chegaria a segundafeira, o que significava que eu já não seria obrigado a ficar a olhar para esta mulher. Contava que Yeong-ho me substituísse e que daí a dois dias a minha mulher tivesse alta – alta que implicaria eu voltar a viver com esta mulher estranha e assustadora, os dois na mesma casa. Era uma situação que tinha alguma dificuldade em encarar. Às nove da noite do dia seguinte, tornei a ir à enfermaria. Yeong-ho recebeu-me com um sorriso.
– Deves estar cansado, não? – perguntou. – Como estão os miúdos? – Hoje ficaram com o pai da Ji-woo. Se os meus colegas tivessem decidido ir tomar um copo depois do trabalho, eu teria tido a desculpa perfeita para só ir ao hospital daí a duas horas. Mas era segunda-feira e, por isso, não havia hipótese de ter essa moratória. – Como é que a minha mulher tem estado? – A dormir, como podes ver sem teres de perguntar. Comeu o que lhe deram… parece que vai ficar bem. Yeong-ho estava claramente a tentar ser delicado e conseguiu acalmar um
pouco a minha rispidez. Pouco depois de ele se ter ido embora, quando já estava a pensar que devia alargar o nó da gravata e refrescar-me, alguém bateu à porta da enfermaria. Para minha grande surpresa, era a minha sogra. – Tenho tanta vergonha de olhar para a tua cara – começou a balbuciar, assim que se aproximou de mim. – Não vale a pena. Como está? Ela respirou fundo. – Sabes como é, numa pessoa da minha idade, o mais pequeno choque… – Tinha trazido um saco de compras que insistiu em pôr-me nas mãos. – Que é isto?
– Uma coisa que eu fiz antes de virmos para Seul. Vocês estão a mirrar depois de tantos meses sem comerem carne, por isso… comam isto os dois. É cabra preta. Estava com medo de que, se a In-hye e o marido descobrissem, tentassem impedir-me de vir cá. Tenta dar isto a comer à Yeong-hye, diz-lhe que é um medicamento à base de ervas. Misturei muitas coisas medicinais para tentar disfarçar o cheiro. Ela está tão magra, parece um fantasma, e agora que perdeu tanto sangue… Começava a ficar enjoado e farto daquele obstinado «amor materno». – Não há aqui nenhum fogão? Vou ver se têm algum na sala dos
enfermeiros. – Tirou um dos embrulhos do saco e saiu. Sem parar de enrolar a gravata na mão e de a amarfanhar numa bola, sentia-me cada vez mais agitado, parecia que a irritação que Yeong-ho tinha momentaneamente acalmado estava a regressar em força. Felizmente, pouco depois a minha mulher acordou. Só nesse momento, quando me apercebi de que era muito melhor assim do que se eu estivesse ali sozinho, é que a chegada da minha sogra começou a parecer-me uma coisa boa. Ela voltou a entrar, e foi a primeira coisa em que os olhos da minha mulher se fixaram. O rosto da velhota desfez-se em sorrisos desde o momento em que
abriu a porta, ao passo que a expressão da minha mulher era difícil de decifrar. Passara o dia inteiro na cama e, ou por causa do soro ou apenas por estar doente, a sua cara estava praticamente sem pinga de sangue, branca como a cal. Com um copo de papel fumegante numa das mãos, a minha sogra agarrou a mão da minha mulher com a outra. – Toma… – Tinha os olhos cheios de lágrimas. – Bebe isto. Se visses a tua cara. – A minha mulher pegou obedientemente no copo. – É um medicamento à base de ervas. Dizem que reforça o organismo. Há muito tempo, antes de te casares, demos-te este mesmo medicamento, lembras-te?
A minha mulher cheirou a bebida e abanou a cabeça. – Isto não é nenhum medicamento à base de ervas. – Com uma expressão sombria e indiferente, e com os olhos a transbordar estranhamente de uma espécie de piedade, devolveu o copo à mãe. – É um medicamento, sim, senhor. Tapa o nariz e bebe isso num instantinho. – Não, não bebo. – Bebe. Faz a vontade à tua mãe. Até os desejos dos mortos são satisfeitos, mas tu ignoras os da tua própria mãe? Aproximou então o copo dos lábios da minha mulher. – É mesmo um medicamento feito de
ervas? – Claro que é, acabei de to dizer. A minha mulher tapou o nariz e bebeu um gole do líquido escuro. A minha sogra era toda sorrisinhos, a exclamar: – Mais, bebe mais! – Tinha os olhos a brilhar por baixo das pálpebras enrugadas. – Deixe ficar aí, e eu bebo daqui a bocado. A minha mulher tornou a deitar-se. – O que é que gostavas de comer? Queres que vá comprar alguma coisa doce para tirar o gosto? – Não, eu estou bem. Mesmo assim, a minha sogra não parava de insistir comigo em que fosse à
procura de uma loja. Recusei-me a fazer-lhe a vontade, e ela acabou por sair da enfermaria e ir ela própria comprar qualquer coisa. Nessa altura, a minha mulher afastou a roupa da cama e levantou-se. – Aonde vais? – À casa de banho. Peguei no saco do soro e fui atrás dela. Ela pendurou o saco algures e fechou a porta à chave. E depois, por entre vários gemidos, vomitou tudo o que tinha no estômago. Saiu a cambalear da casa de banho, trazendo atrás de si um ligeiro cheiro a sucos gástricos e o fedor a comida meio digerida. Como eu não segurei no saco
do soro, ela foi obrigada a fazê-lo com a mão esquerda toda ligada, mas não o levantou o suficiente, e começou a escorrer uma pequena quantidade de sangue pelo tubo. Continuando a andar com o seu passo incerto, pegou no saco que tinha a mistela de cabra preta que a mãe pousara junto à cama. A sua mão direita, que se agarrou ao saco, ainda tinha a agulha do soro espetada, mas ela não prestou a menor atenção a isso. A seguir saiu da enfermaria – sem que eu tivesse o mínimo desejo de ir atrás dela para ver o que ia fazer. Pouco depois, a porta bateu com tanta força que até a menina e a mãe franziram a testa, mostrando a sua
reprovação, e a minha sogra entrou de rompante. Trazia um pacote de bolachas numa mão e o saco de papel com as compras na outra – vi de relance que o líquido preto se tinha entornado. – Senhor Cheong, o que é que lhe passou pela cabeça para ficar aqui sentado? Não pensou no que aquela rapariga poderia estar a planear? Naquele momento, sentime tentado a sair da enfermaria e ir para casa. – E tu, Yeong-hye, fazes ideia de quanto isto custou? E ias deitá-lo fora? Dinheiro ganho com o suor e sangue dos teus pais! Como é que tens coragem de dizer que és minha filha? Quando olhei para a minha mulher,
dobrada pela cintura, reparei que havia gotas de sangue a pingarem para dentro do saco do soro. – Olha bem para ti! Deixas de comer carne e vais desaparecer. Olha para o espelho, vá lá, diz-me o que é que vês! Por fim, os seus gritos agudos deram lugar a um choro silencioso. Mas a minha mulher olhou para a mãe que estava ali a soluçar como se fosse alguém completamente desconhecido; até que, a certa altura, talvez tivesse chegado à conclusão de que já tinha levado aquele espetáculo longe demais, e tornou a meter-se na cama. Puxou a roupa até ao peito e fechou os olhos. Só nesse momento elevei o saco do soro,
agora manchado de sangue vermelho. Não sei porque está esta mulher a chorar. Não sei por que motivo está sempre a olhar fixamente para a minha cara, como se quisesse comê-la. Nem porque insiste em acariciar a ligadura que envolve o meu pulso com as mãos a tremerem. O meu pulso está bem. Não me incomoda nada. A única coisa que me dói é o peito. Há qualquer coisa presa no meu plexo solar. Não sei o que será. Tem lá estado sempre nos últimos tempos. Apesar de ter deixado de usar sutiã, estou sempre a sentir este alto. Por mais fundo que tente respirar, não desaparece.
É uma rede de gritos e gemidos entrelaçados, sobrepostos em camadas, que forma aquele alto. Por causa da carne. Comi demasiada carne. As vidas dos animais que comi alojaram-se todas ali. Sangue e carne, esses corpos despedaçados estão espalhados por todos os recantos do meu corpo e, apesar dos resíduos físicos terem sido expelidos, as suas vidas teimam em permanecer dentro de mim. Apetece-me gritar uma vez, só mais uma vez. Apetece-me atirar-me por aquela janela escura como breu. Talvez assim conseguisse acabar de vez com este nó dentro do meu corpo. Sim, talvez resultasse.
Ninguém pode ajudar-me. Ninguém pode salvar-me. Ninguém pode fazerme respirar. Meti a minha sogra num táxi e, quando voltei, a enfermaria estava às escuras. A menina e a mãe, provavelmente fartas de tanta agitação, tinham desligado a televisão, apagado as luzes e fechado a cortina um pouco antes da hora de recolher. A minha mulher estava a dormir. Deitei-me com alguma dificuldade no lado mais estreito da cama e tentei adormecer. Não fazia a menor ideia de como iria resolver aquela confusão. Só havia uma coisa perfeitamente clara para mim: aquela situação iria causar-me,
inevitavelmente, uma série de problemas. Quando por fim consegui adormecer, sonhei. No meu sonho, estava a matar alguém. Espetava-lhe uma faca no estômago com toda a força, e depois metia a mão na ferida e puxava para fora as curvas e contracurvas dos intestinos. Era como se estivesse a comer peixe: escolhia a carne e deixava só as espinhas. Mas nesse preciso momento acordei e não consegui lembrar-me de quem tinha matado. Foi de manhã cedo, ainda o Sol não tinha nascido. Empurrado por uma estranha compulsão, afastei a roupa que cobria a minha mulher. Tateei por entre a
escuridão absoluta, mas não encontrei sangue a escorrer nem intestinos de fora. Ouvia a respiração ligeiramente entrecortada da outra doente, mas a minha mulher estava mergulhada num silêncio que não era natural. Senti um estranho tremor dentro de mim e pus-lhe um indicador debaixo do nariz. Ainda estava viva. Quando tornei a acordar, a enfermaria já estava cheia de luz. – Meu Deus, o senhor dormiu tão profundamente – disse a mãe da jovem. – Nem sequer acordou quando trouxeram a comida. – O tom de voz dela parecia transmitir uma certa pena de mim. Vi o tabuleiro com a comida
que tinham deixado em cima da cama. A minha mulher nem sequer destapara a taça do arroz, ou melhor, nem tocara no tabuleiro da comida, e desaparecera… para onde? A agulha do soro também fora arrancada, pendendo ensanguentada da ponta do longo tubo de plástico. – Aonde é que ela foi? – perguntei, limpando os vestígios de baba à volta da boca. – Já se tinha ido embora quando acordámos. – O quê? Deviam ter-me chamado. – Mesmo que tentássemos, o senhor estava a dormir que nem uma pedra… E claro que o teria acordado se achasse que tinha acontecido alguma coisa de
mal. – Corou, por raiva ou apenas por confusão. Ajeitei a roupa e saí rapidamente, procurando-a impaciente no corredor e no caminho até ao elevador, mas não havia sinais da minha mulher. Não tinha tempo para aquilo. Avisei no escritório que chegaria duas horas mais tarde do que o habitual e pensei que a minha mulher já devia ter tido alta. Decidi que, quando a levasse para casa, iria dizerlhe, e também a mim próprio, que tínhamos de pensar em tudo o que acontecera como um pesadelo. Desci no elevador até ao rés do chão. Ela não estava no átrio e, por isso, corri até aos jardins do hospital, já
quase sem fôlego mas sem querer deixar de procurar em todo o lado. As únicas pessoas que estavam no jardim eram os doentes que já tinham tomado o pequeno-almoço. O frio da manhã, que em breve desapareceria, já então não era especialmente intenso. Era fácil perceber quais os doentes internados havia muito pelo seu ar fatigado e sombrio, ou sereno. Quando me aproximei da fonte, que não tinha água, reparei que havia alguma agitação; as pessoas que ali se encontravam estavam todas a olhar para qualquer coisa. Abri caminho por entre elas até conseguir ver. A minha mulher estava sentada num banco junto à fonte. Tinha tirado a bata
do hospital, que se encontrava pousada sobre os seus joelhos, deixando as clavículas aguçadas, os seios pálidos e os mamilos castanhos completamente expostos. Tirara a ligadura do pulso, e o sangue que estava a sair parecia deslizar lentamente sobre a zona que fora suturada. O sol banhava-lhe o rosto e o corpo despido. – Há quanto tempo está ela ali sentada? – Santo Deus… ainda tão nova, e parece que veio da ala psiquiátrica. – Que tem ela na mão? – Parece que está a agarrar qualquer coisa. – Olhem. Eles vêm aí.
Quando me voltei para olhar por cima do ombro, vi um enfermeiro e um guarda de meia-idade a correrem, com ar grave. Olhei para o rosto exausto da minha mulher, tinha os lábios manchados de sangue como um bâton aplicado de modo desajeitado. Os seus olhos, que olhavam fixamente para as pessoas que se tinham juntado ali, cruzaram-se com os meus. Brilharam, como que marejados de lágrimas. Pensei para comigo: não conheço aquela mulher. E era verdade. Não estava a mentir. No entanto, impelido por um sentido de dever de que não conseguia libertar-me, as minhas pernas levaram-me até ela, num movimento que,
por mais que quisesse, não era capaz de controlar. – O que estás a fazer, querida? – murmurei em voz baixa, pegando na bata do hospital e tapando com ela o seu peito desnudo. – Está tanto calor… – Esboçou um ligeiro sorriso, absolutamente trivial, que eu achava que conhecia tão bem. – Está calor e, por isso, despi-me. – Levantou a mão esquerda para proteger a testa do sol, mostrando os golpes no pulso. – Fiz alguma coisa de mal? Abri-lhe a mão direita, que ela mantinha fechada com força. Um pássaro, que ela apanhara e esmagara, caiu sobre o banco. Era um pássaro
pequeno, ao qual faltavam penas aqui e ali. Junto às marcas de dentadas que pareciam ser de um predador, alastravam manchas de sangue vermelho-vivo.
2 Mancha mongólica
A pesada cortina vermelho-sangue desceu sobre o palco. Os bailarinos agitaram as mãos com tanta força que toda a fila se tornou uma mancha em movimento na qual era impossível distinguir figuras individuais. Embora os aplausos tenham sido vigorosos, até com um ou outro «bravo», os artistas não voltaram ao palco. A ovação cessou abruptamente, e o público começou a pegar nas malas e nos casacos e a dirigir-se para as coxias. Ele descruzou as pernas e levantou-se. Permanecera de braços cruzados durante os cinco minutos da ovação, olhando fixamente os rostos ávidos e insaciáveis dos bailarinos deixando-se inundar pelos
aplausos. Os seus esforços haviam-lhe inspirado compaixão e respeito, mas ainda assim achava que o coreógrafo não merecia as palmas. Saiu do auditório e atravessou o foyer, observando os cartazes do espectáculo agora obsoletos. Estivera numa livraria no centro da cidade, onde por acaso vira um deles e imediatamente ficara arrepiado dos pés à cabeça. Com medo de poder perder o último espectáculo, telefonou apressado para o teatro e reservou um bilhete. No cartaz viam-se homens e mulheres sentados, revelando as costas nuas cobertas da nuca às nádegas por flores, caules entrelaçados e espessas camadas de
pétalas pintadas de vermelho e azul. Quando olhou para elas, sentiu-se assustado, excitado e de certo modo oprimido. Não conseguia acreditar que a imagem que o obcecava havia quase um ano tivesse sido também imaginada por outra pessoa – o coreógrafo –, ainda por cima alguém de quem nunca ouvira falar. Seria possível que aquela imagem fosse realmente apresentar-se à sua frente exactamente como ele a sonhara? Enquanto estivera sentado à espera de que o espectáculo começasse, sentira-se tão nervoso que nem sequer um gole de água conseguira beber. Mas não tinha encontrado o que procurara. Abrindo caminho por entre a
multidão de habitués que se apinhavam no foyer, todos fascinados e extrovertidos, dirigiu-se para a saída mais próxima da estação do metro. Não tinha havido nada que o impressionasse na música eletrónica estridente, nos figurinos de cores berrantes, na nudez pretensiosa ou nos gestos explicitamente sexuais. Aquilo que esperara encontrar era algo mais calmo, mais profundo, mais privado. Teve de esperar algum tempo pelo comboio por ser domingo à tarde e, quando entrou na carruagem, ficou de pé junto à porta, segurando um programa da peça em cuja capa estavam as reproduções dos vários cartazes. A
mulher e o filho de cinco anos aguardavam-no em casa. Tinha consciência de que ela teria preferido que passassem o fim de semana em família, mas tinha tirado a tarde só para si e fora ver o espetáculo. Valera a pena? Sabia desde o princípio que era altamente provável que acabasse, mais uma vez, desiludido – que esse era o único desfecho possível. E, naquele momento, constatava que fora exactamente o que acontecera. Como esperar que alguém que lhe era completamente desconhecido revelasse a lógica interna de uma coisa com que ele próprio sonhara e descobrisse uma forma de lhe dar vida? A amargura que
de súbito se apoderou dele era exatamente a mesma que sentira havia muito, ao ver um vídeo da artista japonesa Yayoi Kusama. A obra estava repleta de cenas de práticas sexuais promíscuas entre dez homens e mulheres, todos eles pintados toscamente com tinta às cores, exprimindo a sua avidez pelos corpos uns dos outros ao som de uma música psicadélica. Não paravam de se mexer o tempo todo, agitando-se e debatendo-se como peixes fora de água. Não que a sua própria sede fosse menos intensa, claro – só que não a queria expressar daquela forma. Tudo menos daquela forma. Ao fim de algum tempo, o comboio
passou o bloco de apartamentos onde ele vivia. Nunca fora sua intenção sair ali. Guardou o programa na mochila, enfiou as mãos nos bolsos do casaco de malha e examinou o interior da carruagem pelo reflexo na janela. Teve de se obrigar a aceitar que o homem de meia-idade, com um boné de basebol a esconder a falta de cabelo e um casaco largo a tentar, pelo menos, fazer o mesmo em relação à barriga, era ele próprio. Por sorte, a porta do estúdio estava fechada à chave, o que significava que o teria só para si. As tardes de domingo eram praticamente as únicas alturas em que tinha aquele espaço em exclusivo.
Tratava-se de um apartamento com cerca de vinte e cinco metros quadrados na segunda cave da sede do Grupo K, disponibilizado no âmbito dos vários patrocínios da empresa. Os quatro artistas de vídeo que partilhavam o espaço tinham de fazer turnos para utilizar o único computador que lá havia. Agradava-lhe a possibilidade de usufruir de graça do equipamento topo de gama, mas a sua sensibilidade à presença de outros, o facto de só se conseguir entregar inteiramente ao trabalho quando estava sozinho, era um obstáculo terrível. A porta abriu-se com um pequeno estalido. Tacteou a parede até encontrar
o interruptor. Começou por fechar-se à chave, tirou o boné e o casaco, pôs a mochila no chão e a seguir caminhou para trás e para diante pelo estreito corredor do estúdio durante algum tempo, com as mãos a taparem a boca, até que finalmente se sentou à frente do computador e pousou a cabeça entre as mãos. Abriu a mochila e tirou o programa, o caderno de esboços e a cassete de vídeo, etiquetada com o seu nome, morada e número de telefone, na qual se encontravam os originais de todos os trabalhos em vídeo que fizera nos últimos dez anos. Já tinham passado dois desde que gravara um novo
trabalho naquela cassete. Não que estar parado durante esse período fosse considerado fatal em termos de inatividade, mesmo assim era um lapso de tempo suficientemente longo para o deixar ansioso. Abriu o caderno de esboços. Havia dezenas de páginas com desenhos e, apesar de partirem basicamente da mesma ideia, eram muito diferentes do cartaz do espetáculo, sobretudo em termos de ambiente e sentido artístico. Os corpos despidos de homens e mulheres estavam brilhantemente decorados, cobertos de flores pintadas, e havia algo de simples e honesto na forma como faziam sexo. Sem as
nádegas duras, as coxas tensas e os troncos magros que lhes denunciavam um corpo de bailarinos, não seriam mais sugestivas do que flores primaveris. Os seus corpos – não tinha desenhado os rostos – revelavam uma tranquilidade e uma solidez que contrabalançava com a natureza excitante da situação. A imagem tinha-lhe surgido num fugaz momento de inspiração. Fora no inverno, quando começara a acreditar que talvez conseguisse pôr um fim àquele longo ano de inatividade, que sentira a energia começar a libertar-se aos poucos da boca do estômago. Mas como poderia saber que essa energia iria desembocar numa imagem tão
estapafúrdia, para mais sabendo que até então a sua obra tendera constantemente para o realismo? Por isso, para alguém que trabalhara sempre em representações gráficas a três dimensões de pessoas abatidas pelas vicissitudes da soçobrante sociedade capitalista para serem emitidas como documentários factuais, a carnalidade, a pura sensualidade daquela imagem, não deixava de ter qualquer coisa de assustador. E podia nem sequer tê-la concebido, não fosse ter havido aquela conversa casual. Se a mulher não lhe tivesse pedido para dar banho ao filho naquela tarde de domingo; se não a tivesse visto
a ajudar o filho a vestir as cuecas depois de o ter enxugado com a toalha; se não tivesse sido levado a exclamar, «Essa mancha mongólica continua tão grande! Quando é que costumam desaparecer?»; se ela não lhe tivesse respondido, sem pensar, «Bem… não me lembro ao certo quando é que a minha desapareceu, a da Yeong-hye durou até aos vinte anos»; se, depois do seu «Vinte?» atónito, ela não tivesse dito, «Hum… era do tamanho de um polegar, azulada. E, se a teve tanto tempo, se calhar ainda a tem»… Foi nesse preciso momento que ele foi atingido, como se de um raio se tratasse, pela imagem de uma flor azul nas nádegas de uma mulher, com as pétalas a
abrirem-se. Na sua mente, o facto de a cunhada ainda ter uma mancha mongólica operou uma associação inexplicável com a imagem de homens e mulheres a fazerem sexo, e os seus corpos nus cobertos de flores pintadas. A relação entre as duas coisas foi tão nítida, tão óbvia, que de certa forma se tornou impossível de compreender e, por isso, ficou-lhe gravada na mente. Apesar de não ter rosto, a mulher do desenho dele era sem sombra de dúvida a cunhada. Só podia ser ela. Imaginara como seria o seu corpo nu e começara a desenhar, terminando com um ponto semelhante a uma pequena pétala azul no meio das nádegas da figura, tendo de
imediato uma ereção. Era praticamente a primeira vez desde que se casara, e de certeza a primeira desde que se despedira dos trintas, que sentia um desejo sexual tão intenso, um desejo, ainda por cima, focado num objeto tão determinado. E, então, quem era o homem sem rosto com as mãos à volta do pescoço dela, como se estivesse a tentar estrangulá-la ao mesmo tempo que a penetrava? Sabia que era ele próprio; que, aliás, não podia ser mais ninguém. Ao chegar a essa conclusão, fez um esgar. Passou muito tempo à procura de uma solução, de uma maneira de se libertar do poder que aquela imagem
tinha sobre si, mas não havia nada que a substituísse. Pura e simplesmente, não existia outra tão intensa e sedutora como aquela. Não tinha vontade de começar outra obra. Cada exposição, filme ou espetáculo a que assistia parecia-lhe sempre monótono e desinteressante, apenas por não ser aquela imagem. Passava horas aparentemente perdido num sonho, a matutar na forma de tornar aquela imagem realidade. Podia alugar um estúdio a um pintor seu amigo e preparar a iluminação, comprar tintas para o corpo, pôr um lençol branco a tapar o chão… e foi deixando que os seus pensamentos continuassem nessa direção, apesar de faltar fazer a
coisa mais importante: convencer a cunhada. Durante muito tempo, debateuse dolorosamente com a possibilidade de a substituir por outra mulher, quando lhe ocorreu, um pouco tarde demais, a suspeita de que o vídeo que planeava fazer poderia ser facilmente considerado pornográfico. Nenhuma mulher, e muito menos a cunhada, aceitaria tal coisa. Se calhar, seria obrigado a puxar da carteira e pagar a uma atriz profissional. Mas, mesmo que, depois de mil concessões, conseguisse fazer o filme, conseguiria exibi-lo? Pensara muitas vezes que as suas obras, abordando questões sociais, o punham numa posição que favorecia o antagonismo de
algumas pessoas, mas nunca se imaginara a ser catalogado como um traficante de excitações. Sempre encarara a sua arte com total liberdade e, por isso, nunca lhe ocorrera que essa mesma liberdade pudesse ser considerada libidinosa. Se não fosse aquela imagem, não estaria a viver um momento de tanta ansiedade, desconforto e mal-estar, mergulhado em dúvidas e exames de consciência. Não queria sentir aquele medo de perder tudo o que conseguira – não que fosse grande coisa –, e até a família, num abrir e fechar de olhos, e por opção sua. Estava a ficar dividido em relação a si próprio. Seria uma
pessoa normal? Alguém forte, capaz de controlar os seus impulsos? Chegou à conclusão de que se sentia incapaz de afirmar sem hesitações que sabia a resposta àquelas perguntas, embora até àquele momento tivesse sido sempre tão seguro. Ouviu o barulho de chaves na fechadura, fechou rapidamente o caderno de esboços e virou-se para a porta. Fosse quem fosse, não queria que essa pessoa visse os seus desenhos, nem mesmo de relance. Era uma coisa nova e um pouco estranha para ele. Normalmente, não tinha qualquer problema em mostrar os seus esquissos ou projetos a outras pessoas.
– Olá! – Era J., com os seus cabelos compridos presos num rabo-de-cavalo. – Pensei que não estava cá ninguém. Ele recostou-se, com movimentos deliberadamente lentos, e deu uma gargalhada. – Queres um café? – perguntou o outro, tirando umas moedas do bolso. Disse-lhe que não com a cabeça. Quando J. saiu para ir buscar o café à máquina automática, olhou em redor do estúdio, que agora deixara de ser o seu espaço privado. Tornou a pôr o boné de basebol, por não se sentir à vontade com as entradas à mostra. Como um ataque de tosse a arranhar a garganta, sentiu um grito havia muito reprimido ameaçando
soltar-se do mais fundo de si. Meteu as coisas na mochila e saiu do estúdio, dirigindo-se a correr para o elevador. Na sua imagem refletida na porta, que reluzia como um espelho, pareceu-lhe ver lágrimas escorrendo dos seus olhos raiados de vermelho. Por muito que procurasse na memória, não conseguia lembrar-se de alguma vez lhe ter sucedido uma coisa assim. Naquele momento, só lhe apetecia cuspir para aqueles olhos vermelhos, e dar socos naquelas suas bochechas até o sangue começar a aparecer por entre a barba preta, e esmagar os seus lábios hediondos, inchados de desejo, com a sola do sapato.
– Vens atrasado – disse-lhe a mulher, esforçando-se por não parecer muito irritada. O filho virou-se para a escavadora de plástico com que estava a brincar. Era impossível dizer se ficara ou não feliz por ver o pai. Desde que a mulher voltara a trabalhar a tempo inteiro na sua loja de cosméticos, andava sempre exausta, mas era o tipo de pessoa que nunca parava, diligente e perseverante. Praticamente, a única coisa que ela pedia era que ele estivesse livre aos domingos. «Gostava de poder descansar um bocado… e o nosso filho precisa de estar algum tempo com o pai, não achas?» Ele sabia que era a única altura da semana em que ela
se permitia relaxar – ela, que até se sentia grata por ele a deixar assumir tantas responsabilidades, como empresária e dona de casa, sem uma única queixa. Mas nos últimos tempos, sempre que olhava para a mulher, via a cara da irmã sobreposta à dela, e a sua vida doméstica não podia andar mais longe dos seus pensamentos. – Já jantaste? – Comi qualquer coisa no caminho. – Tens de comer como deve ser. Porque é que te alimentas sempre tão mal? – O seu tom era de resignação, como se há muito tivesse desistido do marido, considerando-o uma causa perdida.
