Venancio-vigo-07 09

  • Uploaded by: António Luís Catarino
  • 0
  • 0
  • May 2020
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Venancio-vigo-07 09 as PDF for free.

More details

  • Words: 1,355
  • Pages: 7
A edição literária galega em Portugal Fernando Venâncio Universidade de Amsterdam

1. A literatura galega transmite ao exterior uma imagem da Galiza. Isto é menos primário do que possa parecer. Com efeito, podemos ser críticos quanto a essa imagem. E podemos, o que é mais, ajustá-la, amoldá-la, obter dela um maior proveito. Tem todo o sentido ser crítico da imagem da Galiza transmitida pela literatura. Isso pode implicar, por exemplo, não embarcar em qualquer sugestão vinda do fora. Imaginemos um exterior que alimenta da Galiza uma visão de país rural. Esse exterior tenderá a desejar editar obras galegas que confirmem essa visão. Acontece que essa pode não ser a imagem que mais convém os galegos darem. Não porque não exista uma componente rural da Galiza, mas porque a Galiza, sendo isso, é muito mais, e importa não ajudar a manter estereótipos. Ao dizer isto, estou a pensar muito concretamente na edição portuguesa de literatura galega. Um leitor português, que é sobretudo um citadino dos grandes centros, tenderá a projectar pela Galiza adentro o seu

1

próprio Norte: rural, minifundiário, conservador, parado no tempo. Esta imagem caseira é já, ela própria, estereotipada. Mas isso só torna a sua imagem da Galiza ainda mais desajustada. Neste

sentido,

um

romance

estruturalmente

cosmopolita como Papaventos, de Xavier Queipo (editado pela Deriva, do Porto, como Bebendo o mar), pode operar maravilhas. O protagonista é um tradutor galego, mas a acção passa-se quase toda em cenário californiano. Isto desarticula, duma só vez, o cliché ruralizante. Evidentemente: isto não é razão para privar o leitor português de ficção galega de qualidade com temática rural. É óptimo que ele possa ler Arraianos, de Méndez Ferrín (saído na lisboeta Editorial Notícias), romance duma crise religiosa e moral. É excelente, também, que leia Meniña de cristal, de Iria Lopez Teijeiro (editado na portuense Campo das Letras), que descreve o embate duma jovem urbana com os inesperados conflitos que a paz provinciana escondia.

2. Falámos da necessidade de caracterizar adequadamente a Galiza. Relacionada com essa, surge uma outra necessidade: a de individuar a Galiza como país. Também aqui o português se revela paradigmático. Para um português médio, mesmo culto, a Galiza é uma região

2

de Espanha, e pronto. Algum mais informado saberá que há uma proximidade cultural com o Norte português, ou que lá se fala algo aparentado ao nosso idioma, algo que mais ou menos miraculosamente se entende. Tudo quanto, na escola, os portugueses aprendem é que a Galiza foi aquele território de que Portugal se separou para começar a existir. Falta simplesmente informação adequada sobre a Galiza: a sua geografia, a sua história, a sua cultura, o seu idioma. Tudo isso é lamentável, mas é a triste verdade. Ao mesmo tempo, e por todos os motivos pensáveis, Portugal é aquele território onde a Galiza mais possibilidades terá de ser compreendida. Nada lhe está mais próximo que esse país a Sul. Existem, portanto, razões para se investir num quadro de referências galegas ao serviço dos portugueses, numa teia informativa que faça a Galiza entrar, e ficar, no imaginário deles. Isso implicaria apostar, em força, na divulgação: ensaio histórico, ensaio político, temáticas culturais. Importaria igualmente acompanhar a edição portuguesa de ficção e não-ficção galega de contactos com

jornalistas,

críticos

e

outros

divulgadores.

Absolutamente fundamental é valorizar as edições, sobretudo de ficção, com textos (uma introdução ou um posfácio) que forneça um contexto e provoque a curiosidade. Aqui, também os editores portugueses têm falhado, ao praticamente abandonarem as obras à sua sorte.

3

3. A contiguidade linguística, verdadeiramente única, de galego e português coloca particulares exigências. São conhecidos os conseguimentos e os falhanços que a proximidade de português e castelhano origina. Pois bem,

as

exigências

são,

no

nosso

caso,

incomparavelmente maiores. Podemos enunciar a questão pelo lado dos procedimentos ou pelo dos resultados. Comecemos pelos resultados. Temos versões portuguesas de literatura galega simplesmente magníficas. É o caso das versões de Pedro Tamen,

que

também

traduz

admiravelmente

do

castelhano e do francês. Isto significa que a fórmula da ‘tradução’ funciona perfeitamente entre galego e português.

