Um Ponto Zero

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Um Ponto Zero “Faster than the speed of sound Faster than we thought we’d go Beneath the sound of hope” The Smashing Pumpkins Manhã. Enquanto o comentador de televisão assegura que o puto está morto de certeza, Son Goku sente a energia de seu filho e calmamente, avisa que ele é capaz de muito mais do que parece. Son Gohan levanta-se como se nada fosse e de novo se prepara para atacar Cell. “Esta criança é espantosa”, comenta a assistência. Son Gohan brilha de energia, atingiu um nível novo nas suas possibilidades. Desligo a televisão. O ciberespaço é adolescente. Passaram 14 anos desde que William Gibson1 pela primeira vez deu uso ao termo, síntese pop de conceitos e ideias que, em plena década de 80, nasciam no universo marginal da ficção científica. Qualquer pessoa nascida nessa década deixará de ser adolescente – pelo menos teenager –, no máximo, na viragem do milénio e é dessa geração que trata este texto, porque, aparentemente, essa geração corre o risco de se tornar no principal conteúdo de um mundo em rede. Digo risco porque não tenho a certeza que os próprios tenham consciência daquilo em que as duas últimas décadas deste milénio os mergulharam. Digo risco igualmente porque não tenho a certeza das consequências e arriscaria dizer que as causas se dispersam demais pelos anos deste século agitado para serem identificadas com a precisão que se exigiria, mas escapa a este texto. Atrevo-me contudo a ir mais longe, desde já, e a dizer que essa geração é sem dúvida a mais bem preparada para enfrentar o presente e, consequentemente, o futuro. Ao que acresce que o risco vem mais da violência que preside a qualquer momento de revolução, como é este que atravessamos, e da capacidade dessa geração para lidar com essa violência. Mas já lá vamos. A ideia de que os mais velhos deteriam mais conhecimento, por o terem acumulado, ideia que presidiu a este milénio como, receio bem, ao anterior, sofreu a 1

Leia-se evidentemente Neuromancer, obra fundamental de 1984

erosão da democratização das tecnologias da informação, comunicação e conhecimento. O perpetuar do saber por via de suportes tecnológicos, começando, evidentemente, pelas paredes das cavernas, e a democratização do acesso a eles, de há uns duzentos anos para cá, modificou e generalizou o número de discursos possíveis, lançando as bases de uma revolução que hoje atinge, de alguma forma, o seu clímax, naquilo a que se chamou a Sociedade da Informação. Para além de todas as discussões eruditas possíveis sobre o significado dos discursos sobre o real e as possíveis relações desses discursos com o próprio real, para além da qualidade desses discursos, o final do milénio trouxe, mais do que tudo, uma explosão no número de discursos possíveis e, chegados ao século XX, o nosso tempo parece cada vez mais curto perante a profusão da camada mediatizada de realidade (?) que nos rodeia, os conteúdos. A palavra media parece mesmo ter perdido a sua conotação de espelho ou janela sobre o real para se constituir como um mundo auto-inventado, mais do que um universo paralelo, um multiverso permanente. No século XX, o fenómeno talvez mais importante, pelo menos nas sociedades do hemisfério norte – e de exclusão se falará adiante –, foi a generalização de formas diversas de educação e cultura, criando gerações muito mais novas com um domínio completamente inesperado das tecnologias e linguagens circundantes. O século XX é o século do cinema, da banda desenhada, da televisão, dos jogos individualizados e já não comunitários, dos desenhos animados, além, é claro, da cultura pop, da música à televisão, às mais variadas formas de imprensa especializada e generalista. E todos estes produtos se dirigiram ou dirigem, num momento ou noutro, de uma forma ou de outra, a um público mais jovem, apostando, não numa qualquer sensatez ou conhecimento acumulado trazido pelos anos, mas na imediatez e na capacidade intuitiva para lidar com estas mensagens que vem do banho permanente numa sociedade em sobre-informação. A sobre-informação não é uma coisa má, é uma coisa boa. E daqui vem a primeira força desta geração que terá 20 anos no ano 2000. O seu tempo é muito mais largo, amplo, que o tradicional tempo estreito da escrita, do conhecimento linear. Explique-se. Laurie Anderson pergunta, genial, numa das suas músicas, “Is time long or is it wide?”2. Eu atrevo-me a responder: ambos, mas está a alargar-se. O tempo estreito, vejase, é aquele que se define como uma linha, é o tempo da sucessividade, da causa e consequência, de uma coisa a seguir à outra. O tempo largo é o tempo que se define como um espaço, o tempo da simultaneidade, da rede, das coisas todas que estão a acontecer neste momento e a que eu me posso ligar3. Neste tempo largo, os “adultos” descobriram de repente que tudo está diferente, e sempre diferente. Foi como se a sensação difusa de aceleração que tinha dominado o século atingisse extremos praticamente insuportáveis. Foi como se de repente olhassem 2 3