Ele olhou para o rosto cansado da mulher como se estivesse a observar alguém completamente desconhecido. Ela tinha uns olhos profundos e límpidos, enquadrados por pestanas naturalmente grandes, e um rosto esguio e oval com uma boca suave e feminina. O sucesso da loja de cosméticos, que ao longo dos anos crescera a partir do espaço de oito metros quadrados que ela montara quando era ainda jovem, deviase em grande parte à sensação de afabilidade que as suas feições agradáveis e sinceras transmitiam. No entanto, desde o princípio, houvera sempre qualquer coisa nela que o fizera sentir-se vagamente insatisfeito. O rosto,
a figura e o seu carácter ponderado eram a imagem viva da mulher que procurara durante tanto tempo; e, por isso, não conseguindo apontar-lhe qualquer falha, decidira casar-se. Na verdade, foi apenas quando lhe apresentaram a irmã dela que percebeu o que faltava à sua mulher. Tudo lhe agradava na cunhada – as pestanas; a maneira de falar, tão direta que às vezes chegava a parecer rude, e que não tinha o tom ligeiramente nasalado da voz da sua mulher; o modo de vestir; as maçãs do rosto salientes, com qualquer coisa de andrógino. Podia dizer-se que era feia se comparada com a irmã mas, para ele, irradiava energia,
como uma árvore que nasce num lugar selvagem, despojada e solitária. O que sentia por ela não mudara desde que a tinha conhecido. «Pois é, ela é que é o meu tipo; apesar de serem irmãs e terem muita coisa em comum, há uma diferença subtil entre as duas» – era um pensamento que lhe passava por vezes pela cabeça. – Queres que te arranje alguma coisa para comeres? – A pergunta da mulher era quase uma ordem. – Já te disse que comi pelo caminho. Exausto pelo turbilhão de emoções dentro de si, abriu a porta da casa de banho. Assim que acendeu a luz, a voz da mulher perfurou-lhe de novo os
ouvidos. – Para piorar as coisas, estou preocupada com a Yeong-hye. Não soube nada de ti durante todo o dia, e o Ji-woo está constipado e tive de ficar o tempo todo ao pé dele… – Suspirou e, a seguir, gritou para o filho: – O que estás a fazer? Mandei-te vir tomar o remédio! – Sabendo que o menino demoraria a vir, deitou o medicamento em pó numa colher e misturou-o lentamente com um xarope cor de morango. Ele saiu então da casa de banho, fechando a porta. – O que é que tem a tua irmã? – perguntou. – Que é que foi desta vez? – Recebeu finalmente os papéis do
divórcio, como é óbvio. Não que não entenda a posição do senhor Cheong, mas ele podia ter demonstrado um bocadinho mais de compaixão. Acabar assim com um casamento… – Eu… – balbuciou ele. – Achas que vá ver como ela está? De repente, a mulher pareceu animada. – Eras capaz de fazer isso? Já não a vemos há tanto tempo e, se fosses lá a casa, mesmo sendo um bocado estranho… Mas ela sabe como tem sido complicado. Sabe o caminho que as coisas levaram… Ele observou a mulher, uma imagem de responsabilidade e compaixão, a
aproximar-se cuidadosamente do filho para lhe dar o remédio. É uma boa mulher, pensou. O tipo de pessoa cuja bondade sufoca. – Ligo-lhe amanhã. – Precisas que te dê o número? – Não, eu tenho-o. Com a sensação de que o seu peito estava prestes a rebentar, tornou a ir à casa de banho e fechou a porta à chave. Abriu a torneira e ficou a ouvir a água a bater na banheira, enquanto se despia. Sabia perfeitamente que não tinha relações sexuais com a mulher havia quase dois meses. Mas também sabia que a súbita rigidez do seu pénis nada tinha que ver com ela.
Visualizou o estúdio que a cunhada arrendara, o mesmo que partilhara com a irmã quando eram jovens, e imaginou-a aninhada na cama; e depois lembrou-se da sensação que tivera quando a carregara às costas, do corpo dela contra o seu a manchar-lhe a roupa de sangue, do toque do seu peito e das suas nádegas, e viu-se de repente a puxar-lhe as calças para baixo, apenas o suficiente para ver o tom azulado da mancha mongólica. Ali de pé, masturbou-se. Escapouse-lhe um gemido por entre os lábios, nem gargalhada nem soluço. O choque térmico da água demasiado fria. Fora há dois anos, no princípio do
verão, quando a cunhada cortara os pulsos em casa dele. Tinham-se mudado para lá pouco antes por precisarem de mais espaço, e os parentes da mulher haviam-se reunido lá para um almoço. Ouvira dizer que a cunhada se tornara vegetariana – algo que não condizia em nada com aquela família de apreciadores de carne, principalmente o patriarca. Ela estava tão magra que fazia dó e, por isso, não ficou nada admirado com o sermão que todos lhe deram. Mas o pai dela, aquele herói da Guerra do Vietname, chegara ao ponto de dar uma bofetada à filha rebelde e de lhe meter à força um bocado de carne na boca – e, para ele, isso fora demasiado. Por mais
que refletisse na cena, não se conseguia convencer de que tinha realmente acontecido – parecia mais uma cena de uma peça bizarra. O mais vívido e assustador de tudo era a recordação do grito da cunhada quando o bocado de carne lhe chegara aos lábios. Depois de o cuspir, pegara na faca da fruta e lançara um olhar feroz a cada um dos membros da família, revirando os olhos aterrorizados como os de um animal enjaulado. O sangue esguichara-lhe do pulso a seguir ao corte; ele rasgara então uma tira da toalha, ligara-lhe o pulso e pegara nela ao colo, sentindo nos seus braços um corpo tão leve que podia ser
de um fantasma. Ao correr para o parque de estacionamento, surpreendera-se com a sua rapidez e o seu poder de decisão, algo que nunca se apercebera de que possuía. Ao observar a cunhada inconsciente a receber tratamento médico de urgência, ouvira um som semelhante a alguma coisa que tivesse estalado dentro daquele corpo. Ainda agora continuava sem conseguir explicar com rigor a sensação que tivera naquele momento. Alguém agredira o próprio corpo à frente dele, alguém tentara cortá-lo como se fosse um bocado de carne; o sangue ensopara a camisa branca dele, misturando-se com o suor e evoluindo
aos poucos até uma mancha castanha escura quando finalmente secou. Lembrava-se de ter esperança de que ela sobrevivesse mas, ao mesmo tempo, de se perguntar o que implicaria exatamente essa «sobrevivência». O momento em que ela tentara pôr termo à vida fora um ponto de viragem: a partir daí ninguém podia fazer nada para a ajudar. Todos eles – os pais que a tinham obrigado a comer carne, o marido e os irmãos que haviam presenciado tudo e permitido que aquilo acontecesse – eram desconhecidos distantes, talvez até inimigos. Quando ela acordasse, nada disso mudaria. O facto de aquela tentativa de suicídio ter
sido um impulso momentâneo não significava que não voltasse a acontecer. E, se a cunhada reincidisse, iria ser certamente mais cuidadosa na forma de o fazer, o que significava que ninguém conseguiria impedi-la, ao contrário do que sucedera daquela vez. De repente, apercebeu-se da conclusão a que os seus pensamentos o tinham levado: seria melhor ela não acordar pois, se acordasse, seria confrontada com uma situação ambígua, sinistra, e por isso talvez ele devesse atirá-la pela janela enquanto ela ainda tinha os olhos fechados. Ao saber que a cunhada já se encontrava fora de perigo, ele decidiu
utilizar o dinheiro que o marido dela lhe dera para comprar uma camisa nova. Mas, em vez de deitar fora a suja, que tresandava a sangue, enrolou-a numa trouxa e levou-a no táxi para casa. Durante a viagem, viera-lhe à mente o seu último trabalho em vídeo e ficara admirado por estar a recordá-lo como algo que lhe tinha causado um sofrimento insuportável. O vídeo baseava-se em imagens relacionadas com coisas que ele odiava e considerava falsas, com as quais fizera uma montagem impressionista, acrescentando-lhes música e legendas gráficas: anúncios, excertos de noticiários e séries televisivas, rostos
de políticos, pontes destruídas e centros comerciais, vagabundos e lágrimas de crianças que padeciam de doenças sem cura. De repente, sentira-se agoniado. Apesar de aquelas imagens lhe causarem dor, incluindo as que odiava, os momentos individuais que o vídeo continha, com os quais se debatera durante toda a noite, num esforço tremendo para encarar a verdadeira natureza das emoções que despertavam nele, surgiram-lhe então na memória como uma forma de violência. Os seus pensamentos atravessaram uma fronteira, e teve vontade de abrir a porta do táxi que seguia a toda a velocidade e
atirar-se para o alcatrão. Não aguentava mais pensar naquelas imagens e na realidade que elas configuravam. Quando estivera a trabalhar nelas, talvez tivesse conseguido fazê-lo porque o ódio que nele acodavam era ainda incipiente – ou talvez porque não se sentisse suficientemente ameaçado por elas. Mas naquele momento, fechado dentro do táxi numa tarde escaldante de verão, com o cheiro do sangue da cunhada a assaltar-lhe as narinas, aquelas imagens e aquela realidade haviam-se tornado subitamente ameaçadoras, fazendo a bílis subir-lhe à garganta e o ar ficar-lhe preso nos pulmões. Pensara que, se calhar, iria
demorar muito tempo até ser capaz de fazer um novo trabalho. Estava esgotado e a vida revoltava-o. Não conseguia lidar com tudo aquilo que a contaminava. Todo o trabalho dos últimos dez anos, mais coisa menos coisa, estava a virar-lhe lentamente as costas. Já não lhe pertencia. Fazia parte de uma pessoa que ele conhecera – ou julgava ter conhecido – havia muito tempo. A cunhada ficou em silêncio do outro lado da linha. Mas ele sabia que ela estava lá; conseguia ouvir um som muito débil, como um suspiro ou uma respiração, a que se sobrepunha um ruído que pensou ser da ligação.
– Está? – Tinha alguma dificuldade em obrigar as palavras a saírem. – Sou eu, cunhada. A tua irmã está… – Sentiu desprezo por si próprio, por tanta hipocrisia e embuste, mas dominou esse sentimento e continuou a falar. – Sabes, ela está preocupada. Nada do outro lado. Suspirou para o auscultador. Sabia que ela devia estar de pé, descalça, como sempre. Quando saíra do hospital psiquiátrico onde estivera internada vários meses, fora para casa deles, enquanto a irmã, bem como o resto da família, tentavam convencer o marido a aceitá-la de volta. O mês que lá passara, até se mudar para um estúdio alugado, não tinha causado a
menor tensão em nenhum dos dois. Em parte, porque ele ainda não tinha ouvido falar da sua mancha mongólica e, por isso, olhava para ela apenas como alguém digno de compaixão, se bem que houvesse nela qualquer coisa de levemente misterioso. Ela não fora de muitas conversas e passara a maior parte do tempo na varanda, a desfrutar do sol do fim de outono. Entretinha-se a apanhar as folhas secas que caíam dos vasos e a desfazêlas num pó fino, ou a estender a palma da mão para projetar sombras no chão. Quando a irmã estava ocupada com qualquer coisa, ajudava a tratar de Jiwoo, levando-o à casa de banho ou
auxiliando-o a lavar-se, sempre com os pés descalços a beijarem os mosaicos frios. Era difícil acreditar que aquela mulher pudesse ter tentado matar-se, ou ter-se sentado de tronco nu à frente de gente desconhecida, absolutamente imperturbável, o que fora considerado um sintoma de uma qualquer demência posterior à tentativa de suicídio. O momento em que ele correra para o hospital com ela às costas, a cobri-lo de sangue, e o efeito profundo que essa experiência causara nele pareciam-lhe algo que acontecera com outra mulher e talvez num outro tempo. A única coisa que ela tinha de
verdadeiramente invulgar era o facto de não comer carne. Fora essa a causa da fricção com a família e, como o seu comportamento depois dessa mudança inicial se tornara cada vez mais estranho – culminando com a sua deambulação em tronco nu –, o marido chegara à conclusão de que o vegetarianismo era a prova de que a sua mulher nunca mais voltaria a ser «normal». – Ela sempre foi tão submissa… pelo menos, aparentemente. E, sendo incapaz de tomar a medicação certa todos os dias, só podia piorar, e foi isso que aconteceu. O que mais o impressionou foi o facto de o cunhado parecer achar
perfeitamente normal livrar-se da mulher, como se ela fosse um relógio sem conserto ou um eletrodoméstico avariado. – Agora não andem para aí a transformar-me em vilão. Está à vista de todos que a verdadeira vítima sou eu. Por ser incapaz de negar que havia alguma verdade nisto, ele manteve uma posição neutra, ao contrário da mulher, que implorou ao senhor Cheong que não avançasse com o processo de divórcio e esperasse para ver como as coisas evoluíam. Mas o cunhado manteve-se inflexível. Fez um esforço para tirar o rosto do senhor Cheong da cabeça, com aquela
sua testa estreita, o queixo espetado e um ar de teimosia que sempre lhe tinham desagradado. Tentou de novo fazer Yeong-hye falar. – Responde-me, cunhada. Diz o que te apetecer, mas responde. – Quando chegou à conclusão de que não tinha outra coisa a fazer senão desligar, ela falou. – A água está a ferver. – A sua voz não tinha peso; as suas palavras pareciam penas. Não parecia triste nem alheada, como seria de esperar de uma pessoa doente. Mas também não soava acalorada nem alegre. Era o tom calmo de alguém que não pertencia a lado nenhum, uma pessoa que passara para
uma terra de ninguém entre estados de alma. – Vou ter de ir apagar o lume. – Cunhada, eu… – Falou à pressa, com o pânico de que ela desligasse. – Posso passar por aí agora? Não vais sair hoje? Depois de um breve silêncio, ouviu um estalido e o sinal de que tinham desligado. Pousou o auscultador, com a mão a escorrer suor. Era óbvio que só depois de ouvir a sua mulher falar da mancha mongólica da cunhada é que começara a vê-la com outros olhos. Até então, nunca houvera nenhum motivo oculto quando tinha de lidar com ela. Quando se recordava do
seu aspeto e das suas atitudes no tempo que ela passara lá em casa, o desejo sexual que o afligia era o resultado de uma reencenação dessas experiências passadas, e não algo que tivesse realmente sentido na altura. Ficava com a pele a escaldar de cada vez que recordava a expressão distante dela, sentada na varanda a fazer sombras com as mãos, da carne branca do tornozelo que vislumbrara espreitando das calças do fato de treino quando ajudava o seu filho a tomar banho, da silhueta descuidada quando se escarrapachava em frente da televisão, com as pernas seminuas e o cabelo despenteado. E em todas essas recordações estava gravada
a mancha mongólica – essa mancha que só aparecia nas nádegas ou nas costas das crianças e que desaparecia por completo muito antes de chegarem à idade adulta. O facto de ela não comer carne e apenas legumes e cereais parecia em perfeita harmonia com a imagem daquela mancha azul em forma de pétala, de tal forma que era impossível separá-los; e o facto de o sangue que tinha espirrado da sua artéria lhe ter ensopado a camisa branca, transformando-se, ao secar, numa mancha escura que fazia lembrar sopa de feijão, pareciam-lhe uma premonição chocante e indecifrável do que um dia
lhe havia de acontecer a ele. O apartamento da cunhada ficava numa rua estreita e relativamente calma perto da Universidade Feminina de Dongduk. Ele parou à frente do edifício de vários andares, carregando os dois grandes sacos de fruta que a mulher insistira em que levasse à irmã – tangerinas, peras e maçãs da Ilha de Jeju, e até alguns morangos fora de época. Doíam-lhe os músculos das mãos e dos braços, mas continuou ali parado, hesitante, ao aperceber-se de que estava apavorado com a ideia de subir até ao apartamento e de se encontrarem frente a frente. Por fim, pousou os sacos no chão,
pegou no telemóvel e marcou o número dela. Quando, ao décimo toque, ela continuou a não atender, tornou a pegar nos sacos e começou a subir a escada. Ao chegar ao terceiro andar, foi até ao apartamento do canto e tocou à campainha, que tinha um desenho de uma semicolcheia. Tal como pensara, ninguém apareceu. Tentou rodar o puxador e ficou muito admirado quando a porta se abriu. Ajeitou o boné de basebol e só nessa altura reparou que tinha o cabelo encharcado de suor. Tentou arranjar-se um pouco, respirou fundo e entrou. O apartamento voltado a sul estava inundado até à cozinha pelo sol do
princípio de outubro, e reinava uma calma plena. Algumas peças de roupa da sua mulher, que tinham passado para a irmã, estavam espalhadas pelo chão, e viam-se bolinhas de cotão, mas a casa não parecia suja, talvez devido à quase total ausência de mobília. Depois de pousar os sacos da fruta junto da porta, tirou os sapatos e entrou. Não havia sinais da cunhada em lado nenhum. Se calhar, saíra. Talvez tivesse saído deliberadamente por ele lhe ter dito que ia lá a casa. Não havia televisão, o que tornava estranhas as duas tomadas à vista na parede ao lado do buraco para a antena. Na outra ponta da sala, que também servia de quarto,
onde a sua mulher instalara um telefone, estava um colchão tapado por uma coberta toda amarfanhada, quase fazendo lembrar um abrigo, como se alguém tivesse acabado de sair de baixo dela. No ar pairava um cheiro a mofo, e ele estava prestes a abrir a porta para a varanda quando ouviu um barulho e se voltou instantaneamente. Ficou com a respiração presa na garganta. Ela vinha a sair da casa de banho, mas o que verdadeiramente o chocou foi o facto de estar despida. Parou por um momento, com uma expressão desorientada, como se também ela tivesse ficado espantada, e não havia o
mais pequeno vestígio de água no seu corpo nu. Depois começou a apanhar as peças de roupa espalhadas, uma a uma, e a vesti-las. Fê-lo com toda a calma, nem corada nem constrangida, como se vestir-se fosse apenas fruto da situação, e não algo que achasse necessário. Enquanto se ia vestindo, calma e metodicamente e sem se voltar de costas para o cunhado, ele percebeu que devia desviar os olhos ou sair a toda a velocidade. No entanto, ficou ali parado, como se estivesse preso ao chão. Ela não estava tão magra como nos seus primeiros tempos de vegetarianismo. Fora aumentando de peso pouco a pouco depois de ter sido
internada, alimentara-se bem durante o tempo em que estivera com ele e a mulher e, por isso, os seus seios estavam agora mais redondos, mais bem delineados. A cintura estava mais afilada, o cabelo mais ralo, e o aspeto geral do seu corpo – tirando as coxas que, para ele, podiam estar um pouco mais cheias – era de uma ausência de excessos bastante atraente. Em vez de despertar desejo, era um corpo que dava vontade de admirar com toda a calma. Quando ela acabou de escolher a roupa e de se vestir, aproximou-se dele, e foi nessa altura que ele se lembrou de que não tinha conseguido ver a mancha mongólica.
– Desculpa. – Balbuciou a sua resposta tarde demais. – Como a porta estava aberta, pensei que tinhas saído para ir fazer qualquer coisa. – Não faz mal. – Pelo tom de voz, parecia estar a responder como se aquilo fosse o que se esperava ou o que devia ser feito. – É que eu gosto de andar assim quando estou sozinha. Ele tentou recuperar os seus pensamentos; a sua mente tinha ficado vazia. Portanto, ela está a dizer que anda sempre nua pela casa. Ainda há pouco se tinha sentido bem quando confrontado com o corpo nu dela, mas, assim que percebeu o que a cunhada queria dizer, ficou vermelho e sentiu o pénis
intumescido. Tirou o boné e pôs-se de cócoras, desajeitadamente, para tentar esconder a ereção. – Não tenho nada de comer para te oferecer… Foi até à zona da cozinha, e ele pensou que as calças cinzentas do fato de treino deviam estar a roçar-lhe diretamente na pele, pois, pelo que acabara de ver, sabia que ela não vestira nada por baixo. As suas nádegas não eram grandes nem particularmente voluptuosas. Nada tinham que pudesse justificar o facto de a boca dele ter ficado tão seca de repente. – Não tenho fome – respondeu, tentando ganhar tempo, na esperança de
reprimir a ereção. – E se comêssemos só uma peça de fruta? – Se quiseres. – Foi até à porta da rua, tirou as peras e as maçãs do saco e pô-las no lava-loiça. Quando ele ouviu a água a correr e os pratos a baterem uns nos outros, tentou concentrar-se nas tomadas tão feias e nos botões angulosos do telefone, mas a imagem da região púbica dela era cada vez mais nítida. Tinha a cabeça a latejar com os desenhos de nádegas cobertas de pétalas coloridas sobrepondo-se aos do homem e da mulher a fazerem sexo, com que tinha enchido páginas e páginas do seu caderno de esboços. Quando a cunhada se sentou ao seu
lado, trazendo os pratos com a fruta descascada e cortada às fatias, ele teve de curvar a cabeça para que ela não visse a expressão dos seus olhos. – Não sei se as maçãs são boas… – disse, com uma voz débil. Passado algum tempo, ela quebrou o silêncio. – Sabes, não é preciso vires ver-me. – Não? – O médico disse que não queria que eu arranjasse um trabalho em que ficasse sozinha com os meus pensamentos – continuou em voz baixa – e, por isso, estou a pensar em arranjar qualquer coisa num centro comercial. Fui a uma entrevista na semana passada.
– A sério? Era surpreendente. «Eras capaz de aturar uma mulher que estivesse sempre assim, encharcada em medicamentos psiquiátricos dia após dia, completamente dependente de ti para a sustentares?» O senhor Cheong puseralhe esta pergunta num dos telefonemas que lhe fizera, com a voz entaramelada, como se estivesse embriagado. Mas, afinal, essa previsão não se concretizara; ela não estava assim tão «passada». Voltou o tronco para ela, mas com os olhos ainda fixos no chão, e perguntou finalmente o que queria perguntar. – E se, em vez disso, fosses
trabalhar com a tua irmã na loja? – À medida que falava, sentia a sua excitação diminuir ligeiramente. – A mãe do Ji-woo paga bons ordenados, sabes como ela é boa pessoa, e de certeza que prefere que o dinheiro vá para ti do que para um estranho. É tua irmã, o que significa que podem confiar uma na outra, e ela gostava que vocês passassem mais tempo juntas. Além disso, o trabalho não seria tão duro como num centro comercial. Ela desviou devagar o rosto para ele, e ele reparou que a sua expressão tinha a serenidade de um monge budista. Uma serenidade daquelas assustava-o, levando-o a pensar que talvez fosse
apenas uma impressão superficial deixada para trás após um rancor tão profundo e inefável se ter digerido ou sedimentado dentro dela. Criticou-se por tê-la usado como objeto de pornografia mental quando, na realidade, ela tinha apenas um desejo inocente de estar nua. Mesmo assim, não podia negar que a imagem daquele corpo nu lhe ficara indelevelmente gravada no cérebro, como uma marca feita com ferro em brasa. – Come uma pera – disse ela, estendendo-lhe o prato. – Mas tu comes também… Usando os dedos em vez de um garfo, pegou num pedaço do fruto e
meteu-o na boca. Ele voltou a cabeça de lado, assustado com o súbito impulso que sentiu de abraçar a silhueta imóvel daquela mulher – aliás, tão imóvel que parecia embrenhada nos seus pensamentos –, chupar-lhe o indicador molhado com o sumo da pera, lamberlhe depois o resto do sumo doce dos lábios e da língua e, por fim, puxar-lhe as calças largas do fato de treino para baixo sem mais delongas. – É só um minuto – disse ele, enquanto calçava os sapatos. – Vens comigo? – Aonde? – Podíamos dar uma volta, conversar um bocado.
– Vou tentar pensar em qualquer coisa que possa interessar-te. – Não, não é necessário… é que… preciso de te pedir um favor. Ela pareceu insegura, mas ele já tinha decidido. Para fugir daquela situação angustiante, das compulsões inexplicáveis que pouco a pouco se iam apoderando dele, precisava de sair daquela sala, de ir para a rua. Era demasiado perigoso para ele ficar ali, nem que fosse por mais um minuto. – Podemos falar aqui. – Não, apetece-me andar um bocado. Não te sentes asfixiada aqui, encurralada todo o dia? Por fim, como que resignada por não
ter conseguido fazer vingar os seus argumentos, a cunhada calçou os chinelos e saiu atrás dele. Desceram a escada sem trocarem uma única palavra e seguiram pela rua principal. Quando ele viu o letreiro de um café, perguntoulhe: – Gostas de granizados? Ela esboçou um meio-sorriso, com um ar de rapariga que tinha saído pela primeira vez com um rapaz e não queria dar a ideia de que era assim tão fácil agradar-lhe. Sentaram-se os dois junto da janela. Ele olhava-a em silêncio, enquanto ela misturava feijão encarnado no refresco, lambendo o resto que ficara na ponta da colher de madeira. Como se houvesse
um arame a ligar a língua dela ao corpo dele, de cada vez que a pequena língua rosada aparecia entre os lábios, ele estremecia como se tivesse apanhado um choque elétrico. E pensou para si próprio que talvez só houvesse uma saída. E que talvez essa única saída daquele inferno de desejo fosse transformar aquelas imagens em realidade. – Então, o favor…? Fitou-o nos olhos com um resto de feijão na ponta da língua. Naqueles olhos de pestanas pequenas, com aquela linha simples que quase a fazia parecer mongol, as pupilas, que não eram grandes nem pequenas, brilhavam
tenuemente. – Gostavas de posar como modelo para mim? Ela nem se riu, nem corou. Continuou a olhá-lo nos olhos, como a mergulhar neles. – Foste a algumas das minhas exposições, não foste? – Fui. – Vai ser um trabalho em vídeo, do género dos outros. E não vai demorar muito tempo. Só é preciso… despireste. – Agora, que finalmente dissera o que queria, sentiu-se subitamente muito corajoso e teve a certeza de que as suas mãos, que já tinham parado de suar, também iriam ficar mais firmes e
controladas. Sentiu igualmente a testa mais fresca. – Despes-te, e eu pinto o teu corpo. Os olhos dela, calmos como sempre, continuavam fixos nos dele. – Vais pintar-me? – Vou. Só podemos tirar a tinta quando eu acabar de filmar. – Tinta… no meu corpo? – Vou pintar flores. – Pareceu-lhe que os olhos dela tremeluziam. Se calhar, cometera um erro. – Não vai custar nada. Uma hora, talvez duas, não precisamos de muito mais. Quando te der jeito. Depois de dizer o que tinha a dizer, baixou a cabeça com ar resignado e
olhou para o seu granizado. Coberto de amendoins picados e lascas de amêndoa, já estava a derreter, e o líquido começara a escorrer pelos lados da taça. – Onde? Estava concentrado no refresco, que começava a transformar-se em espuma, quando a pergunta finalmente surgiu. Olhou para cima e viu-a a pôr na boca o resto do granizado, com o seu tom avermelhado a espalhar-se-lhe pelos lábios exangues. – Estou a pensar alugar o estúdio de um amigo. – O rosto dela estava de tal forma desprovido de expressão que lhe era impossível adivinhar o que iria na cabeça dela. – Ah… a tua irmã… –
Quem lhe dera poder não tocar nesse assunto, mas parecia não haver maneira de o contornar; as palavras que balbuciou traíram-no, revelando com uma clareza dolorosa o verdadeiro carácter da situação. – Bem… é segredo. A cunhada não deu sinais nem de concordância nem de recusa. E ele susteve a respiração e observou com avidez o seu rosto impassível, tentando desesperadamente descobrir a resposta que aquele silêncio significava. No estúdio de M. estava uma temperatura bastante agradável, graças à enorme janela que deixava entrar a luz do sol. O espaço tinha cerca de trezentos
metros quadrados, o que fazia dele mais uma galeria de arte do que um estúdio. Os quadros de M. estavam pendurados em lugares cuidadosamente escolhidos, e os seus materiais guardados de uma forma tão surpreendentemente ordenada que ele se sentia tentado a experimentálos, apesar de ter trazido os seus próprios pincéis e tintas. – Fiquei bastante admirado quando me ligaste – dissera M., ao entregar-lhe as chaves, depois de lhe ter servido um chá. M. conseguira um emprego a tempo inteiro numa universidade de Seul quando tinha apenas trinta e dois anos – aliás, fora o primeiro do seu ano a consegui-lo – e agora a combinação do
seu rosto, da sua maneira de vestir e da sua atitude emprestavam-lhe a dignidade de um professor. – Se precisares mais alguma vez do estúdio, é só dizeres. Passo quase sempre as manhãs e as tardes nas aulas, por isso, está normalmente livre. Tirou das paredes alguns dos quadros de M., principalmente os que estavam encostados às ombreiras das janelas, pensando enquanto o fazia que eram bastante mais convencionais do que qualquer coisa onde ele pusesse a sua assinatura. Cobriu com um lençol branco o grande retângulo do chão de madeira onde a luz incidia com mais intensidade e deitou-se por instantes em
cima dele, a avaliar o que a cunhada teria no seu campo de visão e se a sua posição seria suficientemente confortável. As vigas de madeira que abraçavam o teto alto, o céu para lá da janela, o lençol – um resguardo suave entre as suas costas e o chão, que estava um pouco frio mas não insuportavelmente. Voltou-se para a frente, e os seus olhos retiveram várias coisas: os quadros de M., a mancha de sol esculpida na sombra do chão, a fuligem acumulada na lareira de tijolo que quase nunca era usada. Espalhou os seus materiais de pintura, verificou as baterias da câmara de vídeo PD100, montou a iluminação
do estúdio para uma longa sessão de filmagens, abriu o caderno de esboços, tornou a fechá-lo e a guardá-lo na mochila, despiu a camisola, arregaçou as mangas e ficou à espera. Quando eram quase três da tarde, a hora a que tinham combinado encontrar-se, tornou a vestir a camisola e calçou os sapatos. Dirigiu-se rapidamente à estação de metro, inspirando o ar fresco dos arredores da cidade. O seu telemóvel tocou, e ele atendeu, enquanto continuava a andar. – Sou eu. – Era a sua mulher. – Vou ter de ficar até mais tarde na loja. E a babysitter teve um furo. Vais ter de ir buscar o Ji-woo à creche às sete.