Mas

para

tal

é

necessário

absoluto

conhecimento do léxico exclusivo do galego, a perfeita compreensão

das

descoincidências

semânticas

e

pragmáticas entre galego e português e – paradoxalmente – também o perfeito entendimento desse outro idioma que nos acompanha a todos como uma sombra, às vezes benigna, outras nem tanto: o castelhano. E isto leva-nos ao terreno dos procedimentos. Num estudo que fiz para o nr. 13 da revista Viceversa da Universidade de Vigo, mostrei quanto a falta de qualidade de certas traduções nossas de literatura galega ficou a dever-se à pouca agilidade no contacto com o

4

castelhano,

que



é

sabido



vai

penetrando

crescentemente a expressão dos galegos. Mas esta é só uma face da medalha. Porque a outra face, também ela uma perplexidade, é que todas as especificidades lexicais galegas, quando vertidas para português, acabam em outras tantas coincidências lexicais com o castelhano. Isto é: vertido para português, mesmo por mãos hábeis, o galego dissolve-se no grande magma ibérico. Recuso-me a considerar isto uma fatalidade. Primeiro,

porque

poderia

desejar-se

no

tradutor

português uma particular sensibilidade ao léxico galego exclusivo, tentando vertê-lo seja por exclusividades portuguesas, seja – e melhor ainda – por um vocabulário exclusivo de galego e português. Isto são altas exigências, mas valham elas como estímulo. Mas há um segundo procedimento. Ele baseia-se na convicção de que não é líquido que o leitor português deva ser impedido do contacto com a especificidade galega. Proponho que, neste particular, se realize alguma experimentação, que pode tomar várias formas. Uma é a manutenção de elementos não essenciais, quando esclarecidos, pouco que seja, pelo contexto. Outra forma é a manutenção de alguns elementos mais importantes e recorrentes, com a inserção dum mecanismo elucidativo, como um glossário final.

4.

5

Em 2006, colaborei numa experiência. Comecei por sugerir à directora de Ficções, uma “revista de contos” da editorial Caminho, de Lisboa, a inclusão duma extraordinária narrativa de Xosé Martínez Oca. O tema era português (a acção decorre em Braga, com um mendigo que se diz rei angolano) e eu predispunha-me a passar o texto a português, quando Luísa Costa Gomes, a directora, me comunicou uma decisão: “Vai publicar-se tal e qual, em galego”. E assim foi. Só juntei um glossário de vinte vocábulos, uma média de três por página. O caso não provocou alvoroços, é verdade. Mas também ninguém se mostrou estranhado, menos ainda incomodado. Não se tratava, sequer, duma estreia. Várias outras

revistas

portuguesas

publicaram,

em

anos

recentes, ensaio em galego. Entre elas, duas não especializadas, o Jornal de Letras e a Página da Educação. Isto leva-me a avançar mais uma sugestão, que é a derradeira: a de divulgar em Portugal ficção galega sem o intermédio da tradução para português, começando por textos curtos para público seleccionado. A recepção deles seria acompanhada, avaliada. Daí se tirariam conclusões.

5. Portugal e os países de língua portuguesa, sobretudo o imenso Brasil, são um mercado “natural” para a cultura

6

galega. Temo-lo observado nas artes de palco e na música. A proximidade que aí se estabelece – nisso todos concordam – é fácil e é única. No espaço da leitura, essa proximidade terá exigido um esforço suplementar. Esse é o trabalho do editor no país de chegada, mas igualmente o fruto de toda a sorte de estímulos que devem partir tanto desse país como da Galiza. Eles vão tornar possível que a Galiza fale à imaginação do leitor português, que ele adquira referências culturais espontâneas: nomes, lugares, alguns títulos, algumas datas. Felizmente não necessitamos de partir do nada. Existe uma História da Galiza, de Ramón Villares, surgida em inícios dos anos 90, que mereceria ser actualizada e reeditada. Existe, aparecido em 2006, Dois lados de um rio, obra extensa do antropólogo António Medeiros, sobre expressões nacionalistas a norte e a sul do Minho, que haveria todo o interesse em divulgar, eventualmente em versão para um alargado público. Importa uma actuação coordenada de editores galegos e portugueses – e também brasileiros. Ela dará sequência ao trabalho que, em Portugal, as editoras Deriva e Dom Quixote vêm já realizando com empenho, esmero e algum êxito.

7

Related Documents

09 09
May 2020 36
09
April 2020 20

More Documents from ""