Volume 02 - 23

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23 VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO

_____________________________ 23.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME Para conferir efetividade ao preceito constitucional, o Código Penal construiu, no art. 150, sob o equivocado nomem iuris “violação de domicílio”, o seguinte tipo: “entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”. A pena cominada é detenção, de um a três meses, ou multa. O bem jurídico protegido é a casa e suas dependências. Não é o domicílio, como consta da rubrica do art. 150. Não é a propriedade, nem a posse do imóvel, mas a casa, enquanto lar do ser humano, pouco importando sua estrutura física, sua imponência ou humildade, tamanho ou localização e outras características secundárias. É a moradia onde o ser humano vive e tem o direito de continuar em paz e harmonia, gozando de paz e tranqüilidade. Sujeito ativo do crime é qualquer pessoa. Sujeito passivo é o morador – o homem, a mulher, os filhos e parentes que habitam a casa –, aquele que tem o direito de se opor à entrada ou à permanência de outrem. O tipo utiliza a expressão “quem de direito” para definir o sujeito passivo. Assim, todos que habitam a casa podem opor-se a quaisquer estranhos, mas não o podem uns em relação aos outros habitantes. Até a empregada doméstica, na ausência dos membros da família, será também sujeito passivo quando se opuser à entrada ou permanência de terceira pessoa, todavia não tem ela o direito de admitir a entrada de seu namorado em dependências da casa, salvo quando autorizada por seus empregadores.

2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

23.2 TIPICIDADE O caput do art. 150 descreve duas figuras típicas fundamentais, o § 1º contém quatro formas qualificadas e o § 2º uma causa de aumento de pena.

23.2.1

Conduta

A primeira conduta típica é representada pelo verbo entrar. A segunda pelo verbo permanecer. Aquela é, necessariamente, conduta positiva, comissiva. Significa ingressar, penetrando em seu interior. Na segunda forma típica o sujeito ativo já se encontra no interior da casa, onde terá entrado legitimamente e aí, devendo sair, não o faz, omitindo-se do comportamento exigido e violando o preceito.

23.2.2

Elementos objetivos e normativos

A entrada ou o ingresso no interior da casa ou de suas dependências pode ser com o emprego de ameaça ou de forma astuciosa ou clandestina. Diz-se franca a entrada por meio de ameaça, mas não se exige, necessariamente, o emprego de força física contra a pessoa do morador, bastando que o agente ingresse na casa, sem qualquer desforço físico a não ser os próprios movimentos deambulatórios. Clandestina é a entrada às escondidas, sem que ninguém a perceba. Astuciosa a realizada por meio de fraude, quando, por exemplo, o agente entra disfarçado, aparentando ser pessoa autorizada a ingressar na casa, com o uniforme ou crachá de identificação de funcionário da empresa encarregada de reparos na linha telefônica. A permanência ilícita na casa ocorre quando o agente, tendo nela ingressado com o consentimento do morador, é por este instado a deixá-la mas resiste, de forma ameaçadora, clandestina ou astuciosa. Indispensável, para a caracterização do crime, a contrariedade de quem de direito, o sujeito passivo. Sem o seu dissentimento não há crime. Esse dissenso pode ser expresso, tácito ou presumido. Expresso quando o morador exterioriza sua contrariedade com a entrada ou permanência do agente em sua casa. Tácito é o dissentimento que decorre das circunstâncias que cercam o fato. Desnecessário

Violação de Domicílio - 3 que o morador expresse sua contrariedade com o ingresso de inimigo figadal em sua casa. Do mesmo modo, não é necessário que o dono da casa determine a retirada do convidado que agrediu sua filha, na festa para a qual fora convidado. Presume-se a contrariedade do morador nas hipóteses de entrada ou permanência clandestinas ou astuciosas. Nesses casos a própria conduta do agente revela a ausência do consentimento que, se existisse, não o levaria a esconder-se ou agir por meio de fraude. Casa é o espaço físico delimitado sobre um bem imóvel ou móvel, edificado ou construído com a utilização de paredes ou obstáculos materiais e cobertura, artificiais ou naturais, de qualquer material ou tamanho, com ou sem divisões internas, configurando um compartimento, dentro do qual vive uma ou mais pessoas. Os §§ 4º e 5º do art. 150 contêm normas explicativas acerca do conceito legal de casa, para os fins da incriminação. O conceito de casa inclui “qualquer compartimento habitado”, o “aposento ocupado de habitação coletiva” e também “o compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade”. É casa, portanto, o barraco construído sob um viaduto, cercado por restos de embalagens de papelão ou de madeira, onde mora o ser humano. É casa também a choça de pau-a-pique, coberta de palhas de coqueiro. A barraca de lona. Casa também é a carcaça do automóvel abandonado, aproveitada pelo homem como o lugar onde vive. A idéia de casa está, portanto, ligada à condição de lugar de habitação, é a moradia do homem. As dependências abertas ao público – salas de espera – do escritório do advogado, do empresário, enfim, de qualquer profissional ou do consultório médico ou odontológico não se abrigam sob a proteção da norma, mas as dependências internas desses estabelecimentos incluem-se no conceito de casa. Não se consideram casa as hospedarias, hotéis, pensões, albergues e quaisquer tipos de habitações coletivas, salvo seus aposentos ocupados, quartos e apartamentos. Também estão fora do alcance da norma os bares, restaurantes, casas de jogo, tavernas, boates e outros estabelecimentos congêneres.