Na música Same Time Tomorrow do albúm Bright Red

“No beginning / No end / No direction / No duration / Video as mind”, anotações geniais de Bill Viola em 1980, incluídas em Reasons for knocking at an empty house – Writings – 1973-1994

em volta e se descobrissem mergulhados numa tecnologia que não dominavam mas que fazia cada vez mais parte de si e das suas vidas. E essa tecnologia é a tecnologia que alargou o nosso tempo, é a tecnologia da cópia tecnológica4, a tecnologia do rádio, a tecnologia da televisão, mesmo num primeiro momento a imprensa, agora, evidentemente, as redes, sejam feitas de cabo, GSM ou satélite. Todas estas tecnologias multiplicaram exponencialmente o número de coisas a acontecer paralelamente, quer na realidade propriamente dita – se é que esta é ainda relevante ou discernível – quer nos múltiplos níveis mediáticos que a ela se sobrepõem. Quer isto dizer que hoje, em cada dado momento, a nossa atenção é cada vez mais valiosa. Ao nosso tempo como leitores, ouvintes ou espectadores, exige-se cada vez mais que se desmultiplique para responder a um sem fim de solicitações simultâneas. Ao limite seremos consumidores perfeitos deste mundo se, como o aleph de Borges, formos capazes de ter tudo aqui e agora onde estamos. Mas esta não foi a única forma pela qual se alargou o nosso tempo. Ele alargou-se também, por assim dizer, em profundidade, na medida em que se modificou a nossa obsessão cultural com o corpo, com a multiplicidade e intensidade de experiências que ele permite. Não podemos, por isso, deixar de fora deste alargamento do tempo fenómenos como os chamados desportos radicais, os fenómenos de alteração do corpo (piercing, tatuagem, escarificação, etc.), para já não falar na industrialização da pornografia. Ora, quer num caso – desmultiplicação mediática da realidade –, quer noutro – aprofundamento em intensidade da experiência do próprio corpo – os “jovens” entraram no ciclo de alimentação das indústrias construídas em torno deste movimento. É uma questão de ponto de vista e de ponto de começo, perceber se os jovens são, aqui, primariamente mercado-alvo preferido5 ou verdadeiros iniciadores de movimentos culturais que das margens emergem depois na cultura massmediática. O que me parece realmente relevante é que é uma geração que está no âmago desta tendência cultural, económica e social para a industrialização da nossa atenção num tempo largo. E é natural que esteja. Se marcarmos, de uma forma geral, a segunda metade do século XX como o período em que este “alargamento” do tempo entra em velocidade de cruzeiro até, em princípios da década de 90, atingir um ponto fulcral na massificação das redes como forma de comunicação multiponto, então aqueles nascidos depois de 1980, nascem já mergulhados nesta tecnologia e na cultura que ela constrói e reproduz. E é nesta sopa de sobre-informação e sobre-estimulação que nos dá o tempo largo, que os jovens aprendem a programar os vídeos antes dos pais, lidam com os computadores como os pais deles lidaram (eventualmente) com livros, copiam, piratam, distribuem todos os conteúdos que lhe parecem interessantes e vivem, de um modo geral, num contexto dominado pelo valor da intensidade da experiência – real ou mediatizada. 4

Técnica 5

É clássica a escrita de Walter Benjamin sobre A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade

Leiam-se alguns estudos como Street Trends de Janine Copiano-Misdom e Joanne de Luca ou Rocking the Ages de J. Walker Smith e Ann Clurman