– Não posso – respondeu ele secamente. – Não me despacho antes das nove. – Ouviu a mulher suspirar. – Está bem. Vou pedir à vizinha do 709 que fique com ele até às nove. Desligaram sem qualquer conversa de circunstância desnecessária. Atualmente, a relação de ambos era assim – como se fossem parceiros de negócios que tinham o cuidado de eliminar das conversas tudo o que fosse superficial e cujo único projeto comercial comum era o filho de ambos. Alguns dias antes, na noite daquele dia em que fora a casa da cunhada, estendera os braços no escuro e puxara a mulher para si, sem se dar tempo de
pensar no que estava a fazer. A mulher, apesar de confusa e apanhada de surpresa por aquela aparente demonstração de desejo, continuava a não ter motivos para questionar se aquilo era o que era. Se tivesse olhado, teria visto qualquer coisa muito parecida com medo nos olhos do marido. Mas estavam às escuras. – Que é que te deu? – Nessa altura, ele tapara-lhe a boca com a mão, para não ter de ouvir aquela voz nasalada. Chegou-se mais à imagem dela, encontrando-a no nariz e nos lábios da mulher, na curva do pescoço quase de criança, os seus vagos contornos no escuro. Com o mamilo dela dentro da
sua boca, ereto e duro, estendeu o braço para baixo e tirou-lhe as cuecas. Sempre que lhe apetecia que a imagem da pequena pétala azul se abrisse e recolhesse, fechava os olhos e tentava bloquear da mente a cara da mulher. Quando acabaram, ela estava a chorar. Ele desconhecia o significado daquelas lágrimas – dor, prazer, paixão, repulsa ou uma qualquer solidão inescrutável que ela seria tão incapaz de explicar como ele de compreender. Ele não fazia ideia. – Tenho medo – murmurara, voltando-se de costas para ele. Não, não era isso. – Estás a assustar-me. – Mas, nessa altura, ele já estava a dormir
profundamente e, por isso, não teve a certeza se a mulher chegara a dizer essas palavras. Talvez ela tivesse ficado a soluçar ali no escuro, horas a fio. Não fazia ideia. Contudo, na manhã seguinte ela não fizera nada de diferente do costume. E agora, ao telefone, não havia na sua voz qualquer vestígio do que acontecera entre eles, nem aparentemente hostilidade alguma em relação ao marido. Era só a sua maneira de falar – aquela paciência quase sobre-humana, aqueles suspiros que eram quase a marca dela – que o fazia sentir-se incrivelmente desconfortável. Acelerou um pouco o passo, para tentar afastar
aquela sensação. Para sua surpresa, a cunhada já o esperava à saída da estação, sentada nos degraus de ombros caídos, como se ali estivesse há muito tempo. Com uma camisola castanha bastante grossa por cima de umas calças de ganga coçadas, parecia ter vindo diretamente de outra estação do ano. Ele olhou fixamente para a cara dela, que luzia de suor, e depois os seus olhos percorreram os contornos daquele corpo tão próximo. Ficou ali parado por um momento, sem a chamar, desejando mantê-la congelada naquela moldura. Os transeuntes lançavam olhares breves e constrangidos àquele homem, que
parecia possuído. – Despe-te – disse-lhe em voz baixa. A cunhada estava de pé, a olhar sem expressão para as faias que se viam através da janela. O sol da tarde banhava o lençol branco. Ela não se voltou. Pensando que não o ouvira, ele estava prestes a repetir o que dissera quando ela levantou os braços e tirou a camisola pela cabeça. A seguir despiu a T-shirt que tinha por baixo, revelando as costas nuas; portanto, não tinha sutiã. Despiu então as calças velhas, deixando as nádegas brancas à mostra. Ele susteve a respiração e observouas. Na parte de cima, tinham duas covinhas a que geralmente se dava o
nome de «o sorriso do anjo». A mancha era do tamanho de um polegar e ficava no canto superior da nádega esquerda. Como era possível que aquilo continuasse ali ao fim de tantos anos? Não fazia sentido. O seu tom pálido de um azul esverdeado fazia lembrar uma pequena nódoa negra, mas via-se claramente que era uma mancha mongólica. Parecia uma coisa antiga, anterior à evolução, ou talvez uma marca da fotossíntese, e ele apercebeuse de que, para sua grande surpresa, não havia na mancha nada de sexual; era mais vegetal do que sexual. Só ao fim de algum tempo conseguiu tirar os olhos da mancha mongólica e
prestar atenção àquele corpo despido no seu todo. A calma dela era impressionante, tendo em conta que não era modelo profissional e ainda o tipo de relação que tivera com o ex-marido. De repente, ele lembrou-se de lhe terem contado que a tinham encontrado de tronco nu à frente da fonte do hospital depois de ter cortado o pulso; que fora por causa disso que ficara internada numa ala restrita; e que a sua alta tinha demorado mais do que o previsto porque, mesmo no hospital, continuava a tentar despir-se e expor-se, nua, ao sol. – Queres que me sente? – perguntou. – Não, quero que te deites de barriga para baixo – respondeu ele, falando tão
baixinho que as suas palavras eram quase inaudíveis. Ela obedeceu. Ele continuou de pé, completamente imóvel, a testa franzida com o esforço de tentar identificar a origem da confusão que havia dentro de si e que a visão daquele corpo deitado agitara de novo. – Deixate ficar assim. Dá-me um minuto para preparar tudo. Fixou a câmara de vídeo ao tripé e ajustou a altura. Depois de regular a câmara de modo que o corpo dela coubesse no visor, tirou da mochila as tintas, a paleta e os pincéis. Decidira filmar-se enquanto a pintava. Primeiro, afastou os cabelos que estavam a tapar-lhe os ombros e, depois,
começou a pintar, partindo da nuca. Flores em botão, vermelhas e cor de laranja, semiabertas, resplandecendo nos ombros e nas costas dela, com as hastes finíssimas entretecidas nos flancos. Quando chegou à covinha da nádega direita, pintou uma flor de laranjeira totalmente aberta, com o gineceu amarelo intenso a emergir do centro. Não decorou a nádega esquerda, a que tinha a mancha mongólica. Em vez disso, utilizou um pincel largo para preencher toda a zona em volta da marca azulada com um verde-claro, mais claro do que a própria mancha, para que esta se distinguisse como se fosse a sombra pálida de uma flor.
Sempre que o pincel aflorava a pele da cunhada, sentia-a tremer delicadamente, como se estivessem a fazer-lhe cócegas, e arrepiava-se. Mas não era excitação; era, sim, uma sensação que estimulava algo no fundo de si próprio e que o percorria como um choque elétrico contínuo. Quando, finalmente, acabou de pintar as folhas e os longos caules, que se prolongavam pela coxa direita até ao elegante tornozelo, estava encharcado em suor. – Já está – disse-lhe. – Fica assim só mais um minuto. Tirou a câmara do tripé e começou a filmá-la de perto. Fez zoom nos
pormenores de cada flor e filmou uma longa sequência com a curva do pescoço, o cabelo despenteado, as duas mãos pousadas no lençol, aparentemente tensas, e a nádega com a mancha mongólica. Quando já tinha todo o corpo dela registado na cassete, desligou a câmara. – Já podes levantar-te. Esgotado, sentou-se no sofá, de frente para a lareira. Ela apoiou os cotovelos no chão e levantou-se lentamente, como se os seus membros estivessem perros e a doer-lhe. – Não tens frio? – Ele limpou o suor, levantou-se e pôs-lhe a camisola por cima dos ombros. – Foi difícil?
Desta vez, ela olhou para ele e soltou uma gargalhada. O seu riso era débil mas animado, dando a ideia de que não rejeitava nada, nem nada havia que a surpreendesse. Só nesse momento ele se apercebeu do que o chocara quando a vira deitada de bruços sobre o lençol. Era o corpo de uma jovem, um convencional objeto de desejo, e, no entanto, era na verdade um corpo completamente desprovido de desejo. Mas não era ao desejo carnal que ela renunciara; pelo contrário, aquilo a que renunciara era à própria vida que o corpo representava – pelo menos, assim parecia. Um feixe de sol entrava pela enorme janela,
dissolvendo-se em grãos de areia, e a beleza daquele corpo, embora os olhos não o notassem, estava também a desintegrar-se incessantemente… A inexpressividade arrebatadora daquela cena atingiu-o como uma onda a desfazer-se nas rochas, aliviando-o até daquelas compulsões assustadoramente desconhecidas que lhe haviam causado tanto sofrimento ao longo do ano anterior. Ela vestiu as calças e a camisola e pôs as mãos à volta de uma caneca fumegante. Tinha deixado os chinelos junto da porta e pisou o chão com os seus pés descalços e uma enorme leveza.
– Não tiveste frio? – perguntou-lhe pela segunda vez, e ela abanou a cabeça. – E não foi difícil? – Só tive de estar ali deitada. E o chão estava quente. Apesar de ser uma situação inegavelmente bizarra, ela mostrou uma ausência total de curiosidade e, de facto, parecia que fora isso que lhe permitira manter a calma, independentemente daquilo com que fosse confrontada. Não fez qualquer menção de explorar aquele espaço desconhecido e não revelou nenhuma das emoções que se podia esperar de alguém naquela situação. Parecia que, para ela, bastava lidar com o que lhe aparecesse à frente, com toda
a calma e simplicidade. Ou então talvez estivessem a acontecer coisas dentro dela, coisas terríveis, impossíveis de adivinhar, que a impediam de, ao mesmo tempo, dar um mínimo de atenção ao presente. Se fosse isso, era natural que não tivesse qualquer energia, nem para se mostrar curiosa ou interessada, nem sequer para ter uma reação visível perante as banalidades prosaicas que iam sucedendo à superfície. O que lhe sugeriu que talvez fosse mesmo assim foi o facto de os seus olhos parecerem refletir de vez em quando uma espécie de violência, que não podia ser confundida com passividade, ou imbecilidade, ou indiferença, e que ela
aparentemente tentava reprimir. Naquele preciso momento, ela estava a olhar fixamente para os pés, com as mãos à volta da caneca e os ombros arqueados, como se fosse um pintainho a tentar aquecer-se. No entanto, não inspirava qualquer piedade; pelo contrário, a postura dava-lhe um ar tão invulgarmente forte e reservado que quem estivesse a olhar para ela iria sentir-se constrangido e acabaria por desviar os olhos. Lembrou-se da cara do ex-marido dela, de quem nunca gostara e a quem já não tinha de tratar por «cunhado». Uma cara seca, que parecia não dar valor a nada que extravasasse o quotidiano, a
nada em que não pudesse tocar com as próprias mãos; só de pensar naqueles lábios gulosos sobre o corpo dela, aqueles lábios dos quais nunca saíra nada que não fosse banal e óbvio, ficava cheio de vergonha. Saberia aquele idiota insensível que a mulher tinha a mancha mongólica? Não conseguia pensar nos seus corpos nus entrelaçados sem achar essa imagem insultuosa, suja e violenta. Ela ergueu-se, estendendo-lhe a chávena vazia e, por isso, ele levantouse também. Pegou na chávena e pousoua na mesa. Depois pôs uma cassete nova na câmara e tornou a ajustar o tripé. – Podemos recomeçar? Ela acenou com a cabeça e
aproximou-se do lençol. O sol estava um pouco mais fraco, e ele teve de ligar uma das lâmpadas de tungsténio, aquela que incidia diretamente no lençol. A cunhada tirou a roupa e tornou a deitar-se, desta vez de costas, a olhar para o teto. A luz do projetor fê-lo semicerrar os olhos, como se estivesse encandeado, embora a parte superior do corpo dela ainda se encontrasse na sombra. Claro que ele já a tinha visto nua, de frente, daquela vez em que fora ao seu apartamento, mas vê-la ali deitada sem qualquer resistência, mesmo que blindada pelo poder da sua própria renúncia, provocou-lhe uma sensação tão intensa que os olhos se lhe encheram
de lágrimas. As clavículas dela eram pele e osso; os seios, por ela estar deitada de costas, eram esguios e alongados como os de uma adolescente; as costelas, claramente visíveis; as coxas afastadas, numa posição que incongruentemente nada tinha de sexual; o rosto, calmo e imaculado, e os olhos abertos que podiam ter estado a dormir. Era um corpo do qual todos os excessos haviam sido gradualmente retirados. Nunca tinha visto um corpo assim, que dizia tanto, apesar de não ser mais do que o que era. Desta vez, pintou grandes cachos de flores cor de laranja e brancas das clavículas aos seios. Se as flores que
lhe pintara nas costas eram noturnas, estas agora eram as flores luminosas do dia. Na barriga côncava floresciam lírios cor de laranja, e nas coxas espalhavam-se aqui e ali pétalas douradas. Parecia haver uma energia arrebatadora fluindo calmamente de um qualquer lugar desconhecido do seu corpo que desembocava na ponta do pincel. Só queria desenhar durante o máximo de tempo possível. A lâmpada de tungsténio iluminava-a apenas até ao pescoço, deixando o rosto às escuras. Parecia que ela estava a dormir, mas, quando a ponta do pincel lhe roçava a pele, o seu tremor palpitante indicava
que estava bem acordada. Pela calma com que aceitava tudo, ele via-a como qualquer coisa de sagrado. Fosse humano, animal ou planta, ela não poderia decerto ser considerada «uma pessoa», mas também não era exatamente uma criatura selvagem – talvez mais um ser misterioso com características de ambas. Quando, por fim, pousou o pincel, olhou para o corpo dela, para os botões que nele desabrochavam, esquecendo por completo a filmagem. Mas a luz do sol estava a desaparecer lentamente, deixando o rosto dela apagado pelas sombras do entardecer e, por isso, pôs rapidamente as ideias em ordem.
– Volta-te de lado para mim. Devagar, como se estivesse a mover-se ao ritmo de uma música que só ela conseguia ouvir, a cunhada curvou os braços, as pernas, a cintura, e voltou-se de lado. Ele fez uma panorâmica da sua silhueta de lado e da curva das nádegas e depois filmou as flores nas suas costas, as flores da noite, e a seguir as flores do sol na parte da frente. Quando acabou, filmou a mancha mongólica, ténue como uma relíquia azul vista à luz que gradualmente desaparecia. Hesitou, tinha prometido a si próprio que não o faria; mas, quando ela estava a olhar fixamente para a escuridão absoluta para lá da janela, não conseguiu resistir a
fazer um grande plano do seu rosto. O ecrã encheu-se com os lábios pálidos, a concavidade sombria onde se juntavam as clavículas salientes, a testa rodeada pelo cabelo desgrenhado e os olhos vazios. Encontrava-se de pé junto à porta, de braços cruzados, enquanto ele arrumava o equipamento na mala do carro. Tal como M. lhe pedira, meteu a chave dentro de uma das botas de montanha que estavam no patamar. – Está feito – disse. – Vamos embora. – Mesmo com a camisola dele por cima da sua, ela tremia como se estivesse cheia de frio. – Vamos comer qualquer coisa em tua casa? Ou, se
estiveres com muita fome, podemos comer num sítio qualquer aqui perto? – Como queiras – murmurou ela, e depois apontou para o peito. – Isto sai com água? – Como se aquele pormenor prático fosse a única coisa que lhe despertasse a curiosidade. – Talvez não saia com muita facilidade. Vais ter de lavar isso várias vezes… Ela interrompeu-o. – Não quero que saia. Momentaneamente desorientado, ele olhou para a cara dela, mas a escuridão obscureceu qualquer expressão que a pudesse ter perpassado. Dirigiram-se a uma área mais
urbanizada e meteram-se por várias ruas e ruelas à procura de um sítio onde comerem. Como ela não comia carne, decidiram-se por um restaurante que anunciava gastronomia budista. Pediram o prato do dia, e puseram-lhes à frente uns vinte acompanhamentos com uma apresentação apetitosa e, ainda, arroz confecionado num pote de pedra com castanhas e ginseng. Ao ver a cunhada comer, lembrou-se de repente de que, apesar de ela ter passado as últimas quatro horas completamente nua, nada do que ele fizera conseguira arrancar nela a mínima reação. Claro que o seu plano não era excitá-la, mas apenas filmá-la nua. No entanto, era
surpreendente que não lhe tivesse provocado o menor sentimento de desejo ao longo de todo o processo. Vendo-a agora à sua frente, com a camisola disforme e uma colher na boca, sentiu que o milagre dessa tarde, que conseguira finalmente neutralizar aquele desejo persistente e lancinante que o perseguira durante um ano, chegara ao fim. A imagem dele a atirá-la ao chão – com tal ímpeto que levaria toda a gente no restaurante a gritar, se pudessem ver o que ele estava a pensar – interpôs-se diante do movimento dos lábios dela como um véu semitransparente, uma projeção infernal que ele conhecia bem demais e não parava de faiscar perante
os seus olhos. Desviou o olhar para o tampo da mesa e meteu atabalhoadamente uma colherada de arroz na boca. – Porque é que não comes carne? Sempre tive essa dúvida, mas nunca ganhei coragem para te perguntar. – Ela pousou os pauzinhos e olhou para ele. – Não tens de me dizer, se for difícil para ti – acrescentou, ainda a tentar reprimir as imagens sexuais que lhe bailavam na cabeça. – Não – respondeu ela com serenidade. – Não me é difícil. O problema é que acho que não vais compreender. – Tornou a pegar nos pauzinhos e mastigou lentamente alguns
rebentos de soja. – É por causa de um sonho que tive. – Um sonho? – repetiu ele. – Tive um sonho… e é por isso que não como carne. – Mas… que tipo de sonho? – Sonhei com um rosto. – Um rosto? Ao ver a minha expressão de total desorientação, deu uma pequeníssima gargalhada. Uma gargalhada melancólica. – Não te disse que não irias compreender? Não podia perguntar-lhe: nesse caso, porque é que costumavas expor os seios ao sol como uma espécie de animal
mutante cuja evolução lhe permitisse realizar a fotossíntese? Isso também era por causa de um sonho? Estacionou o carro à frente do prédio onde ela morava, e saíram ambos. – Muito obrigado pelo dia de hoje. Ela respondeu com um sorriso. Era um sorriso calmo e comedido, não muito diferente do da sua mulher. Para o mundo inteiro, a cunhada seria considerada uma mulher perfeitamente comum. É verdade, pensou, ela é normal. Eu é que sou louco. Ela entrou pela porta principal do edifício, desaparecendo sem uma vénia de despedida. E ele permaneceu ali, à
espera de que as luzes se acendessem em casa dela. Mas depois, vendo que o quarto continuava às escuras, meteu-se no carro e pôs o motor a trabalhar. Na sua mente, desenhou o quarto na penumbra e ela metendo o seu corpo nu, ainda coberto de flores coloridas, entre o colchão e a colcha. Aquele corpo junto do qual ele passara tantas horas e em que, ainda assim, só tocara com as cerdas do pincel. Doeu-lhe. Quando tocou à campainha do 709, eram precisamente nove e vinte. A mulher que abriu a porta e saiu disse em surdina: – O Ji-woo fartou-se de perguntar pela mãe. Adormeceu há
minutos. – Uma menina (a avaliar pelas tranças, devia estar na segunda ou terceira classe) estendeu-lhe a empilhadora de plástico do Ji-woo. Ele agradeceu e pôs o brinquedo na mochila. Abriu depois a porta do seu apartamento, o 710, e transportou cuidadosamente o filho adormecido. O caminho pelo corredor até ao quarto da criança pareceu-lhe extraordinariamente longo. Ji-woo não estaria a dormir muito profundamente porque, mal o deitou na cama, ouviu-lhe o barulho de chuchar no polegar, um som solitário no quarto às escuras. Foi para a sala e acendeu a luz, fechou depois a porta da rua e sentou-se
no sofá. Por um momento, entregou-se aos seus pensamentos, depois levantouse, dirigiu-se à porta, abriu-a e saiu. Apanhou o elevador até ao rés do chão e sentou-se ao volante do carro estacionado. Enquanto remexia no saco onde estavam guardadas as duas cassetes de 6 mm e o caderno de esboços, o telemóvel tocou. – O Ji-woo? – A voz da mulher parecia preocupada. – Está a dormir. – Jantou? – Deve ter jantado. Já estava a dormir quando cheguei. – Está bem. Devo chegar por volta das onze.
– Está a dormir tão bem que eu… bem… – Tu o quê? – Vou só dar um salto ao estúdio. Ainda me falta acabar uma coisa. – A mulher não respondeu. – Tenho a certeza de que o Ji-woo não vai acordar. Está mesmo ferrado. Ele agora já dorme até de manhã, como tu sabes… – Nada. – Estás a ouvir? – Nada. – Querido. Para sua surpresa, pareceu-lhe que ela estava a chorar. Não haveria mais ninguém na loja? Seria muito estranho a mulher permitir-se chorar à frente de outras pessoas, logo ela, que estava sempre particularmente atenta a olhares
intrometidos. Passado um pouco, aparentemente mais calma, disse, com uma voz que ele nunca lhe ouvira, tal era a complexidade do turbilhão de emoções que parecia expressar: – Se queres ir, vai. Fecho a loja e vou já para casa. E desligou. Normalmente, era o tipo de pessoa que nunca conseguia desligar primeiro, por muito atarefada que estivesse. No meio da confusão que o dominava, um inesperado sentimento de culpa levou-o a permanecer sentado por mais algum tempo, sem conseguir decidir-se, ainda com o telefone na mão. Hesitou sobre se deveria voltar para casa e esperar que a mulher chegasse,
mas rapidamente resolveu pôr o carro a trabalhar. As ruas estavam quase vazias àquela hora; a mulher não demoraria mais de vinte minutos. O mais provável era que o filho continuasse a dormir profundamente e nada acontecesse. E a verdade é que ele não conseguia suportar a ideia de ficar ali sentado, naquele apartamento cheio de luz, à espera de que a mulher chegasse, sabendo que seria então confrontado com a expressão carregada do seu rosto. Quando chegou ao estúdio, só lá estava J. – Vieste tarde! Estava mesmo para me ir embora. Esperava que J. não decidisse ficar
mais tempo por sua causa. Como o estúdio era partilhado por quatro pessoas, todas notívagas, era raro poder-se passar uma noite inteira a trabalhar sem se ser incomodado. Ligou o computador, enquanto J. arrumava as suas coisas e vestia a gabardina. O outro pareceu surpreendido ao ver as duas cassetes que ele tinha na mão. – Fizeste qualquer coisa. – Pois fiz. J. sorriu perante aquela resposta sucinta. – Quando acabares, gostaria de ver. – Claro. J. fez uma vénia brincalhona, abriu a
porta e abanou vigorosamente os braços ao sair, imitando alguém que precisava de desaparecer. Ele riu-se e, quando o riso esmoreceu, reparou que já não se ria assim há muito, muito tempo. O sol já estava bem alto no dia seguinte, quando ele tirou o master do computador e o desligou. As gravações tinham ficado melhores do que esperava. A iluminação, os movimentos dela, o ambiente que evocavam – tudo estava de cortar a respiração. Considerou por um momento a possibilidade de adicionar alguma música de fundo, mas decidiu mantê-lo sem som, para dar a ideia de que tudo o que se estava a passar no
ecrã acontecia numa espécie de vácuo. A delicadeza das linhas dela, o seu corpo nu coberto de flores maravilhosas, a mancha mongólica – tendo como pano de fundo o silêncio, uma harmonia silenciosa que evocava algo de primitivo, e eterno. Aguentou o lento e infindável processo de montagem fumando um maço inteiro de cigarros, sem querer parar até ter acabado. A duração do vídeo, depois de concluído, era de quatro minutos e cinquenta e cinco segundos. Começava com uma imagem da sua mão a pintar o corpo da cunhada deitado de bruços, com um fade out sobre a mancha mongólica, depois
surgia um plano que captava a desolação no rosto dela, com a sombra a torná-lo praticamente irreconhecível, e um novo fade out. Havia muito que não sentia a exaustão de uma noite em claro. Era como se tivesse grãos de areia cravados na pele, uma sensação de que tudo adquirira um aspeto estranho. Escreveu a caneta preta na etiqueta do master: «Mancha Mongólica 1 – Flores da Noite e Flores do Dia.» Assim que acabou, esfregou os olhos, consumido por uma visão que sabia não dever nunca tentar registar, mas à qual, se tal fosse possível, daria o nome de «Mancha Mongólica 2».
Era a imagem de um homem e uma mulher, com os corpos cobertos de flores brilhantes, a fazerem sexo, num silêncio inefável. Com movimentos dos membros a tocarem-se efetivamente nesse vazio. Uma progressão de cenas oscilando entre a violência e a ternura, em que nenhum extremo ficasse por explorar. Um longo momento, sem artifícios, de purificação silenciosa, os extremos sublimados numa espécie de paz. Cerrou a mão em torno do master, deslizando os dedos sobre a cassete, enquanto os pensamentos lhe revoluteavam na cabeça. Se lhe pedissem para escolher um homem a fim
de ser filmado a fazer sexo com a cunhada, podia ser qualquer um menos ele. Estava demasiado consciente das rugas, dos pneus na barriga e das nádegas e coxas descaídas. Pôs o carro a trabalhar mas, em vez de ir para casa, dirigiu-se a uma sauna nas proximidades. Vestiu a T-shirt e os calções brancos que lhe deram na receção e olhou, desiludido, para a sua imagem no espelho. Não lhe restou qualquer dúvida: não poderia ser ele. Mas, então, quem haveria de ser? Que pessoa poderia ele encontrar para fazer sexo com ela? Não ia fazer um filme pornográfico, mas também não queria que os movimentos fossem fingidos.
Precisava de autenticidade, e isso implicava que houvesse mesmo penetração. Mas então quem? Quem aceitaria participar numa coisa dessas? E como reagiria a cunhada? Sentiu que tinha chegado a um ponto sem retorno. Mas não conseguia parar. Ou melhor: não queria parar. Tentou adormecer na sauna, os braços e as pernas acariciados e embalados pelo vapor quente. Estar ali era como estar dentro de uma noite de verão, com o curso do tempo a inverterse. Envolto na cintilação quente dessa imagem, a única que lhe era proibida, a energia esvaiu-se por completo do seu corpo exausto.
Ela foi a primeira coisa que viu, quando acordou de um sono breve. Tinha a pele pálida, esverdeada; o corpo estava deitado de bruços à sua frente, como uma folha que tivesse acabado de cair de um ramo, apenas com ténues vestígios de estar a começar a murchar. A mancha mongólica tinha desaparecido e, em vez disso, todo o seu corpo estava uniformemente coberto por aquele verde-claro. Voltou-a para si. Daquele corpo irradiou uma luz ofuscante que o obrigou a semicerrar os olhos e o impediu de ver fosse o que fosse acima dos seios – como se a origem da luz fosse um ponto qualquer à volta do rosto dela. Abriu-
lhe as pernas; as coxas separaram-se com uma facilidade que só podia significar que estava acordada. Da vagina começou a escorrer uma seiva verde, como a que escorre das folhas pisadas, quando a penetrou. O perfume agridoce a relva cortada era tão intenso que tinha dificuldade em respirar. Quando saiu, no momento do clímax, viu que tinha o pénis integralmente manchado de verde. Uma pasta escura cobria-lhe a pele desde o umbigo até às coxas, uma seiva fresca que tanto podia ter saído dela como dele. Mais uma vez, estava ao telefone com ela, confrontando-se com o silêncio do outro lado da linha.
– Cunhada… – Sim. – Felizmente, desta vez ela respondeu sem fazer uma pausa demasiado longa. Pareceria alegre ao ouvir a voz dele? Não tinha a certeza. – Descansaste o suficiente ontem? – Descansei. – Bem, queria pedir-te uma coisa. – Diz. – Já lavaste as flores? – Ainda não. Ele soltou um longo suspiro. – Nesse caso, importavas-te de as deixares por enquanto? Só até amanhã. Elas não desaparecem até lá. Ah, eu… preciso de te filmar mais uma vez. Estaria a rir-se? Quem lhe dera
poder ver a expressão dela. Estaria a sorrir? – Não queria que elas saíssem e, por isso, não lavei o corpo – disse ela calmamente. – Estão a impedir que os sonhos voltem. Se acabarem por desaparecer, espero que mas pintes outra vez. Não conseguia perceber exatamente o que estava ela a dizer, mas agarrou o telefone com força e murmurou, ótimo. Talvez ela afinal concordasse. Talvez acedesse ao que ele tinha em mente. – Se tiveres disponibilidade, importas-te de aparecer amanhã outra vez? No estúdio em Sonbawi. – Está bem.