23.2.3 Elementos subjetivos O crime é doloso. O dolo é a vontade de realizar o tipo em toda sua integridade. O agente deve ter consciência da conduta e também da contrariedade do morador e vontade

4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles livre de entrar ou permanecer na casa. Se o agente não tem consciência de que o morador se opõe a seu ingresso ou permanência não há fato típico, porquanto aí não terá agido com a intenção de realizar o tipo.

23.2.4 Consumação e tentativa É crime de mera conduta. Consuma-se com a efetiva entrada do agente na casa ou em suas dependências, ou seja, quando o corpo do agente se acha por inteiro em seu interior. Na figura típica da permanência, para que se possa considerar o crime consumado é necessário que transcorra um tempo razoável, uma vez que a simples intenção de permanecer ou a hesitação em atender à vontade do morador constitui apenas o início da execução do procedimento típico. É preciso que se consolide, no tempo, a recusa em retirar-se da casa, consumando-se então o delito. A tentativa é possível, nas duas formas típicas. Iniciando o ingresso, mas sendo barrado pelo morador ou outra pessoa ou recusando-se a sair da casa, mas dela sendo retirado, responderá o agente tão-somente pela tentativa. A segunda figura típica constitui crime permanente, protraindo-se sua consumação enquanto o agente não deixar o interior da casa ou de sua dependência.

23.2.5 Formas qualificadas No § 2º do art. 150 estão descritas circunstâncias qualificadoras do crime. A primeira delas é se o crime é cometido durante a noite, que deve ser entendida como o período compreendido entre o pôr e o nascer do sol, ou seja, quando há escuridão. Não se confunde a noite com o repouso noturno, que é uma causa de aumento de pena do crime de furto. O conceito de noite é mais amplo que o de repouso noturno. Vai do crepúsculo ao amanhecer. Violação de casa situada em lugar ermo é também qualificadora. Ermo é o lugar isolado, pouco habitado, no qual há poucas casas, umas distantes das outras. O emprego de violência contra pessoa, coisa ou partes da casa também é circunstância que qualifica o crime. Nesta hipótese, o agente responderá em concurso material por dois crimes, o do art. 150 e o de lesões corporais ou o de dano praticado.

Violação de Domicílio - 5 Por fim é qualificado o crime cometido com o emprego de arma ou por duas ou mais pessoas. A arma deve ser efetivamente utilizada e não simplesmente portada, ainda que ostensivamente. Nesses casos, a pena será de detenção de seis meses a dois anos, além da pena relativa à violência empregada.

23.2.6 Aumento de pena A pena será aumentada de um terço se o agente do crime é funcionário público que ingresse ou permaneça na casa, exceto quando o faz sob o pálio de uma das excludentes de ilicitude previstas no § 3º ou quando, a princípio por elas amparado, deixa ele, entretanto, de observar as formalidades legais previstas para o ingresso em casa alheia ou age com abuso de poder. Esse tema será objeto de comentários quando da abordagem das excludentes de ilicitude, adiante.

23.2.7 Conflito aparente de normas A violação de domicílio é crime-meio para a realização do furto realizado numa casa, logo, por este será absorvida. Também o será quando o agente entra na casa para, nela, cometer roubo, estupro, atentado violento ao pudor, homicídio, extorsão mediante seqüestro, extorsão etc. Só haverá absorção se o crime-fim for de maior gravidade que a violação do domicílio. Caso contrário, haverá concurso material de crimes.