É fácil perceber que estes adolescentes, tenham de ser hiper-adolescentes, com uma intuição natural para estabelecer as ligações que lhes interessam, para procurar e encontrar aquilo que, no momento seguinte, garante a continuidade do interesse das suas vidas. E a tecnologia que utilizam é relativamente irrelevante, diga-se, desde que a ligação exista. Pode ser a Internet como a televisão, como, espante-se, um bom livro ou revista, mas também a música, evidentemente, para já não falar da roupa. Relativamente irrelevante, acentue-se porque, seja como for, é de redes que estamos a falar e da capacidade destes hiper-jovens nelas se movimentarem de forma intuitiva, como seus conteúdos, eu diria. Pierre Bongiovanni fala do surgimento de novos continentes e o primeiro que identifica é o da juventude. Pierre Levy6 fala da inteligência colectiva, Derrick de Kerckhove7 da inteligência conectiva. Douglas Rushkoff8 cita a importância da banda desenhada ou do snowboard para compreender as transformações culturais que atravessamos. Os heróis do último livro de Gibson, Idoru, são sobretudo jovens, tal como o são os do tão citado Dragonball. Richard Dawkins9 fala de memes – ideias que circulam como numa rede pelo mundo todo – e o primeiro exemplo que dá é o do uso do boné ao contrário que das ruas das cidades norte-americanas chega a uma cidade de província austríaca. Mas chega de notas de rodapé, isto é, links. Se é de conteúdos que falamos, tentemos perceber um bocadinho melhor como eles circulam nesta rede de redes, nesta pele eléctrica de cultura que cobre a humanidade. Tarde. A parte sul da cidade de Los Angeles é uma enorme bacia desértica hoje habitada sobretudo por emigrantes ilegais, mas ligeiramente mais acima, das colinas de Hollywood e Beverly Hills a cidade desce para as praias da costa, onde, junto ao pacífico, o sol ilumina as filmagens de Baywatch, segundo consta a série televisiva mais vista no mundo, com uma das actrizes de certo mais “circulantes” na Internet, Pamela Anderson, corpo construído para servir esses objectivos precisamente. Desligo a televisão. Foi só quando no verão estive em Los Angeles pela primeira vez, quando depois voltei a Lisboa e quando, passados uns meses, senti saudades daquela cidade lá longe na 6

Leia-se L’intelligence Collective de Pierre Levy

7

Leia-se A Pele da Cultura e Connected Intelligence de Derrick de Kerckhove. O autor chama a atenção para a diferença entre conectiva e colectiva, afirmando a primeira de tendência mais democrática, a segunda podendo descambar em totalitarismos não intencionados pelo próprio Pierre Levy. 8

Em Playing the Future, de Douglas Rushkoff

9

Em River Out of Eden, de Richard Dawkins

west coast que me apercebi realmente da quantidade assustadora de cultura importada que os media tradicionais, em particular o cinema e a televisão, veiculam. Foi uma sensação quase física, só uma lembrança vaga da familiaridade daqueles lugares onde não passei mais de uma semana, como uma impressão intensa demais para ser apagada, no meu corpo. Apesar dos esforços proteccionistas dos diversos corpos políticos europeus, liderados quase sempre pela arrogância dos franceses, a Europa consome avidamente, desde pelo menos a segunda guerra mundial, a cultura americana. Aquilo a que hoje os europeus chamam indústria de conteúdos, é, nos Estados Unidos, uma verdadeira indústria cinematográfica, audiovisual, musical e videográfica que, com toda a experiência acumulada e com uma rede de distribuição consolidada, chega facilmente em papel dominante a quase todos os mercados mundiais. É uma indústria, é uma máquina. Mas aquilo que está dentro dela, do que muitas vezes nem nos apercebemos, é a realidade americana e a sua reinterpretação estética e ideológica, fascinante muitas vezes, sedutora quase sempre, estrangeira, já mal o notamos. Devo dizer que não é uma questão que me preocupe muito, a do protecionismo cultural. Devo dizer igualmente que, no virar do milénio, não acredito por aí além nas chamadas ameaças culturais da globalização. Acho mesmo que a discussão de uma possível política proteccionista só se pode dar a um nível económico, da redistribuição mundial dos lucros fabulosos gerados nesta área. Só como exemplo, o Titanic, só de receitas em sala, já gerou mais de 200 milhões de contos para a economia americana, ou seja mais de metade de toda a nossa indústria de telecomunicações. E isto é apenas um filme. Ao nível cultural, as questões colocam-se, parece-me, hoje de outra maneira, por um lado nos movimentos mais ou menos subterrâneos que fazem as escolhas dos mercados, cada vez mais construídos como redes com comunicação horizontal, e por outro na capacidade criativa dos detentores de talento e de direitos sobre esse talento. A tecnologia, a indústria e a economia são o fiambre desta sanduíche e não sobrevivem sem o pão. E o pão são as pessoas. Um Ponto Zero. Rewind. Voltamos aos jovens em rede, os hiper-jovens. Se tomarmos como boas as novas regras da nova economia como nos propõem, entre outros, Don Tapscott10 e Kevin Kelly11, então estamos a falar de redes de abundância em que dominam a atenção e a escolha como valores acrescentados. Ora, como se viu, parece haver uma geração que percebeu exactamente o que isso quer dizer, de forma quase intuitiva e que assume o “risco da escolha”, assume o controlo.