– Também lá vai estar outra pessoa. Um homem. – Ela permaneceu em silêncio. – Vou mandá-lo despir-se e pintar-lhe igualmente flores no corpo. Não te importas, pois não? – Ficou à espera. Os longos silêncios dela já não o deixavam desconfortável. Entretanto, chegara à conclusão de que talvez significassem consentimento. – Está bem. Desligou e começou a andar pela sala, a esfregar as mãos. Ligou para a mulher. Não ia ser lá muito agradável, mas tinha de o fazer. – Onde é que estás? – perguntou-lhe ela, com um tom mais ambivalente do que frio.
– Em casa. – Como é que correu o trabalho? – Ainda está a correr. Pelos vistos, vou estar ocupado até amanhã à noite. – Compreendo. Bem… não trabalhes demais. Desligou. Preferia que ela se tivesse enfurecido e gritado como as outras mulheres, que se tivesse queixado e descarregado uma data de insultos em cima dele. Resignava-se com tanta facilidade. E aquele seu hábito de reprimir qualquer vestígio dessa resignação sufocava-o. Não sabia se os esforços desesperados que ela fazia por se mostrar compreensiva e delicada eram uma coisa boa ou má. Talvez isso
ocorresse por ele ser tão egoísta e irresponsável. Mas, naquele momento, sentia-se asfixiado pela paciência da mulher e pelo seu desejo de fazer sempre o que estava certo, o que lhe parecia sobretudo falta de personalidade. Quando aquela mistura indistinta de culpa, arrependimento e incerteza desapareceu, passou à fase seguinte do seu plano e ligou para J. – J.? Vens cá hoje? – Não, passei a noite inteira aí. Hoje vou fazer um intervalo. – A sério? Preciso de te pedir um pequeno favor. – Que tipo de favor?
– Estás livre amanhã? Vou ter de fazer umas filmagens amanhã à noite. – Explicou a J. onde ficava o estúdio de M. Ia acrescentar que não fazia mal se ele só estivesse livre à tarde, porque não demoraria muito, mas depois mudou de ideias. – Disseste que querias ver o que eu estive a fazer ontem, não foi? – Claro que sim. – Bem, vou agora para o estúdio. – Desligou. J. chegou cedo. Apesar de ser habitualmente uma pessoa muito descontraída, naquele dia, pela primeira vez, parecia impaciente. – Até estou a tremer. Ele fez-lhe um café e despiu-o com a
mente. Ótimo: ele e a cunhada eram perfeitos um para o outro. Na tarde da véspera, quando mostrara o vídeo a J., o jovem ficara incrivelmente empolgado. – Não consigo acreditar… é mágico! Para já, como é que tiveste uma ideia destas? Sabes, durante algum tempo, estive mesmo convencido de que eras um tipo bastante normal… ah, desculpa… – A voz de J., a expressão do seu olhar, expressavam um entusiasmo tão excessivo que dava quase para desconfiar. Estaria a ser sincero? – Isto é tão diferente de tudo o que fizeste até agora. Isto é… é uma coisa que parece elevar-te a um patamar
completamente diferente! E estas cores! Embora desse algum desconto às hipérboles de J. – típicas dos jovens –, tinha de admitir que, na generalidade, estava de acordo. Não que até então tivesse ignorado a beleza da cor, mas mesmo assim. Tinha a sensação de que todo o seu corpo vibrava com aqueles matizes intensos, toda aquela energia latente dentro dele… Era quase insuportável. Estava a viver com uma nova intensidade. «Dantes eu era uma pessoa sombria»: havia alturas em que tinha vontade de o explicar desta forma. Dantes eu era uma pessoa sombria. Situava-me num lugar sombrio. O mundo
monocromático, completamente desprovido de cor, onde vivia possuía uma calma que era bela à sua maneira, mas não era um local ao qual pudesse voltar. Parecia que tinha perdido para sempre a felicidade que lhe permitira sentir essa paz. E, no entanto, não conseguia encará-lo como uma perda. Toda a energia que tinha estava a ser absorvida pelo esforço de lidar com a excitação, com aquela consciência redobrada de estar a viver o momento presente. Encorajado pelos elogios de J., e apesar de não ter conseguido impedir as faces de corarem, acabou por conseguir dizer o que tinha planeado. Mas, quando
lhe mostrou o livro de esboços e o esquema de rituais de dança e perguntou se J. lhe faria o favor de ser seu modelo, este ficou muito atrapalhado. – Por que raio estás a pedir-me isso a mim? Há por aí muitos modelos profissionais; podes contratar um ator ou… – Mas tu tens exatamente o corpo de que preciso. Um corpo demasiado musculado não serve. Tu és o ideal. – Não, não sou a pessoa certa para esse trabalho… para posar assim com uma mulher. Não consigo. – Ninguém vai saber. Não filmarei a tua cara. E não queres conhecer esta mulher? Não gostavas de fazer parte da
inspiração para uma obra como esta? Depois de lhe ter dado apenas uma noite para pensar no assunto, J. telefonou-lhe na manhã seguinte a dizer que aceitava ser modelo. Claro que o jovem não podia adivinhar o que ele queria realmente: filmar os dois, J. e a sua cunhada, a terem relações. – Ela está um bocado atrasada, não está? – perguntou J., espreitando nervosamente pela janela. Ele próprio já estava a ficar impaciente. A cunhada garantira-lhe que conseguiria encontrar o sítio sozinha e, por isso, decidira esperá-la no estúdio, em vez de se encontrarem na estação de metro.
– Bem, talvez seja melhor eu ir até à estação. – Pegou na camisola e levantou-se mas, nesse preciso momento, ouviram alguém bater na porta de vidro translúcido. – Ah, cá está ela! J. pousou a chávena de café. Desta vez, trazia uma camisola preta larga com as mesmas calças de ganga. O cabelo solto, de um preto natural muito carregado, ainda estava molhado; era provável que o tivesse lavado imediatamente antes de sair. Olhou primeiro para ele, depois para J. e, a seguir, deu uma risadinha. – Tive muito cuidado – disse, tocando no cabelo. – Não deixei a água chegar às flores.
J. sorriu, parecendo aliviado. Provavelmente, não estava à espera de que ela fosse uma pessoa tão normal. – Despe-te. – Eu? – perguntou J., de olhos esbugalhados. – Ela já está pintada. Por isso, agora tenho de te pintar a ti. – Abafando um risinho nervoso, J. voltou-se de costas para eles e despiu-se. – Tens de tirar também as calças. – J. hesitou, mas depois fez o que lhe pediam. O corpo do jovem era esbelto, mais esbelto ainda do que ele imaginara. Tirando os pêlos espessos que lhe desciam do umbigo, numa linha que depois se dividia junto às coxas, a sua pele era invejavelmente
branca e macia. Tal como fizera com a cunhada, pediu a J. que se deitasse de bruços e começou a pintar-lhe flores da nuca para baixo. Trabalhou o mais depressa que conseguia, utilizando um pincel grosso para pintar hidrângeas lilases, que pareciam cair sobre as costas de J., como se tivessem sido apanhadas por uma forte ventania. – Volta-te. Utilizando o pénis de J. como centro, pintou uma única flor, enorme, vermelha como sangue, de forma a dar a ideia de que os pêlos púbicos do modelo eram as sépalas, e o pénis o pistilo. Durante todo esse tempo, ela esteve calmamente
sentada no sofá, bebendo golinhos de chá e observando com atenção o trabalho de pintura. Quando ele acabou, reparou que o pénis de J. tinha ficado ligeiramente intumescido. Depois de pintar o resto das flores no tronco do jovem, fez um pequeno intervalo e, a seguir, levantou-se e pôs uma cassete nova na câmara, para ter a certeza de que conseguiria filmar tudo. Voltou-se para ela e pediu-lhe que se despisse. Ela fez o que lhe pediu. A luz não estava tão forte como da outra vez, mas o feixe dourado de flores que ele lhe pintara mesmo no meio do peito continuava a brilhar de um modo
intenso. Ao contrário de J., ela estava perfeitamente à vontade, como se quisesse afirmar que não usar roupa era de facto mais natural. Quando se ajoelhou no lençol, ele não pôde deixar de reparar no olhar extasiado de J. Sem lhe dar quaisquer indicações, a cunhada aproximou-se de J., e ele, como que a espelhar os movimentos dela, pôsse também de joelhos. Havia uma espécie de desolação no contraste entre o rosto calmo e silencioso dela e o seu corpo radioso. – E agora, o que é que fazemos? – perguntou J., coradíssimo. Provavelmente, estava nervoso com a perspetiva de ter de ser ele a tomar a
iniciativa; ainda assim, o seu pénis estava de novo intumescido. – Senta-a nos teus joelhos. – Achou que seria melhor referir-se à cunhada sem usar o seu nome. Pegou na câmara e aproximou-se deles. – Puxa-a para ti. C’os diabos, é a primeira vez que fazes isto? A ideia é representares. Tenta tocar-lhe nos seios ou coisa do género. J. limpou a testa com as costas da mão. Mas, antes de poder fazer fosse o que fosse, ela virou-se, com movimentos lentos, para ficar de frente para ele e escarranchou-se de pernas abertas. Deslizou a mão até à nuca de J. e puxouo para ela, enquanto, com a outra mão, começou a acariciar a flor vermelha
pintada no seu peito. Pontuado apenas pela respiração das três pessoas, o tempo passou sem que fosse possível medi-lo. Os mamilos do jovem endureceram devagar, e o seu pénis ficou ereto. Ela esfregou o pescoço no de J., tal qual dois pássaros cortejandose, quase como se tivesse visto os desenhos no caderno de esboços e soubesse exatamente o que ele queria que fizessem. – Ótimo. Muito bom. – Filmou a cena de vários ângulos, até encontrar o melhor. – Muito bem… continuem. Deitem-se assim, um em cima do outro. Ela pousou a mão no peito de J. e empurrou-o suavemente até ele ficar
deitado sobre o lençol e, depois, começou a acariciar as flores vermelhas que lhe cobriam o tronco, uma a uma, traçando lentamente o caminho até aos órgãos genitais. Ele pôs-se atrás dela com a câmara para lhe apanhar as flores púrpura espalhadas pelas costas e a mancha mongólica a ondular ao ritmo dos seus movimentos. Cerrou os dentes e pensou de si para si, é isto. Mas se pudesse ser ainda melhor… O pénis de J. estava já completamente ereto, e ele esboçava uma careta, como se não aguentasse mais aquela pressão. Ela deitou-se vagarosamente sobre ele de barriga para baixo, apoiando os seios no seu peito e
elevando as nádegas. Ele filmou ambos de cada um dos lados. Havia qualquer coisa de obsceno na forma como ela arqueava as costas, como se fosse um gato, no espaço por pintar à roda do umbigo de J. e na rigidez do seu pénis. Eles pareciam duas enormes plantas abstratas. Quando ela se sentou lentamente, com as pernas abertas sobre as ancas de J., o cunhado balbuciou: – Se calhar… quer dizer… veio-me agora à cabeça. – Olhou para ela e depois para J. – Importavam-se de fazer… de o fazer mesmo a sério? Não houve o menor vestígio de choque ou repulsa no rosto dela, mas J. empurrou-a de um modo brusco, como
se a pele dela estivesse a queimá-lo. Pôs-se de joelhos, tentando desajeitadamente esconder o pénis. – O quê? Queres fazer um filme pornográfico? – Se não quiseres, tudo bem. Mas se fosse possível vocês os dois… com naturalidade… – Acabou-se. Estou farto. – J. pôs-se de pé. – Espera. Só um minuto. Não vou pedir-vos que façam mais nada. Apenas o que têm estado a fazer até agora. – Agarrou J. pelo ombro, talvez com mais força do que tencionava, porque ele gemeu e afastou-lhe a mão. – Vá lá… não há necessidade disso.
Um intervalo de silêncio. J. pareceu então um pouco mais calmo. – Eu percebo… afinal, também sou um artista. Mas uma coisa destas é… não. E quem é esta mulher? Não me parece nada uma prostituta. E, mesmo que fosse, não seria correto, percebes? – Eu compreendo. A sério. Desculpa. J. tornou a deitar-se no lençol, mas a carga sexual que havia no ar alguns minutos antes desaparecera por completo. Pôs os braços à volta dela e deitou-a; e fê-lo com uma expressão dura, como se tudo aquilo fosse uma forma de castigo. Os seus corpos sobrepuseram-se como duas pétalas, e
ela fechou os olhos. Se J. tivesse aceitado, ela teria acedido sem o menor protesto. Ele tinha a certeza absoluta disso. – Tentem mexer-se um bocado. J. começou a mover lentamente o corpo para trás e para a frente, numa imitação sofrida e artificial do ato sexual. Ele viu as solas dos pés da cunhada curvarem-se e as suas mãos fecharem-se sobre o peito de J. O corpo dela estava tão empolgado e inundado de desejo que compensava a passividade de J. Passaram uns dez minutos naquela posição, com o jovem a demonstrar a cada segundo a sua clara repulsa mas, para ele, foi pouco tempo.
Mesmo assim, conseguiu captar os ângulos que queria e gravar algumas imagens boas. – Já acabámos? – perguntou J. Tinha a pele vermelha até à raiz dos cabelos, mas não devido a qualquer excitação sexual. – Só mais uma vez… é a última. – Engoliu em seco. – Agora por trás. Deita-a de barriga para baixo. É mesmo a última vez. É a cena mais importante. Não me digas que não. J. desatou a rir com um som que mais parecia que soluçava. – Isso mesmo. Era exatamente isso. Agora vou parar, antes que as coisas piorem. Vocês têm uma inspiração
enorme. Imagino o que os atores porno sofrem. Deve ser horrível! Pôs a mão no ombro de J., a tentar segurá-lo, mas ele afastou-a e começou a vestir-se. Rangeu os dentes ao ver a sua obra, o turbilhão de flores ainda intacto a desaparecer sob a camisa de J. – Não penses que não te compreendo. E não julgues que sou púdico ou coisa do género. Acho é que sou mais… mais contido do que pensava que era. Aceitei fazer isto porque estava com curiosidade, mas não consigo continuar. Acho que há certas coisas em mim que tenho de… de despertar, mas… para isso preciso de tempo. Desculpa. Percebia-se perfeitamente que
estava a ser sincero. Parecia mais magoado do que outra coisa qualquer. Fez-lhe uma vénia, olhou de relance para ela, e saiu apressado porta fora. – Desculpa – disse ele, quando o carro de J. se afastou do espaço fronteiro ao prédio. Ela não respondeu. Limitou-se a vestir a camisola e as calças de ganga. Mas depois, em vez de puxar o fecho, começou a rir para o ar. – Porque estás a rir? – Porque estou toda molhada… Ele olhou para a cunhada, sentindose tão atordoado como se tivesse levado com uma coisa na cabeça. Ela tinha a mão no fecho meio aberto e estava hesitante, como se não conseguisse
decidir-se a puxá-lo para cima ou para baixo. Só nesse momento é que ele se apercebeu de que ainda tinha a câmara na mão. Pousou-a, dirigiu-se para a porta que J. tinha deixado aberta e fechou-a. Pelo sim, pelo não, pôs também a corrente de segurança. Depois, voltando para ela quase a correr, puxou-a para si e deixaram-se cair ambos sobre o lençol. Quando lhe desceu as calças até aos joelhos, ela disse «Não». Não foi só verbalmente que o rejeitou – também o empurrou, com brusquidão, levantou-se e puxou as calças para cima. Ele ficou a vê-la correr o fecho e apertar o botão.
Levantou-se também, aproximou-se dela e encostou-lhe o corpo ainda a arder à parede. Depois, pôs firmemente os lábios sobre os dela, tentando meter-lhe a língua na boca, mas ela tornou a empurrá-lo. – Porque não havemos de o fazer? Por ser teu cunhado? – Não, não tem nada a ver com isso. – Então, porque não? Vá lá, disseste que estavas toda molhada! – Ela ficou em silêncio. – Gostaste daquele rapaz? – Não gostei dele. Gostei das flores… – Das flores? O rosto dela empalideceu instantaneamente, como se estivesse com
medo. O seu lábio inferior, vermelho e inchado de tanto o morder, estava a tremer quase impercetivelmente. – Eu queria mesmo fazê-lo – explicou, cautelosa. – Nunca tive tanta vontade de o fazer como naquele momento. Eram as flores no corpo dele… Não consegui controlar-me. Foi só isso. Ele viu-a voltar-lhe as costas e encaminhar-se, decidida, para a porta. Enquanto enfiava os pés nos ténis, gritou-lhe: – Se… – Não conseguiu evitar que a sua voz tivesse um tom agudo. – Se eu pintasse flores no meu corpo, fá-lo-ias comigo? Ela virou-se e olhou-o fixamente, e
ele percebeu que aquele era um olhar cúmplice. – E… podia filmar? Ela riu-se. Pacatamente, como se não houvesse nada que não fizesse, como se para ela os limites ou as fronteiras tivessem deixado de ter sentido. Ou, então, era um riso de troça. Quem me dera morrer. Quem me dera morrer. Então, morre. Sem conseguir perceber por que razão as lágrimas não paravam de lhe correr pela cara abaixo, agarrou o volante com força e pôs os limpa-parabrisas a trabalhar na velocidade máxima, apercebendo-se então de que
não era o para-brisas que estava manchado, mas a sua visão. Não conseguia perceber porque as palavras «Quem me dera morrer» não paravam de ecoar na sua cabeça, como se o hipnotizassem. Também não conseguia perceber por que motivo as palavras «Então, morre» vinham inevitavelmente a seguir, como se a resposta chegasse algures de dentro de si e, no entanto, não exatamente de si. E não conseguia perceber de que forma aquele simples mantra, que parecia uma conversa entre dois estranhos, poderia ser suficiente para lhe acalmar o corpo alvoroçado. Baixou completamente o vidro das janelas, tanto do lado do condutor como
do do passageiro. O carro voou por entre a escuridão da estrada, o rugido do vento e o trânsito noturno. O tremor começou-lhe nas mãos e depois estendeu-se ao corpo todo, e foi isso que o levou a cerrar os dentes e carregar no acelerador. Sempre que olhava para o conta-quilómetros, ficava chocado com a velocidade a que ia e esfregava os olhos com os dedos trémulos. Com um casaco de malha branco por cima de um vestido preto, P. aproximouse da entrada principal do prédio de apartamentos. Os dois tinham namorado durante quatro anos, até ela ter rompido o namoro. Mais tarde, casara-se com um antigo colega da escola primária, que
acabara de passar no exame à Ordem dos Advogados. O marido era a principal fonte de rendimentos da família, mas ela ia conseguindo articular a vida de casada com o trabalho. Realizara várias exposições individuais, tornando-se um nome importante entre os colecionadores de Gangnam, o que obviamente provocara uma corrente de calúnias invejosas por parte de quem a conhecia. P. reparou logo no carro, porque o condutor deixara os quatro piscas ligados. Ele então aproximou-se da entrada do prédio e gritou: «Entra!» – Aqui qualquer um me pode reconhecer! Raios, até o porteiro
conhece a minha cara. O que é que me queres a esta hora da noite? – Entra. Tenho uma coisa para te dizer. – Ainda que com relutância, P. acedeu ao pedido dele. – Há que tempos que não nos víamos, eu sei. Desculpa aparecer assim sem mais nem menos. – Tens razão. Há que tempos. E não é nada o teu género. Não acredito que tenhas sentido de repente um enorme desejo de me voltares a ver. Ele esfregou a testa, impaciente. – Preciso de te pedir um favor. – Diz. – É uma longa história. Podemos ir para o teu estúdio? É aqui perto? – São cinco minutos a pé… mas não
me vais dizer o que aconteceu? – P. gritou-lhe, num tom estridente que exigia que se despachasse a responder-lhe sem evasivas. Sempre fora irascível, mas ele ficou subitamente contente com aquela vitalidade, aquela personalidade forte que, noutro tempo, achara um pouco cansativa. Teve um súbito impulso de a abraçar que, no entanto, desapareceu com a mesma rapidez com que surgira. Fora apenas uma vaga recordação de uma emoção antiga. – Ainda bem que o meu marido está a trabalhar hoje à noite – disse P., acendendo as luzes do estúdio. – Senão, podia haver uma confusão dos diabos. – Vê os desenhos de que te falei. –
Passou-lhe o caderno, e ela observou-os com toda a atenção e uma expressão de verdadeiro interesse no rosto. – Muito interessante. Estou admirada. Não sabia que conseguias usar a cor desta maneira. – Massajou o queixo e ponderou. – Isto é uma grande reviravolta. Serias mesmo capaz de expor uma coisa destas? A tua alcunha costumava ser «o sacerdote de maio», sabias? Depois de Gwangju, a tua arte tornou-se tão engagé que até parecia que estavas a expiar o facto de teres sobrevivido ao massacre de maio. Parecias tão sério, tão ascético… tudo muito romântico, tenho de admitir. – P. observou-o atentamente por cima dos
óculos. – Percebo que queiras transformar a tua imagem, mas… não achas que estás a ir longe demais? Claro que não me compete a mim apresentar-te os prós e contras. Como não queria envolver-se numa discussão com P., ele manteve-se em silêncio e começou a despir-se. Apesar de parecer um pouco surpreendida, P. começou a misturar as tintas na paleta e escolheu um pincel. – Bem – murmurou –, há muito, muito tempo que não te via nu. Começou a pintar lentamente e a custo. O pincel estava frio, e a sensação que provocava era, ao mesmo tempo, de cócegas e formigueiro, uma carícia
vigorosa e persistente. – Vou ter todo o cuidado para não deixar transparecer o meu estilo pessoal. É que… também gosto de flores e tenho desenhado muitas, mas as tuas têm uma energia diferente. Vou dar vida aos teus desenhos. Já passava da meia-noite quando, finalmente, P. anunciou que tinha terminado. – Obrigado – disse ele, tremendo de frio. – Se tivesse um espelho, mostravate. Ele olhou para o peito, para a barriga e para as pernas, todo arrepiado, e para as enormes flores vermelhas que
lhe cobriam o corpo. – Gosto. Tens mais jeito do que eu. – Não tenho a certeza quanto ao resultado das costas. Nos teus desenhos, parecia que querias dar mais ênfase às costas. – Tenho a certeza de que está óptimo. Dada a tua fama, só pode estar. – Tentei pintá-las como as desenhaste, e não como eu teria feito por iniciativa própria, mas acho que não consegui impedir que transparecesse um pouco de mim. – Agradeço-te imenso. Só nesse momento é que P. se riu. – Na verdade, quando te despiste, fiquei mais ou menos excitada…
– Oh? – exclamou ele, distraído e a vestir-se à pressa. Ao vestir a camisola sentiu-se um pouco mais quente, no entanto os braços e as pernas continuavam rígidos. – Mas há qualquer coisa… – O quê? – Parece que há qualquer coisa de errado. Ver-te assim com o corpo todo coberto de flores faz-me, sei lá… pena. Nunca senti nada disso em relação a ti… – P. aproximou-se e acabou de lhe abotoar a camisa. – Mereço pelo menos um beijo, já que me telefonaste a meio da noite. Antes de ele poder responder, já P. tinha encostado os lábios aos seus.
Aquele beijo foi um palimpsesto de recordações, dos incontáveis beijos que haviam dado noutros tempos. Ele sentiu que estava prestes a chorar, mas não sabia dizer se era por causa das recordações felizes, da amizade, ou do medo da fronteira que tencionava ultrapassar em breve. Já era tarde e, por isso, bateu levemente à porta em vez de tocar à campainha. E, em vez de esperar que abrissem, rodou o puxador. Tal como esperava, a porta abriu-se. Entrou na sala completamente às escuras. A porta de vidro para a varanda deixava entrar a luz pálida dos candeeiros da rua, mas sem iluminar a
divisão o suficiente para que ele pudesse ver fosse o que fosse. Bateu com o pé na sapateira. – Estás a dormir? Deixou o equipamento de filmagem junto à porta da rua; era pesado, e tinha de levar algumas coisas a tiracolo e outras na mão. Quando tirou os sapatos e se encaminhou para o colchão, conseguiu distinguir a silhueta ténue de uma pessoa sentada. Mesmo às escuras, percebeu que estava nua. Ela levantouse e aproximou-se. – Queres que acenda a luz? – A voz dele estava rouca de desejo. – Cheiras… – disse ela, em voz baixa – … a tinta.
Ele gemeu e estendeu os braços para ela, esquecendo-se das luzes, da câmara, de tudo. Naquele momento, nada mais existia. Deitou-a, com um som que fazia lembrar um rugido, agarrando-lhe os seios com uma mão e sugando-lhe ao acaso os lábios e o nariz, enquanto desabotoava rapidamente a camisa. Puxou os botões de baixo, arrancandoos com a pressa. Mal ficou nu, afastou-lhe as pernas e penetrou-a. Ouvia-se, vindo de algures, um arquejar constante, como de um animal selvagem, entrecortado por gemidos que aumentaram de volume até se transformarem num grito agudo.