23.3 ILICITUDE A própria norma constitucional protetora da casa permite, em casos excepcionais, sua violação: “em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. O § 3º do art. 150, menos amplo, dispõe: “Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências: I – durante o dia, com observância das formalidades legais, para

6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles efetuar prisão ou outra diligência; II – a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser.” Há diferenças entre o preceito constitucional e os dispositivos do Código Penal, cabendo, com prevalência da norma maior, interpretá-los harmoniosamente.

23.3.1

Violação de domicílio por determinação judicial

O funcionário público pode entrar ou permanecer na casa, sem o consentimento do morador, por ordem fundamentada da autoridade judiciária competente, desde que observe, rigorosa e estritamente, as formalidades legais previstas no Código de Processo Penal para o cumprimento de diligências (arts. 240 e seguintes), inclusive para efetuar prisão (arts. 282 e seguintes). Só poderá fazê-lo, porém, durante o dia, ou seja, após o nascer e antes do pôr-do-sol. Será lícita a violação se presentes todos os seus requisitos: (a) durante o dia; (b) munido de ordem judicial fundamentada, de prisão, busca e apreensão, penhora etc.; (c) com observância das formalidades legais, contidas no Código de Processo Penal. Antes da Constituição Federal de 1988 admitia-se a licitude da violação da casa para a realização de diligências a cargo de autoridades policiais, fiscais e administrativas. De então para cá, nenhuma violação pode ser feita sem determinação judicial. O funcionário público que realizar diligência violando a casa, sem autorização judicial ou sem observar, rigorosamente, as formalidades legais ou, ainda, com abuso de poder, responderá pelo crime, com pena aumentada de um terço (§ 2º). As formalidades processuais são essenciais para a validade da diligência, que será nula caso não sejam observadas.

23.3.2

Violação de domicílio para efetuar prisão em flagrante

O preceito constitucional permite a violação nos casos de flagrante delito. A norma do art. 150, § 3º, II, refere-se a “quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser”. Quando um crime está sendo praticado, há flagrante, logo, nesse ponto, há harmonia entre as duas normas. Quanto à iminência da prática de crime, contudo, não há convergência, porque não há flagrância de crime futuro. Nesses casos, todavia, pode ser excluída a ilicitude do

Violação de Domicílio - 7 fato pela incidência de uma das causas gerais de justificação, a legítima defesa ou o estado de necessidade, comentadas no item seguinte. Penso que a norma constitucional referiu-se apenas ao flagrante no sentido estrito, ou seja, autoriza a entrada na casa apenas quando um crime estiver sendo ali praticado ou quando tenha acabado de acontecer. Não, portanto, nas hipóteses dos incisos III e IV do Código de Processo Penal, quando alguém é perseguido, logo após, em situação que faça presumir ser o autor do crime, ou é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser autor do delito. Como se vê, trata-se de situações de flagrante presumido, e o preceito constitucional referiu-se exclusivamente ao flagrante. Na hipótese, a violação pode dar-se a qualquer hora do dia ou da noite. O funcionário público estará no estrito cumprimento de seu dever legal e o particular no exercício regular de direito.

23.3.3

Violação de domicílio em legítima defesa ou em estado de

necessidade Nos casos de desastre, acidentes, incêndios, desabamentos, enfim, de perigo para um bem jurídico, vida, integridade corporal ou mesmo bens patrimoniais, pode o agente, para salvá-lo, entrar ou permanecer em casa alheia mesmo sem o consentimento do morador. Claro, deve realizar todos os pressupostos do estado de necessidade. A qualquer hora do dia ou da noite. Estando algum crime na iminência de ocorrer, havendo, portanto, uma agressão injusta iminente, ou mesmo atual, pode alguém, para repelir a agressão, se necessário, entrar ou permanecer na casa alheia, e estará amparado pela excludente da legítima defesa.

23.4 CULPABILIDADE A culpabilidade será excluída quando o agente atuar em erro de proibição. O erro que recair sobre o dissentimento da vítima, que é elementar do tipo, já se disse, é erro de tipo, excluindo a própria tipicidade do fato. Aqui se trata de erro que incide sobre a existência de excludente de ilicitude ou sobre seus pressupostos ou seus limites. Pode haver estado de necessidade e legítima defesa putativos, bem assim pode o agente errar sobre a existência

8 – Direito Penal II – Ney Moura Teles de estado de flagrância em casa alheia, ficando isento de pena.

23.5 AÇÃO PENAL A ação penal é de iniciativa pública incondicionada. Na forma típica simples, ainda que com o aumento de pena, a competência é do juizado especial criminal, podendo também ser concedida a suspensão condicional do processo penal, conforme prevê o art. 89 da Lei nº 9.099/95.

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