10 11

Leia-se, de Don Tapscott The Digital Economy e Growing Up Digital

De Kevin Kelly, além de Out of Control, vale a pena ler o artigo The New Rules for the New Economy, na Wired 5.09, posteriormente editado em português pela Cyber.net

Ao desespero dos seus pais, a ver nascer um mundo dominado pelo prefixo “ciber” em total ausência de controlo, paralisados pela velocidade de escape da sociedade em que vivem, parece contrapor-se, subitamente, uma outra, dominada por uma desconfortável apatia ideológica, um vazio de grandes discursos morais, mas perfeitamente capaz de lidar com o torvelinho que tanto incomoda os que detêm ainda o poder – porque não tenhamos dúvidas, existe um confronto latente entre a cultura linear e a cultura em rede, um confronto decidido à partida pela facilidade que a cultura em rede tem em devorar qualquer outra, mesmo a linear; o que interessa perceber é o que se ganhará e perderá nessa passagem. Essa geração que terá vinte anos no ano 2000 – de que os americanos, curiosamente afirmam ter medo –, uma geração sem história, sem princípio, meio e fim, uma geração feita de nós em redes intermináveis de ideologias, imagens, sons, corpos, marcas, sensações, intensidades, movimentos e, é claro, tecnologia, é a geração Um Ponto Zero. Um Ponto Zero é, na indústria do software, a primeira versão seja do que for, depois dos testes, depois das experiências, depois das versões alfa e beta, a um ponto zero é aquela que, vê pela primeira vez a luz do dia e sofre o choque da realidade, que geralmente lhe descobre todos os defeitos e espera melhorias na versão seguinte. Esta geração é duplamente 1.0: é-o em primeiro lugar porque é a primeira que nasce no meio desta realidade feita de redes, multiplicidade permanente, mudança interminável, choques e confrontos multidimensionais; é-o igualmente porque aborda essa realidade como se não fosse feita de milénios de cultura, mas apenas uma massa indistinta retrabalhável de acordo com os seus próprios critérios individuais e comunitários. É uma geração que aborda o que a rodeia como se não houvesse memória, ou como se, por instantânea e universalmente acessível, a memória não fosse mais relevante que o presente, mas apenas mais um nó na rede, tempo largo, espaço aberto. Termos como surfing e browsing definem perfeitamente esta atitude, de navegação por um mar de conteúdo. Há contudo uma mais valia fundamental. Confundir browsing e surfing na internet com o zapping televisivo, é ignorar aquilo que faz da geração 1.0 um agente inteligente, isto é, a capacidade para apreender instantaneamente os conteúdos – um plano de um videoclip pode ser compreendido em menos de um segundo – e moldá-los a si próprio como processador de relevância. Isto é, a diferença está na actividade, ou interactividade, se assim lhe quiserem chamar, na capacidade para viajar sem se mover, na capacidade para incorporar os conteúdos nos gestos, na roupa, nas atitudes, no que se ouve e vê e, logo, no que se mostra e diz. Ser Um Ponto Zero é tomar tudo como novo e inesperado, avaliar e escolher permanentemente, não de forma superficial, mas retomado em profundidade. Juntando a esta premissa a de que o utilizador é o conteúdo12, somos o que fazemos, então a conclusão mais lógica é de que o Um Ponto Zero se define como uma atitude geral, uma maneira de abordar a contemporaneidade em rede que a toma como 12