Quando se apercebeu de que esses sons estavam a sair dele, estremeceu; nunca tinha feito qualquer ruído durante o sexo e sempre considerara isso um capricho de raparigas oferecidas. Lançou para dentro da vagina dela, já completamente húmida e a contrair-se de uma forma alarmante, um jato de sémen, com um arquejo de dor, tombando para a frente, como se tivesse desmaiado. – Desculpa – disse-lhe, procurando o rosto dela por entre a escuridão. – Posso acender a luz? – perguntou a cunhada. Parecia perfeitamente controlada. – Para quê? – Quero ver-te. – Levantou-se e
dirigiu-se ao interruptor. A bem dizer, o coito tinha sido unilateral e não chegara a durar cinco minutos, pelo que não era de admirar que ela não estivesse cansada. Quando acendeu a luz, ele protegeu os olhos daquele súbito clarão. Esperou, a pestanejar, até conseguir baixar as mãos. Ela estava encostada à parede. As flores espalhadas pelo seu corpo continuavam tão belas como sempre. Sentindo-se subitamente constrangido, pôs as mãos sobre a barriga e tentou encolhê-la. – Não a escondas… eu gosto. As pétalas parecem murchas. – Aproximouse dele devagar. Debruçou-se e, tal
como tinha feito com J., começou a acariciar as flores pintadas no peito dele. – Espera. – Ainda nu, levantou-se e foi até à porta da frente, onde deixara o equipamento. Montou o tripé, baixo, e fixou a câmara, depois empurrou o colchão para a varanda e estendeu no chão o lençol branco, que também trouxera. Preparou a iluminação, tal como no estúdio de M. – Importas-te de te deitares? Quando ela já estava deitada, calculou o sítio onde os seus corpos acabariam por se entrelaçar e ajustou a câmara. Ela continuou deitada sob a luz
ofuscante do holofote, e ele deitou-se cuidadosamente por cima dela. Iriam os seus corpos parecer pétalas sobrepostas, como acontecera com J.? Ou iriam parecer um só corpo, um híbrido de vegetal, animal e humano? Sempre que mudavam de posição, ele reajustava a câmara. Antes de a penetrar por trás, o que J. se recusara a fazer, filmou um longo close-up das nádegas dela. Depois de a penetrar, verificou o resultado da imagem no monitor e, então, começou a impelir as ancas para a frente e para trás. Estava tudo perfeito. Exatamente como nos esboços que fizera. A sua flor vermelha fechava-se e abria-se
repetidamente sobre a mancha mongólica dela, ao mesmo tempo que o seu pénis deslizava para dentro e para fora como um enorme pistilo. Estremeceu perante a natureza chocante daquela união, uma união de imagens que eram, ao mesmo tempo, repelentes e irresistivelmente belas. Sempre que fechava os olhos, via a parte de baixo do seu corpo tingida de verde, ensopada desde o estômago até às coxas de uma seiva esverdeada e pegajosa. Para sempre, murmurou a arfar, tudo isto ficará para sempre, no momento em que o seu corpo foi perpassado por uma sensação de saciedade quase impossível de suportar e ela começou a chorar. Ela,
que não tinha soltado um único gemido durante trinta minutos, limitando-se a tremer ocasionalmente os lábios; ela, que mantivera os olhos fechados, comunicando-lhe o seu profundo êxtase apenas pelos movimentos do corpo. E, agora, tinha de acabar. Ele ergueu-se até ficar sentado. Ainda a puxá-la para si, debruçou-se até chegar à câmara, procurou o botão e desligou-a. A imagem que queria fixar em vídeo tinha de ser uma que pudesse ser infinitamente repetida, sem nunca terminar ou atingir um clímax. Por isso, era ali que a filmagem tinha de acabar. Esperou até ela parar de soluçar e, nessa altura, deitou-a sobre o lençol. Nos
minutos finais do coito, ela rangeu os dentes, deu gritos roucos e estridentes, soltou um «para» ofegante e depois, no fim, tornou a chorar. A seguir, ficou tudo em silêncio. Sob a luz azul-escura da madrugada, lambeu-lhe as nádegas durante muito tempo. – Quem me dera poder transferir isto para a minha língua. – O quê? – Esta mancha mongólica. – Ela voltou-se e olhou para ele por cima do ombro, aparentemente surpreendida. – Como é possível que ainda a tenhas? – Não sei. Pensava que toda a gente tinha. Mas um dia fui ao balneário
público… e vi que era a única. Ele segurou-a pela cintura e acariciou-lhe a mancha, desejando poder partilhá-la, poder cauterizá-la na sua própria pele como uma marca. Quero engolir-te, quero que te derretas dentro de mim e corras pelas minhas veias. – Será que agora os sonhos vão acabar? – murmurou ela, com uma voz quase inaudível. – Os sonhos? Ah, o rosto… é isso, disseste que era um rosto, não foi? – retorquiu ele, sentindo uma sonolência invadir-lhe lentamente o corpo. – Que tipo de rosto era? Era o rosto de quem? – É sempre diferente. Ora me parece
familiar; ora tenho a certeza de que nunca o vi. Há alturas em que está todo ensanguentado… e outras em que parece pertencer a um corpo em decomposição. Ele olhou-a nos olhos, sentindo os seus próprios olhos pesados com o esforço de os manter abertos. Ela, por seu lado, não parecia minimamente cansada; tinha um olhar agitado, talvez por tentar expressar o motivo do seu sofrimento. – Pensava que era tudo por causa da carne – disse ela. – Achava que bastaria deixar de comer carne e os rostos não voltariam a aparecer. Mas não resultou. – Ele estava consciente de que devia concentrar-se no que ela dizia, mas não
estava a conseguir impedir que os seus olhos se fossem fechando pouco a pouco. – Pronto… agora já sei. O rosto está dentro do meu estômago. Emergiu de dentro do meu estômago. – As palavras dela soavam aos seus ouvidos como uma canção de embalar, que ele já não sabia onde começava e acabava, pelo que ultrapassou o estado de vigília e mergulhou num sono aparentemente infindável. – Mas agora já não tenho medo. Agora, já não há nenhuma razão para ter medo. Quando acordou, ela ainda dormia. O quarto estava intensamente iluminado pela luz do sol. O cabelo dela, desalinhado, envolvia-lhe a cabeça
como a juba de um animal e tinha o lençol amarrotado enrolado à parte inferior do corpo. O cheiro do corpo dela enchia o quarto, um odor intenso, penetrante, meio amargo, meio doce, com laivos almiscarados como os de um animal. Que horas seriam? Tirou o telemóvel do bolso do casaco de malha, que na noite anterior atirara à pressa para o chão. Uma da tarde. Tinha adormecido por volta das seis da manhã, o que significava que dormira profundamente durante sete horas. Vestiu as cuecas e as calças e procurou o equipamento de filmagem. Guardou o tripé e os holofotes, mas não conseguia encontrar a
câmara em lado nenhum. Lembrava-se de a ter pousado no chão, quando acabara de filmar, mesmo junto à porta da rua, para que não caísse; mas agora não aparecia. Seria possível que ela tivesse acordado mais cedo por breves instantes e a tivesse guardado em algum sítio? Foi ver à cozinha. Ao dirigir-se para o lavaloiças por trás do biombo, reparou em qualquer coisa brilhante caída no chão. Era a cassete de 6 mm. Que estranho, pensou; e depois esfregou os olhos e deu uma olhadela à sua volta. Havia uma mulher sentada à mesa com a cara repousando sobre os braços. A sua mulher.
Estava uma lancheira junto ao cotovelo dela, e os dedos apertados sobre o telemóvel. A câmara de vídeo estava voltada ao contrário, debaixo da mesa, com o deck aberto. Ela devia tê-lo ouvido a aproximar-se, mas mantinha-se imóvel. – Minha… querida – disse ele. Tinha a cabeça às voltas; não conseguia acreditar no que estava a acontecer. Só nessa altura é que ela levantou a cabeça e se pôs de pé, mas ele percebeu rapidamente que não tencionava aproximar-se dele. Pelo contrário: parecia querer manter a mesa entre ambos, de modo a impedir que ele ficasse perto dela.
– Há muito que não tinha notícias da Yeong-hye e por isso… por isso pensei passar por cá a caminho da loja. Tinha preparado uns legumes temperados, percebes? – A voz dela estava incrivelmente tensa. Esforçava-se por manter a compostura, como se fosse ela quem tivesse de se justificar. Ele conhecia aquele tom de voz. Era o timbre lento e baixo, vagamente trémulo, que significava que ela estava a tentar esconder uma emoção extrema. – A porta estava aberta e, por isso, entrei. Depois, vi que a Yeong-hye estava coberta de tinta e pensei, que estranho… A princípio não te reconheci, porque tinhas a cara voltada para a parede e o
corpo tapado com a colcha. – Sem largar o telemóvel, afastou o cabelo da cara. As mãos tremiam-lhe. – Pensei que a Yeong-hye tinha arranjado um homem, ou talvez enlouquecido pela segunda vez, com aquela tinta toda no corpo… Sabia que devia sair imediatamente daqui, mas… podia ser um homem qualquer, e se a Yeong-hye precisasse que eu a protegesse… Depois vi a câmara ao pé da porta, peguei nela e rebobinei a fita, como me ensinaste a fazer há muito tempo… – Estava a forçar-se a um autodomínio extraordinário, a puxar pela sua coragem mais ínfima, para conseguir continuar. – E vi-te na gravação.
Nos olhos dela havia uma mistura de choque, medo e desespero que não podia ser expressa por palavras, ao passo que o seu rosto se mantinha quase inexpressivo. Só nesse momento é que ele se apercebeu de que o seu corpo seminu parecia estar a causar na mulher uma verdadeira repulsa e foi rapidamente procurar a camisa. Encontrou-a na casa de banho, atirada para um monte de roupa amachucada, e vestiu-a. – Querida. Eu posso explicar. Não vai ser fácil para ti compreenderes, mas… Ela interrompeu-o abruptamente, levantando a voz: – Chamei uma
ambulância. – O quê? – Deu um passo em direção a ela, com a testa franzida de perplexidade. Ela afastou-se. – É óbvio que tu e a Yeong-hye estão a precisar de tratamento médico. Só ao fim de vários segundos é que percebeu que ela estava a falar a sério. – O que estás a dizer? Que vais internar-me num manicómio? Nessa altura, ouviu-se um sussurro vindo do colchão. Tanto ele como a mulher sustiveram a respiração. Yeonghye afastou o lençol para o lado e levantou-se, completamente nua. Ele viu lágrimas começarem a correr dos olhos
da mulher. – Sacana – balbuciou ela, reprimindo os soluços. – Já viste como ela está… é óbvio que não está bem. Bem da cabeça, quero dizer. Como é que foste capaz? Até esse momento, Yeong-hye parecia não ter dado pela presença da irmã no apartamento; só então olhou para os dois, com o rosto impávido e sereno. O seu olhar estava desprovido de qualquer expressão. Voltou-se lentamente de costas para eles e foi até à varanda. O ar frio irrompeu pelo apartamento, mal ela começou a abrir a porta de correr. Ele fixou os olhos no azul-claro da mancha
mongólica, vendo que os vestígios da sua saliva e sémen haviam secado sobre ela, como uma espécie de seiva. De repente, teve a sensação de que tinha envelhecido, de que já experimentara tudo o que havia para experimentar, e já nem a morte o assustava. Ela debruçou-se, os seios dourados reluzentes assentando sobre a grade da varanda. Tinha as pernas cobertas de pétalas alaranjadas e afastou-as muito, como se quisesse fazer amor com o sol ou o vento. Ele ouviu o som da sirene da ambulância a aproximar-se, gritos, suspiros, berros de crianças, toda a agitação da rua lá em baixo. O som de passos apressados pela escada, cada vez
mais próximos. Tinha de correr para a varanda e atirar-se por cima da grade na qual a cunhada se apoiara. Cairia de uma altura de três andares, e a sua cabeça ficaria despedaçada. Era a única saída. A única maneira de conferir um fim digno a tudo aquilo. No entanto, ficou ali parado, como se estivesse pregado ao chão, como se aquele fosse o último momento da sua vida, a olhar fixamente para a flor incandescente em que o corpo dela se transformara, aquele corpo em que agora cintilavam imagens muito mais intensas do que as que filmara durante a noite.
3 Árvores flamejantes
Ela está de pé, a olhar para a rua molhada pela chuva. Está na paragem de autocarro do outro lado da estação terminal da linha de Maseok. Passam por ela camiões enormes, acelerando na via rápida. As gotas de chuva batem no guarda-chuva com tanta força que até parece que vão rasgá-lo. Já não é propriamente jovem, e também seria difícil considerá-la uma beleza. A sua nuca é bastante atraente, e a expressão dos olhos franca e simpática. Tem o rosto ligeiramente maquilhado, mas com um ar natural, e enverga uma blusa branca impecável. Graças a essa imagem elegante, que seria de esperar que despertasse alguma
curiosidade, as atenções desviam-se das ténues sombras que lhe escurecem o rosto. Os seus olhos brilham fugazmente; o autocarro de que está à espera aparece à distância. Desce do passeio. Vê o veículo, que vinha a grande velocidade, abrandar. – Vai para o Hospital Psiquiátrico de Ch’ukseong, não vai? O condutor, um homem de meiaidade, acena com a cabeça e faz-lhe sinal para que suba. Ela paga o bilhete e, ao passar os olhos pelos bancos à procura de um sítio onde se sentar, vê de relance os rostos dos outros passageiros. Estão todos a observá-la
atentamente. Será uma doente ou uma enfermeira? Não parece haver nada de estranho na sua aparência. Habituada a isto, mantém os olhos afastados desses olhares inquisidores, com um misto de suspeição, cautela, repugnância e curiosidade. Sacode a água do guarda-chuva agora fechado. O chão do autocarro já está molhado, preto e reluzente. Não foi uma chuvada contra a qual um chapéu servisse de abrigo suficiente e, por isso, também tem a blusa e as calças encharcadas. O autocarro começa a andar, aumentando de velocidade sobre a estrada molhada. Ela tenta manter o equilíbrio enquanto avança pelo
corredor. Encontra um banco em que ambos os assentos estão livres e escolhe o do lado da janela. Os vidros estão cobertos de vapor e, por isso, tira um lenço da mala e abre um círculo perfeito. Vê os pingos da chuva a fustigarem a janela, com a cadência constante em que só as pessoas habituadas à solidão reparam. Perto de Maseok, os bosques do final de junho começam a estender-se de ambos os lados da estrada. As árvores parecem abatidas sob aquela chuva torrencial, como animais reprimindo um rugido. Quando a estrada começa a subir em direção à montanha de Ch’ukseong, vaise tornando gradualmente mais estreita e
sinuosa, trazendo para mais perto o corpo ondulante e húmido dos bosques. O sopé daquela montanha… teria sido naqueles bosques que a sua irmã Yeonghye fora encontrada três meses antes? Um a um, os espaços escuros entre as árvores, ocultados sob a capa trémula das folhas fustigadas pela chuva, desfilam perante os seus olhos. Desvia o rosto da janela. O pessoal do hospital informou-a de que Yeong-hye tinha desaparecido durante a hora em que os doentes podiam dar breves passeios sozinhos – entre as duas e as três da tarde. Esses passeios só eram permitidos em dias fixos e apenas a doentes cujo estado não
fosse grave e quando a chuva que engordava as nuvens negras lá em cima parecia decidida a manter-se dentro delas. Ao que parecia, quando os enfermeiros foram contar os doentes que voltaram às três, confirmaram que Yeong-hye não tinha regressado. Foi só nessa altura, disseram eles, que começou a pingar. Todo o hospital foi posto em alerta. A direção e o pessoal bloquearam rapidamente a estrada, na curva onde os autocarros e os táxis paravam. Quando um doente desaparecia, uma das possibilidades era ter descido a montanha e já estar em Maseok; outra era conseguir esconder-se num lugar recôndito nas montanhas.
A chuva tornara-se cada vez mais forte durante a tarde. Era março, uma altura em que anoitecia muito rapidamente. Fora uma sorte um dos enfermeiros, que decidira procurá-la num raio mais amplo, ter conseguido encontrar Yeong-hye; na verdade, na opinião do médico, fora quase um milagre. Aparentemente, o tal enfermeiro dera com ela num sítio isolado no meio do bosque que cobria uma das encostas da montanha, petrificada e encharcada pela chuva, como se fosse ela própria uma das árvores que rodeavam o lugar. Quando lhe ligaram, por volta das quatro da tarde, a dizer que Yeong-hye
desaparecera, ela estava com o filho, Jiwoo, que tinha seis anos. O menino estava há vários dias com febre, e ela levara-o ao médico para fazer uma radiografia aos pulmões. Ele estava de pé, à frente da máquina, a olhar para trás e para a frente – ora para ela, ora para o médico – com um ar apreensivo, quando o telefone tocou. – Senhora Kim In-hye? – É a própria. – Sou o enfermeiro da Yeong-hye. Era a primeira vez, desde que Yeong-hye fora internada, que alguém do hospital lhe ligava para o telemóvel. Ela também só muito raramente telefonava para lá, para confirmar as horas das
visitas ou, de vez em quando, perguntar à irmã se estava tudo bem. Num tom de voz calmo, certamente com o objetivo de esconder a urgência da situação, o enfermeiro informou-a de que a Yeonghye estava desaparecida. – Estamos a fazer todos os possíveis por a encontrar mas se por acaso ela aparecer em sua casa avise-nos imediatamente. – Antes de desligar, o enfermeiro ainda perguntou: – Há mais algum lugar para onde ela possa ter ido? Talvez para casa dos vossos pais? – Eles vivem na província… mas, se for preciso, posso falar com eles. – Desligou o telemóvel e meteu-o na mala, dirigiu-se para a sala do raio-X e deu
um abraço a Ji-woo. O filho tinha perdido peso nos últimos dias, e o corpo dele pareceu-lhe leve e quente entre os seus braços de mãe. – Portei-me muito bem, mamã. – Talvez fosse por causa da febre, mas o seu rosto parecia corado com a expectativa de receber um elogio. – É verdade. Não mexeu nem um músculo. Depois de o médico lhe ter dito que achava que não era pneumonia, ela tornou a abraçar Ji-woo, embrulhou-o bem, e meteram-se num táxi que os levou a casa sempre debaixo de chuva. Deu-lhe um banho rápido, um prato de farinha de arroz e o medicamento, e
deitou-o, apesar de ser ainda muito cedo. Não tinha espaço mental para o desaparecimento da irmã. Não conseguia dormir convenientemente desde que o filho adoecera, havia cinco dias. E, nessa noite, se a febre não baixasse, teria de o levar às urgências. Estava a preparar a roupa de Ji-woo e a confirmar que tinha o cartão do seguro de saúde, quando o telefone tornou a tocar. Deviam ser umas nove da noite. – Já a encontrámos. – Ainda bem. Vou visitá-la na próxima semana, como de costume. – Agradeceu com sinceridade, mas vencida pelo cansaço. Só depois de ter desligado lhe ocorreu que a chuva que
caíra durante todo o dia provavelmente ter-se-ia estendido à montanha onde Yeong-hye fora encontrada. Uma coincidência arbitrária, em que as suas vidas tinham estado alinhadas por instantes. Não tinha maneira de avaliar o rigor da cena que, nesse momento, entreviu na sua mente, mas nunca tinha visto na realidade. Passara a noite a segurar um pano húmido sobre a testa do filho, resvalando de vez em quando para um sono que era mais como um desmaio, em que vira uma árvore a tremeluzir sob a chuva, qual espírito de uma pessoa morta. Tudo enegrecido, a chuva, os bosques, o uniforme do enfermeiro, e
também encharcado. O cabelo molhado. A encosta da montanha escura. Yeonghye, uma massa imperfeita feita de escuridão e água, elevando-se como um fantasma. Por fim, amanheceu e, quando ela pôs a palma da mão na testa do filho, ficou aliviada pela frescura que sentiu. Levantou-se, saiu do quarto e ficou a olhar fixamente, com uma expressão vazia, para a luz azulada que entrava pela varanda da sala de estar. Aninhou-se no sofá e tentou dormir. Tinha de descansar um pouco antes de Ji-woo acordar, nem que fosse só uma hora. Olha, irmã, estou a fazer o pino; estão a crescer-me folhas no corpo e a
rebentar-me raízes nas mãos… e penetram na terra. Sem fim, sem fim… sim, afastei as pernas porque queria que emergissem flores da minha púbis; afastei-as muito… A voz de Yeong-hye, que chegou até ela enquanto estava suspensa nesse estado intermédio entre o sono e a vigília, era baixa e meiga a princípio, depois tornou-se inocente como a de uma menina e, por fim, as suas palavras já estavam deturpadas e inaudíveis, fazendo lembrar o som estranho de um animal. Abriu os olhos, assustada e sobressaltada por um ódio que jamais sentira, e voltou a adormecer. Desta vez, estava à frente do espelho da casa de
banho. Na imagem refletida, havia gotas de sangue escorrendo-lhe do olho esquerdo. Ergueu rapidamente a mão para se limpar, mas a imagem no espelho manteve-se absolutamente inalterada, com o sangue a cair-lhe do olho arregalado. Levantou-se de um salto ao ouvir Jiwoo tossir e foi ao quarto. Yeong-hye tinha estado ali sentada havia muito tempo, acocorada a um canto, mas afastou essa imagem da mente e agarrou a mão pequenina do filho, levantando-a como se estivesse a brincar com ele. – Já está tudo bem – murmurou, sem ter a certeza de quem procurava reconfortar com essas palavras: o filho
ou ela própria. O autocarro encosta antes da subida. Ela desce e abre o guarda-chuva. É o único passageiro que sai ali. Sem mais delongas, o veículo que a transportou retoma a viagem. É ali que a estrada estreita se divide em duas. Uma sobe pela encosta. Atravessa-se um túnel com uns cinquenta metros de comprimento e, quando se sai do outro lado, já se vê o pequeno hospital, rodeado de montanhas por todos os lados. A chuva continua a cair, mas agora com uma cacofonia cadenciada, ligeiramente menos violenta. Ela curva-se. Ao dobrar as bainhas das calças para cima para não
ficarem molhadas, repara nos ramos de avoadinha que irrompem aqui e ali do asfalto. Ajeita o saco pesado para aliviar os ombros, ajusta a posição do guarda-chuva e começa a andar em direção ao hospital. Atualmente vai lá todas as quartasfeiras ver como está a irmã mas, antes daquele dia de chuva em que Yeong-hye desapareceu, uma vez por mês tinha-lhe parecido suficiente. Percorrera aquela estrada, levando todo o tipo de alimentos possíveis e imaginários – fruta, bolos de arroz, tofu frito recheado com arroz avinagrado. Era um caminho ermo, sem sinal de veículos nem peões. Ao espalhar a comida sobre a mesa na
sala de visitas, Yeong-hye cumpria em silêncio o ritual de mastigar e engolir, como uma criança fazendo diligentemente os trabalhos de casa. Quando prendia o cabelo de Yeong-hye atrás das orelhas, a irmã olhava para ela e sorria tranquilamente. Eram esses os momentos em que poderia estar tudo bem, os momentos que lhe animavam o coração. Seria possível Yeong-hye viver assim indefinidamente? Naquele lugar onde, se não quisesse, não tinha de falar, onde, se isso a repugnasse, não tinha de comer carne? Seria possível as coisas correrem bem entre ambas apenas com aquelas visitas ocasionais? Yeong-hye era quatro anos mais
nova do que ela, um intervalo suficiente para não terem tido de competir uma com a outra enquanto cresciam. Quando eram pequenas, as bochechas de ambas ficavam muitas vezes a latejar pela mão pesada do pai, e Yeong-hye tinha provocado em In-hye um sentido de responsabilidade muito parecido com amor materno, uma necessidade de empregar toda a sua energia a cuidar da irmã mais nova. Assistira, maravilhada, ao crescimento dessa irmã, outrora toda suja de terra e com um eczema recorrente na parte de trás dos joelhos, até ao momento em que se casara. A única coisa que a angustiava era que, à medida que os anos passavam, Yeong-
hye ia ficando cada vez mais taciturna. Claro que sempre tivera esse traço de personalidade, mas também se mostrava alegre e sociável quando havia razões para isso. De certa forma – não subitamente, mas ao longo de um determinado período – tinha-se tornado difícil percebê-la. Tão difícil que havia momentos em que parecia uma pessoa completamente desconhecida. Um ou dois dias depois de Ji-woo ter nascido, quando Yeong-hye foi ao hospital conhecer o seu primeiro sobrinho, em vez de ter dado os parabéns à mãe, limitara-se a murmurar para si própria: «Nunca vi uma criança tão pequenina… então é assim que eles
são quando acabam de nascer?» Tinha havido algo de vagamente perturbador no sorriso calmo que bailara nos lábios de Yeong-hye. O que parecia estar a acontecer era que Yeonghye estava a afastar-se de si própria, na verdade a distanciar-se tanto de si como da irmã. Um rosto meio perdido por detrás de uma máscara de compostura. Claro que nada disto se assemelhava, nem de perto nem de longe, à melancolia que por vezes se abatia sobre o seu marido; mas apesar disso, e em certos aspetos, ambos eram igualmente incompreensíveis para ela. E estavam os dois a afundar-se cada vez mais no silêncio.
Entra no túnel. Lá dentro está mais escuro do que o habitual, por causa do tempo. Fecha o guarda-chuva e continua a andar. Ouve o eco vibrante dos seus passos. Uma traça grande, sarapintada, de uma espécie que nunca viu, esvoaça da superfície da parede para uma escuridão saturada de humidade. Ela para por instantes e olha para as asas a baterem. Mas, ao chegar ao negrume do teto do túnel, a traça estaca, como se soubesse que está a ser observada. O seu marido gostava de filmar coisas que voavam. Pássaros, borboletas, aviões, traças, moscas. Aquelas cenas de voo, que introduzia constantemente nas suas obras, apesar
da aparente falta de ligação com o tema genérico, sempre a tinham deixado confusa. Era assumidamente leiga em matéria de arte. Uma vez, perguntara ao marido por que razão incluíra determinada cena, um clip de dois segundos da sombra negra de uma ave a levantar voo lentamente, a seguir a um plano de uma ponte destruída e de pessoas a chorarem num funeral. – Porque sim – fora a resposta dele. – Pu-la aí e acho que ficou bastante bem. E, a seguir, o silêncio habitual. Teria ela alguma vez compreendido o verdadeiro carácter do marido, envolto como estava naquele silêncio aparentemente impenetrável? A certa
altura, pensara que se lhe revelaria através da sua obra; na sua videoarte. Aliás, antes de o conhecer, nem sequer sabia que esse tipo de arte existia. Mas, apesar dos esforços que empreendera, as obras dele eram incompreensíveis para ela. Não revelavam nada. Lembra-se do final de tarde em que se conheceram. Ele tinha entrado na loja dela, magro como uma haste de sorgo e com a cara coberta por uma barba de vários dias, e trazendo o estojo da câmara de vídeo a tiracolo, visivelmente pesado. Procurou uma loção de barbear, levou-a para o balcão e apoiou os dois braços no vidro, parecendo completamente esgotado. Dava a ideia
de que podia desmaiar a qualquer momento e arrastar consigo o balcão. Foi quase milagrosa a forma como ela, que até ao momento não tinha tido praticamente nenhuma experiência romântica, lhe perguntou com toda a amabilidade «Almoçou?». Como se tivesse sido apanhado de surpresa, mas não possuísse a energia necessária para o expressar, ele limitara-se a fixar o rosto dela com um olhar exausto. Tinha havido qualquer coisa naquele ar indefeso dele que a atraíra. Desde essa tarde, tudo o que desejara fora usar a sua própria energia para lhe permitir que descansasse. Mas, apesar de se ter dedicado de alma e
coração a esse objetivo, mesmo depois de se terem casado, ele parecia constantemente exausto. Estava sempre entretido com as suas coisas e, durante o pouco tempo que passava em casa, parecia mais um viajante a instalar-se para passar uma noite do que um homem na sua própria morada. O silêncio dele tinha a consistência pesada da rocha e a resistência tenaz da borracha, sobretudo quando alguma obra de arte não lhe corria bem. Não demorou muito a descobrir uma coisa: talvez a pessoa que ela se empenhara tanto em ajudar não fosse ele, mas ela. Não teria sido a sua própria imagem – ela que saíra de casa
aos dezanove anos para ir construir uma vida em Seul pelo próprio pulso – que vira espelhada na exaustão daquele homem? Tal como nunca tivera a certeza de qual a origem do seu afecto por ele, nem se ele era realmente o objeto desse afeto, também nunca tivera a certeza dos sentimentos dele por ela. Muitas vezes, dava a ideia de que o marido contava absolutamente com ela, de que era o tipo de pessoa para quem a vida diária era uma luta constante, cheia de possíveis ciladas. Era honesto ao ponto de parecer ingénuo; completamente incapaz de exageros ou adulação. E, com ela, era sempre simpático, nunca lhe levantava a
voz e, para dizer a verdade, às vezes olhava-a com uma expressão de grande respeito. – Não te mereço – costumava dizer, antes de se casarem. – A tua bondade, a tua estabilidade, essa calma que tens sempre… a maneira como tratas das coisas, fazendo parecer tudo tão fácil… Respeito – era isso que achara que as palavras dele significavam, mas não deveria antes entendê-las como uma confissão de que fosse o que fosse que ele sentisse por ela, não era, nem remotamente, algo parecido com amor? Talvez as únicas coisas que ele amava verdadeiramente fossem as suas imagens; as que filmava ou, talvez, as
que ainda viria a filmar um dia. A primeira vez que foi a uma exposição dele, já depois de casados, ficou desconcertada; não conseguia acreditar que aquele homem, que parecia sempre prestes a esvair-se, tivesse carregado com a câmara por aqueles sítios impossíveis, com as dificuldades que certamente tudo aquilo teria envolvido. Era-lhe particularmente difícil imaginar como teria o marido conseguido negociar de forma que o tivessem autorizado a filmar em lugares tão sensíveis, a coragem e até mesmo o atrevimento que, por vezes, teria sido obrigado a demonstrar, a perseverança e a paciência que pareciam tão contrárias
ao que ela conhecia dele. Enfim, tudo se resumia à sua incapacidade para acreditar que ele estivesse suficientemente entusiasmado com o projeto para passar por tudo isso. Havia um momento que ficara gravado na sua memória. Fora pouco depois do primeiro aniversário de Jiwoo, que acabara de aprender a andar. O marido tinha andado com a câmara a filmar o filho a dar os primeiros passos na sala de estar cheia de sol. E filmara o momento em que, de repente, ela agarrara Ji-woo entre os seus braços e lhe dera um beijo na cabeça. – Sempre que o Ji-woo der um passo – sugeriu, com os olhos transbordantes
de vida mas, ainda assim, inescrutáveis –, o que é que achas de eu fazer uma animação com flores a saltarem-lhe dos pés, como naquele filme do Hayao Miyazaki? Não, flores não, era melhor borboletas. Ah, nesse caso devíamos filmar outra vez, mas num relvado. Mostrou-lhe como funcionava a câmara, reviu as cenas que tinha acabado de filmar, ao mesmo tempo que continuava a falar apressadamente e com grande excitação das suas ideias para o filme. – Tu e ele vão ter de se vestir de branco. Não, espera, e se as vossas roupas fossem velhas, gastas e esfarrapadas? Sim, sim, é isso, claro.
Uma mãe pobre a passear com o filho, as borboletas multicolores que se erguem como que por milagre sempre que o bebé dá um passo vacilante… Mas não tinham um relvado e, além disso, Ji-woo ultrapassou rapidamente a fase do andar hesitante. O vídeo das borboletas a voarem sob os pés do menino nunca se tornou realidade. A partir de certa altura, ele começou a trabalhar mais do que nunca. Fechavase no estúdio, sem sequer vir passar o serão ou os fins de semana a casa mas, aparentemente, sem nunca ter um trabalho para mostrar. Às vezes, quando ela acordava ainda de madrugada e ia à casa de banho, apanhava um susto ao
encontrá-lo lá, ainda vestido, aninhado na banheira vazia, a dormir profundamente. Depois de o marido os ter deixado, Ji-woo perguntava muitas vezes, «Há algum papá na nossa família?». Era na verdade a pergunta que ele fazia todas as manhãs, quando o marido ainda estava em casa, tão raras eram as vezes em que via o pai. – Não – respondia-lhe apenas. Depois, acrescentava mentalmente: «Não há ninguém. Somos só tu e eu. Temos de nos contentar com isso.» A chuva dá ao hospital um ar lúgubre e abandonado. As paredes de betão cinzento parecem ainda mais
escuras e sólidas do que o habitual. As enfermarias do primeiro e do terceiro andares têm barras de ferro nas janelas. Muitos dos doentes gostam de enfiar a cara por entre essas barras; nos dias de sol, era até difícil distingui-los, mas com o tempo assim é possível vislumbrar vários rostos acinzentados observando fixamente a chuva. Ela olha de relance para cima, para as janelas do anexo do terceiro andar onde Yeong-hye se encontra, e depois entra e dirige-se à receção. – Tenho uma marcação com o doutor Park In-ho. A rececionista cumprimenta-a, reconhecendo-a de visitas anteriores.
Ela fecha o guarda-chuva ainda a pingar e prende-lhe a presilha em volta, sentando-se a seguir num comprido banco de madeira. Enquanto espera que o médico a receba, volta-se para olhar o ulmeiro que se ergue no jardim à frente do hospital. Percebe-se que é uma árvore muito antiga, certamente com uns quatrocentos anos. Nos dias soalheiros, costuma abrir os inúmeros ramos e deixar a luz solar incidir-lhe nas folhas, aparentemente a tentar comunicar-lhe qualquer coisa. Hoje, neste dia húmido e embotado pela chuva, parece reticente e não revela o que está a pensar. A casca velha do seu tronco está escura como a tarde, e as folhas estremecem
silenciosamente nos ramos ao serem fustigadas pelas gotas. E, então, ela vê o rosto da irmã, a tremeluzir como um espetro, fantasmagórico, sobreposto àquela cena silenciosa. Fecha os olhos raiados de sangue durante muito tempo até os voltar a abrir. O seu campo de visão é totalmente preenchido pela árvore, que permanece silenciosa, aconselhando-a a imitar esse estado. Mesmo assim, não consegue dormir. Faz agora três meses, três meses em que dormita aqui e ali, nunca mais de uma hora de cada vez. A voz de Yeonghye, a floresta escurecida pela chuva que cai, e o seu próprio rosto com sangue a escorrer-lhe do olho, quebram
as longas noites em fragmentos iguais a cacos. Normalmente, desiste de tentar dormir por volta das três da manhã. Lava a cara, escova os dentes, prepara alguma comida, limpa e arruma a casa toda e, mesmo assim, o relógio avança com a mesma lentidão de sempre, os ponteiros a deslocarem-se em movimentos quase cómicos de tão indecisos, numa dança entediante. Por fim, vai para o quarto dele e ouve alguns dos discos que ele por lá deixou, ou põe uma mão nas costas e rodopia pelo quarto como ele lhe fez certa vez, ou então aninha-se na banheira, vestida, e até consegue achar que afinal talvez a
atitude dele não fosse assim tão incompreensível. Se calhar, só não tinha energia para se despir – tão simples como isso. Só não tinha energia para ajustar a temperatura da água e tomar duche. Ficou surpreendida ao constatar que, por muito estranho que pudesse parecer, aquele espaço estreito e côncavo era o sítio mais acolhedor que havia no seu apartamento de cento e poucos metros quadrados. «Quando é que isto começou?», perguntava, por vezes, a si própria nesses momentos. «Não: quando é que tudo começou a desmoronar-se?» O comportamento cada vez mais estranho de Yeong-hye começara a
notar-se mais ou menos três anos antes, quando, de repente, decidira tornar-se vegetariana. Perdera tanto peso que era chocante olhar para ela, e deixara praticamente de dormir. É verdade que sempre fora calada mas, nessa altura, as suas palavras eram tão escassas que se tornava impossível qualquer tipo de comunicação com um mínimo de sentido. Toda a família ficara extremamente preocupada, mas, em especial, os pais. Isso acontecera pouco depois de In-hye e o marido se terem mudado com Ji-woo para um novo apartamento. No almoço que deram para inaugurar a casa, quando toda a família se juntara, o pai dera uma bofetada a
Yeong-hye e abrira-lhe a boca à força, metendo lá dentro um bocado de carne. O corpo de In-hye tremera violentamente, como se lhe tivessem batido a ela. Levantara-se e assistira à cena, hirta como um cabo de vassoura, enquanto Yeong-hye uivava como um animal, cuspia a carne e, a seguir, pegara na faca e cortara o pulso. Não haveria nada que ela pudesse ter feito para impedir tudo aquilo? As dúvidas não paravam de lhe assolar o espírito. Não podia afinal ter feito nada, mesmo nada, para agarrar a mão do pai naquele dia? Ou para tirar a faca da mão de Yeong-hye, antes de ela ter tido tempo de se ferir? Não devia ter
impedido que fosse o marido a pegar em Yeong-hye coberta de sangue e a levá-la para o hospital? E depois, quando Yeong-hye fora internada no hospital psiquiátrico, de certeza que podia ter dissuadido o cunhado, o senhor Cheong, de a rejeitar com tanta frieza, não? E, acima de tudo, aquela coisa terrível que o seu marido fizera a Yeong-hye, aquela coisa que queria afastar o mais possível da memória – não podia ter arranjado uma maneira de o fazer mudar de ideias, antes de tudo aquilo se transformar num escândalo barato e espalhafatoso? As vidas de todas as pessoas à sua volta haviam desabado, como baralhos de cartas – não havia mesmo nada que ela
pudesse ter feito? Claro que era impossível ter adivinhado as ideias que a sua referência àquela pequena mancha mongólica azul iriam despertar na mente do marido. Mas teria sido mesmo impossível ela ter, pelo menos, intuído o caminho que as coisas estavam a levar? O comportamento dele nos últimos tempos não lhe dera pistas suficientes? Não podia ter arranjado forma de lhe explicar que Yeong-hye ainda estava a tomar medicação, ainda estava doente? A única coisa que era absolutamente clara para ela era que aquilo que o marido fizera era imperdoável. Só muito depois do meio-dia é que
tinham acordado, primeiro o marido e depois Yeong-hye; e, logo a seguir, três paramédicos irromperam pelo apartamento, trazendo coletes de forças escondidos e equipamento de proteção. Dois deles precipitaram-se de imediato para Yeong-hye, que estava perigosamente debruçada na varanda. Ela resistira com violência, enquanto tentavam enfiar-lhe sobre o corpo nu e manchado de tinta o colete de forças, mordendo-os selvaticamente nos braços e soltando um rugido incompreensível. Apesar dos movimentos dela, haviam conseguido espetar-lhe uma agulha intravenosa no antebraço. Enquanto tudo isto acontecia, o marido tinha tentado
passar despercebido perante o outro paramédico, que permanecia junto à porta da rua, mas o homem apanhara-o com facilidade. Usando todas as suas forças para se libertar, ele virara-se com brusquidão e, sem parar nem por um momento, correra para a varanda. Tentara atirar-se por cima do gradeamento, e o paramédico, com movimentos rápidos, agarrara-o mesmo a tempo pela cintura; a partir daí, não se debatera mais. Ela ficara parada, a tremer dos pés à cabeça, a ver tudo isto acontecer. Por fim, quando o marido estava a ser levado e os seus olhos se cruzaram, fitou-o com a expressão mais dura que
conseguiu. Mas o que viu nos olhos dele não foi lascívia nem insanidade, nem sequer arrependimento ou ressentimento. Não havia nada neles para além de um terror igual ao que ela própria estava a sentir. E foi assim que tudo acabou. Naquela tarde que marcou o momento em que as suas vidas nunca mais poderiam voltar a ser o que tinham sido. O marido ficara preso depois de o hospital ter confirmado que não sofria de qualquer doença mental. Foram precisos vários meses de cansativos processos judiciais e inquéritos oficiais até ser libertado. Depois disso, refugiou-se imediatamente num
esconderijo qualquer, e ela nunca mais tornou a vê-lo. Mas o estado de Yeonghye era de tal modo grave que teve de ficar internada numa ala fechada. Após o seu acesso de loucura inicial, regressara a um estado em que conseguia falar com as outras pessoas, mas depressa se remeteu ao mais absoluto silêncio. E não era apenas o facto de não conversar que se revelava perturbador. Durante o tempo em que estivera na ala isolada, costumava agachar-se num sítio com sol onde ninguém a incomodasse e ficar a murmurar incessantemente consigo própria. Tal como antes, recusava-se a comer carne, e, se acontecesse olhar para um prato qualquer que a incluísse,
desatava a gritar e a tentar fugir. Nos dias de sol, encostava-se à janela, desabotoava a bata do hospital e expunha os seios ao calor e à luz. Os pais, que pareciam ter envelhecido muito com toda esta saga lamentável, não fizeram qualquer esforço para a visitar e cortaram até relações com a filha mais velha, In-hye, que lhes relembrara a forma vergonhosa como tinham tratado a irmã. Yeong-ho, o irmão mais novo, e a mulher não eram muito diferentes dos pais. Mas ela, In-hye, não tivera coragem para abandonar a irmã. Alguém tinha de pagar a conta do hospital, alguém tinha de se apresentar como a pessoa que era responsável por
Yeong-hye. E conseguira dar a volta por cima, como sempre fizera. Apesar do escândalo que pairava sobre si e que se recusava teimosamente a desaparecer, nunca deixou de se esforçar por que a loja continuasse aberta. O tempo parecia uma onda, quase cruel na sua inexorabilidade, a arrastar-lhe a vida para o fundo, uma vida que ela se esforçava continuamente por não deixar desabar. Ji-woo, que nesse outono insano tinha cinco anos, tinha agora seis, e Yeong-hye, que fora transferida para um hospital com um bom ambiente e preços razoáveis, parecia ter melhorado muito.
Já em criança, In-hye tinha aquela força de carácter inata para traçar o próprio rumo. Quer como filha, irmã mais velha, mulher e mãe, dona de uma loja ou até como passageira do metro na mais breve das viagens, sempre dera o seu melhor. Por entre a absoluta inércia de uma vida vivida desta maneira, poderia ter conseguido conquistar tudo, até o tempo. Se ao menos Yeong-hye não tivesse desaparecido subitamente em março passado. Se não tivesse sido descoberta na floresta naquela noite de chuva. Se todos os seus sintomas não tivessem piorado repentinamente. Precedido pelo som de passos rápidos e determinados, um jovem
médico de bata branca aparece na outra ponta do corredor. Faz uma ligeiríssima vénia quando In-hye se levanta para o cumprimentar e aponta para o consultório com um movimento amplo do braço. Ela entra atrás dele. O médico, que aparenta menos de quarenta anos, tem um ar saudável e robusto. A configuração do queixo e a sua maneira de andar transmitem uma certa autoconfiança. Senta-se à secretária e olha-a, de testa franzida. A sensação de que a conversa não vai ser positiva fá-la sentir um peso no coração. – A minha irmã… – Fizemos tudo o que pudemos, mas o estado dela não melhorou.
– Nesse caso, hoje… – Cora, como se tivesse cometido um deslize. O médico não espera que ela continue. – Hoje vamos tentar alimentá-la por via intravenosa e, se tivermos sorte, o estado dela talvez melhore um pouco. Caso contrário, não haverá nada a fazer a não ser transferi-la para uma unidade de cuidados intensivos no hospital geral. – Mas, antes disso, talvez fosse boa ideia eu tentar falar com ela para a chamar à razão, não acha? – pergunta ao médico. Os olhos dele mostram que não tem grande esperança nas tentativas de Inhye de convencer a irmã. Parece
esgotado com o esforço de tentar esconder a raiva que sente em relação àqueles doentes que não conseguem corresponder às suas expectativas. Olha de relance para o relógio. – Vou dar-lhe meia hora. Se conseguir alguma coisa, comunique-o por favor na sala de enfermagem. Caso contrário, recebê-la-ei às duas. Ela estava à espera de que ele se levantasse imediatamente e saísse do consultório mas, em vez disso, ele decide prolongar a conversa por mais algum tempo, talvez por ter consciência de que foi um pouco brusco. – Sei que já lhe disse isto da última vez, mas quinze a vinte por cento dos
doentes com anorexia nervosa acabam por morrer. Mesmo quando já são só pele e osso, continuam convencidos de que estão a engordar. Podem estar em jogo inúmeros fatores psicológicos; por exemplo, uma luta pelo poder com uma mãe dominadora… mas a Kim Yeonghye é um daqueles casos especiais em que o doente se recusa a comer e sofre de esquizofrenia. Estávamos confiantes de que a esquizofrenia dela não fosse grave; honestamente, não tínhamos forma alguma de prever que a situação evoluiria desta forma. Há casos em que os doentes têm a paranóia de que vão ser envenenados, mas geralmente é possível apelar ao seu bom senso; ou,
então, o médico pode comer a mesma comida à frente deles para que vejam que está tudo bem. Mas ainda não sabemos exatamente por que razão a Yeong-hye se recusa a comer, e nenhum dos medicamentos que lhe demos parece ter tido qualquer efeito. Não foi uma decisão fácil, mas é a única hipótese. O nosso dever como médicos é manter os doentes vivos… e, francamente, aqui não podemos garantir que ela sobreviva. – Faz menção de se levantar, mas depois hesita. – A sua pele não parece nada saudável. Tem dormido bem? – A pergunta dele parece resultar apenas de um hábito profissional, e não lhe ocorre nenhuma resposta rápida. – Sabe que os
cuidadores também têm de zelar pela sua saúde, não sabe? Trocam uma vénia e, depois, o médico abre a porta e afasta-se a passos largos. Quando ela sai do consultório, a silhueta dele já está a desaparecer ao fundo do corredor. Ao regressar ao banco comprido em frente da receção, vê entrar pela porta da frente uma mulher de meia-idade, vestida com cores garridas, de braço dado com um homem que parece sensivelmente da mesma idade. Virão visitar um doente? No instante seguinte, começa a sair da boca da mulher uma corrente ininterrupta de injúrias. Aparentemente acostumado aos insultos
dela, o homem tira o cartão do seguro de saúde da carteira e mete-o sob o vidro da receção, sem lhe prestar a mínima atenção. – Seus merdas! Nem quando me tiverem sugado toda vão sossegar! Vou mas é emigrar. Não aguento nem mais um dia com gente merdosa como vocês. Se o processo de admissão for concluído a tempo, muito provavelmente a mulher irá passar a noite num quarto com segurança. Mais provável ainda é que lhe prendam os braços e as pernas e lhe administrem um sedativo. In-hye olha fixamente para as flores garridas do chapéu da mulher que está aos gritos. De repente, apercebe-se de como se tornou
indiferente em relação aos doentes mentais. Depois de tantas visitas ao hospital, às vezes, são as ruas tranquilas cheias de pessoas ditas «normais» que acabam por lhe parecer estranhas. Lembra-se do dia em que levou Yeong-hye para ali. Uma tarde de sol no princípio do inverno. A ala privada do hospital geral de Seul ficava bastante perto de sua casa, mas ela não conseguia fazer face às despesas de internamento e, por isso, andou a informar-se até se decidir por este hospital onde, aparentemente, os resultados eram bastante bons. Quando se encontrara com o médico do outro hospital, que queria dar alta a Yeong-hye, fora
aconselhada a ponderar a hipótese de um tratamento em ambulatório. – Até agora, temos observado alguns progressos bastante satisfatórios. Provavelmente, ainda não estará capaz de voltar a ter vida social, mas o apoio da família é uma grande ajuda. – Foi exatamente isso que me disseram da última vez – contrapôs ao médico. – Acreditei, e a Yeong-hye teve alta. Mas agora parece-me que foi um erro tê-lo feito. Apesar do motivo óbvio para não querer que Yeong-hye tivesse alta, a justificação que apresentou ao médico foi a sua preocupação com uma possível recaída, agora que já conseguia admitir
para si própria o que realmente acontecera. Não conseguia lidar com tudo aquilo que a presença da irmã lhe recordava. Nem conseguia perdoar-lhe o facto de ter conseguido atravessar sozinha uma barreira que ela própria nunca conseguira transpor, tal como não conseguia perdoar-lhe aquela magnífica irresponsabilidade que permitira a Yeong-hye libertar-se de todos os constrangimentos sociais e deixá-la para trás, presa como sempre. E, antes de a irmã ter quebrado essas barreiras, ela nem sequer sabia que elas existiam. Felizmente, Yeong-hye concordava com o internamento. Parecera calma, vestida com as suas roupas normais,
enquanto dizia ao médico com toda a clareza que se sentia bem ali no hospital. A expressão dos seus olhos era límpida e a posição da boca firme. Era quase impossível distingui-la das pessoas normais, tirando o facto óbvio de naquela altura estar preocupantemente magra. Durante a viagem de táxi, olhara a paisagem pela janela, sem o menor vestígio de malestar, e, quando o táxi se foi embora, seguiu obediente a irmã, como se tivessem ido apenas dar um passeio. Estava com um ar tão calmo e controlado que a rececionista fora obrigada a perguntar qual das duas era a doente.
Enquanto esperavam que tratassem do processo de Yeong-hye, In-hye dissera à irmã: – O ar daqui é bom, vai abrir-te o apetite. Vais conseguir comer um bocadinho mais e ganhar algum peso. Yeong-hye, que nessa altura tinha recomeçado a falar havia pouco tempo, olhara para o ulmeiro do outro lado da janela e dissera: – Pois… aqui há árvores grandes. A rececionista chamou um enfermeiro de meia-idade com um aspeto forte, que revistou a mala que ela levara para o hospital. Roupa interior e de vestir, chinelos, artigos de toilete. Desdobrou com cuidado as peças de roupa, inspecionando-as uma a uma,
aparentemente para confirmar que não tinham cordões ou alfinetes. Tirou o cinto grosso e comprido do casaco de malha que In-hye pusera na mala e pediu a ambas que o acompanhassem. Abriu a porta da enfermaria de seis camas e mandou-as entrar. Yeong-hye manteve-se perfeitamente calma, enquanto a irmã ia cumprimentando os enfermeiros. Por fim, In-hye pousou a mala e foi até à janela, coberta por grades verticais de ferro com ar de serem resistentes. Nessa altura, ficou perturbada ao sentir-se atingida por um sentimento de culpa que, até então, conseguira evitar. De repente, sentia um nó a apertar-lhe o peito. Yeong-hye
aproximou-se em silêncio e parou ao lado dela. – Olha, daqui também se conseguem ver as árvores. Não vais fraquejar, disse In-hye a si própria, com os lábios ligeiramente apertados. Mais tarde ou mais cedo, ela vai ser um fardo que não conseguirás suportar. Ninguém te leva a mal. Já foste suficientemente forte para aguentar até agora. Não olhou para Yeong-hye enquanto ela estava ao seu lado. Em vez disso, observou os raios daquele sol intenso do princípio do inverno incidindo sobre os cedros que ainda não tinham perdido as folhas.
– Irmã – disse Yeong-hye, numa voz baixa e calma, como se quisesse reconfortá-la. Da sua velha camisola preta exalava um cheiro vago a naftalina. Vendo que In-hye não respondia, sussurrou mais uma vez: – Irmã… todas as árvores do mundo são como irmãos e irmãs. Passa o segundo anexo e para à frente da porta do primeiro. Vê os doentes encostados ao vidro, a espreitarem para o exterior. Provavelmente, sentem uma certa claustrofobia por a chuva os ter obrigado a ficar lá dentro nos últimos dias. Quando In-hye toca à campainha, um enfermeiro de trinta e tal anos sai da
sala junto ao átrio do rés do chão com uma chave na mão. Fecha rapidamente a porta atrás de si, mete depois a chave na fechadura e tranca-a. In-hye repara numa jovem doente que olha fixamente para ela, com a face encostada ao lado de dentro do vidro da porta. Os seus olhos vazios perscrutam-na como se quisessem abrirlhe um buraco através da pele; ser-lhe-ia impossível olhar assim para um estranho, se a sua mente estivesse sã. – Como é que está a minha irmã? – pergunta, enquanto sobem a escada para o terceiro andar. O enfermeiro olha por cima do ombro e abana a cabeça. – Deixou de falar. E tem tentado
arrancar a agulha intravenosa e, por isso, fomos obrigados a pô-la num quarto com segurança e a dar-lhe um sedativo para conseguirmos repor a agulha. Como é que ela tem força para nos empurrar…? – Quer dizer que neste momento ela está num quarto com segurança? – Não. Acordou há pouco e, por isso, levámo-la outra vez para a enfermaria. Informaram-na de que vão pôr-lhe uma sonda nasal, correto? Ela segue o enfermeiro até ao átrio do terceiro andar. Nos dias bons, há doentes idosos sentados no banco comprido junto à janela a aproveitarem o sol e outros a jogarem pingue-pongue,
por entre os ecos de músicas alegres que vêm da sala dos enfermeiros. Mas hoje toda essa animação parece ter sido sugada pela chuva que não para. Talvez seja por a maioria dos pacientes se encontrar nas enfermarias que não há praticamente qualquer atividade no átrio. As raquetas de pingue-pongue estão pousadas sobre a mesa, inertes. In-hye olha pelo corredor da enfermaria, ao fundo do qual, nos dias de sol, a luz entra pela janela grande com mais intensidade do que por qualquer outro lugar. Quando veio visitar Yeong-hye em março passado, alguns dias depois de ela ter desaparecido no bosque fustigado pela
chuva, a irmã recusou-se a vir à sala de visitas. In-hye havia ligado da receção para o enfermeiro-chefe, e este disseralhe que, por estranho que parecesse, Yeong-hye não queria sair da enfermaria há vários dias. Mesmo durante a hora do passeio não acompanhado, pela qual todos os doentes ansiavam, ela permanecia na enfermaria. In-hye perguntou-lhe então se podia ao menos ver só a cara da irmã, já que tinha vindo de tão longe, e o enfermeiro desceu até à receção para a acompanhar. Quando inesperadamente viu uma doente a fazer o pino ao fundo do corredor, nunca lhe passou pela cabeça que pudesse ser Yeong-hye. Foi só no
momento em que o enfermeiro com quem acabara de falar ao telefone a encaminhou nessa direção que conseguiu reconhecer o cabelo espesso e comprido da irmã. Yeong-hye estava de pernas para o ar, a equilibrar-se sobre as mãos, com a cara tão vermelha que parecia estar a arder. – Já está nisto há meia hora – disse o enfermeiro, num tom que parecia de impaciência. – Começou há dois dias. Não é só o facto de não se aperceber do sítio onde está ou de não falar… ela é diferente dos outros doentes crónicos. Até ontem, tínhamos de a meter à força na enfermaria. Mas, por mais que a forçássemos, mal entrava na enfermaria,
começava outra vez com os pinos, por isso… nem sequer conseguíamos obrigá-la a parar. – Antes de voltar para a sala de enfermagem, ainda lhe disse: – Se lhe tocar, ela cai. Se não conseguir que ela fale consigo, pode tentar tocarlhe a ver se reage. De qualquer forma, nós seríamos obrigados a empurrá-la para a levarmos para a enfermaria. Quando ficou sozinha com a irmã, In-hye pôs-se de cócoras e tentou olhála nos olhos. Qualquer pessoa fica com o rosto diferente quando está de pernas para o ar. E o de Yeong-hye estava bastante estranho, com a pouca carne que tinha nas maçãs do rosto descaída sobre os olhos, que continuavam com o
mesmo brilho e intensidade fixos no espaço. Aparentemente, não tinha dado pela sua presença. – Yeong-hye. – Nada. – Yeong-hye. Que estás a fazer? Levanta-te. – Estendeu a mão, pousando-a sobre a face afogueada da irmã. – Levanta-te, Yeong-hye. Não te dói a cabeça? Por amor de Deus, tens a cara a rebentar. – Sem mais recursos, deu-lhe um pequeno empurrão. Tal como o enfermeiro dissera, Yeong-hye caiu de imediato para o chão, e In-hye levantou-lhe rapidamente a cabeça, apoiando-lhe o pescoço, como se fosse um bebé. – Irmã. – O rosto de Yeong-hye estava todo ele a sorrir, e os olhos a
brilharem, como se tivesse acabado de acordar de um sonho feliz. – Quando é que chegaste? O enfermeiro, que tinha estado a observá-las, aproximou-se e levou-as para a sala de reuniões adjacente ao átrio. Explicou-lhes que era ali que os familiares podiam estar com aqueles doentes cujo estado era de tal modo grave que não conseguiam descer até à sala de visitas na receção. In-hye percebeu que também devia ser ali que o médico dava as consultas. Quando In-hye pôs sobre a mesa a comida que tinha trazido, Yeong-hye disse: – Irmã, já não precisas de trazer essas coisas. – Sorriu. – Deixei de
precisar de comer. – O que é que estás para aí a dizer? – In-hye olhou para a irmã, como se ela estivesse possuída. Havia muito que não via o rosto de Yeong-hye a brilhar daquela maneira; não, na verdade, era a primeira vez que o via assim. – O que estavas a fazer ainda agora? – perguntou-lhe. Yeong-hye respondeu com outra pergunta: – Sabias, irmã? – Sabia o quê? – É que eu não sabia. Sempre pensei que as árvores estavam direitas… Acabei de descobrir que, afinal, todas as árvores estão com os dois braços na terra. Olha, olha para ali, não estás
admirada? – Yeong-hye ergueu-se de um salto e apontou para a janela. – Estão todas apoiadas na cabeça. – Depois, riuse desvairadamente. In-hye lembrou-se de momentos da infância em que o rosto de Yeong-hye tinha exatamente a mesma expressão de agora. Instantes em que os olhos da irmã se estreitavam e ficam completamente escuros e em que aquele riso inocente jorrava da sua boca. – Sabes como é que eu descobri? Foi num sonho. Eu estava de cabeça para baixo e… começaram a crescer-me folhas do corpo e raízes brotaram-me das mãos… e, então, enterrei-me na terra. Cada vez mais fundo, mais fundo… queria que me nascessem flores da púbis e, por isso,
abri as pernas; abri-as muito… – Atónita, In-hye observou o olhar febril de Yeong-hye. – Preciso de regar o meu corpo. Não é desta comida que preciso, irmã, mas de água. – Obrigada pelo vosso esforço e lamento o incómodo – diz In-hye ao enfermeiro-chefe. – Estou-vos muito grata, sinceramente. – Estende-lhe os bolos de arroz que trouxe e cumprimenta os outros enfermeiros, um a um. Enquanto está a fazer as perguntas habituais sobre o estado de Yeong-hye, uma doente de cinquenta e tal anos que julgou que ela era uma enfermeira afasta-se apressadamente da janela e faz-lhe uma pequena vénia.
– Dói-me o coração. Por favor diga ao médico para me mudar a medicação. – Não sou enfermeira. Vim ver a minha irmã. A mulher dirige um olhar penetrante a In-hye. – Ajude-me, por favor… Dói-me tanto a cabeça que já não aguento mais. Como é que eu posso viver assim? Nessa altura, aparece um doente de vinte e poucos anos, que se apoia nas costas de In-hye. É uma coisa bastante vulgar no hospital, mas ela fica nervosa. Os doentes não ligam às convenções sobre o espaço de cada um, nem ao facto de ser má-educação estarem sempre a observar as outras pessoas. Por um lado,
muitos deles têm um olhar completamente vazio que reflete uma mente fechada no seu próprio mundo, por outro, há alguns que parecem tão lúcidos que seria fácil confundi-os com o pessoal médico. Em tempos, Yeonghye pertenceu a esta segunda categoria. – Senhor enfermeiro, porque é que ninguém faz nada àquele homem? – grita uma doente que deve ter uns trinta anos e cuja cara é conhecida de In-hye, num tom agressivo para o enfermeiro-chefe. – Sabem muito bem que ele está sempre a bater-me! – De cada vez que In-hye vai ao hospital, a mania de perseguição daquela mulher parece ter-se agravado. In-hye torna a curvar-se perante os
enfermeiros. – Vou ter uma conversa com a minha irmã. – A avaliar pela expressão dos enfermeiros, estão todos mais do que fartos de Yeong-hye. É óbvio que nenhum deles tem a mínima esperança de que as tentativas de persuasão de Inhye tenham qualquer efeito. Ela passa cuidadosamente pelos doentes para não tocar em nenhum deles. Percorre o corredor que vai dar à enfermaria onde se encontra a irmã. A porta está aberta e, quando entra, uma mulher com o cabelo cortado muito curto vem ter com ela. – Ah, hoje veio cá fazer uma visitinha? Chama-se Hee-joo e está a tratar-se
do alcoolismo e da hipomania. É corpulenta, mas os seus olhos redondos dão-lhe um ar doce e tem sempre a voz um pouco rouca. Neste hospital, os doentes com bom controlo das suas faculdades cuidam dos que têm problemas psicológicos mais graves e, como recompensa, recebem uma espécie de semanada; quando começou a ser difícil tratar Yeong-hye, na altura em que se recusou terminantemente a comer, foi entregue aos cuidados de Hee-joo. – Agradeço-lhe o esforço e desculpe o incómodo – diz In-hye e, quando está prestes a fazer um sorriso forçado, a mão ligeiramente húmida de Hee-joo agarra a sua.