Ver http://www.terravista.pt/aguaalto/1072/utilizador.html

um quadro geral para a acção, um contexto para a navegação. Isto permite-nos duas conclusões imediatas. A primeira é que podemos escapar a um estereótipo de dizer que o Um Ponto Zero pertence apenas e exclusivamente à adolescência de final de milénio. É uma atitude que percorre, pelo menos, todo o século e não é exclusiva de uma faixa etária, evidentemente. Falar da relevância que ela ganha entre os adolescentes de final de milénio é apenas e só constatar uma tendência dominante. A segunda conclusão é que a tecnologia é, aqui, facilitadora e exclusivamente isso, alguma mais do que outra, é certo. O telefone é mais interactivo que a televisão, que por sua vez é mais multimédia que a internet, por exemplo, mas bem menos que os jogos de consola, que são, contudo, fechados, impedindo a criação de redes. E é precisamente na questão da tecnologia dominante que se podem resolver as questões da exclusão. Noite. Sentado em frente a um computador, banhado pela luz azulada do ecrã, com uma mão sobre o teclado e outra sobre o rato, o corpo parece parado, mas de repente um arrepio o move, um sorriso, um teclar súbito e nova pausa. Tão diferente. Um ecrã e um teclado é uma coisa tão diferente de estar cara a cara, tão diferente, mas com a mesma força, como um desporto radical. Ligo o computador. Descida à Terra. Aterramos num arquipélago no meio das águas mornas do Atlântico por alturas do equador, quinhentos quilómetros a oeste de Dakar, coberto pela poeira do Sahara, pelo sol já quente de Fevereiro. Cabo Verde foi o local escolhido para o lançamento pelo Ministério da Cultura do projecto Terràvista13, oferecendo espaço de graça na Internet para conteúdos em língua portuguesa não comerciais. O local escolhido para a instalação física do primeiro estaleiro, espaço público de acesso à Internet e construção de páginas, foi o Instituto Superior de Educação na cidade da Praia14. A sua instalação aconteceu quase por milagre, no contexto favorável de uma visita oficial do primeiro-ministro português. Os computadores viajaram de Portugal como bagagem acompanhada e sobreviveram à mudança de avião no Sal. Para além do acesso à Internet, a própria linha telefónica foi obtida no prazo recorde de 24 horas, contornando a burocracia normal da Telecom e ISP locais, ambos participados de congéneres portugueses.

13

Ver evidentemente http://www.terravista.pt/

14

Ver http://www.terravista.pt/estaleiros/praia.cv/ ou enviar mail para : [email protected]