– O que é que havemos de fazer? – diz Hee-joo, com os olhos redondos a encherem-se de lágrimas. – Estão a dizer que, se calhar, a Yeong-hye vai morrer. – Como é que ela tem estado? – Ainda há pouco esteve a vomitar sangue. Como não come, os ácidos do sistema digestivo estão a dar-lhe cabo do estômago, e tem espasmos constantes. E, agora, ainda por cima com sangue. – Hee-joo está quase a desfazer-se em lágrimas. – Quando comecei a cuidar dela, ainda não estava assim… se calhar, a Yeong-hye podia ter ficado boa, se eu tivesse cuidado melhor dela, não acha? Nunca pensei que ela
chegasse a este ponto. Quem sabe, nada disto estaria a acontecer-lhe se não me tivessem posto a mim a cuidar dela. Hee-joo está a ficar transtornada e, por isso, In-hye larga-lhe a mão e aproxima-se devagar da cama. Se, ao menos, as pessoas pudessem não ver os olhos umas das outras, pensa. Se, ao menos, as pessoas pudessem esconder os seus olhos do mundo. Yeong-hye está deitada na cama, muito direita. A princípio, parece estar a olhar pela janela mas, mais de perto, percebe-se que não olha para nada. Já quase não tem carne na cara, no pescoço, nos ombros e nos membros. Inhye repara nos pêlos que estão a crescer
na face e nos antebraços da irmã, finos mas anormalmente compridos, como a penugem que os bebés costumam ter. O médico já lhe explicou que isto acontece por causa do desequilíbrio hormonal de Yeong-hye, devido aos longos períodos de jejum. Será que Yeong-hye está a tentar voltar a ser uma pré-adolescente? Há já muito que deixou de ter o período e, com o peso a descer abaixo dos trinta quilos, claro que pouco resta dos seus seios. Está ali deitada como se fosse uma criança horrenda, grande demais e desprovida de quaisquer traços sexuais. In-hye levanta o lençol branco. Volta a irmã de lado, sem a menor resistência
da parte dela, para ver se não tem escaras no cóccix ou nas costas. A zona que da última vez estava inflamada ainda não melhorou. In-hye deixa que o seu olhar se fixe na nítida mancha mongólica azulada impressa no meio das nádegas da irmã, que agora estão reduzidas a osso. A imagem daquelas flores que brotavam da mancha como tinta a sangrar, cobrindo todo o corpo de Yeong-hye, aparece fugaz e vertiginosamente aos olhos de In-hye. – Obrigada por tudo, Hee-joo. – Todos os dias a lavo com uma toalha molhada e lhe ponho pó de talco na pele. Acho que é o tempo húmido que não a deixa curar-se.
– Muito obrigada. – Dantes precisava de que um dos enfermeiros me ajudasse a dar-lhe banho; mas agora ela está tão levezinha que consigo pegar-lhe sozinha. É como se estivesse a tratar de um bebé. Estava a contar dar-lhe banho hoje; ouvi dizer que vai levá-la para outro hospital, por isso ia ser a última vez… – Os olhos grandes de Hee-joo tornam a ficar vermelhos. – Está bem. Vamos dar-lhe banho daqui a um bocadinho. – Sim, a água quente chega às quatro… – Hee-joo limpa os olhos congestionados, um a seguir ao outro. – Então, já vou ter consigo.
In-hye acena com a cabeça para Hee-joo quando esta se afasta e depois torna a tapar Yeong-hye com o lençol, tendo o cuidado de não deixar os pés da irmã de fora. Procura derrames na pele de Yeong-hye e encontra-os por todo o lado: nas mãos, na planta dos pés, até nos cotovelos. A única maneira de dar proteínas e glucose a Yeong-hye é por via intravenosa, mas agora já não há uma única veia em que se possa espetar uma agulha. A única maneira seria utilizar uma das artérias que lhe passam pelos ombros. Ontem, o médico telefonou a In-hye para explicar que isso obrigaria a uma cirurgia perigosa, pelo que a irmã teria de ser transferida para o
hospital geral. Já tentaram por diversas vezes alimentar Yeong-hye através de uma sonda nasal, mas nunca resultou porque, pura e simplesmente, ela fechava a garganta. Iriam tentar hoje esse método uma última vez mas, se falhasse, Yeong-hye já não poderia continuar sob os cuidados deles. Há três meses, pouco depois de Yeong-hye ter sido encontrada na floresta, quando In-hye chegou à receção no dia previsto para a visita, disseramlhe que o médico da irmã queria falar com ela. Ficou ansiosa, porque não tinha voltado a falar com ele desde que Yeong-hye fora internada. – Sabemos que ela fica
psicologicamente perturbada se vir no prato carne com um acompanhamento e, por isso, temos feito tudo para evitar que isso aconteça. Mas agora ela já nem sequer vai para o refeitório à hora das refeições e, se lhe levarmos a comida num tabuleiro para a enfermaria, não a come. Já não se alimenta há quatro dias. Está a começar a ficar desidratada. E, como se torna muito violenta sempre que tentamos pôr-lhe um cateter… bem, não tenho a certeza se vamos conseguir continuar a dar-lhe os medicamentos. Aliás, o médico duvidava de que Yeong-hye andasse a tomar a medicação. Culpava-se por não a ter vigiado como devia, depois de aparentemente ter
corrido tudo tão bem a princípio. Nessa mesma manhã, havia pedido ao enfermeiro que confirmasse se Yeonghye tinha tomado os remédios mas, segundo lhe disseram, ela nem ouvira quando a mandaram deitar a língua de fora. Então, o enfermeiro puxou-lhe a língua para cima e espreitou com a ajuda de uma lanterna, os comprimidos ainda lá estavam. Nesse dia, quando Yeong-hye estava deitada na sua cama na enfermaria de agulha espetada nas costas da mão, Inhye perguntou-lhe: – Porque é que fizeste aquilo? Que estavas a fazer naqueles bosques, às escuras? Não tinhas frio? Que fazias se apanhasses
uma doença qualquer, uma doença grave? – O rosto de Yeong-hye estava terrivelmente pálido, e o cabelo, despenteado, empastado como se fosse feito de algas. – Tens de comer. Percebo que não comas carne, se não gostas, mas porque é que agora deixaste de comer também as outras coisas? Os lábios de Yeong-hye contorceram-se de forma quase imperceptível. – Tenho sede – murmurou. – Dá-me água. – In-hye foi buscar-lha ao átrio. Depois de beber um pouco, Yeong-hye soltou um pequeno suspiro e perguntou: – Falaste com o médico, irmã? – Sim, falei. Porque…
Yeong-hye interrompeu-a. – Dizem que estou toda atrofiada por dentro, sabias? – In-hye estava sem palavras. Yeong-hye aproximou mais o seu rosto macilento da irmã. – Já não sou um animal, irmã – disse, depois de percorrer a enfermaria com os olhos, como se estivesse prestes a revelar um segredo muito importante. – Já não preciso de comer. Posso viver sem me alimentar. A única coisa de que preciso é sol. – Que estás para aí a dizer? Julgas mesmo que te transformaste numa árvore? Achas que as plantas falam? Não percebo como é que essas coisas te passam pela cabeça.
Os olhos de Yeong-hye brilharam, e no seu rosto emergiu um sorriso misterioso. – Tens razão. Dentro em breve, as palavras e os pensamentos também irão desaparecer. Falta pouco. – Yeong-hye deu uma gargalhada e, depois, soltou outro suspiro. – Está quase. Só é preciso esperar mais um bocadinho, irmã. O tempo passa. Lá fora, a chuva parece não estar tão forte como antes. As gotas quase não se notam ao atingirem a rede mosquiteira. Por isso, talvez tenha mesmo parado de chover há algum tempo. In-hye senta-se numa cadeira ao lado da cama de Yeong-hye, abre o saco e
retira de lá de dentro vários recipientes de diferentes tamanhos, todos hermeticamente fechados. Começa por tirar a tampa ao mais pequeno de todos. Uma doce fragrância espalha-se pelo ar húmido da enfermaria. – É um pêssego, Yeong-hye. Um pêssego em lata, de Hwangdo. Tu gostas, lembras-te? Costumavas insistir em comprá-los, mesmo na época dos pêssegos frescos, como se fosses uma menina pequenina. – Corta um bocado do fruto maduro e mole com um garfo e aproxima-o do nariz da irmã. – Cheira… Não queres provar um bocadinho? – O recipiente seguinte está cheio de melancia, cortada em pequenos cubos. –
Não te lembras, quando eras mais nova, sempre que eu cortava uma melancia ao meio, tu ias logo cheirá-la? Havia algumas que, quando as abríamos, libertavam um aroma doce, maravilhoso, que enchia a casa toda. Yeong-hye permanece completamente imóvel. In-hye esfrega com suavidade um pedaço de melancia nos lábios da irmã. Tenta entreabrir-lhos com dois dedos, mas a boca dela está fechada com toda a força. – Yeong-hye – chama In-hye em voz baixa. – Responde-me, Yeong-hye. – Abana os ombros rígidos da irmã e resiste à tentação de lhe abrir a boca à
força. Apetece-lhe gritar-lhe aos ouvidos: o que é que estás a fazer? Estás a ouvir o que te digo? Queres morrer? Queres mesmo morrer? Desorientada, concentra-se na raiva que ferve dentro de si como espuma. O tempo passa. In-hye vira a cabeça e olha pela janela. Parece ter finalmente parado de chover, mas o céu ainda está coberto de nuvens e as árvores molhadas e silenciosas. As encostas densamente arborizadas do Monte Ch’ukseong estendem-se a perder de vista. A infindável floresta que cobre essas encostas está tão silenciosa como tudo o resto.
Tira um termo do saco e deita chá de marmelo chinês para o copo de aço inoxidável. – Bebe um bocadinho, Yeong-hye. Está no ponto certo de infusão. – Leva o copo aos próprios lábios e bebe um gole. O sabor que lhe fica na ponta da língua é doce e aromático. Depois, deita um pouco do chá numa toalha e humedece com ele os lábios de Yeonghye. Não há qualquer reação. – Estás a tentar morrer? – pergunta-lhe. – Não estás, pois não? Se a única coisa que queres é transformares-te numa árvore, tens de comer à mesma. Tens de continuar viva. – Para de falar. A respiração fica-lhe presa na garganta.
Finalmente, surge-lhe na cabeça a suspeita que não queria admitir. Será que está enganada? Será possível que seja precisamente a morte aquilo que Yeong-hye sempre desejou? Não, repete em silêncio. Não estás a tentar morrer. Antes de Yeong-hye ter deixado definitivamente de falar, mais ou menos há um mês, tinha-lhe pedido: – Por favor, deixa-me sair daqui, irmã. Parava muitas vezes a meio das frases, talvez porque lhe custasse estar muito tempo a falar, e o seu discurso era constantemente entrecortado pelo som sibilante da respiração. – As pessoas estão sempre a
mandar-me comer… Não gosto de comer; obrigam-me. Da última vez que vomitei… ontem, assim que acabei de comer, deram-me uma injeção para me porem a dormir. Não gosto de injeções, irmã, não gosto mesmo nada… Por favor, deixa-me ir embora. Não gosto de estar aqui. Segurando a mão enfraquecida de Yeong-hye, In-hye respondera-lhe: – Mas tu já nem sequer consegues andar como deve ser. Só com esta sonda é que estás a conseguir aguentar-te… Se fores para casa, o que é que vais comer? Se prometeres que comes, peço para te darem alta. – Não conseguiu deixar de reparar como, nesse momento, os olhos
de Yeong-hye perderam o brilho. – Irmã, responde-me. Só tens de prometer. Yeong-hye contorceu-se para se afastar da irmã. – És igual aos outros todos – murmurou numa voz quase inaudível. – O que é que estás a dizer? Eu… – Ninguém me compreende… os médicos, os enfermeiros, são todos iguais… nem sequer tentam compreender-me… A única coisa que fazem é obrigar-me a tomar os medicamentos e espetar-me agulhas. A voz de Yeong-hye era lenta e calma, mas firme. In-hye não conseguiu controlar-se. – Tu! – gritou. – Estou a fazer tudo
isto porque tenho medo de que morras! Yeong-hye virou-se e olhou para Inhye com uma expressão vazia, como se ela não fosse sua irmã, mas uma estranha. Ao fim de algum tempo, fez a pergunta: – Porquê? É assim tão mau morrer? Porquê? É assim tão mau morrer? Há muito tempo, ela e Yeong-hye tinham-se perdido numa montanha. Yeong-hye, que teria então uns nove anos, disse: – Não vamos voltar para trás. Nessa altura, In-hye não percebera o que ela queria dizer. – Que estás para aí a dizer? Daqui a nada vai ser de noite. Temos de
encontrar rapidamente o caminho. Só ao fim de todo este tempo conseguia perceber a razão por que a irmã dissera aquilo. Yeong-hye tinha sido a única vítima das tareias do pai. Tal violência não teria incomodado tanto o seu irmão Yeong-ho, um rapaz que aplicava uma justiça tenaz pelas próprias mãos às crianças da aldeia. Inhye, a filha mais velha, era quem tomava o lugar da mãe, exausta, e fazia um caldo para o pai que lhe ensopava o álcool e, por isso, ele sempre tivera algum cuidado na maneira como lidava com ela. Só a dócil e ingénua Yeong-hye fora incapaz de se desviar das palmadas do progenitor ou de lhe fazer frente com
qualquer tipo de resistência. Em vez disso, limitara-se a absorver todo aquele sofrimento até à medula. Agora, com a vantagem de poder olhar para trás, In-hye percebia que o papel que assumira nessa altura – a filha mais velha, trabalhadora e disposta a sacrificar-se – fora um sinal não de maturidade, mas de cobardia. Fora uma estratégia de sobrevivência. Teria podido impedi-lo? Seria possível impedir que essas coisas inimagináveis se tivessem enraizado tão profundamente em Yeong-hye, ao pondo de se apoderarem dela? Relembrou a irmã em criança, as costas, os ombros, a parte de trás da cabeça, sozinha,
encostada ao portão, ao pôr do Sol. Tinham conseguido descer a montanha, mas do lado oposto àquele de onde haviam partido. E foram de boleia num trator de volta para a sua aldeia, por uma estrada desconhecida e com a noite a cair. In-hye ficara aliviada, mas a irmã não. Yeong-hye não dissera nada, limitando-se a ver passar os choupos flamejantes à luz do entardecer. Se tivessem fugido de casa nessa noite, como Yeong-hye sugerira, teria sido tudo diferente? Na reunião de família, naquele fatídico dia, se tivesse agarrado o braço do pai com mais força, antes de ele ter dado uma estalada a Yeong-hye, teria
sido tudo diferente? E quando fora com Yeong-hye para ela ser apresentada ao seu futuro marido, o senhor Cheong? O futuro cunhado parecera-lhe um bocado frio; não simpatizara muito com ele. Que teria acontecido se tivesse seguido o seu instinto e se tivesse recusado a deixar que o casamento da irmã fosse por diante? Passara horas a fio assim, durante um certo tempo, a ponderar todas as variáveis que podiam ter contribuído para determinar o destino de Yeong-hye. Claro que esse ato de escolher mentalmente e contar as peças do paduk que haviam sido dispostas no tabuleiro
da vida da sua irmã não servia para nada. Mais do que isso – nem sequer era possível. Mas não conseguia impedir os seus pensamentos de passarem daí para o seu ex-marido. Se, ao menos, não se tivesse casado com ele. – Queria ver o Ji-woo. – A sua voz, tãããooo familiar, baixa e tensa (tinha a certeza de que ele estava a fazer um esforço para se controlar) parecia uma faca a rasgar-lhe o peito. – Podes deixar-me vê-lo, só uma vez? Portanto, fora para isso que telefonara. Não para dizer que estava arrependido. Não para lhe pedir desculpa. Apenas para falar do filho.
Nem sequer perguntou como estava Yeong-hye. Sempre soubera que o marido era um homem muito sensível. Um sujeito cuja auto-estima era facilmente afetada, que rapidamente ficava frustrado se as coisas não corriam como esperava. Sabia que, se lho recusasse mais uma vez, seria provável que ele não a voltasse a contactá-la durante muito tempo. Embora estivesse consciente disso – não, certamente por estar consciente disso –, ele desligou sem responder. Um telefone público, a meio da noite. Uns ténis velhos, roupas andrajosas. Um rosto desesperado, já
sem qualquer vestígio de juventude. Inhye abanou a cabeça para tentar apagar essas imagens. Sempre que pensava no ex-marido, esses pensamentos eram esmagados pela expressão dele a tentar atirar-se da varanda de Yeong-hye, na tentativa de voar como uma ave. Todas aquelas cenas de voos que incluíra nos vídeos que fizera; mas, apesar disso, no momento em que mais precisara de voar, não fora capaz de fazê-lo. – Não te conheço – balbuciara ela, apertando as mãos à volta do auscultador, que pusera no descanso mas continuara a agarrar. – Por isso, não temos nada a perdoar um ao outro. Porque não nos conhecemos.
Quando o telefone tornou a tocar, arrancou o fio da parede. Na manhã seguinte, voltou a ligá-lo mas, tal como previra, ele não telefonou mais nenhuma vez. O tempo passa. Agora, os olhos de Yeong-hye estão fechados. Estará a dormir? Será que sente o cheiro da fruta que a irmã acabou de lhe passar pelos lábios? In-hye olha para as escanzeladas maçãs do rosto de Yeong-hye, para os seus olhos vazios, para as suas faces encovadas. Sente a respiração fraca da irmã. Levanta-se e vai até à janela, de onde se vê o céu cinzento a ficar gradualmente mais luminoso e os
contornos da paisagem mais coloridos. A luz salpica a floresta do Monte Ch’ukseong, reacendendo as suas cores de verão. O sítio onde descobriram Yeong-hye naquela noite situa-se algures naquela encosta. – Ouvi qualquer coisa – dissera Yeong-hye, deitada, com a agulha espetada na mão. – Fui para lá porque ouvi uma coisa a chamar-me… Agora já não a ouço… Eu estava lá à espera. Quando In-hye lhe perguntou, «Estavas à espera de quê?», os olhos de Yeong-hye tornaram-se instantaneamente febris. A mão direita era a que tinha a agulha espetada; estendeu a esquerda e agarrou a mão da irmã, que ficou
chocada pela força com que a prendeu. – Desfiz-me com a chuva… tudo se desfez… Estava prestes a afundar-me na terra. Nada me impediria se quisesse tornar a pôr as pernas para o ar. O tom excitado de Hee-joo arranca In-hye destas memórias. – Que é que podemos fazer pela Yeong-hye? Estão a dizer que ela vai morrer. Para In-hye, as palavras de Hee-joo soam como o rugido ensurdecedor de um avião a levantar voo. Há uma recordação que In-hye nunca foi capaz de contar a ninguém e, provavelmente, nunca será. Abril, há dois anos.
A primavera do ano em que o marido fez aquele vídeo com a irmã. Inhye andava a perder sangue pela vagina havia quase um mês. Nunca percebera por que razão, sempre que lavava as cuecas ensanguentadas, se lembrava do sangue da irmã a espirrar do pulso. Todos os dias decidia que, no seguinte, iria ao médico, mas depois, quando chegava esse dia, tornava a adiar a decisão. Tinha medo de ir para o hospital. Se fosse uma doença grave, quanto tempo de vida lhe restaria? Um ano. Seis meses. Talvez três. Tinha pela primeira vez a noção dos anos que passara com o marido. Fora um período completamente desprovido de alegria e
espontaneidade. Um tempo que ela só conseguira aguentar consumindo até ao fim todas as suas reservas de perseverança e respeito. E tudo isso por decisão própria. Na manhã em que finalmente arranjou coragem para ir ao serviço de obstetrícia e ginecologia onde Ji-woo tinha nascido, esperou na plataforma da estação de Wangsimni pelo comboio, que estava a demorar muito mais do que o habitual. Do outro lado da plataforma, havia uma fileira de construções precárias, com as estruturas de betão já deterioradas e ervas irrompendo entre os carris abandonados, sobre os quais não passava já qualquer comboio. A
sensação de que, na realidade, nunca vivera neste mundo apanhou-a de surpresa. Era um facto. Nunca vivera. Mesmo em criança, até onde conseguia lembrar-se, a única coisa que fizera fora aguentar. Acreditara na sua inerente bondade, na sua humanidade, e vivera de acordo com isso, sem nunca fazer mal a ninguém. A sua genuína devoção por fazer o que estava certo fora inquebrantável, todo o seu sucesso dependera disso e poderia continuar a viver assim indefinidamente. Não percebia porquê mas, quando confrontada com a deterioração daquelas construções e a disseminação daquelas ervas, sentiu que não passava
de uma criança que nunca tinha realmente vivido. Lutara contra a vergonha e conseguira parar de tremer antes de se deitar na marquesa. Depois, o médico de meia-idade enfiou-lhe uma sonda gélida na vagina e retirou-lhe um pólipo em forma de língua, que estava preso à parede do útero. O seu corpo estremeceu com a intensidade da dor. – Pronto, era por causa disto que andava a perder sangue. Extraí-o todo e, por isso, a hemorragia vai começar a diminuir dentro de poucos dias, até acabar por cessar. Está tudo bem com os seus ovários, pelo que não tem de se preocupar com nada.
Não retirou nem um fugaz momento de felicidade da situação. Em vez de uma doença grave, uma possibilidade que a preocupara terrivelmente durante um mês inteiro, era uma coisa de nada. Ao regressar à plataforma da estação de Wangsimni, era só por causa da dor do procedimento que as pernas ainda lhe tremiam. Quando, por fim, o comboio entrou na estação com um rugido, ela cambaleou até uma das cadeiras de metal e escondeu-se, com medo de que alguma coisa dentro dela a levasse a atirar-se para a frente do corpo sólido do comboio. Como explicar os quatro meses que se seguiram a esse dia? Continuou a
perder sangue durante mais umas duas semanas e, depois, o corte sarou e a hemorragia cessou. Mas tinha a sensação de que ficara com uma ferida aberta dentro do corpo. Aliás, parecia até que essa ferida se tornara maior do que ela, que todo o seu corpo estava a ser sugado para o negrume das suas entranhas. Continuou a observar em silêncio a passagem da primavera e a chegada do verão. As roupas usadas pelas suas clientes foram-se tornando progressivamente mais curtas e coloridas. Como sempre, sorria às clientes e nunca deixava de lhes recomendar produtos ou fazer descontos,
quando se justificava, pondo sempre uma amostra grátis no saco de cada compra. Afixava cartazes na loja a anunciar novos produtos em pontos estratégicos, onde pudessem chamar a atenção das clientes, e resolvia com facilidade as situações em que as especialistas de cuidados do rosto não recebiam um feedback positivo, pelo que tinham de ser substituídas. Mas, à noite, quando deixava as funcionárias e caminhava pelas ruas escaldantes, a transbordarem de música e cheias de casais abraçados, sentia outra vez o vácuo daquela ferida negra a sugá-la, a puxá-la para dentro. Arrastava o seu corpo encharcado em suor até casa,
refugiando-se por fim da multidão. Acontecera mais ou menos na altura em que esses dias tórridos de verão tinham começado a arrefecer um pouco, pelo menos de manhã e à noite. Ao chegar a casa uma madrugada, entrando como um ladrão, depois de ter estado fora vários dias, ele deitou-se e tentou abraçá-la, mas ela empurrou-o. – Estou cansada… Já disse que estou muito cansada. – Aguenta só mais um minuto – pediu ele. Lembrava-se de como fora. Aquelas palavras tinham-lhe passado pela mente semiconsciente uma e outra vez. Ainda meio a dormir, cumprira a função,
pensando para si própria que não fazia mal, que seria só desta vez, que aquilo iria acabar num instantinho e que era capaz de o aguentar. A dor e a vergonha tinham sido apagadas pela exaustão e o sono profundo em que caíra logo a seguir. No entanto, mais tarde, enquanto tomava o pequeno-almoço, sentiu de repente uma vontade enorme de espetar os pauzinhos nos olhos ou despejar a água a ferver por cima da cabeça. Como o marido adormecera, o quarto estava de novo tranquilo e silencioso. Pegou em Ji-woo, que estava a dormir voltado de lado, e tornou a deitá-lo de costas, apercebendo-se nesse momento de como a imagem deles
deveria parecer patética, os ténues contornos de mãe e filho delineados na escuridão. Não importava. Era um facto. Tudo ficaria bem desde que ela continuasse em frente, levando a vida por diante, como sempre fizera. Aliás, não havia alternativa. Saiu do quarto e olhou para o azulescuro que tingia a janela da varanda. Os brinquedos com que Ji-woo estivera a brincar na noite anterior, o sofá e a televisão, as portas pretas por baixo do lava-loiças e as manchas de gordura no fogão; era como se estivesse a ver todas essas coisas pela primeira vez, caminhando pela casa como se nunca
tivesse lá estado. Sentiu uma dor estranha no peito. Era uma sensação que a oprimia e sufocava, parecia que as paredes da casa estavam lentamente a fechar-se à sua volta. Abriu a porta do roupeiro e tirou a T-shirt roxa de algodão. A cor desbotara, porque Ji-woo engraçava com ela quando ainda mamava e, por isso, ela tinha-a usado muitas vezes para andar por casa. Era o género de coisa que gostava de vestir quando estava doente ou não se sentia no seu melhor; apesar de a ter lavado vezes sem conta, aquele cheiro a leite e a recém-nascido que ainda perdurava nela transmitia-lhe uma sensação de segurança. Mas,
daquela vez, não resultou. A dor no peito ficou mais forte. A respiração tornou-se ofegante, e teve de fazer um esforço para respirar fundo. Sentou-se no sofá. Seguiu com os olhos o movimento circular do ponteiro dos segundos no relógio e fez mais um esforço para normalizar a respiração. Ficou admirada ao constatar que não era capaz. Foi então invadida por uma sensação de déjà vu, a impressão de que já tinha passado muitas vezes por aquilo. A prova da sua dor interna aparecera à sua frente, como uma coisa para que ela se tivesse longamente preparado, como se tivesse estado à espera daquele exato momento.
Nada disto faz sentido. Não aguento mais. Não posso continuar assim mais tempo. Não quero. Tornou a percorrer com o olhar os diversos objetos da casa. Não lhe pertenciam. Tal como a sua vida nunca lhe pertencera. A sua vida não passava de um sucessão fantasmagórica de atos de resistência até à exaustão, não mais real do que uma telenovela. A morte, que agora estava ao seu lado, era-lhe tão familiar como um parente que tivesse estado muito tempo afastado mas regressasse nesse momento.
Levantou-se a tremer e foi até ao sítio onde havia brinquedos espalhados. Na última semana, não houvera uma noite em que não tivesse querido tirar o móbil que Ji-woo a ajudara a decorar. Começou a desatar o fio grosso. Estava tão apertado que lhe fazia doer as pontas dos dedos, mas continuou pacientemente até desfazer o último nó. Enrolou o papel colorido e o celofane, enfeitados com estrelas, e atirou-os para um cesto, depois enrolou o fio e guardou-o no bolso das calças. Calçou umas sandálias, abriu a porta da rua e saiu. Desceu os cinco lanços de escadas. Lá fora ainda estava escuro. No enorme prédio só havia a luz que ela
deixara acesa. Continuou a andar, atravessou o portão das traseiras e seguiu pelo caminho escuro e estreito em direção à montanha. O recorte ondulado da montanha parecia mais acentuado do que o habitual naquela escuridão negroazulada. Era tão cedo que até as pessoas de idade, que costumavam ir buscar água ao nascer do dia, ainda estavam a dormir nas suas camas. Continuou a andar, de cabeça baixa. Sentiu qualquer coisa no rosto, suor ou lágrimas, não tinha a certeza, que limpou com as costas da mão. Sentia a dor como um buraco a engoli-la, uma fonte de pânico e, ao mesmo tempo, uma estranha paz
reconfortante. O tempo passa. In-hye torna a sentar-se. Abre o último recipiente. Agarra a mão hirta de Yeong-hye e puxa-a em direção às ameixas, passando os dedos da irmã sobre a casca macia da fruta. Dobra-lhe os dedos descarnados sobre uma das ameixas, obrigando-a a segurá-la. Yeong-hye costumava gostar de ameixas. In-hye lembra-se de que às vezes, em criança, a irmã metia uma ameixa na boca e a deixava ficar por um momento antes de a trincar, dizendo que gostava daquela sensação. Mas, agora, a sua mão está inerte e sem reação. As suas unhas tornaram-se finas como
papel. – Yeong-hye. – A sua voz soa seca e agreste no silêncio da enfermaria. Nada. Aproxima o rosto do da irmã. Nessa altura, por incrível que pareça, as pálpebras dela estremecem e abrem-se. – Yeong-hye! – Espreita para as pupilas negras e vazias da irmã, mas a única coisa que vê nelas é o seu rosto refletido. A força daquela desilusão apanha-a de surpresa e então mergulha no desespero. – Estás mesmo louca. – Era um pensamento que nos últimos dias se recusava a aceitar mas, agora, pela primeira vez, pergunta a Yeong-hye: – Enlouqueceste mesmo? Um medo inexplicável fá-la afastar-
se da irmã, mas continua sentada. O silêncio da enfermaria, sem sequer o som da respiração a quebrá-lo, é como algodão a tapar-lhe os ouvidos. – Talvez… – murmura para si própria. – Talvez seja mais fácil do que eu pensava. – Hesita e fica em silêncio durante algum tempo. – Estás louca, por isso… – Em vez de completar a frase, aproxima o indicador da boca da irmã. Sente uma ténue respiração aflorar-lhe o dedo, quente e regular. Os lábios de Yeong-hye esboçam um movimento mínimo. Esta dor e a insónia que, sem que os outros soubessem, se tinham agora apoderado de In-hye… Teria Yeong-hye
passado por esta mesma fase há muito tempo, tê-la-ia ultrapassado mais rapidamente do que a maioria das pessoas? Será o estado atual de Yeonghye o corolário natural daquilo por que In-hye está agora a passar? Se calhar, a determinada altura, Yeong-hye deixou simplesmente cair o ténue fio que a mantinha ligada à vida de todos os dias. Durante os últimos meses de insónia, Inhye sentia por vezes que estava a viver num estado de caos total. Se não fosse por Jin-woo – e pelo sentido de responsabilidade que tinha em relação a ele –, talvez também ela tivesse quebrado esse fio. As únicas vezes em que a dor
simplesmente desaparece, como que por milagre, é logo a seguir aos instantes em que se ri. Quando Ji-woo diz qualquer coisa que a faz rir, ela sente-se, imediatamente a seguir, em branco, vazia até mesmo da dor. Nessas alturas, o simples facto de se ter rido parece-lhe inacreditável e leva-a a rir-se outra vez. É verdade que aquele riso é sempre mais maníaco do que feliz, mas, ainda assim, costuma deixar o filho deliciado. – Que foi, mamã? Foi isto que te fez rir? E, então, Ji-woo repete o que acabou de fazer como, por exemplo, franzir os lábios ou fingir, com as mãos, que tem um chifre a crescer-lhe na testa, ou um
ruído qualquer, metendo a cabeça entre as pernas e gritando «mamã, mamã!» numa voz apatetada. Quanto mais ela ri, mais ele pinta a manta com as suas palhaçadas. Quando acaba, terá percorrido todos os mistérios secretos do riso alguma vez desvendados pelo ser humano, mobilizando a totalidade dos recursos ao seu dispor. É impossível que tenha consciência do sentimento de culpa que desperta na mãe quando vê uma criança tão pequena esforçar-se tanto por lhe arrancar o mais ínfimo momento de aparente felicidade, para que o riso dela não acabe de vez. A vida é uma coisa tão estranha, pensa In-hye quando para de rir. Mesmo
depois de lhes terem acontecido certas coisas, por mais horríveis que tenham sido as suas experiências, as pessoas continuam a comer e a beber, a ir à casa de banho e a lavar-se – por outras palavras, a viver. E, às vezes, até riem à gargalhada. E, provavelmente, têm os mesmos pensamentos e, nessa altura, devem lembrar-se melancolicamente de toda a tristeza de que, por instantes, se esqueceram. No entanto, quando se deita junto ao corpo pequeno e bronzeado do filho, depois de o sono se instalar sobre o rosto inocente dele, a noite recomeça para ela. É um momento em que não há qualquer imagem ou som de uma coisa
viva. Um instante tão longo como a eternidade e tão sem fundo como um pântano. Quando se aninha vestida na banheira e fecha os olhos, In-hye vê-se rodeada pela floresta escura. A chuva atravessa o corpo da irmã como se fossem lanças, e os seus pés magros e descalços estão cobertos de lama. In-hye abana então a cabeça para afastar essa imagem e surgem-lhe à frente dos olhos árvores frondosas a cintilarem à luz do sol, como grandes manchas verdes de fogo de artifício. Dever-se-á isto à alucinação que Yeong-hye lhe descreveu? A infindável quantidade de árvores que viu ao longo da vida, as florestas ondulantes que cobrem os
continentes como um mar impiedoso, envolvem-lhe o corpo e elevam-na. Só vê fragmentos de cidades, vilas e estradas a flutuarem acima da floresta como ilhas ou pontes que lentamente vão sendo desviadas para outro sítio qualquer, transportadas por essas ondas tépidas. É impossível a In-hye saber o que estarão essas ondas a querer dizer. Ou o que as árvores que viu ao fundo do estreito caminho da montanha, coladas umas às outras como chamas verdes na semiluz da manhã, tentaram dizer-lhe. Fosse o que fosse, não seria caloroso. Quaisquer que fossem as palavras, não seriam animadoras, não a
ajudariam a pôr-se de pé. Seriam, sim, impiedosas, e as árvores que as tinham dito eram uma forma de vida assustadoramente gélida. Mesmo quando se virara e procurara em todas as direções, In-hye não conseguira encontrar uma única árvore que lhe tirasse a vida. Algumas haviam-se recusado a aceitá-la. Haviam-se limitado a continuar no mesmo sítio, teimosas e solenes, mas vivas como animais, sustentando o peso dos seus corpos enormes. O tempo passa. In-hye volta a tapar os recipientes. Guarda tudo no saco, a começar pelo termo. Por fim, fecha-o.
Para que outra dimensão teria passado a alma de Yeong-hye, depois de se ter libertado da carne como uma serpente que larga a pele? In-hye lembrava-se do aspeto de Yeong-hye quando estava a fazer a pino. Teria ela confundido o chão de cimento do hospital com a terra da floresta? Ter-seia o seu corpo metamorfoseado num tronco robusto, com raízes esbranquiçadas a nascerem-lhe das mãos e a agarrarem-se à terra escura? Seria possível que as suas pernas se esticassem no ar, ao mesmo tempo que os seus braços se enterravam em direção ao centro da terra, com as costas rígidas e direitas de forma a permitirem que os
seus membros crescessem? Enquanto os raios de sol inundavam o corpo de Yeong-hye, teria a água que saturava a terra sido absorvida pelas suas células, acabando por brotar flores da sua púbis? Seria possível que, quando Yeong-hye se equilibrara de pernas para o ar e alongara cada fibra do seu corpo, todas essas coisas tivessem despertado na sua alma? – A sério! – exclama In-hye, em voz alta. – Mas o que vem a ser isto? – Depois, ainda mais alto, diz: – Estás a morrer. Estás aí deitada nessa cama a morrer. Só isso. – Aperta os lábios e os os dentes tão violentamente que se entrevê o sangue, enquanto luta contra a
vontade de agarrar o rosto parado de Yeong-hye, de abanar aquele corpo quase imaterial e de a atirar de novo para cima da cama. Já não há tempo. In-hye põe o saco ao ombro e empurra a cadeira para trás. Sai rapidamente da enfermaria, caminhando curvada. Quando volta a cabeça, o corpo de Yeong-hye continua rígido e imóvel sob o lençol. In-hye cerra os dentes ainda com mais força. Dirige-se para o átrio. Uma enfermeira de cabelo apanhado aproxima-se da mesa do átrio com um pequeno cesto de plástico branco, e senta-se. Dentro desse cesto há vários
corta-unhas. Os doentes fazem fila e recebem-nos, um a um. A escolha é sempre um processo lento porque os doentes demoram muito tempo a decidir qual será o melhor para eles. Do outro lado do átrio, uma auxiliar de enfermagem de rabo-de-cavalo corta as unhas aos doentes que sofrem de demência. In-hye observa calmamente a cena. São proibidos objetos aguçados ou cortantes que possam ser utilizado para furar ou cortar, bem como tudo aquilo que tenha fios ou cordões suficientemente compridos para poderem ser enrolados à volta do pescoço. Em parte para impedir que os
doentes façam mal aos outros, mas sobretudo para prevenir e evitar que o façam a si próprios. In-hye fita os seus rostos, todos curvados sobre as mãos, absorvidos na tarefa de cortarem as unhas antes que se esgote o tempo de que dispõem para usar o corta-unhas. No relógio de parede são duas e cinco. Vê-se, de relance, a bata branca de um médico junto à porta de vidro que, a seguir, se abre para o átrio. É o médico de Yeong-hye. Volta-se e fecha depois essa porta à chave, com movimentos rápidos e experientes. Porventura poderia dizer-se o mesmo a propósito de qualquer grande hospital, mas ali, num hospital psiquiátrico, a autoridade
do médico é ainda mais acentuada. Talvez aconteça porque os doentes não podem dali sair. Juntam-se em redor do médico, como se tivessem acabado de descobrir o seu Messias. – Só um minuto, senhor doutor. Ligou à minha mulher? Se não se importasse de lhe dizer que eu já posso ter alta… tem aqui o número da dela. Se pudesse ligar-lhe… – Senhor doutor, preciso que mude a minha medicação. Tenho um… zumbido incessante nos ouvidos. – Senhor doutor, não se importa de falar com ele? Está sempre a bater-me. Não aguento mais. O quê? Agora o senhor também? Porque me está a dar
pontapés? Fale comigo, está a ouvir? O médico dirige um sorriso descontraído à mulher, destinado a acalmá-la, e diz. – Quando é que eu lhe dei pontapés? Esperem. Têm de falar um de cada vez. Quando começou esse zumbido nos ouvidos? – A mulher bate com o pé no chão com toda a força, impaciente por ter de esperar, o seu rosto contorcido numa expressão mais triste e ansiosa do que zangada. Nesse momento, a porta para o átrio torna a abrir-se e chega outro médico, que In-hye nunca viu. – É o internista – informa Hee-joo. In-hye não tinha dado sequer pela
chegada dela. Aparentemente, todas as instituições psiquiátricas têm um internista de serviço. Aquele parece ainda novo, embora talvez tenha apenas um rosto jovem, e dá a sensação de ser inteligente, mas distante. Por fim, o médico de Yeong-hye liberta-se daquele bando de doentes e dirige-se a In-hye. Ao aperceber-se disso, ela dá instintivamente um passo atrás. – Falou com a sua irmã? – Pelo que pude perceber, não me parece que ela esteja consciente. – À primeira vista, pode dar essa ideia, mas não há um único músculo nela que não esteja tenso. Não é que não esteja propriamente consciente.
Digamos, antes, que o seu consciente está tão completamente concentrado noutra coisa ou noutro lugar que ela não se apercebe daquilo que está à sua volta. Se visse o que acontece quando fica assim e a obrigamos a sair desse estado, saberia que a sua irmã nunca deixou de estar consciente. – O médico parece sincero e um pouco tenso. – Pode ser difícil para um familiar assistir a isto. Se chegarmos à conclusão de que a sua presença está a tornar as coisas mais complicadas, será melhor ir-se embora rapidamente. – Eu compreendo – diz In-hye. – Mas é que… O médico interrompe-a.
– Tenho a certeza de que vai correr tudo bem. Transportando o corpo de Yeong-hye sobre o ombro, como se fosse um bombeiro, sem que ela pare de se contorcer e debater, o enfermeiro atravessa o corredor e entra num quarto vazio com duas camas. In-hye espera que o restante pessoal médico se afaste e, depois, segue-os cautelosamente. O médico tinha razão – não há dúvida de que Yeong-hye está consciente. Agita-se, aliás, com tanta violência que é difícil acreditar que é a mesma mulher que ainda há pouco estava deitada, completamente imóvel. Um grito quase incompreensível irrompe da sua
garganta. – Deixem-me em paz! Deixem-me… em… paz! – Os dois enfermeiros e um auxiliar dominam-na e obrigam-na a deitar-se. Prendem-lhe os braços e as pernas. – É melhor sair – diz um dos enfermeiros a In-hye, que está ali parada, sem saber o que fazer. – É difícil para os familiares verem isto. É melhor sair. Yeong-hye vira-se instantaneamente para In-hye, cravando nela os seus olhos brilhantes. Os gritos intensificam-se, acompanhados por uma torrente imparável de palavras. Movida por um qualquer impulso desconhecido,
contorce os membros presos, como se quisesse atirar-se a In-hye. Esta aproxima-se dela, sem se aperceber bem do que está a fazer. Os braços escanzelados de Yeong-hye sacodem-se, reduzidos a ossos. – Eu… não… gosto! – Pela primeira vez, Yeong-hye diz as palavras com clareza, apesar de a sua voz continuar a parecer o rugido de um animal selvagem. – Eu… não… gosto! Eu… não… gosto de… comer! – In-hye agarra as faces contorcidas da irmã com ambas as mãos. – Yeong-hye. Yeong-hye! – A expressão dos olhos de Yeong-hye, a tremer de terror, prende In-hye.
– Saia, por favor. Está a tornar tudo mais difícil. – Os enfermeiros agarram In-hye por baixo dos braços e arrastamna, levantando-a acima do chão. Sem que ela tenha tempo para resistir, empurram-na pela porta aberta para o corredor. O enfermeiro que ficou à porta segura-lhe no braço. – Fique aqui, por favor. Ela vai ficar mais calma se não estiver lá dentro. O médico de Yeong-hye calça umas luvas cirúrgicas e espalha uma camada uniforme de gel no tubo esguio e comprido que o enfermeiro-chefe lhe passa. Entretanto, o outro enfermeiro está a ser obrigado a usar toda a sua força para manter a cabeça de Yeong-
hye imóvel. Assim que se aproximam dela com o tubo, o rosto de Yeong-hye fica completamente vermelho, e ela consegue libertar-se. É tal e qual como o médico disse; é impossível saber donde lhe vem aquela força. In-hye dá um passo, ligeiramente tonta, mas o enfermeiro agarra-a pelo braço e não a deixa avançar. Por fim, o outro enfermeiro torna a prender a cara encovada de Yeong-hye, e o médico insere-lhe o tubo no nariz. – Bolas, está bloqueado! – exclama o médico. Yeong-hye abriu a boca o máximo possível, conseguindo assim fechar a garganta à volta da úvula, empurrando o tubo para fora. O
internista, que tinha estado à espera para pôr o líquido a correr pelo tubo com uma seringa, franze a testa. O médico de Yeong-hye retira então o tubo do nariz da doente. – Muito bem, vamos tentar outra vez. Agora mais depressa. Tornam a cobrir o tubo com gel. O enfermeiro volta a usar o seu físico robusto contra a força exaurida de Yeong-hye, agarrando-lhe a cabeça com as mãos. Tornam a inserir-lhe o tubo no nariz. – Já está. Agora foi. – Um suspiro rápido foge da boca do médico. De repente, as mãos desocupadas do internista já se estão a mexer. Começa a
enfiar o líquido através da seringa. O enfermeiro que está a agarrar o braço de In-hye aperta-o ligeiramente, segredando-lhe: – Resultou. Conseguiram. Agora vão pô-la a dormir porque, senão, podia vomitar. Assim que o enfermeiro-chefe prepara a injeção do sedativo, o outro dá um grito estridente. In-hye liberta-se da mão do enfermeiro que a detinha e entra de rompante no quarto. – Saiam, todos! Afastem-se dela! – In-hye agarra o ombro do médico de Yeong-hye, que está debruçado sobre a cama, e puxa-o para trás. Olha para a irmã. O enfermeiro que estava a segurar o tubo tem o rosto salpicado de sangue,
sangue que está a jorrar pelo tubo e vem da boca de Yeong-hye. O internista dá um passo atrás, ainda com a seringa na mão. – Tirem isso. Tirem o tubo, depressa! – In-hye não se apercebe do grito histérico que sai da sua boca, quando o enfermeiro tenta de novo agarrá-la. Entretanto, o médico da irmã está a ter dificuldade em tirar o longo tubo, pois a doente não para de mexer a cabeça. – Calma, calma. Calma! – grita ele para Yeong-hye. – O sedativo! – O enfermeiro tenta passar-lhe a seringa. – Não! – grita In-hye, num tom que mais parece um gemido. – Parem! Não!
Por favor! – Dá uma dentada no braço do enfermeiro que está a segurá-la e atira-se de novo para a frente. – Mas que merda é esta, sua cabra! – queixa-se o enfermeiro. In-hye segura Yeong-hye nos seus braços, ensopando a blusa com o sangue que a irmã está a vomitar. – Parem, por amor de Deus! Parem… – In-hye agarra o pulso do enfermeiro-chefe, que tem na mão a seringa com o sedativo, ao mesmo tempo que Yeong-hye continua a contorcer-se em silêncio contra o seu peito. A bata branca do médico está toda manchada com o sangue de Yeong-hye,
incluindo as mangas arregaçadas. In-hye olha com uma expressão vazia para o padrão das manchas. Uma galáxia rodopiante de estrelas de sangue. – Temos de transferir imediatamente a sua irmão para o hospital central. Por favor, volte para Seul. Vão ter de lhe dar uma injeção de proteínas numa das carótidas para estancar a hemorragia gástrica. O efeito não será muito prolongado, mas é a única coisa a fazer se a quiser manter viva. In-hye pega na carta a solicitar o internamento de Yeong-hye no hospital central que acabou de ser escrita, guarda-a na mala e sai da sala de enfermagem. Dirige-se à casa de banho
e consegue entrar num dos cubículos antes de as suas pernas cederem e cair de joelhos à frente da sanita. Começa a vomitar. Chá com leite misturado com bílis amarela. – Idiota! – Os seus lábios trémulos não param de repetir a palavra, enquanto lava a cara à frente do espelho. – Idiota! É o teu corpo, podes tratá-lo como quiseres. É a única coisa em que és livre de fazeres o que quiseres. E nem sequer nisso te dão liberdade. Quando levanta a cabeça, o rosto que vê refletido no espelho está encharcado. Olhos dos quais nos seus sonhos jorrou tanto sangue. Olhos dos quais o sangue sempre se recusou a sair,
por mais que os esfregasse com as mãos. Mas a cara da mulher ao espelho não está a chorar, pelo menos agora. Está apenas a olhar para ela, sem dizer nada, sem deixar transparecer o mais ténue vestígio de emoção. O grito pungente que há pouco lhe rasgou os ouvidos foi tão cru, tão cheio de angústia, que lhe custa acreditar que tenha saído dela. Cambaleia pelo corredor, como se estivesse embriagada. Tentando desesperadamente equilibrar-se, consegue chegar ao átrio. O sol começou a entrar pela janela, iluminando aquele espaço lúgubre. Há muito tempo que Inhye não via tanta luz. Alguns dos doentes são sensíveis à claridade e ficam
agitados. Enquanto todos os outros se encaminham para a janela, numa tagarelice excitadíssima, uma mulher vestida com roupas descontraídas aproxima-se de In-hye. Ela semicerra os olhos, ainda meio ofuscada, esforçandose por descobrir o rosto que lhe fala. É Hee-joo. A parte branca dos seus olhos está vermelha; se calhar, esteve outra vez a chorar. Terá sentido viver as coisas sempre com tanta veemência? Ou é por ser uma doente daquele hospital, uma doente emocionalmente instável? – Como está a Yeong-hye? Se se for embora agora… In-hye segura a mão da mulher. – Estou-lhe muito grata. – Fica
admirada com o próprio impulso de pôr os braços sobre os ombros largos daquela mulher a chorar. Mas acaba por não ceder ao seu ímpeto. Volta-se e olha para os doentes que estão a espreitar ansiosamente pela janela. Podem estar nervosos, no entanto estão igualmente decididos, fascinados, como se quisessem atravessar o vidro e descobrir que estavam do lado de fora. Estão aqui presos, pensa In-hye. Tal como esta mulher, Hee-joo. Tal como Yeong-hye. A sua incapacidade de abraçar aquela doente é agravada pela culpa que está a sentir por ter encarcerado a irmã naquele sítio. Ouve-se o barulho de gente a
caminhar depressa, vinda do corredor. Pouco depois, aparecem dois maqueiros, com passos curtos e apressados. Trazem Yeong-hye numa maca. Agora, já com o sangue limpo e os olhos fechados, o rosto dela parece o de um bebé a dormir a sesta depois do banho. Hee-joo estende o braço para agarrar a mão inerte de Yeong-hye entre as suas palmas rugosas, e In-hye volta a cabeça para não ter de assistir. Os bosques deslizam densos e luxuriantes pelo para-brisas da ambulância. Sob a luz esmorecida do fim da tarde, a chuva brilha intensamente nas folhas, como acendalhas verdes. In-hye passa as mãos pelo cabelo de
Yeong-hye, ainda um pouco molhado por lhe terem estado a lavar o sangue, e prende-lho atrás das orelhas. Lembra-se de esfregar com sabonete, uma a uma, as vértebras salientes da irmã quando, em crianças, tomavam banho juntas, nas noites em que lhe lavava as costas e o cabelo. De repente, o cabelo de Yeong-hye faz-lhe lembrar o de Ji-woo, quando ainda usava fraldas, e sente os dedos pequeninos do filho a tatearem-lhe as sobrancelhas. É invadida por uma solidão inenarrável. Tira o telemóvel da mala. Esteve todo o dia desligado. Liga-o e marca o número da mulher que vive no
apartamento ao lado do seu. – Olá, sou a mãe do Ji-woo… Tive de vir ao hospital por causa de um familiar… Sim, uma coisa repentina… Não, o autocarro para junto ao portão às cinco e cinquenta… Sim, chega quase sempre a horas… Não vou demorar-me muito. Se me atrasar, terei de ir buscar o Ji-woo à escola e voltar para o hospital. Ele pode dormir aí?… Obrigada, muito obrigada… Tem o meu número, não tem?… Eu volto a ligar mais logo. Desliga e apercebe-se de há quanto tempo não deixa Ji-woo ao cuidado de outra pessoa. Depois de o marido se ter ido embora, tornou-se uma questão de princípio passar sempre as noites e os
fins de semana com o filho. Franze a testa. Sente-se sonolenta e encosta a cabeça à janela. Fecha os olhos e pensa. Em breve, Ji-woo será crescido. Saberá ler sozinho e ver as pessoas pelos seus próprios olhos. De uma maneira ou de outra, acabará inevitavelmente por saber o que aconteceu, e como conseguirá ela explicar-lho? É uma criança sensível, que adoece facilmente, mas é também um rapazinnho feliz. Como conseguirá ela que continue assim? Relembra a imagem dos dois corpos nus, entrelaçados como lianas numa floresta. Claro que, na altura, ficou
chocada, mas, por estranho que pareça, à medida que o tempo ia passando, cada vez pensava menos naquilo como um ato sexual. Cobertos de flores e folhas e pedúnculos verdes, aqueles corpos estavam tão alterados que já não pareciam de pessoas. Os seus movimentos sinuosos davam a ideia de que estavam a tentar libertar-se de tudo o que fosse humano. O que o teria levado a querer filmar tal coisa? Teria ele apostado tudo o que havia em si naquelas imagens estranhas e abandonadas – apostara e perdera tudo? – Havia uma fotografia tua, mamã, a voar com o vento. Estava a olhar para o céu e havia lá um pássaro, e eu ouvia-o
dizer, «É a tua mãe». E depois saíram duas mãos do corpo do pássaro. Foi há muito tempo, quando a língua de Ji-woo ainda tropeçava em certas palavras. Lembra-se de que a tristeza indefinida de uma criança à beira das lágrimas a tinha surpreendido. – O que é isso? Estás a dizer que foi um sonho triste? – Ainda deitado, Jiwoo tinha esfregado os olhos com os seus punhos pequeninos. – Como era esse pássaro? De que cor era? – Branco… sim, e era bonito. – Sugando o ar a tremer, o menino enterrara a cabeça no peito da mãe. Os seus soluços deixaram-na angustiada, como também acontecia de cada vez que
ele se esforçava ao máximo por fazê-la rir. Não havia no filho nenhuma necessidade que ela pudesse satisfazer, nem sequer estava a tentar pedir ajuda. Chorava, pura e simplesmente, e porque estava triste. – Isso devia querer dizer que era um pássaro-mamã – disse ela, tentando acalmá-lo. Ji-woo abanou a cabeça, ainda encostada ao peito dela. In-hye pôs-lhe a mão debaixo do queixo e levantou-lhe a cabeça. – Olha, a mamã está aqui. Não me transformei num pássaro branco, vês? – Os lábios dele esboçaram um sorriso ténue e incerto. Tinha o nariz a luzir como o de um cachorrinho. – Vês? Foi só um sonho.
Mas seria realmente verdade? Naquele momento, na ambulância, não tinha a certeza. Teria sido apenas um sonho, uma mera coincidência? Porque fora nessa manhã que virara costas ao sol, enquanto ele se erguia sobre as árvores silenciosas, e percorrera aquele mesmo caminho pela montanha abaixo, com a T-shirt roxa e desbotada vestida. Foi só um sonho. É o que repete para si própria, em voz alta e veementemente, sempre que se lembra da forma como o filho olhou para ela naquele dia. Desta vez, assustase com a própria voz, abre muito os olhos e olha confusamente à sua volta. A ambulância segue a toda a velocidade
pela estrada íngreme. Alisa o cabelo, sabe que tem de o arranjar, sabe que provavelmente está num estado lastimoso. A sua mão treme de forma visível. Não é capaz de explicar, nem a si própria, a facilidade com que então decidira abandonar o filho. Fora um crime cruel e irresponsável, nunca se convenceria do contrário; e também fora algo que jamais seria capaz de confessar e que nunca lhe seria perdoado. A verdade é que fora uma coisa que sentira, simplesmente sentira, com uma nitidez hedionda. Se o marido e Yeonghye não tinham sido esmagados depois de passarem todos os limites, se tudo
não se tinha estilhaçado, então talvez tivesse sido ela quem se havia deixado derrubar e, se tinha permitido que isso acontecesse, se tinha largado o fio, talvez nunca mais conseguisse reencontrá-lo. Se assim fosse, o sangue que Yeong-hye vomitara hoje não teria saído antes de dentro si, do seu próprio peito? Com um gemido, Yeong-hye tenta recuperar os sentidos. Com medo de que ela volte a vomitar, In-hye procura uma toalha e põe-na à frente da boca da irmã. – Mmm…. Mmm… Yeong-hye não vomita. Em vez disso, abre os olhos. As suas pupilas negras fixam-se em In-hye. O que estará
a agitar-se por detrás daqueles olhos? O que guardará dentro de si, que escapa ao alcance da imaginação da irmã? Que terror, que raiva, que sofrimento, que inferno? – Yeong-hye? – chama In-hye. A sua voz está completamente desprovida de emoção. – Mmm… – Yeong-hye vira a cabeça, como se quisesse fugir à pergunta da irmã, como se a última coisa que desejasse naquele momento fosse dar-lhe qualquer tipo de resposta. In-hye estende a mão a tremer e, depois, quase imediatamente, deixa-a cair. Cerra os lábios. De repente, está a rever tudo; o caminho da montanha que
percorreu sozinha, ainda de madrugada. O orvalho que lhe molhou as sandálias e que, se fosse descalça, lhe teria gelado os pés. Não tinha havido lágrimas, nada disso, porque na altura ela ainda não percebera. Ainda agora não percebia o que aquela humidade fria tinha tentado dizer-lhe ao inundar-lhe o corpo exangue e espalhar-se pelas suas veias secas. Atravessara simplesmente a sua carne até chegar-lhe aos ossos. Nesse momento, abre a boca. – O que estou a tentar dizer… – sussurra a Yeong-hye. O chassis da ambulância guincha ao passar por um buraco na estrada. In-hye aperta os ombros da irmã. – Talvez tenha sido
tudo uma espécie de sonho. – Curva a cabeça. Mas, nesse momento, como se algo a tivesse atingido de repente, encosta a boca ao ouvido de Yeong-hye e continua a falar, formando cuidadosamente as palavras, uma a uma. – Sabes, eu também tenho sonhos. Sonhos… e também podia deixar-me dissolver neles, deixar que eles tomassem conta de mim… Mas tenho a certeza de que há mais coisas além dos sonhos. A certa altura, temos de acordar, não é? Porque… porque então… Volta a levantar a cabeça. A ambulância está a descrever a última curva da estrada antes de deixar o Monte Ch’ukseong. In-hye vê uma ave
negra a voar em direção às nuvens carregadas. A luz do verão ofusca-lhe os olhos, pica, e o seu olhar não consegue seguir o voo da ave. Inspira calmamente. As árvores que ladeiam a estrada estão a arder, num fogo verde ondulante, como os flancos de um animal enorme, violento e selvagem. In-hye olha ferozmente para as árvores. Como se estivesse à espera de uma resposta. Como se estivesse a protestar contra qualquer coisa. O seu olhar é sombrio e insistente.