Depois veio a questão do local da instalação. A direcção do ISE preferia uma pequena sala fechada à chave, que recusámos argumentando que, na inauguração com os primeiros-ministros, os jornalistas não caberiam. Os computadores ficaram na biblioteca. Depois veio a formação. Pedimos aos professores para convidarem os alunos mas só eles apareceram. Eram professores inteligentes. Perceberam o poder que terem acesso exclusivo aos computadores ligados à Internet lhes dava. Em poucos minutos tinham recebido a primeira resposta de um cabo verdiano algures no Canadá. Em poucos minutos faziam, também eles, parte da aldeia global e, como todos, iam fazendo uso do poder que a informação traz, naturalmente com ela. Hoje, professores e alunos no ISE estão menos sós. É claro que se podia passar em Portugal. O problema de estarmos a falar de uma geração Um Ponto Zero é que essa geração, apesar de especialmente preparada para sobreviver num mundo sobre-alimentado de conteúdos, não tem acesso aos mecanismos de poder que gerem esse mundo. Até porque esses mecanismos funcionam a uma velocidade demasiado lenta para serem interessantes em termos contemporâneos, os termos dessa geração. E aqui começamos a falar de exclusões. Em primeiro lugar, a maior fatia da população jovem do planeta está nas suas áreas mais subdesenvolvidas, África, América Latina, partes da Ásia. E não tenhamos dúvida, exerce neste momento uma pressão demográfica imensa sobre o o hemisfério norte. Para tomar alguns exemplos clássicos, temos a cintura sul latina dos Estados Unidos e o Magrebe e próximo oriente no caso europeu. E para além do problema da exclusão social, económica e tecnológica dessa percentagem enorme da população mundial, a info-exclusão resulta também dos problemas do acesso à tecnologia, que se articula entre a facilidade de utilização – a maior parte dos PCs exige ainda um empenhamento considerável de aprendizagem –, as possibilidades que oferece – não tenho dúvidas que Internet via televisão será menos poderosa que Internet via PC – e, por fim, evidentemente, o preço, factor último de massificação. Portanto, quer falemos de um escala global, quer do micro-universo que é uma pessoa em frente a um ecrã, as exclusões existem, complexas, a multiplos níveis e a nossa incapacidade para as abordar e resolver colocará problemas graves ao nível do que serão os conteúdos presentes e futuros das nossas redes. Depois há o desprezo do senso comum que, como coisa mais bem distribuída do mundo, dirá “isso da Internet é coisa de putos. É só pornografia! Além de que qualquer miúdo de 13 anos faz uma página na Internet.” E esta exclusão preconceituosa é a pior de todas e a que mais merece esclarecimentos. Em primeiro lugar a Internet não é coisa de putos, é coisa de Um Ponto Zeros e eu admiro sinceramente mais os que têm quarenta anos do que os que têm treze. Aos treze ser assim é uma segunda natureza, aos quarenta exige frescura e abertura de espírito. Em segundo lugar, existe de facto pornografia. Existe em Lisboa pelo menos numa meia dúzia de cinemas, algumas sex shops, em video nos hipermercados, em papel em alguns quiosques, a algumas horas tardias na televisão e, também, na Internet.

Surpresa, surpresa, na Internet existem também pessoas que escolhem o que querem ver, como em todos os outros casos que referi. E quanto à protecção dos menores… às vezes pergunto-me se não deveríamos era estar a proteger os adultos. Por fim, não é, infelizmente, verdade, que qualquer miúdo de 13 anos faz uma página na Internet, porque nem todos têm o acesso à tecnologia ou a formação mínima para o fazer. As infra-estruturas são importantes, mas são só máquinas e cabos estúpidos, se não tiverem pessoas ligadas a elas. Eu vou sentir-me realmente contente quando todos os miúdos de 13 anos souberem fazer uma página na Internet, em vez de ficarem no sofá a ver televisão. Isso não impede, evidentemente, que haja páginas e páginas, das mais amadoras às que exigem equipas permanentes de dezenas de pessoas. E as dezenas de pessoas levam-nos à última evidência. A indústria do UmPontoZero, ou seja, a indústria da alimentação e re-alimentação permanente das múltiplas redes de conteúdos que por sua vez se retrabalham permanentemente por acção dos agentes inteligentes humanos, é a indústria do milénio, é a indústria do audiovisual, do cinema, da música, da moda, do desporto, do espectáculo, da pornografia, das telecomunicações, da informática, dos jogos, etc. etc. Alguma vez poderemos fazer parte dessa indústria? Ter os computadores é importantíssimo. Ter a largura de banda é fundamental. Ligar as pessoas à(s) rede(s) é o passo complementar. Promover desde já conteúdos – e logo pessoas, utilizadores – diversificados, de qualidade, em língua portuguesa é aquilo que vai dar sentido à existência de infra-estruturas, é o que nos dará a nossa dimensão Um Ponto Zero e só assim, com criatividade e atenção teremos hipóteses. Faltam-nos dezenas de pessoas para produzir milhares de páginas. Ou talvez não faltem. Talvez falte apenas criar as condições para que elas o façam. Full rewind. E voltamos ao Dragonball, ponto de partida deste percurso breve por uma rede de ideias. A maior parte da população portuguesa está completamente alheada das coisas de que aqui falei, ainda nem sequer é uma versão de testes, quanto mais Um Ponto Zero. Os nossos jovens, contudo, cada vez mais, parecem estar preparados para passar ao próximo nível, ganharem a próxima luta, serem super guerreiros do ciberespaço. A cada letra que teclo o tempo escasseia mais. Até porque, como diz Laurie Anderson, ainda na mesma música “We’re in record”. Mantenham-se atentos. Luís Soares, Março de 1998

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